Por que ler os estruturalistas ? (Correio do Povo - Caderno do sábado, Porto Alegre)

May 26, 2017 | Autor: Norman Madarasz | Categoria: Contemporary French Philosophy
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POR QUE OS ESTRUTURALISTAS?
Norman Madarasz
Correio do Povo (Porto Alegre)– Caderno do sábado
24 de dezembro de 2016

Por que os ler, por que ler estes estruturalistas, e outros como Louis Althusser? Por que ler qualquer texto, se não fosse para saber, saber de primeira mão, saber para formar sua própria opinião, saber para se contrapor àqueles que desejam que você não saiba? Pois aqueles que afirmam que não é preciso ler estes ou aqueles autores já sabem, e por razões maniqueístas desejam que você não saiba. Ler então naturalmente para saber, para pensar de maneira esclarecida, e aí para melhor decidir, agir, resistir.
Há mais de duzentos anos os filósofos, ao serem convidados a escrever em jornais de grande circulação, costumam enfatizar aquela ideia, o esclarecimento. Sem tais apelos, a liberdade de expressão não teria sido conquistada. Sem a filosofia, nenhuma liberdade de expressão, nem sequer democracia, fato que se comprova neste fim de 2016 no Brasil. Lembremos que até nos países liberais tal liberdade foi conquistada com plena segurança apenas no início da década de 1960. No Brasil, o atraso não foi de vinte, mas trinta anos.
Esquecer fatos é ambos a semente e o fruto da ignorância. Em poucos casos na história da cultura europeia pós-Renascentista existiu um grupo de pensadores tão difamado pela mídia privada quanto os estruturalistas. O canto é o mesmo: não os leem, pois o texto pesa pela dificuldade, deprime pela obscuridade e desorienta pela trans-disciplinaridade. Tachados de irracionalistas, pós-modernos, até de abusadores da ciência e do Big Data, estes pesquisadores e escritores rejeitaram a filosofia e a psicologia construídas na esteira das grandes patologias da contemporaneidade: melancolia, crise de valores e de crenças, culpa, pecado, depressão ou niilismo. Ao invés disso, propuseram novas formulações da racionalidade alicerçada no arcabouço científico de uma prática filosófica em sistema. Mais ainda, nos livros que Foucault, Althusser, Deleuze, Lacan, e Derrida publicaram durante os anos de 1960, encontra-se uma profunda reorientação do pensamento rumo a uma vivência radical.
Então quem deseja que não sejam lidos? A área das neurociências, talvez. Pela proeza técnica da experimentação laboratorial, das imagens cerebrais e das citações no Google Acadêmico, as neurociências contemporâneas prometem quebrar o mistério da memória, das emoções, da empatia e da sociabilidade. No meio universitário, é uma posição que se denomina reducionista. Supõe-se que o ser humano não seja tanto um animal quanto uma máquina natural. Em ambos os casos, os principais determinantes da sua experiência enquanto ser pensante seriam independentes das condições socioeconômicas e intelectuais do cotidiano. Por isso, não se deveria ler Lacan, questão de não se contaminar...
Ora, quando o marxismo ainda produzia ciência, e ele a produzia muito (a tecnológica que deu o telefone celular cresceu no formidável âmbito de pesquisa cientifica da União Soviética de outrora), o apagamento do fato social era denominado "ciência burguesa". Althusser, Deleuze, Derrida, Foucault e Lacan participaram, todos eles, da crítica aos paradigmas marxistas de produção cientifica. Mas eles também fizeram o mesmo contra o existencialismo liberal e seu empreendedorismo.
Décadas antes da internet, o estruturalismo introduziu o modelo de rede no pensamento francês. Deleuze exaltava a filosofia das cidades e das ruas, em que a caverna de Platão se desdobrava em labirintos estratificados, geradores de novos acontecimentos da verdade. No caso de Lacan, foi a teoria do inconsciente que se revolucionou. Afirmando que o inconsciente é "estruturado como uma linguagem", Lacan tirou a causa do desejo do interior da pessoa para colocá-la além do próprio objeto-corpo em uma figura do Outro: ambos deus e demônio. Foucault, por sua parte, apresentou novos meios para se pensar a história das ideias e das ciências, demonstrando desta forma que na época em que ele pesquisava, o conceito de "homem" se esgotava em sua validade. Em suas pesquisas, um novo passo se viu inscrito no âmbito do conceito para proporcionar uma definição emancipada também da mulher, a partir da ideia de "diferença irredutível" ao conceito de "homem".
Será que estas lições foram apreendidas? Se foram, será que são lembradas? Sem ler os estruturalistas, nem se pode começar a responder a estas perguntas. Vivemos em plena insurreição feminista, com reivindicações por direitos plenos para estudar e trabalhar em igualdade de condições e de salários, mas ainda tanto se fala em "O Homem".
O pensamento da diferença não se aprende ao "surfar" entre os "internautas". A mídia repete sem trégua que a filosofia política e a política econômica marxistas não se aplicam mais a uma sociedade pós-industrial. Mas fala-se muito pouco da modernização do marxismo orquestrada por Althusser, e mais recentemente por Alex Callinicos. Althusser, o influente professor da École normale supérieure de Paris, mais do que incentivar a ver melhor as injustiças do capitalismo para despertar uma nova consciência de classe, colocava em cena uma nova prática de ler os textos que reproduzem as injustiças: a "leitura sintomal". Qual lógica e qual economia organizam o sentido produzido por um texto? Como opera o inconsciente em uma teoria? Quando se deve admitir a nossa, a tua, própria resistência no ato de leitura diante das verdades que o texto expõe à consciência moral da desigualdade com a qual a cultura intelectual contribui em um país? Tantas questões provocadas pelo instrumento da leitura sintomal, cuja extensão será a "desconstrução" na filosofia de J. Derrida.
Da questão por que ler os estruturalistas, passamos então à de verificar se ainda é possível os ler. Ou melhor, quem os pode ler? Ao congelar o teto dos gastos públicos sem criar uma nova alíquota sobre rendas altas e atacar a sonegação, a PEC 55 destruiu a possiblidade da concretização da educação pública igualitária no Brasil. O estruturalismo apostava que a verdade não se encontra onde se espera, mas circula escondida na própria análise do conflito. Seus proponentes demonstravam que se a análise teórica não interpela o sujeito pensante, então a ética permanece ao serviço das grandes fortunas e da propriedade privada.
Por isso, a resposta à pergunta que aqui nos serve de título é uma tarefa de pensamento. Ler, ler mais, ainda, e então de forma sintomal, em papel ou pdf. E se não fosse Lacan et al., então que seja os alunos deles: A. Badiou, J. Rancière, J. Butler, E. Roudinesco, C. Malabou... Virá então o momento para discutir novamente a neurociência da memória, e se ela alcança melhor a verdade do que o faz a filosofia estrutural e multidisciplinar.


(Professor nos Programas de pós-graduação em Filosofia e em Letras, autor de O Realismo Estruturalista: do intrínseco, do imanente, do inato. Porto Alegre: Editora Fi, 2016).


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