Por que levar a história da física térmica para a sala de aula?

May 28, 2017 | Autor: Felipe Prado | Categoria: Ensino De Ciências
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Por que levar a história da física térmica para a sala de aula?

Felipe Prado Corrêa Pereira

Instituto de Física da Universidade de São Paulo, [email protected]


Resumo
A natureza íntima da temperatura é quase sempre ensinada no segundo
grau - seja na sala de aula, seja nos livros didáticos - como sendo efeito
do movimento, ou vibração dos átomos e moléculas. Entretanto, o ensino de
calorimetria é carregado de conceitos e vocabulários típicos da doutrina
substancialista (teoria do calórico). Termos como capacidade de calor,
quantidade de calor e calor específico foram cunhados sob a luz da teoria
calorista, fazendo com que o ensino de tal modelo aconteça de maneira
implícita. O atual trabalho consiste em um breve estudo sobre a ascensão e
queda desta teoria e na análise da abordagem que dois livros didáticos
fazem ao tratar dos assuntos temperatura e calor. Temos a intenção de
investigar qual é a imagem de ciência propagada por estes livros, bem como
as possíveis contribuições do emprego da história da física térmica no
segundo grau, visando a propagação de uma visão mais fiel da física e seus
processos, contrapondo-se ao ensino tradicional de ciências.
Palavras-chave: Calor, teoria do calórico, calorimetria, história da
ciência, ensino de física.
1 - Introdução

Podemos observar, nos cursos de física do Ensino Médio, que a
interpretação hegemônica sobre a natureza da temperatura e do calor
ensinada é a interpretação mecanicista, ou seja, a temperatura seria a
manifestação do movimento das partículas constituintes da matéria e estaria
associada ao grau de agitação dessas partículas. Esta visão ganhou força ao
longo do século XIX, apesar de, no século anterior, não ter sido a teoria
que melhor predizia os fenômenos relacionados, principalmente, à troca de
calor entre corpos com diferentes temperaturas, aquecimento e mudança de
fase. A teoria que melhor se adequava aos resultados experimentais era a
teoria do calórico, ou teoria substancialista do calor, que o interpretava
como uma substância sutil e auto repulsiva que permeava todos os corpos e,
quanto maior a quantidade de calórico em um corpo, maior seria sua
temperatura.

Tal teoria foi paulatinamente construída no século XVIII, acompanhando
o desenvolvimento da calorimetria e da sua equação fundamental: ΔQ = mcΔT.
Tal equação está presente no currículo de física do Ensino Médio e nos
livros didáticos, mostrando que se oculta a teoria do calórico, apesar de
seus resultados estarem presentes. Tendo isso em mente, o presente trabalho
busca refletir sobre as seguintes questões: i) qual é a imagem de ciência
usualmente propagada no ensino médio e nos livros didáticos? Ela é fiel ao
fazer científico e à natureza da ciência? ii) será que o ensino da teoria
do calórico e/ou da história da física térmica pode contribuir para a
construção de uma visão mais adequada da natureza da ciência?

Muitos autores advogam que há valor didático no enfoque histórico da
ciência em geral. O ensino de ciências, hegemonicamente praticado nas salas
de aula, enfoca principalmente seus resultados finais e o "formulismo"
(ZANETIC, 1990) a eles associados. Este tipo de enfoque propaga uma visão
um tanto irreal da ciência, como sendo um conhecimento pronto,
incontestável, não processual e não histórico (MARTINS, 2006), ocultando
seus processos, suas metodologia, seus fracassos e suas teorias e modelos
já superados, mesmo que estes tenham contribuído para o desenvolvimento da
ciência, como é o caso da teoria do calórico.

Vamos explorar essas questões apresentando um breve panorama histórico
da ascensão e queda da teoria do calórico, dando maior enfoque nos
trabalhos do médico e químico Joseph Black (1728 - 1799) e, em seguida,
analisar como o assunto é geralmente abordado na sala de aula e em alguns
livros didáticos.

2 - Panorama histórico

A interpretação acerca da natureza do calor dividiu a opinião de
filósofos e cientistas desde a antiguidade. Havia os que defendiam a
doutrina substancialista e os que defendiam a doutrina mecânica, ou
vibracional. Este embate permaneceu por muitos séculos no campo da
especulação metafísica devido à parca investigação quantitativa dos
fenômenos térmicos. Os primeiros experimentos mais acurados no campo da
termologia só se tornariam viáveis depois da invenção dos primeiros
termômetros e do estabelecimento de escalas termométricas precisas, ao
longo do século XVII, tornando possível o nascimento e grande
desenvolvimento da calorimetria no século seguinte.

2.1 - Ascensão da teoria do calórico

Com os termômetros foi possível observar fenômenos de notável
importância, um deles sendo o do equilíbrio térmico: imagine dois corpos,
em diferentes temperaturas, em um ambiente influenciado por nenhuma fonte
de calor, de tal forma que podemos medir tanto a temperatura de cada um dos
corpos como a do ambiente com o uso de termômetros. Observaremos que,
depois de um certo intervalo de tempo, todos os termômetros acusarão a
mesma medida de temperatura. Nas palavras de Joseph Black: "Todos os
corpos, comunicando-se livremente uns com os outros, e expostos a nenhuma
ação externa desigual, adquirem a mesma temperatura, como indicado por um
termômetro. Tudo adquire a temperatura ambiente" (BLACK apud ROLLER, 1957,
tradução nossa). A comunicação de calor entre corpos em diferentes
temperaturas já era conhecida, mas este dado quantitativo acurado foi de
fundamental importância para que novas especulações e questões sobre a
troca de calor fossem postas pelos filósofos naturais da época.

Professor de medicina na Universidade de Leiden, Hermann Boerhaave
(1668 - 1738) e Pieter van Musschenbroeck (1692 - 1761) achavam que o
equilíbrio térmico implicava, necessariamente, em uma distribuição
igualitária de calor entre os corpos e o meio que os rodeava. Segundo
Black, esta suposição implicava que a quantidade de calor que um corpo pode
armazenar é diretamente proporcional a sua quantidade de matéria, ou seja,
sua massa (por conveniência chamaremos tal hipótese de "hipótese dos
pesos") (CASTRO,1993). É correto afirmar que para aquecer um quilo de água
em um grau Célsius, por exemplo, é necessária metade do calor demandada
para aquecer dois quilos de água no mesmo número de graus. Esta é uma
suposição necessária (e justifica o termo m da equação ΔQ = mcΔT), porém
não suficiente para explicar o aquecimento dos corpos. Com seus
experimentos, Black foi capaz de provar que a massa não é a única variável
necessária para determinar a quantidade de calor desprendida para aquecer
uma substância em certo número de graus, podendo assim delinear, com
precisão, a diferença entre temperatura e calor. Para isso, foi fundamental
a descoberta (ou criação) do conceito de capacidade calorífica.

Um experimento creditado à Fahrenheit mostrou que ao misturar
amostras de mesmo volume de água, uma a 80ºF e outra a 40ºF, a temperatura
da mistura se estabiliza em 60ºF, ou seja, o ponto médio entre as
temperaturas iniciais. Fahrenheit notou que, em situações como esta
(misturas com volumes iguais de substâncias iguais), o aumento da
temperatura na amostra mais fria é numericamente igual ao decréscimo da
temperatura da amostra mais quente (ROLLER, 1957).

Caso a "hipótese dos pesos" fosse correta e geral, esperaríamos que ao
repetir tal experiência com substâncias diferentes, mas mantendo a
igualdade entre os volumes, a temperatura de equilíbrio seria dada por uma
média ponderada cujo peso seria a densidade das substâncias.

Black contestou tal hipótese analisando outro experimento realizado
por Fahrenheit, no qual amostras de mesmo volume de água e mercúrio,
inicialmente a diferentes temperaturas, foram misturadas. Segundo a
hipótese dos pesos, a temperatura da mistura deveria se estabilizar bem
mais próxima à temperatura inicial do mercúrio do que a da água, já que sua
densidade é, aproximadamente, 13 vezes maior do que a densidade da água.
Entretanto, a temperatura se estabilizou mais próxima à temperatura inicial
da água. Colocando em números, foi misturada água a 100ºF com o mesmo
volume de mercúrio a 150ºF e a temperatura se estabilizou em 120ºF,
contrariando a hipótese dos pesos, ou seja, o mercúrio se resfriou em 30ºF
enquanto que a água se aqueceu em apenas 20ºF. De acordo com Black, para
se atingir uma temperatura de 125ºF utilizando essas mesmas substâncias,
seriam necessários três volumes de mercúrio para dois de água, não
importando qual é o mais quente ou o mais frio (BLACK apud ROLLER, 1957).

Ainda investigando o aquecimento da água e do mercúrio, o médico
George Martine (1702 - 1741) realizou experimentos acerca do aquecimento de
corpos utilizando o chamado "método da fonte continua de calor" (ROLLER,
1957), o qual consiste em manter uma chama, ou outra fonte de calor,
próxima a uma substância a ser aquecida. Ele supunha que a quantidade calor
cedida pela fonte era proporcional ao tempo de exposição: quanto mais tempo
uma substância é colocada nas proximidades de uma fonte contínua de calor,
maior é seu aquecimento. Dr. Martine comparou o aquecimento de volumes
iguais de água e mercúrio expostos à fontes de calor contínuas
equivalentes.

Segundo a hipótese dos pesos, seria mais fácil aquecer a água do que o
mercúrio. Mais precisamente, levaria de 13 a 14 (CASTRO, 1993) (a densidade
de mercúrio é 13,55 vezes maior do que a da água) vezes mais tempo para
aquecer a amostra de mercúrio, em uma dada quantidade de graus, do que
levaria para aquecer a água nessa mesma quantidade. Entretanto, seus
experimentos acusaram resultados discordantes com esta hipótese: o mercúrio
demorava quase duas vezes menos tempo do que a água para atingir uma dada
temperatura, considerando que suas temperaturas iniciais eram iguais. Isso
significava que era necessário menos calor para aquecer o mercúrio do que a
água em um mesmo número de graus.

Deste modo, conclui-se que o mercúrio teria menor "capacidade para o
calor" do que a água, ou seja, menor quantidade de calor é necessária para
aumentar sua temperatura em uma mesma quantidade de graus. (ROLLER, 1957)

Black, em 1765, assistido pelo seu aluno William Irvine (1743 - 1787),
realizou experimentos utilizando o método de misturas para medir a
capacidade para o calor de diversas substâncias. Posteriormente, o método
da fonte contínua de calor também foi usado para o mesmo propósito (ROLLER,
1957). Com ele, Black descobriu que a quantidade de calor (ΔQ) absorvida
por uma dada substância é diretamente proporcional à massa da amostra (m) e
à variação de temperatura causada pelo aquecimento (ΔT). Adicionando uma
constante de proporcionalidade (c) obtemos a equação ΔQ = mcΔT.

Black foi capaz de mostrar que o fator c variava para cada substância.
Ele e Irvine se referiam ao fator como "afinidade para o calor", "apetite
para o calor", mas estabeleceram definitivamente o termo "capacidade para o
calor". Mais tarde, o termo "calor específico", como é adotado até hoje,
foi empegado por J.C. Wilcke, em 1781. (CASTRO, 1993)

Black também se dedicou a estudar a mudança de estado físico de
algumas substâncias: era partidário de que a quantidade de calor que um
corpo continha determinaria seu estado físico. Na época já se sabia que
mudanças de estados físicos ocorriam sempre a temperaturas bem
determinadas. Segundo a teoria calorista, tal fenômeno ocorria, pois, as
partículas de calor injetadas durante a transição de fase estariam se
combinando quimicamente com as partículas do material, gerando fluidez ao
invés de aumentar sua temperatura.

O desenvolvimento da calorimetria ao longo do século XVIII deu força à
teoria substancialista do calor, enquanto que a teoria vibracional
permanecia pouco desenvolvida. Em 1779, William Cleghorn, apoiando-se nas
descobertas do calor específico e do calor latente, postulou uma série de
propriedades da "substância do calor", ou "calórico", como chamou
Lavoisier, em 1787 (ROLLER, 1957). Tais postulados da teoria do calórico
são expostas por Roller (1957, tradução nossa):


"(i) O calórico é um fluido elástico, cujas
partículas se repelem fortemente.

"(ii) As partículas do calórico são atraídas pelas
partículas da matéria comum, sendo a magnitude desta
atração diferente para diferentes substâncias e para
diferentes estados de agregação.

"(iii) O calórico é indestrutível e não pode ser
criado.

"(iv) O calórico pode ser tanto sensível quanto
latente e, no estado latente, é combinado 'quimicamente'
com as partículas da matéria para formar líquido ou vapor.

"(v) O calórico tem peso apreciável."


Com estes postulados, a teoria era utilizada para explicar inúmeros
fenômenos: a dilatação e contração de corpos; trocas de calor entre corpos
com diferentes temperaturas; a condução de calor, entre outros.

2.2 - Crise da teoria do calórico

Como mencionado anteriormente, sempre houve opositores à teoria
substancialista do calor, cujo contraponto era a teoria dinâmica. Tanto o
corpo explicativo sofisticado que a teoria do calórico ganhou quanto seus
postulados proporcionaram maior possibilidade de refutação pelos críticos.

Uma das importantes objeções que a teoria substancialista sofreu
estava associada à produção de calor por fricção, que ameaçava a validade
do princípio da conservação do calórico. O mais famoso experimento sobre
produção de calor por fricção foi realizado foi Benjamin Thompson, mais
tarde nomeado Conde Rumford, que era um opositor da teoria do calórico. Na
última década do século XVIII, ele realizou experimentos em que mediu a
produção de calor na perfuração de canhões (ROLLER, 1957). O que mais
chamou atenção de Thompson foi o fato de que o calor produzido pela fricção
dos canhões parecia inexaurível, o que falseava o postulado da conservação.

Influenciado pelos experimentos de Conde Rumford, nos quais mostrou-se
que a fricção entre sólidos pode ser uma fonte inesgotável de calor, Joule
realizou experimentos em que tentava produzir calor por meio da fricção de
líquidos. Souza e Silva (2015) descrevem o experimento:

"Nele, Joule considera as mudanças de temperatura que
ocorre quando a água é movimentada em direções contrárias
(fricção entre fluidos) por um conjunto de pás colocadas
dentro de um calorímetro. A movimentação das pás é feita
através de pesos ligados a seu mecanismo de movimentação,
que estão pendurados nos extremos de um conjunto de
polias. A hipótese é que a queda dos pesos produzirá um
trabalho mecânico no interior do calorímetro, movimentando
as pás e modificando a temperatura. O experimento precisou
ser repetido várias vezes para que fosse possível
encontrar um resultado, já que o calor específico da água
é muito grande e eram necessárias várias descidas dos
pesos para um aumento significativo da temperatura. O
referido experimento foi publicado na Philosophical
Transactions of Royal Society 1850".


A obtenção do equivalente mecânico do calor fortaleceu a doutrina
mecanicista, enfraquecendo a doutrina calorista, além de ter sido de
fundamental importância para que se estabelecesse o princípio da
conservação da energia (conceito pouco preciso ainda no começo do século
XIX). A teoria do calórico foi aos poucos caindo em desuso, conforme as
descobertas nesse campo se expandiam. O conceito de trabalho e processos de
conversão foram imprescindíveis para tais descobertas. As conversões de
calor em trabalho mecânico por meio das máquinas térmicas, ou o motor
elétrico, abriram portas para investigações que buscavam encontrar uma
entidade, ou uma "força", cuja quantidade era conservada após tais
processos de conversão. Nas palavras de Thomas Kuhn (2011), "muitos dos
descobridores da conservação de energia estavam consideravelmente
predispostos a perceber uma única e indestrutível força na raiz de todos os
fenômenos naturais. "

É difícil delimitar quando a teoria substancialista finalmente ruiu,
mas talvez seu declínio definitivo tenha sido causado pelo desenvolvimento
da mecânica estatística por Maxwell (1831 - 1879), Ludwing Boltzmann (1844
- 1906) e Josiah Willard Gibbs (1839 - 1903), a qual finalmente foi capaz
de unificar a mecânica e a termodinâmica, dando ao modelo mecânico do calor
um corpo teórico rígido.


3 - A calorimetria nos livros didáticos e na sala de aula

Foram analisadas as abordagens dos temas temperatura e calor de dois
livros didáticos: Conexões com a Física, vol. 2, de Blaidi Sant'anna,
Glorinha Martini, Hugo Carneiro Reis e Walter Spinelli (1ª edição) e Curso
de Física, vol. 2, de Antônio Máximo e Beatriz Alvarenga (6ª edição).

No Conexões com a Física é marcante a presença de contextualizações da
física no cotidiano e, geralmente, é o ponto de partida de cada um de seus
capítulos, tendo o intuito de fazer com que os alunos reconheçam "as leis
que regem e explicam os fatos com os quais convivemos diariamente", como os
autores escrevem na "Apresentação" do livro. Notamos que os autores
empregam a ênfase das "explicações corretas" que "concentra-se quase que
exclusivamente nos produtos" (MOREIRA; AXT, 1986) da ciência. A
interpretação vibracional do calor é apresentada sem discussão sobre a sua
origem ou evolução e a história da ciência está praticamente ausente no
livro. Destacamos um trecho do capítulo 1 – Temperatura e Calor:



"De maneira macroscópica, estamos acostumados a
associar a temperatura aos estados térmicos de um corpo:
quente ou frio. Se um corpo está quente, relacionamos ele
a uma temperatura elevada. Aso corpos frios, associamos a
temperaturas de menor valor"

"E a interpretação microscópica do conceito de
temperatura? Para desenvolver essa interpretação, faz-se
necessária uma breve discussão a respeito da agitação das
partículas que constituem um corpo. Quando um corpo é
aquecido, a agitação média de suas partículas tende a
aumentar, mas quando ele é resfriado o movimento de suas
partículas tende a diminuir, ou seja, a agitação média das
partículas do corpo se reduz. " (p. 25)



A utilização da história da ciência aparece apenas em alguns "boxes"
que complementam o texto regular do livro. No capítulo 1, tal box é
dedicado à teoria do calórico e se chama "A teoria do calórico e sua
superação". O texto diz que a teoria explicava "vários fenômenos, dentre os
quais o equilíbrio térmico", entretanto não especifica o poder explicativo
do modelo, principalmente nas trocas de calor. Ao explicar no que consistia
e teoria os autores cometem um erro conceitual:



"Dois corpos a temperaturas diferentes possuíam,
portanto, diferentes quantidades de calórico; quando dois
corpos eram colocados e contato em um recipiente
termicamente isolado eles tendiam ao equilíbrio térmico,
pois o corpo com maior temperatura passava parte de sua
quantidade de calórico para o corpo de menor temperatura.

A passagem de calórico cessaria no memento em
que houvesse quantidades iguais de calórico nos corpos e,
consequentemente, eles atingiram a mesma temperatura"

O erro consiste em dizer que iguais temperaturas implicam em iguais
quantidades de calórico. É um erro grosseiro, pois um dos méritos da teoria
foi a diferenciação entre calor e temperatura por meio do conceito de
capacidade calorífica, ou seja, alguns corpos, imaginando a equidade de
massas entre eles, precisam armazenar mais calor do que outros para causar
iguais variações em suas temperaturas. Sendo assim, em uma situação de
troca de calor em um recipiente termicamente isolado, os corpos em iguais
temperaturas não tem a mesma quantidade de calórico, mas o fluxo de
calórico entre eles se torna nulo, cessando a variação de temperatura. Da
maneira como é explicado no livro, a teoria teria sucesso em explicar
apenas o equilíbrio térmico, não fazendo jus a seu valor histórico e
principalmente científico


No Curso de Física podemos notar a presença da história da ciência,
apresentando a contribuição de alguns físicos famosos, apesar de não ser o
enfoque principal do livro. Em comparação com o livro Conexões com a
Física, notamos uma retratação mais processual da física, apesar de também
fazer uso das "explicações corretas", devido aos textos geralmente enxutos.
Os autores chegam a fazer menções à teoria do calórico, porém, sem fazer
justiça à sua importância científica e histórica:


"Quando analisamos o conceito de equilíbrio térmico,
vimos que, se dois corpos a temperaturas diferentes são
colocados em contato, eles atingem, após certo tempo, uma
mesma temperatura. Até o início do século XIX os
cientistas explicavam este fato supondo que todos os
corpos continham, em seu interior, uma substância fluida,
invisível, de peso desprezível, chamada calórico. Quanto
maior fosse a temperatura de um corpo, maior seria a
quantidade de calórico em seu interior. [...]

Apesar de esta teoria ser capaz de explicar
satisfatoriamente um grande número de fenômenos, alguns
físicos mostravam-se insatisfeitos em relação a certos
aspectos fundamentais da ideia do calórico e tentaram
substituí-la por outra, mais adequada, na qual o calor é
considerado como uma forma de energia. " (p. 70, grifo
nosso)



O texto atribui sucesso à teoria do calórico em explicar vários
fenômenos, mas não especifica quais são eles, salvo o do equilíbrio
térmico. Acontece que tal teoria era bem-sucedida em explicar trocas de
calor entre corpos e seu aquecimento, assunto principal dos dois tópicos
seguintes. Desta maneira, o estudante leitor do livro fica alheio à
importância que a teoria teve na referida época.

A abordagem de ambos os livros está em consonância com o perfil do
ensino tradicional de física, geralmente mostrando apenas o produto final
de um longo processo (MARTINS, 2006).


4 - Considerações finais

Podemos notar que os livros didáticos analisados priorizam a
apresentação dos resultados fornecidos pelos modelos e teorias físicas mais
aceitas atualmente, marginalizando aspectos essenciais das ciências, tais
como suas origens históricas, seus processos de aceitação ou refutação pela
comunidade científica, os paradigmas que prescindem sua construção, etc. A
ausência da história da ciência e o foco nos resultados e formulismos
passam uma imagem de ciência como um conhecimento inquestionável, acabado,
cumulativo, formulado por mentes sobre-humanas e que independem de outras
áreas do conhecimento. Sabemos que tal noção não se limita aos livros
didáticos e é largamente reproduzida nas salas de aulas no segundo grau.

A abordagem histórica pode ser uma ferramenta importante para
evitarmos a propagação de visões ingênuas da ciência, apresentando-a aos
alunos como um conhecimento dinâmico, em constante construção, sempre
sujeito à reformulação ou rupturas e contextualizando-a no espaço e no
tempo. O contato com a produção e a evolução de conceitos científicos
também pode servir como estratégia para o que os alunos desenvolvam suas
habilidades de investigação e argumentação científica.

Seguem alguns aspectos da história da física térmica que podem ser
interessantes para atingir tais propósitos: a arbitrariedade inerente às
escalas termométricas, que nos mostra que a ciência é um construção
cultural envolvendo escolhas arbitrárias; a abordagem processual da
construção da calorimetria, exposta na seção 2, pode ser uma ferramenta
didática poderosa para que os alunos aprendam a distinguir corretamente os
conceitos de temperatura e calor; apresentar o conhecimento físico como
construção de modelos explicativos, os quais não necessariamente coincidem
com a verdade íntima do objeto físico, que podem sofrer mudanças, ou até
serem superados com o tempo, mostrando a falseabilidade e a provisoriedade
das teorias científicas.

Referências

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Heat: The Rise and Decline of the Caloric Theory In: CONANT, James Bryant;
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usos na educação In: Silva, C. Celestino (Org.). Estudos de história e
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Livraria da Física, 2006, p. xvii-xxx



LIMA, Isabelle Priscila Carneiro. Benjamin Thompson e o calor por atrito
In:SILVA, Ana Paula Bispo; GUERRA, Andreia (Org.). História da Ciência e
Ensino: Fontes primárias e propostas para sala de aula São Paulo: Livraria
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SOUZA, Rafaelle da Silva; SILVA, Ana Paula. James Prescott Joule e o
equivalente mecânico do calor In: SILVA, Ana Paula Bispo; GUERRA, Andreia
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sala de aula São Paulo: Livraria da Física, 2015, p. 105-121

CASTRO, Ruth Schmitz. História e epistemologia da ciência: investigando
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AXT, Rolando; MOREIRA. Marco Antônio. A questão das ênfases curriculares e
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