Por que os índios merecem ter o velho Museu do Índio do Rio de Janeiro

July 13, 2017 | Autor: Mércio Gomes | Categoria: Índios Urbanos, ÍNDIOS, Museu do índio - RJ
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O reconhecimento do valor do "Museu do Índio"

para os

índios que vivem no Rio de Janeiro







LAUDO ANTROPOLÓGICO








Mércio P Gomes
Antropólogo, Professor da UFF e UFRJ
Ex-presidente da FUNAI
Novembro 2010
LAUDO ANTROPOLÓGICO

O reconhecimento do valor do "Museu do Índio" para os

Índios que vivem no Rio de Janeiro






A cidade do Rio de Janeiro é reconhecida no mundo inteiro pela alegria de
viver de seu povo, mestiço e multitudinário, como dizia o grande
antropólogo, vice-governador e senador da República, Darcy Ribeiro, pela
gentileza com que tem recebido e continua a receber outras culturas, e pela
capacidade criativa de apresentar novas ideias e costumes dentro da cultura
brasileira. Aqui no Rio de Janeiro tudo pode acontecer, se for feito pelo
seu povo, e se tiver o caráter de criatividade e compartilhamento com
todos.

Inspirados por esse espírito é que vivem nesta cidade uma quantidade ainda
desconhecida de índios brasileiros (entre 1.200 a 1.500, de diversos povos
ou etnias) que, saindo de suas terras por motivos variados, aqui se
estabelecem para desenvolver aptidões e virtudes pessoais, para se mesclar
culturalmente com o povo carioca, para gozar a alegria de viver nesta
cidade, para sofrer na labuta do dia a dia, arrancando modestas, se não
pobres, condições socioeconômicas, para lutar por suas aspirações pessoais,
para vivenciar experiências que os engrandeçam e, ao final, para se
fortalecer pessoal e coletivamente e manter com isso sua identidade étnica.

Os índios que vivem no Rio de Janeiro fazem parte do grande processo
brasileiro de miscigenação sociocultural que formou, aos trancos e
barrancos, o nosso povo. Dão continuidade a esse processo, porém, nos dias
de hoje, com um diferencial muito especial. Os índios que aqui vêm viver ou
passar tempos não têm em mente mergulhar no caldeirão sociocultural e
perder sua identidade étnica. Ao contrário, querem viver outra experiência
a qual a contemporaneidade brasileira, após mais de 500 anos, os está
permitindo viver. É a experiência de viver na sociedade brasileira e
preservar sua identidade étnica.

Ter condições econômicas, sociais, culturais e morais de manter a
identidade étnica é a grande luta por que passam os índios que vivem nas
cidades brasileiras, de Manaus e Altamira, na Amazônia, a Porto Alegre e
Campo Grande, no sul e sudoeste do país.

Viver no Rio de Janeiro se apresenta em condições semelhantes, mas com
peculiaridades singulares, não somente pelas características da cultura da
cidade, mas também pela capacidade que tem seu povo de reconhecer o valor
de culturas diversas, por portar uma atitude universalista, não
provinciana.

Os documentos aqui apresentados em anexo, o histórico da constituição do
prédio desde meados do século XIX, junto com as matérias de jornais
relacionadas com a questão que abordaremos em seguida, demonstram a atitude
receptiva do povo carioca e da opinião pública em geral para com a singela
e decidida reivindicação dos índios pela guarda do antigo "Museu do Índio".




O simbólico e o sagrado do antigo "Museu do Índio"

Neste prédio, que ainda hoje, ainda que dilapidado por fora e a descoberto
por cima, com paredes úmidas e descascadas, se mostra garboso e varonil,
aos olhos de quem o mira, ao passar pela rua Mata Machado, cercado pelas
avenidas Maracanã e a Radial Oeste, confrontando o glorioso Estádio do
Maracanã, durante pelo menos 68 anos (1910-1978), abrigou o melhor do
pensamento, da ação e do descortino moral dos brasileiros mais ilustres que
jamais pensaram e trabalharam pela causa indígena no Brasil, quais sejam, o
Marechal Cândido Rondon, Darcy Ribeiro, Orlando Villas-Boas, Noel Nutels,
Eduardo Galvão, Carlos Moreira Neto e outros mais. Este prédio foi sede do
Serviço de Proteção aos Índios (SPI), criado por Rondon em 1910, que
estabeleceu as bases filosóficas, morais e práticas da política indigenista
republicana. Depois serviu como sede do Museu do Índio, criado por Darcy
Ribeiro em 1953, sob a égide de Rondon e Getúlio Vargas, de onde surgiram
as grandes ideias para consolidar a política indigenista brasileira diante
dos desafios novos que surgiam, com a criação de Brasília, a abertura de
grandes estradas, a entrada de inumeráveis contingentes populacionais pelo
Centro-Oeste e pela Amazônia.

Durante esse decênios, os índios do Brasil foram lutando por sua
sobrevivência, e, no processo, foram reconhecendo neste prédio o lugar onde
alguma parte de seu destino estava sendo traçado, sempre com esperanças de
que fosse para melhor. Para aqui afluíam comitivas e mais comitivas de
índios de diversas procedências, em tempos quando uma viagem do rio São
Francisco para o Rio de Janeiro era uma aventura de duas semanas ou mais de
viagem. Os índios nordestinos, como os Tuxá, Fulni-ô, Pankararu aqui vieram
falar com Rondon na década de 1920, os Truká e Kariri, nos anos 1940; na
década de 1950, vieram todos, os Kayapó logo após o primeiro contato em
1953, os Kraô, Canela, Terena, enfim, os Bororo – de quem Rondon descendia
– vieram para simplesmente conversar com Rondon, ouvir dele uma palavra de
alento e esperança de um futuro melhor, nesse prédio do Museu do índio.
Este prédio guarda esse memória em suas paredes, no ar que nele se respira.
Assim, pensam os índios que por ele já passaram.

Não é por outras, e muito menos por poucas, razões que esse prédio e seu
terreno se tornaram símbolo do que se fez de bom pelos índios neste país!

Eis, portanto, a razão principal do interesse simbólico e, para eles,
sagrado, dos índios que hoje vivem no Rio de Janeiro e se aboletaram no
terreno do velho Museu do Índio, com a esperança de que ele venha a ser
reformado e entregue ao seu desígnio maior. Seus pais e avós dele falaram
quando estiveram no Rio de Janeiro em épocas tão passadas, parece hoje.
Aqui foram recebidos pelo Marechal Rondon, por Darcy Ribeiro, e deles
obtiveram a garantia da palavra de que suas situações, em suas terras,
seriam resolvidas. Que havia alguém a olhar por eles no centro do poder da
república brasileira.



A invenção do comunitarismo urbano

Há uma outra razão para que o Museu do Índio seja venerado pelos índios. É
a sua busca por uma forma própria de urbanidade cultural. Os índios que
vivem atualmente nas dependências do velho Museu do Índio são membros reais
e auto-conscientes de suas comunidades originais. Não são "descendentes"
desgarrados que hoje pretendem recompor alguma identidade étnica. Vivem
como índios em suas comunidades e terras, seja no Nordeste, como os
Potiguara, Pataxó, Pankararu, Fulni-ô, Xocó, Kariri, Guajajara e Krikati,
seja do Centro-Oeste, como os Krahô, Karajá, os Kamayurá, seja do Sul, como
os Kaingang e Guarani, seja do norte, como os Tikuna (do alto Solimões!),
Munduruku, Mayoruna, Tukano (do alto rio Negro!). Como, de tantas partes,
de tantas tradições diversas, vieram estar juntos nesse umbigo cultural do
Brasil, o Rio de Janeiro?!

Bem, aqui eles estão por querem viver outra vida, conforme já apresentamos
no início desse texto. Mas aqui eles querem reviver e inventar uma vida
urbana, aquela vida que lhes parece o mais diferente de seu mundo, e que
eles querem sofrer vivendo-a e querem amar vivendo-a.

Os índios mencionados, e outros mais, que vêm e vão, estão nesse velho
prédio do Museu do Índio, porque, conscientemente e também
inconscientemente, querem inventar um novo modo de ser indígena. Não querem
deixar de ser índios! Querem ser índios de um modo diferente, como gente
urbana, no redemoinho da cultura brasileira.

Porém, não querem, não pretendem ser mais um caso no melting pot
brasileiro, no caldeirão de mistura interétnica que se formou e tem formado
nosso Brasil. Querem permanecer indígenas. Querem continuar com suas
ligações com seu mundo rural, sertanejo, amazônico, étnico, tribal. Vêm e
vão. Escrevem, se comunicam por telefone e internet com seus mundos
longínquos, ganham dinheiro e enviam para seus parentes em suas terras,
convidam seus jovens amigos e irmãos para também virem viver e usufruir
dessa vida.

Por que fazem isso?

Porque querem que seu povo, suas culturas entendam por dentro o que é o
mundo dos brasileiros não indígenas. Eles sabem que, sem conhecer de perto,
sem experimentar, quais antropólogos que o fazem de seus mundos, esse mundo
da civilização ultra-moderna, eles, povos indígenas, terão pouca chance de
sobreviver, de manter suas culturas, de preservar seu senso de universo,
seu sentimento do sagrado, diante das avassaladoras mudanças por que passa
a civilização contemporânea.

Inventar uma urbanidade étnica, sem perder sua identidade, eis a razão
maior dos índios que vivem no velho prédio do Museu do Índio.

É preciso que a sociedade carioca, que o povo do Rio de Janeiro, e que as
autoridades que fazem e desfazem essa cidade, que promovem e destroem
coisas belas, na frase de Caetano Veloso dirigida a São Paulo, se
sensibilizem com essa iniciante comunidade de jovens indígenas que querem
passear, viver e trabalhar numa boa nessa cidade maravilhosa.

Eis meu depoimento, à guisa de laudo antropológico, do meu melhor entender,
como antropólogo e ex-presidente da Funai, sobre a reivindicação dos índios
urbanos do Rio de Janeiro pelo lugar especial, tradicional e sagrado, do
Museu do Índio, como seu espaço novo de vivência urbana transcendental.
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