POR QUE UMA HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA?

July 23, 2017 | Autor: Alexander Vianna | Categoria: Theory of History, Social and Cultural History, History of Historiography
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POR QUE UMA HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA? – ALEXANDER MARTINS VIANNA Ensaio crítico exclusivamente para Academia.edu

POR QUE UMA HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA? por Alexander Martins Vianna 20 de abril de 2015 *** havia graça no silêncio mas não souberam ouvir havia tanto alarido lá dentro tanta urgência de novidades curtidas sem alongamento q o poema morreu:

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não se atreveu a nascer (Folha em Branco, de H.G. Bellucco) ***

Arte Visual: Igor Morski

A “virada linguística” em filosofia, letras e ciências humanas, assim como, os efeitos de reflexões e tensões de abordagens de Michel Foucault, João Adolfo Hansen, Alcir Pécora, Donald McKenzie, Hayden White, Roger Chartier, Michel de Certeau, Pierre Bourdieu e Reinhard Koselleck sobre usos, práticas, suportes, meios, gêneros e cânones de expressão de ideias e linguagens de poder, interesse e autoridade nos diferentes nichos da vida social criaram as condições de possibilidade para que as análises dos artefatos culturais e dos sistemas de significados se tornassem mais autoconsciente de seus pressupostos linguísticos e do quanto interferem na representação de eventos e experiências, que não ocorrem numa vazio social de relações de poder. Devemos considerar que a forma interfere na possibilidade de conteúdo, pois é por meio dela que expressamos tons para (e, por conseguinte, valores sobre) experiências da/na e por meio da linguagem (em suas figurações

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verbais, performáticas e imagéticas). Um componente maior de autoconsciência do papel da linguagem na construção da experiência enquanto evento linguístico e extralinguístico se tornou um caminho sem volta nos estudos literários e nos diferentes campos de ciência social. No entanto, o dilema da referencialidade da/na e por meio da linguagem tem sido objeto de debates, por vezes, pouco frutíferos, muitos dos quais decorrentes da ignorância do que seja “referência/experiência” para um certo gênero de enunciação (verbal, performático, imagético ou iconoverbal). Há estudos que fazem a aposta otimista de que existe acesso à experiência extralinguística da/na linguagem, que apontaria para a possibilidade de novas legibilidades e novas construções de sentido, ampliando o campo semântico de palavras e/ou sistemas de significados em função das transformações sociais, culturais e institucionais. Por este viés, uma análise não poderia ignorar processos de mudanças sociais, culturais e institucionais e suas interferências nas categorias de expressão, percepção e avaliação das experiências nos/dos gêneros de enunciação, havendo o desafio de abordar isso sem cair numa reflexiologia ingênua. Desde a década de 1920, antes mesmo de o labirinto cético ter se tornado moda nas décadas de 1970 e 1980, havia um exemplo promissor de abordagem na poética sociológica de Mikhail Bakhtin, que criticava o fato de os modelos de abordagem linguística estarem ancorados numa poética psicológica centrada no indivíduo (tradição crítica romântica) e/ou em metodologias filológicas estruturalistas originalmente concebidas para estudo de línguas mortas, mas que foram usadas nas buscas por (ou estudos sobre) configuração de “línguas nacionais” (e suas teleologias de literatura nacional). Contudo, a descoberta deste Bakhtin foi tardia entre os historiadores do Brasil. Daí, perdemos a possibilidade de criar outros horizontes de crítica, como convergir o que, hoje, os padrões críticos encaram como campos opostos de abordagem na historiografia, pois seguem o viés crítico norte-americano da “desconstrução”, “virada linguística” e do “giro retórico” na História da Historiografia e na Teoria da História. Por outro lado, um certo exagero do ceticismo niilista tem negado complemente a possibilidade de um discurso referencial, reduzindo a análise crítica a um inventário ou diagnóstico estático dos mecanismos do texto, esvaziando a relevância, nos estudos históricos, da premissa de que há processos, historicamente circunscritos, que levam à certa escolha e sentido na invenção, emulação, extinção, variação ou retomada de gêneros de enunciação. Afinal, se há um decoro nos gêneros de enunciação, a que se referenciam em termos de uso ou função social? É possível continuar a usar métodos originalmente pensados para estudos de línguas mortas em estudos de expressões culturais que estão vivas para os atores sociais e para as instituições sociais formadoras de possibilidade de usos de decoros específicos

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referidos a gêneros de enunciação? O problema do labirinto cético é que perdemos a capacidade de pensar os eventos culturais como processos inacabados, pois se tornam apenas “coisas (estáticas) inventariáveis” ou “máquinas (autorreferidas) de gênero”, no seguinte sentido de estudo: inventariar os dispositivos retóricos do gênero, como se somente tais dispositivos interessassem, como se não houvesse na escolha de um gênero de enunciação um modelo de “ouvinte/olhar/audiência” que norteia decoro e tom e, portanto, aponta para um indiciamento extralinguístico (que não é externo à linguagem) de valores, experiências e horizontes de expectativas referidos ao contexto de enunciação do gênero (e à sua função decorrente deste contexto). Não há humanidade se não há linguagem; logo, não há indiciamento extralinguístico externo ao fardo processual-perceptual da linguagem. Ora, tal premissa me reporta ao caminho esboçado na poética sociológica de Bakhtin, que podemos frutiferamente emular. O dilema da referencialidade do discurso aponta para um campo de tensões/ruídos nas ciências humanas, nas letras e artes atuais, cuja riqueza está exatamente na possibilidade de ambos os extremos (i.e., aposta otimista e ceticismo niilista) tensionarem um centro criativo dialético-dialógico que renove periodicamente objetos, abordagens e questões estruturantes para as ciências humanas e as artes em suas múltiplas interfaces. Cultivar tal interstício criativo de tensões impulsiona a nossa ousadia de tentar novos objetos, desafios, questões e abordagens. Este é o espírito que move o corpo coletivo do grupo “HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA”, lançado em 10 de junho de 2012 no Feicebuque, cujo objetivo é concentrar, num só lugar, os arquivos, postagens ou links de acesso a fontes e materiais para estudo, artigos, ensaios críticos e informes de eventos que tenham reflexões sobre (ou estudos de caso com foco em) História Social da Cultura, abarcando contribuições de Letras, Comunicação, Cinema, História, Artes, New Philology e New Bibliography. Nesta chave, trata-se de uma História Social dos Modelos Culturais, o que se distingue dos fazeres, abordagens e usos das Histórias das Mentalidades/Imaginários e das Ideias decorrentes dos cenários historiográficos (francês e norte-americano) configurados no último terço do século XX. Devemos encarar como uma grande oportunidade intelectual e artística pensar em paradoxo: abrir mão de concepções metafísicas de verdade e pensamento não deveria significar cair num labirinto cético niilista. O fim do referencialismo ingênuo ou da noção de que haja uma “linguagem natural” ou “espontânea” como extensão simples da vida ou da “vida simples” – ao modo da figuração literária do “bom selvagem” romântico, transposto para a figura do “homem do povo”, concebido como dispositivo crítico anticlássico, antiaristocrático, antipedantismo e, por vezes, para um

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perigoso pragmatismo antiintelectual dos “práticos” – não deveria significar uma análise estática, presentista e autorreferida das operações literárias, artísticas, científicas ou historiográficas. A crítica desconstrucionista deveria ter servido para ampliar o horizonte das possibilidades criativas dos cientistas sociais, mas muitos se apropriaram dela para ficarem somente num jogo insosso de competências autorreferidas para cumprir uma escala produtivista simples de Currículo Lattes, promovendo variações da mesmice. Por vezes, isso alimenta uma contracrítica rasteira, pragmática e tecnicista, que nem entende o que chama de seu “empírico” ou de sua “verdade empírica”, como se houvesse, na formação social de nossas ações, percepções e escolhas, um “teórico” distinto do “prático”, ou formas separadas de conteúdos. Ora, ninguém ganha com polarizações que simplificam o campo crítico: se simplifico o meu “adverso intelectual”, há um grande risco de eu criar respostas simplórias. Em todo caso, tudo isso é sintoma de quando o desconstrucionismo se torna um novo Minotauro, só que agora senhor de um labirinto cético arredomado, o que impede o acesso à cera e penas para o voo de novos Ícaros. Paradoxalmente, ao impedir novos Ícaros de voarem, tal versão de Minotauro se fragiliza perante os “práticos/empíricos” do pragmatismo tecnicista que portam “soluções para a vida”; ou perante as versões cliométricas de História Social que não analisam criticamente as suas premissas (teóricas) de empiria. Por isso, espero que uma História Social dos Modelos Culturais demonstre a importância de usar os seus recursos de método e abordagem aderidos à vida, próxima ou distante, no espaço/tempo, mas num sentido que demonstre que os pensamentos históricos, como agentes críticos, têm aplicabilidades específicas para a vida: são potencialmente desbanalizadores dos hábitos e formas de valor e pensamento da/na/sobre a matéria humana, justamente porque se fazem enquanto desafios crítico-culturais centrados no jogo de categorias como proximidade, alteridade, estranhamento, deslocamento e distância, que são form-ativas da sua linguagem e, por conseguinte, dos limites de seus recursos e modelos cognitivos perceptuais-causais sobre as vidas sociais e naturais. É por seu jogo cognitivo-perceptual sobre proximidade, alteridade, estranhamento, deslocamento e distância que o pensamento histórico atual mais pode contribuir para uma concepção de mundo como processo (sem fim e inacabado) inventado por homens em enfrentamentos ambientais díspares. Em nossa impossibilidade de perceber o mundo de fora da linguagem – afinal, não somos pedras –, estudar História, ou ao menos fazer a História Social da Cultura aqui pretendida, significa atentar para a mutabilidade e a variedade espaço-temporais de nossas categorias de percepção e avaliação do mundo. Ora, isso é o que mais nos lembra de

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nossa mortalidade – e de tudo que a sociedade nos possibilitou coletivamente produzir, abandonar, fundamentar, retomar ou ressignificar por conta de nosso medo da morte. Desse medo vem o desejo de duração e a fome de sentido (i.e., orientação), que fundamenta e impulsiona o tipo de aprendizado individual e coletivo que é a base do pensamento histórico: a forma como cada época, lugar ou agrupamento humano concebe a relação entre espaços de experiências e horizontes de expectativas – ou seja, a forma como se configura “regimes de historicidade” (se vocês preferirem F.Hartog no lugar de R.Koselleck). Por este viés, existem expressões institucionaissociais de pensamento histórico para além do que tem sido, até agora, os objetos recorrentes da História da Historiografia no Brasil. Por perceber isso, J. Rüsen focalizou seus estudos e interesses críticos na história ensinada particularmente no nicho que definimos como Ensino Básico, mas podemos ir muito além disso. Tenho esperança que a História da Historiografia e a Teoria da História atualmente praticadas no Brasil sejam menos imitativas e mais emulativas e antropofágicas de modelos externos, ousando ocupar os nichos de Ensino da História e de crítica cultural que, infelizmente, estão nas mãos de “práticos banais” que falam para muitos, ou de “teóricos” que só falam para seus pares. Enquanto os “teóricos de história” acharem que seus estudos apenas servem para a “vida contemplativa”, para o “comércio com amigos e livros” em alguma montanha bretã ou para a simples aferição quantitativa de mérito lattólatra, uma concepção pouco reflexiva de “prática”, “experiência” e “empiria” vai avassalar ou limitar nossos “horizontes de experiências” e “espaços de expectativas” dentro e fora da universidade. Andamos esquecidos de que o domínio da instituição retórica dos antigos (entre os seus gêneros, a arte histórica e a poética) voltava-se para a vida ativa na pólis. Ora, se o teatro de Shakespeare (hoje considerado “coisa de douto”) foi efeito estruturado e agente estruturante de sentidos para um público mais amplo na Inglaterra de finais do século XVI, participando de sua educação sentimental e política, devemos igualmente considerar importante a nossa formação crítica em História para a educação sentimental e política de uma sociedade que é, hoje, tão presentista, consumista e parasita de novidades (des)orientadoras (de “futuro” e de “passado”) que tem tornado insustentável a sua própria sobrevivência no planeta. O regime de historicidade do capitalismo neoliberal não pode continuar dando o tom do que podemos ser, como se não houvesse mais outras possibilidades de horizontes de expectativa formativos de espaços de experiências sustentáveis, inclusivos e dignos para a humanidade.

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