Por trás de Marbury vs. Madison: uma análise histórica sobre a política envolvendo a criação do controle jurisdicional de constitucionalidade

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por tr ás de marbury vs. madison: uma análise histórica sobre a política envolvendo a criação do controle jurisdicional de constitucionalidade Luiz Magno Pinto Bastos Junior1 Eduardo de Carvalho Rêgo2

Resumo Marbury vs. Madison talvez seja a decisão judicial mais estudada no mundo inteiro. Não é à toa, pois, de fato, foi nesse caso, julgado na Suprema Corte norte americana, à época presidida pelo Chief Justice John Marshall, que se criou efetivamente o controle de constitucionalidade. Mas o culto a tal decisão talvez escamoteie a realidade dos fatos: por mais inovador que seja o acórdão proferido por Marshall e seus colegas, ele decorre de uma lógica pouco corajosa, quase corporativista. É que, ao declarar a inconstitucionalidade da norma jurídica que obrigava o Poder Judiciário a conceder a comissão a um funcionário nomeado pelo antecessor do Presidente homas Jeferson, a Suprema Corte dos Estados Unidos se omitiu de resolver a verdadeira questão posta nos autos, qual seja, a obrigatoriedade de um Presidente respeitar e dar consecução às nomeações ou decisões políticas de um outro. Em breves palavras: a Suprema Corte norte americana criou o controle de constitucionalidade para não ter de resolver sozinha 1

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Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Graduado em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPA; Professor de Direito Constitucional, Direito Processual Constitucional e Informática Jurídica nos cursos de Direito e Relações Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; Professor convidado permanente da Escola Superior de Advocacia e da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina; Membro da Associação Internacional de Direito Constitucional, da Associação Internacional de Ciência Política e do Comitê para o Estudo e Desenvolvimento do Direito na América Latina. Doutorando em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Mestre em Teoria, História e Filosoia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; Professor de Filosoia do Direito e Ética Proissional no Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina – CESUSC.

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a celeuma política envolvendo o ex-Presidente John Adams e o Presidente homas Jeferson. Ao mesmo tempo, a Corte aproveitou a oportunidade para empoderar politicamente o Judiciário em relação aos outros poderes, na medida em que irmou o entendimento de que a Suprema Corte é quem deveria ser a legítima guardiã da Constituição dos Estados Unidos.

Palavras-chave Marbury vs. Madison; Suprema Corte norte americana; controle de constitucionalidade.

Abstract Marbury vs. Madison is perhaps the most studied court decision of the world. It is so because it was in this lawsuit, tried in the U.S. Supreme Court, at the time headed by Chief Justice John Marshall, wherein the judicial review was actually created. However, the worship of such a decision might hide the reality of the facts: for more innovative that was the judgment by Marshall and his colleagues, it comes from a corporatist logic. his is because, in declaring the unconstitutionality of the legal rule which required the Judiciary to grant an oicial commission appointed by President homas Jeferson’s predecessor, the U.S. Supreme Court has failed to decide the real issue raised in the case, namely, the requirement for a President to respect and pursue the decisions of another President. In a nutshell: the U.S. Supreme Court created the judicial review to not have to solve the political uproar involving former President John Adams and President homas Jeferson. At the same time, the court took the opportunity to politically empower the Judiciary in relation to other powers, by understanding that the U.S. Supreme Court is the rightful guardian of the U.S. Constitution.

Key words Marbury vs. Madison; U.S. Supreme Court; judicial review. 1. introdução Todo manual de Direito Constitucional que se preze dedica as páginas iniciais do capítulo sobre o controle jurisdicional de constitucionalidade das normas ao 514

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famoso caso intitulado Marbury vs. Madison, que tramitou na Suprema Corte dos Estados Unidos da América no início do século XIX e foi resolvido no voto encabeçado pelo Chief Justice John Marshall. De fato, as honrarias são bastante justas e o culto em torno dessa decisão judicial – que alterou o modo de se pensar a Constituição, dando-lhe verdadeira eicácia e, consequentemente, preponderância sob quaisquer outras normas jurídicas – se justiica, na medida em que todas as premissas nele evidenciadas formularam não só a base, mas praticamente a versão inal e acabada do atual controle de constitucionalidade. Nessa linha de raciocínio, não se pode negar que em toda declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica haja o germe de Marbury vs. Madison. Entretanto, historicamente falando, a decisão proferida no mencionado caso não foi simplesmente o produto de um reinado pensamento jurídico ou da evolução de um constitucionalismo militante, mas, ao contrário, foi o modo pelo qual a Suprema Corte dos Estados Unidos da América conseguiu deixar de se posicionar sobre uma disputa política entre o ex-Presidente federalista John Adams e o Presidente republicano homas Jeferson. Para a Corte de Justiça liderada pelo Chief Justice Marshall não era interessante tomar partido nessa disputa – em certo sentido até mesmo para não enfraquecer politicamente, ou, como prefere o historiador Peter Irons, para não aleijar3 o órgão de cúpula do Poder Judiciário estadunidense. É importante destacar que, apesar do pioneirismo do Juiz Marshall, que a partir de um raciocínio lógico criou verdadeiramente o controle jurisdicional de constitucionalidade, o seu voto em Marbury vs. Madison – e todas as respectivas implicações – foi eminentemente político. Ora, sendo ele o braço direito do ex-Presidente John Adams, inclusive tendo sido seu Secretário de Estado, mas também preocupado com a derrota dos federalistas nas eleições do Congresso e de como isso poderia repercutir politicamente na Suprema Corte, decidiu ele apresentar uma “não decisão” às partes envolvidas num dos mais emblemáticos casos já levados à Suprema Corte norte americana: reconheceu o direito a William

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Em Marbury vs. Madison, Marshall “decidiu evitar o confronto com o Congresso, que poderia ter provocado até mesmo novos esforços para aleijar o Tribunal” (IRONS, 2006, p. 105). Tradução livre de: “decided to avoid a confrontation with Congress that might have provoked even further eforts to cripple the Court”.

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Marbury, mas negou-lhe a possibilidade de pleiteá-lo perante o Tribunal por ele presidido – deixando a resolução do problema, quiçá, às instâncias ordinárias. Além disso, agindo assim, a Suprema Corte norte americana atingiu outro objetivo político igualmente relevante: por meio de um discurso técnico-jurídico, consolidou-se como a legítima guardiã da Constituição dos Estados Unidos, conquistando, dali para frente, posição de destaque na relação entre os três poderes constituídos. O objetivo principal deste trabalho é demonstrar como a “invenção”4 ou “consolidação” do controle jurisdicional de constitucionalidade se deu de manei-

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Embora seja escorreito dizer que o controle jurisdicional de constitucionalidade, tal como se conhece nos dias de hoje, foi “inventado” no caso Marbury vs. Madison, não se pode deixar de registrar que, em casos anteriores, a mesma lógica de superioridade ou supremacia da Constituição já havia sido consagrada em decisões judiciais singulares nos Estados Unidos. A propósito do tema, Nagib Slaibi Filho preleciona que “Antes mesmo da promulgação da Constituição de 1789, os juízes [americanos] tinham proclamado que, nos casos que lhes fossem submetidos, poderiam deixar de aplicar a lei incompatível com as leis de maior importância (New Jersey, em 1780; Virgínia, 1782, North Carolina, 1787). Os juízes seguiam aí precedentes decorrentes do fato de que, no estabelecimento das colônias na América, a metrópole inglesa concedia aos fundadores o poder de elaborar normas coloniais próprias, desde que não atentassem contra as normas que regiam a sua formação. Note-se, daí, a idéia de hierarquização das leis – as leis coloniais postas em patamar inferior, submetidas às normas, superiores, que autorizavam a formação da colônia – que foi o padrão imposto na constituição rígida e do qual derivou o controle de constitucionalidade das leis” (SLAIBI FILHO, 2002, p. 286). No mesmo sentido, Oswaldo Luiz Palu lembra que “Os precedentes do controle da constitucionalidade das leis existiam, mesmo na História da Inglaterra ou antes; entretanto, a airmação dessa doutrina deveu-se, sem dúvida, ao direito norte-americano. A técnica de atribuir à Constituição um valor normativo superior, imune às leis ordinárias, foi a mais importante criação, juntamente com o sistema federal, do constitucionalismo norteamericano e sua grande inovação (the higher law) frente à tradição inglesa da soberania do Parlamento. Além dos sempre citados precedentes do Bonham’s case de 1610 e de outros de mesmo teor, o fundamento de tal doutrina pareceu ter sido buscado, inclusive, em John Locke, que havia imaginado mudança importante no direito natural, abstrato, em direitos do homem que precedem o estado de natureza e que não se transmitem em pactos sociais, que existem, justamente, para sua salvaguarda. A Magistratura desse país já vinha se defrontando com esse problema desde os tempos coloniais, com as ‘Cartas’, que eram vinculatórias para a legislação das Colônias e que poderiam aprovar leis ‘razoáveis’, ou seja, que não fossem contrárias às leis da Inglaterra, e de seu Parlamento. Muitas das leis coloniais foram anuladas ou deixaram de ser aplicadas por serem contrárias às ‘Cartas’ que funcionavam como verdadeiras leis fundamentais e ‘leis do Reino’. Após a Independência em 1776, em decisão do ano de 1780 do Supremo Tribunal de New Jersey, cujo Chief-Justice era Brearley, icou assentado que a corte tinha o direito de sentenciar sobre a constitucionalidade das leis; no mesmo sentido decisão da Magistratura da Virgínia em 1782. Também em Nova York foi volume

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ra contingencial, não espelhando, como já dito, a evolução de uma doutrina consolidada no âmbito do Direito Constitucional da época. Importa dizer: o judial review se apresentou como a solução perfeita para o órgão de cúpula do Poder Judiciário dos Estados Unidos não se manifestar sobre a querela envolvendo federalistas e republicanos e, ao mesmo tempo, conquistar terreno na conlituosa relação entre os poderes constituídos. Nesse sentido, não soa absurdo dizer que, caso o pano de fundo fosse outro e não estivessem em jogo disputas políticas de tamanha envergadura, talvez fosse desnecessário declarar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica. Por isso mesmo é que as bases da criação do controle de constitucionalidade podem ser mais bem compreendidas a partir de uma abordagem histórica – ou melhor, por meio de uma verdadeira ilosoia da história do direito –, que leve em consideração as disputas políticas entre federalistas e republicanos e, principalmente, que deixe de lado, ao menos momentaneamente, o pioneirismo da decisão proferida pelo Presidente do Supremo Tribunal norte americano. 2. a técnica jurídica utilizada na criação do controle de constitucionalidade à moda americana O famoso caso Marbury vs. Madison era quase que exclusivamente uma disputa política: saber se a nomeação (porém sem a respectiva comissão) de um Juiz de Paz realizada pelo ex-Presidente dos Estados Unidos John Adams deveria ser respeitada ou não por um dos Secretários de Estado do Presidente homas Jeferson. Isto é: a pergunta que se objetivava responder era se o funcionário nomeado pelo Presidente anterior tinha direito de ser empossado pela nova Administração, entrando, assim, no exercício do cargo. Um bom resumo da controvérsia é encontrado na própria decisão, proferida pelo Chief Justice John Marshall, na Sessão de fevereiro de 1803, da Suprema Corte dos Estados Unidos da América: refutada, por inconstitucional, lei que reduziu a seis o número de jurados. Podem-se lembrar os casos de pronúncia de inconstitucionalidade de tribunais de Rhode Island em 1786 e da Carolina do Norte em 1787, entre outras. Coube, todavia, o mérito pela teoria a Marshall, no conhecido Marbury vs. Madison” (PALU, 2001, p. 113-114). volume

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Havia nestes autos os seguintes fatos: na sessão de fevereiro de 1803, William Marbury, por seu advogado, requereu ao Supremo Tribunal a notiicação de James Madison, Secretário de Estado dos Estados Unidos, para embargar a expedição de um mandamus em que o Tribunal lhe ordenaria entregar ao dito Marbury a sua comissão de juiz de paz para o Distrito de Columbia. Em conirmação desse requerimento mostravam-se certiicados de que John Adams, último Presidente dos Estados Unidos, propusera Marbury ao Senado para ser nomeado juiz de paz deste Distrito; que o Senado aprovara tal nomeação; que em conseqüência disso a comissão fora lavrada, subscrita pelo presidente e selada com o selo dos Estados Unidos; mas que o Sr. Madison não quisera entregála, a despeito de já estar assim subscrita e selada (MARSHALL, 2004, p. 96-97).

De modo a resolver o caso, o Tribunal enumerou três questões basilares: 1. Teria Marbury, o nomeado, direito à comissão por ele requerida? 2. Se ele tivesse tal direito, e considerando-se que ele tivesse sido, de fato, violado, as leis dos Estados Unidos lhe facultariam algum recurso? 3. Se tal recurso fosse existente, seria ele um mandamus a ser emanado da Suprema Corte norte americana? (MARSHALL, 2004, p. 97). No que diz respeito à primeira questão, o Supremo Tribunal se posicionou no sentido de que “a nomeação se diz feita quando a comissão está assinada pelo presidente e que a comissão se completa quando nela se estampa o selo dos Estados Unidos” (MARSHALL, 2004, p. 104). Nos termos do voto de John Marshall: É, pois, certo que o Sr. Marbury foi nomeado, visto que a sua comissão fora assinada pelo Presidente e selada pelo Secretário de Estado, e como a lei da criação do ofício deu ao funcionário o direito de conservá-la por cinco anos, independentemente do executivo, a nomeação, longe de ser revogável, empossara o funcionário em legítimos direitos que são protegidos pelas leis de seu país (MARSHALL, 2004, p. 105).

Já a segunda questão, qual seja, saber se as leis norte americanas facultavam ao requerente um recurso especíico capaz de lhe garantir a efetividade do direito violado, foi também respondida airmativamente pela Suprema Corte. De acordo com o Juiz Marshall, “Por ênfase, o governo dos Estados Unidos se 518

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chama governo de leis e não de homens. Certamente se tornaria ele indigno desta altíssima denominação, se as leis não ministrassem recursos contra a violação de legítimos direitos adquiridos” (MARSHALL, 2004, p. 106). Ainda nas palavras de Marshall: A conclusão deste raciocínio é que, até onde os chefes de departamentos são agentes políticos e conidenciais do executivo, só destinados a executar a vontade do presidente ou antes a obrar nos casos em que o executivo possui um arbítrio legal ou constitucional, nada mais certo que seus atos só podem ser investigados politicamente. Quando, porém, um dever especíico lhes é assinado por lei, e direitos individuais dependem do iel cumprimento desse dever, parece igualmente certo que a pessoa que se julga ofendida tem o direito de recorrer às leis de seu país para a sua desafronta (MARSHALL, 2004, p. 109).

Portanto, a resposta do Tribunal em relação às duas questões iniciais era airmativa: Marbury não só tinha direito a ocupar o cargo de Juiz de Paz, como também lhe era facultado recorrer ao Poder Judiciário para fazer valer tal direito. Colhe-se da decisão: É, pois, o Tribunal de opinião: 1°, que o Presidente dos Estados Unidos, em assinado o título de comissão ao Sr. Marbury, o nomeou juiz de paz para o condado de Washington, no Distrito de Columbia; que o selo dos Estados Unidos, nele impresso, é prova concludente da verdade da assinatura, e da suma perfeição da nomeação; e que a nomeação lhe conferiu legítimo direito ao ofício pelo termo de cinco anos; 2°, que Marbury, possuindo esse legítimo jus ao ofício, tem correlato direito à comissão; e que a recusa da entrega da comissão constitui lagrante violação desse direito, para cujo desagravo as leis do seu país lhe facultam recurso (MARSHALL, 2004, p. 110).

Já a terceira questão, consistente na averiguação sobre o instrumento processual adequado a ser utilizado em casos como o presente, foi examinada pela Corte em dois momentos distintos: em primeiro lugar, buscou-se estudar a natureza do alvará requerido por Marbury e, em segundo lugar, a competência da Suprema Corte norte americana para a sua eventual expedição. volume

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Quanto à natureza do alvará de mandamus, a questão foi resolvida rapidamente, com base em precedentes. Após citar a doutrina de Blackstone, o Chief Justice Marshall prosseguiu em seu voto: Lord Mansield, na causa do rei contra Baker e outros (3 Repertório de Barrow, 1266), determina com nímia clareza os casos em que cabe este alvará. “Todas as vezes, diz o emérito juiz, que houver direito a ocupar um ofício, a fazer um serviço ou a exercer uma isenção (mais especialmente se for objeto de interesse público ou fonte de proventos), e sempre que o titular for privado ou espoliado da posse desse direito, e se não deparar na lei nem um outro recurso especíico, deverá este tribunal ampará-lo com um mandamus, mediante justas razões expressas no alvará, e por virtude de imperiosas exigências de alta política, para que se mantenham a paz, o ordem e um bom governo”. Na mesma causa diz ele: “Este alvará tem cabimento todas as vezes que a lei não houver instituído algum recurso especíico, e seja mister um recurso a bem da administração da justiça e do funcionamento de um bom governo”. Em aditamento às autoridades ora especialmente citadas, foram lidas em sessão do Tribunal muitas outras que mostram quanto a prática se há conformado com as doutrinas gerais ora referidas. O alvará pretendido, se for outorgado, será dirigido a um funcionário do governo e lhe ordenará, segundo os termos de Blackstone, fazer uma coisa particular especiicada no texto e relativa a seu ofício e dever, que o Tribunal já houvera julgado, ou ao menos presumido, ser conforme o direito e a justiça. Além disto quem requer o alvará há de ter, consoante Lord Mansield, direito a exercer um ofício público e se lhe há de negar a posse desse direito. Estes requisitos concorrem evidentemente no caso em questão (MARSHALL, 2004, p. 111).

Portanto, no entendimento de Marshall, secundado pelo Tribunal, a expedição do alvará de mandamus na hipótese era cabível, restando analisar somente se competia à Suprema Corte expedi-lo5.

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“Dá-se, em suma, um caso evidente de mandamus para a entrega da comissão ou da certidão de seu registro e só nos falta examinar se o tribunal tem competência para expedi-lo” (MARSHALL, 2004, p. 115).

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Conforme o voto de Marshall, a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciários dos Estados Unidos autorizava a Suprema Corte norte americana “a expedir alvarás de mandamus nos casos justiicados pelos princípios e estilos legais, a quaisquer tribunais instituídos, ou pessoas que exerçam funções, sob a autoridade dos Estados Unidos” (MARSHALL, 2004, p. 115). E prosseguiu no voto: O Secretário de Estado, sendo pessoa que exerce funções sob a autoridade dos Estados Unidos, está precisamente dentro da letra da lei; e, se porventura carecer este Tribunal de competência para expedir alvará de mandamus àquele funcionário, isso provirá somente da circunstância de ser a lei inconstitucional e, portanto, incapaz absolutamente de conferir a atribuição e de assinar os deveres que seus termos se propõem assinar e conferir (MARSHALL, 2004, p. 115).

Para a Suprema Corte, embora a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciários dos Estados Unidos (Paramount Law) a autorizasse a expedir o mandamus solicitado por Marbury, tal prescrição legal era inválida, pois colidia com norma de hierarquia superior. É que a Constituição era muito clara ao conferir ao Supremo Tribunal as suas atribuições: Declara-se na distribuição do Poder Judiciário que o “Supremo Tribunal terá jurisdição originária em todas as causas concernentes a embaixadores, outros ministros públicos e cônsules, e nos litígios em que for parte um Estado. Em todas as outras causas o Supremo Tribunal terá jurisdição em grau de recurso” (MARSHALL, 2004, p. 116).

Assim, embora o pedido de Marbury estivesse escorado numa lei, ele não podia ser atendido, pois tal lei extrapolava o contido na Constituição. Com base nesse raciocínio, a Suprema Corte norte americana declarou a inconstitucionalidade do dispositivo que a mandava conceder o alvará requerido pelo Juiz de Paz nomeado pelo ex-Presidente John Adams. Se o Congresso icasse com liberdade de dar a este Tribunal jurisdição de segunda instância onde a Constituição dispõe que sua jurisdição será originária, e jurisdição originária onde a Constituição dispõe que será de segunda instância, a distinção de jurisdição feita na Constituição é forma vazia de substância (MARSHALL, 2004, p. 116). volume

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Conforme ponderado por Nagib Slaibi Filho, a declaração de inconstitucionalidade da chamada Paramount Law pela Suprema Corte estadunidense inaugurou um novo período dentro do cenário jurídico norte americano: No caso Marbury vs. Madison o reconhecimento da inconstitucionalidade verteu sobre a validade da lei federal de organização judiciária de 1789, que concedia à Suprema Corte competência que não lhe fora deferida pela Constituição. O que deu notoriedade a tal reconhecimento foi o sistema do stare decisis que, de um lado, tornou obrigatório o precedente para todos os órgãos judiciais e, de outro, permitiu que a mais Alta Corte criasse o precedente de carrear para si e para os demais tribunais a atribuição de expressar o signiicado da Lei Maior, através do seu poder de veriicar a compatibilidade das leis em face da Constituição, ou dos atos dos demais ramos do Poder (Legislativo e Executivo) em face da Paramount Law (SLAIBI FILHO, 2002, p. 287).

Sem dúvida, a partir da decisão proferida pela Suprema Corte norte americana no caso Marbury vs. Madison, foi inaugurado o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, mais especiicamente o controle difuso, até hoje utilizado pelos juízes e tribunais dos Estados Unidos. 3. o culto à decisão proferida pelo chief justice john marshall Não é demasiado airmar que a decisão proferida pelo Chief Justice John Marshall no caso Marbury vs. Madison é até hoje cultuada mundo afora pelos constitucionalistas. No Brasil, por exemplo, é raro encontrar uma obra de Direito Constitucional que não dedique ao menos algumas linhas ao célebre caso relatado no tópico anterior. Contudo, também é curioso perceber que muitos desses juristas, embora façam questão de enaltecer a jurisprudência da Suprema Corte norte americana, não se ocupem em esmiuçar o objeto daquele célebre processo. Alexandre de Moraes, por exemplo, quando trata dos modelos clássicos de controle de constitucionalidade em seu Direito Constitucional, menciona o famoso julgado nos seguintes termos: 522

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O direito norte-americano – em 1803, no célebre caso Marbury v. Madison, relatado pelo Chief Justice da Corte Suprema John Marshall – airmou a supremacia jurisdicional sobre todos os atos dos poderes constituídos, inclusive sobre o Congresso dos Estados Unidos da América, permitindo-se ao Poder Judiciário, mediante casos concretos postos em julgamento, interpretar a Carta Magna, adequando e compatibilizando os demais atos normativos com suas superiores normas (MORAES, 2006, p. 640).

Embora tudo quanto dito pelo constitucionalista brasileiro em sua principal obra seja verdade, não há ali comentários sobre o mérito da causa julgada e nem menção aos propósitos implícitos que motivaram a Suprema Corte de Justiça estadunidense a desencadear o que viria a icar posteriormente conhecido como controle difuso de constitucionalidade. Contudo, em obra posterior, denominada Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais, observa-se que o mesmo autor aprofundou o tema sob o ponto de vista histórico, relatando o contexto vivenciado à época pelos atores envolvidos na celeuma. Contudo, deixou de analisar em que medida tal contexto inluenciou politicamente na tomada de decisões pela Suprema Corte norte americana, como se ela estivesse escorada somente na pureza do saber jurídico teórico. Marshall, de forma hábil, tratou o caso pelo ângulo da competência constitucional da Suprema Corte Americana, analisando a incompatibilidade da Lei Judiciária de 1789, que autorizava o Tribunal a expedir mandados para remediar erros ilegais do Executivo, e a própria Constituição, que em seu artigo III, seção 2, disciplinava a competência originária da Corte. Assim, apesar de a Corte ter entendido ser ilegal a conduta do Secretário de Estado Madison, por recusar-se a expedir a comissão legalmente devida a Marbury proveniente da ação do antigo presidente Adams, com aprovação da maioria do Senado, entendeu, preliminar e prejudicialmente, que carecia de competência para emitir o mandado requerido, uma vez que as competências da Suprema Corte estariam taxativamente previstas pela Constituição, não podendo a Lei Judiciária de 1789 ampliálas (MORAES, 2013, p. 79).

O jurista mineiro Kildare Gonçalves Carvalho também exalta a decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, mas sem adentrar nos meandros das premissas utilizadas pelos seus julgadores: volume

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No sistema norte-americano, a Constituição escrita e rígida posiciona-se com superioridade diante das demais normas positivas. Assim, ou a Constituição anula os atos legislativos contrários a ela ou as leis, podendo modiicá-la, tornam incontrolável o Poder Legislativo. Cabe ao Judiciário a competência para deixar de aplicar as normas inconstitucionais. Os fundamentos do controle de constitucionalidade, por órgãos judiciários, foram lançados pelo Chief Justice John Marshall, em 1803, no julgamento do caso Marbury v. Madison. Nesse julgamento icou expresso que uma lei do Congresso, quando contrária à Constituição, carece de validade (CARVALHO, 2008, p. 349).

A exposição acerca das consequências provocadas pelo julgamento de Marbury vs. Madison pela Suprema Corte norte americana é escorreita. Porém, a omissão relativa ao pano de fundo envolvendo os confrontos entre federalistas e republicados, ou mesmo a repercussão política que uma decisão completamente favorável ou desfavorável a William Marbury poderia causar no contexto norte americano, torna incompleta a análise. Em outras palavras: do texto transcrito, o leitor ica com a equivocada impressão de que a tese defendida por Marshall e seus colegas na sessão de julgamento ocorrida em 1803 estava livre de inluências políticas, sendo produto de uma técnica jurídica acurada e independente do contexto histórico que a rodeava, o que, como será visto na sequência, não espelha a realidade. Por sua vez, o comentário de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco é o seguinte: O controle de constitucionalidade difuso ou americano assegura a qualquer órgão judicial incumbido de aplicar a lei a um caso concreto o poder-dever de afastar a sua aplicação se a considerar incompatível com a ordem constitucional. Esse modelo de controle de constitucionalidade desenvolve-se a partir da discussão encerrada na Suprema Corte americana, especialmente no caso Marbury v. Madison, de 1803. A ruptura que a judicial review americana consagra com a tradição inglesa a respeito da soberania do Parlamento vai provocar uma mudança de paradigmas. A simplicidade da forma – reconhecimento da competência para aferir a constitucionalidade ao juiz da causa – vai ser determinante para a sua adoção em diversos países do mundo (MENDES, COELHO e BRANCO, 2007, p. 955). 524

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O destaque dado pelos três autores à coragem da Suprema Corte em romper com a soberania do Parlamento dos Estados Unidos é de fundamental importância. Realmente, declarar a inconstitucionalidade de um ato produzido dentro do Poder Legislativo signiicou um passo enorme em relação à autonomia do Poder Judiciário no que diz respeito ao controle de constitucionalidade. Ocorre que, como será visto no tópico seguinte, isso tudo não foi feito com base em premissas puramente jurídicas ou em nome do “bom Direito”. O que a Suprema Corte dos Estados Unidos fez foi utilizar o controle de constitucionalidade como um trunfo político, capaz de colocá-la numa estratégica neutralidade na fervorosa disputa entre federalistas e republicanos. Mas é óbvio que a decisão – além de politicamente acurada, como se verá – foi também corajosa e pioneira6, na medida em que a Constituição dos Estados Unidos não previa expressamente nenhum método de defesa da Constituição, conforme destaca o jurista Célio Armando Janczeski: Em decisão célebre, John Marshall no caso Marbury vs. Madison decidiu pela primazia das normas constitucionais federais sobre a lei ordinária. A Constituição, segundo a decisão, prevalece sobre a lei que com ela for incompatível, sendo vedado ao poder legislativo alterar a Constituição através de lei ordinária. Ato legislativo contrário à Constituição não é lei. Foi a primeira decisão na qual icou registrado o poder da Suprema Corte em exercer o controle de constitucionalidade, repudiando leis que se manifestassem

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Não se discute o pioneirismo da decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Contudo, enquanto tese jurídica, o pensamento externado no voto do Chief Justice John Marshall não era inédito. Conforme salientado por Marianna Montebello Willeman, “a elaboração teórica subjacente à formulação de Marshall a respeito do judicial review encontrase integralmente delineada no Federalista n. 78, em artigo de autoria de Alexander Hamilton. E, em verdade, não apenas Hamilton, mas vários integrantes da chamada ‘geração fundadora’ dos Estados Unidos preocuparam-se com o tema e a ele dedicaram seu pensamento, com especial destaque para homas Jeferson e James Madison” (WILLEMAN, 2013, 133). A propósito, transcreve-se excerto do texto de Hamilton: “A independência rigorosa dos tribunais de justiça é particularmente essencial em uma Constituição limitada; quero dizer, em uma Constituição que limita a alguns respeitos a autoridade legislativa, proibindo-lhe, por exemplo, fazer passar bills of attainder e decretos de proscrição, leis retroativas ou coisas semelhantes. Restrições desta ordem não podem ser mantidas na prática, senão por meio dos tribunais de justiça, cujo dever é declarar nulos todos os atos manifestamente contrários aos termos da Constituição. Sem isso, icariam absolutamente sem efeito quaisquer reservas de direitos e privilégios particulares” (HAMILTON, 2003, p. 459)

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contrárias à Lei Maior, mesmo sem existir, de modo explícito, previsão expressa na própria Constituição a respeito deste poder (JANCZESKI, 2009, p. 68).

De todo modo, para entender o verdadeiro sentido e profundidade da decisão proferida em Marbury vs. Madison – e, ademais, as consequências políticas que ela provocou na relação entre os Poderes instituídos no Estado constitucional – talvez seja necessário recorrer inicialmente a autores que não sejam do Direito; autores que, deixando um pouco de lado a habilidade jurídica de John Marshall, voltem suas análises para o lado histórico da questão; principalmente as disputas políticas entre federalistas e republicanos, representados, no caso, pelo ex-Presidente John Adams e pelo então Presidente homas Jeferson. 4. o contexto histórico e a política por tr ás de uma das mais famosas decisões judiciais de todos os tempos Antes de ser nomeado Chief Justice, John Marshall participou ativamente da vida política norte americana, que passava, no inal do século XVIII, por um período bastante controvertido. Em meio ao conlito entre federalistas e republicanos – que apoiavam respectivamente Inglaterra e França na guerra entre esses dois países – o Presidente John Adams decidiu encaminhar uma missão diplomática à França. De acordo com Peter Irons, o Presidente Adams “escolheu dois antigos delegados antigos da Convenção Constitucional de 1787, Elbridge Gerry e Charles Cotesworth Pinckney, além de um advogado mais jovem da Virginia, John Marshall” (IRONS, 2006, p. 98).7 Conforme relata Irons, no seu retorno aos Estados Unidos Marshall recebeu algumas honrarias: Os diplomatas neóitos chegaram a Paris em outubro de 1797, com a expectativa de se reunirem com o chanceler estrangeiro Talleyrand. Mas o imperioso Talleyrand se recusou a encontrar

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Tradução livre de: “chose two former delegates to the Constitutional Convention of 1787, Elbridge Gerry and Charles Cotesworth Pinckney, and a younger Virginia lawyer, John Marshall”.

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os norte-americanos por vários meses, inalmente enviando três homens – que jamais revelaram seus nomes – para o hotel deles depois de escurecer. Os misteriosos homens franceses demandaram um pedido de desculpas dos Estados Unidos pelos delitos passados (não especiicados), um empréstimo de $10 milhões para a França, e $1 milhão de suborno para Talleyrand e seus amigos. Depois de meses discutindo com os ainda-anônimos homens franceses, a delegação norte-americana, indignada, recusou-se a aceitar essas condições para o acordo. Marshall informou todo o ocorrido para Adams em março de 1798, e o presidente prontamente enviou a carta dele ao Congresso, rotulando os extorsionários como “Messr. X, Y, e Z”. Quando Marshall retornou para a Philadelphia (ainda capital da nação norte-americana) de Paris, ele teve uma recepção de herói e encontrou o país inlamado sobre o que todos estavam chamando de “o caso XYZ” (IRONS, 2006, p. 98) 8.

Contudo, a sua posterior nomeação à Suprema Corte norte americana não foi das mais tranquilas. Antes de indicar Marshall, o Presidente Adams se defrontou com algumas dúvidas, conforme relata Irons: Marshall não chegou à Suprema Corte numa onda de aclamações, como a sua posterior reputação poderia sugerir. Ele não estava, de fato, entre os candidatos que Adams considerou primeiramente para o cargo. Adams se voltou para Marshall, que então servia como seu secretário de estado, em grande medida para escapar do fogo cruzado das batalhas políticas e pessoais dentro das ileiras Federalistas. A renúncia do Chief Justice Oliver Ellsworth em outubro de 1800, pouco antes de Adams perder a presidência para Jeferson, ofereceu a chance de colocar o Tribunal sob a tutela federalista nos anos seguintes. Mas os mais proeminentes

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Tradução livre de: “he neophyte diplomats arrived in Paris in October 1797, expecting to meet with Foreign Minister Talleyrand. But the imperious Talleyrand refused to meet with the Americans for several months, inally sending three men – who would not reveal their names – to their hotel after dark. he mysterious Frenchmen demanded an American apology for past (and unspeciied) misdeeds, a $10 million loan to France, and a $1 million bribe to Talleyrand and his friends. After months of haggling with the still-anonymous Frenchmen, the American delegation indignantly refused to accept these conditions for a treaty. Marshall reported these events to Adams in March 1798, and the president promptly sent his letter to Congress, labeling Talleyrand’s extortioners as ‘Messr. X, Y, and Z’. When Marshall returned to Philadelphia (still the nation’s capital) from Paris, he received a hero’s welcome and found the country inlamed over what everyone called the ‘XYZ afair’”.

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candidatos para o cargo foram alijados pela idade, enfermidade, ou feridas políticas. O primeiro problema enfrentado por Adams resultou das maquinações de Alexander Hamilton e seus aliados. As objeções de Hamilton às políticas do presidente, tanto a exterior quanto a doméstica, levaram ele a publicar um panleto que circulou amplamente, “Sobre a Conduta Pública e o Caráter de John Adams”, arguindo que Adams não servia para ser presidente. Adams era notoriamente thin-skinned, e se vingou demitindo três membros do gabinete que icaram ao lado de Hamilton (IRONS, 2006, p. 101).9

Mas o Chief Justice Marshall sempre foi muito competente e logo conquistou a simpatia e, principalmente, a coniança do Presidente Adams. Tanto que, no último mês da administração de Adams, Marshall acumulou os cargos de Juiz da Suprema Corte e de Secretário de Estado: Na sequência de seu retorno triunfante da França após o caso XYZ, Marshall voltou sua visão para as eleições nacionais e ganhou a eleição para o Congresso em 1798. O presidente Adams o escolheu como secretário de estado em 1800, e durante o último mês da administração de Adams – depois de sua conirmação como Chief Justice – Marshall serviu em ambos os cargos até homas Jeferson se tornar presidente em 4 de março de 1801 (IRONS, 2006, p. 103).10

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Tradução livre de: “Marshall did not ride to the Supreme Court on a wave of acclamation, as his later reputation might suggest. He was not, in fact, among the candidates that Adams irst considered for the post. Adams turned to Marshall, then serving as his secretary of state, largely to escape the crossire of political and personal battles within the Federalist ranks. he resignation of Chief Justice Oliver Ellsworth in October 1800, just before Adams lost his oice to Jeferson, ofered a chance to place the Court under Federalist tutelage for years to come. But the most prominent candidates for the post were disabled by age, inirmity, or political wounds. he irst problem Adams confronted stemmed from the machinations of Alexander Hamilton and his allies. Hamilton’s objections to the president’s policies, both foreign and domestic, led him to publish a widely circulated pamphlet, ‘Concerning the Public Conduct and Character of John Adams’, arguing that Adams was unit to be president. Adams was notoriously thin-skinned, and took his revenge by dismissing three cabinet members who sided with Hamilton”. 10 Tradução livre de: “Following his triunphant return from France after the XYZ afair, Marshall turned his sights to national Oice and won ellection to Congress in 1798. President Adams chose him as secretary of state in 1800, and during the last month of the Adams administration – after his conirmation as Chief Justice – Marshall served in both posts until homas Jeferson became president on March 4, 1801”.

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Na condição de Secretário de Estado, o Chief Justice John Marshall viu os federalistas criarem o Judiciary Act, assinado pelo Presidente John Adams em 1801. Era uma lei que alterava a composição da Suprema Corte dos Estados Unidos e criava alguns novos cargos de juízes. A previsão mais notável da lei era a redução de seis para cinco membros da Suprema Corte, após a próxima abertura de vaga. Muitas pessoas esperavam que o idoso e frágil Juiz Cushing se aposentasse logo, e os Federalistas queriam impedir Jeferson de escolher um Republicano para substituí-lo. Cushing, embora visivelmente senil, dependia do seu salário de juiz e manquitolou pela Corte até 1810. O Judiciary Act também criou vinte e seis novos postos no distrito federal e nos tribunais de recursos, para aliviar a Suprema Corte do detestável fardo proveniente de demandas menores. Com a mudança da capital para o Distrito de Columbia, o Congresso estabeleceu quarenta e cinco postos de “juiz de paz”, cargo judicial de menor estatura que fornecia um pequeno salário e taxas para analisar documentos e cuidar de pequenas causas. Washington ainda era uma cidade pequena em 1801 e quase não precisava de quarenta e cinco novos juízes. Mas, conforme um documento Republicano anotou com precisão, o Congresso havia passado “uma lei concedendo lugares e pensões para os correligionários do partido”. O Presidente Adams e o Congresso passaram considerável tempo escolhendo e conirmado os novos juízes do distrito e dos tribunais de recursos nas semanas anteriores à assunção de Jeferson à presidência. Diante de um encerramento de prazo à meia-noite do dia 3 de março, o Congresso passou a noite reunido e correu atrás da validação do Secretário de Estado Marshall, que assinou os documentos e empilhou-os em sua mesa (IRONS, 2006, p. 104).11

11 Tradução livre de: “he law’s most notable provision would reduce the Supreme Court from six to ive members after the next vacancy. Many people expected the elderly and frail Justice Cushing to retire soon, and the Federalists wanted to prevent Jeferson from choosing a Republican to replace him. Cushing, although noticeably senile, depended on his judicial salary and hobbled to the Court until 1810. he Judiciary Act also created twenty-six new posts in the federal district and circuit courts, to relieve the Supreme Court of the detested burden of circuit-riding. With the nation’s capital moved to the District of Columbia, Congress established forty-ive positions as ‘justice of the peace’, a minor judicial oice that provided a small salary and fees for notarizing papers and handling small claims. Washington volume

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O curioso é justamente que, no cargo de Secretário de Estado, John Marshall estava responsável por dar aos juízes de paz nomeados pelo Presidente Adams as suas comissões. Entretanto, por conta do tempo exíguo, não conseguiu cumprir a contento as determinações de seu superior hierárquico: Na correria de última hora, no entanto, Marshall deixou de entregar as comissões para os “juízes da meia noite”, como os republicanos ironicamente os chamavam. Uma narrativa – provavelmente apócrifa – retratou o novo procurador-geral, Levi Lincoln, adentrando dramaticamente no escritório de Marshall com o relógio de Jeferson na mão. Apontando para o relógio, Lincoln informou Marshall da chegada da meia noite e o conduziu à saída do escritório. Humilhado por essa ordem, Marshall abandonou sua caneta e partiu. Embora não se saiba ao certo se esse fato realmente ocorreu, sabe-se que Marshall assinou as comissões judiciais até, pelo menos, nove horas daquela noite. Pouco depois de Jeferson irmar seu juramento como presidente no dia 4 de março, 1801, James Madison assumiu o cargo de Marshall como secretário de estado e sentou-se atrás da mesa em que descansavam as comissões não entregues (IRONS, 2006, p. 104).12

Foi por conta do “esquecimento” de Marshall que Marbury ingressou na Suprema Corte, em busca de um mandamus que garantisse a sua assunção ao cargo que lhe era de direito. Ou seja, o Chief Justice que julgaria o caso Marbury

was still a small city in 1801 and hardly needed forty-ive new judges. But as one Republican paper accurately noted, Congress had passed ‘a bill providing sinecure places and pensions for thoroughgoing Federal partisans’. President Adams and Congress spent considerable time picking and conirming the new district and circuit judges in the weeks before Jeferson took oice. Faced with a deadline of midnight on March 3, Congress met into the night and rushed through conirmations to Secretary of State Marshall, who signed the parchment documents and stacked them on his desk”. 12 Tradução livre de: “In the last-minute rush, however, Marshall neglected to have the commissions delivered to the ‘midnight judges’, as Republicans derisively called them. One account – probably apocryphal – had the incoming attorney general, Levi Lincoln, dramatically striding into Marshall’s oice with Jeferson’s watch in his hand. Pointing to the timepiece, Lincoln informed Marshall that midnight had arrived and directed him to leave the oice. Humiliated by this order, Marshall laid down his pen and departed. Whether or not this actually happened, Marshall did keep signing judicial commissions until at least nine o’clock that night. Shortly after Jeferson took his oath as president on March 4, 1801, James Madison took Marshall’s oice as secretary of state and sat behind the desk on which the undelivered commissions rested”.

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vs. Madison era o autor indireto da controvérsia, pois se ele tivesse cumprido os prazos estabelecidos e entregado a comissão aos juízes nomeados, Marbury não teria recorrido ao Poder Judiciário. Esse foi o curioso início do famoso caso Marbury v. Madison, que começou com o descuido de Marshall, em 1801, como secretário de estado e culminou em 1803 com sua contundente airmação no controle de constitucionalidade como Chief Justice. Os dois anos que separaram os dois eventos foram marcados por insistentes esforços republicanos para enfraquecer os tribunais federais, que permaneceram como redutos Federalistas. “Os Federalistas se iniltraram no Judiciário como uma fortaleza”, reclamou Jeferson depois tomar posse na presidência, “e todos os trabalhos com o timbre do republicanismo estão sendo abatidos e apagados”. Ele fez Madison entregar apenas vinte e cinco das quarenta e duas comissões deixadas por Marshall em sua mesa, talvez para cortar despesas salariais, até mesmo a pequena quantidade destinada aos postos menores. Dos dezessete juízes menosprezados, apenas quatro – incluindo William Marbury – levaram suas reivindicações ao tribunal, entrando com um processo na Suprema Corte, pleiteando um “writ of mandamus” contra o Secretário Madison (IRONS, 2006, p. 105).13

É claro que a decisão proferida pela Suprema Corte norte americana foi, acima de tudo, política. Aliás, a própria participação de Marshall no processo é questionável, na medida em que ele tinha interesse na causa – senão diretamente como autor ou réu, ao menos como “autor da omissão” que deu origem ao processo que então devia julgar. Nessa linha de raciocínio, Ronaldo Poletti pondera que o interesse pessoal de Marshall na causa posta em julgamento recomendaria, se não na época ao menos hoje em dia, a sua declaração de impedimento: 13 Tradução livre de: “his was the odd beginning of the famous case of Marbury v. Madison, which started with Marshall’s oversight in 1801 as secretary of state and culminated in 1803 with his forceful assertion of judicial review as Chief Justice. he two years in between were marked by Republican eforts to hobble the federal courts that remained as Federalist redoubts. ‘he Federalists have retired into the judiciary as a stronghold’, Jeferson complained after taking oice, ‘and from that battery all the works if republicanism are to be beaten down and erased’. He directed Madison to deliver only twenty-ive of the forty-two commissions Marshall left on his desk, perhaps to cut expenses for judicial salaries, even the small amount for these minor posts. Of the seventeen slighted judges, only four – including William Marbury – took their claims to court, iling suit in the Supreme Court and asking for a ‘writ of mandamus’ against Secretary Madison”. volume

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A situação política que emoldura o caso e a lendária decisão, pela qual foram estabelecidos, concretamente, os princípios do controle da constitucionalidade das leis, foi deveras singular, e, talvez não permitisse, ocorrendo hoje, o mesmo desdobramento ensejado pelo aresto célebre do Marshall. A rigor, ele tinha interesse pessoal direto no caso e, hoje em dia, deveria dar-se por impedido, sob pena de argüir-se a sua suspeição (POLETTI, 2001, p. 31).

Mais do que simples interesse pessoal na causa – dada a ligação política de Marshall com os federalistas – o pano de fundo de Marbury vs. Madison revela uma completa confusão entre as partes do processo e o mentor intelectual da decisão proferida pela Suprema Corte. Vale dizer: o controle jurisdicional de constitucionalidade foi criado pelo Magistrado que, na condição de Secretário de Estado, deu azo à celeuma jurídica que posteriormente se viu na obrigação de julgar. 5. a estr atégica declar ação de inconstitucionalidade proferida pela suprema corte dos estados unidos como subterfúgio à resolução do caso marbury vs. madison Como já referido, a decisão proferida pela Suprema Corte norte americana em Marbury vs. Madison foi inovadora e juridicamente perfeita. Contudo, quando se conhece a história por trás do julgamento, torna-se possível a compreensão de que a estratégica declaração de inconstitucionalidade ali empreendida foi utilizada não como técnica jurídica, mas, sim, como subterfúgio à resolução da quaestio. Em outras palavras: embora o Chief Justice Marshall, sendo ele próprio um federalista, tivesse interesse em ver cumprida a ordem presidencial de nomeação de Marbury, sob o ponto de vista da Suprema Corte dos Estados Unidos não havia interesse político em fazê-lo às custas de seu enfraquecimento enquanto órgão de cúpula do Poder Judiciário. É que, tivesse a Corte decidido a favor ou contra Marbury, isso desencadearia uma série de consequências políticas14, que certamente não seriam interessantes para o Poder Judiciário estadunidense.

14 A título de exemplo, é possível conjecturar que, se a Suprema Corte norte americana tivesse pura e simplesmente deferido o pedido de Marbury, tal decisão judicial provavelmente

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Assim é que declarar a inconstitucionalidade da lei que mandava a Suprema Corte expedir o writ of mandamus requerido por William Marbury foi um golpe de mestre por duas razões: em primeiro lugar, por livrar o Tribunal de decidir a favor dos federalistas ou dos republicanos; e, em segundo lugar, por fortalecer politicamente o Poder Judiciário, ao menos discursivamente, já que ixou a ideia de que a palavra inal sobre o sentido da própria Constituição caiu nas mãos Suprema Corte. Nesse sentido, o comentário de Peter Irons é preciso: A opinião de Marshall em Marbury é mais bem compreendida não como uma opinião legal, mas como um ato político. Na condição de Federalista comprometido, ele sabia que sua visão nacionalista somente poderia sobreviver ao regime “Jacobino” de Jeferson se a Suprema Corte utilizasse o poder inerente ao controle de constitucionalidade para manter o presidente e o congresso em xeque. Marshall ganhou o seu primeiro duelo contra Jeferson no caso Marbury. Não houve, de fato, outra troca de tiros em público antes da morte de Marshall em 1835 (IRONS, 2006, p. 107).15

O ácido comentário do jurista baiano Dirley da Cunha Júnior talvez resuma, também de forma bastante precisa, toda a política por trás de uma das mais famosas decisões judiciais de todos os tempos: [...] lançando os olhos para os aspectos fáticos que engendraram a famosa decisão, vamos perceber que tudo não passou de um indecente caso de politicagem. Isso porque, Marshall, além de Chief Justice, era Secretário de Estado do então Presidente Federalista John Adams, e nessa condição auxiliou o Presidente

seria descumprida pelo Poder Executivo então liderado pelo Presidente homas Jeferson. Além disso, outra consequência plausível de tal decisão judicial seria o questionamento da própria participação do Chief Justice Marshall no processo. É que, sendo ele, como visto, parte interessada na demanda, tendo inclusive dado causa à controvérsia, o seu envolvimento certamente enfraqueceria o posicionamento adotado pelo órgão julgador. 15 Tradução livre de: “Marshall’s opinion in Marbury is best understood not as a legal opinion but as a political act. As a committed Federalist, he knew that his nationalist views could only survive Jeferson’s ‘Jacobin’ regime if the Supreme Court employed the power of judicial review to keep the president and Congress in check. Marshall won his irst duel with Jeferson in the Marbury case. here were, in fact, no more shots ired in public before Marshall died in 1835”. volume

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dos EUA, em im de mandato, a realizar inúmeras nomeações em favor dos correligionários (os conhecidos “testamentos políticos”), que foram feitas no último dia de seu governo. Todavia, Marshall, substituído por Madison na Secretaria de Estado, não teve tempo de fazer chegar às mãos de todos os interessados os atos de nomeação, razão pela qual estes foram sustados por ordem do novo Presidente dos Estados Unidos, o então Republicano homas Jeferson. Entre os prejudicados pela sustação, igurava William Marbury, nomeado juiz de paz no Condado de Washington, Distrito de Columbia, que moveu uma ação judicial (writ of mandamus) junto à Corte Suprema objetivando obrigar Madison a empossá-lo. Nesse caso – conhecido por Marbury v. Madison – o Justice Marshall não só tomou parte no julgamento, mas também liderou a opinião de seus pares, o que caracterizou uma situação sui generis, dado o seu manifesto interesse pessoal e direto no caso em apreço. Acusado pela opinião pública e pela ameaça de impeachment dos juízes da Suprema Corte e do não cumprimento da ordem, caso deferida, Marshall valeu-se de uma habilidosa estratégia. Embora reconhecendo o direito de Marbury, denegou a ordem requestada em razão de uma preliminar de incompetência da Corte. Para o reconhecimento dessa preliminar, Marshall desenvolveu sua doutrina da judicial review of legislation, reconhecendo a inconstitucionalidade de dispositivo de lei que atribuía competência à Suprema Corte para julgar originariamente ações daquela espécie (a Corte declarou a inconstitucionalidade do artigo 13, da lei de 1789, no qual se basearam os recorrentes). Considerou-se que a competência da Supreme Court encontravase taxativamente enumerada na Constituição, sem qualquer possibilidade de ampliação legal (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 266-267).

Marshall sabia que uma decisão favorável a qualquer das partes colocaria a Suprema Corte em xeque, uma vez que chamaria a atenção para a disputa política entre federalistas e republicanos, relegando a fundamentação jurídica constante no decisum a segundo plano. Reconhecendo, então, a necessidade de deixar a sua condição de federalista de lado, e percebendo a oportunidade de empoderar o Judiciário em relação aos outros dois poderes estatais, o Tribunal deu a cartada que lhe assegurou credibilidade. A conclusão de Oswaldo Palu é irretocável: 534

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Enfrentava-se uma situação diicílima. Indeferir simplesmente o pedido seria, conforme observou Crosskey, capitulação demasiadamente visível; airmar apenas que a lei judiciária somente autorizava o mandamus pela Corte Suprema em grau de apelação era resultado insatisfatório. A Corte, de modo hábil, procurou dissimular o recuo inevitável, com um ato de airmação contra o partido no poder. Invertendo a ordem do exame das questões preliminares, decidiu que Madison, na realidade, agira ilegalmente ao negar a posse a Marbury, e de acordo com os princípios aplicáveis da common law, havia remédio para tal caso, o mandamus, pelo qual Madison poderia ser compelido a dar posse a Marbury. Não cabia, porém, o writ, porque pedido diretamente à Corte Suprema, cuja competência originária era estritamente deinida na Constituição e não poderia ter sido dilatada pela Lei Judiciária de 1789. Era, assim, inconstitucional e nulo o artigo 13 dessa lei, que atribuíra competência originária à Suprema Corte para expedir ordens de mandamus (Lêda Boechat Rodrigues, A corte suprema e o direito constitucional americano, p. 21). Evitou a Suprema Corte o confronto com o Executivo, e ao mesmo tempo airmou a possibilidade de o Poder Judiciário anular leis votadas pelo Congresso (PALU, 2001, p. 115).

Em meio ao fogo cruzado, a Suprema Corte norte americana – e o Poder Judiciário como um todo – saiu fortalecida. Embora a celeuma envolvendo Marbury e Madison fosse, acima de tudo, mais uma movimentação dentro da disputa política entre federalistas e republicanos, Marshall conseguiu deslocar o Tribunal por ele presidido para o papel de protagonista no embate, pois conciliou o direito de Marbury com a manutenção da decisão de Madison, fazendo prevalecer, no im das contas, a superioridade do Poder Judiciário enquanto guardião da Constituição. Dimitri Dimoulis e Soraya Lunardi identiicaram as duas vantagens políticas na decisão proferida pela Suprema Corte norte americana no caso Marbury vs. Madison: Primeiro, a Suprema Corte evitava o conlito com o governo federal, aceitando a decisão de não entregar o diploma de investidura a Marbury. Segundo, a Suprema Corte airmava seu poder perante o Legislativo e o Executivo, formulando a doutrina do controle de constitucionalidade de leis federais. volume

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Dessa maneira, a Suprema Corte, sem entrar em conlito imediato com os outros poderes e sem sofrer uma derrota, criou uma poderosa “arma” para futuros conlitos com os demais poderes. Como observou Beard em 1912, havia caminhos para evitar a declaração de inconstitucionalidade da lei, mas “a chance de irmar a doutrina era muito boa para ser desperdiçada – e Marshall era suicientemente astuto para aproveitar” (DIMOULIS e LUNARDI, 2013, p. 41).

Como se observa, o grande mérito do Chief Justice Marshall está no fato de, ao se encontrar de mãos atadas, ter se utilizado de um pensamento jurídico reinado, capaz de encontrar uma solução jurídica para resolver a questão política posta no processo. Tivesse ele decidido a favor ou contra Marbury, aí sim entraria na história como um politiqueiro, enfraquecendo, sobremaneira, o Poder Judiciário dos Estados Unidos no contexto da independência e harmonia entre os poderes. O ponto que não pode ser ignorado é o seguinte: além de oportuno sob o ponto de vista da política partidária então vigente nos Estados Unidos da América, o controle jurisdicional de constitucionalidade já nasce (propositalmente) como um fator de desequilíbrio entre os poderes; e a consolidação do Judiciário enquanto guardião da Constituição, mediante a utilização de argumentos puramente jurídicos, o colocou, já naquela primeira oportunidade, em posição privilegiada em relação aos Poderes Executivo e Legislativo. Eis as conclusões de Dimoulis e Lunardi: A observação da estratégia de Marshall permite formular duas conclusões. a) Politicidade do controle de constitucionalidade. A decisão da Suprema Corte foi resultado de um cálculo político e não da mera aplicação de normas vigentes. Essa é uma característica que sempre se encontra nas importantes decisões relacionadas ao controle de constitucionalidade. Considerações políticas, relacionadas às consequências da decisão, sempre inluenciam os juízes. [...] b) Natureza polêmica das decisões sobre a constitucionalidade. Marshall airma repetidamente que sua decisão se fundamenta de maneira clara e evidente. Mas isso é um artifício retórico, muito comum nas peças jurídicas. Na verdade, a decisão se baseia em 536

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opções interpretativas discutíveis, como mostrou o debate posterior, no qual a decisão Marbury vs. Madison enfrentou fortes críticas que invocam o mesmo texto constitucional para chegar a conclusões opostos. Isso conirma a regra que as questões constitucionais são sempre controvertidas (DIMOULIS e LUNARDI, 2013, p. 42).

Fica claro, então, que o controle jurisdicional de constitucionalidade de normas não foi implementado propriamente para garantir a chamada supremacia da Constituição, mas, sim, para projetar, já naquele momento histórico, a supremacia do Poder Judiciário em relação aos outros dois poderes instituídos. Não se está aqui a defender que toda a teoria jurídica desenvolvida para subsidiar o controle de constitucionalidade, antes e depois da decisão proferida no caso Marbury vs. Madison, seja inválida. Trata-se, na verdade, de perceber que, sem as manobras políticas perpetradas no caso, que recomendavam a não resolução da celeuma entre federalistas e republicanos, o controle de constitucionalidade sequer precisaria existir. Em outras palavras: foi percebendo a possibilidade de decidir a celeuma jurídica envolvendo Marbury e Madison sem adentrar no mérito das brigas políticas entre federalistas e republicanos, e ainda vislumbrando a oportunidade deinitiva de consolidar a Suprema Corte norte americana como protagonista no cenário político de tensão entre os três poderes instituídos, que o Chief Justice John Marshall desenvolveu a reinada teoria acerca do controle jurisdicional de constitucionalidade. Sem esse cenário político por trás de Marbury vs. Madison, é possível que a causa tivesse sido resolvida de outra forma. 6. conclusões Quando John Marshall sentou na cadeira destinada ao Chief Justice da Suprema Corte dos Estados Unidos talvez ele não esperasse que quem estivesse em julgamento no célebre caso Marbury vs. Madison fosse ele próprio – Secretário de Estado omisso que deixou de dar a respectiva comissão aos Juízes de Paz nomeados pelo então Presidente federalista John Adams. Por outro lado, o que talvez todos os outros expectadores da causa não esperassem fosse justamente a decisão por ele proferida. Federalistas, na maioria seus convivas, pediam um julgamento favorável a Marbury; republicanos, por volume

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outro lado, sem nenhuma esperança de vitória, tinham tanta certeza da derrota que, sequer, mandaram um advogado para representar Madison (IRONS, 2006, p. 105). Mas, pressionado pela opinião pública e receoso em relação ao futuro da Suprema Corte, Marshall estratégica e convenientemente criou o controle de constitucionalidade das normas, sem desagradar a federalistas e republicanos, mantendo-se politicamente estável no seu honorável cargo de Chief Justice. Isso, é lógico, não muda o fato de a sua decisão ter sido politiqueira e, principalmente, de que a decisão mais cara ao Direito Constitucional moderno seja, realmente, um arranjo político tendente a colocar panos quentes sobre uma controvérsia histórica entre federalistas e republicanos. Como consequência, foi criado o controle jurisdicional de constitucionalidade, o chamado judicial review, que colocou o Poder Judiciário em posição de destaque na ininterrupta disputa de poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário. É curioso pensar que a principal preocupação do Chief Justice Marshall fosse encontrar uma saída jurídica que não prejudicasse a autonomia e independência da Suprema Corte norte americana, mas que, no inal das contas, a solução por ele encontrada – a criação do controle de constitucionalidade – acabou por colocar o Poder Judiciário em posição hegemônica. Evidente que essa hegemonia cobra seus custos: já na época (e ainda hoje) todo controle de constitucionalidade realizado pelo Poder Judiciário tem por trás um carga política em relação à qual o Direito posto nem sempre dá conta de administrar. Daí a propagação da manipulação de questões importantes – que em regra deveriam ser decididas no Parlamento – por meio de discursos jurídicos vazios, da invenção de princípios sem qualquer conteúdo autônomo16, da ponderação de valores supostamente conlitantes por meio da “fórmula

16 Conforme adverte Carlos Ari Sundfeld, “Vive-se hoje um ambiente de ‘geleia geral’ no direito público brasileiro, em que princípios vagos podem justiicar qualquer decisão [...]. O proissional do Direito, ao construir soluções para os casos, tem um dever analítico. Não bastam boas intenções, não basta intuição, não basta invocar e elogiar princípios; é preciso respeitar o espaço de cada instituição, comparar normas e opções, estudar causas e consequências, ponderar as vantagens e desvantagens. Do contrário viveremos no mundo da arbitrariedade, não do Direito” (SUNDFELD, 2012, p. 60-61).

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mágica” da proporcionalidade17, etc. Tudo isso em prol da manutenção do poder conquistado de forma atravessada no precedente tratado neste breve estudo. 7. referências CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 14. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2008. DIMOULIS, Dimitri e LUNARDI, Soraya. Curso de Processo Constitucional: Controle de constitucionalidade e remédios constitucionais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013. HAMILTON, Alexander. O Federalista. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. IRONS, Peter. A People’s History of the Supreme Court. London: Penguin Books, 2006. JANCZESKI, Célio Armando. O Controle de Constitucionalidade das Leis Municipais. Florianópolis: Conceito, 2009. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. ______. Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

17 Ao abordar a obra de Robert Alexy, André Karam Trindade pondera: “Observa-se, em suma, que os princípios tornaram-se uma espécie de máscara da subjetividade, na medida em que passaram a ser aplicados como enunciados performativos que se encontram à disposição dos intérpretes, permitindo que os juízes, ao inal, decidam como quiserem. Neste contexto, os princípios jurídicos, especialmente a proporcionalidade, exercem a função de verdadeiros curingas, servindo de muleta para imposição de todo e qualquer argumento” (TRINDADE, 2013). volume

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PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade: conceitos, sistemas e freios. 2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2001. POLETTI, Ronaldo. Controle da Constitucionalidade das Leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. SLAIBI FILHO, Nagib. Breve História do Controle de Constitucionalidade. Revista da EMERJ. V. 5, nº 20, p. 284-319, 2002. MARSHALL, John. Decisões constitucionais de Marshall. In.: SOBRINHO, Osório Silva Barbosa. Comentários à Lei n. 9.868/99: Processo do controle concentrado de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2004. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: Malheiros, 2012. TRINDADE, André Karam. Robert Alexy e a vulgata da ponderação de princípios. Consultor Jurídico, São Paulo, nov. 2013. Disponível em: . Acesso em 16 de jun. 2014. WILLEMAN, Marianna Montebello. O judicial review na perspectiva da geração fundadora e a airmação da supremacia judicial nos Estados Unidos. Interesse Público. V. 82, p. 133-152, 2013.

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