Pôr um preço na natureza para a preservar? Contradições, dilemas e conflitos em torno da extração de petróleo no Equador

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Descrição do Produto

LAURA CENTEMERI JOSÉ CASTRO CALDAS (Coordenadores)

Valores em conflito Megaprojetos, ambiente e território 2016

VALORES EM CONFLITO

MEGAPROJETOS, AMBIENTE E TERRITÓRIO coordenadores

Laura Centemeri, José Castro Caldas revisor

Victor Ferreira editor EDIÇÕES ALMEDINA, S.A. Rua Fernandes Tomás, nºs 76, 78 e 80 3000-167 Coimbra Tel.: 239 851 904 · Fax: 239 851 901 www.almedina.net · [email protected] design de capa FBA. paginação EDIÇÕES ALMEDINA, S.A. impressão e acabamento Outubro, 2016 depósito legal

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biblioteca nacional de portugal – catalogação na publicação VIOLÊNCIA E ARMAS DE FOGO EM PORTUGAL Violência e armas de fogo em Portugal / orgs. Rita Santos, Tatiana Moura e José Manuel Pureza. – (CES) ISBN 978-972-40-6581-6 I – PUREZA, José Manuel, 1958CDU 316

ÍNDICE

AGRADECIMENTOS

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Introdução – MEGAPROJETOS, INCOMENSURABILIDADE E DECISÃO PÚBLICA Laura Centemeri e José Castro Caldas

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Capítulo 1 – A INCOMENSURABILIDADE DOS VALORES E A DECISÃO PÚBLICA Laura Centemeri e José Castro Caldas

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Capítulo 2 – O PROBLEMA DOS CUSTOS SOCIAIS Vítor Neves

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Capítulo 3 – PÔR UM PREÇO NA NATUREZA PARA A PRESERVAR? CONTRADIÇÕES, DILEMAS E CONFLITOS EM TORNO DA EXTRAÇÃO DE PETRÓLEO NO EQUADOR Ricardo Coelho

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Capítulo 4 – VALORES EM COLISÃO E DECISÃO PÚBLICA: O CASO DA BARRAGEM DE FOZ TUA Ana Costa, Maria de Fátima Ferreiro, Ricardo Coelho e Vasco Gonçalves

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Capítulo 5 – QUARENTA ANOS DE CONFLITOS EM TORNO DA EXPANSÃO DO AEROPORTO DE MALPENSA Laura Centemeri

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Capítulo 6 – UMA CONTROVÉRSIA INACABADA: UM AEROPORTO SEM PAÍS, O NOVO AEROPORTO DE LISBOA Ana Raquel Matos, Tiago Santos Pereira e José Reis 189

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Notas Conclusivas – A INCOMENSURABILIDADE COMO OPORTUNIDADE Laura Centemeri e José Castro Caldas

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OS AUTORES

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CAPÍTULO 3 PÔR UM PREÇO NA NATUREZA PARA A PRESERVAR? CONTRADIÇÕES, DILEMAS E CONFLITOS EM TORNO DA EXTRAÇÃO DE PETRÓLEO NO EQUADOR RICARDO COELHO

Hoje em dia as pessoas sabem o preço de tudo e o valor de nada. Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray As melhores coisas na vida não têm preço. Anúncio da Mastercard

Introdução A história do Equador está ligada à história do petróleo desde que, em 1972, este país se tornou exportador de petróleo. Já nos anos 1940, a Shell Oil tinha realizado operações de prospeção na Amazónia, mas a petrolífera abandonou o Equador em 1950, alegando que o petróleo encontrado era demasiado denso para que a sua extração fosse rentável. A concessão dada à Texaco-Gulf em 1964 abriu de novo a Amazónia à prospeção e exploração petrolífera. Depois do golpe militar de 1972, que levou à nacionalização deste recurso e à criação da Empresa Estatal Petrolifera Equatoriana (hoje Petroequador), o país passou a assumir um maior controlo sobre as operações de extração que se tornaram numa fonte de receita cada vez mais importante (Villaverde et al., 2005). A crise petrolífera de 1973 resultou num aumento exponencial do preço do crude (de 2,5 dólares por barril em 1972 para 13,7 dólares em 1974), o que permitiu um crescimento da economia do Equador de 8% em média até 1981, ano em que uma queda dos

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preços precipitou uma crise da dívida externa. O Equador passou então por uma sucessão de reformas liberalizadoras e de investimentos em infraestruturas de apoio à exploração de petróleo, como oleodutos, e a sua economia tornou-se cada vez mais dependente do petróleo. Apesar do crescimento económico propiciado pela exportação de petróleo, a taxa de pobreza não parou de crescer, superando os 70% no final do século XX (Acosta, 2000). Além disso, a população residente em torno dos blocos petrolíferos teve de suportar a degradação ambiental e a invasão de territórios ancestrais de povos indígenas (Kimerling, 1993). A dependência da exploração de petróleo envolve evidentes conflitos de valores. Por um lado, a indústria extrativa pode ser vista como uma fonte de receitas necessária para o Equador reduzir os níveis de pobreza e desenvolver-se, muito embora a sua história siga a de tantos outros países que sofrem da chamada “maldição dos recursos” 1 (Auty, 1993). Por outro, a extração de petróleo tem um custo ambiental pesado, que não se limita aos impactos imediatos, mas que se estende à contribuição da queima de petróleo para as alterações climáticas. Acresce que a atividade extrativista tem sido acompanhada de vários abusos de direitos humanos, em particular contra povos indígenas. Estes conflitos de valores podem ser encarados de duas formas distintas. Se for assumida a comensurabilidade entre o valor económico da exploração petrolífera, os valores ambientais e os direitos humanos das populações afetadas, a questão resume-se a pôr num prato da balança o primeiro valor e os restantes valores no outro para verificar para qual dos lados pende o desequilíbrio. Se a comensurabilidade destes valores for rejeitada, os prós e contras da exploração de petróleo têm de ser considerados de uma forma  A tese da “maldição dos recursos” baseia-se na constatação de que países com maior abundância de recursos naturais tendem a ter um crescimento económico inferior ao de países com menor abundância de recursos naturais. 1

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que não implique o estabelecimento de equivalências através da sua redução a uma métrica comum. Quem defende a incomensurabilidade entre a conservação da natureza ou o respeito pelos direitos humanos e a prosperidade económica, contudo, é frequentemente confrontado com situações em que o uso de valores monetários pode contribuir para reduzir a poluição para níveis considerados aceitáveis, penalizar o crime ambiental ou o abuso de direitos humanos, ou, ainda, para recompensar a conservação da natureza. Será, então, uma contradição defender o uso de valores monetários para corrigir, evitar ou remediar algum dano ambiental e, simultaneamente, defender que a natureza não tem preço? Em caso afirmativo, será esta contradição superável de uma forma que não seja criticável como oportunista ou hipócrita? Neste capítulo, pretendo defender que a resposta a estas duas questões depende do contexto e do significado atribuído aos valores monetários usados. Nesse sentido, distancio-me de Kallis et al. (2013) que respondem positivamente a estas duas questões, apresentando uma grelha normativa de suposta aplicação universal que, baseada em critérios não justificados com qualquer outro argumento que não o das suas preferências, permitiria determinar quando é adequado ou não recorrer à valoração monetária para proteger a natureza. Pretendo antes responder negativamente à primeira pergunta e positivamente à segunda, partindo não de critérios normativos descontextualizados mas antes de uma análise da construção social dos significados do dinheiro que permite diferenciar entre preços, enquanto valores monetários usados em transações mercantis, e outros valores monetários usados em transações não mercantis. Na primeira secção deste capítulo, apresenta-se uma análise do recurso a valorações monetárias para a proteção da natureza, diferenciando entre transações, restituições, reparações e recompensas. Na segunda secção, apresenta-se uma história dos conflitos

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ambientais e sociais associados à extração de petróleo no Equador. Na terceira secção, analisa-se o caso do conflito legal entre a Texaco e as vítimas da contaminação provocada por esta petrolífera, averiguando o significado dos valores monetários usados no processo judicial, enquanto na quarta secção se analisa o caso da iniciativa Yasuní-ITT, expondo a ambiguidade em torno do valor monetário que o Equador pediu à comunidade internacional como contrapartida ou recompensa pela não extração de petróleo num território ancestral de povos indígenas com elevado valor ambiental. No final, apresenta-se a conclusão. 1. Significados do dinheiro: preços vs. valores monetários não mercantis O uso de valores monetários para a proteção da natureza é inevitavelmente controverso. Parece contraditório alguém, por um lado, defender que a natureza não tem preço e, por outro, defender que os poluidores devem pagar pelo dano ambiental que causam. Até que ponto esta contradição é real e se traduz numa incoerência depende do significado dos valores monetários em causa. Entendendo o preço como um valor monetário usado numa transação comercial, isto é, como uma métrica para uma operação de compra e venda, torna-se claro que nem todos os valores monetários são preços. A distinção entre os diversos significados do dinheiro é ignorada pela Economia Ambiental, para a qual a atribuição de preços à natureza nunca é problemática. A resolução dos conflitos entre a preservação do ambiente e o desenvolvimento das forças produtivas é sempre resolvida com o recurso à compensação económica, entendida como o montante necessário para restaurar o bem-estar dos agentes económicos prejudicados pela degradação ambiental (seguindo o chamado critério de compensação de Kaldor-Hicks). A compensação económica é sempre possível, pelo que a decisão sobre a implementação de medidas ou investimentos que provo-

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quem dano ambiental pode ser baseada numa análise custo-benefício (Atkinson e Mourato, 2008). A aplicação deste critério à política ambiental assume implicitamente a perfeita comensurabilidade dos valores. Assim, quando um agente económico, para obter um ganho, provoca um dano ambiental que reduz o bem-estar social, deve verificar-se se o ganho obtido permitiria compensar as vítimas do dano. Se for este o caso, considera-se que, apesar do dano ambiental causado, o bem-estar social aumentou ou, pelo menos, não diminuiu. Inversamente, se um agente económico prescinde de um ganho para aumentar o bem-estar social, deve verificar-se se o aumento do bem-estar social permitiria compensar o agente pela sua perda. Mais especificamente, a aplicação do critério da compensação económica às políticas ambientais implica a definição de preços para todos os elementos que cabem na categoria “natureza”, incluindo as funções desempenhadas pelos ecossistemas, concebidos como bens e serviços ambientais. Assim, o conflito entre o benefício económico e o prejuízo ambiental da extração de petróleo num país como o Equador poderia ser resolvido por uma análise custo-benefício que tivesse em conta o ganho económico, por um lado, e o valor dos bens e serviços ambientais afetados, por outro. Esta visão da relação entre economia e natureza é central para os teóricos do “capitalismo verde”, que procuram gerir as contradições entre a expansão das forças de produção e a conservação da natureza com uma racionalidade própria das normas de contabilidade e de gestão empresarial (ver, por exemplo, Hawken et al., 1999). Mas a necessidade de colocar um preço na natureza é também partilhada pelos que Spash (2009) designa de “novos pragmatistas ambientais”, isto é, ambientalistas e economistas ecológicos que, embora tenham uma visão crítica da ortodoxia económica e até vejam como verdadeira a proposição de que a natureza não tem preço, veem a atribuição de um preço à natureza como um

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“mal necessário” para garantir a sua conservação numa economia de mercado. A cedência ao critério da compensação económica traduz-se frequentemente na contradição de, em privado, defender a incomensurabilidade entre valores como a conservação da natureza e a prosperidade material, e, em público, promover a comensuração entre um dado serviço ambiental (como a conservação de uma espécie ou o sequestro de carbono) e o dinheiro. Esta contradição torna-se óbvia quando um instrumento de comensuração como a análise custo-benefício é usada de forma estratégica, com os “novos pragmatistas ambientais” a participar na sua elaboração, transitando da recusa de pôr um preço na natureza para a tentativa de inflacionar, tanto quanto possível, o preço da natureza. Assim, o “pragmatismo político” traduz-se no paradoxo de alguém calcular um preço para algo que não pretende vender (Spash, 2008). Não calcular um preço para a natureza implica estabelecer uma relação não mercantil com a mesma, o que pode configurar uma recusa racional e adequada à extensão das fronteiras do mercado inerente ao uso de preços (O’Neill, 2007). Em contrapartida, o uso da análise custo-benefício para resolver conflitos de valor quando está em causa a proteção da natureza implica necessariamente colocar um preço na natureza, isto é, pressupõe uma relação mercantil do decisor com a natureza que a coloca no papel de fornecedora de bens e serviços comercializáveis. Como conciliar, então, a rejeição de uma relação mercantil com a natureza com o uso de valores monetários na política ambiental? Parece claro à partida que, na ausência de uma relação mercantil, o uso do termo “compensação” pode assumir um significado distinto e não se configura como adequado interpretar o valor da compensação como um preço, embora a existência de um valor monetário associado à compensação tenha por base um processo social de comensuração (Espeland e Stevens, 1998). Adicionalmente, há casos em que o valor monetário em causa não é compensatório de

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todo, tal como no caso de uma multa aplicada a um poluidor por um crime ambiental, fixada no valor considerado suficientemente elevado para servir como dissuasor do crime no futuro. Um primeiro exemplo de valores monetários que não se traduzem em preços pode ser encontrado na forma como os tribunais lidam com casos de dano ambiental. Mesmo que a sentença siga parcialmente um modelo mercantil, com o valor da indemnização fixada pelo tribunal baseada num cálculo do preço dos bens e serviços ambientais afetados, o valor monetário da indemnização não pode ser entendido como um preço, dado que o tribunal não está a declarar que as vítimas do dano ambiental são inteiramente compensadas ao receber a indemnização nem que o valor pago pelo prevaricador o exime da culpa ou consagra o direito de causar um dano. Nesse sentido, uma indemnização fixada em tribunal ex post, no seguimento de um dano ambiental, não tem o mesmo significado que um preço pago ex ante pela compra do direito de causar dano ambiental. Sendo assim, não se pode inferir do uso de valores monetários pelos tribunais em casos de dano ambiental qualquer equivalência entre estes valores e os preços estimados em análises custo-benefício. O tribunal não segue o critério de compensação económica porque assume que o pagamento de uma indemnização não restaura o bem-estar das vítimas, não legitima o crime e não atribui ao causador de dano o direito de repetir o crime no futuro (Heinzerling e Ackerman, 2004). A aplicação de um modelo de justiça corretiva em casos de dano ambiental não depende do cálculo de preços. O pagamento de uma indemnização pelo causador do dano às vítimas pode ser visto como uma restituição, que visa restaurar o statu quo prévio ao dano ou uma situação de valor moral equivalente, e/ou como uma reparação, que visa simbolizar o respeito pelos direitos das vítimas que foram desrespeitados pelo causador do dano (Radin, 1993).

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Neste sentido, não existe qualquer contradição em casos como o de Aguinda y otros contra Chevron Texaco Corp. (CPJS, 2011), examinado na secção 3, em que os queixosos exigem o pagamento de uma indemnização pelo dano ambiental causado pela empresa petrolífera, sem, contudo, abandonarem a recusa de pôr um preço na natureza. Entendendo a compensação judicial não como uma compensação económica mas como um pagamento que reforça compromissos morais em relação à proteção da natureza, os tribunais não estão a categorizar a natureza como uma mercadoria, mesmo que usem técnicas de avaliação económica do ambiente para determinar o valor da compensação (Radin, 1993). Casos em que uma ação de conservação do ambiente é recompensada monetariamente oferecem um segundo exemplo de valores monetários com significados diversos. A ideia de que a conservação do ambiente deve ser vista como uma mercadoria está na base dos chamados “pagamentos por serviços ecossistémicos”. Nesta visão, os pagamentos são realizados com base no preço calculado para o serviço ambiental prestado e são conceptualizados como um incentivo à continuidade do fornecimento deste serviço (Engel et al., 2008). Mas é também possível recompensar a conservação da natureza sem a conceptualizar como um serviço e sem recorrer ao cálculo de preços. No lugar de um pagamento, temos uma recompensa, baseada em noções de justiça que implicam uma reciprocidade entre quem beneficia do bem comum que é a conservação da natureza e quem contribui para a proteção desse bem comum (Vatn, 2010). A iniciativa Yasuní-ITT, analisada na secção 4, seguiu inicialmente este modelo, não se baseando na fixação de um preço para a natureza. Os dois exemplos mostram como é possível conciliar a recusa em pôr um preço na natureza com o uso de valores monetários na proteção ambiental, pelo que os casos respetivos serão analisados em detalhe nas duas secções que se seguem.

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2. Ambiente, direitos humanos e petróleo: história de um conflito O Parque Nacional Yasuní foi criado em 1979, ano em que o Equador voltou a ser uma democracia, depois de sete anos de ditadura militar. O parque cobria 6797 km2 entre o rio Tiputini e o Conocaco, na interseção da Amazónia e dos Andes. Dados os conflitos entre a conservação da natureza e a exploração de petróleo, as suas fronteiras foram alteradas em 1990, tendo sido reduzida a sua área a este, sul e oeste, para permitir a expansão de atividades de extração de petróleo e a criação de uma reserva indígena. Em 1992, o Parque foi ampliado, sobretudo para sul, tendo aumentado a sua área para 9820 km2. Atualmente é a maior área protegida do Equador (Villaverde et al., 2005; Finer et al., 2010). A investigação científica realizada no Parque Nacional Yasuní mostra que é um dos locais do planeta com maior biodiversidade. A riqueza de espécies conhecidas de anfíbios, aves e mamíferos, assim como de árvores, é a maior no mundo. A herpetofauna (anfíbios e répteis) é a mais biodiversa conhecida no mundo e o número de espécies de morcegos identificadas está entre os mais altos valores registados mundialmente. Dados preliminares em relação a insetos indicam também que o Yasuní poderá registar a maior diversidade a nível mundial. Estima-se que 86 espécies animais e vegetais em risco se encontram neste parque e que o número de espécies endémicas (únicas do ecossistema das Florestas Húmidas de Napo, onde se inclui o Yasuní) pode atingir 220 a 720 para espécies vegetais, tendo-se registado ainda 43 vertebrados endémicos (Bass et al., 2010). Contígua ao Parque Nacional Yasuní encontra-se a Reserva Étnica Waorani, criada em 1990 no seguimento da redução da área do Parque. Esta reserva, com 6126 km2, incorpora territórios ocupados por comunidades indígenas waorani, tradicionalmente formadas por uma população nómada de horticultores-caçadores-recolectores (Rival, 1999). O governo equatoriano manteve sem-

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pre uma política ambígua em relação à governação do território, tendo, por um lado, reconhecido a soberania dos waorani mas, por outro, mantido os direitos de exploração do subsolo, impedindo as comunidades indígenas de travar a extração de petróleo nas suas terras (Finer et al., 2010). O povo waorani tem um longo historial de resistência violenta à entrada no seu território de pessoas vindas de fora. Quando, nos anos 1940, a petrolífera Royal Dutch Shell pretendeu iniciar atividades de prospeção de petróleo em território waorani, vários trabalhadores foram mortos pelos indígenas, tendo a petrolífera abandonado o território em 1950, alegando que o petróleo encontrado era de fraca qualidade. Nos anos 1950 e 1960, vários missionários envolvidos num trabalho “civilizador” dos indígenas, que resultou na concentração de 80% da população waorani num pequeno “protetorado”, efetivamente facilitando a exploração petrolífera nos territórios abandonados (Ziegler-Otero, 2004), foram mortos por waorani. Este esforço de “pacificação” dos waorani foi ativamente apoiado pela Texaco, como resposta aos constantes ataques às suas operações (Kimerling, 2005). A cultura guerreira dos waorani estende-se também a conflitos dentro das próprias comunidades indígenas, tendo este povo o mais elevado índice de homicídios registado entre sociedades indígenas (Beckerman et al., 2009). Entre os waorani há pelo menos duas comunidades que vivem em isolamento voluntário, conhecidas coletivamente como Tagaeri e Taromenane, sobre as quais se sabe muito pouco, por se terem refugiado em partes remotas da Reserva Étnica Waorani e atacarem mortalmente quem entrar no seu território. Em resposta a uma deliberação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 1997, que reconheceu os direitos destas comunidades, o governo do Equador criou em 1999 a zona intangível, nas quais operações de extração de petróleo e de abate de árvores passaram a estar interditas. Os limites desta zona intangível, contudo, ape-

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nas foram estipulados em 2007, ficando a cobrir a metade a sul do Parque Yasuní e parte da Reserva Étnica Waorani. Cinco blocos petrolíferos encontram-se parcialmente dentro da zona intangível, incluindo o ITT (Martin, 2011). Conjuntamente, o Parque Nacional Yasuní e a Reserva Étnica Waorani formam uma Reserva do Homem e da Biosfera da UNESCO. A Reserva, criada em 1989, representa um reconhecimento internacional da importância que a área tem para a conservação da natureza e a proteção dos direitos de comunidades indígenas. Na sua descrição, a UNESCO afirma que a extração de petróleo “afeta as práticas sociais das comunidades locais e o ecossistema natural”2 (UNESCO, 2013). A nota da UNESCO é relevante, dada a importância da extração de petróleo para a economia equatoriana e os problemas ambientais e sociais associados. A história da extração de petróleo no Equador está ligada à da petrolífera Texaco desde que esta, em 1967, descobriu petróleo com valor comercial em Lago Agrio, o primeiro campo petrolífero do país, em consórcio com a Gulf Oil. O consórcio foi abalado quando, em 1972, a ditadura que tinha aberto as portas à entrada de capital estrangeiro na exploração de petróleo foi destituída por um golpe militar nacionalista. As pretensões do novo governo no sentido de aumentar o controlo nacional sobre o negócio de extração de recursos conduziram à criação da empresa pública CEPE (hoje Petroecuador), que adquiriu a parte da Gulf Oil no consórcio em 1976. A Texaco passou a deter uma parte minoritária no consórcio, através da sua subsidiária Texpet, mas manteve a responsabilidade pelas operações nos campos petrolíferos (Joseph, 2012). O Equador torna-se um país exportador de petróleo em 1972, graças à construção de um oleoduto de 500 km, ligando a Ama2

 Esta e as restantes traduções neste capítulo são da responsabilidade do autor.

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zónia ao Oceano Pacífico, com passagem pelos Andes. A empresa responsável pela obra foi a Texaco, que desta forma se tornou a operadora do oleoduto e dos campos petrolíferos até 1992, data em que a sua concessão foi terminada e a sua parte do consórcio transferida para a Petroecuador. Durante este período de tempo, o consórcio Texaco-Petroecuador explorou 339 poços de petróleo, tendo extraído 1,5 mil milhões de barris (Kimerling, 2005). A extração de petróleo pela Texaco foi realizada num vazio legal que permitiu à empresa uma grande discricionariedade na criação e monitorização de normas ambientais. Além disso, a Texaco desrespeitou sistematicamente as leis de proteção da natureza equatorianas existentes (Kimerling, 1995). Ao atribuir à Texaco um quase total controlo sobre as operações nos campos petrolíferos, o governo equatoriano permitiu que a empresa transferisse os custos sociais da sua atividade para as populações locais. As estradas construídas pela petrolífera foram pulverizadas com petróleo bruto e os resíduos tóxicos da extração de petróleo e da manutenção de equipamentos, incluindo água contaminada com petróleo, foram despejados no meio ambiente sem qualquer tratamento. Estima-se que os rios em torno das plataformas petrolíferas foram contaminados com um total de 73 mil milhões de litros de águas residuais da atividade petrolífera. Adicionalmente, o gás natural captado como subproduto da extração de petróleo era queimado, resultando em emissões de gases com efeito de estufa, partículas, precursores de chuvas ácidas e outros poluentes (Kimerling, 1993). A poluição da água levou à morte de peixes e outras espécies aquáticas nos rios e teve um impacto fortemente negativo na saúde das pessoas que as consumiam. Às descargas de tóxicos acrescem os derrames provocados por falhas nos oleodutos, que frequentemente duravam dias. Estima-se que cerca de 64 milhões de litros de petróleo foram derramados durante o período em que a Texaco operou os oleodutos. A empresa nunca investiu na limpeza das

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áreas contaminadas, nem tentou de alguma forma compensar as populações afetadas (Kimerling, 1993). Um estudo realizado em 1998 mostrava já, nos rios que entram no Parque Nacional Yasuní, níveis de contaminação por hidrocarbonetos, águas de formação e metais pesados muito acima dos máximos permitidos na União Europeia (Villaverde et al., 2005). À poluição da água e dos solos acresce a degradação ambiental indireta, resultante da abertura de estradas para a exploração de petróleo na Amazónia, que facilitou a expansão de atividades de agricultura, pecuária e caça, além das atividades madeireiras. Como resultado, a taxa de desflorestação do Equador é a mais alta da América Latina (FAO, 2011). A criação da chamada Via Auca (nome depreciativo dado pelos indígenas kichwa aos waorani, que se pode traduzir como selvagem), construída pela Texaco no início dos anos 1980, permitiu a expansão da colonização e desflorestação na área em redor, pondo em risco a vida selvagem (Zapata-Rios et al., 2006). Outra grande estrada, a Via Maxus, foi criada em 1992 pela Maxus Ecuador Inc. (hoje uma subsidiária da petrolífera argentina YPF), com controlos de entrada rigorosos de forma a impedir a entrada de colonos e madeireiros e assim evitar os problemas ambientais associados à Via Auca. No entanto, o seu uso por caçadores indígenas tem criado uma pressão insustentável sobre as espécies existentes (Franzen, 2006). Adicionalmente, o ruído resultante da circulação automóvel, assim como as colisões entre veículos e vida selvagem resultaram na diminuição no número de espécies de aves na área em torno da Via Maxus (Canaday e Rivadeneyra, 2001). As atividades de extração de petróleo também levaram a confrontos com populações indígenas, devido à invasão dos seus territórios ancestrais. A invasão foi facilitada pela construção de estradas em territórios até aí inacessíveis, o que permitiu a entrada de colonos em terras de comunidades indígenas dos povos cofán, siona, secoya, kichwa e waorani. Em 1989, já cerca de um milhão

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de hectares de floresta amazónica tinha sido colonizada, tornando a extração de petróleo na principal responsável pela desflorestação no Equador. A colonização, associada à degradação ambiental e ao ruído provocado pelas atividades de extração de petróleo, causou um conflito que por vezes se tornou violento, havendo ataques entre povos indígenas e “invasores” com mortes de ambos os lados (Kimerling, 2005). 3. A ação judicial coletiva contra a Texaco: compensações vs. restituições e reparações Os dados sobre os conflitos em torno da extração de petróleo pela Texaco foram compilados e publicados por Judith Kimerling, uma advogada norte-americana, ativista ecologista pelos direitos indígenas, com base em entrevistas realizadas no Equador e em documentos oficiais. A tradução do seu livro “Crudo Amazónico” (Kimerling, 1993) para inglês, um ano depois de a Texaco ter abandonado as suas operações no Equador, levou a que um advogado decidisse intentar uma ação judicial coletiva em Nova Iorque contra a petrolífera, em nome dos indígenas e colonos do Equador afetados pela poluição causada pela extração de petróleo. No caso Aguinda v. Texaco, Inc., foram nomeadas 74 testemunhas, entre colonos e indígenas, em representação de uma população estimada em pelo menos 30 mil pessoas, que exigiam o pagamento de indemnizações compensatórias e punitivas pelos danos sofridos ao nível da sua saúde e da sua propriedade (Kimerling, 2005). A Texaco reagiu defendendo que tinha cumprido a lei equatoriana e que o caso não poderia ser apresentado perante um tribunal nos EUA. Face a uma auditoria ambiental que confirmava a sua responsabilidade por vários delitos ambientais, a empresa negociou diretamente com o governo equatoriano uma compensação de 40 milhões de dólares, entre 1995 e 1998. O pagamento desta compensação libertava a empresa de qualquer responsabilidade futura para com o governo equatoriano. Simultaneamente, a petrolífera

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comprometeu-se a limpar a contaminação provocada, o que fez sem qualquer monitorização governamental, num processo denunciado como negligente pelas populações locais. As comunidades indígenas e de colonos afetadas nunca foram consultadas, nem na elaboração da auditoria ambiental, nem na negociação do acordo entre o governo e a Texaco (Joseph, 2012). A ação judicial foi arquivada em 2001, com o tribunal a argumentar que o caso não poderia ser julgado nos EUA. A decisão motivou os queixosos a apresentar uma ação judicial no Equador contra a Texaco, que entretanto havia sido comprada pela Chevron. Em 2003, a ação deu entrada no tribunal, ao mesmo tempo que uma segunda ação contra a Texaco era apresentada por um grupo de indígenas que não se sentiam representados no grupo de queixosos. Embora a segunda ação tenha sido recusada, a primeira deu origem a um longo processo judicial (Kimerling, 2005). O tribunal que julgou o caso Aguinda y otros contra Chevron Texaco Corp. (CPJS, 2011) teve não só de avaliar a existência de culpa da Chevron, mas também a extensão dos danos provocados. Dado que um processo judicial deste tipo envolve indemnizações monetárias (embora não exclua outro tipo de indemnizações e penalizações), o tribunal nomeou em 2007 uma equipa técnica, liderada pelo perito Richard Vega, que teve como função avaliar a extensão do dano ambiental causado, determinar a origem do dano, verificar a existência de substâncias que comprometam a saúde ou vida de organismos vivos, especificar as medidas a tomar para limpar as áreas contaminadas e avaliar monetariamente algumas das perdas sofridas por pessoas e pelo ambiente (Vega, 2008). Este relatório foi uma das peças de um longo processo de recolha de informação sobre a contaminação ambiental causada pela Texaco, resultando num processo legal com mais de 220 mil páginas, contendo mais de 100 relatórios de peritos, dezenas de testemunhos e dados científicos de 54 inspeções aprovadas pelo tribunal, entre outros dados (Amazon Defense Coalition, 2012).

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Dois aspetos merecem ser destacados neste caso. Por um lado, a necessidade de quantificar e monetizar o dano ambiental, de forma a poder oferecer ao tribunal alguns números considerados necessários para que a sentença fosse objetiva e justa e para que fosse possível calcular a indemnização a pagar pela Chevron, caso fosse provada a sua culpa. Por outro, a forma como, explicitamente, o perito nomeado pelo tribunal assumiu que havia danos que não podiam ser expressos em termos monetários, pelo que as pessoas não podiam ser inteiramente compensadas pelo prejuízo sofrido. No mesmo sentido, o perito salientou desde o início a necessidade de a petrolífera se responsabilizar pela limpeza dos sítios contaminados, dentro do que era tecnicamente possível, não se podendo desresponsabilizar substituindo este trabalho de limpeza por um pagamento às populações afetadas pela contaminação. Desta forma, a lei e a jurisprudência convergem na rejeição do critério de compensação de Kaldor-Hicks, defendendo que parte dos custos sociais da extração de petróleo não pode ser expressa em dinheiro e que pagamentos para a restauração das áreas contaminadas não têm o mesmo significado que tem pagamentos compensatórios às vítimas da contaminação. Em abril de 2008, o relatório Vega recomendou que a Chevron fosse condenada, com base nos dados sobre a contaminação de Lago Agrio com hidrocarbonetos e metais pesados, devido à extração de petróleo realizada sem controlos ambientais adequados. O relatório denunciava o incumprimento por parte da Texaco do contrato de limpeza das áreas contaminadas assinado com o governo equatoriano em 1995. Consequentemente, a Chevron deveria ser condenada a pagar uma indemnização de 8 mil milhões de dólares pelo dano causado, resultado da soma dos gastos com restituições e compensações. As restituições, estimadas em 3,4 mil milhões de dólares, incluíam a limpeza das áreas contaminadas, o fornecimento de água potável para as pessoas que vivem na área, a provisão de um sistema de saúde às populações da região, a implementa-

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ção de um programa de recuperação de terras, alimentos e cultura indígenas e obras de melhoramento das infraestruturas petrolíferas para reduzir a contaminação futura. As compensações, estimadas em 4,6 mil milhões de dólares, incluíam compensações por mortes por cancro e pela perda de ecossistemas florestais. Este montante não cobriria todos os danos causados, dado que nem todos os danos foram considerados, a estimativa era conservadora, e as restituições não poderiam recuperar o meio ambiente para o estado em que estava antes da contaminação. Para atingir uma restituição completa, o relatório recomendou então que o tribunal adicionasse à indemnização a totalidade ou uma parte do enriquecimento ilícito obtido à custa do desrespeito pelas populações, pelo meio ambiente e pelos direitos das comunidades indígenas, estimado em 8,3 mil milhões de dólares. A restituição completa, no entanto, não equivale a uma compensação económica, dado que o relatório admitia que para muitas das perdas sofridas pelas pessoas, incluindo prejuízos na saúde, deslocação de povos indígenas das suas terras ancestrais e alterações nas atitudes e perceções das pessoas em relação ao ambiente em que vivem, nenhum valor monetário podia ser estimado. Em todos estes cálculos, a única parcela que recorreu ao tipo de valores usados correntemente em análises custo-benefício foi a das compensações por mortes por cancro. Para calcular este valor, o relatório Vega utilizou o “valor de uma vida estatística”, usado pelo governo dos EUA para realizar análises custo-benefício de regulamentações que possam salvar vidas no futuro. Nas compensações pela perda de ecossistemas florestais, foi usado antes o custo de recuperação de um hectare de floresta tropical, em detrimento de um valor monetário obtido por métodos de avaliação contingente (Vega, 2008). Seguindo queixas apresentadas pela Chevron, o tribunal acabou por descartar o relatório Vega, recorrendo antes a outros relatórios produzidos por peritos, sobretudo o relatório de Gerard Barros,

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um perito aprovado pela Chevron (Joseph, 2012). Além disso, o tribunal não deu seguimento ao pagamento de uma indemnização por enriquecimento ilícito por parte da Chevron que os arguidos estimavam em 40 mil milhões de dólares (Aguinda Legal Team, 2011). A decisão final do tribunal equatoriano, emitida em fevereiro de 2011, diferindo consideravelmente nas suas considerações do parecer dado no relatório Vega, condenou a Chevron ao pagamento de uma indemnização de 8,646 mil milhões de dólares, à qual acresce 10% desse montante para os queixosos, a título de reparação pelos danos causados. O cálculo da indemnização considerou os custos com a limpeza de águas subterrâneas, limpeza de solos, recuperação de fauna e flora, compensação por custos acrescidos para a obtenção de água potável, provisão de um sistema de saúde público, implementação de um programa de reconstrução comunitária e recuperação étnica de povos indígenas e provisão de um plano de saúde que inclua o tratamento de pessoas com cancro. É de salientar que nenhuma compensação monetária por mortes ou pela perda de ecossistemas foi atribuída. A decisão do tribunal condenou ainda a Chevron a pagar uma indemnização adicional equivalente a 100% das restituições por danos causados, com uma finalidade punitiva e dissuasora, de forma a garantir a não repetição da conduta da empresa, e punir o que o tribunal considerou ser má-fé durante o julgamento e desrespeito pelos queixosos. Esta indemnização adicional, contudo, poderia ser substituída por um pedido de desculpas público, na forma de anúncios publicados em jornais equatorianos, dirigidos às vítimas da contaminação, no prazo máximo de quinze dias. Na sua decisão, o tribunal esclarece que este pedido de desculpa é uma medida simbólica de reparação moral e de reconhecimento dos efeitos do mau comportamento da Chevron, reconhecida pelo Tribunal Interamericano de Direitos Humanos como uma forma de garantir a não repetição de atentados contra os direitos humanos.

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A Chevron recorreu da decisão e, em janeiro de 2012, foi negada a sua pretensão de arquivamento do caso. Na decisão do tribunal de recurso, o montante de indemnizações a que a petrolífera é condenada é fixado em 18 mil milhões de dólares, indicando-se que o prazo para o pedido de desculpas público já expirou. A Chevron continua, presentemente, a recorrer à justiça nos EUA para evitar o pagamento das indemnizações, dado que a inexistência de ativos da empresa no Equador obriga a que a execução da sentença tenha de ser realizada no país onde se situa a sua sede (Joseph, 2012). Analisando o acórdão do tribunal, podemos confirmar que não houve qualquer lugar para a estimação ou atribuição de preços à natureza ou à vida humana, sendo antes a indemnização repartida em duas partes, com uma parte a refletir a restituição a que as vítimas da contaminação ambiental têm direito e a restauração do ambiente contaminado, e a outra, a reparação para com as vítimas. Parte do montante correspondente à reparação (o equivalente a 100% do valor das restituições) poderia ter sido substituído por um pedido de desculpas público, indicando que há formas de forçar o causador de dano a reconhecer publicamente os direitos das vítimas, a admitir o desrespeito por estes direitos e garantir a não repetição do dano, sem recurso ao pagamento de um valor monetário. 4. A iniciativa Yasuní-ITT: compensações vs. recompensas Em janeiro de 2007, o governo recém-eleito da Alianza PAIS (Patria Altiva i Soberana), um movimento político de esquerda liderado por Rafael Correa, anuncia uma solução inovadora para a conservação da natureza. Para proteger a biodiversidade, combater as alterações climáticas e respeitar a soberania de comunidades indígenas sobre o seu território, o governo estava disposto a não explorar petróleo nos campos de Ishpingo, Tambococha e Tiputini (ITT) situados no Parque Nacional Yasuní, pedindo à comunidade internacional uma compensação pelo custo de oportunidade da não exploração de petróleo. O pesado custo ambiental e social da

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extração de petróleo no Equador, visível no caso contra a Texaco/ Chevron, foi um fator decisivo para a formulação da iniciativa. A iniciativa tem a sua origem numa proposta de moratória sobre a extração de petróleo apresentada por alguns movimentos sociais ecologistas e indígenas nos anos 1990 (Martin, 2011). A proposta foi formalizada no livro coletivo “El Ecuador post-petrolero”, editado pela associação Acción Ecológica (2000). Em junho de 2003, esta associação juntou-se às fundações Pachamama e Centro de Direitos Económicos e Sociais (CDES) para apresentar a proposta ao Ministério do Ambiente. Nesta altura, o CDES, em conjunto com movimentos sociais, discutia já a ideia de reivindicar uma anulação da dívida externa, ainda muito elevada, com os credores, a troco da preservação da Amazónia, dado que a extração de petróleo era alimentada pela necessidade de encontrar divisas para o serviço da dívida externa (Acosta, 2010). Em 2005, uma proposta de moratória à extração de petróleo no Yasuní-ITT foi apresentada pela Acción Ecológica, e pela Oilwatch, uma rede Sul-Sul de movimentos sociais de resistência contra as atividades petrolíferas. A proposta defendia que o valor económico do Yasuní é incomensurável mas estipulava que se podem gerar recursos financeiros via doações ou cancelamento da dívida externa de países industrializados, como forma de compensação pelos benefícios ambientais produzidos pela não extração de petróleo. Estas contribuições internacionais não poderiam representar uma “mercantilização da vida”, nem uma “venda de serviços ambientais” e não dariam origem a qualquer direito de propriedade ou de uso do território (Acción Ecológica, 2005; Oilwatch, 2005). Em outubro de 2006, a Oilwatch e a Acción Ecológica organizaram um fórum sobre direitos humanos, petróleo e reparações na cidade amazónica de Coca, que incluiu uma visita guiada a sítios contaminados e uma marcha pelos direitos humanos (Martin, 2011). Ao mesmo tempo, decorriam as eleições presidenciais e parlamentares, que foram ganhas na segunda volta pelo recém-for-

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mado movimento político PAIS (hoje Alianza PAIS). Rafael Correa torna-se o novo presidente do Equador, com um programa político à esquerda, derrotando o empresário bananeiro Álvaro Noboa. No programa de governo do Movimiento PAIS, elaborado em 2006 durante a campanha eleitoral, constava já uma proposta de moratória à extração de petróleo. No programa pode ler-se que deve ser analisada “a possibilidade de uma moratória da atividade petrolífera no sul da Amazónia equatoriana, ligada a uma suspensão do serviço da dívida externa” (Movimiento PAIS, 2006: 41). O programa eleitoral enquadrava esta ideia num plano mais vasto de transformação do Equador numa “potência ambiental”, investindo nas energias renováveis e na expansão das áreas protegidas, assim como no reforço dos controlos ambientais de todas as políticas económicas e produtivas (Acosta, 2010). Por outro lado, o Movimiento PAIS defendia a necessidade de “maximizar os efeitos positivos que se possam obter da extração petrolífera, sem perder de vista que o petróleo se está a esgotar e que o desenvolvimento não se faz simplesmente com base na extração de recursos naturais” (Movimiento PAIS, 2006: 41). Quando, o novo governo liderado por Rafael Correa tomou posse, estas ideias deram origem à Iniciativa Yasuní-ITT, anunciada publicamente em junho de 2007, através da qual o governo se propunha não extrair o petróleo do campo ITT, situado no Parque Nacional Yasuní, pedindo em troca à comunidade internacional uma compensação pelo custo de oportunidade da não extração equivalente a metade das receitas previsíveis. A elaboração da proposta foi entregue ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, encabeçado pela anterior diretora para a América do Sul da União Internacional para a Conservação da Natureza, Maria Fernanda Espinosa Garcés (Martin, 2011). Numa reunião de alto nível sobre alterações climáticas, organizada pela ONU a 27 de setembro de 2007 em Nova Iorque, a Iniciativa Yasuní-ITT foi apresentada pela primeira vez à comu-

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nidade internacional por Rafael Correa. No seu discurso, Correa apresentou a proposta de deixar no subsolo 920 milhões de barris de petróleo como um “imenso sacrifício” que o governo equatoriano estava disposto a fazer, “exigindo a corresponsabilidade da comunidade internacional e uma compensação mínima pelos bens ambientais que geramos e dos quais todo o planeta beneficia” (Correa, 2007: 4). A iniciativa tinha como objetivos “conservar a biodiversidade, proteger os povos indígenas em isolamento voluntário que ali habitam e evitar emissões de dióxido de carbono” (Correa, 2007: 5). Em troca, o Equador solicitava uma compensação de 4,6 mil milhões de dólares, equivalente a metade do valor comercial das reservas que ficariam por explorar, a ser aplicada num Fundo Fiduciário Yasuní-ITT, destinado a investimentos num plano de desenvolvimento que incluía “a diversificação das fontes de energia; o desenvolvimento de capacidades e investimentos no ecoturismo e a aplicação de uma agenda integral que compreende a saúde, a educação e a remediação ambiental, entre outros” (Correa, 2007: 5). A iniciativa Yasuní-ITT contou desde o início com o apoio do Ministério da Energia e das Minas, encabeçado por um dos principais inspiradores da proposta original, o economista e ecologista Alberto Acosta. Na Agenda Energética 2007-2011, lançada em junho de 2007, o ministério admitia que a não extração de petróleo no Yasuní-ITT tinha um custo de oportunidade mas que não devia ser vista como um sacrifício de recursos necessários ao desenvolvimento do país, dado que a perda de receitas futuras podia ser mais que compensada por uma melhoria da gestão dos campos petrolíferos em exploração. A Agenda Energética clarificava: O desafio apresentado é o de retificar erros passados e gerar as receitas que requerem os programas de desenvolvimento social na base de uma exploração do petróleo com responsabilidade social e ambiental, sem comprometer áreas que até hoje escaparam ao turbilhão de quarenta anos de espoliação e vandalismo (Acosta e Villavicencio, 2007: 90).

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Os mesmos princípios pós-extrativistas foram plasmados na nova constituição (Asamblea Constituyente, 2008), elaborada por uma Assembleia Constituinte presidida pelo então ex-Ministro da Energia e das Minas Alberto Acosta. A constituição, elaborada através de processos de democracia participativa e referendada a 28 de setembro de 2008, estabelece o direito ao “buen vivir”, o que envolve nomeadamente o acesso a serviços públicos essenciais, a participação democrática e a preservação do meio ambiente. Consequentemente, a natureza surge como sujeito de direitos (Art.ºs 71 a 74), as atividades extrativas são vedadas em territórios de povos em isolamento voluntário (Art.º 57) e a extração de recursos não renováveis é interdita em áreas protegidas ou zonas declaradas como intangíveis, salvo se, em situações excecionais, a Assembleia Nacional declarar o seu interesse nacional, a pedido da Presidência da República, podendo convocar um referendo se o considerar conveniente (Art.º 407). Pode, desde logo, constatar-se que há uma ambiguidade presente na Iniciativa Yasuní-ITT. Por um lado, o Ministério da Energia e Minas apresentava a não extração de petróleo no Yasuní-ITT como o início de uma inversão de curso na política de desenvolvimento seguida e uma necessidade face aos valores em causa (proteção do ambiente e dos direitos indígenas). Por outro, o Presidente apresentava a renúncia à extração de petróleo no Yasuní-ITT como um “imenso sacrifício”, pelo qual o país deveria ser compensado pela comunidade internacional. Esta ambiguidade não é apenas semântica. Se a não extração de petróleo no Yasuní-ITT é um sacrifício, então o governo equatoriano deverá deixar em aberto uma opção B, a de extrair o petróleo caso a comunidade internacional não compense o Equador pelo sacrifício realizado. Se, pelo contrário, a renúncia à extração de petróleo no Yasuní-ITT é uma obrigação que decorre do respeito pelos direitos da natureza, das comunidades indígenas e dos povos em isolamento voluntário, então a opção B não pode estar em cima

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da mesa, estando antes uma opção C, a de não extrair o petróleo mesmo que a comunidade internacional não doe ao Equador o montante solicitado. No primeiro caso, o governo equatoriano visa obter uma compensação económica pelo custo de oportunidade da não extração de petróleo. Dado que a opção B é deixada em aberto, ainda que implicitamente, a compensação pode ser vista como um pagamento por serviços ecossistémicos em que uma parte (um contribuinte internacional) paga a outra parte (o governo do Equador) para que desempenhe serviços ambientais (preservação do Yasuní-ITT e combate às alterações climáticas) (Wunder, 2007). Estamos, portanto, no domínio mercantil, sendo as transferências para o Fundo Yasuní um pagamento por um serviço prestado. No segundo caso, o governo equatoriano assume o compromisso de não extrair petróleo no Yasuní-ITT, procurando uma compensação da parte da comunidade internacional. Como a opção B não é considerada, sendo deixada em aberto apenas a opção C, a compensação não pode ser vista como um pagamento por serviços ecossistémicos, devendo ser antes encarada como uma recompensa. As transferências para o Fundo Yasuní são doações, não tendo como base uma troca mercantil. Em ambos os casos, as contribuições internacionais para o Fundo Yasuní são realizadas de acordo com o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas segundo o princípio expresso no Protocolo de Quioto que determina um maior grau de responsabilidade pelo combate às alterações climáticas para os países industrializados. Mas apenas no segundo caso as contribuições podem ser vistas como uma aplicação dos princípios da justiça climática, que postulam a existência de uma dívida ecológica acumulada por países do Norte em relação aos países do Sul pela degradação ambiental causada pela industrialização (Simms, 2005), dado que no primeiro caso está em causa a compra de um serviço e não o pagamento de uma dívida. Adicionalmente, ape-

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nas no primeiro caso, quando as contribuições internacionais são enquadradas como compensações ou pagamentos por serviços ecossistémicos, a iniciativa Yasuní-ITT se torna suscetível de ser criticada como uma forma de chantagem, possivelmente replicável por países do Sul com áreas naturais ameaçadas pela extração de recursos naturais. Apesar da ambiguidade, foi desde cedo claro que o governo equatoriano tendia a encarar a iniciativa Yasuní-ITT como uma venda de serviços ambientais e uma compensação pelo sacrifício incorrido pela não extração de petróleo. A opção B, de extrair o petróleo no Yasuní-ITT, caso as contribuições para o Fundo Yasuní se revelassem insuficientes, começou a ser explorada pelo Presidente Executivo da Petroecuador, Carlos Pareja Yannuzzelli no início de 2007, ao procurar contratos com as empresas petrolíferas estatais PDVSA (Venezuela), Sinopec (China), Petrobras (Brasil) e Enap (Chile). Em meados de 2007, Rafael Correa já havia contratado com as três últimas empresas a possível extração de petróleo no Yasuní-ITT (Martin, 2011). Mais relevante ainda a este respeito é a forma como o Fundo de Investimento Yasuní-ITT foi constituído. A Secretaria Técnica da iniciativa Yasuní-ITT foi criada em janeiro de 2008, com a tarefa de definir os pormenores da iniciativa, tais como o montante a pedir à comunidade internacional, o que fazer com o dinheiro recebido, ou qual o significado das contribuições para o fundo de investimento a criar (donativos ou títulos com valor financeiro, tal como créditos de carbono). Presidida por Roque Sevilla (ex-diretor da Fundación Natura), a secretaria teve de operar a máquina de quantificação responsável por determinar qual o montante de petróleo no subsolo do Yasuní-ITT, qual o custo de extração do petróleo e qual o preço futuro do petróleo, de forma a calcular, usando uma taxa de desconto considerada adequada, qual o valor presente líquido do petróleo que o Equador se propunha não explorar (Sevilla, 2010).

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O prazo para o fim do período de recolha de contribuições financeiras foi inicialmente fixado em junho de 2008, sendo depois prorrogado até dezembro de 2008, dando muito pouco tempo para que uma comissão de angariação de fundos conseguisse ser bem-sucedida. A este contratempo acresce a vontade de preparar um leilão duplo, no qual as empresas petrolíferas interessadas na extração de petróleo concorreriam com doadores internacionais interessados na não extração, assim como a sinalização, por parte de Correa, de que poderia aprovar a extração no campo de Tiputini, retirando um T ao Yasuní-ITT (Martínez, 2009). O plano inicial consistia em o Equador pedir, como compensação pela não extração de petróleo no Yasuní-ITT, metade do seu valor presente líquido, num total de 3,6 mil milhões de dólares, repartidos por dez anos. A procura de alternativas de financiamento, contudo, fez com que a fórmula de cálculo mudasse. No final de 2008, o montante solicitado pelo Equador era antes calculado como o benefício de não queimar o petróleo, medido pelas toneladas de CO2 evitadas, multiplicadas pelo preço de um crédito de carbono no mercado de carbono europeu. Com esta colagem ao mercado de carbono, esperava-se conseguir financiamento a partir da venda de créditos de carbono a poluidores do Norte, recorrendo ao mercado de carbono voluntário, dado que o Protocolo de Quioto não prevê a venda de créditos de carbono a partir de projetos que evitam a emissão de gases com efeito de estufa mantendo os combustíveis fósseis no subsolo (Martin, 2011). Em 2009, a proposta que o Equador apresentava à comunidade internacional era a de criar um fundo de investimento, administrado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), através do qual receberia contribuições dos países do Norte e outras entidades públicas e privadas, no valor de pelo menos metade dos 7,188 mil milhões de dólares que estimava que as emissões de CO2 evitadas valessem no mercado de carbono europeu. As receitas do fundo seriam aplicadas em quatro tipos

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de projetos: proteção das áreas naturais; reflorestação, arborização e recuperação de um milhão de hectares; melhoria da eficiência energética nos edifícios, na indústria e nos transportes; apoio às comunidades pobres a viver na zona de influência de grandes projetos de conservação da natureza ou reflorestação (Sevilla, 2010). A criação do Fundo de Investimento Yasuní-ITT sofreu ainda um importante revés em dezembro de 2009, durante a cimeira climática internacional de Copenhaga, quando, a dois dias antes da data prevista para a assinatura do acordo entre o governo equatoriano e o PNUD, Correa ordena aos negociadores para não assinar o acordo. Em janeiro de 2010, o Presidente do Equador justifica a sua decisão em discursos transmitidos pela rádio criticando a sua equipa por ter aceite condições que punham em causa a soberania do país e defendendo que “não estamos a pedir caridade, mas antes compensação por serviços ambientais”, pelo que a palavra “doador” não deveria constar no fundo do PNUD. Em reação a estas declarações, o Presidente da Secretaria Técnica da Iniciativa Yasuní-ITT, Roque Sevilla, assim como o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Fander Falconi, pediram a sua demissão (Martin, 2011). O ataque de Rafael Correa à equipa que até aí havia servido de intermediária com o PNUD e potenciais doadores revela a tensão criada pela ambiguidade em torno do significado das contribuições para o futuro Fundo de Investimento Yasuní-ITT. A ambiguidade seria desfeita de vez com a fixação dos termos de referência deste fundo, em julho de 2010. As normas do fundo, nos parágrafos 26 e 27, estipulam que as contribuições darão direito a Certificados de Garantia Yasuní (CGY), com um valor em dólares. O valor monetário de um CGY está associado às toneladas métricas de CO2 evitadas de acordo com o preço, na data de transação, de uma licença de emissão na União Europeia (European Union Allowance) no Mercado de Carbono de Leipzig (Ecuador Yasuní ITT Fondo de Fideicomiso, 2010). Assim, ficou salvaguardada a hipótese de no futuro os CGY puderem ser

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transacionados no mercado de carbono global, o que permitiria ao governo equatoriano vender CGY a entidades públicas e privadas que pretendessem compensar as suas emissões de carbono. A associação da iniciativa Yasuní-ITT ao mercado de carbono, ainda que remetida para um futuro em que as normas do Protocolo de Quioto permitam criar uma equivalência entre CGY e créditos de carbono, confirmou que se tratava já de uma venda de serviços ambientais. Na visão que ficou consagrada nos termos de referência do Fundo de Investimento Yasuní-ITT, a iniciativa não é precursora de uma “nova lógica económica para o século XXI”, que reconheça “os valores não crematísticos”, como defendia Correa na sua apresentação da iniciativa (Correa, 2007: 6), mas está antes enquadrada na lógica económica capitalista dos mercados ambientais, na medida em que reduz o valor da não extração de petróleo ao valor crematístico correspondente à venda de créditos de carbono pelas emissões evitadas. O triunfo da lógica da compensação económica sobre a lógica da recompensa também pôs em causa aquilo que Acosta chamou uma mudança na relação entre os povos do mundo e a natureza, que cria as bases para uma “institucionalidade jurídica global sustentada no princípio da corresponsabilidade diferenciada: os países mais desenvolvidos, em grande parte responsáveis pela degradação ambiental, estão intimados a contribuir muito mais para a solução dos problemas ambientais globais” (Acosta, 2010: 18). Pelo contrário, o negócio da venda de créditos de carbono, ao permitir a comensuração entre a redução de emissões em diferentes países, permite que os países industrializados do Norte possam comprar o direito de poluir e assim evitar descarbonizar o seu sistema produtivo, transferindo a responsabilidade do combate às alterações climáticas para o Sul (Coelho, 2011). Ao categorizar as contribuições para o Fundo de Investimento Yasuní-ITT como pagamentos por serviços ambientais, o governo equatoriano colocou ainda em causa a própria sobrevivência da

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iniciativa, dado que a qualquer momento poderia decidir extrair o petróleo no Yasuní-ITT, alegando falta de cooperação da comunidade internacional. Foi isso mesmo que aconteceu a 15 de agosto de 2013, quando Rafael Correa anunciou o fim da iniciativa Yasuní-ITT, alegando que apenas 0,37% do valor esperado estava depositado no fundo de investimento e declarando “o mundo falhou-nos” (Correa, 2013). Conclusão O uso de valores monetários para a proteção da natureza é potencialmente controverso para quem defende que a natureza não tem preço. Recusar todos os valores monetários, contudo, implicaria deixar muitos problemas ambientais por resolver, tendo em conta a importância social do dinheiro. Assim, um ecologista que recusasse o uso de valores monetários no julgamento contra a Texaco/Chevron estaria a ajudar a empresa a evadir as suas obrigações a nível de restituição do statu quo e reparação para as vítimas. Da mesma forma, uma ecologista que recusasse o uso de valores monetários na iniciativa Yasuní-ITT estaria a impossibilitar a atribuição de uma justa recompensa a quem prescinde de um benefício económico a troco da preservação de uma área de elevado valor ecológico e do respeito pelos direitos das comunidades indígenas. Resolver esta aparente contradição entre a recusa de pôr um preço na natureza e o uso de valores monetários para penalizar poluidores ou recompensar protetores da natureza implica distinguir entre os vários significados sociais do dinheiro. Assim, o caso judicial contra a Texaco assentou em noções de restituição e reparação, que em nada se confundem com uma compensação económica, em que o bem-estar das vítimas é recuperado para o nível anterior à contaminação uma vez recebido o valor correspondente ao preço da natureza contaminada e das vidas perdidas. A iniciativa Yasuní-ITT, por outro lado, assentou na noção de recompensa por uma ação que, apesar de seguir um compromisso

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assumido pelo Estado do Equador, beneficia todo o mundo, dados os custos sociais da indústria petrolífera. Não há qualquer lugar para o cálculo de preços para bens e serviços ambientais na determinação do valor desta recompensa. A reconfiguração desta iniciativa nascida nos movimentos sociais como uma compensação económica pelo custo de oportunidade da extração do petróleo e um pagamento por serviços ambientais, pelo contrário, repousa na fixação de preços para bens e serviços ambientais, seguindo uma visão mercantilista da relação entre humanos e natureza. A análise destes dois casos foi realizada com o objetivo de demonstrar os vários significados do dinheiro em iniciativas, instrumentos ou procedimentos legais dirigidos à proteção da natureza. Um trabalho futuro pode expandir esta análise, debruçando-se sobre o papel que diversas “convenções de monetização” podem ter na criação de vários significados para o uso de dinheiro na sociedade. Referências bibliográficas Acción Ecológica (2000), El Ecuador Post Petrolero. Quito: Acción Ecológica. Versão eletrónica disponível em http://fes.zonarix.com:8081/publicaciones/el-ecuador-post-petrolero Acción Ecológica (2005), “Un llamado Eco-Lógico para la conservación, el clima y los derechos. Propuesta para la Reserva de la Biósfera Yasuni”. Versão eletrónica disponível em http://www.accionecologica.org/index. php?option=com_content&id=55 Acosta, Alberto (2000), “El petróleo en el Ecuador: una evaluación crítica del pasado cuarto de siglo”, in Acción Ecológica (ed.), El Ecuador Post Petrolero, Quito: Acción Ecológica, 15-50. Versão eletrónica disponível em http://fes.zonarix.com:8081/publicaciones/el-ecuador-post-petrolero Acosta, Alberto (2010), “A modo de prólogo: ¡Basta a la explotación de petróleo en la Amazonía!”, in Esperanza Martinez e Alberto Acosta (orgs.), ITT-Yasuní: Entre el petróleo y la vida. Quito: Abya Yala, 35-60.

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OS AUTORES

Ana Costa Economista, professora do ISCTE-IUL e investigadora do DINÂMIA’CET-IUL Ana Raquel Matos Socióloga, Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra José Castro Caldas Economista, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. José Reis Economista, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Laura Centemeri Socióloga, investigadora do CNRS no Instituto Marcel Mauss (CNRS-EHESS). Maria de Fátima Ferreiro Socióloga, professora do ISCTE-IUL e investigadora do DINÂMIA’CET-IUL Ricardo Coelho Economista, investigador júnior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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VALORES EM CONFLITO

Vasco Gonçalves Economista, professor do ISCTE-IUL e investigador do DINÂMIA’CET-IUL Tiago Santos Pereira Doutorado em Estudos de Ciência e Tecnologia, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Vítor Neves Economista, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

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