POR UMA ANTROPOLOGIA MARXIANA

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MITOS E PRÁXIS POR UMA ANTROPOLOGIA MARXIANA

Silvia Maria Schmuziger de Carvalho

Mitos e Práxis Por uma antropologia marxiana

terceira margem

Copyright © 2015, Silvia Maria Schmuziger de Carvalho Centro de Estuos Indígenas “Miguel A. Menéndez” CEIMAM – FCL – UNESP – Araraquara, Julho 2015 Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou armazenada por quaisquer meios sem a autorização prévia da editora e do autor.

Direção Editorial: Liana Trindade Editoração: Terceira Margem Editora Arte Final da Capa: Terceira Margem Editora

Carvalho, Silvia M. S. Mitos e Práxis -Por uma antropologia marxiana-- . / Silvia M. S. Carvalho --/ São Paulo : Terceira Margem, 2015 268p., 16X23cm ISBN 978-85-7921-091-4 1. Antropologia Marxiana 2. Sociedade Indígena 3.Clastres, Pierre

I. Título

CDU. 3889.7

Para Fernando, meu marido, para nossas filhas Maiti, Fernanda e Flávia, para nosso filho Jean Paulo e nosso neto Rodrigo.

Sumário

Apresentação.................................15 1. Por uma Antropologia Marxiana.............17 2. O Trickster como Personificação de uma Práxis.............................37 3. As Sociedades Indígenas Brasileiras e a Ecologia..............................51 4. Reflexões Sobre o “Pensamento Tradicional” e o “Pensamento Selvagem”.....................59 5. O Boi Mítico e Folclórico no Brasil.......67 6. A Antropologia e os Dilemas da Educação...97 7. A Obra de Pierre Clastres: Acertos e Enganos de uma Antropologia Política.....123 8. O Duplo Jacaré (Cerâmica Marajoara)......163 O Duplo Jacaré – Trinta Anos Depois......191 9. Cerâmica Arqueológica Tapajônica e Simbolismo................................193 10. Jaguar – O Senhor da Floresta Tropical Indígena................................209 11. Notas Sobre as Cabeças Mundurukú........227 12. O Pouco Conhecimento Nosso Sobre as Sociedades de Caçadores.................233 13. Uma Discussão do Conceito de“Trickster”..239 14. As Transformações do Trickster..........253 15. Dialogando com Eduardo Viveiros de Castro...257

A Unicamp e uma leitura marxiana da Antropologia Pedro Paulo A. Funari O Laboratório de Arqueologia Pública da Universidade Estadual de Campinas resulta de longa trajetória de engajamento da Universidade com a Arqueologia, em uma perspectiva científica fundada na excelência acadêmica, na inserção internacional e no engajamento social. A Unicamp surgiu em meio a um regime de força, inspirado no MIT e voltada para os saberes técnicos que pudessem transcender os questionamentos políticos que advinham das universidades de referência à época e cujos quadros foram golpeados de forma mais dura: a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal do Rio de Janeiro. A Universidade Estadual de Campinas, fundada em 1966, no entanto, logo teve no desafio de produzir ciência de relevância internacional não um obstáculo, mas um meio de contrapor-se às exações políticas que grassavam alhures na academia, ao acolher cientistas notáveis perseguidos tanto no Brasil, como em outros países latino-americanos sob o jugo ditatorial. Em pouco tempo, a Unicamp despontava não apenas no âmbito científico, stricto sensu, como na originalidade de adotar perspectivas transdisciplinares, na busca por inserção mundial, na ênfase em ciência aplicada e políticas públicas e na atuação voltada para a sociedade, em sua diversidade. Tudo isto se refletiu no surgimento precoce do interesse da Universidade por uma Arqueologia relevante para a sociedade. Enquanto práticas e abordagens reacionárias e conservadoras eram predominantes e espíritos críticos eram silenciados, como no caso notável do fundador da USP e pioneiro da Arqueologia humanista Paulo Duarte (1899–1984), expulso da Universidade de São Paulo, em 1969, a Unicamp abria-se para práticas e abordagens libertárias. Acolheu o acervo de Paulo Duarte e trouxe a Professora Niède Guidon, a quem Duarte havia aberto as portas para aprender com os arqueólogos pré-historiadores mais renomados e amantes da liberdade, para atuar no Núcleo de Pesquisas Arqueológicas – Nipar (1986–1991). Aberta essa seara, a Arqueologia na Unicamp desenvolveu-se nos aspectos constitutivos tanto da Universidade, como da disciplina, em termos mundiais: em interação com a ciência mundial, em perspectiva transdisciplinar, engajada com a sociedade e em luta pela liberdade e pelo respeito à diversidade. Pesquisas arqueológicas de variado gênero foram levadas a cabo, diversas delas de expressão social, acadêmica e de repercussão internacional. As últimas décadas testemunharam mudanças substanciais na Arqueologia. Em primeiro lugar, multiplicaram-se os campos de estudos, tanto em termos cronológicos, como em categorias de objetos de estudo. No primeiro caso, a Arqueologia do Mundo Contemporâneo mostra uma disciplina cada vez mais

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preocupada com o presente, sem abdicar das épocas mais recuadas. Cresceram os objetos de estudo especializados, que incluem moedas, ânforas, tijolos, pinturas, sepulturas, mas também fíbulas e bonecas. Nada disso faz sentido se não chegar ao público e se não houver uma análise dos aspectos sociais e políticos das práticas, característica da Arqueologia Pública. Neste sentido, pode afirmar-se que não se pode prescindir da reflexão teórica e metodológica, para que na se fique apenas no senso comum. O próprio sentido dessas duas expressões, teoria e método, indicam-nos que o conhecimento depende sempre do ponto de vista – de onde deriva o conceito mesmo de teoria –, da perspectiva. Não se pode conhecer nada senão pela mediação do sujeito de conhecimento. Daí que se imponha a reflexão sobre as perspectivas, sobre os recursos heurísticos que são agenciados na pesquisa. Caso contrário, corre-se o risco de transformar o desconhecimento e a falta de interesse pela epistemologia em defesa de um vale tudo que não procura conhecer as próprias bases do conhecimento do mundo material. Atitude arrogante que esconde seus próprios limites. A teoria serve para estudar e propor tipologias, por exemplo, para separar percepções por meio de critérios, como na raiz da krisis (separação), muito além da simples descrição da opinião (doxa) das pessoas. Para que se possa refletir sobre as perspectivas é necessário analisar os caminhos, sentido original de método. Também aqui, separar, sentido original do étimo grego (analysis), é procedimento básico, para que possa superar uma descrição ingênua, irrefletida, da opinião. Desconsiderar teoria e método é, pois, desconhecer o problema central do conhecimento: o sujeito que observa e os seus critérios de classificação do mundo. Como já dizia Sócrates (Platão, Apologia de Sócrates, 38) δ νεξέταστος βίος ο βιωτς νθρώπ “a vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Silvia Maria Schmuziger de Carvalho foi uma jovem que seguiu, na década de 1950, cursos do fundador da Universidade de São Paulo, Paulo Duarte, sobre Pré-História, o que apenas aguçou o seu interesse pelos indígenas e por sua imensa riqueza cultural. A estudiosa distinguiu-se, desde cedo, por dois aspectos que já estavam nas aulas do humanista: a atenção à experiência empírica e à epistemologia, a como se pode conhecer. Nos seus estudos, desde então, Sílvia de Carvalho estudou os costumes e crenças de diversos povos, sempre atenta às particularidades culturais. Para isso, contudo, sempre considerou necessária a reflexão sobre como chegar ao conhecimento. Este volume mostra toda a originalidade do seu pensamento crítico, ao propor uma leitura inspirada em Karl Marx para o estudo antropológico. A equipe de Arqueologia da Unicamp, Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte, tem, portanto, a satisfação de poder contribuir para divulgar uma obra que se associa à missão humanista da Universidade Estadual de Campinas, em geral, e da Arqueologia, em particular.

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Uma estudiosa inspiradora, espírito irrequieto, atenta às maravilhas do espírito humano: Silvia de Carvalho Nascida na Suíça em 1931, a antropóloga Sílvia de Carvalho passou a infância na Europa, e aos nove anos veio para o Brasil com os pais. Do período de infância surge o interesse pelas narrativas de povos tradicionais, um de seus focos como pesquisadora até os dias atuais. Não é raro encontrar conhecidos seus que já tenham ouvido uma de suas histórias dos tempos de menina, as quais sempre conta com muito entusiasmo, despertando o fascínio do interlocutor. Tais histórias somaram-se às leituras e estudos em nível superior, na Universidade de São Paulo, iniciados em 1952, no curso de Geografia e História. Pela mesma época, seguiu outras atividades culturais que marcavam a época e que dais quais levou os ensinamentos pela vida toda, como os cursos ministrados pelo intelectual Paulo Duarte. Dos tempos de USP, carregou influências intensas de alguns mestres, como os professores Plínio Ayrosa e Egon Schaden. Encantavam-na os temas mitológicos, em geral, e indígenas, em particular. Os estudos deram novos ares aos seus interesses pelos mitos e pelos povos tradicionais, culminando, assim, em uma especialização em Antropologia. A experiência docente iniciou-se logo após o término do curso de pós, ainda na USP, quando foi assistente não remunerada - por dois anos ministrando aulas de Antropologia. Logo após essa experiência, na capital paulista ensinou no secundário por 10 anos. A partir da década de 1960, casada com o prof. Dr. Fernando de Carvalho e residindo no interior de São Paulo (São José do Rio Preto e, depois, Itirapina), teve seus quatro filhos: Maria Tereza, Jean Paulo, Fernanda e Flávia. Residindo em Ribeirão Preto e lecionando em faculdades particulares, iniciou o doutorado em Franca, atual UNESP. Em 1975, com doutorado finalizado no ano anterior, prestou concurso na UNESP de Araraquara, onde deu aulas de Antropologia até 1992, quando se aposentou. Sua tese de doutorado foi publicada em forma de livro com o título “Jurupari, estudos de mitologia brasileira”, em 1979. No início dos anos 1980, finalizou o pós-doutoramento em Besançon, França, supervisionada pelo prof. Dr. Pierre Lévêque, o que consolidou seus estudos e reputação também no âmbito dos estudos clássicos, em particular helênicos. Seu domínio da literatura em idiomas como o alemão (sua língua materna), francês, italiano, inglês, espanhol, além do português, sempre causou admiração em alunos e colegas e serviu de inspiração. Como reconhecimento, recebeu diversas homenagens, como o prestigioso título de professora doutora “honoris causa” pela Universidade de Franche Comté, em 1995. Até 2005 continuou ligada à UNESP como professora voluntária na Pós-Graduação. Atualmente, continua ativa e ligada aos projetos de companheiros de Universidade ou dos alunos que ajudou

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a formar e que, de certa forma, dão continuidade ao seu trabalho como docente e pesquisadora. No que toca às contribuições no plano teórico, Silvia de Carvalho é referência no estudo dos povos indígenas e suas mitologias, e também no estudo e análise de mitos clássicos, tendo sido membro fundador da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, em 1985, junto com um de nós (Funari). Suas pesquisas destacaram-se sempre pela originalidade e, de forma incomum, pela ousadia de abranger campos tão diversos como a Antropologia indígena e as mentalidades das civilizações mediterrânicas. Essa sua amplitude, ancorada em erudição pouco comum e reconhecida no Brasil e no estrangeiro, permitiu que formasse estudiosos em temas variados, assim como influenciasse, de forma direta ou indireta, diversos jovens estudiosos. O aprofundamento na leitura de mitos e análises realizadas por pesquisadores brasileiros e estrangeiros – e por alguns de seus mestres – culminou no desenvolvimento de uma teoria própria sobre a mitologia dos povos indígenas do Brasil, na qual uma profusa ideologia paleolítica rege as relações do homem com a natureza e, consequentemente, pode ser percebida em sua produção de saberes. Em termos de engajamento prático, suas ações voltadas à causa indígena são inúmeras. A idealização de um grupo de estudos indígenas que mais tarde se transformaria em CEIMAM (Centro de Estudos Indígenas), de certa forma aglutinou todas as ações voltadas para a questão indígena a partir dos anos 1980. O Centro de Estudos Indígenas ganhou seu atual nome ao homenagear o prof. Miguel Angel Menéndez, antropólogo argentino que faleceu em 1991 e que auxiliou a profa. Sílvia na criação do grupo de estudos. Com os esforços acadêmicos voltados ao CEIMAM, a pesquisadora pôde editar um Boletim, o Terra Indígena, e possibilitou a formação de alunos interessados nas temáticas indígenas, inclusive Arqueologia. Uma das grandes contribuições do CEIMAM tem sido, de forma decisiva, a possibilidade de a Universidade interagir com a comunidade, levando às escolas palestras, oficinas temáticas, mesas redondas, exposições etnográficas e arqueológicas. De sua vasta e nobre experiência como antropóloga, não se nega uma série de contribuições. O legado da professora Sílvia, como é chamada por seus companheiros e alunos, não pode ser resumido aos conteúdos ensinados em sala de aula, o que por si só já seria ganho imensurável a quem teve o privilégio de ser seu aluno(a), orientando(a), ou colega. Sua vida profissional sempre confundiuse com a pessoal. O olhar compreensivo e apaixonado lançado à existência do outro faz parte de seu cotidiano, seja pelo profundo respeito às práticas e saberes dos povos tradicionais que estuda, como pela forma generosa e delicada que sempre se relaciona com todos a sua volta.

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Um de nós (Funari) tem colaborado com a professora Sílvia por mais de trinta anos, com quem aprendeu muito desde o início da década de 1980, ao seguir suas palestras e participar, ainda muito jovem, de reuniões memoráveis com grandes intelectuais, dentre os quais estava a professora Sílvia. Outra (Schiavetto) foi aluna desde a graduação e tem aprendido muito desde o início da década de 1990. Este volume recolhe aspectos importantes da produção acadêmica da professora Sílvia e é uma satisfação para a Universidade Estadual de Campinas, por meio das Edições Arqueológicas Unicamp, poder publicar este volume cuja leitura será de grande proveito e gratificação para todos os espíritos críticos e inquietos, aberto às maravilhas da imaginação humana. Solange Schiavetto Pedro Paulo A. Funari

Apresentação Esta coletânea consta de nove artigos novos e republicação de seis outros, que já saíram inicialmente na Revista “Perspectivas” da UNESP. Comecei a trabalhar na UNESP-Araraquara em 1975. Após defender livredocência (1979), organizei, em 1981, um grupo de estudos com alunos, grupo esse que, a partir de 1983, com a vinda a Araraquara de Miguel A. Menéndez, e o trabalho dele (pesquisas de campo, orientação de alunos do grupo, publicações) se transformou num verdadeiro Centro de Estudos Indígenas, hoje CEIMAM – Centro de Estudos Indígenas “Miguel A. Menéndez”, em homenagem a ele, prematuramente falecido em 1991. Para poder continuar os trabalhos do CEIMAM e da Pós-Graduação, eu me aposentei em 1992. Desde então até 2005, como professora voluntária, continuei os projetos do CEIMAM, lecionando na Pós-Graduação até que meus orientandos todos tivessem defendido mestrado ou doutorado. A estes meus ex-orientandos, que continuam a trabalhar com o CEIMAM e com a FUNDAÇÃO ARAPORÃ, eu agradeço profundamente. Nestes últimos anos ainda trabalhei com um derradeiro projeto, e venho lendo e pensando algumas questões, que resultaram nos artigos ora apresentados, artigos esses que encerram minha produção escrita, que é pequena perto da de meus amigos e colegas antropólogos, mas que – espero muito – poderá colaborar para uma melhor compreensão dos nossos indígenas. Se isto ocorrer, eu me sentirei realizada com minha vida acadêmica. Com estes meus últimos artigos pretendo também prestar uma homenagem aos meus mestres, a professores que tanto me ajudaram, e aos colegas e amigos com que trabalhei e que agora são somente saudades. Agradeço ainda à UNESP e à FCL-UNESP-Araraquara, que me deram, desde 1975, espaço e condições de trabalho, e à Editora da UNICAMP pela publicação do livro. Silvia M. S. Carvalho Araraquara, julho de 2012.

1. Por uma Antropologia Marxiana Para nosso grande amigo e irmão de alma JOSÉ ÊNIO CASALECCHI (1938-2012)

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TEORIA MARXIANA E AS SOCIEDADES TRADICIONAIS

Para um panorama das tendências da Antropologia até 1970, veja-se um artigo de Terrail (1974), em que ele revê as várias correntes da época, a da Antropologia econômica, a formalista, a substantivista, e outras, até chegar à marxista. Revê também, entre outros, Sahlins (que percebeu que a ‘economia doméstica’ “comporte un príncipe anti-surplus”), Moscovici (“les modalités de la transformation ‘système/matière’ sont reglées fondamentalement par les conditions mêmes de ce système”), Engels (“le travail a créé l´homme lui-même”), mostrando assim o avanço das discussões de marxistas e não marxistas sobre o conhecimento das sociedades ditas “primitivas”, até então. Na conclusão deste artigo escreve Terrail: As relações que nos dão a chave de todo o edifício social, são exatamente aquelas que os homens mantêm entre si na produção material de sua existência imediata. É levando a sério esta asserção primeira do materialismo que se pode vencer as dificuldades de um enfoque científico do social e da história e compreender – sem contudo confundir a economia política e a tecnologia –, a fórmula de Engels de que a técnica e mesmo o meio geográfico ‘estão incluídos no conceito de relações econômicas. (p.340)

Principalmente nas décadas de 1960-70, vários antropólogos de orientação marxista procuraram estabelecer o mecanismo da transformação que levou sociedades tradicionais (africanas ou melanésias) à inserção na economia capitalista. Para tanto procuraram seguir as considerações de Marx no seu estudo da transformação do feudalismo ao capitalismo. Assim, P.P. REY, por exemplo, se propôs a estudar, não somente o funcionamento de sociedades de “linhagem”, mas também as condições históricas da articulação dessas sociedades com as sociedades capitalistas, considerando o colonialismo como uma primeira fase de articulação entre sociedades indígenas e o capitalismo. Rey acredita que existe um modo de produção particular que corresponda às sociedades definidas pelos antropólogos como sendo “de linhagem”, e que este modo de produção contém contradições que correspondem à raiz do aparecimento de sociedades de classes. Tendo ele estudado três sociedades “de linhagem” sem Estado do Congo-Brazzaville, patrilocais e matrilineares, procura,

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portanto, as contradições entre a patrilocalidade e a matrilinhagem. Segundo Rey, a patrilocalidade é o princípio da organização das unidades de produção e a matrilinhagem é o grupo que controla as condições desse processo de produção e, acima de tudo, a circulação de homens e mulheres. A patrilocalidade fixa os direitos relativos à produção; os direitos da organização linhageira dependem, ao contrário, das regras matrilineares. Essa dissimetria permite a Rey um exame das estruturas de produção disfarçadas em simétricas. Creio, no entanto, que é difícil partir de sociedades de linhagem para se compreender o processo de transformação. Mais ainda que, no caso das sociedades estudadas por Rey, a economia consiste em, além da caça, pesca e coleta, em plantio considerável (mandioca, amendoim, inhame, banana) e ainda domesticação de animais e escravidão. Penso que o ponto de partida para uma análise marxiana tem que ser a economia cinegética. E, como se verá adiante, foi Meillassoux que percebeu em que nível é preciso procurar. 1. A contribuição de Claude Meillassoux “Recherche d’un niveau de détermination dans la société cynégétique”, escrito em 1967 é, a nosso ver, um dos artigos mais importantes de Meillassoux. Foi republicado em 1977, com outros artigos escritos por Meillassoux entre 1960 e 1973; e é essa edição de 1977 (indicada como “T.eT.” que utilizamos aqui, em citações por nós traduzidas. Meillassoux emprega a expressão “sociedade cinegética” para designar a sociedade de caçadores-coletores, em oposição às sociedades de agricultores. Baseia suas considerações nos dados de Turnbull sobre os Mbuti, pigmeus do Congo. À sociedade cinegética corresponde o modo de produção em que se retira o sustento (e tudo o que é necessário ao grupo) da natureza por “punções”, tendo a terra, neste modo de produção (conforme conceitos que o autor toma de Marx) a função de objeto de trabalho. Segundo Meillassoux: Entre esses dois modos de produção, existe um outro no qual as hordas itinerantes praticam uma forma rudimentar de agricultura, voltando periodicamente a determinados lugares para colher os produtos selvagens. Mas eu não encontrei informações muito satisfatórias sobre este tipo de economia. (T.eT.:323, nota 7)

Pensamos que as sociedades amazônicas, ainda que possam ser consideradas semi-sedentárias (permanecendo na mesma aldeia uns 15 a 20 anos e, com a redução de seus territórios hoje provavelmente por mais tempo ainda), e mesmo considerando que praticam uma horticultura de floresta, poderiam ser classificadas como obedecendo ao mesmo esquema das sociedades cinegéticas. Talvez fosse mais correto dizer mesmo que o modo de produção por punções é um “modo cinegético de produção”, pois a economia de caça-coleta implica num

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escalonamento da produção, numa exploração do território por etapas, sendo que a própria roça aberta na floresta (e que complementa na maioria das sociedades amazônicas os produtos de caça, coleta e pesca) também é feita como “punção” na floresta, deslocando-se em rodízio de dois em dois ou de três em três anos. O cinegismo da produção continua a ser dominante nessas sociedades de horticultores de floresta. A ideologia que corresponde a esse modo cinegético de produção (implicando na obtenção do sustento por “punções”) não se modifica tão depressa. Assim que, como reconheceu Viveiros de Castro (2002), as sociedades amazônicas se caracterizam ainda hoje por uma ideologia paleolítica. Como os tempos paleolíticos correspondem a mais de noventa por cento do tempo de existência da espécie humana na face da Terra, é fácil compreender a resistência dessa ideologia: o que se poderia chamar de “essência humana” foi forjado certamente durante esses tempos paleolíticos. Meillassoux (T.eT.:119) chama a atenção para a necessidade de se descobrir o que ele denomina “traços fundamentais” dos modos de produção: os traços determinante e crítico. O traço determinante é o que molda e explica o processo social, político e ideológico de uma sociedade. O traço crítico diz respeito à autosubsistência, cuja transformação provoca uma crise que exige um reajustamento. No caso dos Mbuti, cuja organização social é baseada antes em grupos etários do que no parentesco (T.eT.:124), trabalhando em empreendimentos geralmente cotidianos (p.127) e em competição com os animais predadores (p.128), a partilha é um costume fundamental (p.129) e a floresta é o seu “laboratório”: “é preservando-a e não destruindo-a que ela continua sendo explorável” (p.132). Meillassoux chega à conclusão de que na sociedade de caçadores/coletores o traço determinante é, não o modo de produção, mas o de exploração (ou “exploitation”, vide p.136); pensamos que ele tocou, neste sentido, numa questão fundamental, embora nos pareça claro que o conceito de “modo de produção” inclua o que ele chama de “modo de exploração” que, afinal, corresponde às técnicas do modo de produção; o modo de produção compreendendo também a sua própria reprodução, ou seja, a reprodução de suas condições de produção, caso contrário ele não poderia constituir-se num processo contínuo através dos tempos. É provável que Meillassoux não tenha conseguido avançar muito mais, por não trabalhar efetivamente com sociedades como as amazônicas, que à caça, coleta e pesca, associam ainda a horticultura de floresta. Também faz falta um reexame de algumas posições de Marx que – não conhecendo sociedades indígenas a não ser a iroquesa, através de Morgan, e tendo como interesse central a análise do capitalismo – não tinha uma noção muito uniforme a respeito das sociedades de caçadores/coletores, entendidas por ele como “a-históricas”, isto é, que ainda “não haviam desenvolvido as suas forças produtivas”, sendo assim mais ou menos

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impotentes frente à natureza, reagindo a esta como rebanhos e sendo enganados pelos seus medos e por algum líder esperto, bancando o feiticeiro. Veja-se a este respeito a análise que Lefort (“As Formas da História”) fez dos escritos de Marx. Parece que Meillassoux se deixa levar por essas mesmas idéias de Marx, quando trata de religião: Quanto ao lugar que ocupa a religião, isto é, a ideologia, ela não procede de um gosto particular dessas populações pelos mistérios da fé, mas da fraqueza e da precariedade dos meios materiais ou científicos do controle social desde que a sociedade se organiza e se diferencia. Onde os meios materiais de produção não estão suficientemente desenvolvidos para serem objeto de apropriação, onde os meios de reprodução econômica e social se confundem com as mulheres, onde a energia e a força física se confundem com os homens jovens, a parte da ideologia cresce em proporção. A relação de dependência pessoal é, ao contrário das relações reificadas do capitalismo, uma relação ideal e idealizada: superstição, magia, feitiçaria, sociedades secretas são igualmente manifestações do terrorismo religioso com a finalidade do controle social e político. (“T.eT.”)

É curioso que, tendo observado que os Mbuti preservam a floresta “pois é preservando-a e não destruindo-a que ela continua a ser explorável”, Meillassoux não tenha percebido as conseqüências lógicas dessa afirmação, pois é nela que se encontra a chave da compreensão do sistema de reprodução (“modo de reprodução”, para Meillassoux) do modo cinegético de produção. Se atentarmos para o fato de que o conceito de propriedade é – tanto quanto outros conceitos nossos – construído historicamente, devemos ter em mente que os seres e elementos daquilo que chamamos “natureza” em oposição ao mundo humano, são para os caçadores/coletores (e para os que, além disso, são também pescadores e horticultores de floresta) seres dotados de vida, de alma, de inteligência, seres-espíritos que reagem às ações humanas. Em boa parte, devido ao grande conhecimento que esses povos têm de seu meio, dos animais e plantas e das inter-relações entre eles, essa idéia não é falsa: se o caçador abater caça demasiada ou animais em época de reprodução, a “natureza se vingará”1, e nos anos seguintes não haverá reposição suficiente das espécies caçadas. Se os recursos naturais que servem de alimento para os animais caçados forem destruídos, o efeito será o mesmo. Povos que conhecem as necessidades de cada espécie terão que representar também cada espécie de maneira diferente, como uma entidade física e espiritual ao mesmo tempo, e é naturalmente por isso que não se encontra entre eles um termo genérico que corresponda ao nosso conceito de “natureza”, assim como 1. Quem fala em “vingança da natureza” é o próprio ENGELS: “Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a Natureza. A cada uma dessas vitórias, ela exerce a sua vingança” (1972, A

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muitos povos não possuem termo correspondente ao nosso conceito de “árvores”. Respeitar cada espécie em suas necessidades básicas de reprodução é, justamente, também cuidar das condições de reprodução do próprio modo de produção da sociedade. Portanto, os tabus e o escalonamento de produtos são (além de modo de produção) também os fatores fundamentais do sistema de reprodução do modo cinegético de produção. Assim, não é possível concordar com Meillassoux quando ele escreve: O caráter determinante das relações com a natureza é, pois, bem evidentemente relativo, mas – a diferença das relações políticas – ele se manifesta não por uma confrontação entre as forças históricas reagindo uma em função da outra, mas por uma relação unilateral entre os indivíduos produtores agentes e uma natureza passiva. Não é pois arbitrária tomar esta relação como eixo considerado a um momento estável, ao redor do qual se articulam as relações de produção que condicionam todas as outras. É somente numa sociedade “histórica”, como diz Marx, isto é, uma sociedade capaz de dominar seu destino, que a ação política começa a dominar ao mesmo tempo a relação com a natureza e as contradições inerentes ao acionamento dos meios de a dominar.

Por outro lado, Meillassoux percebeu que: Se a determinação da sociedade cinegética se situa efetivamente no nível do modo de exploração da terra e não do modo de produção, é nas relações dos caçadores/ coletores com a natureza que será necessário procurar as contradições que estarão na origem de sua transformação, e não no desenvolvimento contraditório do sistema social. (T.eT.:139)

E, para acompanhar e entender essas transformações, é necessário verificar o processo dialético entre infra e superestrutura, isto é, perceber como mudanças na prática econômica acabam por modificar a visão do mundo ou, em outras palavras, como se passa de uma “ideologia paleolítica” para uma “ideologia neolítica”. O conceito de reprodução: Logo à página 6 da introdução de “Mulheres, Celeiros e Capitais” (1976), Meillassoux reproduz um texto de ENGELS: Segundo a concepção materialista o fator determinante em última instância é a produção e a reprodução da vida imediata (...). Quanto à reprodução, trata-se da reprodução dos próprios homens, a propagação da espécie.

Em todas as discussões de Meillassoux, na obra citada, o conceito de reprodução se aplica realmente à reprodução das forças de trabalho – ou, como o autor as prefere designar, no caso da economia doméstica – da “energia humana”, e pode ser considerado, é claro, como inerente ao próprio modo de produção.

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Pouca atenção é dada à questão da reprodução, não dos seres humanos, mas dos próprios recursos de sua subsistência. É verdade que Meillassoux menciona que “na comunidade doméstica o produto alimentar reparte-se da seguinte maneira: “uma parte é consagrada à reprodução do próprio produto, isto é, à constituição de uma reserva em sementes.” (p.92). Talvez, no caso da agricultura, esse processo seja óbvio demais e não necessite de uma grande atenção. No entanto, em nota 13 da p.73, lemos: “É raro encontrar na literatura etnológica pormenores sobre o acesso às sementes”. Achamos que, no caso das sociedades de caça e coleta, é preciso ampliar o conceito de reprodução também para o que diz respeito à fauna e à flora de que a humanidade tira o sustento. Como Meillassoux mesmo reconhece, no tempo de Marx e Engels, “as análises teóricas respeitantes à etnologia eram ainda demasiadamente elementares...”(idem, p.24). Assim que Marx considerava com efeito a comunidade como constituída “espontaneamente”... a família ou comunidade tribal como sendo “natural” (idem, p.13). Não poderia ser diferente, porque na segunda metade do século XIX, a maioria dos estudiosos dos assim chamados “povos primitivos” eram antropólogos de gabinete, e praticamente nada se sabia sobre caçadores/coletores. Aliás, mesmo Meillassoux que, conforme os justos elogios de Terray (1979, p.95), introduziu “na etnologia os princípios de análise marxista, superou os estágios dos projetos e dos programas e” ... tentou “por a prova no trabalho de campo a fecundidade destes princípios” no seu trabalho entre os Gouro, mesmo Meillassoux, que avançou no estudo da economia “de punção”, parece ignorar certas condições da vida e da visão de mundo dos caçadores/coletores, talvez justamente porque suas pesquisas de campo sempre foram entre povos de “economia doméstica” e não entre pré-agricultores. Vejamos o que Meillassoux escreve à p.113: Limitada à economia doméstica, a noção de reciprocidade dá conta ideologicamente do modo de circulação idêntico e igualitário, que tentei mostrar. Esta ideologia aliás está projetada neste tipo de sociedade, para lá das relações sociais, nas relações entre o homem e a terra. Para um agricultor, nada pode vir da terra sem contrapartida: nela investe o seu trabalho e a semente, retirando dela a subsistência. As atividades predatórias ou extrativas, nesta perspectiva, inquietam-no: devem ser compensadas por um “sacrifício” que restabeleça o equilíbrio, porque toda a punção sobre a natureza está em contravenção com o princípio de adiantamento e de restituições que preside à economia agrícola. Tais crenças e rituais não se desenvolvem no mesmo grau nas economias de caça ou de coleta, em que a terra é apenas objeto de trabalho. A necessidade de uma restituição aparece menos aos olhos do caçador que não tem experiência de investimento.

De certo, os caçadores/coletores não reinvestem na terra como os agricultores, mas eles sabem que é preciso um reequilíbrio. A primeira crítica que se pode

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fazer é à idéia que se tem feito com relação à representação, por parte dos indígenas, das trocas homem-natureza como uma simples projeção das relações sociais dentre os humanos, projeção gratuita de um pensamento por analogia. A partir de Durkheim os antropólogos incorporaram essa noção de que nas sociedades minimalistas (ou de ideologia paleolítica) e ainda em outras sociedades outrora ditas “primitivas”, as relações de seres não-humanos (para nós, ocidentais, seres da natureza) são pensadas como sendo relações sociais (humanas) justamente por serem pensadas assim por analogia com estas últimas. Não se tem percebido que essas “trocas” (rituais, cerimônias míticas, imaginárias) têm a ver com o próprio modo de produção cinegético ou de punção. Ao contrário do que pensa Meillassoux, sempre se percebeu, entre caçadores/ coletores, a importância da noção de compensação. É justamente essa necessidade de reestabelecer um equilíbrio (que é fundamental para as sociedades de caça, coleta, pesca e horticultura de floresta) que faz com que se pense (ou se represente) que a moça que se perdeu na floresta e não voltou à aldeia, o moço que saiu à caça e não retornou, sejam representados como “pagando” por animais caçados, se não devorados por eles, tornando-se cônjuges de espíritos-animais. Claro que as relações com tribos inimigas podem fornecer um modelo para essas representações, mas é o mecanismo de reprodução do modo de produção (da “economia de punção”, no dizer de Meillassoux), são as “coerções” desse mecanismo, que originam essas representações que são, por isso mesmo, também pedagógicas. O fato de que as sociedades amazônicas sejam definidas por Viveiros de Castro como perspectivistas, concebendo como “humanas” muitas das espécies animais, não implica em que elas não se apercebam da oposição entre a comunidade humana (sua própria sociedade) e o que nós chamamos “natureza”. É o próprio Lévi-Strauss que reconhece isso: Em segundo lugar, creio que, quando se diz que a distinção entre natureza e cultura é algo próprio do pensamento ocidental, há um equívoco: não é a distinção em si que é ocidental, mas uma certa atitude diante da natureza. Tal atitude, com efeito, não existe entre os povos estudados pelos etnólogos. Mas, do fato de esses povos sentirem a necessidade de arbitragem entre a natureza e a cultura, um meio de fazêlas coabitar de maneira satisfatória, não se deduz de modo algum que eles ignorem a oposição. Eles simplesmente a resolveram de uma forma diferente da escolhida pelo ocidente (...) (Viveiros de Castro, Entrevista, in “Mana”, out. 1998, p. 125).

2. Revisitando Godelier Godelier inicia o texto “Mito e História: reflexiones sobre los fundamentos del pensamiento salvaje” (1977) com um mito de origem dos Baruya da Nova Guiné, no qual o mundo não aparece como criado do nada, mas sim como sempre

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existente, no qual Terra e Céu, Sol e Lua, o homem e os espíritos, vegetais e animais, ainda não estavam separados. Sol e Lua acabam por operar a distinção, criando os opostos: calor e frio, secura e umidade, etc. E, num segundo momento outras oposições, finalizando na oposição homem-mulher (p.367). Assim, Godelier realça que as ações de Sol e Lua são ações de seres dotados de consciência, de vontade, conseqüentemente análogos ao homem, mas diferindo deste por seu poder superior (p.368). A seguir, remetendo às análises de Lévi-Strauss, escreve: Uno de los rasgos comunes a los mitos sud e norteamericanos es el hecho de que la “armadura sociológica” de esos mitos – es decir, las relaciones sociales ideales que ligan entre si a los personajes imaginarios de los mitos – adopta la forma de uma red de parentesco, de um conjunto de relaciones de consanguinidad y de alianza. (p.369)

Há, escreve Godelier, una correspondencia estructural, un lazo interno entre formas del pensamiento mítico y formas de la sociedad primitiva. Porque, si las relaciones de parentesco desempeñan en el seno del discurso y de la representación míticos del mundo un papel de esquema organizador, es porque en la propia realidad, en el seno de las sociedades primitivas, las relaciones de parentesco constituyen el aspecto dominante de la estructura social. (p.369-70)

E, logo mais adiante: “El pensamiento mítico es el pensamiento humano que concibe la realidad por analogia”. E: a ilusão é filha da analogia. Queremos chamar a atenção para o fato de que o conceito de propriedade é uma construção histórica lenta no decorrer da história ocidental. Os povos caçadores-coletores, pescadores e mesmo horticultores de floresta não têm um conceito de propriedade sobre a natureza. Por isso mesmo, tudo o que se move têm espírito: além do Sol e da Lua, cada espécie animal, cada espécie de planta (lembrar Derzu Uzalá e, aliás, também São Francisco de Assis). E o conhecimento de plantas e de animais dos nossos indígenas é tão grande que eles sabem que cada planta e cada animal tem uma alma, um espírito. Só para dar alguns exemplos de uma mesma cultura, citamos alguns trechos de “As lanças do crepúsculo”, de Descola (2006), sobre as crenças dos Achuar: Essa humanização da maioria das plantas cultivadas significa que elas são receptivas às invocações ‘anent’ que lhes dirigem. A alma ‘wakan’ com que são dotadas é uma faculdade de entendimento; torna-as aptas a se comunicarem entre si dentro de uma mesma espécie e lhes permite compreender as mensagens que as mulheres que cuidam delas maternalmente, como as injunções de Nunkui ou de seus animais familiares. No entanto, apenas nos sonhos e transes alucinatórios esses seres folhudos podem recobrar a sua aparência humana outrora perdida e dialogar com os Achuar em sua língua. (p.129)

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(...) só os desajeitados ferem a caça sem abatê-la; para que fazer sofrer uma alma igual a nós? Eles vão procurar o xamã deles para serem tratados, mas ficam magoados conosco e depois evitam aparecer na nossa frente. Por isso é que certos caçadores voltam muitas vezes para casa de mãos vazias. (p.144) – Você vai para a mata hoje? – Não! Você não vê que está chovendo? Por acaso eu sou igual a Amasank, a mãe da caça, que vive no meio de seus familiares? Como é que eu posso achar os animais se o barulho da chuva me impede de ouvir o que eles dizem? (...) (p. 139)

Pensar em espíritos não humanos como se fossem humanos (seres zoomorfos, mas antropossociais, como já dizia Egon Schaden), é facilmente compreensível quando se sabe que foi a sociedade ocidental que, no seu longo caminho (ou descaminho?) foi esvaziando de alma o universo inteiro. Os ocidentais é que esqueceram as almas da natureza, porque transformaram toda a natureza em objetos que podem ser vendidos, comprados, ou mortos. Só nos últimos tempos, ramos mais recentes da ciência, como a psicologia animal e certas experiências com plantas, mostram como os outros seres não-humanos também sentem, sofrem e, portanto, têm alma. Pesquisas de ponta realizadas por João Suzuki (biólogo da UNESP-Jaboticabal) mostram que as plantas conseguem se comunicar entre si por “sinais”, e há um livro, “A vida secreta das plantas” (1976) que faz um resumo das pesquisas feitas no mundo inteiro com plantas. Além disso, não há hoje quem cante para as suas plantas, para que cresçam bem? Assim, pensar por analogia não decorre de uma simples projeção para a natureza de relações de parentesco porque são dominantes na estrutura social das sociedades “primitivas”. A razão é outra: A reprodução de uma economia de caça e coleta só é possível se a sociedade tiver muito clara a necessidade constante de um reequilíbrio entre a comunidade humana e as espécies da natureza, em particular as espécies de animais caçados. A personificação dos espíritos animais (e também dos vegetais) é assim uma necessidade para que se possa pensar relações de reequilíbrio com a natureza. Ao contrário dos modos de produção que surgiram depois, os caçadores/coletores apostam – não nas forças produtivas humanas – mas nas próprias forças produtivas da natureza, propiciando às espécies, através de períodos de não-punção (há um escalonamento de espécies visadas, durante o ano), o reequilíbrio necessário. Podemos esquematizar as relações com a Natureza e as relações entre os membros da comunidade de caça-coleta da seguinte forma: A. Relações internas à comunidade: TROCAS POSITIVAS de bens e serviços – do setor masculino para o feminino: produtos da caça; do setor feminino para o masculino: produtos da coleta, plantas em geral; B. Relações entre a comunidade humana e o que nós chamamos de “natureza” – os caçadores dão morte aos animais. Para que haja reequilíbrio é preciso: respeitar os tabus, escalonar os produtos (o que é exercer “não-punção”)

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e aceitar a morte, pois os mortos servirão de alimento aos animais e de adubo para as plantas. Estas são o que chamamos TROCAS NEGATIVAS (ou, como dizem os arqueólogos americanos, “negative-feedback”). Qual a razão dos mitos falarem de alianças entre espíritos animais e seres humanos? Acontece que as relações entre comunidade e espíritos animais (a espécie) são representadas como formando relações alimentares (o alimento que dá vida). Uma mulher que se perde na mata e morre é como se ela tivesse sido raptada por um espírito animal. Ela não dará mais origem a novos caçadores nem a novas futuras mães de caçadores; ela se torna alimento dos seres nãohumanos (animais e vegetais) que alimentaram os humanos. E isto é uma “troca” sentida como necessária para que a vida possa continuar. Pode-se dizer que são como “estruturas alimentares de parentesco” (a expressão é de Meillassoux). As mortes humanas pagam as mortes dos animais; é como se fosse uma “troca negativa” (Sahlins, em “Sociedades tribais” usa essa designação para os roubos entre tribos vizinhas; aqui se trataria de “roubos de vida”). E é isto que nos dizem os mitos. Não é simples pensamento por analogia. A analogia esconde outras realidades. Aliás, é também uma tática dos caçadores irem ao encontro da caça (os animais têm conotação feminina para o caçador) como se eles a fossem namorar e não matar: a imitação de gritos de animais para chamar os da espécie, a imitação de cheiros, ou – nos rituais – a imitação de danças das aves (que inspirou Stravinsky em “O Pássaro de Fogo”) falam dessas formas do caçador disfarçar o ato de dar morte. Lembremos que o informante de Dolmatoff lhe disse que se fala “coabitar” quando se vai caçar, e “caçar” ou “pescar” mulher, quando se vai namorar. Assim, voltando ao exemplo dos Achuar, que acreditam que os seres que têm alma (‘Wakan’) podem entender o que os humanos falam deles: Contudo, a palavra pronunciada exige precauções; embora endereçada a uma muda de mandioca, o ‘anent’ de Entza só menciona o objeto de suas preocupações através de uma metáfora, o sabão vegetal ‘sekemur’, cuja raiz volumosa lembra a da mandioca. A alma dos cães assim como a das plantas não suporta interpelações demasiado diretas. A sensibilidade desses interlocutores suscetíveis se rebelaria diante da exposição explícita daquilo que os homens esperam deles, e deve portanto ser poupada por injunções indiretas que mitigam a crueza das exigências e até o nome do ser destinado a encarná-las. (DESCOLA, op.cit. p. 120)

É compreensível que os astros, que “andam” no céu sejam concebidos como “personas”. Quantos séculos se passaram na história da humanidade ocidental até que se admitisse que é a Terra que gira em volta do Sol e não o contrário? E é natural que se concebesse Sol e Lua como seres superiores mais poderosos que o homem. O Sol que amadurece os frutos e a Lua que provoca as marés fazem coisas mais incríveis do que os homens. Obviamente, os indígenas, não tendo lunetas, não poderiam saber o que os ocidentais descobriram em astronomia, mas também somente com os modernos telescópios, e não antes.

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O pensamento selvagem é mais humilde do que o pensamento científico ocidental. Os indígenas não se dizem inventores disso ou daquilo. Muitas coisas que sabem dizem ter aprendido com os animais. Não são etnocêntricos e arrogantes como os civilizados de hoje, que querem ter patentes sobre tudo o que pensam ter descoberto que, em geral, são coisas e práticas que sempre existiram. Como o próprio mundo já existia quando o homem nele surgiu. Assim que o mito de origem dos Baruya é mais fiel à realidade do que a Gênese bíblica. Tudo já existia. E os caçadores/coletores precisam querer que o mundo, depois de ordenado, continue assim mesmo, para que a sua prática de caça-coleta possa continuar. Lembro aqui de uma observação de Don Juan a Carlos Castañeda (1972), de que o melhor homem que já existiu neste planeta foi o caçador, porque os seus pés não deixaram marcas na Terra. O pensamento selvagem não é, como pensa Godelier (aliás, seguindo LéviStrauss), “el pensamiento en su estado espontáneo” (p.379). Ele é um pensamento igualmente “domesticado” – naturalmente não para acumular – mas, justamente, para procurar continuamente reequilibrar as relações entre comunidade humana e o que nós chamamos de “natureza”, e isto significa não acumular. Godelier erra em seguir Lévi-Strauss que vê no pensamento selvagem “una lógica original, expresiva directa de la estructura del espíritu (y detrás del espíritu, sin duda del cérebro)” (p. 382). Marx e Engels certamente não teriam concordado com essa explicação biologizante. É o cérebro humano que se estruturou com a prática da caça e coleta, atividade original da humanidade como um todo: Primeiro o trabalho e depois dele e com a palavra articulada foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano – que, apesar de toda sua semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição (“Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem”) (1977: 61-74)

E não é necessário ser marxista para perceber que as atividades humanas foram fundamentais para o aparecimento do Homo Sapiens: A análise fenomenológica de A. Bello em “Culturas e Religiões” reconhece que: “Com efeito, a atividade humana é determinante para compreender a passagem da natureza para a cultura” (1998:42). E é o próprio Godelier que cita Marx (da “Ideologia alemã”) quase no fim do texto, sem tirar da citação a devida lição (1977:390, nota 43): Al contrario de lo que ocurre en la filosofia alemana, que desciende del cielo a la tierra, aqui se asciende de la tierra al cielo...Se parte del hombre que realmente actúa

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Silvia Maria Schmuziger de Carvalho y, arrancando de su proceso de vida real se expone el desarollo de los reflejos ideológicos y de los ecos de ese proceso de vida ... La moral, la religión, la metafísica y qualquier outra ideología, las formas de conciencia que a ellas corresponden, pierden así la aparência de su propia sustantividad. No tienen su propia historia ni su próprio desarrollo, sino que los hombres que desarrollan su producción material y su intercambio material cambian también, al cambiar su realidad, su pensamiento y los productos de su pensamiento. No es la conciencia la que determina la vida, sino la vida la que determina la conciencia.

Por que Marx não aplicou essas observações às sociedades de caça e coleta? Na realidade, quase ninguém conhecia no século XIX essas sociedades. Marx conhecia o “modo de produção asiático” e, através dos romanos, um pouco das sociedades germânicas, através de Morgan, algo dos iroqueses. Como já referido, a imagem que Marx geralmente fazia da sociedade paleolítica, de caçadores, era que se tratasse de grupos formando como que rebanhos, que seguiam, sem questionar, um chefe (que, aliás, os enganava...era um “feiticeiro”). Ele não lhes atribuía uma práxis. Em um outro texto da mesma coletânea, “Fetichismo, Religión y Teoria General de la Ideologia en Marx”(p.321 a 345), Godelier discute as idéias de Marx e Engels. Cita, à p.331, um texto de Marx (sobre as sociedades pré-capitalistas): El bajo nível de progreso de las fuerzas productivas del trabajo y (...) La natural falta de desarrollo del hombre dentro de su proceso material de producción de vida, y, portanto, de unos hombres com otros y frente a la naturaleza (...) se refleja de um modo ideal en las relaciones naturales y populares de los antiguos

Godelier concorda com Marx, escrevendo: Nos encontramos ante una razón negativa, privativa en cierta forma, ya que consiste en la falta de desarrollo de la dominación práctica de los hombres primitivos sobre la naturaleza, en la ausência de uma división compleja del trabajo, en la ignorância de los mecanismos profundos de la naturaleza y de la história. (p.332)

Marx, como muitos historiadores atuais ainda o fazem, supervalorizou o neolítico. Achava que antes, no paleolítico (de caça-coleta) os “primitivos” não tinham conseguido um desenvolvimento da dominação prática sobre a natureza, ignorando os seus mecanismos profundos. Hoje percebemos que, para conseguir a reprodução de seu meio de produção, os caçadores/coletores simplesmente não têm intenção de dominar a natureza (seria um contra-senso, algo irracional, uma hybris). Quanto a não conhecerem os mecanismos “profundos” da natureza, conheciam ao menos muito melhor do que nós o que lhes era importante, cada espécie animal diferente (com seus hábitos, seu ciclo de reprodução, suas necessidades, etc.), as espécies vegetais, seus ciclos, e todo o meio-ambiente de seus territórios. E, até pela leitura de Lévi-Strauss, sabemos que foi pela contínua observação, que adquiriram, empiricamente, um vasto conhecimento. Os próprios

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tabus de caça podem comprová-lo: alguns animais que se reproduzem muito e em seguida, assim como, por exemplo, a lebre e também o pescado podem ser caçados durante o ano todo; outros, de reprodução mais lenta e com menos filhotes, não. E isto não acontece só entre sociedades indígenas atuais, pois a arqueologia já o atestou em áreas de povos pré-históricos (Stuart Struever, 1971). Outra idéia errada que se fazia das sociedades de caça/coleta é que os bandos viviam sempre em movimento atrás de recursos que se esgotavam, sempre pressionados pela fome. Hoje, a partir de pesquisas entre caçadores/coletores, atestou-se, de cronômetro na mão, que o tempo de “trabalho” (caça, coleta, pesca) de mulheres e homens nessas sociedades era em média , às vezes de 3 horas e meia, às vezes de 4 ou 5 horas diárias, e que assim satisfaziam plenamente as suas necessidades materiais. Se nos séculos XVIII ou XIX foram descritos grupos indígenas passando necessidades, esta situação era decorrente dos avanços da colonização e da restrição de seus territórios. Aqui no Brasil, durante a ditadura militar, a construção da BR 264, atravessou o vale do Guaporé, área tradicional dos caçadores/coletores Nambikwara. Estes foram transferidos para a estéril chapada dos Parecis, de onde tentaram voltar a pé. Os poucos que conseguiram resistir, estavam num estado de desnutrição tal, que não conseguiram ser salvos. Colin Turnbull (1987) fez uma pesquisa entre caçadores/coletores nômades do norte de Uganda, do que resultou o livro “Les Iks – survivre par la cruauté”, terrível de se ler! O vale de Kidepo, seu território tradicional de caça, foi convertido pelas autoridades em parque nacional, para preservação da fauna e flora. Os Iks não podiam mais entrar nele, e a administração pretende que eles se tornem agricultores. Mas a área em que eles ficaram restritos é a região montanhosa próxima ao monte Morungole (seu monte sagrado), e “ce qui y poussait avait séché sur pied et la terre était durcie par la chaleur”2 (p.65). Uma mulher que o autor conheceu “fût encore en prison pour avoir cueilli des plantes dans ce parc de Kidepo, ou seuls les animaux ont le droit de vivre”3 (p.171). Alguns cantavam tristemente, porque tinham fome. E a maioria chegava a rir de sua própria desgraça. As fotografias dos Iks em estado de desnutrição são apavorantes, e grande parte deles acabou morrendo ainda durante a estadia de Turnbull. Mais recentemente lemos “O Enigma do Don” de Godelier, que é, realmente, uma análise importante. Mas queremos levantar uma hipótese com respeito à Kula, chamando a atenção para determinados detalhes a que Godelier parece não ter dado muita importância. 2. “O que ai cresceu secou de pé e a terra estava endurecida pelo calor.” 3. “... estava ainda na cadeira por ter colhido plantas no parque de Kidepo, onde só os animais tem direito de viver.”

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3. Reequilíbrio por trocas em Kiriwina (Boyowa-Trobriand), na Kula Já explicitamos que o modo de produção de caça-coleta exige, para garantir sua reprodução, trocas entre a comunidade humana e a natureza, trocas essas que poderíamos chamar de “negativas”: a morte de animais caçados compensada pela morte de seres humanos (uma troca de mortes, portanto). Mesmo tendo o povo já uma horticultura com roça na floresta, este modelo ideológico não se altera, porque as roças também são apenas “punções” temporárias a uma floresta que se deixa, continuamente, refazer, após dois ou três anos de cultivo. Como já observou Robert Carneiro (“Cultivo de coivara entre os Kuikuro...”), em se tratando de um confinamento em vales fechados ou em ilhas, o ciclo de abertura de roças se torna mais curto, e a floresta não se refaz inteiramente: acaba transformando-se em capoeira. Alem disso, em ilhas, a própria caça tem mobilidade limitada, não pode fugir da presença do homem para outras áreas, como numa floresta mais extensa, e pode mesmo desaparecer. A situação encontrada por Malinowski nas ilhas Trobriand mostra uma população que passou a se concentrar no plantio principalmente de inhame (atividade feminina), sendo que a caça acabou substituída quase inteiramente pela criação de porcos (atividade masculina). Além de espíritos da selva (os tokway) a que se tem que fazer um encantamento para que abandonem a árvore que se cortará para fazer canoa, somente no oceano subsistiu um “ser terrível”, um espírito que pode exigir troca de morte, no antigo esquema da caça: o tubarão (ou espírito tubarão) e a ele e ao mar associadas as bruxas (mulukwausi), as pedras vivas (vineylida) que ameaçam as canoas e ainda o kwita (um polvo gigante). Os porcos criados se os mata de forma extremamente cruel, com longas varas entre as patas amarradas, colocados sobre fogueiras, “chamuscados até a morte ou, pelo menos, até a insensibilidade” (Malinowski, 1978:164). Riem dos seus gritos de dor. Vê-se claramente que no imaginário trobriandês, os pobres bichos não têm mais nenhum espírito protetor, como o têm os animais selvagens caçados, nas economias de caça-coleta. Os humanos que os criam os transformaram em objetos sem alma. O equilíbrio entre produtos masculinos e produtos femininos é restabelecido quando as mulheres começam a se queixar demais de que as suas roças estão sendo invadidas pelos porcos. Consultados os ancestrais, estes pedem sacrifícios de porcos. Se há um supérfluo de inhame, ele não é distribuído; ele pode ser trocado por peixes de outro distrito (wasi, 1978, p.150) ou simplesmente acumulado nos paióis dos chefes (como ostentação que garante um status), inclusive até que apodreça. Pode-se argumentar que, neste caso, não faz falta alguma que o alimento não seja distribuído, pois “os nativos não dão valor às coisas úteis e até

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mesmo indispensáveis que são difíceis de conseguir, visto que todos os artigos de primeira necessidade podem ser facilmente obtidos pelos habitantes de Trobriand” (1978: p.81). Alem disso, com referência a outros artigos, há distribuição: “o chefe tem que dividir com os outros nativos seu estoque particular de tabaco e de nozes de betel” (idem). Mas, de qualquer forma, no caso do inhame, em vez de distribuição, repartição, é um desperdício que vai se impondo. É verdade que a ideologia da repartição continua existindo: A riqueza é (...) o principal indicio de poder, e a generosidade sinal de riqueza. Com efeito, a avareza é o vicio mais desprezado, constituindo entre os nativos a única coisa sobre a qual eles fazem criticas morais realmente acerbadas. A generosidade, por outro lado, é tida como essência da bondade” (1978:81). E os nativos “pressupõem que qualquer pessoa deve naturalmente partilhar seus bens e deles ser o depositário e distribuidor. (p.83)

Voltando às trocas na Kula, a nossa hipótese é que elas correspondem à outra coordenada que, nas economias de caça, se refere às relações entre comunidade humana e o que nos chamamos de “natureza”: comunidade versus espíritos animais, isto é, o outro mundo. E se trata no caso de trocas positivas entre determinados parceiros. A travessia de mares perigosos (1978:83) parece ser, simbolicamente, a travessia para o além, um além perigoso (e, de fato, assim parece ser, pelos próprios perigos imaginários e reais do mar e o fato de que, ao menos em Dobu4, encontrava-se um povo praticante de antropofagia ritual). Que se trata de trocas simbólicas de reequilíbrio, parece provar o fato do circuito de colares se fazer sempre em sentido horário e o de braceletes ao contrario (sentido anti-horário, p.79), num vai e vem, e que um circuito é tido como masculino e o outro como feminino, como que estendendo as trocas internas à comunidade para o âmbito comunidade versus natureza: “Uma outra expressão simbólica é a do casamento dos mwali braceletes, símbolos femininos, e dos soulava colares, símbolo masculino, que tendem um para o outro, como o macho para a fêmea”(Mauss, 1974, vol. II, p.81). Em Samoa temos, nas trocas rituais, os bens masculinos (oloa) e os femininos (tonga), para os quais Turner (citado por Mauss) dá a seguinte tradução: “oloa = foreign; tonga = native” (Mauss, idem, p.50-51). O termo “foreign” se refere também a bens oriundos dos brancos. Entre os nossos indígenas, os xamãs que são os intermediários entre a comunidade humana e o mundo outro recebem, em “pagamento”, por seus 4. “Os habitantes do Sul eram para os Trobriandeses sócios e competidores, inimigos e hospedeiros – neste último caso, em mais de um sentido, pois, por vezes, toda uma tripulação de marinheiros trobriandeses era aprisionada e comida pelos seus vizinhos” (MALINOWSKI, “Introdução ao livro de R. F. FORTUNE, Os Feiticeiros de Dobu, Liv. Bertrand, Amadora, 1977:18.

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serviços, geralmente adornos, o que pode nos fazer pensar nos vaygu’a (os objetos cerimoniais-colares e braceletes) da Kula. Será que o parceiro de Kula de distritos distantes não estaria exercendo a função de um xamã, para que o visitante pudesse permanecer em segurança no mundo “outro”, longe de sua aldeia? Escreve Malinowski: “Não costuma haver intimidades muito grandes entre dois parceiros de além-mar. Porém, em severo contraste com a hostilidade básica existente entre dois nativos estranhos um ao outro, esta relação de amizade sobressai” (p. 209). Interessante é que “o parceiro de kula tem um animal auxiliar, um crocodilo, que invoca e que deve levar-lhe os colares (em Kitava, os mwali)” (MAUSS, 1974-v. II, p. 80). Bem, ter um espírito animal auxiliar é uma característica dos xamãs. Aliás, Philippe Descola, em “As Lanças do Crepúsculo” (2006), descreve entre os jívaros Achuar, uma situação que nos faz pensar na Kula: O comércio entre amigos nem por isso acaba com os enfrentamentos intertribais; precede-os e prolonga-os, orienta-os em alguns casos e às vezes até contribui para suspendê-los. Desde tempos imemoriais os Shuar do alto Makuma são, ao mesmo tempo, inimigos tradicionais dos Achuar do Kapawi e seus parceiros de escambo: no Kapawi é que os Shuar vinham, ainda uns dez anos atrás, buscar cabeças para reduzir e era naturalmente para o Makuma que o povo de Capauari lançava suas expedições de represália. Esse relacionamento hostil não impedia, aparentemente, que os “amik” de ambas as tribos se visitassem com toda a confiança, o anfitrião garantindo pessoalmente a segurança do seu convidado durante sua estadia, e mesmo escoltando-o, na volta, até o limite onde a segurança de um punha em risco a segurança do outro. Os amigos cerimoniais gozam assim das garantias de imunidade geralmente concedidas aos diplomatas. Sabe-se que se trata de um status bastante prático para ir espionar os inimigos, discutir com eles a suspensão temporária das hostilidades ou estabelecer uma mudança de alianças. Foi por esse tipo de intermédio que se estabeleceram, não faz muito tempo, os primeiros contatos entre os missionários evangelistas do Makuma e os Achuar do Kapawi, iniciativa que esses últimos acabaram por aceitar justamente a fim de preservar seu abastecimento em bens manufaturados que uma permeabilidade menor da floresta com o Peru vinha tornando incerto. Se, por um lado, dívidas de morte e dívidas de riqueza se unem para tecer a trama do relacionamento geral entre as tribos, por outro, elas nunca coexistem num relacionamento singular entre um Shuar e um Achuar, o compromisso de trocar objetos excluindo todo e qualquer recurso à vingança. Comprovada em toda a Amazônia, essa associação paradoxal entre guerra e comércio talvez seja o único meio de resolver uma contradição, comum a todos os povos da região, entre o irrefreável desejo de autonomia experimentado por vizinhos demasiado parecidos e a necessidade, característica de todo agrupamento humano, de definir a própria identidade colocando-se como termo de relação de troca com o outro. (p. 192/193)

Mas há ainda outra característica da Kula que nos faz pensar, como dito acima, que o parceiro de Kula possa representar uma espécie de xamã: como escreve Malinowski, o fato de que “em determinados distritos, os quais não pertencem às ilhas Trobriand, o Kula está associado a festas mortuárias chamadas so’i” (1978: 85), e que “o vaygu’a... constitui a oferta mais eficaz para ser dada aos espíritos,

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aquela através da qual eles podem ser induzidos a um estado mental agradável; para tornar suas mentes boas”(p.367). Pensamos assim que as trocas que chamamos de “positivas”, no interior da comunidade, entre bens (plantas, coleta) e serviços femininos trocados por bens (caça) e serviços masculinos, acabam se estendendo na Kula na forma de uma corrente de adereços femininos, vinda ao encontro de uma corrente de adereços masculinos, abrangendo o mundo além do mar, região onde vive o “Outro”, inimigo, outrora espírito da caça (com o qual se tinha ou ainda tem, trocas “negativas”, de morte paga com morte). Talvez essa nossa hipótese possa colaborar para esclarecer um pouco mais “O Enigma do Don” (2001), que Godelier termina, mostrando que na sociedade ocidental de hoje, o que sobrou do Don são apenas as doações de caridade (...) que, no entanto representam um trajeto de mão única, dos ricos para os pobres, e evidentemente não atingem qualquer reequilíbrio. A essas observações de Godelier, pode-se acrescentar: que isto acontece quanto à situação no interior da comunidade humana. Quanto ás relações humanidade versus natureza, estas estão destruindo de tal forma a natureza, que é praticamente impossível reequilibrá-la dentro de um sistema como o capitalismo que tem no lucro a sua base e meta. As considerações acima devem ser entendidas como uma resposta a Malinowski, quando escreveu: “O que podemos esperar encontrar em outras partes do mundo são as idéias fundamentais do Kula, seus arranjos sociais em sua linha geral, e o pesquisador de campo deve encontrá-los” (p.368). Mauss já se preocupou com parte disso em “Sobrevivência desses princípios (da kula) nos direitos e economias antigos”. Nós tentamos aqui levantar hipóteses a partir do que se sabe hoje de sociedades de caçadores/coletores/pescadores e horticultores de floresta: o hau da floresta é, nessas sociedades, o jaguar, cobrando do caçador as mortes infligidas aos animais.

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2. O Trickster como Personificação de uma Práxis1 Silvia M. S. de Carvalho2

Este artigo propõe um caminho novo para a análise de mitos. Parte do pressuposto de que a estruturação do universo simbólico (como característica de toda linguagem – pensamento) aparece como concomitante à organização do trabalho e a partir da reflexão sobre o processo de trabalho. Não foi tão-só o trabalho como exercício, como ação, que determinou as transformações neurofisíologicas do cérebro humano; foi o trabalho no seu sentido mais lato, abrangendo a divisão sexual das atividades, as trocas mútuas dai resultantes, e a preocupação e conseqüente planejamento referente às condições que permitirão a reprodução deste mesmo modo de subsistência original da humanidade. E, uma vez que a humanidade surge baseando sua subsistência, durante muitos milênios, exclusivamente nas atividades de caça/coleta, não há como explicar as modificações e transformações que ocorrem no pensamento, referentes à visão do mundo dos povos, a não ser que tenhamos entendido como esse pensamento é produzido numa economia de caça e coleta. Entendo que os mitos precisem ser decodificados a começar pela busca de uma razão para a própria existência da estrutura. Esta deve representar a equação de uma problemática fundamental para a espécie humana, e eu creio que esta problemática diz respeito justamente às condições de reprodução do sistema de adaptação dos seres humanos, de que depende, evidentemente, também a possibilidade de reprodução destes últimos. Outros já apontaram a necessidade de se buscar um significado oculto da estrutura. Walter Burket por exemplo, observa que “na mitologia grega se encontram “duas coordenadas” estruturais, homem/animais e aqui/além; isto cotejado à conexão intima que estabelecem as sociedades que praticam o xamanismo entre o domínio dos animais e o além, faz pensar que a unidade “estrutural” não passa de um epifenômeno derivado de um princípio unificante mais profundo” (2:778). Admitindo-se que este princípio seja a necessidade de estruturação da representação das trocas ou relações, poderíamos considerar num dos pólos a comunidade humana e, no outro, o mundo exterior (a Natureza) de que a humanidade tira o seu sustento. As atividades de subsistência poderiam ser representadas como relações negativas

1. Artigo publicado originalmente na Revista Perspectivas, ano 1985, 177-187 p. 2. Departamento de Antropologia, Política e Filosofia – Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação – UNESP – 14800 – Araraquara-SP.

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(de “punção”3 na terminologia de Meillassoux) uma vez que os seres humanos “arrancam” da Natureza os animais caçados e os produtos coletados. As trocas (representadas de forma simplificada, também) seriam predominantemente “positivas” no interior do “mundo humano”, com o setor feminino repassando ao masculino parte do que foi coletado, em troca do que foi caçado:

figura 1 A preocupação com a reprodução do próprio sistema adaptativo (reprodução que, em condições não implicando domesticação só é possível se houver cuidados suficientes para que a Natureza se restabeleça por ela própria) faz com que a representação dominante das relações do mundo humano com a Natureza seja a de “trocas negativas”: a morte da caça é “compensada” com a morte dos seres humanos, o que explica em grande parte o simbolismo dos ritos fúnebres, em que o cadáver é manipulado como se fosse um “artigo de troca” com a Natureza. Isto faz com que nenhuma morte seja pensada como fortuita: ela sempre é tida como de certa forma provocada para compensar a morte da caça.

Figura 2

3. Penso que este termo corresponde de forma mais precisa ao termo em francês empregado por MEILLASSOUX (“punction”). O termo usado na tradução aqui citada (“exploração”) remete imediatamente à idéia de predação, que é típico do sistema capitalista.

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Nesta “compensação” estão compreendidas naturalmente também o infanticídio e a matança ritual dos velhos (onde eles existem) que tem portanto um caráter de sacrifício e uma função evidente de controle populacional, praticado pela maioria dos caçadores/coletores. Além disso, certas praticas, definidas como “negative-feed-back” pelos arqueólogos americanos, devem ser rigorosamente observadas pela comunidade: é o escalonamento dos produtos consumidos, através do cinegismo (e este planejado objetivando-se uma vantagem máxima para a comunidade com um prejuízo mínimo para a Natureza), completando e regulamentando estas práticas e ainda as proibições que conhecemos sob o nome de tabus. Povos caçadores/coletores conseguem, pois, manter efetivamente o equilíbrio ecológico através de uma pratica consciente de “realimentação negativa”. Pode-se perceber muito bem que um controle deste tipo, necessário para que a comunidade toda possa continuar existir, se mostra muitas vezes restritivo ao próprio ser humano: pode acontecer que em determinadas ocasiões uma mãe tenha que renunciar a ter mais um filho, ou um filho se conformar com o abandono dos pais decrépitos. E os heróis culturais que ensinaram aos homens as técnicas de sobrevivência neste contexto só podem mesmo ter características “tricksters”. Pretendo mostrar que as próprias ações dos “tricksters” são, em linhas gerais, o modelo superestrutural dessa prática de “reposição negativa”. Análises anteriores sempre procuram fazer uma tipologia das divindades ou, para usar um termo mais abrangente, das entidades míticas. Uma das primeiras tentativas, a de Usener, mais conhecida aqui através de Cassirer (Linguagem e Mito), já estabelece diferenciações baseadas nas ações dessas entidades (deuses “momentâneos”, deuses “especiais”). A antropologia funcionalista presta maior atenção a atividades atribuídas aos seres mitológicos, mas a tipologia em deuses criadores, heróis civilizadores, revela o critério, digamos assim, antropocêntrico no sentido imediatista dos benefícios ou resultados em geral que as suas ações trazem para o mundo humano (representado como se este fora estático). A análise estrutural, por sua vez, retém como significativo apenas o caráter mediador (entre dois opostos) das entidades míticas que, não raro, fracassam nessa mediação (a mediação impossível. Além disso, trabalha com uma ênfase especial na oposição Natureza-Cultura). Se pensarmos na figura do “trickster” numa perspectiva funcionalista, é necessário definir melhor sua função: 1) Como todas as entidades míticas, ele estabelece, antes de mais nada, uma relação simbólica entre o mundo humano e o da Natureza.

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2) Esta relação tem uma característica peculiar diferente da estabelecida por outra 3) As entidades míticas: ela toma freqüentemente o “partido da Natureza” contra o mundo humano. 4) Segundo W. Otto, os deuses “mais antigos de povos que se tornaram plantadores e criadores têm características “tricksters” (Urano, Cronos do panteão grego). Estas também caracterizam especialmente as entidades míticas dos caçadores/coletores (e agricultores de florestas) atuais.4 5) Conseqüentemente, pode-se supor que a figura do “trickster” corresponda a uma função simbólica reequilibradora das relações Homem x Natureza; função essa também altamente educativa, na medida em que impõe respeito pela Natureza. 6) O mito de reequilíbrio entre o mundo Humano e a Natureza só se torna alienante com a transformação do sistema de caça/coleta, pois a ação “trickster” é justamente inspirada em atividades e prescrições seguidas durante milênios, pelos caçadores.5 Pensando a analise estrutural, parece-me que é preciso pensar em outro tipo de oposições que as do pensamento puro (alto-baixo, frio-quente etc.) A oposição, mais abrangente, entre Natureza e Cultura deve ser entendida um pouco mais como oposição entre mundo humano e mundo da natureza, na medida em que o primeiro é um antagonista do segundo do qual tira seu sustento. Esta oposição corresponde, em linhas gerais a dois princípios: o da identidade (“Nós”, envolvendo todos com quem se reparte) e o da alteridade (o “Outro”, de cuja morte depende a “nossa” vida). O conhecimento que hoje temos dos sistemas adaptativos de caça/coleta (e mesmo de agricultura de floresta) autoriza afirmar que os caçadores não podem deixar de reconhecer nesta oposição uma preocupação central, pois é necessário que a Natureza se restabeleça da punção sofrida para que o sistema adaptativo

4. A importância de se estudar a religião dos caçadores não é, pois, como pensava Durkheim, o fato dela repousar sobre formas mais simples de representação, mas o fato de representar a visão do mundo específica da humanidade original, exclusivamente caçadora/coletora. 5. É que o pensamento mítico absorve e reelabora continuamente novos elementos, integrando os dados de experiências econômicas sociais novas, mas sem eliminar de todo a dramatização de práticas antigas (que se tornaram atributos de divindades) praticas estas que outrora efetivamente reequilibravam as relações internas (dentro da comunidade) preservando o equilíbrio ecológico (ou externo), e, que, com a mudança para outros modos de produção, evidentemente desapareceram.

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possa se reproduzir; trata-se, portanto de uma preocupação existencial e, ainda que as mediações possam mascarar a própria oposição, é ela que informa as equações e que propõe a necessidade de se pensar as relações como verdadeiramente estruturais.6 A prática consciente (ao menos para o ser humano vivido, experiente) da realimentação negativa da Natureza, de que se falou acima, parece ter na figura do “Trickster” o seu modelo inconsciente. Se esta hipótese for correta, certas características do “trickster” têm que corresponder às praticas de “realimentação” referidas, conforme um esquema que, em grandes linhas gerais, se apresenta como segue: Pratica Efetiva do Grupo

Característica “trickster”

a) Nomadização

a.1 hábitos nômades

a.2 capacidade de se deslocar dentro da terra, em água e no ar.

b) Escalonamento da produção

b.1 inventor de técnicas diversas de subsistência (armadilhas, armas)

b.2 capacidade de se transformar sucessivamente em vários seres não-humanos que, por sua vez, funcionam como armadilhas e armas.

c) Observância de tabus alimentares e outros

c.1 estabelece necessidade de um sistema de tabus, na medida em que ele cria a quebra do “equilíbrio” original instaurando o “desequilíbrio” pela infração primordial.

c.2 castiga os infratores de tabus.

d.1 estabelece (frequentemente original) d) Controle de população

A náloga

do

Característica que o identifica ao “Outro”

as leis exogâmicas após um incesto

Submete a si próprio a mortes , elimina velhos, faz fracassar a possibilidade de ressurreição ou de vida eterna, embora figurando geralmente como criador dos seres humanos

d.2 rapta crianças, transforma pessoas em pedras, em animais, cobiça e violenta mulheres ou, na forma de animal fêmea, também a homens.

Creio que não cabe aqui fazer uma demonstração destas características apontadas acima, através de uma pesquisa exaustiva na mitologia de povos caçadores/coletores. Pode-se, mesmo, objetar que nem todos os povos caçadores têm ou revelam um corpus mítico considerável. Isto não impede, contudo, que existam histórias contadas sobre os “primeiros homens” (avós ou bisavós dos atuais) e rituais de caça que são de certa forma episódios revividos dessas histórias, ainda que sem um modelo claramente personificado.7 6. É o “equilíbrio” inerente à estrutura que faz com que, nas transformações desta ultima, tal como concebe LÉVI-STRAUSS, a alteração de um termo implique na modificação de outro ou de outros. 7. É o que acontece no mito das Andanças dos ancestrais dos Kobéwa, em que muitos ancestrais (apenas uns poucos nominados) percorrem o território ate chegarem ás cabeceiras do Cuduiari. Transformadores como Makunaíma realizam neste sentido varias façanhas, a mais

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Além do mais, a representação que os caçadores se fazem do espírito protetor das espécies que caçam (que se costuma designar como “senhor dos animais”) caracteriza com muita freqüência este espírito como mulher, pois a própria caça tem para o caçador uma conotação feminina. Às vezes se trata de um espíritoiniciador (a “esposa-animal”). Assim, o chefe Yanomami Fousiwe descreveu sua iniciação na floresta, pelas “Hekouragnoma”, que lhe substituíram magicamente as cordas vocais (Biocca, 1968). Teríamos, assim, que considerar também a figura da “mulher-trickster”, categoria que corresponde, na mitologia grega, à Hebe (a Diana Caçadora), à Circe da Odisséia (que transforma homens em animais), à Baba Yaga russa (a terrível mãe da floresta), à divindade castradora dos caçadores siberianos (e aqui se encaixa o motivo da “vagina dentada”) e as tantas outras “mães do mato” ligadas à caça ou mesmo outras “senhoras dos animais” ligadas à pesca, desde a sangrenta Sedna das profundidades oceânicas dos mitos esquimós, até as Sereias do Velho Mundo (que enfeitiçaram com seu canto) e as suas equivalentes no Brasil colonizado, Yemanjá e Yara. Não é difícil perceber a lógica de tal oposição Homem x Mulher. Voltando à Fig. 1, percebe-se que as trocas entre o Homem (caçador) e a Mulher (coletora) são trocas de bens (e evidentemente também de serviços sexuais, visando a reprodução biológica). O “mecanismo nivelador” (aqui sempre entendido como abrangendo as relações Mundo Humano x Mundo da Natureza... porque é bem assim que se apresenta o mecanismo de reposição do modo de “punção”) tende a apresentar, no imaginário, os termos das relações com sinais invertidos: relações negativas entre Homem e Mulher (relações castradoras) e relações positivas entre Caçador e Caça (a aliança com a “esposa-animal”). É esta uma das razões8 por que as mais arcaicas divindades, além do seu caráter “trickster”, revelam também uma ambivalência sexual: elas são andróginas, tal qual os personagens de muitos mitos recolhidos por Barbosa Rodrigues, cuja análise poderia finalmente ser tentada, já que na proposta que aqui se faz não importa muito o fato de muitos deles não terem sido recolhidos diretamente nas aldeias, de informantes indígenas. Não será possível, também, encontrar hoje uma mitologia de povos caçadores/ coletores na qual já não tenha ocorrido reinterpretações, a partir das experiências traumatizantes dos contatos com a frente de expansão capitalista. De qualquer curiosa de todas sendo a de um dos ancestrais que volta a se transformar em anaconda porque chega à conclusão que não vale a pena ser homem. (Mito publicado por Irving GOLDMAN e analisado por mim (1979: 77-118). 8. Esta razão me parece mais forte que outras, quais sejam a tentativa do pensamento indígena, ainda que a nível inconsciente, de superar contradições ontológicas.

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maneira, no entanto, a mitologia da caça é resistente, pois é a mitologia original e, muito tempo depois que a sociedade se tornou horticultura, é ela ainda a representação dominante. Aliás, a horticultura de floresta não elimina as práticas de caça e coleta, apenas as complementa. Conserva, além disso, ela própria, um “caráter cinegético”, repondo a floresta também no sistema de “negative feedback”, uma vez que as roças se deslocam ao longo dos anos, com a abertura de roças novas para que a floresta retome as velhas, após 3 – 4 anos de cultivo (Carneiro, 1985;12). Como é o homem quem derruba as arvores, no preparo da roça, é ele ainda que exerce a função agressiva, e essa derrubada de arvore se constitui num mitema importante para os povos que se tornaram sedentários mais recentemente.9 O plantio das roças – este constituindo comumente atividade feminina – não representa, naturalmente, ao menos com referencia às plantas cultivadas, uma “agressão” (como ocorre na caça), mas é justamente o contrário10: uma interferência no sentido de incrementar a reprodução das espécies vegetais plantadas, inaugurando desta forma uma adaptação diferente, que constitui verdadeiramente um “modo de produção”. É claro que a existência de tal “modo de produção” – mesmo que este só complemente e não exclua o modo de exploração de “punção” que representam as atividades de caça e coleta – tem seus reflexos a nível superestrutural: ele “atenua” o antagonismo entre o homem e o animal, servindo como mediação, entrando nas relações imaginárias e reais de compensação11. Uma mediação mais efetiva só aparece, no entanto, quando, após um longo desenvolvimento da agricultura, esta se torna intensiva, centralizando as reposições na terra ancestral, onde os mortos estão enterrados, associados simbolicamente ás sementes, numa representação em que os dois “insumos” (as sementes jogadas pelo trabalho humano e os mortos devolvidos ao solo) alimentam a ideologia da propriedade da terra, transferindo gradativamente para os ancestrais – através de um culto aos mortos – a tarefa do reequilíbrio da natureza. Mas este é um processo de produção de idéias muito lento na história da humanidade e só se cristaliza com o aparecimento da religião monoteísta, 9. É justamente na área das Guianas (incluindo a Guiana brasileira) que o tema da derrubada da arvore universal está associado ao do dilúvio, marcando um “fim de ciclo”: o da exclusividade do “modo de punção” no que se refere à obtenção de alimento. 10. E é por isso mesmo, certamente, que a horticultura está geralmente menos cercada por rituais. 11. Como mediação entre o homem e o animal, a mandioca aparece claramente num mito barasana recolhido por Laborde, “Historia de Luna” que mostra o herói que cai de uma rede na casa das onças e tem a queda suavizada, ao cair numa panela com casabe. No mesmo mito, o personagem corta pedaços de cana e os dá às onças para que elas o esqueçam (Carvalho, 1979:187-8). Outra compensação análoga, mas esta real, é que nas roças já se calcula com uma produção excedente, destinada aos animais, às saúvas (Carneiro, 1985:06).

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numa sociedade em que o homem se torna predador do homem e se esquece da natureza12. Mesmo após a introdução de um cultivo intenso de cereais, o vocabulário da caça e pesca continua povoando a linguagem mítica até mesmo para dar conta da passagem de uma ideologia pré-agricola a outra de povo sedentário. É o que nos mostram, por exemplo, com referência à Grécia, J. P. Vemant e P. Vidal Naquet (1977). E ainda sobre esta persistência das estruturas ideológicas da caça e pesca no pensamento grego, um livro de Detienne e Vernant trata da estabilidade notável que tem o conceito de “métis” ao longo de todo helenismo, associando a prática desta “métis” ao “trickster”13 que precisa saber se disfarçar em seu contrário, ele próprio transformado em armadilha (1974: 30-33) ou em formas animais diferentes, para tentar escapar de seus inimigos14. Ora, guiar-se por esta “métis” é, em última análise, estar consciente da necessidade de um equilíbrio e, ainda que Vernant e Detienne tenha relacionado “metis” e “inteligence ruseé”, é a astúcia do caçador que está na sua origem, esta astúcia que exerce a caça como um jogo, que tem suas regras, cuja infração leva ao estado oposto à “métis”: leva à”hybris”... “Koyaanisquatsi”15. A mitologia australiana, registrada desde fins do século passado a partir dos trabalhos de Spencer e Gillen, fornece outro material interessante para uma análise do tipo aqui proposta: nela encontramos uma Serpente mítica primeva, percorrendo o território em todas as direções e “desovando” os ancestrais humanos nos pontos de descanso, ancestrais estes identificados com animais pelos nomes que se lhe dá, e cujas aventuras são longas peregrinações pelo território tribal, até se transformarem, eles próprios em churingas de pedra16.

12. HEUSCH (s/d) vem apontando para a necessidade de um diálogo entre a etnologia e a história estruturalista das religiões. 13. (...) e reconhecendo na arte da caça e pesca seu modelo original. 14. São justamente as divindades mais arcaicas do panteão grego as apontadas pelos autores como tendo essas características mitiméticas: Perichymène, que se transforma em águia, leão, serpente e ainda em inseto (DETIENNE e VERNANT:108); Thiphée, sempre em movimento, ora falando como um deus, ora expressando-se através dos gritos dos animais selvagens cuja forma assume (idem:116): e Thétis, que Peleu consegue prender quando metamorfoseada em lula (idem:156). 15. Palavra hopi que significa “desequilíbrio”. As profecias hopi sobre as consequências de práticas destrutivas inspiraram a GODFREY REGGIO o filme homônimo. 16. Embora parte do material seja constituída de mitos de iniciação em sociedades de homensmedicina, valeria a pena reexaminar também o ciclo mítico winnebago, tratado por RADIN(1956) que trabalha, tal qual Géza ROHEIM (1945), com o nomadismo dos heróis e com outras características e ações dos personagens, numa linha de interpretação psicanalítica.

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Na mitologia americana, a figura do “trickster” tem um papel fundamental. Os primeiros estudos (da chamada “escola alemã”) reconheciam nele um caráter lunar, não tão por acaso, uma vez que a lua parece estar muito mais associada à mitologia da caça do que o sol. De todos os “trickster” indígenas, no entanto, o mais conhecido, no Brasil, é certamente Makunaíma, evidentemente não pela obra de Koch-Grunberg, mas graças a Mário de Andrade, que teve em mãos os mitos taulipang e arekuná, recolhidos pelo explorador alemão. Na realidade os Karib já conheciam provavelmente de há muito a horticultura de raízes17. A mandioca passou a ter uma importância maior, contudo, mais recentemente, quando grupos Aruák do Orenoco desenvolveram centrado na mandioca um verdadeiro “complexo cultural” (Cruls, 1955): raladores, tipiti e grandes pratos de cerâmica usados como forno para assar beiju. Estes pratos aparecem por volta de 1000 d.c (Silva/ Meggers, 1964). Veja-se também, sobre a mandioca, as variedades “doce” e “brava” e suas prováveis origens, e sobre mitos aruák e karib que a elas se referem: A mandioca e os “espíritos temerosos” ( Carvalho, 1979:119-125). Quanto ao milho, Schwerin acredita que os proto-Karib o receberam dos Aruák entre 500 A.C. e os primeiros anos da era cristã (1985:18). Apesar das atividades de roça e da pesca, caça, coleta e trocas continuam determinando deslocamentos consideráveis e, além disso, na época dos contatos, os Karib tinham, como os Tupinambá do litoral, desenvolvido um padrão cultural em que a guerra estava associada à antropofagia ritual18. Pode-se notar também que os feitos de Makunaíma (invenção do primeiro anzol, da canoa) enfatizam a pesca, que o mito já capta em oposição a práticas que eram certamente mais importantes num estágio nômade anterior (caça e coleta de frutos). Há ainda o mito da árvore original, que pode ser facilmente lido como mito de instituição do cultivo de plantas. Ainda assim, seguindo o esquema proposto, pode-se observar que: a.1 as aventuras de Makunaíma se desenrolam para aquém e para além do Roraima (em território brasileiro e das Guianas, na “terra dos ingleses”) a.2 Makunaíma movimenta-se na água (transformado em peixe – KochGrünberg, 1953: 52) e desloca-se juntamente com a casa e a mãe, num abrir e fechar de olhos, para o alto da montanha (Idem:55). Em outro mito, persegue uma anta até o céu.19 17. Mandioca, batata-doce, cará, horticultura que povos Aruák já praticavam no NO da América do sul, por volta de 5.000 a.c. 18. “Trocas, estado de guerra e antropofagia ritual, tudo isso leva estes Karib a percorrerem grandes distâncias, conquistar e se estabelecer ao longo de todo o Orenoco, assim como também na costa Caribenha da Venezuela, na costa Atlântica das Guianas e nas pequenas Antilhas” (SCHWERIN, 1985: 20). 19. Mito também Karib, dos gêmeos Makunaíma e Pia, recolhido por Roth, reproduzido e analisado por LEVI-STRAUSS (1966:185-186, M.264).

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b.1 Makunaíma caça anta com laço sem ser mencionado como seu inventor - Idem:54) e, em outro mito (Lévi-Strauss, 1966:185-6) ele próprio tem a perna cortada pelo laço, numa caçada, ao mesmo tempo em que a anta é por ele flechada. Makunaíma inventa um anzol de cera (que derrete), roubando depois um anzol mais eficiente de um pescador (Koch-Grünberg, 1953: 51-2)20. Num mito makuxi21, Makunaíma inventa a primeira canoa que possibilita domínio maior sobre as águas e, conseqüentemente, a pesca. b. 2 Makunaíma se transforma em peixe, em grilo (Idem:51-3) e em bicho do pé (Idem:55). Além disso, “Makunaíma seguiu caminho sobre as pedras, onde deixou pegadas como se fosse de veado, antas e de todos os animais (Idem:53). c.1 Certamente, a derrubada da árvore de todos os frutos (idem, mitos:4551) é um desequilíbrio original (seguido ou castigado pelo dilúvio). Indica também uma infração do tabu de cortar as árvores frutíferas. Outra infração análoga, a que Makunaíma e Pia (ainda no ventre materno) levam a sua mãe, é a coleta de flores que deveriam ser reservadas para as abelhas. No mesmo relato, os gêmeos estragam o alimento da anta, sacudindo uma ameixeira, derrubando frutos maduros e verdes22. c.2 Makunaíma cria a arraia, enquanto seu irmão e alter-ego Zigué cria a cobra venenosa (Idem:57-8). A cobra venenosa é criada a partir de um cipó, em relação com a árvore os frutos; Makunaíma cria a arraia, mais ligada à pesca, pois vive na água. d.1 Makuníma violenta a cunhada (Idem: 54-6) e ele próprio é morto e esquartejado pelo Piaí’mã, sendo depois ressuscitado por Ma’napé. E também engolido pela lagartixa Waimesá-Pódole (Idem: 61) e, em seguida, salvo pelos irmãos. Num dos mitos recolhidos por ROTH (In LEVI-STRAUSS, 1966:185-6) Makunaíma e seu irmão Pia matam uma velha mulher que lhes deu acolhida (A velha é identificada a uma sapa, cuja pele se torna rugosa após ter sido queimada pelos gêmeos míticos). Makunaíma cria também o homem, inicialmente de cera, depois de barro (KOCH-GRÜNBERG, 1953:50)23.

20. Há uma possibilidade de ser o anzol nesta região um elemento cultural introduzido pelo branco. 21. LEVI-STRAUSS analisa também este mito, igualmente recolhido por ROTH (1966:187-8, M.266). 22. Entre as frutas, são mencionadas também bananas; o cultivo destas possivelmente introduzido pelo colonizador. 23. Outro detalhe significativo. Os povos nômades têm no mel selvagem uma importante fonte de alimento, dai a referência a feitos de cera de abelha. O fato dessa criação “ter fracassado”, mostra que a identificação como seres humanos já passou para a esfera do sedentarismo e da horticultura (pois a cerâmica também está ligada a ela).

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d.2 Makunaíma transforma seres humanos em pedra (em vários mitos recolhidos por Koch-Grünberg). Assume a forma de “peixe voraz” (“Serrasalmo pygocentrus SP” segundo Koch-Grünberg - idem:52, nota 4). A tentativa de compreender como se originaram as significações que se cristalizaram na figura do “trickster” a partir de uma “práxis” dos grupos sociais que elaboram os relatos míticos responde a uma indicação feita por Meillassoux (1978: 99): “(...) é na relação dos caçadores-coletores com a natureza que deveriam ser pesquisadas as contradições que estariam na origem de sua transformação e não no desenvolvimento contraditório do sistema social”, sistema este suficientemente igualitário para não conter contradições que por si só levassem a transformação. O que pretendo deixar claro aqui é que entendo esta “práxis” dos grupos nômades, a que se aludiu, como constituindo realmente uma reflexão muito lúcida destes sobre as condições objetivas em que se dá a prática da caça e coleta, levando a uma “teoria nativa”, sobre a reprodução, não só do grupo humano mas também de outro tipo de “força produtiva” constituído pela própria Natureza. Numa sociedade de tradição oral, evidentemente as artes técnicas são apreendidas diretamente através da observação e pela participação. Todo o corpo de conhecimentos necessários à pratica da caça e coleta é transmitido de forma empírica, todo o ciclo do trabalho (apropriação, distribuição e consumo) é de domínio de todos, assim que seria inconcebível que um povo caçador/coletor não se representasse também muito claramente o processo de reprodução do seu sistema adaptativo: e ele tem para tanto um conhecimento perfeito dos ciclos de reprodução dos animais e das plantas, dos sistemas adaptativos das espécies, das relações simbióticas entre elas, possibilitando um controle perfeito das formas e dos momentos de intervenção do homem nestas relações. Mas, como a consciência social pode representar a necessidade de permitir à Natureza refazerse das punções, a não ser de forma estrutural24, num conjunto em que as relações de compensação são dramatizadas basicamente em oposições binárias, como um modelo do equilíbrio que deverá ser reproduzido pelas gerações futuras? Além do mais, o homem entra como qualquer outro ser vivo, neste fluxo energético da 24. Naturalmente a estrutura nada mais é do que a projeção na ordem da simultaneidade de processos que estão numa relação de causa e efeito e remetem por isso à diacronia (como exemplo, mitos em que caçadores imprevidentes ou ambiciosos matam desnecessariamente grande número de animais, sendo esta hybris castigada na própria volta dos caçadores à sua aldeia, que a encontram devastada pelos espíritos da mata, castigo que pode ser muito bem identificado como a morte pela fome. Enquanto no plano real, contudo, pouca gente ou ninguém comete atentados deste tipo contra a natureza, a vida parecerá marcada pela sincronia, o tempo será sentido como cíclico, e os acontecimentos como transformações no interior de uma estrutura.

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vida, repondo com seu corpo, em forma de adubo e alimentos, o que retirou da natureza para seu sustento. Não é, pois, uma fetichização, uma falsa concepção genética que é responsável pelo zoomorfismo que existe na representação de certos ancestrais ou entidades totêmicas: é o reconhecimento de que o homem, por mais que se diga ou se pretenda diferente de todos os outros animais e das plantas, é um “híbrido”25 deles, na medida em que “somos porque comemos” (e, de certa forma, também somos o que comemos). Mas não só o alimento representado pelos seres vivos, mas também o ar que se respira, o sol que ilumina e aquece, a pureza refrescante dos rios e lagos, a constância das chuvas, a sombra repousante das árvores, o canto dos pássaros, o aroma das flores e plantas, tudo isto depende – nós o sabemos hoje bem demais – da manutenção de um equilíbrio26 que a civilização, principalmente nos países de capitalismo dependente, está destruindo violentamente nestes últimos tempos. Não é, pois, uma preocupação tão só utilitária que se descobre na origem desta estruturação; é realmente uma preocupação com a reposição da vida em toda a sua extensão e qualidade: é uma preocupação existencial resultante “das tenções existenciais e das captações globais do mundo”27. A representação de um equilíbrio de relações estruturadas, dos homens entre si e do mundo humano com a natureza, é o modo mesmo da humanidade – e isto certamente desde o paleolítico (Carvalho, 1982) – se representar o seu “estar no mundo”: equilíbrio que é mais do que garantia de futuro, certeza de permanência. Esta “estrutura-essência” surge com a “práxis” e foi através da “práxis” de caça/coleta que a sociedade humana nasce como complexo estruturado. Pode-se estabelecer, pois, à guisa de conclusões, que a análise marxista do modo de “punção” levada a efeito por Meillassoux – o qual foi muito feliz na medida em que estabelece para a sociedade cinegética, justamente o modo de “punção” (e não “de produção”) como nível determinante, e na medida em que 25. É por isso que a armadura sociológica dos mitos toma a forma de uma rede de parentesco. 26. É claro que a representação do mecanismo pelo qual se mantém este equilíbrio muda de acordo com o desenvolvimento da tecnologia. A “práxis” fornece também um modelo para o entendimento das relações de interdependência. Assim os Astecas (que foram caçadores ate sua chegada ao México e pouco depois surgiram como fundadores de um império) concebiam o sol como um ser vivo, consumindo sangue para manter suas forças, representação coerente com a visão de trocas energéticas dominantes, do mundo da caça. Já entre os gregos pré-socráticos, a prática da domesticação de animais havia transformado as representações, e o sol era concebido como um ser vivo à procura de pastos (cujo modelo possivelmente tem que ser procurado nos bois de Apolo) (GIGON, 1981:.256). 27. MIRCEA ELIADE (1968: 272) aponta justamente neste sentido: “...los simbolos ligados a las fases recientes de la cultura se constituyeron de la misma manera que los símbolos mas arcaicos, es decir como resultado de las tensiones existenciales y de las captaciones globales del mundo”.

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relacionou a curta duração das fases deste sistema (“punção”, distribuição e consumo) à representação pouco profunda do tempo nas sociedades caçadoras – não estará completa enquanto não integrar na análise também o mecanismo de reposição do sistema e como este se articula (simbólica – e efetivamente, pelo controle da população) com o mecanismo de reprodução biológica da comunidade (sistema de alianças matrimoniais: o sistema de trocas de mulheres).

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3. As Sociedades Indígenas Brasileiras e a Ecologia Para EGON SCHADEN (1913-1991) e GIOCONDA MUSSOLINI (1913- 1969), queridos mestres que me iniciaram na Antropologia

Em Ciências Sociais e Filosofia, Lucien Goldman escreveu que o ser humano se define pelas suas potencialidades, pela sua tendência a um equilíbrio com o universo e a uma identidade com os seus semelhantes; com uma moral que deve ser a seguinte: realização através de suas qualidades pessoais; respeito (equilíbrio) frente aos outros seres não humanos ou frente aos inimigos; partilha e solidariedade para com os da mesma comunidade (ou, seja, seus semelhantes). Naturalmente, para os que são religiosos, o espírito humano assim descrito será considerado como que criado por deus (criando o homem à sua semelhança). Mas já Teilhard de Chardin, jesuíta, geólogo e conhecedor das origens do Homem Sapiens a partir de primatas (ele foi um dos descobridores do Homem Ereto de Pequim, e chegou a acompanhar in loco as descobertas dos australopitecos na África), escreveu que Adão e Eva (aliás Adãos e Eva) não surgiram de um ato de deus amassando terra (seria desrespeitar a capacidade divina), mas sim de um longo, muito longo, esforço da Terra (planeta), através de um processo de milhões e milhões de anos. Creio que se pode atribuir essa moral como tendo se constituído na aurora da humanidade, quando ela era essencialmente caçadora e coletora, a partir de pelo menos 500.000 anos, pois os caçadores-coletores e povos ainda hoje de ideologia paleolítica (como diria Viveiros de Castro, 2002) obedecem justamente a esta moral, uma moral em que as religiões ainda insistem, mas mais na questão da relação com os semelhantes, ainda que a sociedade atual esteja muito longe de ser solidária, de partilhar com todos. Quanto ao equilíbrio com o universo (com os outros seres não humanos), substituímos o reequilíbrio pela transformação desses seres (e até dos inimigos humanos) em meros objetos que podem ser vendidos, mortos, destruídos. Quero tentar mostrar que essa moral ainda existe nas nossas sociedades indígenas. A preocupação com um equilíbrio ou, melhor, com um reequilíbrio constante entre a comunidade humana e o que nós chamamos de “natureza” existe em todas as sociedades ditas “minimalistas”. Mas ela se expressa de formas diferentes em cada cultura.

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1. Um exemplo Tapirapé Herbert Baldus descreveu, em 1937, os grupos de comer dos Tapirapé (tribo Tupi do Brasil Central), depois de ter assistido a dois “tatanopao” em 1935. Charles Wagley também se referiu a eles, denominando-os “grupos de festa”, e participou de uma dessas festas em 1939. Reproduzimos a seguir um trecho do livro de Wagley: Novamente, em 15 de julho daquele mesmo ano, Baldus assistiu a outra festa Tatanopao. Apenas um Grupo de Festa realizou a refeição comunitária. Reuniram-se para comer carne de porco-do-mato que um deles matara no dia anterior. As mulheres do Grupo de Festa Awaiku moquearam-na e a cortaram em pequenos pedaços. Após distribuírem pedaços entre os parentes do sexo masculino, a carne, juntamente com a farinha de mandioca, foi colocada em panelas postas sobre esteiras de folhas de palmeira no espaço Awaiku na praça. Um aviso foi dado, convidando todos os Awaiku e, ao pôr-do-sol eles se reuniram para comer a carne e a farinha de mandioca. Baldus observou que membros de outros grupos não participavam, mas a alguns deles eram dados pedaços de carne que iam comer longe (1970:331). Em 1939, estive presente a uma dessas refeições, realizada simultaneamente por cinco grupos. Uma variedade de comidas foi trazida das residências. Sugeriram-me que levasse sal e rapadura para o fogo de Chankanepera, ao qual pertencia. A festa foi rápida, não havendo nem cerimônias, nem cantos acompanhando a refeição. Contaram tanto a Baldus como a mim que os Grupos de Festa reuniam-se freqüentemente no final da estação seca, quando os homens estavam mais aptos à descoberta e recolhimento de mel silvestre. Além do estímulo à caça e à coleta na estação seca, não descobri qualquer outra função desses Grupos de Festa.

É possível que algumas vezes no passado, os grupos tivessem atividades mais importantes. Faziam-se presentes em todas as aldeias Tapirapé e produziam certo mecanismo de associação grupal comum a todas, extrapolando os grupos de residência e parentesco. (Wagley, 128) Se pensarmos, contudo, no Tatanopao a que assistiu Baldus em julho de 1935, e atentarmos para o fato de que a carne de um só porco-do-mato representa alimento em demasia para uma família nuclear, mas não seria suficiente para ser repartida pelas pessoas todas de uma aldeia, poderemos perceber que a organização em grupos de comer evita o desperdício de alimentos, o que faz parte da ideologia do reequilíbrio. À página seguinte (p.129), Wagley escreve: “(...) Shapiro afirma que em 1966 os grupos Tatanopao continuavam a funcionar, embora indubitavelmente sem a extensão do passado. Mesmo em 1939-40, pareciam ter pouca importância na vida social Tapirapé, encontrando-se periodicamente somente para consumir a comida que sobrava”... Portanto, comida essa que não deve ser disperdiçada.

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2. Os Xavante e a caça às antas Para se organizar uma caçada a antas, é preciso que toda a aldeia xavante, todos os seus moradores, estejam de acordo. Não pode ser o empreendimento de uma família só. Naturalmente isto se explica porque uma anta é carne suficiente para muito mais que uma família. Algo semelhante Mary Douglas (1961) encontrou na África, entre os Lele do Kasai, com referência à caça ao elefante: todos, desde o xamã, desde o ferreiro que fabrica as pontas de flecha, até os outros todos da aldeia, precisam estar de acordo, para que se faça uma caçada a elefantes. Um caçador sozinho na floresta não pode matar a não ser animal pequeno (ave ou esquilo), o que é suficiente para ele se alimentar. Encontramos resquícios dessas preocupações até mesmo entre os atuais caiçaras do litoral de São Paulo: segundo Noely de Oliveira (uma minha ex-aluna caiçara), na praia do Sahy um pescador solteiro não deve ir pescar no alto mar, só mais próximo à terra; isto certamente por que no alto mar existem peixes grandes, cuja pesca só se justificaria para alimentar uma família inteira. A preocupação é portanto para que não haja desperdício de alimento, isto é, de vida animal. 3. A preocupação com o ambiente entre os Achuar (Jivaro) e Ufaina DESCOLA nos dá outro exemplo dessa preocupação com um reequilíbrio, entre os Achuar: Mais que qualquer outro recurso, a acessibilidade das palmas e a resistência do telhado é que vão relacionar o ciclo das mudanças de moradia. O que quer que aconteça, um homem deve reconstruir sua casa a cada doze ou quinze anos. Se ainda houver colônias de Kampanak ou turuji nas proximidades, se a caça e as plantas de colheita continuarem abundantes e se nenhuma guerra impuser um afastamento tático do território dos inimigos, ele irá edificar a nova morada ao lado da antiga, de modo a continuar explorando suas roças de mandioca. Caso contrário, precisará selecionar outro local de moradia, a um ou dois dias de caminhada, e empreender uma trabalhosa mudança: derrubada de novas roças, transplantação dos brotos, construção da casa e do seu mobiliário, etc. (Descola, 2006: p. 81-2).

Entre os Ufaina é o próprio xamã (o “Homem-Onça”) que determina quando a comunidade deve mudar de aldeia: O Homem-Onça é o mediador entre todas essas forças e a comunidade Ufaina (...) Os conhecimentos do Homem-Onça não se limitam somente a conhecer o pensamento tradicional de sua comunidade, expresso nos mitos, rituais e demais costumes, ou à prática da meditação e o êxtase xamânico; incluem ainda um saber empírico estruturado e disciplinado, baseado na observação diária do comportamento do grupo, da caça, da pesca, do rendimento dos cultivos, da coleta de frutas silvestres e do comportamento geral da fauna e da flora.

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Silvia Maria Schmuziger de Carvalho O Homem-Onça é portanto um especialista com um profundo conhecimento teórico e empírico do meio no qual vive, e um de seus objetivos centrais é administrar o uso humano dos nutrientes do meio natural, de forma tal que o grupo possa permanecer de 10 a 15 anos num mesmo sítio sem ter que emigrar; chegado o momento, é ele quem decide quando e para onde se deve migrar. (M. von Hildebrand, 1988:15)

Estas observações de Hildebrand podem ser aplicadas, de uma forma geral, aos xamãs indígenas. Eles são os intermediários entre seres humanos e o que nós chamamos de “natureza”. 4. Os Xamãs como controladores do reequilíbrio Necessário e Constante Os xamãs também são chamados quando uma pessoa doente, apesar de ser tratada com os remédios conhecidos na aldeia, não consegue se restabelecer. Constatou-se que, entre os Kayabi, o xamã, para estabelecer um diagnóstico, pergunta: se alguém desrespeitou os animais caçados, matou com crueldade, sem necessidade, matou bichos mansos, que são criação de “mamaé”, rompeu tabus alimentares, maltratou os filhos, descuidou-se das crianças pequenas, foi vítima de fofocas, etc” (Lins,1984/1985:132). Percebe-se que essas questões se alinham segundo duas coordenadas: as relações dos homens (do caçador) com a natureza (que devem ser de reequilíbrio e de respeito) e as relações das pessoas da aldeia entre si (que devem ser de partilha, de solidariedade). A doença é, então, o resultado de um desequilíbrio. Dominique Gallois (in Langdon, 1996) notou que, entre os Waiapi, os xamãs que curam muitos doentes acabam por perder poder sobre os espíritos animais, que todo xamã tem como auxiliares. Isto certamente se explica pelo fato de que, curando muitos seres humanos, ele desequilibra as relações favorecendo os humanos contra os animais e outros recursos de que se serve o homem. Isto nos faz entender porque no Alto Rio Negro se acredita que os xamãs conseguem penetrar, em êxtase, nas cavernas onde mora Waímaxsé, o dono dos animais. (Vide Reichel-Dolmatoff, 1968 – Desana) Animais de caça estão aí inconscientes, e o xamã procura fazer com que eles sejam animados e liberados para que o seu povo possa caçar. O senhor dos animais então perguntará ao xamã: “Mas com que energia eu vou liberá-los?” Pois é preciso que haja humanos que estejam morrendo para que essa energia possa passar para os animais. O xamã responderá que há muitas pessoas velhas que estão para morrer: é então uma espécie de hipoteca, uma vez que a cosmovisão indígena é a de um circuito de energias limitadas que passam – via alimentação – dos animais e plantas para os homens e vice-versa.

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5. A couvade Entre os povos Tupi, que concebem a criança como sendo produzida só pelo pai (sendo o útero materno apenas uma espécie de vaso em que a criança cresce), quando um indígena tem um filho, é ele que tem que ficar de resguardo: não pode sair para caçar nem pescar, fica na rede, geralmente cuidando do bebê, deitado sobre o seu corpo. Alguns psicólogos ou psicanalistas acham que se trata de uma tentativa de se “apoderar” de uma maternidade que o homem não pode ter. Parece-me que é porque, se um homem põe no mundo uma nova boca humana (um futuro caçador ou uma futura mãe de novos seres humanos), ele não deve ao mesmo tempo ainda matar animais ou peixes (seria uma hybris, um exagero para o lado humano). A mulher que dá à luz pode perfeitamente trabalhar: o trabalho dela na roça é dar vida a plantas. Entre os Guayaki, de língua aparentada ao guarani, Pierre Clastres (1972) não relacionou o costume da couvade. O recém pai é mesmo obrigado a ir à caça; só que ele vai muito preocupado, com medo mesmo: é que se crê que as onças percebem que ele teve um filho e o procuram para devorá-lo. Portanto, a crença é a mesma. Christine Hugh-Jones (1979) relata que no Alto Rio Negro “insemination is like death”(p. 128.: “fertilização é como morte”), isto é, a idéia de que após se reproduzir se deveria morrer, o que corresponde a uma certa idéia de limitação da população humana, que era comum aos nossos indígenas, antes do contato. No caso do Alto Rio Negro o casal, após ter um filho, não pode ter relações sexuais durante três anos (idem:131), ou ainda durante todo o tempo em que a mãe amamentar o filho (p.140). A couvade não é um costume restrito aos Tupi. Marco Polo relatou que em Burma, “quando a mulher dá à luz a criança, deixa a cama e lava o nenê, o marido ocupa imediatamente o lugar dela na cama e durante quarenta dias cuida da criança; enquanto isso a mulher trata de todos os assuntos da casa, leva ao marido alimento e o que beber, e deita-se a seu lado para amamentar a criança” (Wendt, 1962:171). E também a Grécia Antiga conhecia o rito da couvade. Provavelmente o costume decorre da oposição, antigamente universal, entre “homem = dá a morte aos animais; mulher = dá a vida às plantas. Os exemplos acima não esgotam o que se poderia indicar como atitudes e ações ecológicas dos nossos indígenas, mas creio que é suficiente. Pode-se ainda para finalizar, acrescentar a informação dada por Marivaldo A. Carvalho (2002): Como exemplo podemos citar uma reportagem do caderno “Mais” do jornal Folha de São Paulo, do dia 03 de outubro (2001). Nessa reportagem se falava do seminário realizado em Macapá, seminário este que discutia a questão da biodiversidade na Amazônia e a necessidade de se criarem novas unidades de conservação ambiental.

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Silvia Maria Schmuziger de Carvalho O levantamento dessas novas unidades de conservação mostraram um fato muito interessante para o nosso estudo, principalmente no que se refere á ligação entre os povos indígenas e a preservação da biodiversidade. “Indios e biozeladores Com o mapa final, surgiram algumas surpresas. Descobriu-se, por exemplo, que 121 das 378 áreas definidas coincidiam com terras indígenas. No início do seminário, isso ainda provocava arrepios nos “biológicos”, os que põem a conservação de ecossistemas e espécies acima de tudo. Estamos ferrados’, chegou a dizer um dos conservacionistas extremados ao notar o número de superposições no primeiro (e único) dia dedicado à identificação de áreas só com base em sua importância biológica. No último dia todos já propunham o estudo de uma nova figura jurídica – algo como conservas naturais indígenas – para garantir a preservação de recursos biológicos e, também, seu usufruto exclusivo pela população indígena. (p. 33)

O modo de produção de caça-coleta, pesca e horticultura de floresta implica em todas essas preocupações e crenças relacionadas acima: o respeito pelos animais e plantas, cujo ciclo de vida não deve ser cortado. Há regras severas para a caça: não se pode caçar uma espécie animal quando ela está em fase de acasalamento e reprodução, não se pode matar uma fêmea com filhotes, não se pode matar com crueldade. Até mesmo na pesca tradicional, que preservou até hoje práticas milenares, se deve evitar que os peixes sofram. Um exemplo disso, não do Brasil, mas do Alasca, nos relata J. Waterman, a respeito de Herb, um caçador nativo athapasko: After Herb pulled his salmon ashore, he killed them immediately by smashing his knife handle against their forehead (…) (porque) (…) age-old traditions… mandated that all animals be treated with respect. Even after fish are killed, their remains had to be cared for properly. The spirits of animals could linger for days around their bodies (…) (p.137)1

Meillassoux definiu o modo de produção da caça-coleta como modo de “punção”, pois se faz punções na natureza, que precisa se restabelecer dessa punção. A própria roça é apenas uma punção na floresta. Depois de dois ou três anos se abre outra adiante e se deixa a floresta retomar a antiga. O território é percorrido anualmente de acordo com os recursos que podem ser explorados ou que devem ser explorados em determinados meses: quando nos bosques de jabuticabas as frutas estão maduras, o grupo deve estar lá, quando se pode caçar uma certa espécie se deve caçar, etc. Se um caçador, inadvertidamente, mata uma fêmea com filhotes, ele leva os filhotes para a aldeia e eles serão alimentados, às 1. “Depois Herb puxou seu salmão para a praia. Ele o matou imediatamente batendo com o cabo de sua faca contra a testa dele, por que... antigas tradições ordenam que todos os animais sejam tratados com respeito. Mesmo depois que peixes são mortos seus restos têm de ser devidamente cuidados. Os espíritos dos animais podem demorar-se durante dias em volta de seus corpos.”

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vezes até mamando em alguma indígena que tenha leite. São os “xerimbabos”, órfãos adotados que jamais serão mortos. Tem-se também cuidado para não aumentar demais a população humana. Entre os Xikrin, Lux Vidal (1977) constatou que existe um estoque de nomes que são reutilizados para os netos quando seu último detentor morre. O mesmo acontece, segundo Carmen Junqueira (1975), entre os Kamayurá. Mas as autoras não falam em crença em reencarnação; creio que se trata mesmo da idéia de que deve haver um estoque finito de seres humanos. Para que a natureza não seja super-explorada, as sociedades indígenas são domesticadas para não acumularem: elas partilham, pois se uns passarem a ter mais que os outros, se retirará da natureza mais do que o necessário: será um desequilíbrio, desequilíbrio que a sociedade civilizada (que Lévi-Strauss chama “domesticada para acumular”) já provocou por demasia, a ponto de prejudicar o planeta como um todo.

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4. Reflexões Sobre o “Pensamento Tradicional” e o “Pensamento Selvagem”1 Silvia M. S. de Carvalho

A dificuldade de se estudar certos setores da cultura – as dadas representações religiosas, da medicina popular com suas simpatias e rezas, onde o pensamento mágico parece irromper nas mais contraditórias superstições – está em que estes são justamente os setores mais resistentes às transformações e mesmo transformados o são, de tal modo que a sua compreensão depende de uma verdadeira dialética da lógica, implicando no conhecimento de uma lógica anterior, certamente pré-capitalista. O conjunto das representações que chamamos de “mágico-religiosas” constituise em torno de um cerne que implica a própria autodefinição do grupo, pois é esta autodefinição que determina o modelo segundo o qual ele (grupo: “humanidade” ou parcela dela) se sente inserido no Universo, opondo-se ou não à Natureza inteira, mas ligado a ela por determinadas mediações, que são como os fios invisíveis que lhe permitem um certo equilíbrio e a sensação de permanência, sensação esta imprescindível para que o ser humano continue sonhando, planejando e agindo. Já que a fé nos deuses – mediadores por excelência, entre o humano e o nãohumano – é, em grande parte, a garantia da permanência desse modelo e do próprio grupo (que jamais consegue controlar inteiramente mesmo o que é previsível), é de se esperar que nunca ocorram mudanças de forma imediata e mecânica no âmbito dessas representações. Assim sendo, se um grupo tiver que optar entre uma desilusão com respeito a seu deus e uma desilusão a respeito de si próprio, a ultima alternativa pode lhe parecer, apesar de tudo, mais segura. O fracasso de um movimento messiânico resulta com mais freqüência num sentimento de pecado cometido – justificando o fracasso como punição – do que numa duvida sobre o messias. A imagens dos deuses, juntamente com o Universo por eles criado, subsiste e resiste aos acontecimentos. O símbolo se transforma em alegoria, mas permanece. A própria figura de Cristo não é tão antropomorfa quanto comumente pensamos. Como vitima sacrificial (“que redime os pecados do mundo”), o deus cristão se confunde com imagens mais arcaicas: o carneiro, que substituiu Isaac no momento exato da imolação, adoça-se na imagem do cordeiro. O trigo de Demeter e o vinho de Dionisos incorporam-se ao simbolismo 1. Artigo publicado originalmente na Revista Perspectivas, ano.1983: 19-25.

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cristão , e é este simbolismo que freqüentemente aflora nas simpatias, nos tabus e na preparação da medicina popular.2 Se encontramos estas convergências e reelaborações numa religião que, por ser monoteísta, repudiou muito mais que outras os elementos resistentes das representações de povos superficialmente cristianizados sob a dominação romana, o que dizer então da resistência de certos ritos mágicos que, pela automatização dos gestos e palavras – às vezes repetidas sem que o oficiante penetre muito o seu sentido – se apresentam como que periféricos aos dogmas religiosos e ate certo ponto esvaziados de sacralidade? Não nos parece de modo algum precipitado admitir que, no saber popular que se revela nos ritos de cura, nas simpatias, fragmentos de representações já presentes no universo simbólico de um distante paleolítico, conseguiram se manter através dos tempos. Por diferentes que tenham sido os climas, os animais caçados, as coisas coletadas, por diferentes que tenham sido as técnicas, a organização do trabalho em cada grupo, a práxis da caça e coleta foi comum à humanidade durante a maior parte do tempo de sua existência. Muitos estudiosos parecem julgar utópica ou por demais complexa a tentativa de estabelecer o papel organizador que teve esta práxis na estruturação do universo simbólico. É evidente, contudo, que esta práxis estabeleceu linhas centrais de preocupações, preocupações estas necessárias, aliás, à própria reprodução do sistema de caça e coleta. Negando a possibilidade de decifrar qualquer mensagem mais profunda, limitam-se então a detectar a estrutura das representações que Lévi-Strauss chamou de “a lógica do concreto”. Aliás, essa lógica do concreto não se encontra somente nas representações dos caçadores remanescentes de hoje, mas também em áreas que até há pouco se encontravam mais ou menos isoladas, pouco transformadas pela atmosfera cientificista das cidades. Parece que Lévi-Strauss tem razão quando diz que: “O fosso, a separação real, entre a ciência e aquilo que poderíamos denominar pensamento mitológico, para encontrar um nome, embora não seja exatamente isso, ocorreu nos séculos XVII e XVIII. Por essa altura, com Bacon, Descartes, Newton e outros, tornou-se necessário à ciência levantar-se e afirmar-se contra as velhas gerações de pensamento místico e mítico, e pensou-se então que a ciência só podia existir se voltasse as costas ao mundo dos sentidos, o mundo que vemos, cheiramos, saboreamos e percebemos; o mundo sensorial é um mundo de propriedades matemáticas que só podem ser descobertas pelo intelecto e que estão em contradição total com o testemunho dos sentidos. Este movimento foi provavelmente necessário...”. 2. A convergência para a festa pascal de velhos ritos pagãos, centrados na lebre e nos ovos (que são quebrados na dramatização da ressurreição) não chegou a revestir estes da sacralidade do carneiro, do trigo e do vinho. Mas não se pode dizer o mesmo da árvore de Natal, representada popularmente como sendo trazida e enfeitada, ora por São Nicolau, ora pelo próprio menino Jesus.

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E, logo adiante, observa: “(...) tenho a impressão de que (...) os dados dos sentidos estão a ser cada vez mais reintegrados na explicação cientifica como uma coisa que tem um significado, que tem uma verdade e que pode ser explicada” (Mito e Significado:17, 18). Só que essa reinclusão na explicação cientifica, da maneira como prevista por Lévi-Strauss, (que neste texto só se refere a um dos aspectos do “pensamento não cientifico”) não nos dará muito mais do que o reconhecimento de que um saber empírico pode coincidir, afinal, com um conhecimento científico, como já mostrado em O pensamento selvagem. Ficaremos sabendo o porquê da concordância estrutural, continuando a ignorar o porquê do “pensamento selvagem”, lógico, mas diferente de qualquer maneira do “pensamento domesticado”, do pensamento cientifico. É o próprio Lévi-Strauss que assim o define: (...) esses povos que consideramos estarem totalmente dominados pela necessidade de não morrerem de fome, de se manterem num nível mínimo de subsistência, em condições materiais muito duras, são perfeitamente capazes de pensamento desinteressado; ou seja, movidos por uma necessidade ou um desejo de compreender o mundo que os envolve, a sua natureza e a sociedade em que vivem. Por outro lado, para atingirem este objetivo, agem por meios intelectuais, exatamente como faz um filosofo ou até, em certa medida, como pode fazer e fará um cientista.

“Esta é a minha hipótese de base.” “Mas desde já quero esclarecer um mal-entendido. Dizer que um modo intelectual é desinteressado, e que é um modo intelectual de pensar, não significa que seja igual ao pensamento cientifico. Evidentemente que continua a ser diferente em certos aspectos, e que lhe é inferior noutros. E continua a ser diferente porque a sua finalidade é atingir, pelos meios mais diminutos e econômicos, uma compreensão geral do universo – é não só uma compreensão geral, mas sim “total”. Isto é, trata-se de um modo de pensar que parte do princípio de que, se não se compreende tudo, não se pode explicar coisa alguma. Isto está inteiramente em contradição com o modo de proceder do pensamento científico, que consiste em avançar etapa por etapa, tentando dar explicações para um determinado número de fenômenos e progredir, em seguida, para outros tipos de fenômenos, e assim por diante. Como já disse Descartes, o pensamento científico divide a dificuldade em tantas partes quantas as necessárias para resolver. Assim, esta ambição totalitária da mente selvagem é bastante diferente dos procedimentos do pensamento científico. Na verdade a grande diferença é que esta ambição não tem êxito. Porém, nós, por meio do pensamento cientifico, somos capazes de alcançar o domínio sobre a Natureza - creio que não há necessidade de desenvolver este ponto em concreto, já que isto é suficientemente evidente para todos –, enquanto o mito fracassa em dar ao homem mais poder material sobre o meio. Apesar de tudo, dá ao homem a ilusão, extremamente importante, de que ele pode entender o universo e de que ele “entende”, de fato, o universo. Como é evidente, trata-se apenas de uma ilusão. (Idem:30-32)

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Deixando de lado a questão de se saber se os meios que o “pensamento selvagem” põe em ação são efetivamente os “mais diminutos e econômicos” ou em que sentido eles o são, parece que se pode concordar em linhas gerais com a definição formal dessa diferença.3 É evidente também que todo o cientista tem obrigação e necessidade de defender o pensamento científico como sendo a melhor via de compreensão: a ciência é a sua ferramenta e é usando essa ferramenta, e apenas ela, que ele tentará compreender e revalorizar o pensamento “não-cientifico”. É evidente, contudo, que o conhecimento cientifico do Universo – na medida mesmo em que ele é setorializado, alcançado por etapas, e na medida em que ele deixa de lado a investigação (obviamente impossível) da causa primeira, do principio e do fim, da eternidade ou do porque das leis que estabelece – é, ele próprio também, uma ilusão. O pensamento cientifico permite ao homem um maior controle sobre o passado, o que é uma grande vantagem para a compreensão do presente e para o “pressentimento”, as expectativas do futuro. É também evidente que a ciência dá ao homem mais poder material sobre o meio, pois nenhum povo não-ocidental conseguiu modificá-lo até a destruição, como o faz o civilizado. Ainda que outros povos quisessem fazê-lo – o que é pouco provável – não o teriam conseguido. Este poder material sobre o meio, exercido de forma experimental, concomitantemente em todos os setores do conhecimento, representa na prática muito mais um domínio momentâneo, fugaz, de uma realidade que se transforma assustadoramente sob a ação do próprio homem ou sob novos processos ainda não dominados pelas ciências, desencadeados pela própria experimentação cientifica. O pensamento científico dá ao homem – eterno aprendiz de feiticeiro – maiores possibilidades teóricas de controle do futuro, na medida mesma em que, aplicado, destrói o próprio futuro como tal. O homem civilizado, qual Édipo, caminha para o abismo orgulhoso de sua racionalidade. Por quê? O que falta a este pensamento científico, que o torna tão perigoso? E por que o “pensamento selvagem” não é assim? Parece-nos que se deveria indagar qual a razão dessa “ambição totalitária da mente selvagem”, o que se esconde por traz desta estranha “ambição”. Vamos tentar seguir, inicialmente o raciocínio de Godelier (1977), num artigo escrito em 1971, em que chega à surpreendente conclusão de que o pensamento selvagem não só é um “pensamento selvagem”, mas também um “pensamento de selvagens”. 3. O homem põe na ciência a mesma fé que seus antepassados depositavam nos deuses. Por isso, talvez, se possa ver também uma certa “ambição totalitária” na mente cientifica que, embora mantendo a dúvida, transfere freqüentemente para uma hipotética solução futura as contradições que a ciência no estagio atual não consegue explicar: o “milagre” cede lugar a uma “exceção à regra” não menos insólita.

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Partindo da constatação “de que a armadura sociológica dos mitos dos índios da América repousa essencialmente em relações imaginarias de parentesco”, interpreta este dado como um efeito na consciência (transposição, representação) do conteúdo da organização social dos índios”. (Idem:76)4. Como o são para Durkheim os fenômenos religiosos, a natureza refletida nos mitos aparece a Godelier como a projeção para a Natureza, de um pensamento, poderíamos dizer, “viciado” no uso conceitual das relações de parentesco. Godelier procura compreender o porque desse modelo que não é evidentemente oferecido pela Natureza e acha que ele deve ser procurado na sociedade e na história: as relações de parentesco são dominantes na sociedade simples e, “à medida em que se desenvolveram novas relações sociais (castas, classes, o Estado) esta dominância desapareceu no seio de inúmeras sociedades”. Esta dominância é que levaria, portanto, o homem a pensar a natureza por analogia. Pensar por analogia é, contudo, “compreender uma certa relação de equivalência entre as realidades materiais e sociais distintas ou, num nível mais abstrato, as relações de equivalência entre relações...” “(...) O fundamento da possibilidade para o pensamento apresentar as relações de equivalência situa-se além do próprio pensamento, nas propriedades das formas complexas de organização da matéria viva, o sistema nervoso e o cérebro”. Estamos portanto diante daquilo que LéviStrauss chamou: “Uma lógica original, expressão direta da estrutura do espírito, e por trás do espírito, sem dúvida do cérebro”. O fundamento das operações espontâneas do pensamento em estado selvagem remete, portanto, a uma outra historia que não a história humana, à história “natural” das espécies, às leis da evolução da matéria da natureza.”(Idem:80) Preferimos pensar que o modelo desse “pensamento por analogia” não deva ser buscado na estrutura do espírito ou do cérebro, a menos que se acrescente desde já que esta mesma estrutura é o resultado do trabalho (da prática da caça e coleta). Ao texto de Marx, selecionado por Godelier5, preferimos o de Engels 4. No entanto, esta mesma organização social (pense-se na organização em clãs, com nomes de animais, de plantas, de fenômenos naturais) teria de ser explicada, ela também, como uma projeção de dados referentes à natureza sobre os grupos humanos, e não nos parece que a necessidade de classificação, por si só, possa dar conta de toda explicação. 5. “Como o funcionamento do pensamento emana das circunstancias e é, ele próprio, um processo de natureza, um pensamento, na medida em que concebe realmente deve sempre ser o mesmo, e só pode se diferenciar gradualmente segundo a maturidade atingida pela evolução e, portanto, também segundo a maturidade do órgão com o qual se pensa. Todo o resto é pura tolice”. (Carta a Kugelmann, datada de julho de 1868). Achamos que a seleção não foi muito feliz. Pouca coisa se conhecia, na época de Marx, não só sobre os povos “primitivos”, mas também sobre os estágios de evolução dos primatas, incluindo-se o homem. Dificilmente um especialista de hoje deixará de admitir que a “maturidade” do órgão com o qual se pensa não tenha sido atingido já no estagio pitecantropídeo. Comprovadamente, ela já marca o Homo neanderthalensis, o primeiro dos ditos “sapiens”, que viveu durante o último período glacial (há aproximadamente 11000 anos passados).

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(1977) sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem; assim como “a mão não é apenas o órgão do trabalho; é também um produto dele”, assim a linguagem (que se confunde com o pensamento) teve, segundo Engels, sua origem a partir do trabalho. “Primeiro o trabalho e depois dele e com ele a palavra articulada foram os dois estímulos principais sob cuja influencia o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano – que, apesar de toda sua semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição”. (Idem: 66) Este trabalho a que Engels se refere é o trabalho característico do sistema adaptativo da caça/coleta que foi, durante milênios, o único modo de subsistência do homem. Este modo de subsistência implicava – por necessidade de ordem biológica inicialmente – numa divisão do trabalho por sexo e idade e, consequentemente, num mecanismo de trocas, este sim modelo de idealização das relações homem-natureza, ainda assim não por “transposição pura e simples, mas como decorrência das observações e reflexões sobre a práxis: um sistema de caça/coleta só é passível de continuidade se o homem se preocupa com o futuro: isto é, com o reequilíbrio da fauna e flora na geração humana seguinte, o que implica na adoção de um esquema de “negative feedback” (para usar uma expressão de arqueólogos americanos), isto é, um esquema de compensações reais e simbólicas6, através da nomadização, através do escalonamento dos produtos caçados/coletados, dos tabus alimentares, das práticas de controle demográfico (controle de natalidade, ás vezes também abandono dos velhos), e da dramatização de relações personificadas com a natureza. É então a troca de alimento entre os setores da comunidade (entre os grupos etários e, particularmente, entre o setor masculino – caçador – e o setor feminino (coletor) – “pagando” inclusive serviços sexuais e de reprodução biológica – que se torna modelo das trocas simbólicas. E é por isso que as alianças escondem outras estruturas concomitantes: as “estruturas alimentares do parentesco” (segundo Meillassoux). A natureza tem que ser “realimentada” para se reproduzir e uma “aliança matrimonial” entre o mundo humano e o mundo animal, tal como ela se apresenta frequentemente nos mitos, ou dramatizada nos ritos, representa uma não-reprodução de caçadores, uma não reprodução de bocas humanas; simbolicamente, a “esposa do animal”, a mulher perdida para o mundo exterior é o ser humano devorado pela natureza, a qual, em troca, continuará por sua vez a “se oferecer” como alimento para o homem. Esta preocupação em restabelecer um equilíbrio entre o homem e a natureza é a prova de que a humanidade primeva, 6. É preciso não esquecer que as “compensações simbólicas” (as danças, os cantos, recitação dos mitos e os ritos em geral) preenchem, entre os povos “primitivos”, um espaço de tempo considerável: durante sua realização, ocorre uma espécie de trégua na luta pela sobrevivência.

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assim como os povos “selvagens” ou de “pensamento selvagem” (que o “civilizado” freqüentemente taxa de imprevidente, despreocupado com o amanhã) se caracterizam por uma reflexão muito lúcida sobre o seu modo de produção, e por uma preocupação para com o futuro do grupo como um todo. Esta mesma preocupação impede também que a natureza seja agredida só em beneficio de uns poucos, na medida em que qualquer agressão só se justifica se o produto dessa agressão for partilhado pelo grupo todo. O reequilíbrio buscado, entre o homem e a natureza só pode ser alcançado, efetivamente, em função de um reequilíbrio interno, através de um regime que inviabilize qualquer possibilidade de agressão à natureza em benefício só de uns e em detrimento de outros, vivos ou nascituros. Essa preocupação com o reequilíbrio externo (homem-natureza), mantendo ou reestabelecendo o equilíbrio interno (através de uma distribuição equitativa de bens, com o fito de propiciar a sobrevivência da humanidade como um todo no presente e no futuro), é uma preocupação essencialmente religiosa, no sentido mais amplo do termo. Não existe, portanto, um “pensamento selvagem”, mas tão-somente um pensamento de caçadores/coletores. Tendo-se tornado, como é óbvio, fundamento de todas as religiões e visões do mundo mais arcaicas ou primevas, persiste ainda, após a sedentarização e mesmo após o advento da civilização, em muitos setores da cultura: quer-nos parecer que o que Lévi-Strauss define como “ambição totalitária da mente do selvagem” nasce dessa preocupação com o reequilíbrio interno e externo, que impede que os conhecimentos transmitidos de geração a geração se tornem amorais como os da ciência pura. A medicina popular, particularmente no setor dos métodos de cura que designamos como “simpatias”, “benzimentos”, deve refletir ainda em muitas práticas – como lógica subjacente – essa preocupação em torno de dois eixos: o de reequilíbrio homem-natureza e o da partilha interna ao grupo humano. Evidentemente, do conjunto das práticas, muita coisa se perde a meio caminho da urbanização. O campo se transforma, a profissão de mateiro desaparece com o próprio mato, o equilíbrio violentamente rompido pelo capitalismo, pela modernização, não mais se reestabelece pelos ritos tradicionais, que só funcionavam como coadjuvantes de um sistema adaptativo que efetivamente conseguia um reequilíbrio razoável. Além disso, correntes teóricas diversas (a tradição greco-árabe, a tradição africana e indígena) se sobrepõem e confundem. Ainda assim, se – como acreditamos – a preocupação de reequilíbrio e a tendência à participação definem a essência humana7, é de se esperar que as relações curador-doente teçam um modelo segundo o qual a cura é visualizada 7. “O homem se define por suas possibilidades, por sua tendência para a comunidade com outros homens e para o equilíbrio com a natureza”. (GOLDMANN, 1970: 99)

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como um reequilíbrio cósmico. Esse modelo, bem conhecido dos que estudam a medicina dos povos “primitivos”, é também facilmente reconhecível nas simpatias, nos benzimentos. (entre outros trabalhos, vide: Carvalho et alii, 1975). A importância dos estudos de práticas tradicionais torna-se patente, por tanto, em dois sentidos: 1º como tentativa de recuperar um saber milenar que marcou as comunidades humanas, que foi responsável pelo seu sucesso e permanência durante a maior parte da história da Humanidade, no momento mesmo em que o capitalismo está pressionando a desintegração das ultimas comunidades isoladas, e ao mesmo tempo em que se faz sentir – como única esperança de salvação da própria vida do planeta, e já não tão-só a humana – a necessidade premente de uma política econômica que recoloque no centro de suas preocupações justamente a humanidade como um todo (e não o lucro de uns poucos); e 2º como pesquisas que certamente virão a confirmar que nunca existiu um “pensamento selvagem” a se opor a um “pensamento domesticado”, a não ser que se entenda o “pensamento selvagem” como sendo o que dominou e fundamentou o capitalismo, e o “domesticado”, como o que caracterizou a comunidade primeva.

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5. O Boi Mítico e Folclórico no Brasil1 Reeditamos este artigo em homenagem a dois autores, grandes colegas e amigos, já falecidos: ANTONIO TALORA DELGADO SOBRINHO e NAJLA LAUAND.

Autores: Antonio Talora Delgado Sobrinho, Najla Lauand, Oswaldo Martins Ravagnani e Silvia M.S. Carvalho.

INTRODUÇÃO O presente artigo procura mostrar alguns aspectos pouco estudados do “ciclo do gado” no Brasil. Cinco músicas sertanejas (“Magoas do Boiadeiro”, “A morte de Zé Carreiro”, “Os boiadeiros”, “Boi Soberano” e “Menino da Porteira”) mostram a nostalgia que o sertanejo sente de seu universo perdido . O interior invadido pelo progresso sofre uma transmutação de valores com a marginalização das atividades tradicionais. O “ciclo do gado” deixou também seus vestígios na Umbanda , como se vê pelo simbolismo do boi , do burro e do cavalo. Mesmo na mitologia indígena, podemos detectar a presença do touro ou da vaca, ainda que recente, no processo de sincretismo com os símbolos mais arcaicos do “estranho”.

1. Artigo originalmente publicado na Revista Perspectivas, 1977, 26-51 p. (2).

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CAPÍTULO I CINCO MÚSICAS SERTANEJAS Mágoas de Boiadeiro Antigamente nem em sonho existia tantas pontes sobre os rios nem asfalto nas estradas. A gente usava quatro ou cinco sinoeiros2 pra trazer o pantaneiro3 no rodeio da boiada. Mas hoje em dia tudo é muito diferente, Com o progresso nossa gente nem sequer faz uma idéia que entre outros fui “peão de boiadeiro”4 por este chão brasileiro os heróis da epopéia. 2. De acordo com Silvio Julio, em seu trabalho “Literatura, folclore e lingüística”, temos, no capitulo Sinuêlo (pag. 407 a 421): Quer no latim vulgar, quer no espanhol e no português do século XII, sino (signo-siino) equivalia a sinal escrito ou não, a aviso, advertência, a anúncio. Assim sendo, podemos dizer que se sinuêlo contem a junção do sufixo diminutivo espanhol – uelo a um substantivo de origem latina, sino, tão luso quanto castelhano. O termo formado, na P.Ibérica, a partir do séc. XII, quando castelhano começava a parecer, chegou ao Novo Mundo com os descobridores do continente e espalhou-se por suas regiões mais afastadas, inclusive o Rio da Prata. Daqui e muito depois, atingiu as planícies brasileiras do Rio Grande do Sul, incrustando-se na língua portuguesa desta província, não de outras onde se fala o idioma camoniano. Ainda, no trabalho acima citado, encontramos: “Señuelo. Conjunto de veinticinco a cincuenta novilhos mansos y debidamente acostumbrados a seguir al madrino, éste de pelo diferente y llevando cencerro, que sirve para traer de los apartes hacienda o animales ariscos a fin de encerrarlos en corrales, potreros, etc. Vocabulário y refranero de Tito SAUBIDET”. (pag. 418): “Sinuêlo, no Rio Grande do Sul, é o gado manso (equino ou bovino) que, por sua presença, facilita o trabalho de reunir em rodeio e dirigir nas tropas os animais ainda chucros, cuja inquietude e braveza se asserena junto do outro já domesticado”. (pag. 415). 3. Pantaneiros – Certa raça de bois, de Mato Grosso. 4. Peão de boiadeiro – A palavra peão é originaria da America Espanhola. Peão lat. Pédóne – “que tem pés grandes”, mas que na latinidade vulgar tomou o sentido de “o que anda a pé”. Aparece na língua portuguesa, a partir do sec. XII, sob a forma peon. O peão é o homem ajustado para fazer o serviço de campo, nas fazendas de criação ou estâncias, sendo também um amansador de cavalos. O vocabulário sul rio-grandense cita peão de tropa – “é o que ajuda a conduzir a tropa da estância à charqueada ou a outro ponto qualquer”. Sendo assim, podemos concluir que o peão de boiadeiro é o que ajuda a conduzir a boiada de um lugar a outro. (v. Peão in: “Tipos e aspectos do Brasil”, pag. 490).

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Tenho saudade de rever nas currutelas5 as mocinhas nas janelas acenando uma flor. Por tudo isso eu lamento e confesso que a marcha do progresso é a minha grande dor. Cada jamanta que eu vejo carregada transportando uma boiada me aperta o coração. E quando olho minha traia6pendurada de tristeza dou risada prá não chorar de paixão. O meu cavalo relinchando pasto a fora que por certo também chora na mais triste solidão, meu par de esporas, meu chapéu de aba larga uma bruaca7de carga um berrante, um facão, O velho basto,8 o sinete9 e o apero10, o meu laço e o cargueiro,11 o meu lenço e o gibão.12

5. Corrutelas – Pequenos arraiais formados por garimpeiros na entrada das terras virgens, onde vão à procura de diamantes. 6. Traia – O mesmo que tralha. Bagagem; cacaréus; conjunto de varias coisas, em geral com pouco préstimo. 7. Bruaca – (De brujaca, através de brujaca). Saco ou mala de couro cru, para transporte de objetos e mercadorias sobre bestas. 8. Basto (do cast. basto). Lombilho de cabeça mui rasa e pequena. 9. Sinete – (do fr. Signet). Aparece na língua portuguesa a partir do sec. VI. Utensílio gravado em alto ou baixo–relevo para imprimir no papel, no lacre, etc., assinatura, monograma, brasão, etc. Nome dado ao ferro com que se marca os bois. 10. Aperos – Os preparos necessários para encilhar cavalo: arreios. Também se usa no singular. É tomada do espanhol. O termo é antiquado em Portugal com o sentido “instrumentos de caça”. Jose Pedro MACHADO registra: Apeiro – do latim appariu – do séc. XII. 11. Cargueiro – O animal que conduz carga. 12. Gibão – (Do it. giubbone). Vestidura antiga que cobria os homens desde o pescoço até a cintura. Espécie de casaco curto que se vestia sobre a camisa. O gibão do boiadeiro é geralmente de couro. Para uma descrição mais detalhada da indumentária de carreiros e guias, vide B. José de Souza (“Ciclo do carro de bois do Brasil”, cap. V, pag. 467).

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Ainda resta a guaiaca13sem dinheiro deste pobre boiadeiro que perdeu a profissão. Não sou poeta, sou apenas um caipira e o tema que me inspira é a fibra de peão. Quase chorando, imbuído nesta mágoa, rabisquei estas palavras e saiu esta canção. Canção que fala da saudade das pousadas que já fiz com a peonada junto ao fogo de um galpão.14 Saudades loucas de ouvir o som manhoso de um berrante preguiçoso nos confins do meu sertão. A morte de Zé Carreiro Conheci há muito tempo o caboclo Zé Carreiro,15 Não tinha nenhum amigo no sertão do ingazeiro Caboclo sem religião o seu Deus era o dinheiro, Todo povo se benzia quando via o Zé Carreiro.

13. Guaiaca – Do quíchua huayaka, hispanizado guayaka, do Peru chegou às campinas rioplatense, atingindo os pampas do sul do Brasil. Já na 1ª metade do sec. XVII o termo guayaka era usado nos descampados platinos. Guaiaca é um cinto largo de couro, com bolsos, usado para guardar dinheiro e pequenos objetos, havendo também uma parte que serve para carregar as armas. (v. Guaiaca: “Literatura, folclore e linguística da área gauchesca no Brasil”, pag. 337 a 358). 14. Galpão – Construção destinada ao abrigo de homens, de animais e à guarda de material. Lugar onde dormem os peões ou camponeses da estância, onde fazer o seu fogão e se reúnem para tomar mate, churrasquear e contar casos. O termo galpão, originário de qualquer dialeto pré-colombiano dos silvícolas do Novo Mundo, veio para a língua portuguesa do Brasil, através do castelhano falado nos países vizinhos ao nosso. (v. Galpão in: “Tipos e aspectos do Brasil” p.400 e cap. Galpão in SILVIO JÚLIO, obra citada, pag. 325 a 335). 15. O carreiro é um homem que conduz um carro de bois. Trabalha habitualmente de pé. Vide Lúcio de Castro Soares – “Carro de boi”; de Nelson Werneck Sodré – “Carreteiro”, in “Tipos e Aspectos do Brasil” (respectivamente, pag. 230 e 347) e, particularmente, o excelente trabalho de Bernardino José de Souza de Souza, já citado.

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Numa Sexta-Feira Santa, quando a procissão saiu, O povo todo chorou, Zé Carreiro até sorriu. O malvado era descrente, quis fazer um desafio, Botou a boiada no carro, e de viagem seguiu. Mas veio uma tempestade, foi a sua perdição. Depois de andar duas léguas, o carro foi num grotão. A boiada se encolheu com o estrondo do trovão Zé Carreiro blasfemava no meio da escuridão. Por ser um homem malvado, caboclo sem religião, dava pancada nos coices16 e chunchava17de ferrão. Foi tirando a garrucha e baleando a criação. Quando um boi numa chifrada lhe arrancou o coração. Aí a chuva aumentou que parecia um tufão. Um raio riscou o céu e brilhou na escuridão. Quando a faísca caiu, no estrondo do trovão, fulminou toda boiada, ficou em cinza o grotão.

16. Coices – Juntas de bois que vão junto à carreta. 17. Chuchava – chucar v.t.b. Cutucar, futicar, futucar.

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Até hoje os viajantes que passam naquela estrada vê uma velha sepultura com uma cruz abandonada. Na noite de sexta-feira tem ali alma penada, Gemendo na sepultura e gritando com a boiada. Os 3 Boiadeiros Viajando nas estradas, Zé Roia na frente tocando berrante, chamando a boiada. E Chiquinho sempre do lado, distraindo o gado tomando cuidado nas encruzilhadas. E nós três vivia tocando a boiada. Mas um dia, na invernada deu uma trovoada numa derriçada o gado estourou. Nesse dia morreu Zé Roia, caiu do cavalo, foi dentro do vale, a boiada pisou. Fiquei eu e Chiquinho tocando a boiada. Num domingo de rodeio Chiquinho bebeu e não me obedeceu, pulou no picadeiro, num relance, atirei na rês. A vaca tremeu, mas no pulo que deu, matou meu companheiro. Eu fiquei sozinho tocando a boiada.

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Viajando nas estradas, não toco berrante, nem vejo lá adiante meus dois companheiros. Deste trio ficou a saudade em toda cidade. O povo pergunta dos 3 boiadeiros. Eu fiquei sozinho tocando a boiada. Boi Soberano Me alembro e tenho saudade do tempo que vai ficando, do tempo de boiadeiro, que eu vivia viajando. Eu nunca tinha tristeza, vivia sempre cantando mês e mês cortando estrada no meu cavalo ruano.18 Sempre lidando com gado, desde a idade de 15 anos. Não me esqueço de um transporte, 600 bois cuiabanos, No meio tinha um boi preto por nome de Soberano. Na hora da despedida, o fazendeiro foi falando cuidado com este boi que na guampa é leviano. Esse boi é criminoso

18. Ruano – (Do esp. Ruano lat. ravidánu, tirado de ravidu – “cinzento” séc. XI). Diz-se do cavalo de pelo branco com malhas escuras e arredondadas

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já me fez diversos danos. Tocamos pelas estradas, naquilo sempre pensando, na cidade de Barretos, na hora que eu fui chegando a boiada estourou. Só via gente gritando, foi mesmo uma tirania, na frente ia o Soberano. O comércio da cidade as portas foram fechando. Na rua tinha um menino, de certo estava brincando, Quando ele viu que morria de susto foi desmaiando, coitadinho debruçou na frente do Soberano. O Soberano parou ai, em cima ficou bufando, rebatendo com os chifres os bois que vinham passando, Naquilo o pai da criança de longe vinha gritando Se esse boi matar meu filho eu mato quem vai tocando. Quando viu seu filho vivo, e o boi por ele zelando, caiu de joelhos por terra, e para Deus foi implorando Salve meu anjo da guarda, nesse momento tirano.

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Quando a boiada passou aí, o boi foi se retirando, veio o pai dessa criança me comprou o Soberano, Esse boi salvou meu filho Ninguém mata o Soberano. Menino da Porteira Toda vez que eu viajava pela Estrada de Ouro Fino, De longe eu avistava a figura de um menino Que corria abrir a porteira, depois vinha me pedindo Toque o berrante seu moço que é pra eu ficar ouvindo. Quando a boiada passava, Que a poeira ia baixando, eu jogava uma moeda, ele saía pulando, Obrigado boiadeiro, que Deus vá lhe acompanhando Naquele sertão à fora meu berrante ia tocando. Nos caminhos desta vida muitos espinhos eu encontrei, mas nenhum calou mais fundo do que isso que eu passei. Na minha viagem de volta qualquer coisa eu cismei, Vendo a porteira fechada o menino não avistei.

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Apeei do meu cavalo, num ranchinho beira-chão, vi uma mulher chorando quis saber qual a razão Boiadeiro veio tarde, veja a cruz no estradão. Quem matou o meu filhinho foi um boi sem coração. Lá pras bandas de Ouro Fino, levando gado selvagem, quando passo na porteira até vejo a sua imagem. Esse rangido tão triste mais parece uma mensagem daquele rosto trigueiro desejando boa viagem. A curvinha do estradão do pensamento não sai, até fiz um juramento que não esqueço jamais. Nem que o meu gado estoure, que eu precise ir atrás, Neste pedaço de chão berrante eu não toco mais. “Antigamente nem em sonho existia Tantas pontes sobre os rios (...)” Por que a queixa saudosista começa justamente contra as pontes, só em segundo lugar contra as estradas de asfalto? Talvez simples acaso, talvez porque são as pontes, bem mais, do que as estradas em si que “desalojaram” o boiadeiro. Mais custosos e difíceis do que o tanger da boiada pelo sertão a fora (ainda que ai também estivesse presente sempre o perigo do “estouro da boiada”) eram as

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travessias de rios de que nos dá uma descrição Nelson Werneck Sodré em “Tipos e Aspectos do Brasil” 19. Para se ter uma idéia do que a operação exigia do boiadeiro, basta a transcrição de poucas linhas: “Face à barranca, em local previamente escolhido, onde o acesso à água não se apresente de imprevisto, os vaqueiros reúnem as reses, aprontam as canoas. E um deles, metendo a cabeça numa carcaça de cabeça de boi, mete-se no rio, dando o exemplo indispensável para que, apertadas pelos outros vaqueiros, as reses, confiantemente se atirem em seguida aquela que supõe afoita iniciadora da travessia. Se o momento de entrada nas águas é dos mais críticos, exigindo pericia e presteza dos vaqueiros, não menos difícil é a tarefa de conduzir o rebanho, através do rio, vencendo a correnteza, até a margem oposta”.

O progresso chegou ao sertão, mas seu beneficiário não foi o vaqueiro e sim, em termos de emprego tão somente, o motorista de jamanta que, na maioria das vezes aprendeu sua profissão na metrópole, uma profissão que de certa forma implica aprendizado muito mais rápido e simples do que a do boiadeiro. É verdade que pode se tratar de um indivíduo que abandonou aquele mesmo sertão atraído pelo nível salarial mais alto da cidade, mas é de qualquer forma um aventureiro de valores diferentes daqueles do homem do sertão. Nada o liga ao gado simples mercadoria a transportar. Não lhe conhece os nomes, que já não os tem, nem as manhas, nem nada. Não precisa o temer, pois o progresso o coisificou o quanto era possível. Do ponto de vista do Boi, não há opção, é claro: é difícil saber, caso ele pudesse escolher, se escolheria o caminho mais rápido para a morte, espremido num caminhão, ou o caminho mais lento, as agruras da longa viagem ainda compensadas por um descanso na “invernada” antes do massacre final. A “opinião” de um boi, na nossa civilização, não pode contar, nem nunca contou. (O decisivo é saber se é vantagem ou não para os matadouros e frigoríficos...). Mas o vaqueiro, o boiadeiro que não assiste à cena final, tem tempo de conviver com o boi, de o sentir personificado tal qual aparece em “Boi soberano”. Aqui o boi, preto e estigmatizado (talvez preto como o vaqueiro e estigmatizado como este se sente hoje), e reabilitado pelo cantador, é capaz de sentir comiseração pela criança indefesa numa cidade “progressista”, cujo comercio, em dias úteis só se fecha mesmo diante do pânico de um estouro da boiada. A condenação, por isso não é só a progresso, mas também dos que aceitam ativamente essa coisificação do gado e os novos valores que o progresso trás consigo. Em “A Morte de Zé Carreiro”, a ganância, o apego ao dinheiro são opostos diretamente a certo sentido de parcimônia sancionada pela religião através da abstenção do trabalho em dias santos. Afinal a aceitação do progresso tem como conseqüência, em todas as partes, um repúdio da tradição, da religião, e é como consequência da infração dos tabus religiosos que o homem do campo 19. “Travessia de Gado”, pág.426-427 (Trecho sublinhado por nós).

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compreende as desventuras individuais, que toma como exemplo e consolo: senão humana, ao menos divina, a justiça ainda existe...20 Percebe-se, no entanto, em “A Morte de Zé Carreiro”, ao mesmo tempo em que a condenação do comportamento cruel do carreiro em relação ao gado (que não deveria ser maltratado pois também sofre, idéia que , de certa forma, o personifica), uma concepção diferente da que encontramos em “Boi Soberano”, isto é , a concepção da boiada como objeto, capital pertencente ao seu dono e que juntamente com ele é castigado após ser causa de sua morte. O gado aqui é concebido como bem que desaparece com o seu dono ou com ele vira assombração, em parte isso se explica porque o carreiro parece ser, no caso, realmente dono de suas juntas de bois, ao contrario do boiadeiro, do vaqueiro que cuida da boiada de um patrão. De qualquer forma são duas concepções diferentes, a primeira implicando numa mentalidade que poderíamos chamar de “mais moderna”. Diferente é a projeção do boiadeiro em seu cavalo, na 7ª estrofe de “Magoas de Boiadeiro”. A identificação é, poder- se- ia dizer, de igual para igual, homem e cavalo envolvidos numa atmosfera de camaradagem, convivência, e não existe uma objetivação do animal apesar deste pertencer realmente ao vaqueiro. Finalmente após a mágoa de certa forma conivente, corresponsável que transparece em “Os três boiadeiros”21 e “Menino da Porteira”, em que o boiadeiro cala seu berrante22em respeito aos companheiros e ao menino morto pelos bois, a grande magoa do berrante é silenciado para sempre porque já não há mais boiadas a tanger...

20. Uma observação curiosa é que o castigo divino é preferentemente concebido como advindo através da tempestade e do relâmpago, o que revela a concepção provavelmente mais arcaica da humanidade a respeito de justiça (não a humana, mas a “dikê” de Zeus da Grécia antiga), a justiça cósmica que restabelece o equilíbrio sempre quebrado pelo homem. 21. É nesta música que mais se torna patente o fatalismo com que o boiadeiro sente o paulatino desaparecimento de seu mundo: um após outro, seus companheiros encontram a morte, um talvez por inabilidade, o outro “à tôa”, o certo é que ele se encontra só, abandonado, representando essa perda por outro símbolo fatídico: o número três. 22. O berrante chama o gado. O seu silencio é um protesto resignado, não se chama mais, sua presença ali é uma profanação. O vaqueiro consegue ir-se com o gado...

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CAPÍTULO II O

PROGRESSO INVADE O SERTÃO

Os últimos cem anos têm assistido a uma apologia constante do progresso de tal forma confundido com as mais altas aspirações que a humanidade poderia ter, única via de acesso a uma felicidade e bem-estar geral, que as populações que não o aceitaram de pronto foram vistas pelo ocidental como, senão geneticamente incapazes de uma “evolução” (nas ideologias racistas) ao menos como representantes de culturas “estagnadas” (como se a única forma verdadeira de florescimento cultural dependesse da industrialização moderna). Isto em se tratando de populações nativas e rurais do chamado “terceiro mundo” em geral, porque, quanto às minorias descendentes de europeus dos EUA que, por motivos de ordem religiosa, olharam com reservas ou hostilidade o progresso do país mais “progressista” da América (modelo para os apologistas do progresso das outras partes do continente), são elas encaradas como “excêntricas”23, não como incapazes, e suas posições, por vezes, até admiravelmente analisadas e dignificadas. (Haja vista o excelente filme de E. Wyler sobre Quakers, cujo titulo foi traduzido para o português como “Sublime Tentação”). Quanto ao nosso caboclo, já nem se lhe dá tempo (poder-se-ia dizer) de se organizar assim em focos de resistência, se deixarmos de lado alguns movimentos messiânicos, geralmente eliminados tão logo se tornaram conhecidos, por ação policial ou militar (como no caso de Canudos e Contestado). Fica o ressentimento de um progresso imposto “sem previa consulta”, fato consumado diante do qual o homem do mundo rural só pode reagir de forma passiva, procurando um ultimo consolo, ora numa visão fatalista do mundo, ora apegando-se a um ou outro caso em que pode imaginar a justiça divina agindo contra os que aceitaram tão prontamente e ativamente a grande transformação, ora simplesmente se “realizando” sonhadoramente através da evocação saudosa do passado. È essa reação confusa e dolorida que se pode notar nessa pequena amostragem de musica sertaneja. O progresso chegou ao campo através das pontes e estradas, abrindo perspectivas de ganho para muitos no setor terciário da economia (que é sabidamente o que menos pode ser identificado com o verdadeiro progresso), mas despojando de seu trabalho justamente a população mais pobre que costumamos apontar erroneamente como de mão de obra não especializada

23. Como é o caso do povo de Amish, pequena comunidade de Mennonitas (seita de origem suíça), com aproximadamente 17.500 membros em 1970, que conservou religiosamente as tradições e o modo de vida de fins do século XVII.

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quando na realidade o que acontece é que a especialização dela se tornou “supérflua” (e quase sempre como no caso do boiadeiro uma especialização de aprendizado perigoso e duro). Pode-se argumentar que todo o progresso tem o seu preço e alguém terá que pagá-lo. Pode-se argumentar que é sempre também sobre o mais fraco e mais pobre que recai o ônus maior. E pode-se argumentar ainda que afinal esse mais pobre e mais fraco quando encontra um ainda mais pobre e ainda mais fraco que ele, tende a agir contra este tal qual os mais poderosos agem contra ele próprio. É verdade. Leia-se, já não digo o que nos conta Darcy Ribeiro com base numa vasta documentação24 mas tão somente uma pequena passagem de Hugo de Carvalho Ramos25 (Alias trechos de cartas, daí certamente depoimento), em que o velho vaqueiro Casemiro conta como deu cabo (à toa) de um velho e tremulo Karajá amoitado no alto de uma árvore procurando dizer, num português arrevezado que ele já não representava mais nenhum perigo ao “valente tori”26. O problema que se coloca hoje cada vez com maior insistência é justamente esse: justifica-se o “progresso” assim conquistado, num momento mesmo em que o homem do século XX, o homem ecumênico, sabe perfeitamente que a única justificação moral para a própria existência da espécie humana no mundo é uma luta pela espécie humana como um todo, e que falar em nome de “civilização” só se pode conceber como falar em nome de uma civilização mundial? Pode o processo se justificar, quando ele continua significando melhoria de condições econômicas apenas para um setor da população, já relativamente abastado em detrimento de outro setor, já mais pobre e , portanto , politicamente importante? Segundo o poeta russo Andréi Voznessenski, citado por Lev Kogan,27 “todo o progresso é reacionário quando o homem é esmagado” (“tout progrès est reactionnaire lorsque l ‘homme est écrassé”). É, nós sabemos que o sentido aqui não é só o do “esmagamento” físico da inanição dos que representam exatamente o “custo social” desse progresso, mas de uma forma mais generalizada a automatização, a alienação, a esterilização cultural do próprio beneficiário desse progresso28.

24. RIBEIRO, Darcy – “Os índios e a civilização”. 25. “Tropas e Boiadas” – (“Nostalgias”, págs. 19/20). 26. “tori” – nome com que os Karajá designam o “cristão”. 27. “L’Homme, la culture, la civilisation”, (in DIOGÉNE nº76-1971 – Gallimard, pág.49). 28. ...”Un progress qui n’apporterai à I’humanité que ruines et dégradation, qui porterai préjudice au patrimonie culturel de l’humanité, ne peut être qualifié de progrès”.(L. KOGAN, op. cit.).

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Deixando de lado os prejuízos imediatos que possa representar para uma parcela (e grande) da população, há outro aspecto de “progresso” que preocupa: o seu imediatismo, seu avanço sem planejamento, a não ser no sentido do que pode dar maiores lucros dentro de uma mesma geração, melhor ainda, dentro de um mesmo ano ou para o ano seguinte. Já não é preciso recorrer a hipóteses para se indagar, por exemplo, se o que se terá que pegar pela esterilização do solo e pela poluição das águas e da atmosfera (para falar a linguagem dos arautos do progresso, mencionemos apenas as verbas e trabalhos que terão que ser empenhados em programas, já bastante urgentes, de despoluição) compensaria, mesmo para a pequena minoria o passo que ela deu a frente ás custas dos dois passos de retrocesso, da maioria sacrificada; se, para o próprio beneficiário a compensação é duvidosa, imagine-se o que poderá ocorrer com relação à totalidade. Veja-se se a esse respeito um artigo de Papadopoullos29 em que procura expor os critérios antropológicos de uma definição de progresso: “...aucune science de l’homme n’est jamais sortie du vide, c’est-a-dire, en faisant table rase des mobiles especifiques qui guident sa démarche dans les problèmes auxquels ele s’attache. Puisque tout science de I’homme est motivée par la problématique humaine, aucune ne peut prétendre échapper tout à fait aux obligations implicites que lui créent ses rapports avec l’environnement social qui a veillé sur son berceau. Cela ne veut pas dire que les sciences de I’homme soient ou doivent être necessairement normatives, bien qu’elles soient souvent appellées à se pencher sur tel ou tel problème qui leur est posé. Leur raison d’être tient à cette mission, elles doivent se montrer objetives et d’exclure toute intrusion de critères subjectives comme toute jugement de valeur. Mais, si leur methode est scientifique, leur mission, par contre, est en dernière analyse axiologique, puisque elle est au service des besoins de I’humanité”30.

Poder-se-ia acrescentar que, numa visão menos obtusa, numa visão do progresso a longo prazo, o próprio método só pode ser científico se a ciência realmente estiver a serviço da humanidade, não só do presente, mas também do futuro, e humanidade tomada em sentindo global.

29. PAPADOPOULLOS – “Critères anthropologiques d’une définition du progrès” In DIOGÉNE, nº 91, 1975 – Gallimard, Paris. 30. Idem, op.cit., págs. 47/48. Frase final, grifo nosso.

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CAPÍTULO III O

BOIADEIRO E O BOI NA UMBANDA.

SIMBOLISMO

DO BOI, DO CAVALO

E DO BURRO.

Após vários estudos publicados sobre a Umbanda, nota-se uma lacuna no que diz respeito ao boi e ao boiadeiro.31 Em observações participantes, notou-se que há um culto especial ao boiadeiro, que se constitui numa “linha”32, a linha dos boiadeiros. É uma linha bastante peculiar. Seus membros parecem reproduzir no transe elementos de uma cultura ligada ao ciclo do boi, que se encontra no inconsciente coletivo. As denominações adotadas pelos médiuns em transe são variadas, podendo ter vastíssima amplitude, desde nomes comuns no aumentativo ou diminutivo, até nomes com designativos locais ou especialidades. Assim: Pedrão, Manelão, Zécão, Zézinho, Pedrinho, ou ainda Ditinho da Porteira, Ditinho de Itu, Carlito de Sorocaba, João Boiadeiro, Dito Tropeiro, Zé do Laço, Zé Gavião, Serafim, Serrapião de Minas, Vitorino de Goiás, Mané Quebra-Terreiro, Tião Boiadeiro, etc.33 O comportamento estereotipado durante o transe caracteriza-se pelo riso, a alegria, a citação de provérbios e etc. Gostam de portar e tocar o berrante, usando rebenque ou rabo de tatu, “guaiaca”, lenço colorido ao pescoço preso por uma cabeça de boi, feita de chifre, um chapéu de aba larga.

31. O folclore do boi, particularmente o “bumba-meu-boi” vem sendo estudado há mais tempo. É contudo importante ressaltar que, embora hoje um folguedo popular, suas sequências principais atestam sua origem religiosa. A morte do boi, sua retaliação, seguida da transcendência (ou ressurreição) seguem o esquema típico do “sparagmós”. Roger Bastíde (Les religions Africaines au Brésil, pág. 192/3) nota o paralelo entre o “bumba-meu-boi” e uma dança dos Caraíbas negros de Honduras, em que a morte e ressurreição está ligada à caça, tal qual na dança “nanzéké” da África, em que o animal morto é um antílope. O retalhamento do corpo da vítima, que pertence ao horizonte conceitual da caça, parece que permanece e se acentua como característica da “dinvindade-dema” nas áreas pastoris (de economia simples). 32. Embora, rigorosamente, se chame de “linha” apenas as que estão sob as ordens diretas de Orixás maiores (Ogum, Xangô, Yemanjá, Ibeji, Yori, Yorimá e Oxoce), é comum nos terreiros ouvir-se “linha de boiadeiro”, “linha de cangaceiro”, “linha de baiano”, ao invés da denominação clássica que distingue classes ou falanges. 33. Nomes recolhidos nos terreiros de Umbanda das cidades de Araraquara, Ibitinga e Bebedouro.

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A bebida solicitada durante o transe é a cerveja34 (“mijo de burro”)35 e, às vezes, o vinho branco, acompanhados de cigarro sem filtro ou cigarro de palha. Elegem como protetora Santa Rita de Cássia36, mas durante seus “trabalhos” de magia invocam Santo Antonio37através de Cânticos (“pontos cantados”). Nas observações realizadas pode-se notar a realização de “trabalhos” com as seguintes finalidades: 1) “Abrir caminho”38 Geralmente o “boiadeiro” pede ao consulente que lhe traga duas canelas dianteiras de boi, sete velas pretas, sente velas vermelhas, dois pedaços de fita (50 cm cada uma), uma preta, outra vermelha, uma agulha grande (de costurar 34. A cerveja é bebida mais barata, mais acessível, portanto, que o vinho. Além disso era bebida cerimonial já na África. Jahnheiz JAHN (Muntu, pag. 11) refere-se a essa cerveja africana inofensiva, proibida pelo branco e assim substituída pelo “skokian” descrito por Jahn. A bebida (geralmente, mas não sempre fermentada, com maior ou menor teor embriagante) é um elemento importantíssimo em toda fase (“primitiva” ou não) particularmente nos cultos de caráter dionisíaco. É ainda Roger BASTIDE (op. cit. pág. 465) que procura alertar o interessado no estudo dos ritos afro-brasileiros contra o etnocentrismo: “L’eau-de-vin étonne le Kardéciste, mais le prêtre boit bien le vin dans la messe”. 35. Se o burro é um símbolo da Natureza opondo-se ao cultural (como se procurará mostrar adiante), é compreensível que a bebida que acelera a exaltação que leva ao transe seja simbolicamente uma “anti-bebida” no mesmo sentido em que LÉVI-STRAUSS identifica como “anti-alimento” certos fatores de transformação nos mitos. (Veja-se, por exemplo, M. 5 Bororo, in Le Cru et le Cuit, págs. 67 e 71, em que a transformação é a doença do herói. Ora, doença e êxtase são duas formas de se passar, com possibilidade de retorno, um pouco para o “lado de lá”). 36. Segundo Roger BASTIDE, (op. Cit.pags.368/369) baseado em Octavio da Costa Eduardo, Santa Rita é identificada com Nananburucu. Segundo TALORA Práticas Religiosas nos terreiros de Umbanda (pag.88) Nananburucu é orixá das chuvas, protetora das plantações, sendo uma das comidas que lhe é consagrada justamente a carne de boi. Ela é, no sul, no entanto, sincretizada com Sant’Ana. Além disso, Nananburucu é chefe de legião da linha de Iemanjá (op.cit.pág90), enquanto Santa Rita aparece como chefe da legião da linha de Oxalá (op.cit.pág.91 ), Roger BASTIDE (op.citado, pág.448). Rita é um nome que tem grande preferencia no meio sertanejo e o diminutivo “Ritinha” é quase uma denominação estereotipada de “caipirinha”. E no Rio Grande do Sul, também região de pastoreio, o canto e dança de fandango chamado “Chimarrita” talvez tenha seu nome derivado de “china Rita”, segundo Romanguerra Correia, citado por Augusto MEYER (Guia do Folclore Gaúcho, págs.56/57). 37. É bem conhecido o fato de Santo Antonio ser um santo que “permite” que se o trate de forma mágica, nas “simpatias” casamenteiras das festas juninas. A tradição (“as tentações de Santo Antonio”) lhe atribui uma grande luta interior, para dominar a si mesmo, o que encontra um paralelo na caracterização dele na Umbanda, como “amansador de burro brabo”, o que concorda por sua vez com a sua identificação, no sul do Brasil, com Exú. (Vide R. BASTIDE, op.cit.,pág.366 – Eshou – Legba). 38. Segundo a crença umbandista, há pessoas que são vitimas de “coisa-feita” ou inveja. Isto “fecha o caminho” ao indivíduo; nada lhe dá certo, torna-se-azarado.

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sacos), uma garrafa de cerveja e uma “pemba”39 vermelha. A seguir as canelas são costuradas com as fitas trançadas, regadas com a cerveja. As velas são acesas e, minutos após, apagadas. Em seguida o material é despachado em um “mataburro” ou porteira. Enquanto se realiza o “trabalho” são cantados os seguintes pontos: a) “Santo Antonio do Mundo novo (bis) Não me deixe morrer sozinho (bis) Ai meu Santo Antonio, abra o meu caminho Ou: b) “Santo Antonio piquininho, amançadô de burro brabo; quem mexe com Santo Antonio tá mexendo co’o Diabo.” (As estrofes podem ser repetidas várias vezes.) 2) “Realizar casamentos” São pedidas ao consulente duas imagens pequenas de Santo Antonio, duas fitas (de 50 cm., uma preta, outra vermelha), uma garrafa de cerveja e uma tira de papel com o nome das duas pessoas a se unirem. O papel é fixado nas duas imagens amarradas frente a frente com as fitas trançadas, a seguir regadas com cerveja. Ao consulente se ordena enterrar as imagens unidas de “ponta-cabeça” (de cabeça para baixo), dizendo as seguintes palavras:

39. “Pemba”: subastantivo feminino; é o giz mineral utilizado na Umbanda para riscar os pontos. O uso da pedra na religião e magia é bem arcaico e deve proceder do mundo mental dos caçadores paleolíticos. A pedra se opõe a madeira como símbolo do imperecível em muitos mitos sul-americanos. Cristais de quartzo são usados pelo médico-feiticeiro australiano, assim como por médico-feiticeiro de tribos sul-americanas. Por isso se compreende a importância de se mencionar a origem mineral (e de minerais dos “montes Calmos na África”, segundo Aluízio FONTENELLE – A Umbanda através dos séculos Cap. XIX, págs. 211 a 212). “Riscar um ponto com a pemba, é o mesmo que condenar ou absolver um elemento humano, castigando-o ou premiando-o de conformidade com o seu Karma” (Ibidem). Pela cor de “pemba” segundo Boaventura KLOPPENBURG (A Umbanda no Brasil, cap. VI, pág 117) “pode-se identificar a linha a que pertence a Entidade. De um modo geral as cores pertencem: Branco aos Pretos velhos, vermelho a Ogum, amarelo a Oxossi, rosa a Cosme e Damião e ao Oriente, roxo ao Xangô, azul a Iemanjá, preto a Exu e Omulu”. O mesmo autor dá a descrição da fabricação de um exemplar de pemba branca, “legitima africana, exportada diretamente da Africa por Ali-Bem-Itah, descendente legítimo de Li-U-Thab da tribo de Umbanda” (pág.96). a pemba vermelha, de que se trata no trabalho de “abrir caminho”,

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“Santo Antonio, só te libertarei quando realizar o pedido” Durante a realização desse ritual mágico é cantado o ponto “b” já mencionado. 3) “Livrar de atrapalhações”40 Neste caso é solicitado um coração de boi, uma agulha grande, duas fitas (uma vermelha e outra preta), quatorze velas (sete pretas e sete vermelhas) e uma garrafa de cerveja. Enquanto é cantado o ponto “b”, o consulente deve fixar seu pensamento na “complicação” da qual pretende se livrar; o médium em transe costura o coração bovino com as fitas, cujas extremidades são trançadas, sendo tudo regado à cerveja. A seguir deve-se fazer o despacho ao lado de uma porteira. Algumas vezes, quando há problemas com outras pessoas (dívida, prejuízo no trabalho, etc.), o nome do desafeto é colocado dentro do berrante, que é soprado várias vezes. Como se observa, o boi, embora não de modo ostensivo, aparece nas práticas umbandistas, uma vez que determinadas partes do seu corpo são utilizadas em rituais mágicos41. Além disso, são muito freqüentes, entre os umbandistas, outras práticas mágico-supersticiosas envolvendo o boi. Muitas pessoas colocam uma cabeça de boi na frente da moradia para “dar sorte” e afastar “mau-olhado”, inveja, etc.42 Os umbandistas, ao atravessarem porteiras, ainda pedem licença a forças do além. A porteira é considerada um local mágico e perigoso, tal qual o “mataburro” e a encruzilhada, como símbolos arcaicos da passagem de um mundo para outro. Em um dos pontos cantados recolhidos, nota-se alguns elementos desse simbolismo: “Oi abre a cancela qu’eu quero passar. Quero ver meus filhos do lado de la.

40. O conceito de atrapalhação é muito vago, podendo ir desde complicações policiais até financeiras. 41. Como a parte simboliza o todo, é difícil perceber que nos trabalhos de “abrir caminho” e de “livrar de atrapalhações” estamos lidando com um sacrifício ritual do boi. O boi “abre caminho” (fechado, esperando um sacrifício) com suas patas dianteiras: e toma o caminho da “esquerda”, o “sinistro”, para que o consulente possa seguir o “dextro”. 42. Prática muito utilizada também por pessoas não pertencentes à Umbanda.

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Na minha guiada falta uma de rês.43 Oi, falta duas! Oi, falta três!44 Querer ver os filhos do lado de lá, parece indicar a afirmação (e garantia) de que a passagem se dará para o mundo humano e não vice-versa. A estrofe seguinte parece conter a idéia de sacrifício de 3 reses, como se passagem para um mundo já tivesse sido compensada pela ausência das reses “despachadas” para o “lado de lá”.45 Assim que, de certa forma, toda porteira, “mata-burro” (e neste caso, de forma real, para o burro) e outros marcos de passagem46 são simbolicamente “encruzadilhas”. Nas sociedades que conheceram a criação de gado, o principio vingador da Natureza (contra o homem e sua “hybris”) assume comumente a forma de um animal que pasta (aparentemente inofensivo, portanto): bode, burro, acabando por transformar-se no princípio cósmico que castiga o “mau” (-o Diabo); da mesma forma que a oferenda (do mundo humano ao outro, não humano) encontra seu símbolo no carneiro e no boi. Outra oposição é a do burro ‘“ cavalo e, neste caso, trata-se mais de uma oposição “Natureza ‘“ Homem” ou “Anti-social ‘“ de Social” que se torna patente na possessão mediúnica nos terreiros de Umbanda. Assim, ao “receber” entidades da Umbanda, o médium recebe o designativo de “cavalo”,47 enquanto nos trabalhos de Quimbanda48, quando está possuído por um exu, é chamado “burro” ou “besta”. Isto remete-nos à crença popular de que o cavalo é dócil, enquanto o burro é “maldoso”, traiçoeiro, etc. Um ditado popular (“burro não amansa, acostuma”), parece propor a idéia de que o burro não merece confiança, o que parece reforçado por outro dito popular: “Filho de burro, cedo ou tarde dá coice”. Parece que o lendário popular também cristalizou idéias sobre o burro, conforme a lenda 43. Uma rês pode equivaler a um touro, uma vaca, uma novilha, um bezerro, uma bezerra, ou também a um garrote. Aparentemente, a ausência de referencia à idade e ao sexo do animal é intencional. 44. Ponto recolhido nos terreiros “7 Encruzilhadas”, “Pena Roxo” e “João Boaiadeiro e Zé Gavião” de Araraquara. 45.Compreende-se assim que os despachos (na realidade, “bodes-expiatórios”) sejam feitos junto a porteiras ou mata-burros. 46. Pode-se incluir aí a escada aberta que, como é conhecido, o supersticioso evita atravessar. 47. No candomblé é também freqüente a denominação de “cavalo de santo”. 48. A Quimbanda tem sido designada como a “linha” do mal; a “esquerda” em oposição a Umbanda que seria a “linha” do bem, a “direita”, etc.

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recolhida na cidade de Cunha sobre a Natividade de Cristo49. O burro teria sido amaldiçoado porque comeu a grama do estábulo50, recebendo como castigo a dupla maldição de ter sempre necessidade de comer e de ser estéril. Também no Império Romano já existia certo preconceito com relação a este animal, como se observa no provérbio “Asinus ainum fricat”. Na literatura latina, “O Asno de Ouro”, de Apuleio, conta a historia de um garoto teimoso e curioso transformado em burro, através de “artes mágicas”. No caso especifico do cavalo, o lendário popular o vê com olhos diferentes. Para o caboclo brasileiro, é ele a montaria dos Reis Magos nos presépios caipiras do vale do Paraíba, sendo também muitas vezes apontado como exemplo de docilidade e fidelidade em inúmeros “causos”51. A identificação do vaqueiro com seu cavalo já foi ressaltada atrás. Sua fêmea, a égua, no entanto, não goza desses conceitos entre os nossos matutos. Geralmente ela é vista como um animal que come em demasia ou que tem instintos perversos52. No caso do burro a execração atinge também sua fêmea, como se nota na lenda da mula-sem-cabeça.53 Algumas expressões típicas reforçam esta idéia: “Burro não é batizado”, referência dos caboclos aos imprevistos que esta montaria apresenta, isto é, ao mesmo tempo em que se encontra dócil ao comando do cavaleiro, pode tomar o feio nos dentes e disparar, saltar ou empacar. Segundo a tradição, enquanto o cavalo permanece parado ao derrubar o cavaleiro da cela, o burro procura feri-lo com os cascos (coices ou manotadas). 49. A.M. ARAUJO, Folclore nacional, 1º Tomo, pág.170. 50. A deposição de Jesus recém-nascido na manjedoura, como símbolo de seu sacrifício futuro, é, num nível mais arcaico, o símbolo de uma verdadeira prestação total: como compreender de outro modo o sacrilégio do burro, senão através de uma identificação de Cristo com o alimento (a grama)? Como notou GERNET, L. (Anthropologie de la Grece antique, págs.391 e segs. “Tout sacrifice comporte sacrilege. Gernet discute, no texto referido, as “bouphonies”, o assassinato do boi, complexo mítico que fornece certos elementos análogos à lenda do sacrilégio e castigo do burro. 51. O “causo” é uma história típica do caboclo, em que muitas vezes há um fundo moral. 52. Segundo a tradição dos domadores, a égua “chucra”, quando salta e não consegue derrubar o cavaleiro, “boleia”, isto é, joga-se de costas tentando matar o cavaleiro. 53. A nossa “mula-sem-cabeça” (metamorfose a que está condenada a amásia de padre ou a 7ª de uma serie de filhas mulheres em cujo batismo não se tenha tomado os cuidados dos rituais necessários), está na mesma posição estrutural da “werwolfin” (fem. de “Werwolf”, “lobisomem”... a crença da licantropia feminina sendo porem mais rara...) do folclore europeu. É, contudo, em raposa e não em loba, que se transforma a bruxa (as “Maenadas” são representadas como raposas). Essa transformação em raposa, temas de algumas sagas de Macklemburgo (Alemanha) e crença antiga no catão de Graubunden (Suiça), caracteriza também o folclore chinês, particularmente do norte. (PEUCKERT, W.E. – Gemeine Kulte, págs. 117 a 123).

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“Não é com a espiga que se apanha o burro, mas com o laço”, referencia do caboclo ao fato de vir o cavalo comer o milho nas mãos de quem lhe oferece a espiga, enquanto o burro procura sempre afastar-se.

CAPÍTULO IV O BOI

NA

MITOLOGIA INDÍGENA BRASILEIRA

A mitologia é um universo vivo a bem dizer, é a visão cósmica estruturada e em constante reestruturação, em que novos elementos são integrados, assimilados a antagonismos arcaicos, a oposições pré-existentes. Enquanto as tribos tupis mais litorâneas foram rapidamente dizimadas a partir da descoberta, pela escravização ou pelas alianças com ou contra os civilizados (umas e outras resultando evidentemente em guerra contra outras tribos e contra colonizadores), pela catequese e pelas doenças (alias dois fatores igualmente interdependentes), as tribos Jê, localizadas mais no interior e mais arredias, só em épocas mais recentes, com expansão do gado, entraram em contato direto mais constante com o civilizado. O universo “exterior” do jê (caçador, pré-agricultor ou agricultor incipiente) é, aparentemente, bastante indiferenciado, “oceano” cósmico mágico, envolvendo a ilha humana que é o território tribal. Além dos limites desse território vive o “outro”, o “estranho”: o que não é humano. Se o “estranho” se aproximar, se ele se fizer entender, não existe outra possibilidade de “captá-lo” a não ser dentro do mesmo esquema usado pelos cristãos para “captar” o ameríndio, na época da descoberta: como descendente de Caim (...) como remanescente de uma tribo perdida de Judá (...) com a diferença apenas, dos nossos índios nunca terem imaginado o branco como criado pelo Demônio (como alguns civilizados chegaram a conceber os nativos da América). O que deveria bastar para convencer os missionários que identificaram Jurupari e seus congêneres com o Diabo, que os “deuses” dos nativos não são “deuses do mal”, como os anjos caídos dos cristãos. O estranho é (...) o estranho. Não sendo humano, pode ser um ente que ora se mostra sob a forma animal, ora sob forma humana, pode ser um morto que revive e volta, um espírito que surge das profundezas das águas ou da floresta úmida. Provavelmente, boiadeiro e boi se confundiram inicialmente num ser hibrido. Aparecem juntos um dia e para um povo que não conhecia o pastoreio, a “aliança” com os animais deve ter parecido bem suspeita.

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Assim, entre os Krahó, de acordo com o mito recolhido por Harald Schultz54, parece-nos ter-se integrado um elemento novo na representação dos espíritos Kokridhô55; “Marquinho afirma que os Kokrid vivem nas águas do Tocantins. Ele já os teria visto sair da praia. Os filhotes deitam no chão. Os adultos, tão grandes como as máscaras originais96 pedem muito. A cantiga é tão forte que não gostava de ouvir. E imita: “RRRRR”. Têm chifres grandes. Quando acabam de vadiar no seco, voltam a mergulhar nas águas”.57

No mito de Aukê58, num momento em que os pais do herói vão à procura das cinzas dele, a presença do boi serve de introdução para a seqüência da transformação de Aukê em prospero civilizado: 54. Lendas dos índios Krahó, págs.151/2. Grifo nosso. 55. Idem, pág.151, nota 274: “Kokridhô: máscara de dança.” No livro “Da vida dos nossos animais”, de R. VON IHERING, foi-me indicado pelos Krahó o “percevejo d’água” como sendo o animal representado pela máscara. Vários índios confirmaram espontaneamente esta indicação. Mesmo que a máscara seja o símbolo do percevejo d’água, trata-se de um espírito animal ou de um “senhor dos animais aquáticos”, assim que no mito a caracterização de seus hábitos e seu tamanho nunca respondem realmente à espécie mencionada. Da mesma forma, os Bororo identificam aíge como o hipopótamo, animal da África e não do Brasil. Animais aquáticos que “pastam”, os índios já conheciam: o peixe-boi da Amazônia, o tambaqui.” 56. SCHULTZ não dá as medidas das máscaras no artigo. Refere-se aos desenhos, altamente estilizados, com que são decoradas, representando fenômenos, altamente naturais (sol, lua, arco-íris, rio, etc.) e certas frutas e animais (op. cit. pág. 152, nota 277). Diz-nos ainda que nas máscaras grandes são dependuradas miniaturas de máscaras, que representam os filhotes dos “Kokridhô” (pág. 151, nota 275). O nome “Kokrid” tem certa semelhança com o do grupo cerimonial dos “urubus-reis” (Kukrit-Ti), que Schultz cita em nota nº 266-a, pág. 148, sendo “Ti” sufixo aumentativo (nota 77, pág.76). a partícula “Ko” (“Kod”, “kót”?) aparece nos textos publicados por Schultz, em “kót” (cachimbo usado na magia de caça, conforme nota 34, pág.60), em copó (lança usada hoje somente nos rituais, conforme nota 138, pág. 98), em “koieré” (“machado de pedra em forma de âncora. Era antigamente usado como arma de guerra e instrumento ritual. “(Nota 159, pág. 114), em “kakót” (“flecha com ponta contundente”, conf. Nota 198, pág. 127), e em “kokré” (“mosquito, conforme pág. 56). Possivelmente tem conotação de “ferir”, “picar”... em última análise, alguma relação com “morte”, como aliás seria de se esperar de um espírito das águas. (O mesmo acontece com o “aíge” bororo, ainda que a ligação com os mortos seja, no caso bororo, reforçada pelo fato das águas serem última morada dos despojos enfeitados do morto). A partícula “krit” aparece também na designação krahó do martim-pescador (“tebkriti”, vide pág. 145, op.cit.) O material publicado por Schultz é riquíssimo e mereceria um estudo aprofundado. 57. Caso os índios tenham assistido, nos primeiros tempos, de longe, a alguma travessia de gado (descrita atrás), o que é muito provável, teríamos uma lógica para essa associação de ideias. 58. SCHULTZ, H. op. cit. pág. 86 a 93. Roberto da MATA publicou a “variante” timbira do mito de Aukê (recolhido por Nimuendajú) em duas análises estruturais (“Mito e autoridade doméstica” e “Mito e antimito entre os Timbiras”, in Revista do Instituto de Ciências, vol.14, nº1, Rio de Janeiro e Mito e Linguagem Social, págs. 77 a 107, respectivamente).

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“Quando caminhando, caminhando, já vai encostar da onde que queimou. Aí eles já estavam escutando a zoada dele. Já boiando pro gado...59 “Ai” (...) o avô (...) foi também. Quando encostou, escutou do mesmo jeito. Está fazendo zoada; daí ele voltou. Quando chegou, contou história: “Ora, quando nós chegou, escutamos muita zoada de muito bicho, pássaro, peru”. Mas não sabia o nome destes bichos que não conhecia, só contando zoada deles e também de boi (explica o informante).”60

A tribo Jê dos Krahó vive na parte setentrional do estado de Goiás.61 Segundo as informações que recebeu Schultz, estavam então aí há duas gerações e tinham tido aldeias perto de Carolina (sul do Maranhão) e Pedro Afonso (Goiás).62 “Os Krahó de hoje são essencialmente lavradores.” (...) “Criam galinhas e patos. Alguns porcos buscam o seu próprio sustento, que a mata lhes fornece em profusão. Alguns índios já possuem algumas cabeças de gado. Nunca abatem uma rês e nisso são intransigentes, pois desejam que o seu número aumente.”63 Este é o quadro que nos apresenta Schultz, dos Krahó que visitou em 1947. Não é de estranhar, pois, que encontremos entre eles a palavra “boi” como função simbólica totalmente desligada do animal que representa, no texto da primeira lenda que Schultz nos apresenta.64 “(...) deu fé na mulher que estava sentada em cima do boi dela.”65 Em nota de rodapé, nº26, o autor informa que o significado de “boi” é “sangue”. Talvez se pudesse aventar uma hipótese para esse emprego, aparentemente tão estranho, do vocábulo: No mesmo mito, Pud ordena a Pudleré que faça um cachimbo (“kót”): “Pud falou: “Bota fumo!” E botou fumo. “Pode pitar pro rumo do mato”. Dai ele pitou e tirou sangue da anta.”66 Em nota de rodapé (nº35), Harald Schultz informa que o fumante cospe na mão “vendo o sangue misturado com a saliva da caça que irão abater.” Saliva e sangue de caça estão portanto (e como é lógico) em combinação. Em oposição corporal (o baixo opondo-se ao alto, como diria Lévi-Strauss), o sangue menstrual67 é sangue que não pode ser alimento, é um 59. SCHULTZ, op. cit. pág. 88. Grifo nosso. Todos os animais “fazem zoada” e portanto zoada é qualquer barulho. Mas o texto parece indicar que a zoada de Aukê é o aboio do boiadeiro. 60. Ibidem, pág. 89. 61. Ibidem, pág. 49. 62. Ibidem, pág. 51. 63. Ibidem, pág. 52. 64. Ibidem, pág. 55 a 65 (“ Pud e Pudleré (Sol e Lua)” – I). 65. Ibidem, pág. 57. 66. Ibidem, pág. 56. 67. No caso, trata-se de sangue que decorre da violação da mulher por Pudleré.

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sangue que representa semente, que deve servir para procriação, tal qual o boi que (vide acima) o krahó nunca abate. Outro exemplo da presença do boi temos no mito Umutina “Etoriká”68, que apresenta um paralelo com o mito de Auké, pois o sobrinho de Etoriká, herói da história, toma, como Auké, atitudes anti-sociais e mesmo incestuosas69 : “O sobrinho que se chamava Matungo virou garrote e experimentou todas as qualidades de paus e raízes para fazer chifre. Mas não prestava nada, até que ele achou cerne, que era bastante duro. Ele descascou com o cerne a casca de um jatobá. Com isso ele estava satisfeito e queria vingar o que o tio tinha feito com o povo dele.” “Este é o primeiro touro que foi feito.” “Todo o povo saiu com as flechas para atirar nele. Mas as flechas não podiam entrar nele.” “Etoriká veio bem atrás. Quando o touro viu ele, baixou a cabeça, pegou ele no chifres e correu com ele até na grande lagoa feia e atirou ele lá dentro.” “Em seguida virou gente outra vez e voltou e chegou em casa violento antes dos outros.” “ninguém sabia que ele tinha virado touro. Só depois de muito tempo ele contou que foi ele que tinha virado touro.” “Ai todos ficaram admirados. O filho do Matungo virou novilha e foi morto. O povo trouxe a novilha morta para o Matungo. Mas o filho dele já tinha virado gente outra vez.” “Quando trouxeram a novilha, para o Matungo, o filho dele queixou que estava muito doente com muito frio e queria comer carne. O pai disse “Espera um pouco!” Ai ele virou um grilo e comeu pedacinhos de carne.” “Naquele tempo não havia nem grilo ainda. Assim também apareceu o grilo do filho do Matungo!”70

Numa nota de rodapé, Schultz ressalta que o nome “Matungo”, que significa “cavalo velho”, não é usado pelos Umutina como prenome. Não se refere a problemas tidos com civilizados por causa de abate ou “roubo” de gado71, mas, a julgar pela localização e pelo mito acima, certamente houve conflitos desse tipo. Os Akwe-Xavante estiveram ao longo do rio Tocantins até aproximadamente fins do século XVIII. Depois seguiram para Oeste, em direção ao rio das Mortes. Deste local, serra do Roncador, atacavam as embarcações dos viajantes do Araguaia que se aproximavam da margem esquerda (limite leste do território atual). 68. SCHULTZ, Harald – “Informações etnográficas sobre os índios Umutina”, págs. 250 a 253. 69. Aukê, aparentemente, não é incestuoso, mas na versão Krahó recusa-se a nascer no tempo certo e, na versão, Timbira, além disso, tem também ímpetos endófagos, durante as suas repentinas transformações em onça. No caso, endofagia e incesto são atitudes equivalentes. 70. SCHULTZ, op. cit., pg. 151/3 71. Também Darcy Ribeiro (Os Índios e a Civilização, pg. 83) não se refere a tais contos, ao tratar, muito rapidamente, dos Guatós.

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Poderiam, portanto, ter deparado com a frente pastoril, primeiramente no Tocantins e mais tarde no Araguaia. Eles se referem sempre a “Owawe”72 (rio grande), que Giaccharia e Heide73 identificam com o rio das Mortes e MayburyLewis74 com o Tocantins. O “estranho” ou “inimigo” para os Xavante é “Waradzu”75 . Nos contos de Jeronimo, (Jeronimo Xavante Sonha) a palavra é traduzida como “civilizado”76 , mas certamente o termo já existia muito antes dos Xavantes entrarem em contato com os brancos, pois outras tribos também são assim denominadas. Os Bakairi são os “Waradzu Watsa” que acreditamos poder traduzir como “os estranhos ou inimigos que (também) caçam”.77 “Quem é o Waradzu? O boiadeiro? É o Apitó, Apitó Camilo”.78 O boiadeiro aparece assim como o “Waradzu” no conto “A Vaca pintada”79. Nele, Jeronimo narra como Apitó Tsawe apareceu em sonho, mostrando-lhe uma vaca pintada e dizendo-lhe que os Xavantes podiam comer essa “caça” sem receio, uma vez que ele (Apitó Tsawe, certamente um herói mítico Xavante) tinha dado todas essas coisas ao homem e que as vacas só ficaram para os brancos porque os Xavantes não tinham cuidado delas. Em “Wadzuri’wa”80 , Jeronimo nos conta como “Os Xavantes saíram do osso da vaca, e foram debaixo de chuva pacificar os Waradzu”. 72. “Owawe” é também o nome de um clã xavante. Como o “rio grande” aparece, na concepção xavante, como limite do “universo humano”, passagem entre os dois mundos, é compreensível que a necessidade de lidar ritualmente com essa importantíssima passagem, a tenha “interiorizado” (isto é, tenha criado a necessidade de representá-la por uma parte da sociedade xavante). 73. GIACCHARIA, B. e HEIDE, A. Xavante – Povo Autêntico. 74. MAYBURY-LEWIS – “Some crucial distinctions in Central Brazilian’ Ethnology”, pg. 354, nota de rodapé nº14. Este autor usa a grafia “Ewawe”. 75. O termo “dzu” parece ter o sentido de “plantar” e “wara” (“ayma’wara” estavam de pé) parece opor-se a “wari” (“valente”, “duro” e, curiosamente, também “deitado” em “adza’wari”; (vide apêndice do livro Jerônimo Xavante Sonha de HEIDE e GIACCHARIA, pg. 53). Como “Wedeszu” significa “feitiço” (Wede = pau), portanto, “plantar pau”, “fincar pau” (de certa forma, matar; aliás o Xavante usa comumente a borduna para matar...), é possível que se possa decompor “Waradzu” em “ficar de pé” (o ente que faz o nosso ficar de pé), e, ao mesmo tempo, talvez, simplesmente, “aquele que (nos) mata. 76. Nesses contos, a palavra “Waradzu” significa mesmo, na maioria das vezes, “civilizado”, o “terrível Waradzu” (pg. 9 da introdução), mas à pg. 47 os autores observam: “Jerônimo, confundindo todos os que não são Xavante com civilizados...” 77. “Watsa” aparece com o sentido de “carregar carne”. Vide op. cit., Apêndice 40.”Watsa” = estavam carregando (a carne); 52, “watsari” = carreguem (a anta); e à pg.33, “pahi’watsa” = urubu caçador. 78. Op. cit. pg. 176. 79. Idem, pg. 173 a 179. 80. Op. cit. pg. 147.

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Não nos parece estranha essa reelaboração de um mito de origem, com elemento tão recente na historia do Xavante. Como caçadores que foram ate poucos anos atrás, os Xavante sabem que a carne e o sangue da caça se transformam em carne e sangue para o índio (um conceito, aliás, absolutamente correto do ponto de vista científico). E, se muitos Xavantes deram a sua vida porque abateram os gordos e grandes animais que Apitó Tsawe lhes havia mandado, para que seus filhos e netos pudessem sobreviver, nada mais lógico do que conceber o principio e o fim do ciclo do Homem, nos brancos e duros ossos da vaca...

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6. A Antropologia e os Dilemas da Educação1 Silvia M. S. de Carvalho 2 Oswaldo Martins Ravagnani 3 Najla Lauand 4

1. Margaret Mead e a Educação Podem os estudos antropológicos contribuir para esclarecer e recolocar sob novos enfoques a problemática angustiante da educação na sociedade moderna ocidental? Claro que sim. Assim como o podem a Psicologia, a Sociologia e outras Ciências Humanas, embora o fato da ciência antropológica lidar há mais tempo, tradicionalmente, com outras culturas que não a nossa, privilegie possivelmente a contribuição dela neste campo. Margaret Mead5 sempre procurou utilizar seus conhecimentos de outras culturas para formular considerações críticas sobre a cultura e civilização ocidental, e apontar novas possibilidades e soluções. Via na observação do processo educativo e na análise das transformações que ocorrem na criança e em relação a ela, desde a primeira infância até a maturidade, a melhor maneira de se estudar uma cultura. E é nesta perspectiva que sempre orientou suas observações entre povos “primitivos”, estabelecendo a seguir paralelos entre as culturas estudadas e a cultura ocidental ou, mais particularmente, a cultura norte-americana. Em 1924 voltava de Samoa, onde estivera durante 9 meses. Dois anos depois começou a escrever seu primeiro livro, publicado em 1928 com o titulo “Coming of age in Samoa”. Neste livro estuda os problemas da adolescência em Samoa. Em suas conclusões tece considerações sobre as diferenças entre a menina samoana e a norte-americana. 1. Artigo inicialmente publicado na Revista Perspectivas, 1980. 29-50. 2. Professor Livre Docente do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia do Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação – Campus de Araraquara, UNESP. 3. Professor Assistente Doutor do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia do Instituto de Letras , Ciências Sociais e Educação – Campus de Araraquara, UNESP. Hoje aposentado. 4. Professor Assistente Doutor do Departamento de Lingüística do Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação – Campus de Araraquara, UNESP. Faleceu em 1981. 5. É muito vasta a obra de M. Mead. Na edição de 1965 constam 58 títulos de obras suas. E ela não parou de escrever até sua morte, ocorrida recentemente.

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Mead ficou impressionada com a homogeneidade da cultura nativa, homogeneidade essa que, observa ela, resulta numa sociedade sem conflitos, enquanto a norte-americana, heterogênea, apresentava tantos conflitos, frustrações, neuroses, desentendimentos, etc.6 No entanto diz que “nos hallamos frente a una encrucijada y debamos decidirnos a avançar hacia uma heterogeneidad más ordenada, o retirarnos asustados hacia um padrón único que desperdiciará nueve décimos de las potencialidades de la espécie humana para que podamos gozar uma seguridad demasiado cara. Tenemos oportunidad de concebir, y empezar a construir sobre la base de tal concepción, un mundo que será tan nuevo, por la ordenada interación de los múltiples dones del hombre, como lo es el actual por la utilización tecnológica de los recursos físicos” (1961:27). De seus estudos sobre os samoanos concluiu que “la adolescência no es necesariamente un período de tension y conmoción, sino que las condiciones culturales la hacen así ...” (idem:241). Entretanto esta era a situação do adolescente de sua sociedade. Ao analisá-la descobre duas causas principais: presença de normas antagônicas e a crença de que cada individuo deve realizar suas escolhas e que estas lhe são de vital importância, como a seleção de emprego, futura profissão, marido ou esposa, partido político e etc. e estas escolhas devem ser feitas muito cedo, sem que tenham sido preparados para fazê-los com liberdade. A família quase sempre impõe suas idéias ao adolescente, ou pressionando-o através da concessão de dinheiro, caindo por terra esta autoridade quando obtém a independência econômica (idem, 248). Preocupada com esses problemas Mead procura uma maneira de educar os jovens tentando reduzir seus problemas e ao mesmo tempo preservando sua individualidade, baseada no que aprendera em Samoa. Assim, escreveu que “es necesário orientar todos nuestros esfuerzos educativos a adiestrar a nuestros niños para las elecciones que deveran abordar. La educación, en el hogar aún más que en la escuela, en vez de constituir la defesa especial de um régimen, una tentativa desesperada por formar un hábito mental particular, que resista todas las influencias exteriores, debe ser una preparación para essas mismas influencias. Tal educación debe prestar mucha mayor atención de la que hasta ahora se há concedido a la higiene mental y física. La niña, para poder escoger sensatamente, debe ser sana mental y corporalmente, (...) Mas importante aún resulta el que esta niña del futuro posea un espiritu amplio (...) Debe enseñarse a las niñas como pensar, no qué pensar (...) Debe enseñarseles que se los cuales echos caminos, 6. “Si tomamos cinco sociedades como datos en todo el problema de la homogeneidad contra la heterogeneidad, de los modelos únicos para todos contra una tolerancia cultural de la diversidad, o qué descubrimos? Cuando una sociedad es homogênea, los conflictos, las confusiones de una sociedad heterogénea están ausentes”. (1961: 24)

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ninguno de los cuales es obligatorio en sí, y que solamente a ellas cabe la responsabilidade de elegir (...) pagamos harto caro por la nuestra heterogénea y rapidamente cambiante (civilización) (...) Em tal lista de precios, debemos contar nuestros benefícios cuidadosamente...y en primer hogar consideremos esta possibilidad de elección, (...)” (idem, 251-2) Mesmo sete anos mais tarde (“Sex and temperament in three primitive societies”)7, esta contribuição crítica é ainda bastante formal e tímida. Em 1935 (por ocasião da primeira edição do livro), Mead sentia naturalmente sua própria cultura, ou melhor, a civilização norte-americana a que pertencia, como revolucionária e libertadora8. Percebendo claramente o mecanismo através do qual a sociedade molda a personalidade de seus membros, ela vê na sociedade americana a inversão de certos padrões tradicionais europeus. Ela fala desta sociedade com um misto de entusiasmo pela democracia, no estilo de “O pequeno Lord”, e de critica à ambigüidade da situação americana, que ela opõe à rigidez dos programas fascistas e comunistas, o primeiro como padronizador da “personalidade de homens e mulheres como claramente contrastantes, complementares e opostos”, o segundo não reconhecendo “qualquer distinção na personalidade aprovada de ambos os sexos” (1969:295). Uma civilização, aconselha ela, poderia evitar de guiar-se por categorias como idade ou sexo, raça ou posição hereditária numa linha familial e, em vez de especializar a personalidade ao longo de linhas tão simples, reconhecer, treinar e dar lugar a muitos talentos temperamentais diferentes. Poderia construir sobre as diferentes potencialidades que ela tenta agora artificialmente extirpar em algumas crianças e criar em outras. (idem:301)

E conclui: Se quisermos alcançar uma cultura mais rica em valores contrastantes, cumpre reconhecer toda a gama das potencialidades humanas e tecer assim uma estrutura social menos arbitrária, na qual cada dote humano diferente encontrará um lugar adequado. (idem:303)

7. É provavelmente a obra de M. Mead mais conhecida no Brasil. 8. “Por ser o condicionamento social o determinante, foi possível à América, sem um plano consciente, mas nem por isso menos seguro, inverter, em parte, a tradição européia da dominação masculina e preparar uma geração de mulheres que regulam suas vidas pelos padrões de suas professoras e de suas mães agressivas e orientadoras. Seus irmãos andam aos tropeções numa vã tentativa de preservar o mito da dominação masculina numa sociedade onde as moças passaram a considerar este predomínio como seu direito natural.” (1969: 293-4). Revolucionárias também são, para a época, as próprias observações da antropóloga, denunciando como falsa a opinião geralmente aceita de que o temperamento estaria ligado ao sexo, sendo conseqüentemente inato.

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O prefácio à edição de 1950 nos mostra a mesma atitude otimista e, em 1963, o entusiasmo da autora é um reflexo das recentes conquistas espaciais, com encantadora ingenuidade9. Num livro anterior, “Growing up in New Guinea”,10 Margaret Mead traça um curioso paralelo entre a sociedade Manus e a dos Estados Unidos: “Igual que en este país” (E.U.A), no se há pasado en Manus de la etapa primaria de ganarse la vida a la menos imediata de viver la vida como uma arte. Igual que en los Estados Unidos, se respecta el trabajo y se juzga el hombre según su habilidad y su éxito económico. El soñador que se aparta de las tareas de la pesca o del mercado y que por conseguinte solo puede hacer uma pobre exhibición en la próxima fiesta, es despreciado por inepto. Los manus no tienen artistas, pero, a semejanza de los norteamericanos, compran los artefactos de sus vecinos, pues son más ricos que éstos. Conceden poca importância a las artes del ócio, a la conversación, al relato de leyendas, a la amistad y al amor. La conversación tiene un propósito determinado, los relatos son breves y mui poco estilizados, El canto es para los momentos de aburrimieto, la danza sirve para celebrar convênios mercantiles, la amistad se emplea para el comercio y no se conoce praticamente nada que signifique hacer el amor. El hombre ideal de Manus no tiene ócio; se halla sienpre en actividad tratando de convertir en diez sartas de conchas monetárias las cinco que tiene en su poder. (Educacion y Cultura: 13)

A autora chega a mostrar desapontamento por não encontrar entre as crianças nativas os jogos e fantasias que caracterizam a criança civilizada: Ese grupo de niños tiene plena libertad para jugar durante todo el dia; pero desgraciadamente para los teorizadores, sus juegos son semejantes a los de pequeños perrillos o gatitos. No contando com la ayuda de las ricas sugestiones que los ninõs de otras sociedades reciben en sus juegos de la admirada tradición de los adultos, viven una infância estúpida, desprovista de interes, retozando alegremente hasta quedar agotados, para echarse luego y permanecer inertes, sin aliento, hasta descansar lo suficiente para volver a retorzar. (idem:13)

Sempre influenciada pela psicologia11 e expoente da escola americana da cultura e personalidade, a antropóloga continua a buscar modelos ou contra 9. “Desde que este livro foi escrito, passamos a considerar-nos, tão seriamente quanto possível, uma espécie de criaturas vivas, num universo que pode conter outras espécies de criaturas vivas, talvez mais inteligentes do que nós. Essa possibilidade acrescenta novo sabor à exploração de nossas próprias potencialidades – como membros de uma espécie, incumbida de preservar um mundo ameaçado. Cada diferença é preciosa e deve ser cuidada com carinho”. (Em fevereiro de 1962, o primeiro “astronauta” americano, John Glenn, revidava as façanhas russas do ano anterior, realizadas por Gágarin e Titov.) 10. Usamos a versão castelhana. Margaret Mead estudou os Manus (ilhas do Grande Almirantado) logo depois de seu trabalho de campo em Samoa. 11. Veja-se, na referida obra, o apêndice “El método etnológico en la Psicologia Social” (“Educacion y Cultura”:175-182)

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modelos “primitivos” para os processos educacionais de seu tempo e de sua sociedade: “(...) teorias que sirven de base a la creación de planes educacionales y de escuelas de psicologia.” (idem:178). Assim, num exaustivo trabalho publicado em 1937 (“Cooperation and Competition Among Primitive Peoples”), procura avaliar as tendências cooperativas, competitivas e individualistas de 13 sociedades (Manus, Kwakiutl, Ifugao, Bachiga, Ojibwa, Eskimó, Arapesh, Maori, Dakota, Bathonga, Zuni, Samoa e Iroquesa), visando uma classificação das mesmas (p. 461). Tenta apanhar num sumario (p. 497 e segs.) os principais determinantes referentes ao “desenvolvimento do ego” e à “segurança”, responsáveis pela formação do caráter nessas sociedades. As conclusões principais deste levantamento, à p. 511, são: There is a correspondence between: a major emphasis upon competition, a social structure which depends upon the iniciative of the individual, a valuation of property for individual ends, a single scale of success, and a strong development of the ego. There is a correspondence between: a major emphasis upon cooperation, a social structure which does not depend upon individual iniciative or the exercise of power over persons, a faith in an ordered universe, weak emphasis upon rising in status, and a high degree of security for the individual.

Observe-se que as sociedades comparadas representam culturas que estão em maior ou menor contato com a civilização, além de possuírem economias diferentes, baseadas em gêneros de vidas diferentes. Percebe-se que a antropóloga pretende reduzir, a partir de uma maior ou menor ênfase dada à competição (em oposição à cooperação) – e como se esta ênfase fosse uma decisão consciente dos membros da tribo – outras características da sociedade. Encontramos aí, portanto, novamente, a pressuposição de que é a educação que conduz a essas diferenças e que pode, portanto, alterá-las. Mead parece prever, num artigo sobre educação em Bali (“Children and Ritual in Bali”) onde fez trabalhos de campo em 1936-39, a importância que assumiria o psicodrama como terapia moderna, ao observar como o teatro permite à criança balinesa, reprimida a ponto de nunca reagir, segundo a autora, um meio de expansão, por transferência, de seus impulsos agressivos12. Em plena guerra (1942) publica And Keep your Powder dry, defendendo com muita veemência, frente ao mito ariano, o ideal anti-racista13. 12. “But day after day, as child is prevented from fighting, he sees magnificent battles on the stage, and the children are part of the crowd that streams down to the river bank to duck some character in the play. He sees the older brother – who must always be deferred to the real life – insulted, tricked, defeated, in the theater. When his mother teases him in the eerie, dissociated manner of a witch, the child can also watch the witch in the play …” (Children and Ritual:44). 13. “Just because we repudiate with all our strenghts the ideas that man’s manners or his moral, or his IQ, or his capacity for democratic behavior, might be limited by race...”.

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É a defesa da democracia, a condenação do nazismo. E é óbvio que a exaltação da democracia, nesse ano mesmo em que o conflito se estendia, era feita com todo o fervor de uma americana que se declara acima de tudo uma cidadã responsável perante sua sociedade14, compartilhando com a América (do Norte) a responsabilidade de – nada mais, nada menos – “reorganizar” o mundo de pós-guerra. Aliás, o etnocentrismo da antropóloga é tão grande que ela imagina a democracia americana como uma forma rara e única de governo, suprema criação de um povo que, se não for salva, talvez nunca mais floresça à face da Terra15. Na análise que ela faz da cultura americana, ou melhor, da “estrutura do caráter americano”, enfatiza particularmente os valores da liberdade e do sucesso aberto a todos, a crença geral de que todos nascem iguais, e de que existe uma estreita conexão entre virtude e sucesso. Não questiona muito o abismo que separa ideal de real e nem percebe que o bem-estar do povo americano se fez, como em todas as terras colonizadas, no mínimo, às custas dos povos nativos vencidos e despojados. E, contudo, percebe que, neste modo de vida em que o “sucesso”16 é o objetivo permanente, ele é obtido estabelecendo uma “pecking order” e que uma maneira alternativa para “subir” consiste simplesmente em arranjar alguém que seja considerado inferior (mais pobre, negro, estrangeiro, etc.)17 No que diz respeito à educação, isto significa a valorização tão só do futuro, do que é novo. Do professor americano o aluno não espera a transmissão das tradições, do conhecimento acumulado das gerações, mas a fórmula para vencer na vida. E Mead não acrescenta o óbvio: não se trata de educação, trata-se de preparo técnico para a luta individualizada em que vencerá o mais esperto, o mais hábil em passar aos outros para trás18. 14. Ela mesma confessa que, ao analisar a própria cultura, lhe é difícil manter a mesma imparcialidade (um mínimo de envolvimento pessoal) com que estuda culturas primitivas (1942:4), pois “we are our culture” (idem:21). 15. Vale até a pena transcrever: “But once let the light of freedom be put out all over the world, and there is no guarantee that it would ever spontaneously burst into lovely light again. Democracy is an invention, like fire and language and marriage. We have no record of the thousand small, unoted circunstances and usages which fathered it; we have no proof that it would necessarily ever appear on the earth again.”(1942:191-2). 16. A essência mesma do puritanismo: “God prospered the good man.” (1942:195). 17. Parece também que o americano nega suas origens (de imigrante, todo ele sendo terceira geração, “third generation”, como ela mesma observa) e que, a medida em que galga posições, reproduz os ideais aristocráticos e “snobes” da velha aristocracia, justamente contestados pela ideologia democrática, na origem. 18. Como não existe já outro ideal a não ser este sucesso, para os que fracassam sobra a vergonha, o sentimento de frustração que – diz Margaret Mead – marcou toda uma geração de pais americanos quando da depressão de 1929 (idem:199). E Mead não percebe que a tão decantada liberdade, a liberdade americana é, em última instância, a mais vil dependência, a dependência de um status econômico que se conquista no “vale-tudo”, numa luta desigual.

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Também em “Cultur patterns and technical change” (trata-se de um manual preparado pela World Federation for Mental Health – Federação Mundial para a Saúde Mental), Margaret Mead se preocupa em apontar a responsabilidade de educar os outros povos, ensinar-lhes as técnicas modernas, hábitos de higiene profiláticos (a começar do habito de ferver a água), tudo isso, naturalmente – ela o crê possível – preservando-se a integridade cultural daqueles entre os quais se introduz as mudanças: Education is needed in all these areas to cope with and repair the destruction already introduced; and beyond this, to make it possible for the people, if they choose, to take their place in the community of nations, and to take advantage of the progress of science and technology in improving their standard of living. (Culture Patterns..:253).

Como se vê, Mead ainda acredita, no fundo, na superioridade do Homem Ocidental, colocando-o, não só como modelo a ser seguido por uma humanidade saída da 2ª Guerra Mundial, mas também como orientador desta humanidade que ela supõe, inclusive, capaz de fazer “sua escolha” de acordo com o que ela mesma, Margaret Mead, pensa. Em toda a sua obra, na realidade, transparece a presença de se mudar o mundo, salvar o mundo, aperfeiçoar a democracia, repensando a educação. Assim, em “Macho e Fêmea – um estudo dos sexos num mundo em transformação”, publicado em 1949, faz uma comparação da sociedade norteamericana com as sete culturas que estudou nas ilhas do Pacífico, quanto a herança física e às experiências sexuais comuns entre homens e mulheres. Sempre voltada para a educação, analisa todo o ciclo de vida do norte-americano, da concepção ao casamento, tentando explicar seus papéis sexuais relacionando-os à experiência infantil. Responsabiliza os pais por obrigarem seus filhos e filhas a se adaptarem a padrões dentro dos quais sofriam e se encontravam pouco à vontade. Afirma que cada família é um caso e que cada pessoa tem uma experiência de vida própria, daí a ênfase que coloca na liberdade plena de cada indivíduo. Insiste mais uma vez no prejuízo da sociedade quando distribui seus papeis segundo a categoria sexual19. Pensa que; “Uma vez que é impossível afirmar ser tão importante aproveitar os dotes femininos e torná-los úteis a ambos os sexos de forma transmissível, como foi possível aos dotes masculinos construir uma civilização baseada neles, estamos em condições de enriquecer nossa sociedade”

19. “Quando uma atividade, na qual ambos poderiam contribuir – e provavelmente todas as atividades complexas aqui se enquadram – está limitada a um sexo, perde-se uma rica qualidade diferente para esta atividade. Uma vez que uma atividade complexa é definida como pertencente a um sexo, a entrada do outro torna-se difícil e comprometedora”. (1971:281)

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(1971:287)20. Continua deste modo coerente com seu ponto de vista de 15 anos atrás, em Sexo e Temperamento. Mead vê outra vez na educação uma das maneiras de corrigir as distorções, formando uma juventude plena, não comprometida com a atual distribuição dos papeis sociais, em que cada indivíduo desabroche segundo suas tendências e maneiras de ser21. No prefácio à edição Apollo de 1967, passados 18 anos, a autora reconhece que houve grandes mudanças na sociedade norte-americana e diz: “Tudo isto tem repercussão na relação homem-mulher. O homem está sendo cada vez mais atraído para as funções domésticas e é possível que seus novos penteados e roupas sejam uma rebelião contra a domesticidade (ou contra a guerra). As mulheres estão sendo compelidas para o mundo do trabalho e para uma competição cada vez mais agressiva por companheiros... É possível que em meio a todas essas mudanças, a individualidade volte a ter uma chance de aparecer. E homens e mulheres possam voltar a pensar em si próprios como pessoas primeiramente, e como membros de um sexo secundariamente”. (idem:7) Tendo voltado às ilhas do Grande Almirantado em 1953, Mead publica “New lives for old”22, em que observa as transformações que ocorreram entre os Manus, desde 1928. Segundo a antropóloga, esta sociedade estava reagindo de forma altamente satisfatória frente à rápida acumulação. No entanto, Mead confessa que ela mesma já não tem mais o otimismo de 1929, a fé de que o fracasso de uma geração possa ser facilmente compensado, num segundo momento, pelas gerações novas. A “descontinuidade” que marca a civilização, da experiência na escola ao “ingresso” efetivo na vida (contraste este que encontra um paralelo na vida dos Manus, como ela já observara em 1929), é agora analisada com mais profundidade. Observa que as potencialidades despertadas pela educação são passivas e inúteis sem um ambiente cultural em que possam florescer. É bem a possibilidade de realização plena, a longo prazo, do espírito de comunidade, a condição que deixa de se reproduzir com o advento do capitalismo. A cultura manus de 1929 revela já então transformações devidas à situação de contato com os civilizados, e outras, muito mais profundas e transformantes, 20. Nesta mesma página volta a salientar que “Podemos construir uma sociedade inteira, usando tanto os dotes específicos de um sexo quanto aqueles compartilhados por ambos – usando os dotes de toda a humanidade”. 21. “Nessa visão das possibilidades de que a educação infantil num sistema educacional benigno possa eliminar grande parte dos distúrbios e maus funcionamentos encontrados no mundo moderno deve ser temperado com exigências profundas de métodos culturalmente adaptados para conciliar e atender as discrepâncias biológicas”. (idem:13) 22. Finda a 2ª Guerra Mundial, o interesse dos EUA pelas ilhas do Pacífico, arrebatadas ao expansionismo japonês, torna-se naturalmente maior ainda.

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devidas às imposições da própria administração colonial (entre estas, o fim das guerras entre as aldeias). Mead lamenta justamente que os sentimentos tão generosos, comunais, que os Manus têm oportunidade de desenvolver quando crianças, não se mantenham no mundo dos adultos, em que se busca uma sobrevivência em termos de acumulação individual e egoísta23. Todas as críticas que se seguem, no texto, à administração americana, são acompanhadas de observações cautelosas de que os mesmos erros se encontrarão também cometidos no Leste. Ela chega mesmo a sugerir que maus exemplos de desertores comunistas poderiam induzir a erros na política externa americana24. Não consegue formular, contudo, a partir daí, nenhuma crítica mais abrangente. Não percebe que o espírito de competição, do individualismo, são a própria essência do sistema capitalista. À medida em que este se implanta e se desenvolve, mais se fortalece o espírito competitivo e individualista. Poucos anos mais tarde, num apêndice a uma reedição de “Cooperation and competition among primitive peoples” (“Appraisal 1961”), a terminologia usada revela a permanência da forte influencia da psicanálise nos trabalhos de Mead. Comenta o ressurgimento de uma linha evolucionista, macro-cultural, na Antropologia, com os enfoques de White e Steward. Estes não privilegiam os estudos de personalidade, alegando não se tratar de uma variável relevante do estudo da mudança cultural, o que Mead naturalmente contesta. Ante o ressurgimento, nos Estados Unidos, de certos estudos anacrônicos, pretendendo encontrar determinantes genéticos para padrões de conduta25, é evidente que os trabalhos de Mead e da escola “personalidade e cultura” continuam atuais e importantes, pelo simples fato de partirem da velha premissa democrática do “todos nascem iguais”.

23. Curiosa é a observação que a antropóloga faz, em nota de rodapé (1956:154-155), a respeito da alteração referente à expressão “comunal sentiments”: “In the original this word read “communistic” where I used the term in its old descriptive sense before it had politically loaded”. 24. “In turn, there is a persistent danger that, spawred from the experiences of psychological warfase which were developed during World War II, tutored and advised in method by deserters from the communist apparatus, we may adopt some of the same devices for examples, offering the world health, education, and technical assistance, not because we have a system within which we are willing to share all members of the human race, but because it will provide us with allies against our enemies”. (idem:457-7) 25. That the problem is still a lively one is attested to by the recent claims of such an eminent biologist as H.J Muller, that traits like cooperativeness are genetically determined, a claim which flies in the face of our available cultural evidence on the extend to which such behavior is dependent upon socio-cultural forms”. (Cooperation and Competition…:525).

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“Continuities in cultural evolution” inclui a análise de um movimento messiânico entre os Manus (ilhas do Grande Almirantado). Mead havia feito um estudo da personalidade do líder Paliau, em 1954. Afinal, os estudos de aculturação levaram os antropólogos americanos a uma retomada de enfoque diacrônico e, conseqüentemente, a estudos neoevolucionistas. O livro é uma tentativa de avaliar o significado da evolução cultural, sua direcionalidade, as condições de “participação consciente no processo evolucionário”. Para Mead, é ainda uma tarefa dos EUA, como líder do mundo ocidental, “livre”, encontrar a forma adequada de dirigir essa evolução, que ela, aliás, não restringe tão somente ao cultural. Ela que, em 1942, apresentava e defendia, como um dos ideais máximos da cultura americana, a crença de que todos nasceram iguais, e que é, portanto, a educação recebida que nos torna diferentes, preocupa-se agora com a formação de elites, quase nos moldes da “Science-fiction”, elites que seriam encarregadas de ordenar e resguardar tudo o que a humanidade realizou em matéria de conhecimento, pensamento, tecnologia e ciência em geral, para o caso da catástrofe final26. Em 1969, na Conferência de Houston, sobre a Ética na Medicina e a Tecnologia, embora abordando fundamentalmente temas médicos, como o aborto e os transplantes de coração, Mead volta a insistir no problema educacional. Mas já não se reflete em suas palavras a ingênua sugestão de que a cultura americana ou a civilização ocidental se poderia tornar mais rica se admitisse uma gama maior de “talentos temperamentais” ou uma liberdade maior de expressão do corpo. Agora se trata de algo muito mais sério. Trata-se de constatar a falência total da própria educação americana e ocidental: Podemos educar a los jóvenes de nuestros dias que están preocupados por la Bomba y lo que ella significa porque no conocen nada al respecto. Tienen miedo de volar en pedazos porque eso es todo lo que les han enseñado. No se les enseña nada acerca del cambio que tuvo lugar em la responsabilidad del hombre hacia el mundo cuando apareció la Bomba. No se les disse que, por primeira vez en la história, contamos con la possibilidad de evitar la guerra. Solamente se les está enseñando algo que es absolutamente contemporâneo, sin mencionar el pasado para nada...Creo que todo lo que sabemos hasta este momento acerca de la evolución humana sugiere que la capacidad del hombre para elegir, para decir que um caminho es correcto y otro no, 26. “The task would have to be carried out by clusters of men and women with fertile and imaginative minds, different kinds of competency and experience, drawn from the humanities as well as from the physical, biological, and social sciences, working in cooperative situations, including field station in various parts of the world.” (Continuities in Cultural Evolution:289)

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es un aspecto essencial de la natureza humana y de su participación en el proceso de la evolución. Esto no significa que haya que expresarlo em términos religiosos. Se lo podria expresar em términos biológicos. El contenido cambia, pero creo que la creencia fundamental de que algunas cosas están bien y otras están mal y la possibilidad y capacidad de aprender esta diferencia y de enseñarla – son algo que, a la luz de lo que sabemos hasta este momento acerca de la evolución humana, podemos considerar como intrínseco a la raza humana. Ustedes saben que cada vez que hay uma revuelta, los jóvenes nos perguntan: - Que papel juega la consciência? (...) (“La configuration cultural de la situacion ética”)

Um ciclo de conferências subordinadas ao tema “Man and nature”, também de 1969, resultou em um livro publicado pela primeira vez no ano seguinte. Nele Margaret Mead recoloca e aprofunda o problema da necessidade de uma conscientização urgente que possa evitar o apocalipse nuclear: No basta ningun programa espúrio que prometa la evasión mediante la conquista espacial, ninguna doctrina acerca de un Dios que destruiria a los muchos para salvar los pocos, ninguna persistencia del optimismo ciego. El profeta que omite plantear una alternativa viable y sin embargo predica la hecatombe, forma parte de la trampa que postula. No sólo nos muestra prisioneiros de una espantosa trampa de factura humana o de factura divina, de la cual no hay escapatória, sino que también debamos oír día por médio los discursos en los que describe cómo la trampa se cierra enexorablemente. La raza humana, tal como está criada, educada y ubicada actualmente, no es capaz de escuchar semejantes profecias. De modo que algunos indivíduos bailan y outos se inmolan como teas humanas; algunos consumen drogas y ciertos artistas vuelcan su creatividad en series de manchas distribuídas al azar sobre un fondo blanco. Es posible que los que están preocupados sean muy pocos, y que por su número reducido no puedan adoptar las medidas necessarias para salvarnos. A menos que haya uma dotación suficiente de estos hombres, estamos condenados.(Cultura y Compromiso, 1971:27).

Após este breve apanhado das teses principais de M. Mead, gostaríamos de abordar alguns aspectos que, a nosso ver, ela não explorou como poderia ter explorado. Inicialmente, uma referência a um aspecto da educação que se poderia chamar de técnico. Outro aspecto é do conceito de infância. O problema de como se aprende nas sociedades “primitivas” possivelmente não foi por ela enfatizado porque as diferenças certamente lhe pareceram óbvias demais: necessariamente, na sociedade complexa, há de aparecer um hiato entre ensino e ação, teoria e prática. No entanto, na situação atual, estocamos conhecimentos técnicos e acumulamos teorias sem ao menos saber se algum dia elas serão postas em prática, transformadas em ação. Nas sociedades tribais a educação informal se manifesta nas atitudes do cotidiano, mais talvez do que na exposição verbal, nas palavras ditas com a finalidade explícita de educar. O modelo é a sociedade vivente e convivendo é

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que se aprende a viver nela. Não que as palavras não tenham importância. Mas elas não se antecedem no tempo à espera de aplicações futuras. A criança nativa que muito cedo é obrigada a distinguir toda uma complicada terminologia de parentesco, esta apreendendo ao mesmo tempo os direitos e deveres que já são dela e que já está observando. Saberá a quem pode pedir comida, com quem pode contar espontaneamente, com quem deverá desde logo unir seus esforços. Quando crescer e se tornar um membro plenamente produtivo de seu grupo, ainda se servirá desse mesmo sistema de referência para se orientar nas novas experiências. “Ao menino Arapesh ensinam os pais: - Quando você viajar, em qualquer casa que houver uma irmã da mãe, ou do pai, ou prima ou sobrinha por afinidade, aí poderá dormir com segurança...”. (1969:68-114) A língua contém, além disso, termos que correspondem antes a uma situação de idade do que a categorias de parentesco, o que permite a ampliação do mundo de relações na comunidade para além dos vínculos estabelecidos pelo parentesco. Assim entre os Manus, Margaret Mead observou que “los adultos suelen interpelar a las niñitas con el de “Ina” o de “Papu” según el caso, estabelecido relaciones de reciprocidad que no están incluídas en el sistema de parentesco”. (“Educacion y Cultura”:32) A terminologia de parentesco é, pois, um sistema de orientação e integração do individuo na comunidade. Não é, contudo, o único, ainda que possa ser o mais importante. Aprender fazendo, parece ser, comumente, o método empregado pelas sociedades simples, para transformar crianças em membros responsáveis. Assim, Margaret Mead observa entre os Manus: En realidad no se les enseña a nadar. Los más pequenos imitam a sus hermanos um poco mayores, y después de forcejar y de andar a los tumbos en una profundidad de agua que les llega hasta la cintura, se lanzan a bracear por su cuenta. La firmeza de las piernas, en tierra, coincide com el domínio de la natación. (idem:27)

É como se a vivência antecedesse a instrução e as palavras só servissem, a posteriori, para interiorizá-la melhor. Na realidade, experiências e palavras são concomitantes, se completam27. O mais curioso é que, comparando-se nossa sociedade atual às sociedades simples, parece haver uma inversão de concepções com referência ao período da infância. 27. Em Bali, M. Mead observa algo semelhante: “Verbal directions are meager; children learn from the feel of other people’s bodies…” (Children and ritual...:43)

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A ausência de brincadeiras, de jogos, entre as crianças, que Mead estranhou em Manus, não parece se restringir tão somente a esse povo nativo. Relativamente escassos são também os brinquedos e jogos apontados pelos etnólogos entre crianças indígenas brasileiras. Bonequinhas de barro, chamadas Licocós entre os Karajás (LICOCOS, 1936), ou brinquedos de madeira, aparecem em algumas tribos28. Quanto a brincadeiras específicas de crianças, poucas são registradas (ver BALDUS, “Bibliografia crítica da etnologia brasileira”). Nimuendajú descreve uma brincadeira chamada “ladrões de jurumum” entre os Xerente (1945) e Theodor Koch-Grünberg registrou entre os Tukano, como brinquedos de crianças, o pião (popóa) e a matraca de cascas de sementes vazias (“Zwei Jahre unter den Indianern”: 274). É comum também, e não só entre nossos indígenas, o jogo de figuras feitas com fios estendidos entre os dedos das mãos, o mesmo que Margaret Mead encontrou entre os Manus sem lhe ter dado destaque (“Educacion y Cultura”: 23). Mas, se a indiazinha começa, desde cedo, a tomar conta dos irmãozinhos, tem ela necessidade de bonecas? Se o menino luta ritualmente com seus pares, se treina já aos 3-4 anos, com arco e flecha por ele mesmo confeccionados, se as crianças nadam nos rios e lagos (se, como em Manua, impulsionam seus minúsculos barcos e exploram as lagunas e ilhotas, em aventuras reais que as nossas crianças só vêem em filmes), se vão buscar frutos no mato pululante de sons e vida, a que atividades lúdicas diferentes elas deveriam ainda se dedicar? Na história de nossa própria sociedade ocidental, as crianças camponesas não conheciam muitos brinquedos e isto não queria dizer que, em condições précapitalistas, tinham uma infância “estúpida” ou triste. A infância como período distinto, especialmente voltado, em parte para uma aprendizagem escolar e, completamente, para atividades lúdicas, só começa a se destacar para a nobreza, a partir do século XIV. Amplia-se para um número maior de crianças com a ascensão da burguesia, principalmente durante o século XIX (SALLES, 1970), ao mesmo tempo que, para a população urbana pobre surge uma infância explorada e miserável que Dickens tão bem retratou. 2. África convida a pensar sobre educação Num artigo sobre os ensinamentos das escolas iniciáticas dos Bantu, Jacqueline Roumegueère-Eberhardt (1963) nos mostra como, entre os Venda (e outros povos da área bantu) se concebe a infância. Trata-se de um período em que as crianças aprendem a ver as coisas “como elas são”, e este nível

28. Na verdade, parece que em algumas tribos sua adoção se deve a contatos com a população neo-brasileira.

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elementar 29 de conhecimento superficial ou “leve” é exatamente o único conhecimento acessível – assim dizem os Bantu – ao homem branco. Enquanto as nossas classes média e alta idealizam o período da infância como uma vivência de lindas fantasias, a infância da criança na cultura bantu tradicional é a vivência real. Naturalmente, antes da ocidentalização da vida, a criança não precisava recorrer a programas de televisão e a sofisticados livros didáticos para saber que a vivência do real pode ser tão ou mais maravilhosa que outra qualquer. É durante as longas cerimônias pubertárias que rapazes e moças bantu aprendem os valores sociais dos conhecimentos que já adquiriram, como técnicas da atividade cotidiana30: aprendem porque são importantes para o bem-estar e a sobrevivência do grupo como um todo, no presente e no futuro. Este é o conhecimento das leis (milayo) e nele se espelha uma verdadeira Antropologia social nativa31. O nível mais alto da iniciação bantu, que pode ser definido como de compreensão filosófica do Homem e da Natureza, busca respostas para questões de certa forma análogas às formuladas pela própria Antropologia filosófica32. O que acontece, em vez disso, na nossa sociedade atual? O mundo do real é tão desequilibrado, tão pouco humano que, nas classes média e alta se tenta proteger a criança contra o exterior, na casa e nas escolas, através de mitos e fantasias cuja realização ela não verá ao se tornar adulta. Estas fantasias se despedaçam, assim mesmo, ao menor contato com a realidade envolvente (até através da televisão dentro do refugio domiciliar), muito antes de se atingir a puberdade. A criança das classes desprotegidas e que, como a criança “primitiva” e camponesa medieval, vive o mundo do real, vive-o como ele realmente é, entre nós: injusto, cruel, desequilibrado. Os evadidos da FEBEM simplesmente reproduzem a violência do mundo dos adultos. Nas escolas, há muito tempo que se nota a indecisão de se saber o que ensinar. Deve-se simplesmente ensinar técnicas, manter as crianças ocupadas, finalmente profissionalizá-las? Ou deve-se, apesar de tudo, optar ainda (como se já nem valesse mais a pena...) por um conhecimento das humanidades para que – numa 29. Grifo nosso. Não vai aqui nenhum menosprezo ao conhecimento científico ocidental, mas é sempre bom lembrar que uma atitude mais humilde de nossa parte se torna cada vez mais urgente. 30. O menino já sabe atirar com o arco, abater uma árvore, seguir os rastros dos animais; a menina já sabe pilar o grão, buscar água, carregando a vasilha sobre a cabeça, cultivar o campo. Para os Venda, contudo, a criança ainda não sabe verdadeiramente: está apenas ensaiando. 31. É o conhecimento chamado de “inteligente”, “esclarecido”. Nas escolas de puberdade, aprende-se a “significação” do que se faz. 32. É o conhecimento profundo chamado “o saber verdadeiro” “ku tiva” resultado de uma reflexão dialética sobre o Homem e o Universo.

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ocasião e rara conjuntura futura – algum dia as novas gerações consigam descobrir soluções para um mundo a beira do abismo? Parece que dilemas semelhantes enfrentaram as nações africanas que, há pouco, obtiveram sua independência política. A escola da missão, e, em seguida, um sistema educacional mecanicamente transplantado da Europa substituíram o ensinamento tradicional das escolas pubertárias e das associações religiosas nativas. Com o novo sistema de ensino, impuseram-se os valores do “progresso”, da modernização e, através deles, alimentando as desigualdades sociais, a sujeição econômica, mais fortalecida ainda na fase neo-colonialista, com a independência política. A preocupação da burguesia européia com educação, acenando às gerações novas com diplomas de profissões liberais, com a possibilidade destas virem a constituir uma elite de “White collars”, naturalmente tem como contrapartida a desvalorização do trabalho agrícola e braçal. Estes ficam relegados, em muitas regiões até o século passado, aos escravos e, depois à mão-de-obra nativa semiescrava e à população pobre em geral, dos bolsões pouco capitalizados. “Civilizar-se”, “receber educação”, passa a ser sinônimo de repúdio à vida camponesa, deixando o caminho livre para a penetração da empresa capitalista moderna. E, quando finalmente se desfaz a miragem de um mundo em que o trabalho “indigno” seria feito tão somente pela máquina, quando os diplomas já não dão mais emprego, o que fazer? Esta indagação é o tema de um conto de Munanairi publicado em Présence Africaine: AS SEMENTES VIVAS Um pai tinha três filhos. Desejava dar-lhes uma boa educação que pudesse prepará-los para o mundo moderno no qual iriam viver. Para o primeiro, contratou um preceptor vindo de um país bastante industrializado, de tradições pedagógicas antigas. Este, tendo percebido que seu aluno tinha dificuldade em seguir seu raciocínio, que era o de um estrangeiro, concluiu que o rapaz não era inteligente e se restringiu então a fazê-lo decorar os textos dos manuais, sem saber se ele os compreendia. Naturalmente, era bastante civilizado para fazer uso de uma palmatória; empregou, contudo, ainda outro método, igualmente eficaz. Prometeu ao menino que lhe conceberia um belo diploma que testemunharia sua instrução. Pois não deixava de ter seus receios de que a instrução do aluno passasse desapercebida, de modo que um diploma seria uma útil confirmação de seu trabalho.

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Finalmente, o rapaz não se contentou em obter o diploma, copiou também a indumentária de seu preceptor e, às vezes para completar, carregava um grande guarda-chuva preto. Mas então achou que possuía muita instrução para ajudar seu pai nos simples trabalhos da roça e se foi para a cidade. Lá, teve a surpresa de descobrir que seu diploma era insuficiente para lhe conseguir um bom emprego de escritório. Encontrou também centenas de rapazes que, como ele, estavam munidos do mesmo diploma, mas não haviam conseguido emprego. O pai, homem ponderado, não ficou satisfeito com a instrução que havia recebido seu primeiro filho. Sabia que seu país devia a maior parte de suas riquezas àqueles que, nas fazendas e nas minas, trabalhavam duramente. “Que acontecerá”, pensava ele, “se todos os filhos deste país obtiverem diplomas, adotarem para se vestir uma moda estrangeira, e fugirem para as cidades?” Por isso decidiu enviar seu segundo filho para uma escola de agricultura, onde aprenderia modernos métodos de criação de animais e de cultivo. Este filho não teve, portanto, a sorte de estudar, de obter um diploma, de aprender a trajar-se segundo a “moda” européia. Trabalhou, contudo, na escola de agricultura, e aí aprendeu como cultivar melhor o café e como conseguir maior produção de leite. Quando terminou seus estudos, foi contratado por uma companhia que vendia material agrícola aos cultivadores. Ficou contente por ter encontrado um bom emprego nessa firma estrangeira, mas seu pai lastimou que não o ajudasse mais nos serviços da roça. “Que deveria fazer para que meu terceiro filho tenha vontade de permanecer em casa e de melhorar a vida em nossa aldeia?” perguntou a seus amigos. “se todo o resultado da instrução é tão somente ensinar a nossos filhos a buscar o êxito pessoal, sem jamais se preocuparem com a prosperidade da comunidade, podemos perder todas as nossas esperanças de que nosso país algum dia progrida. Quando nossos antepassados viviam em tribos, a ajuda mútua ocupava um grande lugar na vida. Não havia, então, mendigos e ninguém roubava o que fosse dos seus!” Um dia, um sábio oriundo de uma aldeia vizinha explicou ao referido pai: – “Não é uma cabeça cheia de conhecimentos que decide a conduta da vida de um homem; é a sua maneira de ser, suas crenças, suas esperanças, seus receios. Antigamente temíamos os feiticeiros e os maus espíritos. Esses temores afetavam a maior parte de nossas palavras e nossos atos. Em nossos dias, temos medo de não estarmos atualizados. Esforçamo-nos em copiar os estrangeiros mas, enquanto não tivermos mais fé em nós mesmos, não saberemos distinguir o que é bom do que é mau. Copiaremos dos outros de preferência as más coisas ao invés das boas. Que tipo de comunidade construiremos assim?”

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“Tuas idéias são penetrantes. Queres encarregar-te da educação de meu terceiro filho?”, perguntou o pai. “Sou incapaz de encher teu filho de conhecimentos e de muni-lo de um diploma para ingressar na vida. E, se eu fosse capaz disso, eu não faria; mas contentarme-ia com despertar nele profundos anseios e um espírito criador.” “Faze como te aprouver. Quero que tuas convicções sejam as de meu filho”, respondeu o pai entusiasmado. “Jamais”, exclamou o sábio, “tentarei fazer uma pessoa partilhar de minhas convicções. Isto seria destruir seu espírito, moldá-lo como um oleiro molda a argila. Formando as pessoas desta maneira, nós lhes damos uma alma de escravo, qualquer que seja os méritos das idéias das quais nós os tornamos escravos. A liberdade não tem nada a ver com a independência política. A liberdade é uma maneira de “viver”. “Mas então, se ninguém exerce controle sobre mim, eu sou livre, não é?”, perguntou, curioso, o pai. “Tu tens tua terra e a exploras como te apraz; declaraste, contudo, que gostarias que um filho teu te ajudasse a fazê-la prosperar. Desejarias também ver teus filhos contribuírem para a prosperidade da aldeia. Se fosses livre, terias dito: posso fazer tudo isto sozinho. É somente quando se tem a certeza íntima de possuir ou de poder conhecer o que é necessário para que a vida seja tal qual se deseja, sem ser obrigado a aprender coisa alguma dos outros, que se pode dizer que se é realmente livre. Quando pensares por ti mesmo, quando não mais observares com avidez todas as idéias dos outros, quando fores incapaz de rejeitar idéias de outros simplesmente porque não te agradam, e souberes examinar cada idéia com um espírito aberto, julgando-a segundo o melhor sistema de referencia que conheças, retirando dela o que ela oferece de aproveitável para a tua vida, então, e somente então, começarás a ser verdadeiramente livre.” “Eis ai algo bem difícil”, replicou pensativamente o pai. “Há muitas coisas de que não estou seguro. Quando eu era estudante, meus professores me ensinavam que todas as pessoas de nosso povo tinham modos de pensar e de agir errados e atrasados. Não sei mais o que devo crer nem a que santo recorrer”. “Eu sei”, respondeu o sábio, sonhador. “Desse mal sofre a nossa gente. Estamos perdidos entre dois mundos. Nosso mundo de outrora está deslocado. Ele não está de acordo com a vida atual que muda rapidamente demais; os sistemas e os modos de vida estrangeiros não correspondem de maneira alguma ás nossas necessidades. De certa maneira, estamos perdidos na noite, sem que a lua ou as estrelas possam nos guiar numa direção que tivéssemos escolhido livremente, sem sabermos que direção seguir. Se desejares que eu me ocupe da educação de teu filho, eu o ajudarei a encontrar o caminho que seguirá em sua vida. Não lhe

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indicarei meu caminho, mas ajudá-lo-ei a descobrir o que convir à sua natureza, o que o levará a desenvolver o melhor de si mesmo e a viver segundo suas convicções mais elevadas.” O sábio incumbiu-se, então, da educação do terceiro filho. Não recorreu nem à palmatória, nem aos exames. Começou por contar ao menino casos relativos à historia de sua tribo, aventuras apaixonantes e belas lendas. O rapaz descobriu, admirado, quanto se orgulhava da coragem e da sabedoria de seus antepassados. O sábio ensinou ao menino que muitas ervas e remédios empregados pelos seus, tinham sido adotados pelos médicos de países industrializados. Ele o ensinou a fabricar uma flauta de bambu e a tirar dela musica, assim como faziam os antigos. Como o menino começasse a pensar que descendia da maior tribo de toda a África, seu preceptor pôs-se a lhe falar da grandeza das outras tribos. O menino sentiuse orgulhoso de pertencer ao conjunto dos povos africanos de culturas diversas. Quando o menino começou a pensar que os Africanos eram muito superiores a todos os outros povos, o sábio narrou-lhe as historias dos povos da Europa e da Ásia. Pouco a pouco, o menino compreendeu que todas as tribos, todas as comunidades possuem sua grandeza peculiar. Quando começamos a crer na grandeza dos outros, ganhamos em sabedoria e em profundidade, pois à nossa própria força juntamos a dos outros. Um dia, o rapaz formulou esta queixa: “Gosto de tuas historias. Elas me dão vontade de compreender o mundo inteiro e de simpatizar com ele. Somente, não posso me lembrar de todos os fatos. Sem eles, como poderei ter instrução? Preciso anotá-los.” “Não te atormentes, meu jovem. Quando enterras na terra uma semente ela cresce, mesmo se não deixas uma marca no lugar onde a plantaste. Se eu semeio em ti sementes vivas, elas germinarão. Se estiverem mortas, todas as notas, todas as marcas do mundo, de nada te adiantarão. Muitos alunos armazenam fatos, para passar nos exames e os esquecem logo depois. É o que se chama – erradamente – instrução, em certos países.” O sábio pediu ao pai um pequeno pedaço de terra e, com a ajuda do filho, ele o semeou. Estudaram os livros em que estavam consignados os novos métodos de cultura, e fizeram experiências com mais e menos sombra, com água e esterco. Observaram todas as transformações, o desenvolvimento de suas plantas, e tomaram notas a respeito. O menino aprendeu a medir com precisão, a fazer gráficos e a utilizar a aritimética para estabelecer comparações. Quanto mais observava, mais se admirava de constatar quantas coisas lhe haviam escapado, no seu ambiente costumeiro. Com o pequeno pedaço de terra, o menino começou a pensar de maneira científica, a se disciplinar no exame das coisas, a criticá-las e analisá-las. Graças às descobertas que o sábio o fez realizar, percebeu que poderia conhecer, decifrando os mecanismos secretos da vida que o cercava, aventuras tão

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apaixonantes quanto as que conheceria percorrendo o mundo. As proezas arquitetônicas das formigas, a vida comunitária das abelhas, e a maneira que as coisas na natureza agem umas sobre as outras – plantas, climas, terra, animais e homens – tudo isso representava o mesmo que viagens a reinos desconhecidos. Quando o menino descobriu as maravilhas e o mistério da natureza, e da comovente beleza desta, passou a fazer sua arte e sua música, ele começou a visualizar o passado, através dos grandes sábios de diversos países. Um dia, chegou aos ouvidos deles a noticia de que uma viúva que possuía três filhos e vivia numa aldeia vizinha, havia recusado se casar, segundo o costume, com o irmão mais novo de seu falecido marido. Ela quase não recebia ajuda de seus vizinhos. No dia seguinte, ao nascer o sol, o sábio e o aluno se puseram em marcha, em direção ao sitio dela, munidos de enxadões e sementes, pois estava na época de semear. No terceiro dia, duas novas pessoas chegaram para ajudar. Á noitinha, o sábio e o menino foram convidados a partilhar da refeição na aldeia. Terminada a ceia, o sábio se pos a narrar historias sobre o passado de suas tribos; contou como seus antepassados haviam socorrido a todas as pessoas na necessidade, mesmo aos que não respeitavam os costumes. Antes que ele tivesse acabado a segunda historia, um dos mais prósperos agricultores exclamou: “Vou ajudar a viúva a explorar sua terra até que seus filhos estejam na idade de fazê-lo. Já é tempo de fazermos renascer o que há de bom nas nossas tradições. Do contrário ficaremos cada vez mais fracos. Este hábito de esperar que estrangeiro e o governo resolvam nossos problemas, impede nosso desenvolvimento”. 3. Repensando a educação Nas sociedades “primitivas” a solidariedade se estende pela rede do parentesco, de tal forma que, no final das contas, a aldeia inteira é abrangida (ou por laços de sangue ou por alianças). O termo “parente” refere-se, assim, a um número muito maior de pessoas que na nossa concepção ocidental. Contudo, o autor do conto propõe uma extensão maior ainda da solidariedade, reforçando a passagem da tribo para nação. Quando se nota, então, que uma privatização do espaço, corresponde à uma involução dos interesses, centralizados na família nuclear ou, pior ainda, no individuo, constituem um problema (uma espécie de empobrecimento ou alienação), isto não quer dizer que, para a sociedade, seria melhor que as pessoas não tivessem famílias, mas sim que a solidariedade deveria, numa sociedade sadia, ter uma extensão muito mais ampla. A reciprocidade característica das sociedades primitivas deveria ser também a característica dominante de qualquer organismo que aspirasse à qualificação

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de “social”. Não se trata, naturalmente, de uma extensão de terminologia de parentesco, mas da extensão da reciprocidade em sí. Quando os manus chamam às crianças de “Iná” ou “Papu”, estabelecem ao mesmo tempo um processo de reciprocidade. Os cultos religiosos modernos tem procurado incentivar em seus seguidores este sentimento de reciprocidade, de fraternidade. Dar-se as mãos durante a missa parece ser um bom começo como gesto simbólico, desde que simultâneo com um processo de reciprocidade. A solidariedade para a qual Munanairi apela é a solidariedade da comunidade, aldeia nativa ou camponesa. Seu espaço vital é a terra possuída pelo povo. Como Margaret Mead bem o percebeu em New lives for old, só pode haver verdadeiramente progresso para a população nativa, se a comunidade não se desintegrar. O que nos diz Munanairi? Que devemos descobrir a tradição, as raízes. Evidentemente, para as sociedades africanas isto significa reconstruir o equilíbrio perdido entre o homem e a Natureza, ainda que possivelmente com o auxilio de técnicas mais complexas, mais sofisticadas. Voltar a sentir, contudo, a necessidade fundamental deste reequilíbrio antes de apelar, cegamente, a estas técnicas modernas (diga-se de passagem, de resultados nem sempre testados ou devidamente divulgados). Ressuscitar as velhas formas de solidariedade e partilha, levadas agora para alem das fronteiras do parentesco. Enfim, reorganizar o espírito comunitário em termos de nação, em termos de África, em termos de uma verdadeira irmandade de povos. Na nossa sociedade (no Brasil), a primeira questão que se coloca é, pois, que raízes, que tradição devemos buscar. Não há de ser, evidentemente, a tradição dos senhores de engenho, de minas e de cafezais: estes não a tinham nem mesmo no sentido pedante e estúpido da palavra. Representavam simplesmente a autoridade, o poder garantido pela força das armas. Deveram ao índio e ao negro quase todos os elementos culturais que lhes permitiram sobreviver nos trópicos, alem da própria subsistência e da riqueza que lhes adveio pelo trabalho e suor alheios, dos escravos e (por breves lapsos de tempo) da parentela pobre de camponeses de Portugal que para cá se transladaram. Temos que buscar essa tradição, portanto, nas camadas populares, nos ideais comunitários das reservas indígenas33, dos quilombos, da organização demo33. Comunidades essas que muito ao contrário do que disse o ministro Andreazza (Folha de São Paulo, 04/01/80), não representam “nações dentro da Nação”: são muito mais Brasil do que a “Jarí” de D. Ludwig, a King’s Ranch e outras propriedades multinacionais, estas sim constituindo nações estrangeiras dentro do território brasileiro e em detrimento deste.

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crática dos primeiros imigrantes, nos mutirões e na solidariedade dos “parceiros do Rio Bonito”. Curiosamente, Margaret Mead, que descobre que o aparecimento de uma “comunidade mundial” é a mais importante das novas condições que desencadearam a revolta dos jovens em todo o mundo (“Cultura y Compromiso”: 101), não parece perceber que essa comunidade mundial de que ela fala é uma pseudo-comunidade (a “aldeia global” da TV), e que é justamente a constatação da não-realização do ideal de comunidade humana que impede a fé dos jovens no que lhes é, tradicionalmente, ensinado. E os jovens sabem que essa realização seria possível, se os esforços não fossem canalizados para outros fins (a corrida armamentista, o lucro desordenado e esterilizador, para uns poucos já muitos ricos). Assim sendo, a tentativa feita pela antropóloga para explicar a problemática educacional de hoje como uma “ruptura generacional” fica nos limites de uma análise um tanto mecanicista. Para ela, correspondem a passado, presente e futuro, três tipos diferentes de cultura: postfigurativa, en la que los niños aprenden primordialmente de sus mayores; configurativa, en la que tanto los adultos aprenden de sus pares, prefigurativa, en la que los adultos también aprenden de los niños – son un reflejo del período en que vivemos. Las sociedades primitivas y los pequeños reductos religiosos e ideológicos son principalmente postfigurativos y extraen su autoridade del pasado. Las grandes civilizaciones, que necesariamente han desarollado técnicas para la incorporación del cambio, recurren tipicamente a alguna forma de aprendizaje configurativo a partir de los pares, los compañeros de juegos, los condiscípulos y compañeros aprendices. Ahora ingresamos en un período, sin precedentes en la historia, en el que los jóvenes asumen uma nueva autoridad mediante su captacíón prefigurativa del futuro aún desconocido.(idem:35)

Apesar da cultura ocidental de hoje corresponder, pois, à que ela chama de “pré-figurativa”, Margaret Mead distingue nela certos grupos que se enquadram entre as culturas “pós-figurativas”, na tipologia estabelecida. Trata-se de algumas seitas religiosas, e ela cita como exemplos duas seitas menonitas (os Hutteritas e os Amish), os Dunkhards, os Dukhobors e os Sikhs. Sabemos que as seitas nascentes, tal qual os imigrantes em países estranhos, restabelecem o comunitarismo, ao menos durante os primeiros tempos34. Restabelecem, portanto, o igualitarismo, a solidariedade interna, não raro também 34. Evidentemente, não se trata de restabelecer um equilíbrio com a Natureza, a não ser que se o entenda no sentido estrito de reequilíbrio para o país de origem dos imigrantes. No país de destino, muito pelo contrario, certos imigrantes estabeleceram atividades verdadeiramente predatórias.

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a propriedade comum do solo. As seitas nascentes, ás vezes também tentam reestabelecer, no plano do real, um equilíbrio entre o Homem e a Natureza: os Amish praticam a rotação de culturas, Peter Verigin pregava a seus seguidores dukhobors35 a adoção do vegetarianismo e um estrito pacifismo. Essas sociedades parecem a Margaret Mead pós-figurativas porque obedecem a um modelo repetitivo36. Mas, note-se bem: tornam-se “pós-figurativas” após terem alcançado este reequilíbrio. Em sua origem mesmo, todas essas seitas são profundamente revolucionarias: os Dikhs, do Penjab Oriental, são contra o próprio sistema de castas, afirmando a absoluta igualdade de todos (isto em época anterior à administração inglesa). E não se trata tão só de re-equilibrios simbólicos. Em todos os casos, procura-se uma reforma de base, por assim dizer: são o comunitarismo e o cooperativismo que se instalam. Só não funcionam a longo prazo porque o sistema capitalista envolvente ou desintegra as comunidades, combatendo-as como subversivas, ou as transforma em exentricidades turísticas. É, pois, porque o mundo humano está ou parece estar em relativo equilíbrio, que o modelo pode ser repetitivo isto é, que a geração nova aceita os valores transmitidos. Que tipo de equilíbrio? Voltamos a frisar: por um lado, o equilíbrio interno, baseado num igualitarismo, por outro, o equilíbrio com o Universo, real na medida em que o sistema econômico tem condições de se auto-reproduzir em se tratando de comunidades, e dramatizando por cerimônias mais diversas, que dificilmente mascaram, contudo, por muito tempo a realidade, quando o desequilíbrio com a Natureza e na sociedade se instala, com a penetração do capitalismo. Margaret Mead se apercebeu bem dessas duas coordenadas do equilíbrio em Bali. Quanto ao equilíbrio interno, a despeito do sistema de castas, ela nota que todos os balineses são atores, e atores importantes, ainda que procedentes de castas inferiores (“prince and peasant, very gifted and slightly gifted, all do what they seriously...” p.47). quanto ao equilíbrio em sentido mais lato, conclui o artigo com a observação seguinte: “The culture contains – or did contain until the recent upheavals about which we know little – ritual solutions for the instabilities it created, and the people, on their little island, were safe. But it was the safety of a tightrope dancer, beautiful and precarious.” (“Children and ritua”l:15)37 35. Seita religiosa camponesa da Rússia czarista, que rejeitava toda autoridade de fora e que contava com Tolstoi entre seus defensores. 36. Culturas que “extraen su autoridad del pasado”. Mas, que passado? 37. Compare-se com concepções semelhantes de equilíbrio e ordem cósmica e humana, na cultura medieval conforme SALLES, 1970:163, nota 3.

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Como se apresentam essas condições em nossa sociedade, e até que ponto a nossa cultura diverge fundamentalmente das que Mead chama de “pósfigurativas”? O igualitarismo interno – tão apregoado pela democracia na forma de oportunidades iguais para todos – revelou-se inviável dentro do sistema capitalista, caracterizado pela competição desenfreada. Contudo, a nível individual, as pessoas conseguem dramatizar o equilíbrio, geralmente optando por uma das duas justificativas: ou admitem que todos os que se esforçam realmente como eles próprios acham que fizeram, conseguiram progredir, e justificam o fracasso dos outros pela recíproca (isto é, os que não conseguiram não se esforçaram, portanto não conseguiram porque não quiseram); ou acreditam que as injustiças sejam reparadas na vida além-tumulo. De certa forma, enquanto as pessoas continuarem acreditando nessas variáveis, o sistema econômico mais desequilibrado da história da Humanidade, com suas mudanças caleidoscópicas muito mais aparentes que reais, continua se mantendo. O equilíbrio com o Universo, além de ser dramatizado numa vida além-tumulo, é ainda trazido para o presente, ainda que não o seja por cerimônias e ritos ou prescrições religiosas. Não é só um corpo de bailarina balinesa que sabe tecer a ordem universal. Se percorrermos os setores diferenciados do nosso próprio modo de produção e atendermos para os pequenos detalhes do cotidiano, teremos a surpresa de constatar que o equilíbrio aparece dramatizado nos mínimos detalhes em todos eles. Nas empresas modernas, agro-pecuárias, fábricas, a arquitetura revela um cuidado imenso em modelos harmoniosos e repetitivos e, mais do que isso ainda, justamente no equilíbrio em cimento e metal do próprio desequilíbrio. Ao ver pela primeira vez Brasília ou qualquer maquete de uma maravilha arquitetônica moderna, quem não se espanta ao ver como massas tão grandes e pesadas (que, pela lógica, pela lei da gravidade, deveriam desabar) se mantêm graciosamente equilibradas como aves petrificadas ao alçarem vôo? Por jardins e canteiros floridos passam operários limpos e uniformizados, tudo certinho, funcional, como deve ser num universo em equilíbrio. Harmonia e equilíbrio também espelham as lojas, a propaganda, os vendedores. Harmonia e equilíbrio, se não os encontramos nas ruas congestionadas, apesar dos minhocões, anéis e avenidas largas, se apresentam já nas calçadas limpas frente às mansões e casas da classe alta e média: jardins cuidados, grama certinha, aparada, plantas ornamentais obrigadas a crescerem dentro de normas pré-estabelecidas.

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Enfim, a ordem se encontra no setor de consumo em toda sua plenitude, a nível domestico; a dona de casa se esforçando para que seu pequeno universo particular seja, não só o “repouso do guerreiro”, “um refugio contra a invasão do mundo”, mas também e principalmente um mundo em que as coisas estão em equilíbrio, cada qual em seu lugar. Em oposições neutralizadas defrontam-se, num canto da sala, a reprodução de uma Madona de Luini e um profeta em pedra sabão; no outro, flores de Hong-Kong e uma garrafa de areias coloridas do Ceará, obras perfeitas que substituem quem as produziu. A presença do artesão, se tolerada, mascara na uniformidade dos burros de Vitalino, a fome e a sede: a miséria se torna inócua e não agride mais ninguém... A ordem se preserva (...) mas estes não são os caminhos da educação.

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7. A Obra de Pierre Clastres: Acertos e Enganos de uma Antropologia Política1 Silvia M. S. Carvalho Uma publicação das Editions Du Seuil, sob a direção e com apresentação de Miguel Abensour2 (1987), reúne os resultados de duas jornadas de estudos dedicados à obra de Pierre Clastres e realizadas em maio de 1982, por iniciativa de J. L. Parodi (Association Française de Science). Os artigos reunidos no volume são de Yvonne Verdier, Luc de Heusch, Marc Richir, Michel Deguy, Alfred Adler, Miguel Abensour, Gilbert Vaudey, Nicole Loraux, Charles Malamoud e Claude Lefort. A diversidade dos especialistas que participaram do encontro, cada qual com diferente formação científica, garantiu grande riqueza e heterogeneidade das discussões, que pretendemos retomar e levar adiante no presente balanço. Os filósofos procuraram mostrar o parentesco do método e da abordagem de Clastres com a tradição filosófica, legitimando-o como filósofo político. Tanto Abensour (que ressalta a afinidade do pensamento clastriano da descontinuidade, do “malencontro”, com o de Nietzche) quanto Deguy (que estabelece paralelos entre a obra de Clastres e Hannah Arendt, Melville e René Girard) apontam Clastres como o elo mais moderno da grande corrente do pensamento ocidental, voltada para o reconhecimento da alteridade, e ressaltam a importância da experiência etnológica que permitiu a Clastres uma nova leitura dessa contra corrente através do exame da obra de La Boétie. Deguy aproxima ainda Clastres de Heidegger: não que Clastres fosse heideggeriano, mas porque o salto da antropologia clasteriana lhe parece corresponder ao passo para trás empreendido pelo pensador de Heimkunft (1987:74-5). Gilbert Vaudey sublinha a contribuição de Clastres que, ao denunciar “a conjunção permanente entre a expansão da civilização européia e o aniquilamento das culturas primitivas” (1987:146), nos obriga a pensar os aspectos negativos do nosso humanismo que está ligado à intolerância (à incapacidade de reconhecer o “outro”) e no qual, assim, violência e razão andam juntas; a primeira se exercendo sobre tudo o que escapa do campo da segunda. Vaudey centraliza sua atenção no Clastres que mostra como a etnologia é, ela também, portadora da mesma contradição, com seu discurso sobre o “outro” que ela sempre silencia, ainda que se arrogue como meta o diálogo e a captação da voz deste “outro”. Mas Vaudey reconhece também que, na medida em que Clastres compreende o 1. Artigo publicado originalmente na revista Perspectivas, 1989: 191-227. 2. Todas a citações dessa obra aparecem aqui em tradução minha.

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silêncio que lhe opõem os guayaki como último ato de resistência contra os brancos, preserva em seu próprio pensamento – e isto apesar dele mesmo ter constatado a inevitabilidade do etnocentrismo (“ a etnologia não escapa à sua terra natal (...)”) – qualquer coisa de tribal, que lhe permite fundar, no momento mesmo em que o fim das tribos se apresenta como trágica perspectiva, uma nova etnologia baseada numa inteligibilidade comum. Na realidade, todos os articulistas concordam no reconhecimento da obra de Pierre Clasters pelo seu rompimento com o enfoque político tradicional, que mostra as sociedades sem Estado como incapazes de um pensamento político, como deficientes em relação às outras que “souberam criar um Estado”. As sociedades indígenas são sociedades sem Estado porque elas são sociedades contra o Estado – esta é a colocação central de Clastres. E é em torno desta descoberta que ele tece suas argumentações que tanto impacto criaram na Europa anos atrás. Assim, hoje, dificilmente um filosofo, um cientista politico desconhece Clastres e, no Brasil, as traduções de “La Societé contre l’Etat” (1974/1982) e dos artigos que compõem Arqueologia da Violência (1982) tornaram-se leituras obrigatórias em Ciências Sociais. A forma usada em que Clastres sintetiza e teoriza serviram para chamar atenção para uma questão que, se não constitui uma descoberta de Clastres (como ele fez questão de frisar), foi ao menos por ele divulgada na Europa: a denuncia do preconceito de se encarar como deficiência o que na realidade é uma outra forma do político. Dificilmente os etnólogos americanos são lidos por quem não se interessa diretamente por Antropologia, ao menos aqui no Brasil onde estudar o índio ainda é considerado por muita gente que se pretende cientista social como ocupação um tanto démodée e inútil. E poucos são os europeus não portugueses que lêem português. Assim, não serão muitos os filósofos, politicólogos e mesmo antropólogos franceses a ler toda ou ao menos parte da obra dos etnólogos brasileiros ou estrangeiros não franco falantes que escreveram sobre sociedades indígenas brasileiras. As pesquisas na Melanésia, Polinésia e principalmente na África, publicadas em francês ou inglês, lhes são bem mais familiares. Entre estas, Lefort (1987:205-208) aponta a obra de Hocart (assim mesmo aparentemente não conhecida de Clastres) como tendo muitas afinidades com a deste último, uma vez que Hocart nega igualmente a ausência de Estado como signo de deficiência. Também, quem leu tão-somente a obra dos cronistas de forma mais aprofundada (como, entre nós o fez, por exemplo, Florestan Fernandes) não se deixou enganar pela cômica observação do “sem F, sem L, sem R” e sabe que as sociedades sem Estado não são sociedades sem política. Clastres, é óbvio, leu cuidadosamente os cronistas e não lhe escapou essa questão. Mas Clastres também reconhece uma certa diferença entre os tupinambás da costa e as outras sociedades sem Estado, questão a que voltaremos adiante.

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Quanto ao problema de como as sociedades indígenas controlam seus chefes, alguns trabalhos de Etnologia brasileira trataram do assunto de forma muito clara. Veja-se por exemplo, na magistral monografia de Baldus sobre os Tapirapé (1970), o retrato que ele traça de Kamairahó, de suas angústias e desconfianças. Pois não se trata de um controle exercido somente em sociedades exclusivamente de caça e coleta: os horticultores de floresta obedecem ao mesmo padrão. Tanto para uns, quanto para outros, a tendência da dispersão predomina sobre a tendência centrípeta, pois o escalonamento da produção e a relativa “itinerância” das roças impõem uma orientação centrifuga ao grupo, e é portanto a práxis econômica que está na base do político e não vice- versa. Curiosamente, Clastres reconhece como características comuns da organização dos povos caçadores e horticultores de floresta, os traços com que Sahlins tipifica o “Modo de Produção Doméstico” (MPD): “predominância da divisão sexual do trabalho, produção segmentária com finalidade de consumo, acesso autônomo aos meios de produção; relações centrifugas entre as unidades de produção. Vemos aí a impossibilidade essencial de pensar o econômico primitivo no exterior do político. No momento, o que deve reter nossa atenção é o fato de que os traços pertinentes através dos quais se descreve o modo de produção dos agricultores nas queimadas3 permitem igualmente delimitar a organização social dos povos caçadores.” (1976: 132). O que ele não percebe é que este modo de produção (que Meillassoux chamou corretamente de “modo cinegético de produção”) determina o desenvolvimento de um pensamento que pode tranquilamente ser chamado de “economia política de punção”, como se verá adiante. A monografia de Baldus fornece também exemplos concretos para as deduções mais gerais de Clastres: o chefe que abusa de sua autoridade e a transforma em poder coercitivo tende a ser não expulso, mas abandonado (deixado para trás) por uma parte do grupo (é o que já havia acontecido ao, por isso, tão recalcado Kamairahó) ou pelo grupo inteiro. Quanto à negligência do chefe, ela leva realmente tão só ao desprestígio, e os indígenas do Alto Xingu chegaram a exteriorizar em português a forma como a sociedade recusa reconhecimento a um chefe nessas condições: este é definido como “capitão que não manda”. Aliás, sobre as características do político no Alto Xingu já de há muito se tem escrito, possibilitando mesmo trabalhos de síntese como o de Viertler (1969) sobre os Kamayurá, numa época em que o governo militar impedia a pesquisa de campo. Esta posição “liminar” do chefe (para empregar uma expressão de Turner), é ressaltada no artigo do filósofo Marc Richir, em que procura precisar o que representa o poder nessas sociedades que se “opõem ao Estado”. Aparentemente,

3. A tradução mais correta seria “horticultores de queimadas, povos que praticam horticultura de coivara”.

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o problema que se coloca para muitos é justamente a dificuldade de entender como sociedades que não conhecem o Estado podem se opor a algo que não conhecem. É verdade que Clastres, um tanto indelicadamente, já havia descartado a possibilidade de se formular a questão: “(...) A recusa do Estado é a recusa da exonomia, da Lei exterior, é simplesmente a recusa da submissão, inscrita como tal na própria estrutura da sociedade primitiva. Somente os tolos podem acreditar que, para recusar a alienação, é preciso tê-la experimentado: a recusa da alienação econômica e política – pertence ao próprio ser desta sociedade, ela exprime seu conservantismo, sua vontade deliberada de permanecer. Nós indiviso”. (1982: 202-203) Seja como for, Richir tenta precisar a essência, as características dessa ideia “selvagem” de poder. Ele parte de colocações do próprio Clastres, de MerleauPonty, que se centram por sua vez na oposição levistraussiana “Natureza-Cultura” ou, mais especificamente Cultura contra Natureza. Retomando uma observação de Clastres de que estas sociedades parecem constituir a sua esfera política em função da intuição de que “o poder em sua natureza é apenas um álibi furtivo da natureza de seu poder”, ou seja, que elas concebem o poder como uma ressurgência da própria natureza, RICHIR (1987: 63) chama a atenção para a distinção que, contudo, existe entre natureza e poder. A natureza, à semelhança do poder, diz ele, é também instituída pela cultura, como “iminência de caos” (no dizer de Merleau-Ponty), como ameaça de entropia que, para preservar o principio de identidade da cultura, precisa ser mantida sempre externa a esta. O poder, embora participando dessas qualidades ameaçadoras da natureza, é um simulacro desta, uma pseudonatureza, que a sociedade mantém numa quase exterioridade com respeito à cultura. A conclusão do pensamento de Clastres, sublinhada por Richir, é a que segue: “Tudo se passa, pois, como se estas sociedades só conseguissem dominar a natureza, isto é, o seu ‘exterior’, duplicando-o por uma mise en scéne explícita onde, identificado, portanto pensado e aparecendo como tal, mas num simulacro, ele se torna finalmente suscetível de ser controlado, conjurado: o que quer dizer que, se o locus do poder é um locus de verdade social, em que o social, aparecendo a si mesmo, pode ser reconhecido com tal, este mesmo locus é, concomitantemente, um locus de ilusão onde a sociedade se ilude sobre sua verdade, sobre sua dominação sobre o exterior. Ou é o mesmo que dizer, numa linguagem talvez um pouco por demais filosófica, que a esfera política constitui, nestas sociedades, mas também nas nossas, o locus de uma ilusão transcendental necessária, (...) de uma ilusão, portanto, na qual se manifesta também algo como a verdade da sociedade” (idem: 66). Portanto, a recusa do Estado não seria propriamente uma recusa ao Estado, que estas sociedades ignoram, mas à presença do poder como natureza. A chefia seria, assim, instituída pela sociedade como simulacro da natureza, com a

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finalidade de representar a natureza dentro da cultura para se poder ter a ilusão de controlar esta mesma natureza, isto é, mantê-la fora. Com esta dedução, Richir chega a um relativismo irredutível: o que a sociedade selvagem sente como caos (o Estado ou sua prefiguração como poder da natureza) o representante da civilização sente como sociedade; e, vice-versa, o que aparece como caos ao civilizado (a ausência de um poder), para o “selvagem” é a sociedade. Duas posturas, conclui ele (1987: 68), resultantes de duas ilusões invertidas e geradoras de etnocentrismo. Em princípio, poder-se-ia concordar com esta colocação: de fato tudo aquilo que se teme, se for representado, dramatizado, visualizado, se lhe pusermos um nome, será mais facilmente dominado. É um processo bem conhecido em psicoterapia. Mas tentar uma explicação nesta linha de argumentação é também apelar para um psicologismo. Além do mais, admitir que uma sociedade selvagem tenha necessidade permanente de representar a natureza (como investida em um de seus membros como uma pseudonatureza, um signo de poder) para conseguir “dominá-la” ou revertê-la para fora de suas fronteiras, não seria questionar tudo o que Lévi-Strauss revela em O Pensamento Selvagem sobre os conhecimentos dessas sociedades, como referência à natureza e às leis da vida no meio ambiente que as envolve? É possível que o homem da ciência ocidental ainda acredite, após ter percebido finalmente o profundo saber dos “selvagens” sobre tudo o que os cerca, que estes padeçam de uma Urangst (medo primordial!)? Que temam uma irrupção psicológica da natureza que os faça confundir os limites entre esta e a sua humanidade? Que nos mitos a oposição Natureza- Cultura se coloque a todo o momento com as suas possíveis ou impossíveis mediações, parece algo lógico e absolutamente inevitável, uma vez que se entenda o mito como uma explicação filosófica da origem e do sentido de tudo, da inevitabilidade da morte para que a vida continue, do estar-no-mundo da humanidade, do sentido ao mesmo tempo frágil e patético da vida. Mas os mitos não são simplesmente a exteriorização de sentimentos de temor de uma entropia (...) os mitos falam de uma experiência de vida diferente da nossa, de uma experiência de muitos e muitos milênios de práxis de caçadores. Na vida cotidiana forçosamente o mito fica suspenso, ainda que a sua função didática, condenando a hybris, lembrando a necessidade de um equilíbrio, esteja sempre em ação. Eu me pergunto, assim, se relacionar a oposição ao Estado, o controle sobre o chefe, com uma pretensa necessidade da sociedade fingir que domina a natureza – através da neutralização de um chefe que é a simbolização de um foco potencial de caos –, não é voltar em parte às colocações de Lévi-Bruhl, ressuscitando a

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idéia de que um sentimento de “participação” domina as sociedades selvagens, e concluir depois que elas têm, por isso, que estar em luta contra este sentimento. Em toda esta argumentação não se estaria desprezando as conhecidas e acertadas críticas a Lévi-Bruhl, em que Mauss, invertendo o sentido da questão, mostra que: “A participação... não implica apenas uma confusão de categorias, mas ela é, desde a origem, como entre nós, um esforço para nos identificar às coisas e identificar as coisas entre elas. A razão tem a mesma origem voluntária e coletiva nas sociedades mais antigas e nas formas mais acentuadas da Filosofia e da Ciência”(1979:163). Voltemos à questão da oposição levistraussiana: Eu diria que nas sociedades de caça e coleta é o “Nós, seres humanos” que se opõe à Natureza pelas ações mesmo de “punção”, e que, portanto, este antagonismo é por demais evidente para que precise ser dramatizado ou enfatizado artificialmente. Mas não é uma incapacidade de dominar a natureza que caracteriza este antagonismo, e sim a percepção que se tem nesta sociedade de que não se deve domesticar a natureza, que é antilógico dominá-la. O ciclo energético é percebido como uma troca de energias entre mundo humano e mundo da natureza: a morte do animal dando vida aos seres humanos, e a morte dos seres humanos dando vida ao mundo da natureza. E só há uma forma de se passar do mundo humano para o da natureza: pela morte. Esta, alias, é a razão porque os ritos de passagem são sempre uma dramatização de morte e ressurreição: só se passa para o “outro” pela morte (sendo “devorado”). Em outras palavras, o “outro” é a morte (ainda que isso não tenha a significação que poderia ter para o civilizado). Não é por outra razão que o símbolo das realezas arcaicas, isto é, o símbolo do poder quando este finalmente se instala na sociedade, é tão freqüentemente o leão, a pantera (um grande carnívoro), ou ainda (em Creta) o touro que embora não devore o homem, é capaz de levá-lo à morte na ponta de seus chifres. Nas sociedades simples, no entanto, como bem nota Clastres, “o espaço da chefia não é lugar do poder, e a figura (mal denominada) do ‘chefe’ selvagem não prefigura em nada aquela de um futuro déspota. Certamente não é da chefia primitiva que se pode deduzir o aparelho estatal em geral” (1974/1982: 143). Poder, numa sociedade indivisa, igualitária, só pode ser imaginado como “força estranha” adquirida exatamente por uma capacidade de transitar (pela experiência estática da morte) entre os dois mundos em oposição: é o xamã que tem essa faculdade, não o chefe. Mas também os xamãs são controlados pela sociedade: os que incorrerem na suspeição de estar usando seus poderes indevidamente são, freqüentemente, assassinados. O ser “liminar”, “morto-vivo”, “simulacro da natureza”, não é pois o chefe. Por que, então a sociedade controla o chefe? Porque, recompensando-o com o direito à poliginia (possibilitando-lhe em tese uma reprodução biológica maior) e com prestígio (autoridade) pelo que

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ele dá de si em organização do trabalho, em bens que distribui como mediador e em outros serviços de mediação que presta ao grupo (como orador, conciliador interno e representante dos seus, frente aos grupos vizinhos), a sua comunidade já está “quites” com ele. Ele tem que ser generoso mesmo, distribuindo – como exemplo a ser seguido – tudo o que recebe, porque as sociedades de caça, coleta e horticultura de floresta não podem permitir a acumulação nas mãos de uma só pessoa, mas não propriamente porque uma tal acumulação seria uma ameaça à integridade do grupo. Fissões nestas sociedades são comuns, como o próprio Castres reconhece em nota de rodapé, após insistir que a “sociedade primitiva é sociedade para a guerra... por essência guerreira...” e que “a guerra primitiva é o trabalho de uma lógica do centrifugo, de uma lógica de separação, que se exprime de vez em quando no conflito armado” (Arqueologia da Violência: 200-201): Esta lógica diz respeito não somente às relações inter comunitárias, mas também ao funcionamento da comunidade em si mesma. Na América do Sul, quando o perfil demográfico de um grupo ultrapassa o nível estimado ótimo pela sociedade, uma parte das pessoas vai fundar uma aldeia mais longe. (idem: 201, n.11)

O que se deve entender por esta expressão: “quando o perfil demográfico de um grupo ultrapassa o nível estimado ótimo pela sociedade?” A razão da divisão aí não se deve a uma ideologia de liberdade, da independência, a uma recusa ao poder: ela se deve a uma avaliação bastante objetiva da sociedade. E o que é, para esta, um “nível ótimo”? é uma relação de equilíbrio entre a presença do mundo humano naquele local e o meio ambiente (como diríamos hoje). A presença humana e a “punção” exercida pelo grupo não devem ter um peso maior do que o suportado pela natureza, porque acima deste nível ótimo, esta ultima não poderia se refazer espontaneamente de ano para ano, ela não poderia reproduzir as suas próprias “forças produtivas” (isto é, as “forças produtivas” da natureza). A natureza super explorada, não permitiria conseqüentemente a reprodução da prática econômica que se fundamenta na caça, coleta e horticultura de floresta. Da mesma forma, a sociedade recusa a acumulação nas mãos de poucos ou de um só de seus membros porque esta representaria um desequilíbrio entre o mundo humano e o da natureza: se alguns acumulam o que daria para sustentar a muitos, os demais têm que atacar mais a natureza, acarretando a sua super exploração. O que é determinante, portanto, é a preocupação existencial, com o repúdio do grupo a tudo que põe em perigo a reprodução de sua práxis. O que o grupo não permite é justamente que o chefe imagine ser ele dono de algo a mais que os outros: “dono dos bens”, “dono da natureza”. Nem o xamã é o “dono” da natureza ou de seus “animais auxiliares”; estes são seus aliados, isto sim. Ele pode, quando muito, ter uma “esposa animal”, e nesta hierogamia quem possui o outro não é o ser humano, mas o espírito animal e por antecipação dramatizada do

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que se pressupõe acontecer após a morte do xamã: por devoração. Aliás, só a agricultura intensiva e o pastoreio acabarão por desenvolver aos poucos este outro conceito tão familiar ao civilizado: o de uma efetiva propriedade sobre a natureza. E isto porque a representação de estoque de energia do mundo humano em oposição ao estoque de energias do mundo da natureza, como se constituíssem os dois pólos de um universo em constante conversão, mas que precisa ser mantido em equilíbrio (não podendo portanto um dominar o outro), nada mais é do que consequência de uma experiência social real. As sociedades que praticam predominantemente a “punção” precisam representar assim o equilíbrio entre mundo humano e natureza (como se fossem os dois pratos de uma balança), porque do comportamento equilibrado frente à natureza depende que esta se refaça das “punções”, permitindo assim a reprodução do modo de produção. Em última análise, esta representação é uma coerção do modo cinegético de produção. É Yvonne Verdier que, revendo o trabalho de Clastres referente aos Guayaki (1972), ressaltou a importância que tem para estes a questão do equilíbrio, tema de que Clastres trata, ao desenvolver a mitologia guayaki: Pobre e quase tão somente reduzida ao enunciado deste rompimento primordial, uma panela quebrada, a mitologia guayaki organiza, assim mesmo, fortemente todo o pensamento e a existência social: há o dia e a noite, os vivos e os mortos, os homens e os animais da floresta, um irrecusável jogo de equilíbrio que eles, os Aché, têm obrigação de manter e preservar de toda perturbação. Pois os dois espaços se movem em conjunto na medida em que ‘uma fraternidade subterrânea alia o mundo e os homens, não ficando sem eco no outro espaço tudo o que se produz em um deles’. (Chronique, p. 284) (VERDIER, 1987: 29)

A grande tragédia que Clastres relata na seqüência “Tuer” (Matar) é a passagem que Verdier retoma a seguir, para ressaltar o modo sensível com que o autor tratou da reconstituição do relato de Jakugi. Entre os Guayaki, a “vingança do morto” desencadeia outra morte: um homem encarregado de vingar o morto agirá como sacrificador e matará outro membro da sociedade guayaki, uma criança, geralmente uma menina. Verdier remete à descrição do contexto da tragédia: “Assediados pelos brancos, os guayaki andam em circulo na floresta, seu território se retrai, a caça se torna rara...” (idem: 33). E transcrevendo Clastres (“A vida inteira se faz hostil”), Verdier observa: “Não se encontra ai figurado, numa versão selvagem, este momento insigne em que deus se retira?” (idem: 35). O fenômeno é conhecido numa bibliografia sobre sociedades simples, dominadas pelo branco. Eliane Métais (1963) descreve fenômeno semelhante entre canacos deslocados de suas terras, que acabam atribuindo aos próprios totens atitudes assassinas em relação ao povo que outrora protegiam. E os velhos, que ainda os cultuam, são suspeitos (“Os feiticeiros nos matam” é o titulo do artigo). A “psicose Windigo” entre os Kwakiutl é outra

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manifestação de agressão que se volta para dentro, como se a entropia tomasse conta do grupo, e “parece ter havido uma certa concentração de casos durante o período de contato mais intenso com os europeus, quando a sociedade aborígene sofria sem dúvida alguma sua mais grave tensão” (HAY, 1971:86). O emprego do termo “psicose” apoia-se no fato de que a mania (uma depressão seguida de uma idéia fixa de querer agredir e devorar um dos membros do próprio grupo, até mesmo o próprio filho) é geralmente adquirida contra a vontade da própria pessoa. “Windigo” é o espírito canibal que se supõe incorporado à pessoa. Mas, qual a verdadeira explicação do processo? Clastres, que mostra como a sociedade se posiciona contra o poder, não deixa muito claro porque nestes momentos o grupo cede e deixa que a violência se abata sobre um dos seus. E no caso dos Guayaki é o próprio morto que irrompe entre os vivos, exigindo vingança. Não é ele também, de certa forma, natureza ou simulacro de natureza, forçando sua presença dentro da cultura? O próprio canto-lamento da mãe que sabe que sua filha será sacrificada o dá a entender: “Aquele que foi produtor da natureza, ele vai matar a bela moça” (VERDIER, 1987:33-34). Ainda neste caso, só mesmo a compreensão do modo como os caçadores entendem e estabelecem ou restabelecem o equilíbrio entre mundo humano e natureza pode fornecer uma resposta. O sentimento de que seus deuses os abandonaram está presente, é verdade, ao menos na medida em que o conceito indígena de Chono, o Trovão, possa ser aproximado do nosso conceito de deus ou criador (os dois naturalmente não se sobrepõem). A práxis da caça e coleta, para garantir sua continuidade, exige que o grupo proceda a um escalonamento da produção, escalonamento este que obriga ao cinegismo ritmado por um sistema complexo de tabus. Além disso, a sociedade cinegética deve proceder a um controle da natalidade, através de um espaçamento dos nascimentos. Este espaçamento parece caracterizar as sociedades caçadoras, em parte como consequência natural do constante andar da mulher; mas é também conseguido pelo emprego de anticoncepcionais e abortivos. E há ainda a prática do infanticídio. Gêmeos, em particular, são considerados como que uma hybris contra a natureza e são geralmente eliminados. A possibilidade de reproduzir (e não aumentar) o grupo parece ser assim a meta desejada, o sentido da vida para os caçadores. E existe uma expectativa de que isto lhes seja garantido pelos seus “deuses”, ou melhor dito, pelos seus heróis míticos, pelos totens e por todos os espíritos da natureza, incluindo-se aí seus mortos, todos estes seres com características de trickster. Mas esta expectativa repousa na consciência de que o grupo esta respeitando as regras do jogo com a natureza (pois é bem de um jogo que se trata) e está permanecendo indiviso (em outras palavras, igualitário, não acumulador). O que acontece, então, quando apesar disso as forças exteriores parecem esmagar o grupo?

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Uma tragédia bororo pode nos levar a entender o problema: Em inícios do século XX, os Bororo, acampados às margens do rio das Mortes, estavam sendo atacados por um lado pelos brancos e por outro pelos Xavante. Como se isto não bastasse, uma epidemia de febre grassava entre eles. Não podendo compreender as causas de tanta desgraça junta, os velhos confabularam e chegaram a uma única explicação plausível para eles: alguma das mulheres ali havia cometido uma infração de tabu, não contando o sonho mau (niuao) que tivera pouco antes de ter seu filho e que era um sinal de que a criança deveria ter sido sacrificada. Talvez tivessem chegado à conclusão de que mais de uma mãe havia transgredido. O fato é que resolveram sacrificar todas as crianças de colo. Após este sacrifício, conseguiram atravessar o rio e se por a salvo (ALBISETTI e VENTURELLI, 1962). Branco, Xavante, febre, foram então entendidos como o “outro” irrompendo como Natureza contra o “mundo humano”. Os Bororo entenderam ter provocado algum tipo de desequilíbrio, embora nenhuma prática patente o indicasse. O primeiro impacto do aparecimento no horizonte tribal de uma sociedade diferente da conhecida, com formas de relacionamento com o “Outro” absolutamente ilógicas enquanto comportamento de seres humanos, provoca, portanto, uma mea culpa trágica na sociedade “selvagem”. Sua cultura, suas tradições não são questionadas: elas “deram certo” durante milênios. O “outro” é a natureza (é o Universo todo) que, até o momento da conquista européia, foi bem compreendida e respeitada, e demorará muito tempo para se perceber (o que será fatal para muitos grupos) que o “Branco” é um “Outro” diferente do “Outro” com que se lidava... Assim, a sociedade “selvagem” recorre a uma forma tradicional de reequilibrar relações entre o “mundo humano” e a “natureza”, as quais se pressupõem perturbadas pelo próprio grupo: “Les hommes tuent des enfants, Ils se détruisent” (Verdier citando Clastres – 1987:35). É neste contexto, a partir da concepção tradicional do universo de vida e de seu funcionamento, que a sociedade “selvagem” só pode deduzir que os mortos se tornaram violentos, que o “outro” (principio reequilibrador da natureza que se vinga em forma de uma onça mítica devoradora de homens ou de um “Windigo” canibal) tem que ser contentado, para que o equilíbrio se restabeleça: o sacrifício humano sempre teve esta função. Mas, porque entre os Guayaki a escolha parece recair na maioria das vezes sobre uma menina (uma “Ifigênia”)? É neste ponto que as reflexões de Nicole Loraux devem ser examinadas. Ela aponta para a necessidade de se rediscutir a própria colocação de Clastres: “Sociedade contra o Estado”. Sociedade contra o Estado, ou Homens contra o Estado? pergunta ela. E as mulheres? Qual é, afinal o número da sociedade (1987:165), esta sociedade indivisa que identifica o “Um”,

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como o grande Mal? Estas são as indagações de Loraux, e vale a pena acompanhar um trecho da sua exposição: “Um e um.O que fazem, pois, os índios da existência de dois sexos? Na prática eles realizam (...)que ‘só se pode ser homem contra as mulheres’ (Chronique, p. 213). E quanto a este ‘contra’, existem muitas modalidades. Contra as mulheres significa essencialmente ‘prevenir-se contra o poder delas’. Pois, se é rigorosamente interdito a cada sexo de tocar o objeto emblemático do sexo oposto – forma muito eficaz de os separar: o arco e o cesto, o um e o outro, o um e o um (...) – , somente sobre os homens é que recaem, como que por acaso, as conseqüências de uma manipulação vergonhosa (Société, p.93; Chronique, p. 212-213). Mas existe uma outra forma, mais explicativa, dos homens serem contra as mulheres: é desempenharem o jogo social da vingança, executando essas vitimas preferenciais que são as moças (Chronique, p. 184-185). Tal escolha se deve exclusivamente a considerações demográficas? Clastres assim o sugere; como leitora, não me proibirei de duvidar um pouco. E, mais, contra as mulheres há ainda uma certa luta simbólica que os homens travam em que elas realmente devem ser vencidas: sem isto, a iniciação não será completa (Chroniques, p. 128). Resumindo, é como se apresenta a questão das mulheres numa sociedade igualitária. Como se maior sendo a igualdade, mais necessária a constituição das mulheres no Outro temido e combatido. Porque, sem dúvida é entre os homens que se recusa o Estado em proveito da indivisão e, como em muitas outras sociedades, tanto selvagens como “dotadas de história”, estes iguais são guerreiros ou caçadores: masculinos. Assim que não existe político a não ser fundado sobre a exclusão das mulheres, mesmo que este político consista em recusar o poder e o Estado. Será que poderei ousar ajuntar: sobretudo quando este político recusa o Estado?” (LORAUX, 1987: 167). Como trabalhar essas observações de Loraux? Em primeiro lugar é preciso considerar que nas sociedades simples a divisão sexual do trabalho não marca apenas, simbolicamente, os utensílios ou armas que caracterizam um e outro. Na medida em que o caçador se opõe, na caça, a tais e tais animais e têm seu alter ego “natural” num grande carnívoro, a mulher também se opõe a setores do mundo da natureza, estabelecendo-se assim oposições e complementaridades simbólicas intrincadas que acabam por abarcar o universo inteiro. O que Balandier (1977: 19-66) aponta para o simbolismo africano, Mauss e Durkheim já haviam apontado a partir de dados australianos e americanos (1984): a estrutura de oposição do tipo yin/yang parece ter caracterizado originalmente todas as

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sociedades. Claro que não é o único recorte, nem poderia ser assim, mais ainda que se sabe que cada coisa que é simbolicamente masculina tem também uma pequena carga, ainda que mínima, de signo feminino e vice-versa. Mas não é sem razão que Loraux supõe que a metade masculina pense – ao menos em termos rituais – a metade feminina como Natureza, da mesma forma como a metade feminina identificará os homens ritualmente como tal. Além disso, na maioria das sociedades indígenas, os homens realmente excluem as mulheres da manipulação do religioso. Mas é preciso compreender as razões porque isso acontece e não procurar explicação reducionista num pretenso machismo universal. Pelo que foi explicitado atrás, nas sociedades de “punção” a dialética do Universo é centrada nas correntes energéticas (que são estruturas alimentares, afinal), passando de um mundo ao outro, evidentemente pela morte. Ora, o religioso nelas é justamente lidar com a morte, com a qual, em princípio, a mulher não deverá ter contato, ao menos durante seu período fértil. Na maioria das sociedades indígenas, ela só pode ser xamã após a menopausa. Ela deve estar voltada para a vida, para a reprodução, para os cuidados das crianças: ela é protegida nesta fase, do casamento à menopausa, enquanto o homem se expõe na caça e na guerra, contrapondo-se a ela (que é “doadora da vida”), inevitavelmente, como “doador da morte”. Loraux levanta assim um problema que precisa ser considerado, não porém da forma como ela o “ousa sugerir”. Os sexos nas sociedades de caça e coleta, é verdade, funcionam e são concebidos como opostos e antagônicos, mas complementares (Roumeguère EBERHARDT, 1958) e, em muitas delas (incluindo as de horticultores de floresta), as mulheres têm status semelhante ou igual ao dos homens. Se são para estes o “Outro”, o são evidentemente como “simulacro da natureza” (para usar uma imagem já discutida atrás), que os homens podem querer “controlar” (assim como elas em relação a eles), mas não eliminar. Pode-se perguntar, no entanto, em que medida o fato do oficio de sacrificador ser, nestas sociedades, geralmente restrito ao homem, pode influir para que o “bode expiatório” seja do outro sexo , em momentos em que estes mesmos homens se vêem assaltados, senão por um intensivo sentimento de culpa coletiva, ao menos pela desconfiança de que no grupo alguém cometeu hybris? Ainda mais quando efetivamente a relação “menos mulheres e mais homens” limita o crescimento vegetativo do grupo, o que não acontece com a situação inversa: “poucos homens para muitas mulheres”? Loraux, que é especialista em história da Grécia, chega a suas conclusões, conforme a transcrição comentada acima, no fim de seu texto que parte – como o título indica – de uma retomada do artigo “Do um sem o múltiplo” (174/1982; 118-22) e das considerações com que, sob o título que deu nome ao livro A Sociedade contra o Estado (1974/1982), Clastres retoma uma serie de suas

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observações, tentando levantar uma hipótese para a origem do poder consentido: – a questão é saber por que o índio guarani diz que Um é o Mal, ao passo que Heráclito diz que o Um é o Bem; e como se passaria de um conceito para o outro. Embora interessantes, não vou comentar aqui as aproximações que Loraux faz entre índios e gregos. Prefiro me reportar diretamente ao texto de Clastres. Este, que vê as chefias tupinambás da costa como detentoras de um certo poder, procura pensar os movimento liberados pelos Karaí (profetas) como uma contestação ao poder dos chefes; e vê nesta contestação um “ato insurrecional dos profetas contra o chefe (que) conferia aos primeiros, por uma estranha reviravolta das coisas, infinitamente mais poder do que os segundos detinham” (1982: 151). Parece-me que na etnologia não se encontra apoio para estas suposições. Bartolomeu Meliá, que ao lado de Egon Schaden é um dos maiores conhecedores da etnia guarani, aponta para essas falhas: “Os ensaios de Heléne Clastres e de Pierre Clastres, empolgantes pelo seu estilo e pelas hipóteses levantadas, estão construídos sobre dados muito fragmentários e seletivos, citados de modo geral e nada científico, tanto no que se refere à leitura de fontes históricas como à utilização dos dados empíricos de segunda mão. De fato, a experiência etnográfica de Pierre e Heléne com os guarani foi muito curta” (...) “Pierre Clastres apresenta idéias sugestivas sobre a chefia indígena (1962), baseando parte de sua reflexão em dados etnográficos dos guarani, mais postulados que verificados (...)” (1987: 53) Isto não quer dizer que os “Karaí”, os profetas, os médico-feiticeiros, não sejam um foco importante do poder. Como procurei explicitar anteriormente, o poder nas sociedades igualitárias não se origina propriamente por contradições das relações inter pares, mas na capacidade que a sociedade atribui a estes homens, os médico-feiticeiros, de regularem (ou também desregularem) o equilíbrio entre mundo humano e o da natureza, interferindo exatamente no ponto crítico de todo o sistema: nas condições de reprodução do modo de produção. O médico-feiticeiro se submete a um treinamento mais intenso que os outros membros do grupo para perceber as mais escondidas inter-relações do meio ambiente; ele realmente é detentor de um saber respeitável e de uma sensibilidade fora do comum. É, como o chefe, um grande manipulador da palavra mas, ao contrario do chefe que usa sua oratória no “mundo humano”, o médico-feiticeiro “entende os animais, fala com eles”. Se a dicotomia referente ao poder se expressa como imposição de uma dívida, ao chefe nas sociedades simples, e ao povo nas outras sociedades, a posição do xamã é ambígua. Ao contrário do chefe, ele não precisa ser generoso. Poder-se-ia dizer que a direção da dívida se encontra aí já meio invertida: como retribuição das curas realizadas, o xamã recebe presentes do grupo, além de que este também lhe permite,

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tanto quanto ao chefe, um casamento poligâmico. Sem duvida, o xamã também tem uma dívida, mas ela não é propriamente uma divida para com o grupo humano, como se verá adiante. Enquanto o chefe é um mediador entre homens e mulheres, procurando manter a paz entre seus pares, a integridade, a identidade coletiva do grupo, e zelar pelo funcionamento da sociedade na sua prática cotidiana, o xamã é o mediador entre o mundo humano e o mundo da natureza. Como pode o xamã equilibrar ou desequilibrar as relações Homem-Natureza? Entre os Ufaina (HILDBRAND, 1988) é ele que determina quando e para onde o grupo deve se mudar, pois é ele que avalia em que momento a presença de uma aldeia se torna um peso para a natureza envolvente. Uma doença que não consegue ser debelada é interpretada como sintoma de um desequilíbrio entre homem e natureza, e é ao xamã que compete a descoberta das causas desse desequilíbrio (LINS, 1984/ 85). Mas também a própria cura de um doente pelo xamã pode se afigurar como um desequilíbrio, pois a cura prolongará a vida de um ser humano, ou de um caçador ou de uma procriadora, em ambos os casos, de um indivíduo que continuará a consumir alimentos. O xamã, neste caso, esta impedindo ou protelando a reversão de energia do mundo humano para a natureza. E como ele salda essa divida que ele contrai, pode-se dizer, não para com o mundo humano (pois este lhe é devedor), mas para com a Natureza? Ele a salda, ao morrer, transformando-se – como é crença geral na América do Sul indígena – não diretamente em alimento para os animais mas em onça, e – coerentemente – não em onça canibal mas em onça que mata seres humanos deixando-os para as onças de verdade (...) Esta é a explicação que Clastres não fornece ao aproximar o xamã da onça no artigo “De quem riem os índios”. “Meu tio Iauaretê” (ROSA, 1969) tem, portanto, na figura do xamã um verdadeiro arquétipo. Por outro lado, o xamã que não consegue curar seus pacientes acaba sendo não abandonado, como o chefe que não responde às expectativas, mas assassinado pelo grupo, no momento mesmo em que este se convence de que ele acumula poder às custas da entrega sistemática de seres humanos à Natureza. Podemos dizer assim que as funções de xamã e de chefe são complementares, mas estruturalmente opostas: enquanto o chefe é um mediador do mundo humano, o mundo da doação da vida, da reprodução do grupo, o xamã lida na intersecção das trocas negativas, em que caçadores agem como doadores da morte e em que a morte dos seres humanos deveria “pagar” a dos animais. O que deve predominar no setor coordenado pelo chefe é o equilíbrio das trocas de bens e de esposas: isto implica alianças com grupos locais e guerra com outros para captura de mulheres, implica também que o grupo seja mantido coeso frente aos outros grupos e como conjunto que possa ser avaliado como um dos “pesos” da balança Homem-Natureza. Este é o mundo de mediações do chefe. Poder-se-ia perguntar se, de forma semelhante ao xamã, mas inversa, o chefe

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que aparece como devedor de seu grupo, enquanto vivo, não será dele credor após a morte. Talvez o Kuarup do Alto Xingu seja indicativo de uma resposta: ainda não se trata de um verdadeiro culto aos mortos, mas os ritos funerários associam os grandes chefes aos heróis civilizadores tribais. Não seria de espantar também que as figuras do xamã e do chefe mostrassem uma faceta mais masculina ou mais feminina em situações e tempos inversos. O xamã é preponderantemente masculino como caçador, senhor da morte4, mas feminino (muitas vezes realmente afeminado) como “aparelho” ou alter ego de espíritos-animais. O chefe é um coordenador ou conselheiro dos seus e usa apenas a persuasão no interior do grupo:como a mulher, lida com a vida, frente aos outros grupos vizinhos, contudo, ele é a voz dos seus, como senhor da morte e da guerra. Certamente é na figura do xamã que tem que ser procurada a gênese da violência consentida, do poder, como supõe Clastres, mas não através do processo que ele imagina. De certa forma, só com a confluência das duas funções (do chefe e do xamã) este processo se consolida. Quanto à abordagem de Clastres em Da tortura nas sociedades indígenas, a critica de Lefort (1979) converge com o que expus acima. Lefort critica como de inspiração durkheimiana a interpretação da lei primitiva como exclusivamente social e dos ritos iniciatórios como uma violência da coletividade sobre os iniciados (“inscrevendo esta lei indivisa em seus corpos para que a interiorizem para sempre”, no dizer de Clastres). Lefort lembra que, na sociedade selvagem, não se pode dissociar o religioso do político para incorporar o primeiro à órbita do segundo (idem: 198). Os ritos selvagens, particularmente os de iniciação, diz ele, testemunham uma relação ao outro mundo, ao invisível. A incisão significa uma abertura do corpo ao “outro”, transformando este, de corpo tão só mortal, em corpo também sobrenatural, imortal, em que o visível e o invisível se encontram. A partir dessa argumentação, Lefort, retoma suas discussões criticas do pensamento de Marx, ponto a que voltarei mais adiante, para examinar agora a análise das trocas, em que Clastres se opõe a Lévi-Strauss. Creio que Lévi-Strauss – e não Clastres – é quem tem razão, ao afirmar que as trocas (de bens, mulheres e palavras) estão na origem da sociedade humana. Clastres, que direciona toda a sua argumentação para comprovar a sua hipótese de uma vontade política primordial de independência (uma espécie de desejo do inconsciente coletivo de autonomia), contesta Lévi-Strauss de forma muito radical: “Não se trata absolutamente de uma sociedade para a troca, mas antes de uma sociedade contra a troca. Isto aparece com a maior nitidez precisamente no ponto de junção entre troca de mulheres e violência” (1982: 195-196). 4. Pois o xamã não é como pensa Clastres (Arqueologia da Violência, 1982: 76), “senhor da vida”, ele apenas pode protelar a morte.

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Deixo para depois a rediscussão da polêmica clastriana da guerra. Quero chamar a atenção para uma questão que parece evidente e simples e, no entanto, tem sido descuidada pela análise. Quando se fala em “trocas”, por que se pensa somente em trocas entre grupos vizinhos? A reciprocidade interna a cada grupo não está baseada, também ela, em trocas? Trocas pouco ritualizadas, quotidianas (o caçador depositando o animal abatido na porta da sua cabana, a mulher distribuindo aos seus o alimento), ou mais ritualizada (a festa do mel descrita por Melatti (1972: 72) entre os Krahó (Jê), as trocas presenciadas por Huxley (1956) entre os Urubu-kaapor e tantas outras)? Parece-me estranho que não se conceitue como trocas o que é o resultado obrigatório da divisão sexual do trabalho, que está na própria origem da sociedade humana. Aliás, François Pouillon também chama a atenção para a pouca importância que as análises dão a esta divisão sexual do trabalho. “(...) uma outra relação social constantemente iludida nas investigações teóricas até aqui desenvolvidas, a da relação homem/mulher como relação de produção em todo o sentido da palavra”(“Antropologia econômica: correntes e problemas”: 149). Nenhum antropólogo, evidentemente, deixa de reconhecer, nas sociedades simples, essa divisão do trabalho entre os sexos. O próprio Clastres aponta para este traço da sociedade “indivisa”, mas como se ela não fosse importante; “fora aquela que diz respeito aos sexos, não existe com efeito na sociedade primitiva nenhuma divisão do trabalho” (1982: 188) e, como vimos, foi neste nível justamente que Verdier percebeu alguma contradição nas colocações do autor que, no entanto, tão bem soube perceber a oposição “arco x cesto” na sociedade guayaki. O que é estranho é que não se tenha dado a devida atenção à dupla estrutura das trocas que se estabelecem na sociedade em que domina a punção (que é justamente a sociedade humana de origem): - as trocas “internas”, “reciprocidade positiva”, entre o setor masculino adulto e o setor feminino adulto do grupo: o produto da atividade masculina (da caça), em troca dos recursos coletados e preparados pelo setor feminino; os serviços sexuais complementando, em contracorrente, essas trocas; - as trocas “externas” (entre o Nós, “mundo humano” e “mundo da natureza”, contrabalançadas pela “punção” de vidas humanas). O termo “reciprocidade negativa” é de Sahlins (1974: 132), e ele o utiliza somente para designar a forma de obtenção de bens nas fronteiras do território, onde ocorrem desde “trocas silenciosas” até simplesmente roubo. A extensão que proponho deste conceito de “reciprocidade negativa” ou de “trocas negativas” para caracterizar as relações Homem –Natureza não é um recurso aleatório nem uma fetichização. Tudo se passa como se realmente o “pensamento selvagem” percebesse a dinâmica do Universo através da dinâmica da vida, que é afinal a questão existencial, como trocas de energia, segundo esses

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dois eixos ou coordenadas. E note-se bem: trata-se de uma estrutura que, de certa forma, também poderia ser chamada de “estrutura alimentar”. Neste ponto, há um paralelo que passou despercebido a Charles Malamoud, ao cotejar os dados que ele apresenta sobre a Índia (de que é especialista) com os de Clastres sobre os índios da Amazônia: as diferenças são irredutíveis, conclui ele (1987: 175) perguntando-se como é possível que as gerações posteriores ao rompimento da “sociedade indivisa” (após o trágico “malencontro”) tenham perdido toda a lembrança desse tempo da autonomia original. No entanto, logo adiante Malamoud observa: A justificação dos dominantes, de que decorre seu poder e sua autoridade, é que, graças à ordem que eles impõem, os dominados vivem um pouco. E o texto brahamânico...” (a que Malamoud se referira antes) “...não deixa de frisar em outra passagem, que aquele que come (le mangeur) é também o que alimenta os comidos. (idem: 177).

Aparentemente, nem todas as lembranças estão perdidas... Para a análise clastriana da guerra na sociedade “primitiva” convergem as discussões de Abensour e de Adler. Quanto à análise de Abensour ela se centra (1987: 121 e ss.) nos dois textos de Clastres em que, para encontrar a contraprova de suas próprias teses sobre a política dos “selvagens”, ele as confronta com Hobbes: “Uma etnologia selvagem” (CLASTRES, 1982:36-45) e “Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas” (idem: 163-204). Abensour coteja as posições de Sahlins e de Clastres, que partem de uma crítica à concepção que Hobbes tinha da vida dos “selvagens”, não como sociedades mas como “estado de natureza” caracterizado pelo bellum omnium contra omnes. Escreve Abensour: 1. O estado de natureza, segundo Sahlins, pode ser tanto mais qualificado de politie primitiva na medida em que há um direito de batalha, mas não batalha efetiva. 2. Traçando um paralelo entre o pensador inglês e o sociólogo francês Marcel Mauss, Sahlins se inclina a mostrar que a guerra tende para a troca, enquanto a dádiva seria uma espécie de empreendimento guerreiro sublimado (ABENSOUR, 1987: 129). – Existe politie selvagem para Sahlins porque, por trás da guerra, desponta a troca. Em resumo, Sahlins considera, a partir de Hobbes bem temperado por Mauss, que o estado de natureza é politie na medida em que ele se afasta ou tende a se afastar progressivamente da guerra. Neste sentido o Ensaio sobre a dádiva, reinterpretado a partir de um confronto com Hobbes, permitiria pensar a politie primitiva como ‘sociedade para a paz’ graças à instituição da dádiva, que seria para a sociedade primitiva o que o Estado é para a sociedade civilizada (...) (idem: 129)

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Quanto a Clastres, embora ele esteja “de acordo com Sahlins por reconhecer no estado de natureza uma verdadeira politie (assim como – num outro nível – uma sociedade de abundância), inverte as razões, o sentido e o conteúdo. O estado de natureza é politie não porque ele tende para a paz mas, justamente ao contrário, na medida em que a guerra é uma dimensão permanente da sociedade primitiva” (ABENSOUR, 1987: 129-130). Para Clastres, “guerra e troca devem ser pensadas, não como continuidade que permitiria passar gradualmente de uma à outra – quando a troca aumenta, a guerra diminui, e inversamente –, mas como descontinuidade radical, única a manifestar a verdade da sociedade primitiva” (idem: 131). E Clastres entende que existe uma subordinação da troca à guerra. Com esta colocação. Clastres também se opõe a Lévi Strauss. No dizer de Abensour, “Lévi-Strauss invoca a troca antropológica, Clastres a troca política” (idem:135). Clastres ressalta que “o ponto de vista de Lévis-Strauss é simétrico e inverso ao de Hobbes: a sociedade primitiva é a troca de todos com todos. Hobbes não vê a troca, Lévi-Strauss não vê a guerra” (1982: 185). Para Clastres, o que importa é perceber a dimensão política da guerra “... não é a guerra que é efeito da fragmentação, é a fragmentação que é efeito da guerra. Ela não é somente efeito, mas o objetivo: a guerra é ao mesmo tempo a causa e o meio de um efeito e de um fim visados, a fragmentação da sociedade primitiva. Em seu ser a sociedade primitiva quer a dispersão, este querer a fragmentação pertence ao ser social primitivo que se institui como tal através e na realização desta vontade sociológica” (idem: 186). E é ressaltando esta nova leitura da guerra de uma “sociedade-para-a-guerra” como meio para um fim político (uma guerra para manter a vocação centrífuga e contra o Estado da ‘sociedade primitiva’) que Abensour aproxima Clastres de Montesquieu e Spinoza (1987: 142-143). Gostaria de chamara a atenção para a leitura que Abensour faz de Clastres, conforme tradução abaixo: “A sociedade primitiva compreende duas estruturas diferentes5, a guerra e a troca, que podem ser consideradas em relação de descontinuidade, pois cada uma das estruturas exerce uma função específica, sobre um plano diferente.” (ABENSOUR, 1987: 131). As duas estruturas, correspondendo à troca e à guerra, caracterizam de fato, igualmente, a sociedade primitiva. A primeira estrutura tem seu modelo nas trocas internas (a reciprocidade positiva da comunidade, consequência da divisão sexual do trabalho), a segunda tem por modelo as relações entre Homem e Natureza (as relações de punção, a reciprocidade negativa). 5. Grifo meu.

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E aqui é preciso retomar a critica que Clastres faz a Leroi-Gourhan, ao reducionismo naturalista deste, a que se refere Adler no seu artigo sobre Clastres (1987: 96). Clastres tem razão quando lembra que “a sociedade não resulta de uma zoologia” e que o comportamento agressivo não pode ser considerado como um dado natural da espécie humana. Tem razão também ao apontar para o fato de que, se a guerra fosse apenas a réplica da caça, como dá a entender a leitura de Leroi-Gourhan, ficaria difícil de explicar porque a agressividade, presente na guerra, está ausente na caça (que implica agressão, mas não agressividade)(1982: 176). Contudo, Leroi-Gourhan tem razão ao perceber para a guerra um modelo na caça. Mas este modelo não é consequência do processo que Leroi-Gourhan imagina (“assimilação que se estabelece progressivamente entre a caça e seu duplo, a guerra”). O modelo é estrutural: decorre de uma visão do mundo essencial aos povos que têm na “punção” a atividade dominante. As relações com o “Outro” são de “reciprocidade negativa” e este “outro” é, ao mesmo tempo, a natureza (particularmente os animais), os inimigos, os mortos. É claro que há graduação nesta alteridade: ela não é toda homogênea, mas é nessa oposição que ela é pensada (“Nosso grupo” ou “a verdadeira humanidade” versus “Natureza”). E ela precisa ser pensada dessa forma justamente para que o equilíbrio possa ser avaliado e preservado, condição sine qua non da reprodução do sistema de caçacoleta e de horticultura de floresta. Aí está a razão mais profunda desse desejo coletivo, político, de dispersão (“a sociedade primitiva quer a dispersão...”) que Clastres apresenta de uma forma bastante durkheimiana como “vontade sociológica” da fragmentação. Resta explicar por que a ação de caçar não implica a agressividade que existe na guerra. A explicação está contida no que já sugeri acima: numa sociedade em que as atividades principais são de punção, “nosso grupo” e “natureza” têm que ser pensados como entidades em oposição, num antagonismo complementar sentido como um sistema de trocas energéticas resultantes de uma reciprocidade negativa: trocas pela morte. Mas nem “nosso grupo” nem “natureza” são entidades homogêneas. Assim como no interior do “nosso grupo” há o setor feminino e o masculino (o setor encarregado da coleta, mais vegetal, e o da caça ao animal, o setor “ativo”, adulto, e o “inativo”, isto é, crianças e velhos, etc.), assim também no conjunto do “Outro” há, não só graduações da alteridade, mas também oposições internas. Os grandes carnívoros se opõem aos animais que eles próprios atacam, como o caçador se opõe aos animais herbívoros ou carnívoros menores que ele caça. Os herbívoros se opõem ao mundo vegetal do que tiram seu alimento, como a mulher se opõe aos frutos, sementes e raízes que coleta. Os homens dos grupos vizinhos são, tanto quanto os do “nosso grupo”, caçadores, mas pertencem, tanto

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quanto as onças, ao “mundo exterior”: são o “outro” (...) Se a distância for maior entre este “outro” e o “nosso grupo”, se, em vez de vizinho, o “outro” for concebido como alguém que veio do lado de lá do horizonte, bem pode ser entendido como um “outro” que veio da aldeia dos mortos: os mortos são igualmente uma modalidade do “outro”. Não é, portanto, de se espantar que as designações que as sociedades indígenas dão aos grupos inimigos vizinhos sejam tão freqüentemente sinônimos da palavra “onça”, e que os primeiros europeus foram percebidos por muitos povos nativos como mortos que retornavam. Voltando à questão da agressividade, a caça não implica este instinto, não só entre caçadores humanos; também segundo K. Lorenz (1970), entre os animais carnívoros não há “raiva” no ato de ataque de um animal a outro; segundo Lorenz, a agressividade caracteriza muito mais as relações entre rivais que disputam a mesma fêmea. O caçador humano vai além: ele finge que não se opõe ao animal que vai caçar: o desana, saindo à caça, diz que vai namorar, os bororos, em perseguição à anta, cantam a beleza e a graça que um cavaleiro medieval cantaria com relação a sua dama (ALBISETTI E VENTURELLI, 1962: 61). E em muitas sociedades indígenas o caçador se desculpa perante o animal, chamando-o de irmão e explicando que só o mata para que sua comunidade não morra de fome. Estas atitudes correspondem a uma ideologia que mascara a oposição HomemNatureza e, como já referido atrás, foi ela que confundiu estudiosos como LéviBruhl, que a leram como “sentimento de participação”. Mas é suficiente ler a descrição de uma luta entre um índio e uma onça para perceber que, nesta oposição, o sentimento é outro: é raiva, é ódio – que o caçador precisa exacerbar até mesmo para que o medo não tome conta dele. O grande carnívoro ataca as aldeias, mata mulheres, velhos, crianças; é um caçador de homens e como tal – quando há combate – precisa ser combatido com agressividade. O campo semântico da guerra é o mesmo da luta entre o caçador e a onça, e não o do ataque do caçador à paca ou à ema. E o inimigo humano é também sentido, à semelhança da onça, como força que, dando morte aos do “nosso grupo”, pode “vingar a Natureza”. Passemos ao texto de Luc de Heusch, para acompanhá-lo em sua tentativa de “estabelecer no campo histórico heterogêneo, com alguma precisão, o locus simbólico onde se opera a ruptura estrutural suscetível de esclarecer o propósito de P. Clastres” (Invercion de la dette: 41-42). O problema é justamente descobrir o ponto de “inversão da dívida” que, na sociedade “indivisa”, é pensada como sendo a do chefe para com o povo e, nas outras, a do povo para como o rei ou o Estado. Luc de Heusch apoia-se em

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exemplos das sociedades que, como frisa o autor, apresentam neste sentido extrema diversidade. Aliás, também Adler recorre a comparações com uma sociedade africana (os Moundang de Léré, 1987: 100-113) para clarificar as diferenças entre os conceitos políticos da sociedade “indivisa” de Clastres e das outras sociedades em que o poder efetivamente se instalou. Além dele, também Lefort (1987: 205-208), seguindo uma argumentação de Hocart, tenta caracterizar em grandes linhas gerais a passagem de uma sociedade às outras, mas é a análise de Heusch que nos parece mais rica e por isso é ela que vamos seguir mais detalhadamente. Inicialmente Heusch chama a atenção para os Nuer do Sudão, que ele designa como mais radicais que as sociedades amazônicas descritas por Clastres em A sociedade contra o Estado: seu sistema político é uma “anarquia ordenada”, no dizer de Evans-Pritchard. Os dignatários “pele-de-leopardo” não têm nenhum poder, mas são como os chefes amazônicos, pacificadores, árbitros na regulamentação das vendetas. Mas, diferentemente dos chefes sul-americanos, eles estão em relação mística com a terra, o que lhes confere o poder de abençoar e amaldiçoar. Além disso, o chefe “pele-de-leopardo” é um estrangeiro que se estabeleceu no local, portanto marcado por uma certa exterioridade e que por isso mesmo pode ser caracterizado, segundo Heusch, como um servidor ritual das seções tribais. Os vizinhos dos Nuer, os Dinka, apresentam uma cisão entre os clãs detentores da “lança de guerra” e os clãs detentores da “lança de pesca”. A descrição de Heusch se baseia em Lienhardt. “Os mestres da lança de pesca têm o poder de curar as doenças por meio de prece, de invocações e sacrifícios. Eles asseguram também a vitalidade e a prosperidade do povo. Só um pequeno número deles atinge uma reputação excepcional e alguns poucos se transformam em verdadeiros líderes políticos durante as migrações. Em circunstâncias normais, a função política dos mestres da lança de pesca é comparável a dos chefes “pele-de-leopardo” no país Nuer: eles representam o papel de mediadores nos conflitos, nas vendetas. “Mas eles também asseguram, por invocações, o sucesso dos raids e das expedições guerreiras” (HEUSCH, 1987: 44-45). Resumindo: Inspirados pelo deus “Carne” que, de certa forma, neles se incorpora, eles participam de um mistério de que os outros são excluídos e, ao atingirem uma idade avançada, são enterrados vivos pois não podem morrer de morte natural. Comparados aos mestres “pele-de-leopardo” nuer que só tem o poder de fazer chover, eles têm, portanto, uma competência ritual bem maior. No entanto,

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nenhum privilégio lhes é assegurado: os mestres da lança de pesca só detêm prestígio. A terceira sociedade escolhida por Heusch é a dos, também nilóticos, Shilluk. Nesta, “os diversos segmentos de linhagens da sociedade global confiam a função mágico-religiosa a um ser único, o ‘reth’...”(1987: 44), fazendo surgir com todas as suas características já ressaltadas por Frazer, a realeza sagrada. O “reth” é tido como encarnação de Nyikang, o ancestral da dinastia, que garante a fecundidade. Assim sendo, quando envelhece, é estrangulado. Heusch chama a atenção para o fato de que a análise de Evans-Pritchard, que tentou demonstrar que o regicídio ritual é decorrente da existência de conflitos internos entre as facções rivais, não dá conta de explicar a mesma morte trágica a que são submetidos entre os Dinka os mestres da lança de pesca. E Heusch concorda com a crítica que Adler faz à explicação funcionalista, que esvazia o conteúdo ritual da realeza sagrada, reduzindo o político simplesmente a uma competição pelo poder. Heusch explicita: As definições Nuer, Dinka e Shilluk da competência ritual dos chefes se inscrevem sobre um continuum estrutural, marcado por uma progressão cada vez mais acentuada da inflexão ritual do poder. De modo algum eu confirmo que este fenômeno, colocado em evidência por um corte sincrônico efetuado através de algumas sociedades nilóticas, seja o índice de um processo evolutivo. Pode-se somente concluir que Nuer, Dinka e Shilluk definem com uma intensidade variável a função política numa zona ritual que faz parte integrante de sua definição. Os Shilluk constituem uma sociedade fragmentária como os Nuer e os Dinka. O reth não está à testa de um aparelho de Estado. A autoridade local pertence aos mestres da terra, representando os clãs ‘dominantes’, e o rei tem somente o direito de confirmar esta dominação. Nenhuma mudança marcante da estrutura socioeconômica explica esta súbita ruptura que institui, no interior do campo político, a concentração do poder ritual na pessoa única do reth. A autoridade do rei sagrado Shilluk toma uma consciência de que está despossuída a função exercida pelo chefe Dinka ‘mestre da lança de pesca’ mais prestigioso. O rethe possui um harém considerável e se exibe com grande pompa, suas decisões são executadas imediatamente. (Frazer 1931, p. 13-23, citando Seligman). A separação da função guerreira e da função politico-ritual é total, pois os Shilluk proíbem determinantemente ao rei combater. Este personagem ímpar é também um ser solitário e vulnerável. Seus laços de parentesco parecem rompidos. Seus filhos não podem ficar na capital durante a noite; eles são seus rivais potenciais. O rei pode realmente ser morto a qualquer momento por um deles ou qualquer outro filho de rei. (1987: 45)

O rei se situa assim também fora do circuito das alianças: ele não dá suas filhas em casamento e estas devem permanecer estéreis. Este isolamento do rei na trama do parentesco e das alianças tem que ser considerado – diz Heusch – um grande marco estrutural, instaurando uma separação decisiva entre o chefe sagrado e o grupo que o investiu da função importantíssima do controle supremo da natureza.

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Heusch propõe a seguir uma análise dos dados Bantu numa perspectiva que ele reconhece “neo-frazeriana”. Para tanto, faz mais uma incursão nas teorias políticas nativas, desta vez de uma sociedade africana que ele mesmo estudou: os Tetelas do Kasai (Zaire), entre os quais é o primogênito do segmento que detém o poder da arbitragem. A este chefe de linhagem não se deve nenhum tributo, salvo a oferta de um pedaço de caça, quando das caçadas esporádicas do grupo, isto porque ele é o “mestre da terra”. Exige-se dele a mesma generosidade permanente que as sociedades amazônicas exigem de seus chefes. Os chefes tetelas são comparáveis aos “big-men” (expressão de Sahlins) melanésios, na medida em que a sociedade só lhes permite dançar a “dança do leopardo” (ritual de investidura como chefe de linhagem) após realizarem, em benefícios da comunidade, um verdadeiro potlatch. O primogênito, o chefe de linhagem, não assume, contudo, qualquer função ritual e somente os médicos adivinhos (wetshi okunda) têm a faculdade de entrar em contato com os espíritos errantes da natureza – (fonte maior de doenças e infortúnios), eles próprios possuídos pelos espíritos da floresta (Odyenge). Assim, nota Heusch, “a separação da esfera ritual e da esfera política é completa, comparável, mutatis mutandis, à que opõe o chefe amazônico ao xamã. O chefe tetela deve, além disso, fazer face à pressão dos pedidos (contribuir para a alimentação do circuito de bens materiais, em particular por ocasião do potlatch, exigido por uma situação de luto). Ele se encontra, assim, no centro da rede de trocas e, para manter seu status, para não ‘perder sua dignidade’, deve ser um grande polígamo”. (1987: 47-48). Assim, continua Luc de Heusch, encontramos na África pequenas e grandes chefias cujo poder se constrói fora da ordem familiar, à margem da mesma, num locus exterior, identificando-se o chefe substancialmente – e não mais metaforicamente – ao leopardo, ao leão ou a um espírito da Natureza. “Estas representações invertem o sentindo da dívida. O chefe é investido de sacralidade e a função ritual que lhe é confiada é essencial à sobrevivência do grupo. É a própria coerção do imaginário que obriga seus membros a pagar-lhe um tributo, e não a eficácia de um aparelho de Estado, freqüentemente inexistente. E, no entanto, esta nova figura simbólica apresenta todas as características dos ‘reis divinos’ descritos por Frazer. Faz-se necessário propor uma nova formulação do problema. Já tracei este processo com referência às sociedades nilóticas. Tratarei de desenvolvê-lo agora, abordando a área Bantu”.(1987: 48) Retomando colocações antigas de Frazer, Heusch caracteriza o chefe sagrado: (...) por sua função de controle sobre a fecundidade e equilíbrio dos ritmos naturais. ‘O rei é um chefe político de tipo particular, obtendo seu poder do suposto controle sobre a natureza e particularmente sobre a chuva. Teoricamente, ele deve ser executado

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Silvia Maria Schmuziger de Carvalho logo que suas forças declinam, por temor que sua decadência física provoque uma decrepitude paralela das energias cósmicas que se encontram misteriosamente associadas à sua pessoa’. A realidade do regicídio é inquestionável, mas sua interpretação não é tão simples quanto Frazer o havia imaginado. (idem: 48)

Luc de Heusch critica, a seguir, o reducionismo da escola funcionalista inglesa (particularmente a perspectiva adotada por Max Gluckmann na análise que ressalta tão-só a função característica dos ritos como válvula de escape para as contradições sociais). O projeto da realeza arcaica – observa Heusch – “é um domínio ilusório sobre a natureza, antes de ser um controle sobre os homens”. (idem: 49). A seguir, retoma pesquisas anteriores em que aborda a posição singular da realeza com referência à lei exogâmica, fundamento de toda a ordem familiar, estando o rei africano freqüentemente associado à sua mãe (ou uma mãe substituta), numa relação de incesto ritual. Referi-me a estas características num artigo sobre o mito de Édipo (CARVALHO, 1984), pois aparentemente elas foram comuns também a realeza creto-micênica. Em resumo, para Heusch, a realeza sagrada é uma estrutura em ruptura com a ordem doméstica, familiar ou linhageira. Assim, entre os Pende, atribui-se ao rei a fertilidade das mulheres, das colheitas, a reprodução dos animais selvagens; mas ele próprio tem que se manter em continência absoluta. Entre os Tundu, após o incesto ritual cometido com a irmã de clã, o chefe é definitivamente recluso. Características semelhantes apresentam outras sociedades africanas. Quanto ao regicídio, ele só pode ser explicado – lembra Heusch – no quadro da realeza sagrada, e o exemplo dos Moundang de Léré é tomado por ele de Adler. “Adler constata também, através do estudo dos rituais Moundang, que o envenenamento do rei e o tratamento particular infligido a seu cadáver, fonte de maldição, é tão somente a última etapa de uma condenação à morte inscrita no destino real desde a entronização” (L’Invercion de la dette, 1987: 52). O poder sagrado – conclui Heusch – merece, pois ser considerado como uma revolução ideológica. Ele é estranho ao ser da sociedade, ele é de uma essência diferente da autoridade familiar, linhageira ou clânica, cujas leis ele transgride, de uma maneira ou outra, para se afirmar. É inútil esforçar-se por demonstrar que esta nova filosofia política é somente uma superestrutura mascarando lutas políticas (como afirma Evans-Pritchard) ou uma reviravolta das condições econômicas (como o proclamam os marxistas). (1987: 53)

Contra esta última opinião de Heusch, apresento meus próprios argumentos mais adiante. Finalmente, Heusch examina ainda certas características da realeza dos Rukuba, descritos por Jean-Claude Muller, justamente para mostrar que essa ideologia da realeza sagrada não é resultado de uma transformação do modo de produção doméstico:

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Embora investido de uma função ritual excepcional, o chefe Rukuba é ligado ao trabalho, como seus administrados. Seu grupo doméstico é uma unidade de produção comum. Ele organiza todos os anos os trabalhos coletivos sobre o campo sagrado da aldeia da qual ele tem o proveito, mas os participantes são recompensados com pacotes de cerveja e com um banquete, como acontece em todo trabalho coletivo. Instrumento mágico da prosperidade agrícola, o chefe é também um redistribuidor de excedente dos anos de abundância. Em períodos de fome, ao contrário, os aldeões reclamam dele o alimento. Em resumo, o chefe é um regulador do econômico e sua função é objeto de um consenso. Esta ideologia não é redutível a uma relação de produção, mas uma máquina de produção diferente funciona ao redor da instituição da chefia, na esperança de favorecer a prosperidade geral. (1987: 55)

É importante traduzir na íntegra a parte final do artigo de Luc de Heusch : É tempo de retomar o diálogo com Clastres. Instituindo o poder como instância ritual autônoma estrangeira à ordem do parentesco, o grupo projeta deliberadamente o chefe para fora do jogo social. O chefe Rukuba comeu a carne de seu próprio clã por ocasião da sua entronização. Ele cometeu, segundo uma expressão do próprio Muller, um ‘incesto alimentar’. Transformando o chefe em monstro sagrado para lhe conferir um poder específico sobre a natureza, a sociedade fabrica uma perigosa armadilha ideológica. Mantendo todas as aparências de uma troca, o grupo se situa ele próprio em posição de devedor em relação ao chefe, ainda que reservando-se o poder de retomar o que havia dado. O movimento da sacralidade do poder, que define o chefe como ser da transgressão, é carregado de potencialidades históricas novas. Ele anuncia a inversão do sentido da dívida. Os exemplos são inúmeros em que status, privilégios, isto é, as diferenciações entre as classes sócias, se instalam ao redor da figura do rei sagrado. Com força maior ou menor, o chefe sagrado encarna pois a figura do Soberano. Este é o caso do reino Kuba do Zaire ou do antigo reino de Rwanda, apesar das diferenças consideráveis de suas instituições políticas respectivas, caracterizadas pelo controle democrático em um dos casos, pelo despotismo no outro. Em todas as situações, o poder real se alimenta de uma economia tributária quando ele se torna a engrenagem principal de uma maquinação política que mereça o título de Estado. Mas o Estado não é o instrumento da transformação da sociedade “arcaica”, como Clastres a definiu. A sacralização do poder constitui o germe mediador entre estes dois termos. O estado enquanto aparelho de coerção implica a emergência de uma instituição mágico-religiosa específica num locus exterior ao parentesco e capaz de romper o controle que ela exerce sobre o conjunto das relações sociais. A realeza sagrada não pode ser confundida com o Estado. Ela o precede, ela o torna possível em circunstâncias históricas diversas. Longe de emergir da ordem do parentesco, ela introduz nesta uma ruptura radical. O pequeno ‘g’ que separa em inglês kinship e kingship resume uma formidável transmutação simbólica. Eu proponho chamá-lo de fator ‘g’ da historia. ‘G’ como ‘gap’, buraco, abismo, vertigem, nova e fantasmagórica.” (HEUSCH, op. cit.: 57)

Heusch enfatiza, pois, a marginalidade desta figura que, como mestre da terra, controlador da natureza, da fertilidade, é transformado pela comunidade em monstro sagrado, incestuoso e estéril, e assim expulso da trama de parentesco para, antes de sua decadência física, ser sacrificado como “bode expiatório”.

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Compreende-se assim a inversão do sentido da dívida: a comunidade torna-se dele devedora pelos serviços de mediação prestados, uma mediação imaginária, é verdade, mas essencial. Juntemos a estas considerações o resumo que Lefort apresenta de Hocart, que como Heusch, está preocupado em compreender o processo da passagem de uma sociedade que não aceita o poder para a que não só aceita, como o considera essencial. Hocart apresenta como primeiro marco dessa passagem o aumento da densidade da população que exige trabalhos de coordenação antes desconhecidos. Em segundo lugar, há uma centralização do ritual. O estudo comparativo de sociedades situadas na Ásia e na África indica o mesmo processo: de uma dispersão inicial dos rituais, executados no quadro da família ou da tribo (as quais coexistem sob o signo da igualdade) passa-se a um ritual global que implica um oficiante principal e uma diferenciação das funções ás quais estão ligados personagens secundários. Após algum tempo, o chefe supremo deixa de ser o primus inter pares e incorpora na sua pessoa os atributos dos outros chefes que, após terem sido seus auxiliares, se tornam seus dependentes. Ao mesmo tempo o deus a que está identificado condensa em si as propriedades das divindades próprias aos diversos grupos particulares. Assim, a centralização se completa no momento em que o personagem central, em virtude de uma identificação com cada elemento do ritual rigorosamente definido em correlação com um elemento do universo, adquire a figura de um microcosmos que reflete ponto por ponto o macrocosmos.” Para Hocart não há dúvida de que esta lógica do ritual comanda as transformações das crenças religiosas; ele se arrisca mesmo a procurar nela a explicação da passagem do politeísmo ao monoteísmo. Sua interpretação, contudo não permite se prender a esta tese, pois ele se propõe a mostrar, pelo estudo comparativo, que apenas um pequeno número de símbolos é suscetível de se ligar à função real, que a dualidade da Terra e do Céu parece universalmente reconhecida e que, em toda a parte ainda, o culto do Sol e do Céu acaba por dominar, enquanto se afirma a ideia de um mundo uno, cujo princípio é personificado pelo rei. Assim ele nos faz perceber, em conexão com a ‘lógica do ritual’, uma ‘lógica das crenças’. (1987: 206-207) (...) Mencionando os mais diversos exemplos, Hocart insiste em colocar em evidência as características singulares do rei: ele é um mediador entre os deuses e os homens, ele é liberal em sua essência, ele é o homem da palavra magnânima e da ação justa, sua função responde a uma demanda da sociedade – demanda tão manifesta que, em inúmeros casos, o homem escolhido para encarnar essa função faz todo o possível para se esquivar e que, exercendo-a, se vê preso em uma trama de obrigações que fazem dele um prisioneiro tanto quanto ou mais do que um mestre da comunidade. Considerando esse fenômeno uma nova questão se coloca: como se efetua a passagem de uma realeza que não governa a um Estado – entenda-se, a um sistema de poder compreendendo uma administração e meios de coerção? O mínimo que se pode dizer é que Hocart hesita na resposta. Ele passa a insistir numa transformação de

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ordem religiosa: a substituição dos ritos de prosperidade por ritos ‘éticos’ que fazem do rei o depositário exclusivo de todo poder, isto é – se o compreendemos bem – , lhe asseguram um mando à semelhança de um deus todo poderoso...a análise de Hocart nos incita... a interrogar a história prestando atenção à articulação do político e do religioso, e a perseguir assim a exploração das sociedades que virão a se ordenar sob égide do estado, na convicção de que o seu próprio desenvolvimento não se esclarece somente à luz de um empreendimento de dominação do homem sobre o homem e mesmo do homem sobre a natureza. (1987: 207-208)

Assim, tanto Clastres quanto Heusch e mesmo Lefort, ao seguirem a argumentação de Hocart, não admitem que transformações econômicas possam ser responsáveis pela passagem de uma sociedade “indivisa” a uma caracterizada pela realeza divina. Creio que o problema principal deles terem chegado a esta conclusão reside no fato de que trabalham com o conceito de “modo de produção domestico”. Clastres principalmente, segue de perto Sahlins neste conceito, tendo escrito a introdução a Idade da Pedra, deste último (1976). O que é um “modo de produção domestico”? Quero chamar atenção para o fato de que sistemas adaptativos dos mais diversos podem operar como unidade de produção doméstica: um grupo de caçadores-coletores, uma comunidade de pescadores, de horticultores da floresta, de agricultores intensivos (de jardinagem), uma comunidade pastoril... Meillassoux já havia percebido e criticado este conceito como simplesmente inoperante. (Mulheres Celeiros e Capitais: 19-20). Há uma grande ruptura entre um sistema adaptativo que se baseia na “punção” (e faz da terra apenas “objeto de trabalho”) e outro que faz da terra “meio de trabalho”. Meillassoux (1967 e Mulheres, Celeiros...) percebeu esta diferença muito bem. Ele tem razão também quando diferencia uma sociedade de caça-coleta de outras sociedades, por ela se basear muito mais no principio de pertinência (ou adesão) do que no princípio do parentesco (Mulheres, Celeiros...: 31-33). Isto não quer dizer que nas sociedades de caça-coleta a família não seja uma unidade importante. Mas os grupos domésticos estão mais abertos a uma incorporação de mulheres e crianças e a uma recomposição, entre caçadores-coletores e mesmo entre horticultores de floresta. Ao passo que a importância da herança tende a solidarizar os membros de uma sociedade no sentido vertical (como grupos de descendência). E Morgan já havia apontado corretamente a importância que a herança tem na reorientação da organização social. Um trabalho importante mostrando como a passagem de uma economia de horticultura de floresta (complementada pela caça e coleta) para uma agricultura ou, mais precisamente, uma jardinagem intensiva (do arroz), transforma a ideologia em relação aos grupos vizinhos, passando o grupo a valorizar o parentesco e a instituir a endogamia, é o artigo de Maurice Bloch sobre os Zeffirmaniry e os Merina de Madagascar (1977), ambos representando a mesma etnia que LINTON chamou de Tanala.

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Quanto a terra ou, mais precisamente, a floresta, ela é menos um “laboratório natural” para o caçador (como sugere MARX, 1975:33-65) do que um reino do “outro”, da alteridade, em que toda a incursão é uma aventura, um jogo que precisa ser bem jogado para poder se perpetuar. Isto não significa que o indígena não se interesse por todos os detalhes do mecanismo de produção e reprodução de vida vegetal e animal: é justamente para que consiga ser um caçador perfeito que ele se interessa. Mas ele não será um técnico de laboratório a fazer experimentos, como se os outros seres vivos estivessem a sua disposição. Ele procura conhecer para preservar, como notou muito bem Diègues Santana (1983: 850): o pescador, da mesma forma que o caçador-coletor, aposta não no desenvolvimento das forças produtivas do homem, mas nas forças produtivas da natureza, o que é, sem dúvida, uma forma altamente inteligente de viver. Assim, o cinegismo, o escalonamento dos alimentos caçados e coletados, regulado pelo sistema de tabus, o centrifuguismo e a autonomia enfim, são, como quer Clastres, diretrizes de uma política da sociedade “indivisa”, de uma “vontade sociológica”, mas decorrem, ao contrário do que ele pensava, de uma práxis econômica: podem ser caracterizadas como a política econômica de uma sociedade de caça e coleta. Claro que o termo “política econômica” não pode ser restritivo a um pensamento, a projetos ou atividades voltadas a uma produção cumulativa de bens. Mas, se uma abordagem marxista é a que procura reconhecer na prática social de subsistência a fonte das diretrizes que o grupo humano impõe a si mesmo (e que norteiam e dão sentido à classificação simbólica do universo), então é ela a teoria que pode esclarecer, não só a “vontade sociológica” da sociedade “indivisa”, mas também a passagem desta sociedade para outras em que o poder se instala. Tanto Heusch quanto Hocart (resumido por Lefort) apontam corretamente as etapas formais do processo; não conseguem, entretanto, perceber a dialética, o mecanismo pelo qual a ideologia muda. Certamente porque se negam a admitir que por trás das transformações se deva procurar mutações econômicas, e porque – como já sugeri – não percebem que o conceito de “modo de produção domestico” que utilizam abrangem sistemas adaptativos muito diversos e é, por isso, inoperante. A constatação de que o aumenta da população é um dado importante a ser observado (1987: 206) é correta, mas não dá conta do porque desse aumento. Sabe-se que em toda a América houve uma sedentarização pré-agricola, em torno de lagos e estuários de rios. A pesca e a caça a aves aquáticas tornaram-se para muitas populações a fonte principal de subsistência, sedentarizando-as. É verdade que a própria sedentarização propicia condições diferentes para as relações

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sociais: bebês, velhos e doentes não precisariam mais ser constantemente carregados, o grande número de filhos não é mais um empecilho para as atividades de subsistência. Mas, entre os horticultores de floresta, a aldeia passa a ser razoavelmente estável (às vezes permanecendo ate 15 anos no mesmo local, segundo Von Hildebrand (1988) e, mesmo assim, a política de controle demográfico não se altera: algumas crianças são imoladas, em particular os gêmeos. É que, no caso do sistema de roça, o cinegismo de punção continua. Além disso, quando as condições econômicas mudam, a visão do mundo resiste ainda por muito tempo. Pode-se dizer que a humanidade foi caçadora-coletora por 4 milhões de anos, desde seu surgimento, e as representações se transmitem como uma moral, uma filosofia religiosa, cristalizada em tabus e dogmas. Como tais, resistem a mudanças. Mas povos que passam a ter na pesca a fonte quase exclusiva de proteínas, começam, com o tempo, a ver no peixe o “outro”, aquele que deve ser morto para que o mundo humano possa viver. Não passa despercebido aos pescadores que os peixes se reproduzem incrivelmente mais do que mamíferos e aves, constituindo assim um recurso muito pouco sujeito a tabus. A centralização da “punção” na pesca interfere, aos poucos, no cálculo de reequilíbrio entre “nosso grupo humano” e a “natureza” (agora pensada principalmente como o mundo das águas). Sabe-se hoje que a sedentarização em torno da pesca, na Amazônia, determinou um aumento de densidade das comunidades. A agricultura centrada em um só vegetal, a monocultura, é outra atividade que tende a reorientar o “cálculo” do equilíbrio entre Homem e natureza. E, naturalmente, também a criação de gado. Não é por acaso que o Deus do Antigo Testamento ora aconselha, ora promete a Abraão e seu povo uma descendência numerosa como as estrelas do céu. As concepções religiosas não seriam assim se os hebreus continuassem caçadores-coletores. A centralização do ritual a que se refere Hocart (citado por LEFORT, 1987: 206) é portanto consequência da lenta transformação de uma visão de mundo dos caçadores: os rituais muito diversificados que se realizavam ao longo do ano, de acordo com o bio-ritmo das espécies mais diversas, cada cerimônia para uma determinada espécie, passam a ser centralizados pelas cerimônias agrícolas: a semeadura e a colheita que o sol propicia, amadurecendo os grãos. Com a monocultura dos cereais (trigo, milho), a importância do sol se torna maior e é por isso – porque ele é essencial neste processo – que o seu culto tende a eclipsar o das outras entidades. Mas é apenas mais um dos aspectos das transformações, e o desenvolvimento de uma monocultura de cereais não explica, por si só, o processo de centralização do ritual. É preciso examinar mais cuidadosamente as trocas (reais e imaginárias) pelas quais a sociedade supõe restabelecer o equilíbrio “mundo humano” versus “natureza”, para compreender o aparecimento da realeza divina. Em primeiro

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lugar, não se pode esquecer que originalmente, isto é, nas condições de prédomesticação, o infanticídio e o abandono dos velhos é pensado como uma “reposição”. O infanticídio principalmente funciona como sacrifício, já que os velhos tiveram sua parte na vida e parece “natural” que deixem seu lugar para a geração nova. Mas qualquer morte é uma devolução à natureza, só que as mortes rituais, intencionais, são pensadas como um “ato de generosidade” para com a natureza (semelhante à generosidade do chefe para com os seus). Por isso “garantem” uma devolução para o mundo humano (espera-se da natureza uma contra partida da dádiva). Nisto reside a fantasia das trocas imaginárias e, contudo, esta concepção do universo é necessária à reprodução do modo de produção cinegético. Além disso, numa sociedade igualitária, quem morre muito jovem, voluntariamente, abdica de uma parte de sua própria vida que é como que repartida entre os outros da comunidade, é uma pessoa a menos a comer, a reproduzir-se, numa comunidade que “não deve” ultrapassar certos limites demográficos, não porque o sistema não possa sustentar uma população maior (CUNHA, 1985:09), mas porque sua prática se baseia num “cálculo’ de reequilíbrio em que a reprodução de todas as espécies deve ter a mesma chance. O que acontece quando, com a agricultura, o grupo humano passa a se pensar cada vez mais dependente, em termos de alimento, de uma só espécie? Não é por acaso que os mitos de origem de plantas cultivadas explicam-nas tão freqüentemente a partir de um sacrifício humano, brotando a planta do corpo de uma vítima sacrificial enterrada no solo (a “divindade dema” de Jensen). Certamente, o termo “divindade” não é muito apropriado... ao menos não ainda em uma sociedade de horticultores de floresta, e mesmo durante os primeiros tempos da especialização de um grupo como agricultores intensivos. Mas o cultivo mais sedentário, tal qual a pesca, fixando a aldeia, fixa também os mortos. Eles são pensados como uma troca, como a reposição-adubo das plantas, ainda que, certamente, não serão enterrados no campo de cultivo. Assim mesmo, é muito significativo que na Guatemala a palavra pucbalchaj represente o arquétipo da tumba e da horta ao mesmo tempo (GIRARD, 1954: 41). Assim, as “trocas” também se centralizam: o conceito de propriedade da terra (terra do clã, da aldeia) se origina neste processo e se explica como: “a terra é nossa porque nela estão enterrados nossos mortos”. E com o cultivo intensivo se inicia também um verdadeiro culto aos mortos. É preciso ressaltar que o processo econômico se alonga com a domesticação das plantas. Meillassoux (1967: 38) notou com muito acerto que caçadores-coletores perfazem as três fases do processo de produção (“punção”, distribuição e consumo) geralmente em apenas um dia. Todos que dele participam, todos os membros da comunidade, recebem seu quinhão. A partilha efetuada cada dia garante o equilíbrio interno da mesma forma que o respeito aos tabus garante o externo. Mas, quando uma pessoa ajuda

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a plantar uma árvore6 e morre antes dela dar frutos? Pela moral da partilha, o morto tem direito à sua parte. Assim, as primícias passam a ser ofertadas aos mortos; e até na nossa civilização tão transformada, o povo ainda designa como “gominho das almas” o “gomo anão” que por vezes apresentam laranjas ou tangerinas. O culto aos mortos, que fazem germinar as colheitas, que molharam com seu sangue o solo 7 e fazem chover, tem como conseqüência um processo de antropomorfização dos ancestrais (que entre os caçadores sempre têm algo de híbrido Homem-Animal). Com o tempo, o ente pensado como primeiro morto é identificado finalmente como filho de Deus criador e “antropomorfiza” por sua vez a figura do pai. Por outro lado, a ideia de poder continua a ser pensada como decorrente de um sacrifício de vida. Os antepassados passando a canalizar a mediação Homem-Natureza, o rei-divino (convergência do xamã com o chefe) será pensado como “morto ainda vivo”, “ancestral-vir-a-ser por sacrifício voluntário”, sua morte se iniciando com a entronização8 e seu reinado inteiro simbolizado como “fase numinosa” (seg. Van Gennep e Turner) de um rito de passagem que termina com a morte ritual efetiva do soberano. Essas trocas imaginárias (“nossos mortos” pelas chuvas e colheitas) são, portanto, crenças muito antigas, reorganizadas a partir de uma transformação anterior do modo de produção (de caça-coleta ou de horticultura de florestas) para uma agricultura mais sedentária, mais intensiva. As representações das trocas com o mundo exterior (agora principalmente as plantas), embora ainda tenham essa forma negativa, passam a incorporar uma outra troca que é a de serviços, “positiva” desta vez, as plantas sendo replantadas, tratadas como filhas (e, inversamente, as crianças sendo tratadas como plantas à semelhança do que Margaret Mead observou entre os Arapesh, Sexo e Temperamento, 31-162). O mesmo simbolismo se encontra associado ás atividades pastoris dos povos nilóticos e dos criadores de gado do Burundi (ZIEGLER: 4145). Nessa nova equação, as funções de um sacerdote não são mais as mesmas de um xamã, pois o plano de ação do mediador entre Homem e Natureza acaba se sobrepondo ao específico do chefe amazônico, podemos dizer que, aos poucos, 6. Aliás, segundo Frikel (1978), a arboricultura precedeu a horticultura na Amazônia e é possível que assim tenha sido também em outras áreas florestais. 7. A ideia de que o sangue, elemento liquido, evapora e por isso tem algo a ver com a chuva, existe entre caçadores: os Guajiro da Venezuela (PERRIN, 1979) reconhecem, na chuva que cai, os mortos (indiferenciados) que voltam. Os esquimós pensam exatamente o mesmo da neve. 8. Um exemplo de CANETTI, E. (1966:447) mostra um rito de iniciação em que o rei é quase estrangulado na entronização, enquanto se determina o tempo que há de governar, pela resistência à asfixia. Ao fim do reinado, é estrangulado efetivamente.

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há uma inversão de sinais nas relações Homem-Natureza, quando se passa de caça-coleta para a domesticação. O xamã lidava só com o reequilíbrio externo, da morte (do animal) paga com morte “do ser humano), numa área que se pode caracterizar como de sinal negativo; enquanto o chefe só lidava com o equilíbrio interno (distribuição equitativa do alimento, harmonia interna) em áreas de sinal positivo. Numa explicação puramente estrutural teríamos então relações HomemNatureza tornando-se parcialmente positivas, transformando a função do xamã e modificando parcialmente o sinal das trocas internas (as da chefia). Haveria, portanto, uma “lógica estrutural” explicando a figura simbolicamente (mas tãosó simbolicamente) agressiva do “chefe pele-de-leopardo” Nuer. Além disso, a jardinagem e principalmente o cultivo intensivo de cereais determinam uma passagem para uma economia redistributiva. É possível que, como sugere Meillassoux (Mulheres, Celeiros...: 141), o chefe ou, de forma mais genérica, os “velhos”, enquanto guardadores dos grãos, acabem sendo credores dos jovens que deles dependem para a obtenção das sementes, acabando estes por desenvolver em relação aos primeiros um sentimento de dívida. Mas os indígenas não desenvolvem o mesmo sentimento de dívida em relação ao chefe amazônico (de que também recebem dádivas), e que aparece, antes, como devedor do grupo. Trata-se, portanto, de uma razão mais profunda. Pode-se dizer que o xamã deve zelar para que os tabus (não coletar, não pescar tal ou tal espécie) sejam respeitados, freando assim as atividades “produtivas” (de punção). Disso depende a reprodução do sistema adaptativo. Numa sociedade centrada na agricultura, o reequilíbrio entre Homem e cereal plantado exige exatamente o contrário: plantio, cuidados de jardinagem, armazenamento correto das sementes. E esta é provavelmente a razão porque as duas funções (de xamã e de chefe) acabam convergindo, senão para o mesmo personagem, ao menos para uma colaboração estreita entre duas personagens (sumo-sacerdote e rei). Mas os ritos de reequilíbrio continuam em parte “negativos”. Claro que continuam a existir – e com fortes cargas simbólicas – os outros setores da Natureza e geralmente, durante muitas e muitas gerações, nem tudo é domesticação: tanto caça quanto coleta continuam a ser praticadas e, junto com elas, os ritos sacrificiais. Assim mesmo, a especialização em poucos produtos faz com que certos setores da natureza passem a ser considerados menos importantes. Não é por acaso que hoje, na nossa civilização que tudo procura domesticar, tendência esta sancionada por uma ideologia cristã (“só homem tem alma”), cientifista (“o mundo todo é laboratório para o homem”) e capitalista (“tudo é mercadoria”), os setores não domesticados sejam designados como “ervas ou animais daninhos”, por termos de conotação negativa: “mato”, “animal selvagem”, “feras”.

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De qualquer forma, a domesticação traz realmente o “outro” (de que se obtém o alimento) para dentro da área de sinal positivo. Contudo, com referência à domesticação de animais, o processo é extremamente longo e muito elucidativo. A “adoção” de animais é uma prática anterior ao pastoreio. Nas sociedades indígenas brasileiras é comum a adoção de filhotes de animais que, por um engano do caçador, ficaram órfãos. São criados na aldeia e nunca são mortos. Aparentemente a criação de gado é no início uma intensificação desse processo de adoção. O gado dos povos nilóticos não é criado para corte: é uma espécie de contrapartida para a aquisição de mulheres. Em vez de trocas de mulheres por mulheres, a troca é de mulheres por mulheres-rezes. Não creio estar exagerando nessa identificação. As trocas imaginárias Homem x Natureza se complicam quando os povos se centralizam em certas atividades econômicas e as divindades-vacas, os deuses-touros das realezas arcaicas provam a importância das representações simbólicas deste tipo (os mitos de esposa ou esposos animais se preservam no simbolismo da realeza divina). É muito importante ressaltar que, ao contrário do indígena amazônico que adota o animalzinho órfão mas freqüentemente o deixa voltar à floresta quando adulto, o animal domesticado, de rebanho, acaba sendo concebido simbolicamente como vida reproduzida pelo homem (o que para o caçador é inconcebível). Assim sendo, o animal acaba sendo (à semelhança do inimigo humano adotado) um substituto para o sacrifício humano. Abrão sacrifica o carneiro como álter ego de Isaac. A partir dessas colocações, quero retomar tão-somente a questão das mudanças ideológicas, reexaminando os dados de Luc, cujo artigo, aliás foi desenvolvido numa obra mais ampla intitulada justamente Reis nascidos de um coração de vaca (1987: 41). As tribos nilóticas são horticultoras e criadoras de gado. Os mestres de lança de pesca Dinka são a carne humana dada à natureza, no simbolismo arcaico dos caçadores, pois não é o gado que fornece o alimento animal: é a caça ao hipopótamo (também animal aquático) e a pesca. Se, quando velhos, os mestres da lança de pesca são enterrados vivos, é possível que, além de uma reposição para as plantas, também sejam concebidos como contra partida para os hipopótamos que gostam de afundar na lama. Nesta “dialética do alimento”, que é a representação nativa da continuidade da vida, a vítima sacrificial é, ao mesmo tempo, também o ente a quem ela é sacrificada. “Carne dada ao animal”, no seu aspecto diurno, o mestre da lança de pesca se transforma no “outro” nas cerimônias sacrificiais noturnas, quando então ingere pedaços de carne crua. Se refletirmos sobre as várias formas que assume a exclusão dos reis africanos da trama do parentesco, que Heusch relaciona, percebemos que existe um paralelo entre estas e as abstenções sexuais, prescritas para inúmeras ocasiões e que tem

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que ser respeitadas não só pelos xamãs, mas pela comunidade cinegética como um todo;.para esta (a comunidade cinegética) não é somente o sacrifício da vida que pode reequilibrar as relações Homem-Natureza (alias, homens e mulheres adultos cumprem nela um papel tão essencial que praticamente só na guerra se encontra o sacrifício deliberado, pautando num código de honra, como o de Fousiwe, lembrado por Clastres). São as abstenções sexuais que, de certa forma, substituem o sacrifício da vida. Sua forma mais extrema a castidade ou a esterilidade, é, na realidade, “suicídio genético”. Se esta forma caracteriza a figura do rei divino, é porque a interpretação do rito de intronização, como equivalendo simbolicamente ao começo de um rito de morte, é acertada. O exemplo dos Rukuba apresentado por Heusch mostra concepções que podem ser cotejadas com o mito da substituição do sacrifício de Isaac. O escolhido para exercer as funções reais refugia-se em casa do tio materno, onde seus parentes ágnatos o procuram. Após ter a cabeça raspada como se estivesse de luto por si próprio, pessoas da sua patrelinhagem o levam, o fazem tomar cerveja na calota craniana de um dos chefes precedentes “como se ele tivesse sacrificado este seu antecessor”. Em três aldeias Rukuba, uma criança recém nascida, do clã do chefe, é estrangulada, como vitima substitutiva. Em seguida, sacrifica-se um carneiro e o novo rei ingere um preparado feito da carne desse animal (que para os Rukuba representam o chefe e normalmente é tabu). Ao preparado se mistura pedaços da carne da criança morta. Transformando assim em antropófago (incestuoso alimentar), o chefe se torna impuro, sacer: é ao mesmo tempo a vitima humana e o “outro” a quem esta foi sacrificada. Os Rukuba não sacrificam seu rei após os sete anos que deveriam marcar o fim do reinado. Este é prorrogado por mais sete anos, após outro sacrifício substitutivo, desta vez não implicando morte: um velho de outro clã (não do clã do rei) é capturado, se o obriga a comer a carne tabu de um carneiro sacrificado e assim, como “bode expiatório” (que cometeu o crime de “devorar o chefe”) ele é expulso da aldeia. Percebe-se assim, que não se pode compreender essas concepções sem reconhecer as transformações econômicas que levam uma sociedade de caçacoleta (e/ou horticultura de floresta) a uma sociedade pastoril em que o surgimento do conceito de propriedade sobre o animal (como algo que é produzido ou reproduzido pelo homem) permite substituir o sacrifício humano pelo do animal. E nos parece que, para compreender as transformações religiosas, é preciso captar a dialética entre prática e representações e novas práticas e representações anteriores. E estas precisam ser bem entendidas, porque servirão de mediação para as reformulações de um simbolismo velho como a humanidade, mas cujo cerne é a preocupação com o reequilíbrio, ainda que cada vez mais dramatizado e menos efetivado.

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Creio que está na hora de retomar as criticas que Lefort faz ao pensamento de Marx (Lefort, 1987:202) e os ataques do próprio Clastres. Deste ultimo, o texto mais violento é uma publicação póstuma, traduzida no Brasil por Bento Prado Junior. Inicialmente como artigo de revista (1979). É provável que, numa revisão de Clastres, teria resultado num teor mais sereno, mas já num artigo anterior (O retorno das luzes), que entregou para publicação em fevereiro de 1977, Clastres se mostra extremante irritado. A critica a Birbaum o leva também a criticar Jaulin em termos muito agressivos, sem rodeios. Quanto a Lefort, embora em artigo anterior (1979) tenha chamado a atenção para a multiplicidade de sugestões de Marx com referencia ao processo histórico, acaba abandonando o enfoque marxista9. Designa, pois, como “mitologia” a tentativa de Marx para descobrir um fundamento real para a divisão social e, ao mesmo tempo, definir todas as figuras do poder, da lei e do saber que conhecemos como produto de um processo empírico (o desenvolvimento das forças produtivas e as transformações das relações de produção que o acompanham), para concluir a seguir que “contra esta mitologia - de forma mais geral, contra todo o tipo de economismo, de sociologismo e de historicismo – convém restabelecer o primado da ordem simbólica”, que ele afinal remete ao “enigma da instituição”. Reconhece, contudo, que esta sua colocação “nada mais é do que a transferência para o registro do simbólico de uma ideia de funcionalidade, isto é, da instrumentalidade que se formulava antes no registro do realismo”. Assim, a “escolha” dos “primitivos” consiste então em fixar o “outro”, o invisível, a origem do poder, da lei e do saber, num lugar absolutamente a distância do seu próprio espaço de vida, de seu próprio tempo, na intenção de banir toda a divisão nos limites do social, enquanto, após a desagregação deste dispositivo, todas as figuras do “Outro” se vêem, em virtude de uma escolha, levadas para o interior destes limites e condensadas nas “figuras” do Estado (1987:202). O anti-marxismo de Clastres e de Lefort não tem sentido. É verdade que muitos estudiosos aplicaram mal os ensinamentos de Marx ao exame de sociedades “primitivas”. É preciso não esquecer que Marx não podia conhecer as condições reais do sistema de caça-coleta como hoje as conhecemos. A visão que Marx tinha da sociedade “primitiva” era de um “rebanho humano”, o homem em luta desesperada com a Natura, “até que as forças produtivas deste ultimo se tenham desenvolvido sobre uma base adequada” (A ideologia alemã: 31). Percebeu muito bem a importância da divisão do trabalho e suas conseqüências na formação de ideologias, mas acreditou poder ver na divisão sexual do trabalho algo biológico, natural, instintivo: “esta divisão do trabalho, que implica todas estas contradições e repousa por sua vez sobre a divisão natural do trabalho na família...” e, outro engano, viu a organização primitiva baseada numa... “divisão da sociedade em 9. Em grande parte por influência da escola americana de antropologia.

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famílias isoladas e opostas, implica(ndo) simultaneamente a repartição do trabalho e dos produtos, distribuição desigual10 tanto em qualidade, como em quantidade: dá portanto origem à propriedade, cuja primeira forma, o seu germe, reside na família, onde a mulher e a criança são escravas do homem.” (idem :38). A construção deste conceito de propriedade, embora possa tomar esta diretriz em algumas sociedades particularmente patriarcais e machistas, é mais complexa do que Marx podia supor; e hoje seria difícil sustentar, para muitas sociedades derradeiras de caçadores ainda existentes (incluindo aí os Guayaki estudados por Pierre Clastres), que a mulher nelas seja considerada propriedade do homem. Além do mais, como Marx reconheceu em relação ao conceito de propriedade individual, o conceito de propriedade sobre animais e plantas também é construído historicamente. Marx não podia saber, no entanto, que o caçador não sente a natureza nem como seu “laboratório natural”, como seu “corpo inorgânico” (1985:81), mas como o seu “outro”, a que se opõe e com que luta, assim, mas que também respeita e preserva. Marx e Engels tinham razão, contudo, quando afirmavam que “produção de idéias, de representações e de consciência está em primeiro lugar direta e indiretamente ligada à atividade material e ao comércio11 material dos homens: é a linguagem da vida real...” (A ideologia Alemã:25). “É a partir do seu processo de vida real que representa o desenvolvimento dos reflexos e das representações deste processo vital.” (idem:26).

10. Grifo de Marx/Engels. 11. “trocas”, seria uma tradução mais acertada.

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OBSERVAÇÃO: Este artigo foi escrito logo após a leitura de ABENSOUR (1987). Mais recentemente a obra de Clastres motivou novo interesse entre os estudiosos brasileiros, resultando num colóquio no SESC de São Paulo em 2009, publicando-se algumas das contribuições como “Dossiê Pensar com Clastres” na Revista de Antropologia 54 n.2, Julhodez.2011. São análises excelentes, desvendando as sutilezas do “pensamento selvagem”. A minha intenção no artigo acima foi outra: a de mostrar que a “filosofia contra Estado” é decorrente de uma visão do mundo necessária à reprodução contínua de um correspondente modo de produção.

8. O Duplo Jacaré1



(Cerâmica Marajoara)

Silvia M. S. de Carvalho

1. Elementos Formais na Cerâmica Marajoara Revendo o estudo de Helen Palmatary sobre a cerâmica marajoara (“The pottery of Marajó Island, Brasil” – Transactions of the American Philosophical Society – New series, vol.39, Part 3, 1949), ocorrem-nos algumas observações a respeito das variantes formais nela encontradas: Em primeiro lugar, não teria a representação mais realística da cerâmica marajoara (representada pelas figurinhas com base em crescente – “crescente base – with raised knees”, como Pl. 6-d...)2 alguma relação com o modo como são decoradas as urnas antropomórficas? Isto é, passou-se para a decoração das urnas a estilização de uma representação (também bastante estilizada), em que o tratamento displicente dados aos membros inferiores (geralmente só representados pelas coxas, até os joelhos), é responsável pela quase ausência da representação das pernas e pés (com algumas exceções, como por exemplo em Pl. 27 a-b, em que aparecem pés atrofiados) nas urnas, enquanto continuam a ser representados (além da face) os braços (com tendência a serem representados em relevo) seios, umbigo e sexo? A tradição de representar braços em relevo faz com que apareçam, ao que parece, quase em todas as peças ou em muitas delas, umas pequenas saliências nos ombros. Com o nariz em relevo já estava assumindo a função de alça (vejase Pl. 49-a,b), esses relevos globulares não se desenvolveram em nenhum elemento funcional no vaso, sendo o resto dos braços geralmente representado, por decoração pintada, já sobre a superfície lisa da urna. É possível que a conservação, por tradição, dessas saliências tenham dado origem (entre outros motivos, pela tendência da oleira3 em conseguir um efeito mais estético) à representação adicional de um jacaré (geralmente com duas cabeças), em cada flanco de urna (como em 49-a,b). Parece que neste exemplar, um terceiro jacaré substitui o sexo das duas figuras antropomorfas opostas. Tanto neste exemplar, como em muitos outros, as patas dianteiras do jacaré são ao mesmo tempo os

1. Artigo publicado originalmente na Revista Perspectivas, 1976, 13-42 p. (1) 2, Também Pl. 4-a, b , Pl. 6-e/f, respectivamente à p. 362 e 364 – Helen Palmatary, op. cit. 3. ... ou oleiro, se acaso EVANS e MEGGERS tiverem razão quanto à questão da arte marajoara ser produto de um grupo especializado de artesãos. “Uma interpretação das Culturas da Ilha de Marajó”. Publ. nº 7 – Inst. de Antropologia e Etnologia do Pará – 1954).

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braços da figura antropomorfa. No centro, a pequena saliência arredondada marca o umbigo. Num exemplar policromo, Pl.93, ocorre algo parecido. É a representação de um jacaré ou, pelo menos, animal muito semelhante ao jacaré, que ocupa o lugar onde comumente se representa nas urnas o umbigo e o sexo, enquanto que os seios são formados pelas volutas de duas serpentes, cujas cabeças em relevo marcam, não os ombros, mas o lóbulo das orelhas, dando mesmo a ideia de que se trata de orelhas deformadas4. Duas patas de réptil (com apenas três dedos representados) funcionam ao mesmo tempo como braços da figura humana, e note-se em “b” que a decoração lateral às figuras antropomorfas é como se fosse a continuação, a parte traseira do jacaré em “a”5. Tendo-se tornado comum este elemento do jacaré, em relevo ou não, na parte lateral da urna, não é de se estranhar o deslocamento, em algumas urnas, para debaixo da face humana, como em Pl. 61-a. Em 19-c as caudas do jacaré de duas cabeças (pois parecem ser caudas e não patas dianteiras), já não estão em posição diagonal como deveriam ser num desdobramento de figura6. Em Pl. 43-b temos uma representação híbrida do jacaré: cabeça em relevo, corpo em decoração incisa. A cabeça em relevo deste exemplar poderia ser tomada, à primeira vista, por uma face humana, mas a própria posição dela invertida, não deixa dúvida de que é a cabeça do réptil. Esta cara ou face se apresenta, na cerâmica marajoara, em toda uma gama de maior ou menor estilização. Facilmente identificável como humana em Pl. 82-b e outras peças, já em Pl. 47-g, o término das volutas (que parecem orelhas) em uma pata de 3 dedos lembra a sua origem animal7. Em muitos exemplares, a face estilizada se apresenta alternativamente para cima e para baixo de uma linha sinuosa, como em Pl. 78-a, para em Pl. 71-d perder completamente o seu caráter representativo, convertendo-se em elemento puramente geométrico. Em Pl. 86-b ainda se reconhece o animal estilizado. Embora o motivo sugira levemente uma face humana estilizada, uma observação atenta revela que se trata de uma cabeça triangular de réptil (de cuja base sai o que poderia representar patas), repetindo-se alternativamente para cima e para baixo, no bojo do vaso. 4. Outros exemplares apresentados por PALMATARY sugerem a deformação da orelha (Pl. 23-d e Pl. 95) e em Pl. 105-d aparece um disco como “ear plug”. 5. A decoração da peça Pl. 88 assemelha-se bastante com a deste exemplar, e em Pl. 89-a ainda se consegue distinguir as “patas-braços” laterais. Estilização idêntica encontramos em Pl. 15-b, p. 373, op. cit. 6. Vide também em PALMATARY, Pl. 65 –d/e, à p. 423, e, como um desdobramento mais complexo e destorcido ainda, Pl. 51-b e 42-h. 7. Alias, mesmo em Pl. 82-b, como se verá adiante, a estilização de réptil está presente.

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Quando a estilização se torna muito grande, é mais difícil dizer o que a oleira tinha realmente em mente representar. A estilização tendo atingido um grau muito alto, alguns de seus elementos podem subitamente libertar-se, tornando-se independente (Lévi-Strauss apresenta um bom exemplo deste processo em “Antropologia Estrutural”, no capítulo sobre “O Desdobramento da Representação nas Artes da Ásia e da América”). Isto acontece também em alguns exemplares marajoaras, como por exemplo em Pl.78-b, em que o aspecto pisciforme dos olhos só pode ter sido reforçado intencionalmente pela oleira (este tratamento dado aos olhos caracterizam várias urnas antropomorfas). Em Pl. 77-d8, o motivo estilizado passa a ser usado como elemento de um novo conjunto, dando origem à representação, aparentemente intencional, de outro motivo, o que acontece também em 65-a, que sugere, segundo Mordini (citado por PALMATARY, p. 316), uma tartaruga9. Naturalmente a oleira, embora sujeita a força da tradição, desde que repete o elemento convencional, se permite e aproveita toda a oportunidade que se apresenta, dentro das regras pré-estabelecidas, para dar vazão a seu espírito criador, com o desenvolvimento de partes, traços do complexo, numa nova representação. O motivo do jacaré com duas cabeças é muito freqüente na cerâmica marajoara. A cada cabeça correspondem duas patas dianteiras e um rabo que se retorce lateralmente, como na figura de Pl. 42-c; este vasinho (Pl.42-c, com 6,5cm de altura), de decoração incisa, apresenta uma execução muito esmerada, que se pode emparelhar com outros vasos globulares pequenos (entre 10 e 20cm de altura)10, que parecem representar o que há de melhor, na coleção apresentada por H. Palmatary. Tem-se a impressão de que o motivo de Pl. 42-c é o modelo, o protótipo de uma série de estilizações. Nele o traçado das patas dianteiras reproduz, com grande realismo, a disposição arqueada que elas apresentam, 8. Em Pl. 77-d, distingue-se perfeitamente a face humana, bem no ponto em que a vasilha está apoiada. Este motivo corresponde a outro igual, diagonalmente oposto (na parte de cima, mas pouco visível na fotografia). Do lado esquerdo e direito, porém, duas faces representadas da mesma forma estão ligadas, desempenhando a função de olhos em um conjunto maior, cuja boca retangular esta representada mais para o meio do fundo do vaso. 9. Em Pl. 65-a, parece-nos, entretanto, que estamos lidando novamente com o motivo do jacaré de duas cabeças, agora desdobrado, não só verticalmente mas também horizontalmente. As flechas que saem do centro da peça, terminam em um desenho que (embora sugerindo uma boca com dentes, sob a “flecha do nariz”) corresponde exatamente ao focinho triangular ou em funil das representações do jacaré, em outras peças. As quatro patas servem ao mesmo tempo aos vários desdobramentos do motivo. Resta saber se as flechas recurvas para dentro (parecendo formar ao mesmo tempo a parte de cima e lateral das faces antropomorfas) poderiam ser a cauda de outras estilizações, desdobrando-se por efeito estético. 10. Os exemplares Pl. 41-h (19cm. alt.), Pl. 46 (17cm. alt.), Pl. 64 (16,5cm.), reproduzidos por H. PALMATARY.

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saindo lateralmente do corpo, quando o réptil é visto de cima. Também o estrangulamento do focinho, terminado por um alargamento que corresponde às narinas, não deixa dúvidas quanto ao animal representado. Em Pl. 50-b (e outras peças), ocorre uma curiosa substituição: os elementos que deveriam ser as caudas (opostas diagonalmente) do duplo jacaré, convertem-se em duas patas (note-se a terminação em 3 dedos)11. Em compensação, os elementos que em Pl. 42-c representam as patas, se deformam em espirais, como se fossem antenas de inseto. Em Pl. 66-a, a cabeça mais ainda se parece com a de um inseto; aliás, neste caso, mas somente neste, as “antenas” se curvam tanto que elas podem muito bem ser “lidas” como olhos do animal. Já não se trata ai de animal de duas cabeças, e a cauda enrolada mais faz pensar em um pequeno mamífero do que em réptil. Mas parece claro que o motivo evoluiu de um outro, de “jacaré com duas cabeças”, se repararmos na disposição das, somente duas, “patas” laterais, sem dúvida uma nova deformação das caudas primitivas. Aliás, é curiosa a persistência com que esse elemento (provavelmente oriundo da estilização das patas) se apresenta, sob a forma de volutas ou espirais ou ainda em forma de “L” (lembrando mais ainda “antenas”), saindo diretamente da cabeça, às vezes da base12, muitas vezes numa posição mais frontal. Veja-se, por exemplo, Pl. 41-f (volutas), Pl. 32-f (elemento em forma de “L”), Pl. 61-b (espirais). Embora acredite que o elemento tenha surgido de uma deformação das partes estilizadas (como já foi dito), pode ser que esteja ocorrendo aí uma convergência de representação. Se repararmos na cabeça de réptil em relevo de peça Pl. 43-b (prancha 2), verificamos que, numa visão do jacaré do alto, as arcadas supra orbitais se destacam, formando um elemento semelhante13. Pl. 93 (prancha 1), pela desproporção entre as patas dianteiras (muito pequenas) e as traseiras (enormes), faz pensar, na realidade, mais em alguma espécie de lagarto do que em jacaré. Além disso, também em Pl. 66-a (e algumas outras peças), poder-se-ia perguntar se a oleira não teria em mente a representação de um lagarto (iguana, sinimbu, papa-vento), animal que apresenta uma pele pregueada na base da cabeça (vide prancha 8), e uma cauda mais flexível do que a do jacaré. 11. O motivo das patas de 3 dedos (na realidade o animal tem 5 artelhos) pode ser reconhecido em Pl. 69-g, 82-c, 53-a. Em Pl. 33-d, há uma tendência a se representar também, ora só dois, ora 4, ora nenhum. Talvez o motivo ainda possa ser reconhecido (talvez...) em Pl. 33e, 33-b, 29-a/b/c. (Em 33—b e 29-c, associado ao motivo da “cruz no medalhão”). E ainda em Pl. 23-e, f, aparece motivo semelhante. Elementos parecidos a patas estilizadas são usados também para formar novas composições, como em Pl. 71-f. 12. ... e então é realmente fácil o “lermos” como patas estilizadas... 13. Veja-se explicação sobre a disposição desses ossos da cabeça nos crocodilíneos em Enciclopédia Universal Ilustrada Espasa – Tomo III – Apêndice, p. 965-966.

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Isto naturalmente não invalida o fato de, na grande maioria das peças, estarmos lidando, sem dúvida, realmente com a representação do jacaré. Se lembrarmos que, segundo Evans e Meggers (op. cit.), a cerâmica marajoara, tão logo os seus fabricantes se estabeleceram na ilha, entrou em processo de rápida decadência, poderemos compreender facilmente o mecanismo de substituição desse tipo. No auge do florescimento ceramista, distorções e desdobramentos ocorreram, mas sem que os elementos percam o seu valor, seu significado: o jacaré se duplica, se multiplica (como em Pl. 66-b, Prancha 7), mas não nos deixa nenhuma dúvida quanto à sua identidade. Mas, uma vez iniciada a decadência, aparecem representações menos esmeradas, distorções e substituições, mesmo que o simbolismo original continue vivo para a oleira. De qualquer forma, chegamos assim a um motivo que caracteriza, de forma surpreendente, a decoração de uma grande quantidade de peças reproduzidas por H. Palmatary: a cabeça triangular de réptil, apresentando uma espécie de antenas ou volutas, saindo dela ou da base dela14. Em Pl. 79-a, o losango indica o corpo do “jacaré de duas cabeças”, a cabeça parece antropomorfa e as caudas laterais terminam igualmente em patas de três dedos (outra figura híbrida, portanto). Variante do mesmo motivo ainda (o losango desaguando numa elipse, as “antenas” substituindo a própria cabeça, mas as caudas laterais na posição em que aparecem em Pl.42-c, motivo do qual parece ser uma variante), aparece em Pl. 20-d, e, mais estilizado ainda, provável mente em Pl. 24-b. Se esta interpretação estiver certa, então um dos elementos mais difundidos na decoração marajoara (para não dizer quase onipresente, de uma forma ou de outras, inteiro ou só limitado à cabeça, geralmente mais ou menos triangular, com suas “antenas”) é este jacaré estilizado. Veja-se, por exemplo, em Pl. 32-f, a cabeça triangular munida de “antenas”, também perfeitamente reconhecível em Pl. 41-f, 49-b (abaixo do motivo do jacaré em relevo, vide Prancha 1), Pl. 51-b, Pl. 61-b (a cabeça se tornando quadrangular, o que também acontece em Pl. 64 face b), Pl. 64-a, Pl. 69-e, Pl. 86-b (vide Prancha 2), Pl.87-b, 97-b e mesmo em Pl. 98-a/b/c e muitas outras peças, como Pl. 62-a e até em Pl. 62-b, onde se o reconhece ainda, na parte central. O motivo do jacaré estilizado aparece em quase todas as “tangas” apresentadas na obra, pode-se reconhecê-lo mais facilmente em Pl. 102-k15. A cabeça triangular se salienta bem também na tanga Pl. 103-f. representação mais “realística” do animal (cabeça bem triangular, patas dianteiras 14. Para quem tem à mão a obra de H. Palmatary, ver Pl. 32-f, 41-f, 51-d, 57-b, 62-a, 69-e, 81-a, 83-a, 86-b, 87-b, 97-b e muitas outras peças. 15. ... mas ele esta também presente em Pl. 102-i, Pl. 103-a/d/e, Pl. 104-b-d.

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saindo lateralmente à cabeça) é a de Pl. 44-a; note-se neste exemplar que uma das patas traseiras do animal16 está representada exatamente do mesmo modo que o que supomos serem as patas dianteiras, na maioria das outras estilizações. Compare-se com Pl. 72-c, onde ainda aparece o focinho estilizado, na figura triangular que aparece do lado esquerdo (não o motivo de “face humana” em que parece ter convergido o desenvolvimento lateral do jacaré). É justamente neste desenvolvimento lateral ou desdobramento da figura do jacaré, que é relativamente freqüente encontrarmos a estilização da face humana. Repare-se em Pl. 81-a, em que o motivo central (no sentido horizontal) mostra o tronco do animal representado de forma diferente, não convencional, com faixas transversais como realmente as apresentam muitos jacarés (vide o “Caiman Sclerops” da Prancha 8). A cabeça triangular termina no que poderíamos chamar de narinas estilizadas. Nesta peça, cada par de patas, saindo de cada lado de outra “cabecinha com antenas”, forma os lados das duas faces humanas opostas. Portanto, essas volutas delimitando faces humanas (motivo freqüente na cerâmica marajoara), mas terminando em patas estilizadas, e que H. Palmatary chama “opposed out-tourning Face Scrolls” (op. cit. p. 342), as quais aparecem também muito nitidamente em Pl. 47-g (vide Prancha 2), embora tenha semelhanças com as volutas da cerâmica de Coclé, Panamá (como nota Palmatary) não decorrem do mesmo elemento. Nota-se a mesma técnica (de desdobramento e estilização), mas seria necessário saber se os padrões de Coclé (vide Pl. 112-a) derivam igualmente de uma representação animal. A convergência ou superposição que ocorre na cerâmica marajoara, e que gostaríamos de ressaltar, isto é, a “hibridação” ( se é que assim se pode falar) “jacaré-homem”, já foi notada por Helen Palmatary, na descrição do exemplar Pl. 43-b, à p.306 da obra citada (vide desenho da Prancha 2). Só que o exemplo que ela escolheu não é dos melhores, pois, como já foi frisado, a posição inversa da cabeça parece indicar que não se trata, justamente, de uma face humana17. Em muitas peças, a cara do jacaré “se humaniza” pelo arredondamento, como em Pl. 64-b (Prancha 5) e Pl. 79-a (Prancha 4). Voltando ao exemplar 81-a (vide Prancha 6), os dois triângulos centrais (de que emergem os dois pares de patas, e divididos pelo corpo do jacaré), uma vez unidos, reconstroem o motivo “cross in medallion”, que constitui o ventre dos jacarés estilizadíssimos das tangas Pl.102-i, Pl. 102-k (vide Prancha 5), Pl. 103e/d e Pl. 104-b/d. Aliás, este motivo caracteriza freqüentemente a cara ou o ventre do jacaré, como em Pl. 43-a e outras peças18. Quando aparece isolado, como 16. ... a pata esquerda; a direita não esta representada, pois a cauda se retorce para a direita. 17. Exemplo melhor desse tipo, temos em Pl. 64-a (Prancha 5). 18. Pl. 4-f, 42-a, 45-a, 43-b.

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elemento de decoração geométrica19 está muitas vezes associado com elementos que poderiam ser descritos como patas estilizadas. Vide Pl. 33-b e outros20. Um tipo de desdobramento semelhante ao de Pl. 81-a, ocorre também em Pl. 57-b: um jacaré dividido em quatro, seguindo as quatro direções cardiais, e caracterizado longitudinalmente pelas duas cabeças triangulares e, verticalmente, por patas dianteiras “em foice”, saindo de um dorso terminado num elemento em que se poderá reconhecer a estilização do nariz do sáurio21. Este último elemento, o focinho estilizado do jacaré, parece-nos, também merece maior atenção. A representação que o sugere melhor, é ainda a de Pl. 42c (Prancha 3). Nela o focinho se afina, para na extremidade se abrir novamente, em forma de um pequeno funil, em que se destacam nitidamente as ventas. É portanto um elemento em forma de “m”, que ás vezes se aproxima bastante da representação da pata de 3 dedos, mas parece representado geralmente com maior delicadeza (vide Pl. 104-b e Pl. 103-e, por exemplo). É um elemento que se reconhece facilmente em Pl. 64-a/b (Prancha 5), Pl. 81-a (aqui o tratamento dado às patas é igualmente delicado) e outras peças. Note-se que em Pl. 65-d, as “perninhas” do “m” (o qual em Pl. 64-b, também gravado, é representado por linhas duplas), já se desdobram em 5 tracinhos eqüidistantes na parte interna, em Pl. 57-b são quatro em vez de três22 e em Pl. 43b se convertem no que Palmatary chama de “many fingered hand”, acima da cabeça (que ela destaca, como vimos, como antropomorfa, a cabeça invertida, em relevo). Na mesma peça, acima, outro jacaré estilizado. Acho que o elemento ainda pode ser reconhecido, super-estilizado, na decoração de Pl. 71-d (na parte interna da vasilha, vide Prancha 2), e também no emaranhado da decoração de Pl. 66-b23. 19. Pl. 35-a e Pl. 18-d. 20. ...e também em Pl. 18-d, 29-c. Em Pl 65-e, e em Pl. 43-b, o corpo do jacaré apresenta decoração punctiforme, exatamente como na representação do sexo nas figuras das urnas Pl. 30-a e Pl. 34-a. Em 53-c, o jacaré é representado com órgão sexual. 21. Algo semelhante ocorre em Pl. 56-d e 67-a. 22. ...e também Pl. 42-a e Pl. 41-a, acima do motivo “cross in medaillon”, e em 61-b, acima dos motivos laterais, quadrangulares. 23. Igualmente curiosa é a disposição dos motivos em Pl. 66-b. O conjunto é todo composto por delicadas figuras de jacarés, com uma ou duas cabeças, muito estilizadas. O conjunto maior, delineado por linhas mais grossas (que dividem os motivos menores em 3 partes) talvez também já tenha a intenção de sugerir o jacaré, pois há duas linhas mais grossas em forma de “U” bem aberto como a indicar as duas cabeças da figura. Numa figura elíptica (logo abaixo da divisão central) que representa o ventre do jacaré de duas cabeças, inserese, em vez de cruz convencional, uma representação delicadíssima e muito realística do jacaré. (Vide a parte central da ultima faixa representada em Pl. 66-b-Prancha 7). No espaço superior, desenvolvem-se transversalmente, no mesmo plano, dois jacarés, olhando em direções opostas: note-se que o centro do motivo é composto pelas caudas dos jacarés, a cauda superior ligada ao jacaré da esquerda, a inferior ao da direita. Mesmo em Pl. 33-a/ b, sugerem um pouco a estilização do focinho do jacaré.

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Ainda podemos reconhecer o motivo do duplo jacaré, ou melhor, de dois jacarés paralelos, em orientação oposta, ligados pelas caudas, que formam um só grande “S”, envolvendo e separando as 2 figuras, em Pl. 71-c e na decoração interna da já referida peça Pl. 71-d. A forma do “S” aparece também caracterizando o ventre do jacaré (em vez da “cruz no medalhão”), em Pl. 47-h e algumas outras peças, o que faz pensar novamente em vinculações com a cerâmica de Coclé (PANAMÁ, vide Pl.112-f, Prancha 6). O fato do focinho do jacaré ser representado também com um “m” de várias pernas, faz com que em Pl. 65-a (Prancha 3), ele possa “funcionar” como boca de uma face antropomorfa (abaixo da “cabeça do jacaré”, o “nariz” triangular, representado pelas quatros flechas que saem do centro em direção aos pontos cardiais). O mesmo efeito se conseguiu em Pl. 57-b (vide Prancha 6) e em Pl. 67-b. E aqui, parece-nos, poder-se-ia fazer outra observação: Na decoração da cerâmica marajoara são sempre esses elementos zoomorfos que convergem para a composição da face humana, como se esta “nascesse” da representação do jacaré. Em Pl. 38-h é a representação do triângulo (cabeça do jacaré) que ainda predomina sobre a intenção de representar a face humana (observe-se os dentes enormes...), e em Pl. 81-a (Prancha 6), a face, que lembra bem uma cabeça de jacaré, vista do alto, se insere entre as patas em voluta; em Pl. 52-b ainda se reconhece a cabeça sáuria, triangular, e em Pl. 72-c (Prancha 5), é a cabeça triangular que vai constituir a boca de uma face, de que os olhos já são um novo arranjo das patas que saem de uma representação do jacaré de duas cabeças, em sentido horizontal, no desenho. Algo semelhante acontece em Pl. 72-a. Em Pl. 93-a (Prancha 1) a boca de cantos caídos (e que dá um ar de tristeza à face humana) deve sua forma, na realidade, ao fato de representar ao mesmo tempo narinas do jacaré, representado abaixo. A esta altura, não nos parece sem propósito perguntar o porque dessa insistência na representação do jacaré, em primeiro lugar; o por que de sua associação à representação da face humana, em segundo. Embora sem nada se conhecer dos outros aspectos culturais dos produtores da cerâmica marajoara, reconhece-se que a maior parte das peças (justamente as mais elaboradas) deveria ter tido função funerária, e, se é justamente o jacaré o motivo principal dela (e não outros animais, que deveriam ter sido igualmente abundantes, não só na ilha, como na região de onde veio o povo marajoara24), é 24. ... pássaros, peixes deveriam ser igualmente abundantes e no entanto não estão representados. Mesmo a serpente não é representada com frequência. Uma única vasilha globular Pl. 46 (descrita por Palmatary à pg. 309), um exemplar de beleza incomum, apresenta, em decoração gravada, uma figura serpentiforme como motivo central. Assim mesmo, uma observação atenta revela que não se trata de uma serpente, mas sim de um animal com patas (Vide Prancha 7...). Nas urnas antropomorfas a representação da serpente tem sempre caráter secundário, como em Pl. 93 (Prancha1).

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porque ele representava algo muito importante nas crenças, no pensamento mítico em geral. A figura humana representada na urna corresponde sem dúvida, ao morto (haja vista a preocupação de se representar também o sexo), enterrado no “mound”, em meio aos pântanos, onde reina o jacaré. Seria normal supor uma associação do jacaré à ideia de morte, a grande transformação. E a crença numa vida além-túmulo, nos faz pensar que conscientemente ou inconscientemente, a oleira marajoara exprime, através da “recomposição” da face humana, a partir de elementos da figura do jacaré, o ciclo “vida-morte-transcendência”. 2. Conexões e Origem da Cerâmica Marajoara Segundo Meggers e Evans, a fase marajoara não deriva das outras fases ceramistas também encontradas em Marajó (fase Ananatuba, fase Mangueiras, fase Formiga, anteriores a ela... A fase Aruã, segundo esses autores, lhe é posterior, sem contudo dela derivar...). Assim, o povo que conduziu a fase marajoara (a que pertencem todos os exemplares descritos aqui), teria se estabelecido na região, trazendo consigo uma técnica ceramista já altamente desenvolvida, o que vale dizer, com os padrões formais básicos já estabelecidos. Isto nos deveria possibilitar a sua vinculação a outras áreas ceramistas. Ainda segundo Meggers e Evans, após o estabelecimento do povo invasor em Marajó, esta arte ceramista sofreu um processo de rápida decadência, como já foi dito atrás. Assim sendo (embora não se possa provavelmente, estabelecer uma seqüência cronológica das peças)25, teríamos que admitir que as peças tecnicamente mais perfeitas tendem a ser mais antigas, confeccionadas logo após o estabelecimento na ilha. Entre estas peças mais perfeitas, pelo menos na coleção apresentada por Palmatary, figura, entre outras de decoração incisa, como já vimos, o exemplar Pl. 42-c. O motivo, como já observamos atrás, parece ser o protótipo de muitas estilizações menos esmeradas. A freqüência com que aparece esta figura do jacaré nos faz pensar que a deveríamos encontrar presente na cerâmica do lugar de onde emigraram os autores da cerâmica marajoara. Das peças apresentadas por Helen Palmatary como exemplares de cerâmicas da costa norte da América do Sul, da parte continental e insular da América Central, de possíveis vinculações com a cerâmica marajoara, apenas em uma o elemento está presente: trata-se de uma urna procedente de Rio Aguarico, Equador26. Nele, uma cabeça triangular estilizada, semelhante às encontradas em Marajó, arremata uma figura que poderia ser a representação do corpo de um sáurio (vide Pl. 112-a). Na fotografia apresentada por Palmatary, dessa peça, 25. H. Palmatary reproduz, à p. 279, dois esquemas de Mordini, de tesos marajoaras, com a localização (num corte vertical) dos objetos neles encontrados... 26. O exemplar procede do Equador Oriental.

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devido a refração da luz, a parte esquerda não é visível, mas temos certeza, pela simetria do restante, que a cabeça triangular se repete do outro lado, formando o duplo-jacaré, tão típico da cerâmica marajoara. Também a semelhança de representação do corpo do animal com a de Pl. 93-b (Prancha 1) é notável. As patas da figura Pl. 112-a, do lado que corresponde à parte de baixo da urna, estão um pouco deslocadas, devido à solução diferente que se deu à representação da cauda, inserindo-a lateralmente à figura, mas apenas deste lado. A peça faz parte de um complexo ceramista cujos sítios se acham bastante dispersos dentro da província de Napo-Pastaza, ao longo do Rio Napo e de seus afluentes (Indillama, Yasuni, Tivacundo, da margem direita; e Aguarico, da margem esquerda). Além disso, Evans e Meggers27 assinalam um achado no Rio Güepi, afluente da margem esquerda do Potumaio (trecho superior do nosso Içá). Esses autores reconheceram três fases ceramistas na área: a fase Yasuni (a mais antiga, cerca de 50 A.C.), a fase Tivacundo (aproximadamente 500 D.C) e a fase Napo, mais recente ( de que faz parte o vaso de Giillin) e cujas correlações com a fase marajoara Evans e Meggers apontam no mesmo artigo, em que traçam também os principais prováveis roteiros das migrações pré-colombianas em direção à foz do Amazonas. É importante ressaltar que a datação com Carbono 14, conseguido para duas peças na fase Napo é relativamente recente, correspondendo à 2ª metade do século XII, início do século XIII. A fase Napo floresceu portanto (se esses dados estão corretos) há uns 2 séculos antes do descobrimento da América. A datação de uma terceira peça (1.480 D.C.) pareceu a Meggers e Evans recente demais28, possivelmente, levando em conta a distância temporal de 200 anos entre ela e as duas anteriores, ou então pelo fato de que apenas 60 anos após essa data (1.400 D.C.), as primeiras explorações espanholas do Napo encontraram este rio desprovido de população indígena, na área em que floresceu este estilo ceramista29; como ainda certamente, se é que compreendemos os autores, porque eles fazem derivar a fase Marajoara da fase Napo. Outra observação de Meggers e Evans é que a fase Napo chegou às terras baixas do Leste equatoriano numa condição já completamente desenvolvida30 e 27. EVANS, Clifford e B. Meggers – “ Archaeological Investigations on the Rio Napo, Eastern Ecuador”. 28. Ibidem, p.81. 29. WILLEY, Gordon R. – “ An Introduction to American Archeology”, p. 407: “The early Spanish explorers found no Indians along the Rio Napo in 1541 or, later, in 1641.” 30. EVANS/MEGGERS (op. cit. p. 93): “The seriated sequence of Napo Phase sites indicates that the ceramic complex was introduced into eastern lowland Ecuador in a fully developed condition”.

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dela derivou, possivelmente, ainda segundo Meggers e Evans, o complexo ceramista estudado por Donald Lathrap31 em Caimito (Peru Oriental) que, datado pelo Carbono 14, revelou ter florescido no século XIV D.C.32. O que nos parece importante (além do nome do local Caimito – jacarezinho) é que se trata ai também (como em Marajó) de um povo ceramista habitando bordas de lagos. Possivelmente o simbolismo do jacaré está correlacionado com essa agricultura de “mounds” (a mesma das chinampas dos lagos mexicanos) que, segundo Max Schmidt, precedeu a de coivara, formando um estrato primitivo em várias regiões da América, como por exemplo entre os Uru do lago Titicaca e entre os Guató do Rio Paraguai33. Uma agricultura que se apóia na pesca como atividade econômica complementar. Este tipo de agricultura parece ter sido substituído em muitas regiões da floresta amazônica por uma agricultura de coivara, com maior importância da caça, processo este acompanhado sem dúvida por mudanças ideológicas, implicando novas condições de relacionamento entre o mundo humano e o mundo sobrenatural, o que por sua vez deverá ter modificado os ritos funerários, provocando possivelmente uma decadência da cerâmica34 que exprimia algum mito antigo agora interpretado de forma diversa através de um ritual reformado35. 31. Não conseguimos consultar o artigo de Lathrap (“ Investigaciones en la selva peruana 19645” – Boletim del Museo Nacional de Antropologia y Arqueologia, ano 1- nº 4 – Lima –Peru). Uma breve comunicação de R. RAVINES (Ver. Rev. del Museo Nacional de Lima, Tomo XXXV-1967/68, p. 330) nos fala das investigações realizadas por Lathrap e esposa entre os Shipibo de Yarinacocha; e MUELLE, Jorge C. (“La arqueologia peruana después de Tello”, Rev. del Museo Nacional, Tomo XXXV-1972 – Lima), refere-se a duas outras publicações de Lathrap sobre seus trabalhos nesta área: a)-1958- “The Cultural Sequence at Yarina-cocha Eastern Peru” (in “American Antiquity”, vol. 23, n° 4 – Salt Lake City; b) 1962. “Yarinacocha: Stratigraphic Excavations in the Peruvian Montana”. 32. EVANS/MEGGERS, op. cit p. 106. 33. SCHMIDT, Max – “Anotaciones sobre las plantas de cultivo y los métodos de la agricultura de los indígenas sudamericanos”. Revista do Museu Paulista, N. S. vol. 5, 1951- p. 240-251. 34. Mesmo quando nem toda a produção ceramista se destina a uso funerário, ela pode estar (como parece ser o caso da marajoara) toda ela voltada para uma finalidade ritual. Como é sabido a produção de povos “primitivos” nunca ou quase nunca é exclusivamente utilitária. Claro que o abandono da área lacustre (onde a matéria prima para a cerâmica é abundante) deve figurar igualmente como um dos principais motivos de uma gradual decadência. 35. ALTENFELDER e MEGGERS (“Desenvolvimento cultural no Brasil”), compreendem este processo, dando maior ênfase a impossibilidade da manutenção de uma estratificação social que acreditam ter existido em culturas ceramistas complexas como a de Marajó (fase Marajoara): “No meio ambiente da floresta tropical, a produção agrícola intensiva necessária para suportar um sistema social altamente diferenciado não pode ser mantido.” “Como muitas pessoas tivessem que ser desviadas de atividades especializadas para as de produção de alimento, a cultura experimentou uma gradual simplificação que a transformou

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Voltando ao exemplar de Aguarico... Embora não restando duvida de que o tipo de especialização da figura do jacaré é o mesmo usado em Marajó, nota-se, após um exame cuidadoso que, na realidade, não se pode cotejar nenhuma peça marajoara (ao menos das apresentadas por H. Palmatary)36 com o vaso de Gillin. H. Palmatary já o havia notado e por isso não parece muito inclinada a aceitar as conexões já então apontadas por Gillin e outros arqueólogos: “Uma urna de área do Rio Aguarico do Equador oriental (Pl. 112-a) referida por Giillin sugeriu a ele e a outros uma possível conexão arqueológica com a ilha de Marajó. A reprodução fotográfica sugere técnica negativa, mas na realidade o vaso é pintado em técnica positiva. Giillin descreve a técnica decorativa como segue: A cor de superfície de fundo exterior é vermelho-escuro e o desenho foi aplicado com pintura branca. Sobre o conjunto foi aplicado um engobe de resina (gum glaze)” 37. De fato em Marajó as linhas essenciais da figura sempre se destacam em cor mais escura, limitando-se a cor clara (branco ou creme) a acompanhar ou envolver as linhas representativas da figura estilizada, mesmo que essas linhas se reduzam (como em Pl. 96-b ou Pl. 97-b), a duas finas paralelas centrais em faixa creme, técnica essa designada como de “negative effect” por Palmatary38. Parece-nos, pois, que Helen Palmatary tem em parte razão em suas observações: mesmo que o efeito conseguido seja similar ao do “pseudo-negativo” e que evoque, entre as peças marajoara decoradas nesta técnica, particularmente a urna Pl. 89-a (descrição à p. 321 da obra de Palmatory), a fase Napo representa o florescimento de um estilo local que não encontra similar em qualquer uma das técnicas de pintura usadas em Marajó, ao lado das quais se encontram ainda técnicas de encravado como o “champ-levé” e estilizações pintadas na arte filigranada das “tangas”. em algo semelhante ao modelo da “floresta tropical” (p.15). Contudo. não se pode ter evidentemente nenhuma certeza da existência desse “sistema social altamente diferenciado”, apoiada apenas no florescimento da arte ceramista. Uma cultura cujo interesse estivesse particularmente centralizado nos ritos funerários (e nós temos o exemplo atual de uma centralização semelhante na cultura dos Bororos), poderia se preocupar em dar uma inhumação especial a muitos de seus mortos, não porque estes constituíssem propriamente uma nobreza, mas sim, talvez, porque sepultasse seus chefes locais (com status de “primus inter pares”), como ocorre entre os nossos indígenas atuais e de seus familiares, como se fossem vitimas sacrificadas, tal qual nos pareceu ocorrer ainda hoje no Alto Xingu, conforme se exporá adiante. 36. A amostragem de Palmatary é muito satisfatória com a apresentação de fotografias de mais de 250 peças inteiras ou reconstituídas, entre urnas, vasos e alguidares, de vários formatos e tamanhos, com decoração incisa ou pintada, ou com concomitantemente incisa e pintada, sem falar numa vintena de “tangas”, e cacos com decoração conservada. 37. PALMATARY, op. cit., p. 342 (tradução nossa). 38. Descrição de Pl. 96-b e Pl. 97-b, respectivamente a p. 320 e 321 da obra citada.

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A própria grande variedade de técnicas usadas em Marajó faz supor que a arte ceramista ai se estendeu por um espaço de tempo razoável e não por umas poucas gerações. Ora, os seus fabricantes, como mostraram Meggers e Evans em sua obra clássica sobre Marajó39, já haviam sido deslocados por imigrantes vindos do Norte, responsáveis pela fase Aruã, a mais recente das fases em Marajó40. Levando em conta, portanto, as datas apresentadas para a fase Napo, esta ultima, quando muito deverá ter sido uma cultura ceramista de florescimento cronologicamente paralelo à fase marajoara. Se não fosse a grande distância que separa Marajó da província de NapoPastaza e o fato da tradição ceramista ter tido no Oeste, além da origem, uma continuidade muito maior do que em terras brasileiras, poder-se-ia mesmo pensar numa derivação inversa, isto é, que a cerâmica do Napo tivesse sido desenvolvida por grupos deslocados de Marajó e que teriam subido os mesmos rios pelos quais seus ancestrais um dia atingiram a foz do Amazonas. Essa hipótese (pouco provável, de resto) nos ocorreu, devido à grande desenvoltura e complexidade que a estilização do jacaré adquire na fase Napo, mostrando um domínio da arte do desdobramento que somente costuma se manifestar após um verdadeiro “amadurecimento” de estilo41, e Marajó, um centro ceramista notável, poderia ter permitido, certamente, este “amadurecimento”. No vaso de Gillin (como aliás em outros exemplares apresentados por EvansMeggers da fase Napo)42, o domínio do desdobramento é tão grande que se torna difícil reconstituir a figura original do jacaré (tal como acontece com as figuras de animais na arte do Noroeste Americano). Tanto que H. Palmatary interpretou o emaranhado central como a representação de uma face humana, 39. “Archaelogical Investigations at the Mouth of the Amazon”. Bur. American Ethnology, Bull. 167, 1957. Veja-se, também, de Betty MEGGERS, “Filiações das Culturas Arqueológicas na Ilha de Marajó”, XXXI Congresso Int. Americanistas, Ag. 1954, vol. II (Anhembi – 1955 – p.813). 40. Vide também EVANS, Clifford: “Filiação das Culturas Arqueológicas no Território do Amapá”, Brasil (XXXI Congresso Int. Americ. 23/28 Ag. 1954 – vol. II Anhembi, 1955). 41. “Existe siempre una dura rigidez o ineptitud en el comienzo; una fase arcaica con una forma que se desarrolla netamente, pero todavia rígida; luego la liberación del arcaísmo, seguida por una rápida culminácion del estilo com logro de las potencialidades para la plasticidad inherentes en él; más tarde puede venir una exageración, buscando el afecto, un superexpresionismo, o también un ultrarealismo, un rococó extremista o una superornamentación. Todo ello si es que, en realidad, no há precedido a estas últimas fases una atrofia producida por la repetición de la forma – una verdadera muerte de la sensibilidad dentro del stilo.” (A.L. KROEBER, “El estilo y la evolución de la Cultura”, p. 42). 42. Vide op. cit. (“Archaeological Invest. on the Rio Napo…”, p. 70/71 – “Rocafuerte Painted”.

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salientando a configuração “má”, do “nariz”, “boca” e mesmo das “áreas dos olhos”43. Uma desenvoltura e uma complexidade semelhante à da fase de Napo foi conseguida também em Marajó, num outro sub-estilo (se é que se pode denominálo assim), o da delicada decoração das tangas. A impressão que se tem, pois, é que a fase Napo e a fase Marajoara tiveram um centro comum de origem, que ainda está por ser descoberto e que deverá ser procurado certamente dentro de uma área bastante vasta, incluindo o norte do Chile, Peru, Equador e Colombia meridional, num estrato antigo (ligado ao proto arawak, ao que parece), da cultura agrícola de “mounds” que se desenvolveu às margens de lagos, com base na pesca. O símbolo do jacaré alimentou principalmente 2 estilos ceramistas diversos, um que levou às culturas da fase Marajoara e da fase Napo outro, em que o motivo do jacaré (o “crested dragon motiv” de S. K. LOTHROP)44 , já presente em Chavin e Mochica primitivo, se torna dominante na decoração: o da cerâmica “Alligator” da província de Chiriquí (Panamá) e parte meridional de Costa Rica45. Tudo parece indicar que outro tipo de civilização, de economia baseada na agricultura de floresta (coivara), passa a dar ênfase maior ao simbolismo do jaguar46, centralizando nele religião e mitologia; a figura do jaguar ocupa uma posição central na cultura Olmeca e, na mitologia dos povos indígenas atuais do Brasil, ele tem uma importância bem maior que a figura do jacaré.

43. H. PALMATARY, op. cit., p.342: “The face on the Aguarico jar has only an irregular and ill-defined nose and mouth; and even the eye areas are not exact duplicates.” 44. LOTHROP, Samuel, K. – “Peruvian Stylistic Impact on Lower Central America”, p. 260, fig. 1 – Early Mochica-Crested dragon motiv. O motive aparece em pedra em San Agustin (Colômbia) e em ouro em Coclé (Panamá), conforme fig. 2, p. 261. Compreende-se assim as semelhanças já apontadas atrás entre alguns elementos de Marajó e de Coclé; embora linhas de evolução independentes, os dois estilos se originaram da representação do mesmo animal. daí o paralelismo de algumas soluções adotadas na estilização. 45. LOTHROP (op. cit., p. 259-261), refere-se às obras de Holmes e Mac Curdy, que estudaram a evolução que levou ao desenvolvimento de formas geométricas, obras essas que não pudemos consultar. Delas, contudo, BOAS faz uma apreciação em dois artigos publicados em “Race, Language and Culture” (“Representativ Art of Primitive People” e “Review of Mac Curdy, Study of Chiriquian Antiquities”). Baseado nelas, o jacaré estilizado já aparece, diz-nos Lothrop, no Delta de Diquis e na Peninsula de Nicoya por voltas de começo da era cristã e a cerâmica “Alligator” ainda estava florescendo na época do descobrimento da América. 46. Numa série de mitos, tanto de procedência Jê, como Tupi e Karib, a onça aparece como dona do fogo e é personagem central nos mitos dos gêmeos (geralmente identificados com Sol e Lua). Muitos do mitos foram analisados por LÉVI-STRAUSS nos “Mythologiques”, particularmente em “Le Cru et le Cuit”.

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3. O Jacaré na Mitologia Entre os índios brasileiros, o jacaré é principalmente um símbolo da lascívia masculina. Na mitologia, compartilha com a anta (que freqüentemente simboliza a gula e a força bruta), o papel de sedutor47. Assim, num mito Kobéwa (Alto Rio Negro), é o jacaré que força a mulher de Kuwái (herói cultural) a ter relações sexuais com ele48. Em outro mito Desâna (de língua Tukano, também), um rapaz é transformado em jacaré, por ter sonhado com relações sexuais e não ter cumprido as restrições49. Na descrição que Goldman50 faz das cerimônias do Oyne, conjunto de longos e complexos ritos funerários dos Kobéwa (catalisador de uma série de representações e festas, como o é o Kwarúp do Alto Xingu), este autor nota a distinção simbólica que o Kobéwa faz entre o jacaré e o jaguar. Numa representação cômica, os homens “cozinham” um jacaré feito de tecido de entrecasca, demonstrando as maiores aptidões, para gáudio das mulheres. Oferecem em seguida a “comida” a estas últimas, que jogam o pedaço no Abúhuwa (personagem grotesco). Numa cena posterior, um jaguar é igualmente cozido e oferecido às mulheres: estas não o jogam de volta. Nos mitos Guarani, o jacaré também não tem grande importância. Em um dos contos recolhidos por J. e A. Taylor51, este se comporta como um menino mal educado, que derrama a chicha da rã, que não quer tomar banho, e que por isso é castigada pelos pais. Outra função que os mitos sul-americanos atribuem freqüentemente ao jacaré é a de Caronte (“le passeur susceptible” de LÉVI-STRAUSS52). O jacaré que serve de canoa ao herói ou a heroína dos mitos desse tipo, é geralmente representado como poderoso e vaidoso, e a atitude do passageiro em relação a ele, geralmente, de astúcia, de disfarce da hostilidade, enquanto ele depende do desagradável e fedorento “Uäti-pung-pung”. Parece bem a imagem de um simbolismo que vai deixando a área do sagrado para se tornar tão só folclore. Parece-nos importante uma lenda publicada por Câmara Cascudo53, registrada por Stradelli e que atribui ao jacaré a origem dos terremotos, sendo este por isso 47. Com o mesmo simbolismo, o jacaré aparece na mitologia australiana e em muitos mitos da África. 48. GOLDMAN, Irving – “The Cubeo”, p. 182. 49. REICHEL-DOLMATOFF, G. –” Desana…”, mito 11, p. 203. 50. op. cit. p. 237/8. 51. TAYLOR, J. e A. –(“Nove Contos Contados pelos Kaiwás e Guaranis”, p. 98). 52. LÉVI-STRAUSS, C. –(“L ‘Origine des Manières de table”, p. 359 e seg.). 53. CÂMARA CASCULO, L.- (“Geografia dos Mitos Brasileiros”, p. 364).

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chamado de “Jacaré Tyrytyry manha” (jacaré mãe do terremoto). Como é no ocidente da América do Sul (Andes) que os terremotos são mais freqüentes (e de resto bem raros no Brasil), esta lenda parece confirmar a origem ocidental do simbolismo do jacaré. Claro que é difícil saber se descendentes dos autores da fase Marajoara, imigrados de Marajó antes da invasão Aruã, teriam deixado alguma influencia, se não na cerâmica, ao menos nas representações míticas, preservando algo do antigo culto ao jacaré que, como dissemos, parece ter dominado intensamente a vida dos povos da ilha. Uma das regiões apontadas por Evans e Meggers54, que apresenta alguns elementos culturais que fazem supor certa correlação com Marajó é o Alto Xingu, de economia baseada predominantemente na pesca. Métraux se refere à analogia que se tem notado entre as tangas marajoaras e os “uluri”55: tanga, es decir, cubre-sexo. Se los há comparado a los pedazos de corteza triangulares que usan todavia las indígenas del Alto Xingu. Uma estatuilla recentemente descubierta, sobre la cual se há creído distinguir la indicación de uno de estos “indumentos” pareceria confirmar la hipótesis de los arqueólogos encuanto al destino de esos objetos.56

No ritual da pesca, descrito recentemente por Pedro Agostinho, o jacaré aparece como “dono dos peixes” e estes como “piolhos do jacaré”. O autor diz ter tido a impressão de uma relação de reciprocidade ou de compensação no rito, pois, com o pedido de boa pescaria, se oferece alimento aos peixes.57 54. EVANS-MEGGERS – (“Archaeological Investigations on the Rio Napo...”). 55. Já KARL VON DEN STEINEN (“ Entre os aborígenes do Brasil Central”, p. 238), nota o esmero com que se fabrica: “Os uluris são feitos com muito capricho, tendo, quando novos, aspecto realmente bonito: toda a sua construção é tão bem meditada, e todo o trabalho – principalmente a fixação dos cordéis inguinais e da lista perineal, que são costurados no triângulo tão bem feitos, que não se pode classificá-los como produto primitivo.” 56. MÉTRAUX, Alfred –”Las Antiguas Civilizaciones del Amazonas. Estado atual del problema de su origen.” (Diógenes, vol. 28, p. 111). 57. AGOSTINHO, Pedro – “Kwarip – Mito e Ritual no Alto Xingu”, p. 70/71: “Pedindo o ‘piolho’, que é o peixe de que precisam os homens, deitam à água o alimento, e estaríamos tentados a ver nisto uma prestação, provocadora da contra prestação do “mama’e(n)” representado por seu “piolho” o que estabeleceria entre os homens e o ser tutelar uma relação de reciprocidade semelhante à existente entre os grupos humanos envolvidos no cerimonial. Enquanto os “ye’e(n)” – ngyaret são intermediários entre os “yayat” e os demais homens, os “paye” o são também, mas entre eles e os seres extraordinários. Não é, entretanto, a explicação totalmente satisfatória, porque, se o pedido é feito ao Yakare, a comida é oferecida aos peixes, segundo a explicação explícita e direta de nossos índios. Neste caso seria uma compensação pela perda que lhes vão inflingir”. explicação é inteiramente satisfatória; em primeiro lugar porque o jacaré também pode se alimentar de peixes; e em segundo lugar porque ele é concebido como senhor do mundo exterior, “chefe dos peixes” justamente porque é uma criatura das águas que pode exercer as funções de “vingador” das ofensas do mundo humano.

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Reproduz ainda Pedro Agostinho um mito sobre a origem do “Pequi” (p.186 a 189): É a história de Katipo, mulher casada, e de outra esposa do mesmo marido, que se apaixonam pelo jacaré, levando-lhe beiju e cauím58; e de como o marido traído mata o jacaré, queimado depois pelas amantes, e dele é que teria nascido a árvore do pequi, com todas as características de “Árvore Cósmica” ou “Árvore da Vida”, como nota P. Agostinho59. O autor assinala a analogia do ritual no Kwarúp com o mito acima. A castanha de pequi distribuída durante o Kwarúp, por uma moça púbere, é tirada dos frutos colocados sobre o “apenap” (sepultura de morerekwat ou principal da aldeia) “cuja cerca se há de queimar e oferecer aos visitantes” (p. 105). Cremos que poderia se completar as observações de Pedro Agostinho, chamando a atenção para o fato de que o simbolismo sexual da castanha do pequi tem aí a função de identificar a moça e a castanha, possibilitando a substituição da primeira pela segunda como dom ofertado aos visitantes (pois evidentemente a moça púbere é guardada para um casamento dentro da tribo)60. Sendo assim poderíamos dizer que o visitante, que vem como amigo, mas contra o qual uma hostilidade latente continua existindo61 (embora agora canalizada para as lutas rituais, os jogos intertribais, ponto alto do Kwarúp), é em parte idealizado como “jacaré mítico domesticado” que se contentará em receber, em lugar das mulheres, os frutos vermelhos do pequi62. Mais importante ainda é, contudo, a analogia que se estabelece entre o Jacaré mítico e o morto morerekwat homenageado no Kwarúp. Pela queima da grade da sepultura e pela disposição, nesta mesma sepultura, do pequi a ser distribuído, 58. O cauím (“Kawi(n)”) do Alto Xingu não é bebida embriagante. Trata-se de um mingau feito de beijus desmanchados na água (P. AGOSTINHO, op. cit., nota da p. 97). 59. Pois o mito mostra o pequi nascendo inicialmente “ de 4 cores diferentes, conforme a direção dos ramos (norte, azul; sul, verde; leste, branco; oeste, vermelho), op. cit. p. 188. 60. Os casamentos intertribais, outrora mais frequentes, diminuíram nos últimos tempos, no Alto Xingu. 61. SARTRE o define muito bem: “quand les membres d’un groupe tribal rencontrent, au cours d’un deplacement, une tribu étrangère, ils découvrent soudain I’homme comme une espèce étrangère, une bête carnassière et féroce qui sait dresser des embüchers et forger des outils. Ce dévoilement terrifié de l’alterité implique nécessairement la reconnaissance: la práxis humaine vient à eux comme une force ennemie. Mais cette reconnaissance est écrasée par le caractere d’étrangeté qu’elle produit et suporte ele-même. Le don comme sacrifice propiciatoire, s’adresse à la fois à un Dieu dont on apaise le courroux et à une bête qu’on calme en la nourissant.” (“Critique de la Raison Dialectique”, p. 187-188). Este simbolismo persiste mesmo frente a tribos ou grupos com que se estabeleceu relações de exogamia. 62. ...cujo cheiro, diz o mito, é o mesmo que tinha outrora os órgãos genitais femininos, até que Murenayat resolveu transferí-lo para o fruto (op. cit. p. 189).

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não resta duvida de que a morte desses mais ilustres personagens da comunidade é dramatizada como se fora o sacrifício do Jacaré. O morto transforma-se em bode expiatório, em vitima imolada. Em troca do sacrifício de sua vida, o mundo humano adquiriu o pequi. “Pequi, é feito de jacaré”, diz o mito. E o jacaré no caso, é morerekwat morto, ao mesmo tempo vida humana doada ao mundo animal e monstro cósmico ou senhor do mundo exterior (dono dos peixes), consumidor de mulheres, como vingador da natureza contra os abusos do mundo humano, que ele personifica63. Cremos ser este também o mistério do “duplo-jacaré” da cerâmica marajoara. Senhor do lago, dono da pesca, que leva vítimas humanas para compensar as vidas animais destruídas pelo homem, é, ao mesmo tempo, divindade-dema de cujo sacrifício nascem plantas cultivadas e que, através do culto que se lhe dedica, protege a mulher tribal contra si mesmo (as tangas marajoaras decoradas com a estilização do jacaré, bem podem ter tido um simbolismo análogo ao do uluri: tabu ao contato das mãos masculinas, ele protege a mulher contra o sedutor, além da proteção efetiva contra a micro-fauna das águas, que já foi muito bem descrita por Von den Steinen64. Naturalmente, apesar dessas analogias, não se pode dizer que elas provem que uma parte da população do Alto Xingu descenda dos autores da cerâmica marajoara. Reunindo representantes dos 4 principais grupos linguísticos (Tupi, Arawak, Jê e Karibe), além dos Trumai (de dialeto isolado), a cultura altoxinguana (hoje bastante homogênea) apresenta contribuições das mais variadas procedências. É, contudo significativo, que várias máscaras de jacaré reproduzidas por Von den Steinen e de cuja significação ele só conseguiu saber que eram empregadas numa “dança do jacaré”, sejam todas procedentes de uma tribo Arawak, os Mehinaku65.

63. A respeito do “sparagmós” grego, Kerényi observa: “Aqui nos sale al encuentro la misma contradicción – puede llamársela “trágica” en el sentido actual deducido de la tragédia, y la vez señalarla como 1ª representante de esa contradicción que en el caso de Penteo y de Orfeo en la escena; se sacrifica en el mismo ser un enemigo y una representación corporal del diós, el cual es venerado mediante la figura de su própio padecimento. El macho cabrío daba su sangre a la vid...” (“Nascimento y Renacimento de la tragédia”, p.43). 64. Von den STEINEN, op. cit. p 240. 65. Ibidem, p. 398-399, descrição, p. 394-395.

IMAGENS Prancha 1

Pl. 6-d (alt. 16 cm) Pg. 364 a

b Plate 27 - Pg. 385

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b

Plate 49 (alt. 59 cm) Pg. 407 (A decoração da superfície da urna fou reproduzida só em parte, no trecho inferior da face “b”)

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Plate 93 (alt. 31, 4 cm) Pg. 451

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Prancha 2

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Prancha 3

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Prancha 8

As figuras 1, 3 e 4 foram retiradas da enciclopédia britânica A figura 2 foi retirada de M.C. Cauloy, Zoologia.

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As figuras 1, 3 e 4 foram retiradas da enciclopédia britânica

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O Duplo Jacaré – Trinta Anos Depois

Há mais de trinta anos, a partir da análise do texto tão ricamente ilustrado de Helen Palmatary, tive a impressão de que a cerâmica marajoara era autóctone, isto é havia surgido e se desenvolvido na ilha de Marajó. Pareceu-me mesmo que se poderia perceber um desenvolvimento de formas mais simples em direção à forma das urnas. Eu havia trabalhado muito pouco com arqueologia (somente três anos em que trabalhei como assistente extra-numerária no Departamento de Etnografia e Tupi-Guarani da USP, sob orientação dos Professores. Plinio Ayrosa e Carlos Drumond, já falecidos, mas aos quais quero agradecer aqui essa oportunidade e o quanto deles aprendi. Não pude ignorar na época as opiniões de arqueólogos renomados como Evans e Meggers, que acreditavam numa migração dos povos autores da cerâmica marajoara, de uma região próxima aos Andes, levando seu conhecimento na arte ceramista já completamente desenvolvida para Marajó, de acordo com uma hipótese de que somente na região andina poderia ter surgido uma cerâmica tão elaborada. Chegando a Marajó, limitações ambientais teriam provocado a decadência dessa sociedade(MEGGERS, 1954). Fiquei então em dúvida quanto a minha impressão, e passei a procurar, entre as peças de outras regiões, retratadas por Palmatary, as que poderiam corresponder à cerâmica marajoara. Encontrei apenas uma urna – a de número 112-a – procedente do rio Aguarico. Achei que ela apresentasse a decoração típica do duplo jacaré, imaginando que do outro lado do vaso o desenho se duplicaria. Não faz muito tempo, contudo, vi uma fotografia do exemplar 112-a, em que o desenho aparecia por inteiro: não se trata de um duplo jacaré, pois a parte de trás dele acaba em linhas irregulares não-representativas. Já Robert Carneiro (1985) contestou a hipótese de Meggers, de que as condições de Marajó haviam impedido uma sociedade estratificada, com elite política, especialistas e operários, como era a marajoara, continuar a se manter assim. E, recentemente, Ana Roosevelt descobriu cerâmica arqueológica perto de Santarém, datada em 8.000 A.P. Com isso, temos uma revisão da questão das origens: a cerâmica marajoara parece ter sido endógena: “Contrary to previous understanding, Marajoara pottery has previous phases of the Island, and becomes most elaborate toward the end of the Phase, not the beginning”(ROOSEVELT,1988:11).

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Silvia Maria Schmuziger de Carvalho “… the Phase, which flourished for almost 1.000 years, is one of the earliest and most substantial of the Amazonian chiefdoms, and its style has a local origin in the Barrancoid styles of the Lower Amazon, not in styles of the Andes” (IDEM: 12, seg. Lathrap, Hilbert, Lathrap e Brochado).

Faz algum tempo, li numa revista, mas já não me lembro qual, que em Miracanguera foi encontrada uma urna que se identificou depois, por engano, como sendo marajoara. Pela reprodução do exemplar, ele é realmente idêntico a outras urnas marajoaras. É possível que isso indique, (assim como o exemplar 112-a, do rio Aguarico) que parte do povo marajoara, no fim da fase, talvez há um século A.C, tenha subido o rio Amazonas, se fixando em Miracanguera (sítio que hoje desapareceu, inteiramente erodido pelo rio), e parte no rio Aguarico, pois a decoração estilizada do jacaré é, também nesta peça, indiscutivelmente marajoara. Há ainda muito o que se pesquisar na arqueologia amazônica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARNEIRO, Robert. Cultivo de coivara entre os Kuikuro e suas implicações para o desenvolvimento cultural na Bacia Amazônica. In.: Terra Indígena, Bol. Nº 32, janeiro 1985. MEGGERS, B.J. Environmental limitations on the development of culture. American Anhropologist, 1954: 801-824. ROOSEVELT, Anna. Archaeological Research on Marajó Island, Brazil, in: Revista do Museu Paulista, 1988 N.S., Vol. XXXIII: 7-40.

9. Cerâmica Arqueológica Tapajônica e Simbolismo Homenagem póstuma ao Prof. PIERRE LÉVÊQUE e a ELENA ANDREOLLI RALLE, pessoas generosas e amigos inesquecíveis.

A) Nas asas do urubu-rei Devo a Thekla Hartmann ter tido oportunidade de ler a obra de Kapfhammer (1997), um estudo exaustivo das várias formas de consumo ritual de alucinógenos na América do Sul, com a reprodução dos utensílios de absorção, investigando os relatos de cronistas e antropólogos, os mitos indígenas correspondentes e os muitos efeitos das diversas drogas1. Embora, como o título da obra já aponta, “Cobra Grande” e “Onça voadora” sejam as entidades míticas mais importantes nos rituais, vou me concentrar aqui em outra figura mítica também associada a êxtases xamânicos: o urubu, mais especificamente o urubu-rei. Kapfhammer (1997: p.67) identifica o consumo de alucinógeno como bebida pelos xamãs do grupo Pemon-Kapon das Guianas. Trata-se do suco de cascas de árvores, entre elas o ayug (Virola sp.)2. O autor menciona a opinião de KochGrünberg, para o qual o mese-yeg seria o paricá (Anadenanthera sp.), mas acrescenta que – como é a casca da árvore mese-yeg que é usada –, certamente também aqui se trata de Virola sp. No ritual de iniciação dos xamãs Taurepan, o candidato bebe esse suco durante algumas noites para provocar vômitos contínuos. A alma da planta ayug seria um poderoso espírito auxiliar do xamã. Kapfhammer cita Butt Colson que refere o consumo pelos xamãs Akawoio de kasamarava e de taiugu (Virola sp) dissolvidos na água, com o efeito de atrair os espíritos auxiliares e de propiciar caça, sendo que principalmente o taiugu facilitaria a entrada do espírito auxiliar no corpo do xamã, abrindo caminho para o além. Segundo Koch-Grünberg (citado por Kapfhammer), os noviços de xamã Ye’kuana (também Karib) bebem simultaneamente Virola e Banisteriopsis. Além 1. Virola sp., Anandenanthera sp., antes chamada Pitadenia, Banisteriopsis (de que se confecciona vários produtos: rapé, ayuhuasca, yagé ou caapi). Como o autor demonstra, a absorção ritual de alucinógenos era muito difundida, tanto em culturas arqueológicas (Nazca, Tiawanako, Chavin de Huántar) como em populações indígenas contemporâneas. 2. KAPFHAMMER dá a tradução dos termos: Pemom “ayu” (adj.= claro; subst.= grande auxiliar do xamã; “ayuyek”(subst.= tipo de árvore cuja casca é usada pelo xamã); “ayuka”(verbo trans. = esclarecer); “ayukanipui” (ficar claro); “ayuka-pui”(= ficar dia, amanhecer).

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de suco de tabaco, os candidatos a xamã da Guiana Holandesa bebem o sumo venenoso da árvore “takini”, que os Aruak chamam “hiali” ou “hiari” (ANDRESBONN, p.342, nota 5). Um dos estrados do além, nos mitos karib da região de Roraima, é o céu dos urubus. E são os mitos do tipo “Viagem ao céu”, nos quais um sogro urubu-rei coloca à prova um jovem genro humano, que parecem constituir uma espécie de modelo para a viagem xamânica. Já há algum tempo atrás eu havia tratado desse tema mítico que caracteriza uma faixa desde Roraima até o Amapá (CARVALHO, 1979: 219 e segs.), observando que ele ocorre em sociedades matrilocais (ainda que com matrilocalidade temporária, por vezes), como eram as sociedades karib dessa área. Ao menos neste caso, a realidade sociológica se espelha claramente no mito. Curioso é que o sogro urubu-rei é bicéfalo, e uma das provas a que ele obriga o genro é a da confecção de um banco representando essa cabeça (que é dupla e que o sogro naturalmente mantém oculta). Wirth recolheu duas versões desse mito, entre os Wapitxâna, uma no Amapá, outra em Malacacheta. Koch-Grünberg publicou a versão taurepan, e que ela existe entre os Arekuná ficou claro pela descrição feita pelo informante dessa tribo a Koch-Grünberg das “viagens ao céu do xamã”, nas curas noturnas, que seriam em tudo a repetição do mito. O começo do mito se parece com a lenda do “Lago dos Cisnes” que Tchaikovsky musicou. Um caçador solitário, cuja aldeia havia sido aniquilada, vê um bando de urubus baixando para a beira de um lago, onde as aves “tiram a sua roupa de urubu” e se transformam em belas moças que vão se banhar. Ele se apaixona por uma delas e esconde a pele de urubu, impedindo que ela voe com as colegas de volta ao céu. Casam-se e vivem felizes, até que ela sente saudades dos seus. Ensinao a voar e leva-o para conhecer a sua família. Previne-o, contudo, que não deve comer (somente fingir que come) o que os urubus lhe oferecem (comida podre). Sabemos por outros muitos mitos que comungar com seres não humanos transforma o humano em um ser igual aos anfitriões, e sem volta. Um mesmo mito da viagem ao céu encontramos entre os Aparal (RAUSCHERT,1967). O tema da união entre um homem e uma mulher-ave é encontrado em outras partes do mundo. Existe, por exemplo, entre os Buriatos da Sibéria, o mito de uma mulher cisne, ancestral de todos os xamãs. Numa localidade buriata do leste chamada Chorin, vivia um homem chamado Tangkalshing. Um dia, cinco cisnes desceram perto de um lago nas proximidades, e Tangkalshing percebeu que os cisnes eram na realidade moças que se foram banhar, tirando suas roupinhas de penas. Ele então esconde a vestimenta de uma delas que, não podendo mais voar, acaba se tornando sua mulher, e eles têm uma prole numerosa: cinco filhos e cinco filhas. Dizendo que agora o marido não precisava mais se preocupar pois,

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depois de tantos anos juntos, ela não o abandonaria, ela lhe pede que lhe dê a roupa que ele escondera, e ele assim o faz. Mas, ela realmente recoloca as suas roupas de penas, transformando-se novamente em cisne, e desaparece para sempre, não sem dizer, como um adeus: Minhas crianças, minhas filhas, tornem-se xamãs; meus filhos, tornem-se xamãs!” E elas e eles se tornaram xamãs, podiam tornar-se invisíveis, podiam se auto-mutilar e xamanizar e podiam voar. E foi a partir dai que surgiu o xamanismo. (FINDEISEN & GEHRTS: 170,172)

Passemos agora à arqueologia, mais especificamente aos vasos de cariátides dos Tapajó, decorados abundantemente com apêndices em forma de urubus. A área mais próxima de Santarém que apresenta cerâmica arqueológica centrada na figura do urubu é o Amapá. Segundo Clifford/ Evans, a cultura ceramista mais antiga desse território (hoje estado) é a fase “aruã” (para a qual ele indica uma filiação setentrional), com suas figurinhas toscas de argila e “as contas e os pendentes de pedra verde polida, especialmente os que se assemelham à cabeça de um urubu” (EVANS:p.803). No caso de Santarém, o belo e excelente livro de Denise M. Cavalcante Gomes (que devo a Paulina Sannomiya) reproduz 17 deles (p.170 a 186). Os apêndices zoomorfos colocados ao redor das flanges são todos representações do uruburei, com exceção da fig. 7 (p.176), que apresenta quatro apêndices na forma de morcegos com asas abertas. Os urubus-reis com asas abertas têm o bico voltado para o exterior, como que voando para longe do espaço representado pelo vaso. Os bicos dos de asas fechadas apontam para a borda, para dentro desse espaço. As asas abertas são sempre decoradas com incisões de retas perpendiculares, enquanto as asas fechadas apresentam também decoração em curvas, o que certamente tem um significado (vide fig. 1) Frederico Barata (1952) procura identificar, nos incisos geométricos dos vasos, uma estilização de animais diversos (como, por exemplo, as linhas sinuosas representariam cobras). Sem querer negar que certas estilizações parecem evidentes, como as de sapos, acredito que a decoração das asas abertas dos urubus, diferente da das asas fechadas, deve ter outra explicação. Entre os Akawaio, Karib da Guiana Inglesa, Audrey Butt (1962, p.27) nos fala de “Kalawali”, que “est l’ esprit des échelles et, comme tel, il est conçu comme le lien spirituel entre le ciel et la terre, qui permet aux autres esprits de monter et de descendre”. Não sabemos a que pássaro corresponde a figura de “Kalawali” (talvez urubu?). Butt relata que é outro pássaro, o “Kumalak”, que é o principal aliado do xamã, e o ajuda a flutuar. É ele que, juntamente com o espírito do tabaco, doa asas (“malik”) ao espírito do xamã. Segundo Butt trata-se de um “milan” (milhano ou minafre), ave de rapina de cauda bifurcada. O motivo das asas do

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pássaro “Kumalak” se reencontra freqüentemente nos aventais de contas das mulheres akawaio, onde ele está representado por linhas zigzag (p. 37). É possível que as incisões perpendiculares das asas dos urubus de Santarém tenham algo a ver com a ideia de escada (escada de mão), permitindo subir e descer, enquanto as das asas fechadas (que apresentam uma combinação de incisões retilíneas e curvilíneas) talvez indiquem os espíritos-urubus como moradores permanentes do “espaço céu”. É claro que são apenas conjecturas. Contudo, em artigo sobre a viagem ao céu dos xamãs karib, Andres-Bonn não somente menciona uma escada do urubu-rei como veículo para a subida ao céu (p. 338), como também cordas e escadas de cordas (“Wendeltreppen”), que efetivamente servem nos treinamentos dos candidatos a xamã (p.339). As cariátides, antropomorfas, reproduzidas por Denise, parecem ser na maioria de sexo feminino. Para os vasos fig. 14 e 16 (pp.183 e 185) não há indicação de sexo. Poder-se-ia pensar que as cariátides representam xamãs que sustentam o céu. Essa função os Yanomami atribuem a seus xamãs, e se encontra essa ideia também entre outros povos indígenas, por exemplo os Terena de MS. (F. CARVALHO). No entanto, sendo a maioria das cariátides de sexo feminino, fica difícil levantar uma hipótese assim. É verdade que há mulheres xamãs entre povos karib [Audrey Butt se refere a algumas mulheres xamãs entre os Akawoio da Guiana Inglesa (p. 11)]. No capitulo sobre “Inferências sobre o Significado da Cerâmica de Santarém” (p. 38 e segs.), Denise recorre a Mac Donald (1972) que aponta a representação das cariátides cobrindo os olhos com as mãos “atestando tanto o caráter religioso das cerimônias quanto a exclusão das mulheres delas”, o que parece correto. Há, no entanto, representações de cariátides (todas femininas) cobrindo a boca com as mãos: na Figura da p.171 as três cariátides, e na fig. da p.172, duas delas, enquanto a terceira tem as mãos sobre os joelhos. Este motivo - da mão cobrindo a boca – se repete nas representações de apêndices bicéfalos, e, como vimos no mito da viagem ao céu a esposa-urubu avisa o marido que não deve comer o que os urubus lhe oferecem. O que nos leva a uma hipótese que parece interessante, isto é, que os Tapajó comungavam da mesma visão do mundo, incluindo o mito da viagem ao céu, dos Karib contemporâneos e tinham rituais xamânicos semelhantes. Os vasos de cariátides, da mesma forma que os vasos de gargalo, tiveram certamente uso cerimonial entre os Tapajó. Como aparentemente não se encontrou em Santarém qualquer apetrecho para inalação nasal (como tubos inaladores, pranchas de rapé), pode-se presumir que os vasos de cariátides serviam para conter suco de tabaco ou líquido alucinógeno bebido pelos xamãs para leválos a esse céu dos urubus, tão bem retratado em barro. Entre os Akawoio (também Karib), os aprendizes de xamã bebem o suco de tabaco, mas também o suco conseguido da casca da arvore “tumoreng”, Sclerobium sp. (BUTT: 29/30).

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Em uma fotografia mais ampliada de um exemplar coletado por Nimuendajú na cidade de Santarém, que pode ser visto à p. 151 de O Museu Paraense Emílio Goeldi (SP, Banco Safra, 1986), vê-se nitidamente uma das cariátides com a mão direita cobrindo a boca, a esquerda sobre a joelho e, na flange, a figura central do urubu-rei de asas abertas apresentando duas cabeças, uma de ave, a outra antropomorfa, igualmente com a mão direita cobrindo a boca. A mesma representação encontramos, na obra de Gomes, à p. 173, à p. 181 e também em dois apêndices bicéfalos (encontrados em vasos de cariátide) da pág.287. Pensamos que, das cariátides (que, na maioria, têm o sexo indicado, feminino), as que cobrem a boca com a mão podem representar a esposa-urubu, isto é, o espírito auxiliar do xamã, lembrando-lhe, como vimos, que na sua viagem extática, não deve comer o que lhe é oferecido pelos urubus; enquanto a representação bicéfala parece ser a do próprio casal (xamã e espírito auxiliar urubu-rei voando juntos). Aliás, o próprio xamã torna-se, evidentemente, durante a viagem para o além, um ser misto, homem e animal pois, como visto acima, “o taiugu facilita a entrada do espírito auxiliar no corpo do xamã”. A área em que aparece o mito do urubu de duas cabeças é a dos altos rios que fluem para o médio e baixo Amazonas. Levando em consideração que a colonização teve por consequência uma retração geral do contingente indígena, subindo os rios, não se pode duvidar que o tema também tenha existido em mitologias de povos às margens do rio Amazonas (como os Tapajó, na confluência com o rio Tapajó). Interessante é também a figura apresentada por Gomes à p.244 (vide fig. 2), uma alça bicéfala (de urubu-rei e humana) num corpo que não é de urubu-rei pois, em vez das asas abertas, é uma figura unida pelo peito, da qual se vê na foto seis membros, aparentemente duas pernas e um braço para cada cabeça, se não é que outros dois braços existem do outro lado da borda do prato, invisíveis na foto. Isso pode reforçar a ideia de que as figuras bicéfalas realmente representam o casal xamã + espírito-auxiliar (esposa animal). E o urubu-rei de duas cabeças, o sogro referido no mito? É possível que nas flanges se possa reconhecer alguns apêndices de cabeças de urubu sobrepostas (não há nitidez suficiente nas fotos, seria preciso examinar de perto as peças ...), mas também é possível que ele não devesse ser representado. Quanto ao exemplar apresentado por Gomes à p. 176, que é uma exceção, os quatro apêndices com figura de morcegos podem, eventualmente, indicar que algum xamã, em suas sessões de cura noturnas, possa ter como espírito auxiliar o morcego além do, ou em vez do urubu-rei. Aliás, no curso de xamã dos Karib (da Guiana Holandesa), os “pujais” (candidatos a xamã) são instruídos pelo mestre a respeito de como se transformar, durante o transe, em onças ou em morcegos, e como voltar à forma humana depois (ANDRES-BONN, p. 337).

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Andres-Bonn baseia-se nos trabalhos de Penard, de Roth, de C. H. de Goeje e do missionário Ahlbrinck. Eles ressaltam, nas crenças dos Karib com que conviveram, a figura do urubu-rei como “tamusi”, Avô Urubu-rei, um dos espíritos mais poderosos que existem. Por que o urubu é um símbolo tão importante em certas regiões? Parece evidente que o urubu, como comedor de carniça, como “último transformador” na porta de entrada do além, é uma ave que se presta a ser o senhor do mundo dos mortos. É evidente também que as Guianas e o Amapá não são exceções em atestarem pela arqueologia e por mitos, a importância simbólica da figura do urubu. Pierre Lévêque (1981: p.62) nos fala de representações de Çatal Hüyük que apontam para a mesma simbologia “urubu-morte/além morte”. Referente a uma divindade, ele escreve: “Ses liens avec les charognards montrent enfin en elle une déité de la mort et de l’outre-mort et il faut mentionner plus précisément des representations fortement suggestives” (citando Mellaart): “des seins maternelles contenant des crânes de vautours, de renard ou de belette, ou encore la mâchoire inférieure d’une hure de sanglier ornée d’énormes boutoirs, éminemment symboliques des animaux mangeurs de cadavres qui profitent de la mort.”3 Mais adiante (idem, p.81), Lévêque se refere às pinturas murais também descobertas em Çatal Hüyük: os mortos aparecem enterrados debaixo das plataformas de casas e de santuários. Esse enterro, observa Lévêque, parece ser honorífico, pois o mobiliário funerário é mais abundante nas tumbas que aí foram exumadas. Os mortos apresentam pintura em ocre, vermelho ou cinabre sobre o crânio ou sobre todo o esqueleto, e isto só ocorre nos santuários, geralmente com esqueletos femininos. A inumação definitiva só se faz após a descarnagem que parece ser feita por urubus num local especial. Esta deve ser a explicação das pinturas murais representando urubus atacando corpos humanos sem cabeças. Alguns desses animais têm pernas humanas, o que poderia significar que há também intervenção no ritual por sacerdotes zoomórfos. Ora, sabe-se bem que tanto no plano do real, quanto no do imaginário, o urubu é com freqüência intimamente ligado á sorte dos mortos; é talvez o caso dos caçadores africanos; e o caso de muitos mitos na área ameríndia. Sabe-se também que as relações entre urubu e Grande Mãe são freqüentes e diversas. Os urubus descarnadores 3. “Suas ligações com os urubus mostram em fim que ela é uma dinvindade da morte e do além-morte e é preciso mencionar mais precisamente representações fortemente sugestivas”... “ seios maternos contendo cranios de urubus, de raposa, de doninha ou ainda um maxilar inferior de um carnivoro ornado de enormes fuços eminentemente simbólicos dos animais devoradores de cadaveres que aproveitam a morte”

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de Çatal Hüyük são os melhores testemunhos das estruturas paleolíticas de compensação; ajudados provavelmente por sacerdotes, operam uma espécie de sacrifício cuja finalidade é justamente restabelecer o equilíbrio entre homens e potências (tradução livre nossa). A relevância, no “pensamento selvagem”, de um “grande transformador” corresponde à visão do mundo característica desse pensamento. A vida em geral é pensada como uma corrente de energias que advém do alimento (seriam as “estruturas alimentares do parentesco” de que fala Meillassoux), e esta concepção é fundamental à ideologia paleolítica (na expressão de Viveiros de Castro), pois pré-agricultores4 têm que pensar em reequilíbrios com a natureza (daí a ideia de trocas generalizadas), não devendo quebrar portanto os ciclos naturais de reprodução de que depende a reprodução do seu próprio sistema de vida. A figura de grande transformador varia naturalmente de cultura para cultura, mas existe uma lógica para a sua escolha. No caso do povo da cultura marajoara (como para muitos povos lacustres, pescadores) o jacaré pode muito bem representar essa função simbólica, e a cerâmica arqueológica marajoara é a prova disso. No caso do urubu que parece tão importante (nas Guianas, no Amapá) a figura se liga mais às atividades da caça, os urubus procuram animais mortos, restos de refeições de predadores animais como os grandes carnívoros. Antes de se tornarem caçadores, a humanidade viveu praticamente só da coleta5. Podemos imaginar que em muitas regiões, até há poucos milênios, essa atividade fosse bem mais importante do que uma eventual caçada. Teria sido essa a situação da área karib, como também a dos bandos paleolíticos do Saara e da Anatólia anterior ao neolítico? Talvez isto poderia explicar por que, aparentemente,. o urubu está mais ligado à mulher. Em Çatal Hüyük, há uma divindade feminina, sendo que os esqueletos femininos parecem gozar de um status mais alto (talvez de sacerdotisas). No caso das Guianas e do Amapá, temos a presença nos mitos de uma esposa-urubu. No paleolítico, em grupos de caçadores-coletores nômades, as mulheres certamente tinham a função de recolher a caça abatida (ou mesmo restos de animais caçados por predadores), enquanto os homens se ocupavam das armas e da defesa do bando. Poderia ter sido esta uma especialização que marcou o imaginário das tribos karib? É possível, ainda mais que todas as informações que temos sobre os Karib se referem a eles como extraordinariamente nômades nos primeiros tempos do contato. 4. A horticultura de floresta ainda não modifica essa visão do mundo, pois ela obedece de certa forma ao mesmo cinergismo da caça e da coleta, que coexistem com a prática da roça. 5. Há grupos que chegaram com essa prática quase exclusiva até nossos dias, como, por exemplo os Paiute da América do Norte.

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No excelente “Crônicas do Rio Amazonas”, Porro (1992, p.18) escreve: “Entre os Tapajó a poliginia era comum e as mulheres adúlteras sofriam severas punições, mas apesar dessa posição subalterna há evidências de que algumas mulheres, pelo menos quando pertencentes a determinadas linhagens, podiam gozar de status privilegiado; o caso mais conhecido é o de Maria Moacara” que, conforme Bettendorf quer dizer “fidalga grande” e à qual consultam em tudo como um oráculo. Portanto, seria uma xamã. Penso que esta análise, a partir da cerâmica arqueológica, pode reforçar a idéia de que os Tapajó eram Karib, associado à observação que temos de que, segundo Bettendorf, conseguiam entender a língua dos “Urucucu”, que acredito serem os Urukuiana” (Rukuyenne, Wayana) ou Oyana, que são Karib. B) Os Vasos de Gargalo: O Jacaré de Barro Na coleção Santarém da USP, os vasos de gargalo apresentados por Gomes, de nºs 19, 22, 24, 25, 27, 28 e 31 têm o bojo como que sendo o corpo de um jacaré, projetando-se a cabeça de um lado do vaso e a cauda do outro, como apêndices semelhantes a alças. Isto se vê mais claramente no exemplar 31 e num vaso globular nº 38, em que as “cobras estilizadas” (segundo Gomes) também podem ser lidas como as patas do jacaré (isto, apesar de serem longas demais, tratando-se de jacaré). Qual a importância do jacaré na mitologia indígena sul americana? Na cultura xinguana e entre os Karajá, o jacaré mítico é um sedutor de mulheres, às quais presenteia com peixes (ou com pequi) em troca de favores sexuais. Os maridos traídos o matam, as mulheres se vingam e acabam abandonando a aldeia para não mais voltar. Ulricke Prinz (1997), em um trabalho muito minucioso, orientado pelo pesquisador notável e generoso que era Desidério Aytai, compara algumas versões desse mito (recolhidas por Ehrenreich, por Krause, por Peret e por Aytai) e as do Alto Xingu. Mas, no caso da cerâmica santarenha, deve-se procurar por outros mitos, pois o jacaré aí parece ter uma função de canoa (na análise de Lévi-Strauss, de “antipirogue”). Em L’Origine dês Manières de Table (1968) são mitos jê (xerente: “História de Asaré”; krahó: “História de Autxepirire”; kayapó: “Aventuras de Sakawãpõ”) e um mito munduruku (“Aventuras de Perisuat”) que são tratados sob o tópico “Le passeur susceptible” (p.359-389). Mas há também um mito tembé (recolhido por Nimuendajú) de que Lévi-Strauss trata em “Le Cru et le Cuit” (1964, p.259). Entre os Karib, o mito também é conhecido, pois Rauschert(1967, p.199) refere o mito aparaí do “jakarä-tamuru”, que era como uma grande canoa, mito que se liga à temática das canoas do Sol e da Lua. Voltando à cerâmica dos Tapajó:

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O artefato de nº32, sem dúvida o vaso de gargalo mais belo da coleção (vide fig. 4), parece confirmar que os vasos são o corpo de um jacaré, pois o que é definido por Gomes como motivos aplicados sugerindo uma cobra estilizada, fica mais lógico se lido como pernas do jacaré. Detalhe dessa vasilha - a cauda com a figura antropomorfa sentada - é reproduzido na margem de todas as paginas do texto do livro. Em outra peça (a nº24, vide fig.5) também se encontra uma figura humana, desta vez não na cauda, mas sobre a boca do jacaré: é, segundo Gomes, a figura de uma criança engatinhando e, se estou certa ao ver no vaso como um todo um jacaré, outros apêndices aplicados ao corpo dos vasos (como nas peças 20, 25, 31 e 35 “representações antropomorfas sentadas, em posição acocorada, com os braços flexionados e as mãos apoiadas sobre os joelhos”) também podem ser lidos como “passageiros” da canoa-jacaré. (Aliás, Estevão Pinto (1935) menciona uma urna funerária de Maracá, estudada por Ferreira Pena, do tipo “face-urn”, de figura humana com as mãos apoiadas nos joelhos. Essas urnas guardam ossos). Assim, como essas figuras antropomorfas apostas ao jacaré também apresentam braços e mãos nesta posição, poder-se-ia pensar que se trata de uma posição fúnebre ritual. Embora a maioria dos vasos de gargalo seja de “jacarés de barro”, há também um (nº6) representando um urubu-rei, sendo que na peça nº24 foi colocado um apêndice na forma de urubu-rei defronte à “criança engatinhando”. Do simbolismo do urubu já se tratou na análise dos vasos de cariátides. Há também figuras de pássaros e de cachorros do mato6, sobre a mandíbula superior do jacaré no vaso nº20 (cachorro do mato) e nos vasos nºs 19 e 22 (pássaros; segundo Gomes, o mutum-cavalo), “fechando” a boca do jacaré. Estas figuras zooantropomorfas dos vasos 19 (fig. 6), 20, 22, 27 e 28, parecem ter a função de imobilizar a boca do jacaré, pois o jacaré mítico dessa área geográfica – como se verá no mito munduruku abaixo – tem o mau costume de querer devorar seus passageiros. Outros apêndices que estão presentes nestes vasos são rãs. A rã parece ter tido uma importância simbólica grande na Amazônia, e esta área do baixo Amazonas é também a dos famosos muiraquitãs (procedentes dos cursos superiores do Yamundá e Trombetas, com nascentes nas costas sulinas da Serra de Acarai)7. 6. Provavelmente o Morcego e o Cachorro do Mato são espíritos animais com que algumas tribos indígenas chegaram a se identificar ou a identificar seus vizinhos. Assim, Protásio FRIKEL (em “Os últimos Káhyana”) explica que o nome dos índios Rêrêyana do rio Kurátari significa “Índios morcegos”. O rio Kachúru (Cachorro) parece ter algo a ver com o nome dos Kachúyana (aparentados aos Kahyana), sendo que “yána” significa “povo”. 7. Muiraquitas batraquiformes são também encontrados na Venezuela, Guianas, Antilhas e na America Central continental (KOEHLER-ASSEBURG,1951: p.214). O Handbook of South American Indians (ed. Stuart), V.4, Fig.77-C reproduz figurinhas de pedra, algumas aparentemente de sapos.

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Em alguns mitos a Sapa aparece como dona original do fogo (como no mito aparaí de Kujuli, cf. Rauschert, p.183), talvez porque sapos comem vagalumes (uma espécie de “fogo vivo”). É também o que sugere Roth (1913, p.133, nota 2). Em outros relatos, uma Sapa é a velha avó dos Gêmeos Míticos e mãe das Onças, como no mito karib “The Sun, the Frog and the Firesticks” (Roth: 1913, 133-135). (Numa versão makuxi do mito dos Gêmeos, recolhido por Diniz (1968) a Sapa é avó das Onças). Ela cria os Gêmeos, e esta situação só muda quando os meninos ficam sabendo, por uma ave, que as Onças devoraram a mãe deles. O fato de a Sapa aparecer como de geração acima das Onças e como iniciadora de meninos nas artes da caça parece ter a ver com a utilização dos indígenas do veneno de rãs para as suas flechas. Isto deve ter sido uso mais generalizado na Amazônia, antes da invenção por algumas tribos do curare, e nos tempos em que a sarabatana era mais usada do que o arco-e-flecha8. Creio que a Sapa ou Rã é por isso a dona original da magia da caça. Aliás, num outro mito makuxi recolhido per Diniz (1968, p.172) a Sapa, mãe das Onças, é justamente a dona da “puçanga”, magia de caça. Provavelmente, numa visão do mundo indígena mais abrangente na América do Sul, a Onça, em vez da Sapa, passou depois a representar o grande Guerreiro da Natureza, alter-ego do guerreiro indígena e dos xamãs9. Os Tapajó usavam flechas envenenadas (cf. Nimuendajú) e não havia antídoto para o veneno. Poderia tratar-se de veneno de rãs? De qualquer forma, as rãs dos vasos de gargalo parecem ter uma importância especial. Note-se que elas aparecem, na grande maioria, em posição de salto. Talvez se possa relacionar essas rãs prestes a pular com o próprio mito do “Passeur susceptible”: 8. Em um mito warrau curioso, reproduzido por ROTH (“The honey-bee son-in-law”, p. 199201, o marido-Abelha, que está com o seu bebê (que teve da mulher humana) nos braços, tendo sido molhado por suas cunhadas, queima e se retransforma em abelha, voando para uma árvore, onde derrete em mel, enquanto o seu bebê se transforma em sapo (Wau-uta). Se a descendência de seres míticos indica algo cronológico em termos de prática econômica, pode-se pensar que o mel indicaria a fase de coleta, como anterior à da caça (representada pela Wau-uta, a sapinha de árvore oca). 9. Também em mitos aruák é a sapa (Wau-uta) que ensina caçar a indígenas “panema”. Tratase dos mitos “The story of Adaba” (Arawak) e de “Black Tiger, Wau-uta and the broken arrow” (Warrau), reproduzidos por ROTH, p.215 e 213-4, respectivamente. A flecha dada por Wauuta, neste último mito, é descrita como muito curiosa: ela havia sido quebrada em 3 ou 4 pedaços que, depois, foram, unidos. (As setas de sarabatana têm só uns 20 cm. Talvez se tratasse de uma vaga lembrança?) Nesses dois mitos, a sapa não aparece como mãe de onças, e a prodigiosa sorte na caça que ela confere ao(s) Índio(s) desaparece quando o caçador, embriagado revela o segredo de sua sorte (“Black Tiger” ... ) e, na história de Adaba, quando a mulher humana quer obrigar seu marido (Adaba) a tomar banho num lago, fazendo-o desaparecer, voltando a ser sapo.

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No mito munduruku, o herói (Perisuát) é instruído pelo tio que, para ele poder voltar à aldeia, deve atravessar um rio dominado por três enormes jacarés. Ele deve recusar o auxílio dos dois primeiros e só aceitar passar ao maior deles, sobre as costas do qual cresciam embaubeiras e que tinha o nome sugestivo de “Uätipung pung”. O jacaré não chega perto da margem, assim que Perisuát precisa saltar para “embarcar”. No meio do rio o Jacaré avisa que vai tocar trombeta, e solta um som sonoro e mal cheiroso. Perisuát o parabeniza pelo seu hálito perfumado. Chegando à margem, “Uäti-pung-pung” quer que Perisuát nade até a margem (com a indubitável intenção de devorá-lo). O herói recusa e faz o jacaré chegar mais perto da terra e aí, Perisuát pula para a margem. Só depois, já em segurança, diz ao Jacaré que ele fede, o que deixa “Uäti-pung-pung” furioso. Em outros mitos, o Jacaré pede ao passageiro que o insulte, aparentemente para ter uma desculpa para devorá-lo (no mito krahó de Autxepirire e num mito tembé). Num mito kayapó, o Jacaré acusa injustamente o passageiro de tê-lo injuriado, como pretexto para o devorar. Pode-se admitir, assim, a hipótese de que as rãs em posição de salto representassem também os próprios “passageiros” do Jacaré, isto é, que os “passageiros” assumissem a forma de rãs para poderem chegar a salvo à outra margem do rio; a rã sendo, portanto, um espírito protetor do caçador indígena. Outra observação que me parece importante é que no colo dos vasos 19, 20, 21, 28, 29, possivelmente 24 e talvez também 30 (neste, bastante estilizada), aparecem faces antropomorfas, e a representação de faces antropomorfas está, nessa área geográfica, bastante ligada a urnas funerárias. Seriam elas os rostos dos passageiros da “canoa-jacaré” na sua viagem para a outra margem do rio? É possível que esta outra margem seria então o além, e as figuras de pássaros a imobilizar a boca do jacaré seriam, tal qual a Rã, espíritos protetores do morto. “Os Tapajó depositavam o morto numa cabana especial, acompanhado dos seus bens pessoais e com o rosto coberto por uma máscara de tecido; depois de decomposta a carne moíam os ossos e com eles faziam uma bebida” (Porro, 1992, p.21, de acordo com Heriarte). Esse costume, citado também por Gomes (p.154) de triturar os ossos de seus mortos e misturá-los “em vinho”, é costume referido por Roth (p. 158) para os Karib: “...in the lands back (of Cayenne) there are nations who desinter the bones when they consider the body is putrid enough, and after calcining them, drink the ashes which they mix with their vicou believing that by this means they are giving the defunct a more honorable burial than by leaving them a prey to worms and corruption”.10 10. “(...) nas terras do interior (de Cayenne) há nações que desenterram os ossos quando acham que o corpo esta putrefato o suficiente, e depois de queimá-los, bebem as cinzas que misturam com a bebida, acreditando que desta maneira eles dão ao defunto um enterro mais honorável do que deixando-o presa de vermes e corrupção”.

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Na realidade, é comum a crença, principalmente entre sociedades de caçadores-coletores (como por exemplo os Yanomami) de que é o esqueleto que contem a essência da herança humana, isto é, a alma propriamente dita da pessoa que, mediante o endocanibalismo de cinzas ou dos ossos triturados, volta ao seio de seu grupo; sendo que, somente com o tempo, os povos plantadores (se sedentarizando), acabam criando a “terra-santa” (isto é, um cemitério) para os seus mortos. Mas a idéia “ossos = locus da alma” ainda está presente em crenças cristãs (católicas) de que, no fim do mundo, os mortos ressuscitarão a partir de seus ossos. Fica assim à guisa de finalização deste artigo, uma hipótese que, como toda hipótese, ainda precisa ser comprovada: Os vasos de gargalo, esses “jacarés de barro”, não seriam usados pelos Tapajó nos seus rituais funerários, em que os ossos triturados dos mortos, misturados à bebida, eram ingeridos pela comunidade?

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IMAGENS

Fragmento de vasilha, parte de um vaso de cariátides, cuja forma é igual à peça 71/7.185 (figura 1). Ao redor da flange, dos apêndices zoomorfos existentes (urubu-rei), somente quatro figuras estão inteiras. Duas com asas fechadas e bico voltado para o lado as borda e as outras duas com as asas abertas. Na borda virificam-se incisões retilíneas e espiraladas combinadas com ponteado. Os olhos do urubu-rei foram feitos com associação das técnicas de aplicação e incisão circular. As asas fechadas do urubu-rei são decoradas por incisões retilíneas e aspiraladas. O de asas abertas possui uma larga faixa com incisões perpendiculares. Na base do recipiente existem bandas compostas por incisões perpendiculares. (Denise M. Cavalcante Gomes)

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10. Jaguar – O Senhor da Floresta Tropical Indígena Homenagem póstuma a DESIDÉRIO AYTAI e GERARDO BAMONTE, mestres e amigos que tanto me ajudaram.

Em Jurupari – Estudos de Mitologia Indígena (1979) dei o nome de “ser terrível” ás entidades míticas dos nossos indígenas que castigam os exageros de caçadas, que punem as pessoas que quebram tabus. Isto porque estas entidades são pensadas como vingadoras dos animais caçados e da natureza em geral, atacada pelos humanos. Um termo melhor para “ser terrível” é, no entanto, realmente “trickster” (termo tomado de Paul RADIN (1956), quando ele estudou a mitologia winnebago). Ou, melhor ainda, uma das traduções que o índio karajá Kurixí deu a Baldus para a entidade “Nãxiré”: “ECO” (1937, p.203). Eco, por que? Porque é o eco (ricochete) das ações humanas contra o que nós chamamos “natureza”. Trata-se, na maioria dos casos, de um animal muito perigoso para os humanos. Na América central e do sul, o “trickster” mais importante, quase onipresente na mitologia, é o jaguar. Seu “domínio” se estende numa área que vai, desde a cultura arqueológica olmeca até o noroeste da Argentina. Não é, naturalmente, o único “senhor dos animais”. Onde o povo é principalmente pescador, o jacaré pode assumir essa função, como aconteceu entre os autores da cerâmica marajoara. Ou, outro ser fluvial perigoso, a anaconda, pode ser em muitas mitologias, a grande “vingadora” ou a contrapartida aquática do jaguar. Em alguns casos, mesmo, como entre os Maku, o senhor dos animais mais caçados aparece como o principal “trickster”, na figura de um macaco antropofágico. Aliás, Jurupari, na sua roupa “macacaráua” também já deve ter sido pensado como macaco antropofágico. 1. “Meu tio, o Iauareté” A análise deste conto, desvendando a sua mensagem anti-colonialista, já foi feita magistralmente por Walnice Nogueira Galvão (Mitológica Rosiana, 1939). Vale a pena ler. E acredito que era mesmo esta a mensagem de Guimarães Rosa

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ao escrever o conto. Creio também que ele conhecesse o suficiente de mitologia indígena para que, embutida no conto, ele nos desse também uma visão desta. Irene Zanetti Castañeda, em sua dissertação de mestrado , procurou analisar “Meu tio, o Iauareté” a partir do que nos fornece a mitologia ameríndia. Selecionei alguns trechos desta dissertação: A linguagem do texto é permeada de tupinismos, visto que a personagem central é um índio, meio homem, meio onça; isto nos leva a pressupor que o texto esteja “falando” em primeiro plano dos mitos do homem-jaguar tupi. Num segundo plano, temos de considerar também presente no texto o culto do chamado “jaguar-solar” que aponta para uma dimensão mais que brasileira, também americana, sobretudo, latino-americana do conto. Estudos realizados a respeito do culto à onça mítica apontam sua notável onipresença entre povos, cujas origens cronológica, geográfica e lingüística são diferentes. Conhecemos referências dessa onça desde há três mil anos antes dos Incas no Peru, na chamada cultura Chavin, bem como na do povo Nahuatl, antes mesmo dos astecas, no México antigo e, no Brasil, entre os povos da cultura Tupi. (CASTAÑEDA)

Dos povos tupi, Irene selecionou duas versões do mito: a) Maíra ou Maire-Monam ou Sumé (o transformador) transformou um tronco de árvore em mulher, com a qual conviveu algum tempo, abandonando-a depois de grávida. Maíra só aparece para impor provas a seus filhos, os gêmeos míticos. b) Mavutisini (n), o sobrinho da onça Yawat, ser mítico antropomorfo do mundo xinguano – cria transformando. É o fazedor de gente. Ele tinha mulheres, as quais recusaram-se a casar com a “onça”. O herói resolve, então, fazer as filhas de que precisa. Dirige-se ao mato e corta várias espécies de árvores: maru, kamiuva e kwarip. “Ele ergue esses troncos, canta para eles, enfeita-os e, ao cobrarem vida, manda as novas “filhas” para a casa da “onça”; das quais, a mais moça dá a luz Kwat e Yaí (Sol e Lua) e outra, mais velha, será a mãe de criação dos gêmeos e heróis culturais.” O Kwarip corresponde a um recriar simbólico do cosmos xinguano. Dessa última mulher nasce o “bebê-jaguar” ou “homemonça”(CASTAÑEDA). (Outros trechos da dissertação de Irene vão figurar mais adiante) 2. “A Bela e a Fera” em versão indígena: Um personagem que podemos caracterizar como o caçador original, ao invadir a floresta, está na iminência de ser devorado por um jaguar. Para se salvar, promete enviar uma filha, com a qual o jaguar poderá se casar. É este o esquema geral com que começam muitos mitos tupi, o que faz lembrar o conto europeu “A Bela e a Fera”. Neste, o mercador não tem a menor intenção de entregar sua filha à

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Fera que, para o poupar, lhe pede o primeiro ser vivo que ele encontrar, ao voltar, no portão à sua espera. Comumente era o seu cão que o esperava, assim que ele concorda. Contudo, nesse dia, é justamente a filha caçula que lhe vem ao encontro. O mercador não invadiu o território da Fera para caçar. O que ele fez foi cortar uma rosa da cerca do palácio, pois a caçula só lhe havia pedido uma flor. Entre os caiçaras do litoral norte paulista, Silvia Regina Paes recolheu um conto em que um pescador faz um trato semelhante com o “rei dos peixes”, imaginando – tal qual o mercador – que seria o seu cão a ir-lhe ao encontro no fim do dia. Era, no entanto, sua filha, e ele teve que entregá-la. Percebemos que, nestes dois contos, o pai é como que castigado por ter tido a intenção de salvar-se às custas de seu cão. E, de acordo com uma ideologia paleolítica, realmente um animal não pode ser propriedade de ninguém. Quanto à flor colhida pelo mercador, ela também é um ser vivo e, mais do que isso, ela é um ser que pertence à abelha. Numa civilização da caça e do mel, geralmente é tabu colher flores. No mito tupi, a futura mãe dos gêmeos, ao colher flores, é picada na barriga por uma abelha e, quando ela tenta dar um tapa no inseto, o filho ainda não nato se aborrece com a mãe, não fala mais com ela, e ela se perde no caminho. Cláudio Zannoni fez um estudo comparativo dos mitos tupi. Vale a pena ler o seu livro (1999). Mas há versões não tupi que se assemelham bastante aos mitos tupi. Entre estes, pode-se destacar: Koch-Grünberg (em Indianermärchen... p.78) recolheu um mito karib em que a mãe de Makunaima e Pia é morta pelo jaguar, quando em busca de seu marido, o Sol, chega à morada de Kobo(bo), isto é aru (a sapa, mãe das onças, que tenta inutilmente escondê-la). Para os Desana, o Sol criou o Jaguar para representá-lo (REICHEL-DOLMATOFF, 1968:20). A mãe dos gêmeos, em muitas versões, é a mulher de madeira dos mitos alto xinguanos, mas num mito waiwai (também karibe) ela é a Tartaruga, devorada pelas onças, sendo seus filhos, (nascidos de dois ovos) criados por uma velha (LÉVI-STRAUSS, 1968: p.136). Em muitas versões, principalmente tupis, o jaguar é o pai, mas o bom jaguar, opondo-se aos seus irmãos, que acabam sendo exterminados ou quase exterminados pelos filhos que vingam a mãe devorada pelas feras. Mas, em algumas versões, é o pai que é morto pela onça má e é a ele, em primeiro lugar, que os gêmeos míticos vingam. É o que acontece na “Estória dos Gêmeos” witóto (NUNES PEREIRA, Moronguetá...p.482) e no mito kayuá publicado por Schaden (1947: p112). Segundo Münzel (1976: p.281), para os Aruák e em toda a área Juruá- Purus, o Jaguar é o senhor de todos os animais. Entre Barasana e Desana parece existir

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um verdadeiro culto ao Jaguar. Os três suportes transversais da viga central (“Gumu”) da maloca desana representam onças que assim, são as protetoras mágicas da maloca (REICHEL-DOLMATOFF, 1968). Entre os Siona, a Mãe Yagé é a Mãe Onça (LANGDON (1995:p.116, nota 4). Fora do Brasil, entre os Kuna, a Terra-Mãe é o Jaguar (MÜNZEL, p.207), e entre os Mojo também há um culto ao Jaguar (MÜNZEL, p. 281). 3. Os Jaguares arqueológicos: Segundo Bédouin (1961: p.120), um mistério tibetano muito antigo é a dança do “Diable Tigre Rouge”, posteriormente transformado por influências do Budismo. E Mircea Eliade escreve: “No hay que olvidar, sin embargo, que El TigreAntepasado mítico está considerado em toda la zona sureste asiática como el “iniciante”: es el que guia a los neófitos por la selva para iniciarlos (em realidad para “matarlos” y “resucitarlos”). En otras palabras, es parte de um conjunto extraordinariamente arcaico” (1951, p.268). Na Grécia antiga é Diónisos que se identifica com o Tigre. Nas Américas, Irene Zanetti Castañeda ressalta a cultura de Chavin de Huantar, citando Gainza: Da Cultura Chavin, realçamos Viracocha como mito “cosmogônico”. “Wiracocha es el criador del Universo y representa las fuerzas vivas de la naturaleza y sus evoluciones. Como mito “teológico” es la divinidad suprema, es Diós; y como mito “histórico” es el fundador y restaurador de pueblos e naciones. Preside la vida peruviana: la de la “Kamaj Pacha” o de los tiempos primitivos y oscurecidos por su lejanía; y la del “INTI”, com que se abre la nueva era de las influencias de la luz del calor vivificador y fecundante del diós Sol, hechura suya.” Suas feições são de homem e de onça. (Gainza, José Diaz. História Musical de Bolívia, p. 90) Assim como no México antigo, também no Peru o mundo espiritual dos tempos anteriores ao Incaico, esteve dominado por uma divindade representada com um aspecto humano, de felino e de ave. Esta divindade teria sido venerada há mais de três mil anos: o “homem-pássaro” (psicoruna) de boca “atigrada”. Esta figura aparece representada dessa forma desde a cultura chavin e, em Cusco, trata-se de Viracocha – figura com cabeça ornitomorfa a que se oferecia sacrifícios humanos, de preferência crianças. (CASTAÑEDA, citando Doig, F. KAUFFMAN, “Manual de Arqueologia Peruana”, Lima, Peru, 1980, p.6).

Trata-se aí em verdade de um culto muito antigo. Na cultura chavin, o jaguar é um dos principais agentes da divindade” (HARDOY (1964: p.319),e a expansão desse estilo (chavin) coincidiu com a época da introdução do milho (entre os séculos IX ao VI a.C.): Los motivos principales de la ornamentación chavin fueron el dragón hermafrodita, que simbolizaba la divindad suprema; el jaguar y el ave ( buho, halcón o condor), con representaciones de cabezas humanas y de felinos con rasgos humanos ...Todas

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estas representaciones eran de animales ajenos al sitio de Chavin de Huantar pero existían en la no muy lejana selva ocidental en donde se cree comenzó a desarrollarse el culto y el arte que lo representa. (HARDOY, idem)

De Chavin procede uma escultura em pedra (aproximadamente de 1.300 A.c.) em que uma figura antropomorfa, mas com traços de jaguar, segura um cacto de San Pedro e ainda um vaso de cerâmica com a representação de um felino e igualmente, com cactos de San Pedro, planta esta que era já então utilizada pelos xamãs (em vez da ayuasca que não se encontra aí), e que ainda hoje (1978) é utilizada ritualmente, conforme entrevistas de SHARON (1988) com o xamã Eduardo Calderón Palomino. Cabeças troféus aparecem associadas ao culto de um felino no Peru, já no período formativo, no vale de Casma, em cerro de Sechín. De uma fila de pedras trabalhadas... “Os das pedras menores representam cabeças humanas de perfil, cortadas, como os troféus de caçadores de cabeças; são os mais primitivos exemplos deste traço na arte peruana” (BUSHNELL, Peru, p. 51-2). Nas culturas de Nazca e de Paracas, cabeças troféus eram um tema dominante. Representações de personagens degoladores aparecem em vários versões também em Pukara e em Tiwanaku - Wari (horizonte médio, seg. SILVERMAN, citado por KAPFKAMMER). Na arte de Cupisnique, cabeças troféus são o motivo secundário mais importante, e a datação seria de 350 a 250 anos a.C. (KAPFKAMMER, p.346, nota 443). As cabeças troféus de San Pedro de Atacama se deveriam a influências de Tiwanaku (idem, p.349). Quanto a relação entre Jaguar e cabeças cortadas, vide CARVALHO: 1979. Na Colômbia, os monumentos de San Agostin (figuras de pedra antropomorfas, mas com rostos felinos, com dentes de onça) atestam a antiguidade de um culto ao jaguar nessa área. Também na cerâmica condorhuasi é freqüente o motivo do felino (GONZÁLEZ, Contextos y Secuencias ... p 714-15). Segundo González, “La profusión con que aparece la figura felinica sugere una importância religiosa o ritual muy grande, tal como la que se asigna en las altas culturas précolombinas especialmente en la America Andina, a la figura similar de felino provisto de longos colmillos (p.708)”. No noroeste da Argentina foram também encontrados instrumentos de inalação, um deles representando um homem com um jaguar nas costas (KAPFKAMMER, p.341 e seg.). No Pucará de Tilcara (Jujui) foi encontrado um prato de inalação representando dois jaguares com as patas encima de uma cabeça humana e, também em Jujui, no Antigal de los Amarillos, quebrada de Yacoraite, outro com dois jaguares ladeando uma figura humana (KAPFKAMMER, p.278, nota 348). Kapfkammer, baseado em Elisabeth Benson (1974 – “A Man and a Feline in Mochica Art”) refere a estátua de um jaguar gigante com duas patas apoiadas sobre um homem deitado de costas. Segundo Kapfkammer, estátuas semelhantes também

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foram encontradas em Cajamarquilla (Rimac inferior, costa central), no horizonte médio. Na cultura Olmeca (Olli = borracha; Meca = povo), que se estendeu por Vera Cruz (México oriental), uma divindade Jaguar é pai de gêmeos, donos divinos do relâmpago, do trovão e da chuva. Todas as divindades da chuva da América Central derivam deles. A representação dos “Filhos do Jaguar” em pedra ou cerâmica mostra figuras geralmente nuas, sem sexo, com face de traços infantis, olhos oblíquos e boca de cantos caídos, a chamada “boca olmeca” (HÖLTKER, 1966, p.349). VON HAGEN (The Aztec-Man.) observa que o campo do jogo de bola já é atestado no complexo templário de La Venta, na civilização olmeca (antes de 500 anos a.C.), e isto leva a um tema que já foi abordado de forma mais detalhada em “As onças míticas e o jogo de bola”(1979), por isso não nos vamos deter nesse aspecto do Jaguar aqui. Contudo, vale ressaltar que o mesmo tipo de jogo de bola (tlachtli) também se encontra entre os indígenas sul americanos, inclusive no Alto Xingu (AGOSTINHO, pg.29) onde o jogo começa de leste para oeste (pois a bola é o Sol), no espaço entre duas das grandes casas. Importante é que Nimuendajú (1966) presenciou um ritual de iniciação dos Apinayé, em que os rapazes recebiam seiva de mangaba na cabeça, seiva essa que era em seguida raspada para cobrir inteiramente uma cabaça (menos num pequeno ponto). Depois de seca a seiva, a cabaça era quebrada, formando-se assim uma bola de mangaba para os jogos. Lembremos que, no POPOL-VUH, a cabeça de Hun-Hun-Ahpu, um dos primeiros gêmeos míticos que desceram a Sibalba e lá foram derrotados (no jogo de bola) e mortos, foi colocada numa árvore que, a partir daí, começou a dar frutos: cabaças. Isso pode nos dar uma chave para uma cena em cerâmica dos Moche, em que dançarinos seguram árvores de cabaças, no ápice das quais há uma cabeça humana espetada. Isso explica também que a cabaça pode ser um substituto da cabeça humana, como entre os Apinayé e entre os Kaxúyana, onde Frikel (1961) viu, como troféu, uma cabaça recoberta com cabelos do inimigo morto. No POPOL-VUH, o gêmeo de Hun-HunAhpu é Wubuc-Hun-Ahpu, nome que deriva de Wuc = gambá mucura. Portanto, os gêmeos míticos tupi correspondem aos do Popol-Vuh, mostrando que em uma região muito vasta de floresta tropical existia uma mesma visão do mundo. Deste tema entretanto, passa-se a outro, que será tratado no item 6. Sobre a cultura nahuatl, escreve Castañeda: No conto Meu Tio o Iauaretê, o narrador-protagonista encarna o jaguar que, na América, de maneira geral, sobretudo entre os Nahuatl, no México Antigo, vem a ser o tigre, elemento símbolo da peregrinação noturna do Sol; corresponde a que cumpre Vênus para ir converter-se na Estrela da Manhã; ou a do rei de Tollan, Quetzalcoatl, para alcançar o fogo redentor. Os dois simbolizam o movimento que reúne os contrários.

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Tanto o Homem-Onça do conto, quanto o tigre do mito nahuatl aparecem à noite e, de certa forma, ligam-se aos astros. Ambos aparecem à noite e dentro dela, fazem peregrinação atingindo sua empresa: sacrificam homens para a renovação da espécie, equilíbrio da natureza e harmonia cósmica. Ambos acabam transformando-se em “astros”: o tigre nahuatl em Vênus ou estrela da manhã, desaparecendo com a subida do Sol; o Homem-Onça do conto vê-se como a sétima estrela da constelação Sejuçu1 ou Cyiucé, a qual se esconde em determinada época do ano. (CASTAÑEDA) Não aparece gratuitamente no texto de Guimarães Rosa o costume adquirido pelo “homem-jaguar” de alimentar onças com vidas humanas; o fato dele identificar-se com uma estrela das Plêiades; passar pela prova de coragem, quase que sobrenatural, ao enfrentar tantas onças sem nenhum medo; o fato de comer o coração delas, e ser “batizado” com seu sangue, antes de metamorfosear-se; perder seu poder, perante o “estranho-visitante” que o fulmina depois de descobrir o seu segredo, ao ingerir excesso de bebida alcoólica que o faz perder toda censura, “abrindo-se” ou falando demensuradamente. Tudo isso tem uma razão de ser. Todos esses fatos estão relacionados a costumes, crenças e lendas que configuram uma mentalidade e um mundo religiosos de povos que nos antecedem há milhares de anos. A partir desse encontro, desse olhar misterioso de Maria-Maria2, não mata mais onça e, de certa forma, inverte essa situação. Passa a sacrificar homens para alimentar e proteger as onças3, agora reconhecidas como parentes. Tem início, a partir daí, 1. “Sejuçu”, em tupi relaciona-se com o Sete-Estrelo ou Plêiades; segundo Luís da Câmara Cascudo refere-se à constelação de Orion. No rio Negro, as Plêiades são chamadas Cyiucé, mãe dos que têm sede, segundo Barbosa Rodrigues. São as Sete Cabrillas em Espanha e a Poussinière na França. Para os indígenas macuxis eram sete crianças que padeciam fome na casa dos pais, e um dia, pedindo o auxílio da Estrela Ueré, cantaram e dançaram, e, cantando e dançando, subiram para o Céu, onde se tornaram as Plêiades. Barbosa Rodrigues (Poranduba Amazonense, p. 221 e seguintes) registra as tradições das Plêiades no Amazonas, entre os indígenas. Quando o Sete Estrelo aparece, as aves vão subindo no poleiro acompanhando a ascensão de Cyiucé. Na lenda de Jurupari, Ceuci transforma-se nas Plêiades, por ter desobedecido ao filho. Os nahuás davam-lhe o nome de Motz, e nela se tornaram os 400 companheiros de Hunahpu, assassinados por Zipacna. Era a estrela dos navegantes, na antiga navegação do Mediterrâneo. (Há lendas sobre as Plêiades em quase todos os povos mediterrâneos e europeus). Nibertad “é o herói mítico que os cadiuéus identificam com as Plêiades, era ele que seus antepassados saudavam durante as cerimônias com que comemoravam o reaparecimento anual daquela constelação.” (Darcy Ribeiro, Religião e Mitologia Kadiuéu, p.9, 69, Serviço de Proteção aos Índios, Rio de Janeiro, 1950). (Castañeda) 2. Por coincidência ou não, a onça Maria-Maria é amarela assim como seus olhos; é sabido que a onça nos mitos figura como o sol da noite. 3. Temos de reconhecer que na visão de mundo dos caçadores-coletores, a maneira mais lógica de estabelecer ‘’trocas‘’ com o mundo não-natural é através da morte. Morte natural ou ritual, ou seja, a volta à terra dos mortos. Para os caçadores, a essência vital é o sangue, assim como para o pescador, é a respiração. Essa visão de mundo, em que todas as criaturas deveriam ser sustentadas com carne e sangue, estende-se até os astros, pensados como seres vivos, antropomorfos. Por analogia com a evaporação das águas; que é fenômeno visível, em dias ensolarados, imaginam o sol se alimentando do sangue derramado na Terra. Dessa forma, verifica-se que, na base da religião das sociedades de caçadores, sobretudo astecas, há necessidade do homem alimentar o sol com seu sangue, sem o qual o astro morreria. E

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Silvia Maria Schmuziger de Carvalho uma nova caminhada, lado a lado com Maria-Maria” (CASTAÑEDA). Se atentarmos para a Cosmologia Tupi ou, mais especificamente, para o sistema de vingança presente nos mitos, verificamos que é possível fazermos uma associação entre o sistema de vingança dessa cultura e o que chamamos “projeto de vingança”, que pode ser lido no final do conto de Guimarães Rosa.

Uma leitura mais profunda nos leva a ver esse “projeto de vingança” do conto como um microcosmo refletindo o macrocosmo. Considerando que a onça é espírito da mata, notamos que ela tem tanto caráter protetor como ameaçador. (CASTAÑEDA, op. Cit.) 4. O Jaguar e o Xamã Shamanism is an institution which expresses the central concern of a culture, such as the preoccupation with the flux of energies and their influence on visible world. As a cosmological vision, it explains the relation of daily events with the hidden forces. In its larger meaning, it implies a preoccupation with the well-being of society and its individuals, with social harmony and with the growth and reproduction of the world as a whole. It embraces the supernatural as well as the social and ecological. It is a central cultural institution, with through various cultural forms such as ritual, narrative performance and art, unifies the mythic past with world view world view and projects them on the activities of the daily life. (LANGDON, 1997:195)4

Um dos livros mais importantes sobre o xamanismo e sua relação com o Jaguar é o livro de Reichel-Dolmatoff, The shaman and the jaguar, em que trata também dos narcóticos, particularmente do proveniente da “Virola sp”, yopo ou niopo; vihó ou vixó entre os Desana. Seu uso, na forma de rapé, não se restringe à área do Alto Rio Negro. É interessante ler a coletânea organizada por Vera Penteado Coelho (1976). Kapfkammer (1996) mostra como o uso do narcótico, inalado aos dirigentes, impunha-se um trágico dilema: o de escolher entre a matança e o fim do mundo. Nesse sentido, o Homem-Onça do conto assemelha-se ao mito de Quetzalcoatl que, depois de ter cometido o pior pecado – o incesto, uma vez que dormiu com sua irmã, – decide morrer na fogueira ritual. Seu corpo viaja pelas profundezas da terra, em forma de tigre, e seu coração sobe ao céu, onde se transforma no planeta Vênus. Num outro mito, uma vez sob a terra, salpica seus ossos e eleva-se ao céu, onde se torna o próprio Sol. Quetzalcoatl identifica-se também com o Sol da Noite, em que toma a forma de Tigre (Sejourné, L. Pensamiento y religión en el México Antigo) – Castañeda ...) 4. “O xamanismo é uma instituição que expressa o interesse central de uma cultura, como a preocupação com o fluxo de energias e a sua influencia sobre o mundo visível. Como uma visão cosmológica, explica a relação de eventos diários com as forças ocultas. Numa significação mais ampla, implica numa preocupação com o bem-estar da sociedade e de seus indivíduos com a harmonia social e com o crescimento e reprodução do mundo como um todo. Abrange tanto o sobrenatural como o social e o ecológico. É uma instituição cultural central que, através de varias formas como ritual, performance narrativa e arte unifica o passado mítico com a visão do mundo e os projeta nas atividades da vida cotidiana”.

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ou bebido, é amplo em quase toda a América do Sul indígena e o quanto seu uso se associa com a figura do Jaguar. Mas é também importante a conclusão a que ele chega: “Um die nötigen Beziehungen zu den jeweiligen kosmischen Bereichen herzustellen, können die rituellen Praktiker halluzinogene Schnupfdrogen nehmen, müssen es aber nicht”5 (p.385). Pois, de fato, a visão de mundo é incrivelmente homogênea. Durante o transe, o xamã se transforma, mais comumente, em jaguar, mas pode se transformar também em morcego, em urubu ou em anaconda. Na sua transformação em Jaguar, ele se torna uma “onça invertida”, como mostram os desenhos dos desana Umusi Parukumei e Tõrãmit Kehíri (1995, p.165). Realmente, numa fotografia de um Yanomami em transe, seu corpo se retorcia de uma forma bastante semelhante-. Em transe, o xamã enxerga os outros seres de forma diferente. Tratando do xamanismo dos Siona, escreve Langdon: No outro lado, o qual geralmente se conhece através da ingestão de yagê ou através dos sonhos, eles aparecem em formas diferentes. Os humanos, nos sonhos e visões, freqüentemente tomam a forma de pássaros. Os animais, em particular a onça, a jibóia e os porcos do mato, aparecem como humanos. Os peixes do rio aparecem como milho. O Sol é visto como uma estrela neste lado, mas é uma pessoa no outro; o mesmo se aplica à Lua e ao trovão. (1995: 113)

Reichel-Dolmatoff reproduz (op.cit. p. 56) um mito dos indígenas Kogi, em que Noánase (filho do primeiro xamã) herdou do pai o poder de se transformar em onça e, durante a metamorfose, “enxergar as coisas de outro modo”, o que o capacita como curador, já que vê as doenças como besouros pretos que, como tais, pode devorar. O problema de Noánase é que enxerga também os seres humanos (particularmente as mulheres) diferentes, como alimento e, como a transformação implica também numa aguda sensação de fome, o xamã se torna altamente perigoso, ambivalente. De fato, como mediador entre o mundo humano e os animais de caça (e outras vidas consumidas pelos humanos), o xamã não pode só beneficiar a sua comunidade (isto é, o grupo coetâneo a ele). Assim que é crença generalizada na América indígena de que, após morrer, o xamã se transforma em onça e, como tal, ataca seres humanos que ele, no entanto, não come, mas deixa para as verdadeiras onças devorarem, da mesma forma que o personagem de “Meu tio, o Iauaretê” acabou por fazer. Como curador, o xamã realmente pode desequilibrar as relações homem x “natureza” em benefício do primeiro, o que terá que ser então sanado pelo xamã como onça, após a sua morte.

5. “Para produzir as devidas relações com os respectivos campos cósmicos, os praticantes rituais podem inalar drogas alucinógenas, porem não necessariamente”.

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O xamã tem no Jaguar um alter-ego ou um espírito auxiliar, o que parece estar representado em várias figuras de pedra estudadas por Antonio Porro (2010) e outras reproduzidas também por Kapfkammer, procedentes do baixo Amazonas Escreve Porro: (...) chama a atenção a presença de um único traço comum a todas as peças: dois furos passantes e paralelos, de igual diâmetro (de 10 a 15 mm) e muito próximos (sempre à mesma distância) um do outro. Em cerca de 60 % dos exemplares, os furos se localizam junto à base ou a uma extremidade da peça (...) nos demais, no seu centro. Rodrigues (1899) (...) imaginou que os furos deveriam servir para amarrar os ídolos de pedra em algum suporte (...) (no caso,a proa de canoas) (...) Preuss (...) e outros propuseram que os furos iriam permitir, mediante um cordão, o uso do ídolo como pingente de pescoço (...). (p.133)

Porro (2010) escreve que essas explicações não convencem, e sugere que os furos seriam usados para o encaixe de tubos inaladores de alucinógenos, sendo que os ídolos em questão faziam parte do instrumental usado pelos xamãs (almofarizes e bandejas para inalação de paricá ou outros narcóticos, e bastões de xamã). Porro cita Zerries que concluiu ser o baixo Trombetas o provável lugar de origem dos ídolos. E transcreve ainda Peter Furst: Wassen(1965;1967) e Zerries (1965) demonstraram recentemente que as conhecidas imagens de ‘alter ego’ ´procedentes do baixo Amazonas, em que um jaguar aparece atrás e acima de um homem, são partes da parafernália relacionada ao preparo, armazenamento e uso do poderoso psicotomimético inalável Piptadenia (e que) a junção ou combinação de jaguares e pássaros em utensílios de inalação está intimamente relacionada ao conceito amplamente difundido de pássaros como espíritos do tabaco ou como patronos de intoxicações extáticas, e como avatares ou espíritos coadjuvantes do xamã no vôo celestial que ele empreende no estado de êxtase induzido por substâncias psicotrópicas. (PORRO, idem: 136)

5. Chegamos ao quinto tema do ítem: o Jaguar voador (do título do livro de Kapfkammer). Não é de estranhar que o Jaguar voe. Entre os Chol (Maias), o Jaguar ameaça a lua (Münzel, p.188), e seg. Cadogan, entre os Guarani, a onça celeste ameaça devorar o sol (CADOGAN, 1966), da mesma forma que entre os Tupinambá. Aliás, sol e lua (a lua cheia) são a mesma coisa no Alto Rio Negro e também para os Kaingang de Palmas (BALDUS, 1937). E, no México antigo, como vimos pelo texto de Castañeda, Quetzalcoatl percorre o inframundo de oeste a leste, na forma de um Jaguar. Na cultura olmeca os gêmeos filhos do Jaguar eram considerados os donos da chuva, do trovão e do relâmpago. Os Maxacari, segundo Von Feldner (BECHER, 1961) que esteve entre eles em meados do séc. XIX, acreditavam em uma entidade chamada Akjanam, que provoca o trovão, e possui uma grande barba úmida, que sacode, a rosnar, fazendo dela cair as gotas de chuva. Embora para Von Feldner os Maxacari não tivessem identificado

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Akjanam com um Jaguar, muitas tribos concebem o Jaguar celeste dessa forma. Além disso, os mitos estão “escritos” no céu, como o mostramos, para o mito barasana “História de Luna”, em Jurupari (cap. VIII). E pelas notas de Castañeda acima, já se vê que os personagens míticos (tal qual aliás na Grécia Antiga), têm correspondentes estelares. 6. A transformação Cabeça humana = Bola de jogo = Cabaça = Fruta = Sol. Como vimos acima, após um jogo de bola com os donos do infra-mundo (os Came – mortos- jaguares de Sibalba) a cabeça degolada de Hun-Hun-Ahpu dá origem ao primeiro fruto, a cabaça, enquanto que entre os Apinayé a cabaça é quebrada (simbolizando a destruição da cabeça do iniciando), e substituída pela bola de seiva de mangaba (em vez de borracha). Isso nos leva a considerar a importância que têm, em sociedades pré-agrícolas, a CABAÇA (como recipiente) e a FRUTA (como alimento e para preparação de bebidas). Aliás, a mangaba era comum mesmo no litoral brasileiro e os primeiros cronistas já falaram dela como fruta muito importante. Os Jaguares jogam bola com as cabeças sacrificadas. No “tlachtli”, havia instrumentos com a representação do jaguar para se arremessar a bola ao se iniciar o jogo. Portanto, simbolicamente, não eram humanos, mas sim, onças de um lado e pumas do outro, que jogavam. Em “Historia de Luna” barasana, o herói Warimi, ao chegar à maloca das onças, vê que elas jogavam com o crânio de sua mãe (morta e devorada por elas). Ele adere ao jogo e, com movimentos de jaguar, dá uma patada na cabeça da mãe, arremessando-a para o alto de uma árvore, onde ela se transforma em fruto. Acreditamos que, para a região andina e noroeste da Argentina, onde a arqueologia atestou a importância das cabeças-trofeus, devam existir correspondências semelhantes, que por enquanto não pudemos levantar. Com referência aos Munduruku, vide o artigo meu e de Miguel Menéndez, nesta coletânea. Há outra sociedade indígena sul americana que até tempos bem recentes fabricava cabeças-troféus de seus inimigos mortos (aliás, mortos para isso, pois os Jívaro eram caçadores de cabeças). Aí a cabaça já não aparece como tão importante, pois é só com a pele da cabeça (inclusive rosto) que a “tsantsã” é fabricada. E o modelo dessa cabeça reduzida artificialmente (por defumação) é a pupunha, fruta que, se cortada ao meio, apresenta o desenho como que de uma caveira. É uma fruta extremamente importante em toda a Amazônia (até hoje ainda) e, entre os Yanomami, ela era (ao contrário de outras árvores) já cultivada nos tempos de Helena Valero (vide Biocca, 1968). Além disso, de sua madeira se fazem excelentes arcos. Wallace (1939:366) notou muitas árvores de pupunha em volta da maloca de Iauaretè, e se refere à sua importância na alimentação indígena. Kok (1925:921) também se refere à pupunha (ecné), usada para o fabrico de bebida fermentada. Patiño (1958, 1ª parte:190) reuniu uma série de dados, demonstrando que há duas

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colheitas de pupunha por ano, para a Colômbia (vale do Cauca), costa equatoriana (província de Esmeraldas), vale do Madalena e para ambos os flancos da Cordilheira Oriental. Ele transcreve ainda uma descrição de José Maria Bosolima (de 1821) sobre a importância da pupunha na Bolivia: La primera y principal fruta es el tembe o fruta de la chonta, y el tembe se llama en Mozetenes “Buey”... cada palma hecha diez o doce racimos y dentro de este coco que tiene perfecta figura de una calabera, y dentro de este coco hai uma semilla branca como un copo de nieve con la misma figura y es mui dolce, esta fruta la comen los índios... y hacen chicha de ella que hecha un aceite mui gostoso. Se mantienen con ella los meses de febrero, marzo, abril y mayo, tiene esta palma una copa mui hermosa a la vista semejante al Totai (Acromia totai Mart.) de Santa Cruz. Ver esta palma cargada de racimos amarillos bajo su hermosisima copa causa mucho gusto a la vista y parece convida a los hombres y animales a recrearse con su delicioso néctar que lo es en realidad, en este tiempo engordan con ellos hasta los peces de los rios porque hai muchas chontas en sus orillas y se derraman en ellos. Lo mas admirable es que siendo esta palma tan espinosa que no tiene donde asentar um alfiler suban los ratones su punta... en una palabra les sirve de comida, vevida y hierro. Y con toda propiedad se puede llamar Madre de los Yuracares, la siembran, tenda mucho en nacer pero nacida dá a los 4 años... Acaso esta seria la fruta que nos volvió a todos calaberas. (PATIÑO,p.185-6)

Percebe-se, assim, que a mesma relação de compensação (“trocas negativas”) também caracteriza a ideologia paleolítica com referência às frutas. Para finalizar, só a título de provocação: será que a famosa fruta do Velho Testamento (eventualmente maçã ou, como sugeriu Boso Lima, a pupunha?) comida por Adão e Eva, também se originou de uma cabeça cortada, e por isso foi proibida?

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Pedra de Chavin (mais ou menosde 1300 A.C.) que representa um ser mitológico de traços felinos, com um cacto de São Pedro na mão. Douglas SHARON (El chamán fr los cuatro vientos)

Vaso de cerâmica chavin com a representação de um felino, cactos de São Pedro e volutas. Douglas Sharon (El chamán de las cuatro vientos)

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11. Notas Sobre as Cabeças Mundurukú de P. Menget – Uma discussão com Miguel A. Menéndez

Silvia M. S. Carvalho Miguel A. Menéndez (1949-1991)

A publicação desta discussão é uma homenagem a este nosso colega, Miguel A. Menéndez, falecido tão prematuramente. O artigo de Patrick Menget, que foi depois traduzido e publicado em “Amazônia – Etnologia e História Indígena” (org. Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha), São Paulo, USP/NHII/FAPESP, 1993: 311-321), foi objeto, agora já fazem vinte anos, de uma discussão minha e do Miguel Menéndez, cujos interesses estavam sempre muito voltados para toda a área Tapajós-Madeira. Ele tinha uma tradução manuscrita do artigo e já estava, então, muito doente, mas lúcido e ativo como sempre. O que motiva Menget neste artigo é o problema da guerra nas sociedades amazônicas e a caracterização dessas sociedades (tanto as belicosas como as de reputação pacífica) por um “idioma de predação generalizada”. “Um dos nossos problemas – escreve ele (p.312), práticos e teóricos, é a dificuldade de se apreenderem os dados relevantes para essa troca de violências, mortes e agressões”. Entende-se por essa troca de violências também as trocas imaginárias, em que o grupo com o qual se mantém trocas matrimoniais é freqüentemente representado como “inimigo”, ainda que se trate de clã da metade exogâmica de um mesmo grupo local. Menget é de opinião – com toda razão – de que os rituais , menos explorados pela análise (ou ao menos deixados de lado pela análise estruturalista) poderiam fornecer pistas para a compreensão desse estatuto de predação generalizada. Cremos que realmente o ritual, enquanto “fato social total” (como bem observou Mauss) dramatiza sempre um reequilíbrio global (ou cósmico) e pode portanto fornecer uma chave para a questão. Cremos, contudo, que a explicação não deva ser procurada com atenção centralizada na guerra, e sim na busca de um paradigma venatório. Sugerimos que, na oposição “Nós, humanos” X “mundo exterior”, as relações simbólicas têm como modelo dominante a caça, isto é, uma relação necessária de dar morte, que estabelece o que se poderia denominar de “reciprocidade negativa” (para usar uma expressão de Marshall Sahlins em Sociedades Tribais, caracterizando aí –não a violência da guerra – mas as “trocas” por roubo entre tribo vizinhas inimigas). É mais provável que o modo de produção por “punções” (segundo Meillassoux) forneça necessariamente o modelo (percebido como cósmico) dessa

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“energia circulante nos patamares cósmicos” (característica do imaginário Yagua e de outras sociedades amazônicas), que é a energia vinda dos animais caçados para a comunidade humana, e vice-versa, desta para o mundo animal e vegetal (“estruturas alimentares” no dizer de Meillassoux). A questão levantada por Menget, de que “a estes esquemas intelectuais e heurísticos não corresponde uma forma sociológica determinada”, poderia ser problematizada com outra pergunta: “Por que teria que haver uma correspondência com uma forma sociológica determinada?” Acreditamos que as formas sociológicas são em grande parte construções de uma super-estrutura, tanto quanto parte constitutiva da infraestrutura (como o quer Godelier, analisando a estrutura de parentesco como organizadora do trabalho). Se pensarmos, por exemplo, nas sociedades organizadas em metades e em clãs, percebemos que as alianças também dramatizam um reequilíbrio, na medida em que podem ser fantasiadas como casamentos de seres humanos com animais (e, menos freqüentemente, com plantas e outros elementos da natureza). Acreditamos que a descrição do ritual munduruku, que nos é oferecido por Menget (com base em Murphy e outros) permite um aprofundamento maior ainda que o dado pelo autor, se remetido à lógica de compensações que, desde o paleolítico, parece marcar o “pensamento selvagem” e garantir a reprodução de sistemas chamados “de punção” (incluindo-se ainda, a nosso ver, o sistema de roça amazônico que não perde o caráter de uma punção na floresta, compensada pelo rodízio). A compensação (necessária a nível de uma prática real) ou reequilíbrio “homem X natureza”, é realizada fundamentalmente através de: a) um escalonamento da produção, obedecendo a ciclos sazonais e implicando num cinegismo de caça-coleta dentro do território tribal, dando-se a regulamentação desse ciclo através de um complexo sistema de tabus. Períodos em que determinada caça, coleta ou pesca é proibida, funcionam como “realimentação” das respectivas espécies (a contenção das forças produtivas humanas através de um “não-trabalho”, permitindo a reposição das forças produtivas da natureza); b) um controle populacional: controle da natalidade através de espaçamento dos nascimentos, uso de anti-concepcionais, abortivos ou mesmo infanticídios (como por exemplo a eliminação de gêmeos). No imaginário, esses infanticídios, – e muitas vezes também o abandono ou matança dos velhos – são entendidos como compensações para com a natureza. Da mesma forma, as mortes “naturais”, que dificilmente são consideradas acidentais, por isso mesmo. Quanto a sacrifício de pessoas adultas, é nas guerras que ele ocorre. Mas as guerras podem – à semelhança da dos Tupinambá seiscentistas – servir para a captura de prisioneiros a serem sacrificados, e Menget aproxima justamente o

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ritual da cabeça munduruku desse rito e do simbolismo tupinambás. O prisioneiro tupinambá era sacrificado como um alter-ego (ou “gêmeo negro”) do seu matador, por isso mesmo ele era previamente adotado pelo grupo captor. A alteridade do prisioneiro não é certamente uma alteridade total. Os Tupinambá do litoral falavam a mesma língua, tinham as mesmas concepções, participavam de um mesmo universo simbólico. Assim, é um “outro”, aliado em potencial, mas inimigo naquele momento, que é sacrificado como “um dos nossos”. Sacrificado, a quem? Evidentemente, é um caçador que deixa de caçar e de comer, e isto pode ser entendido como uma compensação para com a natureza, mesmo porque os seus matadores, vestidos com “enduape” de penas de ema, representam, não somente este ser mítico, como também (lembremos da descrição feita a Huxley por um Kaapor de como os antigos matavam os prisioneiros) a onça que avança sobre a vítima humana. No caso dos Munduruku, as cabeças precisavam ser alheias (p.314), não pertencentes a Munduruku mas, sim, a povos vizinhos cuja língua também era Tupi e com os quais podiam portanto se identificar: “humanos não tão humanos quanto nós mesmos, mas sempre ainda humanos”. O rito de adoção, neste caso, ocorre pós-mortem. “A cabeça, apesar de ser uma propriedade do matador, era coletivizada, reunindo a totalidade mundurucu... Além disso, é notável que a cabeça fosse socializada como Mundurucu e como homem” (p.315)... como cabeça de Munduruku e, portanto, como caçador (e não como mulher, isto é, coletora). O matador, bem como a sua esposa, estão sujeitos a uma série de resguardos que Menget identifica com uma verdadeira couvade, pois justamente, com essa adoção pós-mortem, eles ganharam um filho (que já foi sacrificado por eles). É possível também – seria necessário verificar – que a “primeira fase (que) era a decoração da cabeça (já esvaziada e seca ao sol e/ defumada) – literalmente, “das orelhas”...”(p.315) fosse assim denominada, porque ritual de adoção e ritual de iniciação de meninos (perfuração dos lóbulos auriculares) são talvez intercambiáveis. O matador, que dirige a cerimônia, é chamado de “Mãe da queixada”, isto é “espírito protetor do bicho (“senhora dos animais” ou “mãe da espécie”): dramatiza-se, portanto, a caça de um ser humano pelos bichos, a morte dos bichos (representados pelo queixada) sendo compensada pela morte de um recém-adotado “Munduruku”, numa reciprocidade de trocas negativas). A segunda fase do ritual (“yasegon”, isto é “tirar a pele da cabeça”) consistia em se jogar a cabeça no chão, batendo nela com paus, “para tirar dela os últimos pedacinhos de carne” (p.317). São velhos calvos, chamados “Urubus”, que se encarregam dessa fase. Representam urubus picando a cabeça, tirando dela a carniça que resta... portanto, novamente a idéia de que se trata de um sacrifício à natureza, aos animais... por isso mesmo também a cabeça dá sorte na caça.

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A última fase do ritual parece ser a repetição ou duplicação às avessas da caça à cabeça do inimigo. Aí são jovens de ambas as metades que se precipitam para o mato, perseguidos pelos guerreiros. A classe dos guerreiros, casados, com cabelos compridos, com a cabeça enfeitada, tem o nome de “Dareki”, isto é “Mães do arco”: uma ótima “precaução” simbólica, transformando os arcos (e flechas, obviamente) de simples instrumentos em “bichos” que também têm “mães” ou “espíritos protetores” (que são os homens). Acompanha os “mães do arco” ao mato – mas sem participar da caça – o “mãe do queixada”, tendo a cabeça-troféu debaixo do braço, propiciando assim sorte aos guerreiros. Cada um destes procura caçar um jovem da metade oposta. Ainda que este jovem será adotado pelo seu captor, trata-se certamente de uma caçada e os jovens são, simbolicamente, os bichos caçados. Isto explica também a exigência de abstinência sexual (que é geralmente prescrita ao caçador antes da caçada). Se são as mulheres velhas e as impúberes que preparam o mingau doce de mandioca, porque não pode haver contato com nada que simbolize a reprodução humana (sangue menstrual, esperma), é porque os cativos representam mesmo animais caçados. Em vez de se matar essa “caça”, os “mães dos arcos” adotam “os bichos” e se lhes dá comida vegetal (pois os animais caçados e comidos são predominantemente vegetarianos), e comida sem contato com substâncias reprodutivas humanas. Novamente, portanto, uma dramatização de compensações para com a natureza, e sempre com dupla leitura possível: a) “Mães do arco”, isto é, espíritos protetores de bichos-flechas, caçando seres humanos e, ao mesmo tempo; b) Guerreiros, como o “Munduruku” sacrificado, caçando “bichos-crianças” que, em vez de mortos e comidos, são adotados. A descrição de um outro ritual ligado à caça confirma essa preocupação de um reequilíbrio entre caçador e caça: “Neste ritual, os homens alimentavam os espíritos de cada espécie, e os pajés mexiam nos crânios “para extrair as pontas de flechas e o chumbo dos espíritos”, aspirando por meio de tubos de taquara estes corpos estranhos e nocivos. Cantava-se e dançava-se para as “Mães” de cada espécie. Esta inversão do ritual do troféu – pois este fornecia a alimentação, favorecendo a caça, enquanto aqui se alimentava a “Mãe” da espécie – acompanhava-se de uma caça às almas humanas individuais, realizada pelas “Mães dos animais”: os cantadores da sociedade ritual, especialmente, corriam o risco de terem suas almas roubadas pelas “Mães” dos animais” (p.318). Parece-nos que todos estes rituais – em que os espíritos protetores dos animais estão sempre presentes e em posições centrais – mostram que é nas preocupações mais globalizantes com a reprodução da vida em geral (porque desta depende também a reprodução humana) que se deve procurar a lógica dessa “predação generalizada” e não na guerra entre os homens que, de certa forma, parece estar fundamentada no paradigma venatório.

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Menget chama muito a atenção para o fato desses rituais investirem os homens do controle da produção e reprodução do grupo, como se – através da adoção de um “filho” da metade contrária – a sociedade dos homens pudesse dispensar a colaboração feminina na auto-reprodução. Mas, ao mesmo tempo, a sexualidade, a reprodução efetiva do contingente humano implica numa “agressão” à natureza, na medida em que desta acaba exigindo mais alimento (e – no caso da caça obtida pelos homens – só se o obtém através da morte dada aos animais). Transformarse metaforicamente em “mãe” – tanto “mãe do arco” como “mãe” de alguma espécie animal – resguarda ao mesmo tempo as verdadeiras mães humanas desta área perigosa de trocas simbólicas com a natureza, trocas estas que têm como ponto de partida a morte dada ao animal. Finalmente, vale a pena atentar para o que Patrick Mengel observa a respeito do lugar de destaque que passa a ter a cabeça-troféu na sociedade munduruku: “Todas as Mães, de qualquer nível e aparência que sejam, precisam ser alimentadas com substâncias vegetais suaves (vários mingaus doces) preparadas por mulheres sem contato com sêmen, assim como celebradas por cantos e danças; o troféu, em troca, que tem como mãe um guerreiro, nunca recebe tal tratamento” (p.320). É preciso lembrar que o matador é simbolicamente “mãe do queixada”, portanto um espírito animal, e que é o grupo todo dos Munduruku (todos os clãs de ambas as metades fornecem penas para a decoração da cabeça) que adota como filho o inimigo morto (reduzido à cabeça). Menget continua escrevendo que a cabeça-troféu “está numa posição ritualmente isolada e única: fornece o alimento de caça e pesca sem qualquer contrapartida, favorece a obtenção de filhos sem compensação (ao menos idealmente), e até se reproduz por uma espécie de autogeração – se é verdade que seu último avatar, o cinto de dentes, aumenta as chances do guerreiro portador conseguir uma nova cabeça. No bem regulamentado sistema de transações entre homens e mulheres, entre espíritos e humanos, entre animais espirituais produzindo caças reais e homens reais oferecendo-lhes comidas vegetais femininas, não há lugar para a cabeça e seu dono. Ou melhor, só fica um lugar, o topo do edifício ritual, ou seja, para ousar uma metáfora interpretativa, o sol vermelho (ou branco) do microcosmo mundurucu: produtor absoluto, centro da atenção do grupo e de suas expectativas, regulador último do mecanismo social básico - a hostilidade em todos os níveis. Possui ao mesmo tempo uma função expressiva do corpo social inteiro, tal como a que os velhos – ao mesmo tempo urubus caçando restos de carniça malcheirosa e responsáveis últimos pela boa marcha do ritual da cabeça – tentam reproduzir”(p.320). A comparação com o sol surge a partir de um mito munduruku (relatado por MENGET à página 314) em que as cabeças de dois cunhados se transformam no “sol vermelho” (da seca) e no “sol cego” (da chuva), sendo vermelho e branco os

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nomes das metades munduruku. As duas metades são efetivamente representadas pelos protagonistas do mito, pois são cunhados. Pensamos que este “isolamento” do troféu é porque ele é concebido como uma dádiva (um sacrifício de toda a sociedade munduruku) feita à natureza personificada na “mãe do queixada” (espírito). O dono da cabeça (enquanto homem Munduruku) provavelmente está na mesma situação do matador Tupinambá, que é o único a não comer do prisioneiro morto, declarando textualmente: “da minha carne eu não como”. É muito provável que – encarnando no ritual a “Mãe do queixada” – o dono do troféu dramatize a morte que deu ao inimigo como a sua própria morte, ganhando prestígio e muito, mas transferindo os benefícios decorrentes desta sua dádiva à natureza, para o grupo como um todo. E, por tudo o que foi relatado sobre o ritual, não há dúvida de que a cabeçatroféu é o “sol vermelho” e o “sol cego (ou branco)” ao mesmo tempo: é a sociedade munduruku, hipotecada, por assim dizer, à natureza, para que esta em compensação lhe seja favorável. Aliás, a associação simbólica da cabeça com o sol e também com o fruto (um ser comestível que não come) é bastante generalizado no imaginário mítico americano.

12. O Pouco Conhecimento Nosso Sobre as Sociedades de Caçadores (A respeito de uma entrevista com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman)

Em memória a ODUVALDO BATISTA, jornalista incansável na divulgação da verdade.

Uma edição especial da revista CULT (nº4, ano 15) traz uma entrevista com Bauman, sob o título “O caçador e o jardineiro” (p.37 a 41). É uma pena que sociólogos e filósofos não se aproximem mais das últimas pesquisas antropológicas referentes aos caçadores. É para chamar atenção sobre isso que passamos a analisar (e contestar) as declarações de Bauman. Ele começa por dizer que a metáfora que simboliza a presença humana na era pré-moderna é a do caçador, enquanto que no mundo moderno é a do jardineiro. A principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer, o “equilíbrio natural. A ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e a harmonia da concepção de Deus. (p.38)

Os caçadores realmente procuram defender e preservar o equilíbrio natural. Muitos leigos ainda hoje acham que isso não é verdade. Tanto que num seminário em Macapá (3/10/2001), os biólogos que achavam que os indígenas deveriam ser retirados das áreas de conservação (o que aconteceu inicialmente no sul da Bahia) ficaram muito surpresos quando viram que “121 das 378 áreas definidas (como bem conservadas) coincidiam com terras indígenas” (CARVALHO, M. 2002, p.33). Essa preocupação com o reequilíbrio natural é na verdade uma coerção do próprio modo de produção (vide CARVALHO, S.M., 1985). No entanto, não é característica dos povos de “pensamento selvagem” (aí incluindo-se caçadores e até horticultores de floresta como os indígenas brasileiros) defenderem o seu território de qualquer interferência humana. Assim, os Kaingang só atacaram não-indígenas a partir de quando um plantador de cafezais destruiu uma grande porção de floresta (vide PINHEIRO). Poder-se-ia dar muitos outros exemplos.

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Assim não é verdade que : a única tarefa é perseguir outros caçadores, matar o suficiente para encher seu reservatório. A maioria dos caçadores não considera que seja sua responsabilidade garantir a oferta na floresta para outros, que haja reposição do que foi tirado. Se as madeiras de uma floresta forem relativamente esvaziadas pela sua ação, ele acha que pode se deslocar para outra floresta e reiniciar sua atividade. (BAUMAN)

Embora a guerra entre grupos de caçadores seja realmente comum, não é para eliminar o outro como concorrente; é muito mais comum o motivo ser a vingança e o roubo de mulheres e crianças que, integradas no grupo captor, poderão mais tarde também servir como intermediárias entre os grupos O caçador não mata animais para “encher seu reservatório”, porque ele nem tem reservatório. O que ele mata é apenas o suficiente – e apenas o suficiente mesmo – para alimentar o seu grupo. Quanto a não garantir a oferta na floresta para outros, é só lembrar de Derzu Uzalá (indígena Gold; a história é verdadeira), fazendo com que os militares russos a quem ele estava servindo de guia, deixassem fósforos e outras coisas na cabana abandonada onde pernoitaram, para que outros (outros quaisquer que o Gold nem conhecia...)que aí precisassem pernoitar, tivessem condições de se aquecer. Os caçadores não esvaziam as madeiras de suas florestas. Hoje se sabe que tanto a floresta amazônica quanto a mata de araucárias são em grande parte “antropogênicas”, isto é, os indígenas as aumentaram. Darrel Posey, estudando os Kayapó, mostrou que eles realmente replantam trechos de mata. Os pigmeus do rio Congo, para fazer as suas choupanas, não derrubam árvores, só utilizam galhos já caídos (vide Martin GUSINDE). As árvores são antes tidas como sagradas, e quando se precisa cortar uma, há todo um ritual prévio, pedindo permissão, pedindo desculpas (vide ritual de Yamarikumá do Alto Xingú). Quanto à concepção de Deus dos caçadores, não é bem uma concepção como a dos ocidentais. É antes um “animismo”, como Tylor tinha sugerido e que Descola recentemente “ressuscitou”. Na realidade, como o conceito de propriedade sobre a natureza, que os ocidentais desenvolveram, não existe entre os povos “minimalistas” (no dizer de VIVEIROS de CASTRO), as coisas todas, ou quase todas, ainda têm alma. Para os Guarani, é o corpo do Pai Primeiro (Ñanderuvuçu) que se desdobrou para formar o que chamamos “natureza”: as árvores são os braços desse “pai primeiro”, os galhos floridos são suas mãos. Muitas outras tribos têm essa visão da natureza. Sahlins (2002: p. 578) traduz um texto muito interessante com referência aos Kaluli (Nova Guiné), baseado em Schieffelin(1976):

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Eis como os Kaluli,, das terras altas meridionais da Nova Guiné, falam do início das coisas: Não havia árvores, animais, rios, nem alimento, quando a terra se formou. A terra era inteiramente coberta de pessoas e apenas pessoas. Sem ter abrigo ou alimento, as pessoas logo começaram a sofrer. Mas um homem ergueu-se e ordenou que os outros se reunissem a seu redor. A um grupo de pessoas, disse: “Vocês serão árvores”; a outro: “Vocês serão peixes”; outro transformou-se em bananas, e assim por diante, até que todos os animais, plantas e características naturais do mundo se diferenciaram e se estabeleceram. As poucas pessoas que restaram se tornaram os seres humanos. O nome usado pelos Kaluli para se referir a esse evento indica que eles o concebem tendo como modelo a forma como as pessoas se dispõem nos grupos opostos que se enfrentam nas batalhas de vingança, nos casamentos ou em outros eventos cerimoniais. Constituídos como facções complementares e independentes, esses grupos acabam se envolvendo em trocas recíprocas que resolvem sua oposição. Do mesmo modo, os homens e os seres da natureza vivem em relações recíprocas: não só ou simplesmente num sentido econômico, mas também, considerando sua origem comum, num sentido ontológico, como seres de natureza equivalente. As criaturas também são homens. (2002, p. 578)

Um mito dos Ofayé conta algo semelhante, tendo como protagonistas os irmãos Sol e Lua. Ante a falta de caça e a conseqüente fome dos humanos, o Sol resolve transformar alguns em animais (RIBEIRO). Comenta Sahlins: Mas foi o cristianismo, e antes dele o judaísmo, o primeiro a desencantar a natureza, fazendo dela um mero objeto para a humanidade, muitos séculos antes de sua exploração pelo capital – exploração, portanto, que a religião havia preparado. Ao insistir num hiato absoluto entre Deus e Sua criação, entre as coisas mundanas e a divindade, a tradição judaico-cristã distinguiu-se de um “paganismo” que ela entendia, justamente, como uma idolatria da natureza. Mais adiante, cita santo Agostinho que “censurou inadvertidamente quase todas as outras religiões – inclusive a polinésia, cujos conceitos básicos ele imagina como sendo a “reductio ad absurdum” da idéia “irreligiosa” de que o mundo seria o corpo de Deus. ‘E se assim fosse’, diz ele, ‘quem não percebe as idéias ímpias e irreligiosas daí decorrentes, como a de que, seja o que for que se menospreze, estar-se-á menosprezando uma parte de Deus, e a de que, ao se matar qualquer criatura viva, uma parte de Deus estará sendo morta?’ (...) (2002: 598-9)

Somente nestas últimas décadas, ante a comprovação de que a ação humana está destruindo o planeta, é que a idéia de uma sacralidade da natureza está se insinuando entre nós. E é sob um aspecto materno, para não “colidir” com a imagem de um deus pai quase inacessível lá no alto: é Gaia, a Mãe primeva de todos nós. Voltando a BAUMAN: A p. 40, percebe-se claramente que a analogia feita por Bauman não é propriamente com grupos de caçadores, mas sim com a caça como esporte que, em alguns países era praticada pelos reis, pelos nobres:

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Silvia Maria Schmuziger de Carvalho O problema é que, uma vez praticada, a caça se transforma em compulsão, dependência e obsessão. Atingir uma lebre é um anticlímax que só se torna atraente com a perspectiva de uma nova caça, com a esperança de que esta caça será a mais deliciosa (ou a única deliciosa?). Apanhar a lebre prenuncia o fim de todas as expectativas, salvo se outra caçada for planejada e imediatamente empreendida.

Na década de 80, em Aquidauana, conversando com um Terena que era porteiro da Faculdade, ele me contou que uma vez teve tanta vontade de voltar a caçar, (queria caçar um caitetu) que se embrenhou na mata, ficando nela por mais de um dia. Encontrou pacas, veados e outros animais, mas não os matou. Até que finalmente matou com um tiro um porco do mato. Chegando perto viu que era uma fêmea e que tinha dois filhotes. Acabou levando os filhotes para casa, com grande dificuldade (eles chegaram a fugir, mas ele conseguiu recuperálos). Em casa, não aceitando eles leite comum, teve que alimentá-los com leite em pó (certamente caro para ele, que tinha também quatro ou cinco filhos para sustentar). Essa é a atitude característica dos caçadores indígenas, e não “compulsão, obsessão” de caçar. Assim, o que se pode dizer é que Bauman escolheu mal a comparação que fez entre o homem pré-moderno e os caçadores, por falta de conhecimento sobre os povos caçadores e sobre povos de “pensamento selvagem” em geral. Somente uma alegoria com a caça por esporte é válida.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CADOGAN, Leon. Ayvu Rapita. Textos míticos de los Mbyá-Guarani del Guaíra. São Paulo, USP, FFlCH, Boletim 227, Antropologia 5, 1959. CARVALHO, Marivaldo A. Introdução à práxis indígena. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2002. CARVALHO, Silvia M. “O trickster como personificação de uma práxis”. In: Revista Perspectiva, 1985, (v.8), 177-185 p. DESCOLA, Philippe. Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana, 1998, 4 (1): 23-46 p. GUSINDE, Martin. “Os pigmeus africanos: tipo físico e características culturais”. In: Revista de Antropologia, São Paulo, dezembro 1955, vol. 3, nº2. PINHEIRO, Niminon S. “O mito da ferocidade indígena. Os Caingang e a Estrada de ferro noroeste do Brasil”. In: História, Vol. 12, UNESP, 1993: 155-162. POSEY, Darrel A. Consequências ecológicas da presença do índio Kayapó na Amazônia. In : CAVALCANTI, C. Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. 1995, Recife, PE: Fundação Joaquim Nabuco: 177-194 p. RIBEIRO, Darcy. “Noticia sobre os Ofaié-Chavante”, In: Revista do Museu Paulista, 1951, n.5. SAHLINS, Marshall. Cultura na prática, 2ª adição. RJ, Editora UFRJ, 2002.

13. Uma Discussão do Conceito de “Trickster”

Homenagem póstuma a MAURÍCIO TRAGTENBERG, NORMAN POTTER e FLÁVIO DI GIORGI, nossos amigos desde os tempos de faculdade.

O termo “trickster” tornou-se comum no vocabulário antropológico desde o estudo de Paul Radin dedicado a esta figura mitológica (The trickster. A Study in American Indian Mythology. Londres, Routledge and Kegan Paul, 1956), estudo este acompanhado de comentários de Karl Kerényi e C.G.Jung. O enfoque evolucionista da análise do autor fica claro logo na introdução, na medida em que Radin explicita que os mitos concernentes à figura do “trickster” “belong to the oldest expression of mankind”1. A afirmação é pertinente, desde que se acrescente a ela, uma explicação que, a nosso ver, reside no fato de que, em seus primórdios, toda a humanidade foi caçadora-coletora, e as representações religiosas, dogmatizadas, cristalizam-se de tal forma que os mitos só admitem reformulações (de acordo com novas práticas econômico-sociais), mas não a eliminação pura e simples das entidades do relato mítico original. Assim, acreditamos que não é devido a uma “evolução” da espécie humana, mas devido à substituição de um modo de produção por outros, que as figuras “tricksters” aparecem como as “mais arcaicas” dos panteões de sociedades hoje complexas. E a prova é que o “trickster” domina ainda hoje a mitologia de povos que – até recentemente – foram caçadores-coletores. Outra observação de Radin, logo no prefácio, é que o trickster é identificado freqüentemente com animais, embora não se tratem de “animais de verdade”, pois o trickster não tem traços ou formas bem definidos. Como Egon Schaden (1959) já observou, as entidades míticas – mesmo quando apresentadas como “zoomorfas” – e identificadas com determinado animal – são “antropossociais” quanto ao comportamento. Além disso, os heróis tricksters, na história dos mitos ameríndianos têm, como Proteus ou como Tétis, a capacidade de se transformar em vários animais. Procuramos ressaltar essa característica no artigo “O trickster como personificação de uma práxis”, relacionando-a à multiplicidade de espécies 1. É essa também a opinião de W.Otto, ao afirmar que, quando se examina a genealogia dos deuses gregos, as divindades tricksters correspondem as figuras mais próximas as origens (Cronos, Zeus). Cremos que uma comparação entre a figura de Jeová (o pai) e Cristo (o filho) aponta na mesma direção.

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importantes na economia e na vida dos caçadores-coletores e, de forma geral, nas sociedades simples de horticultores de floresta, multiplicidade cuja importância, em algumas culturas, se expressa também pela organização social em clãs com nomes de animais, plantas ou mesmo fenômenos naturais. A vida é concebida nessas sociedades como um fluxo ininterrupto de energias que – através do alimento, mas também através da transformação pós-mortem em adubo – vai da terra a plantas, de plantas a animais, destes aos homens, e assim por diante. Somente esta concepção leva a comunidade humana a poder pensar em um reequilíbrio de energias entre ela própria e a natureza envolvente, reequilíbrio que necessariamente se expressa ou compõe a própria estrutura dos mitos. Não poderia haver preocupação mais importante para uma humanidade que não tinha ainda alternativa para a economia de “punção” (afinal, a sedentarização e posterior domesticação são extremamente recentes na história humana: têm pouco mais que 10 a 15 mil anos). Uma das observações mais felizes de Kerényi é que o trickster personifica a vida (como “life-spirit”, p.186)2, a personificação da vida no seu sentido mais amplo, se é que entendemos bem Kerényi ou seja, o relacionamento da comunidade humana com o meio envolvente (animal e vegetal) e das espécies entre si3. É por isso que o trickster é ao mesmo tempo – como nota Radin logo no prefácio – criador e destruidor, doador e receptor, o que engana e o que é enganado. Radin observa que o trickster é responsável tanto pelo bem quanto pelo mal. É claro que “bem” e “mal” são conceitos europeicêntricos ou, melhor, de uma civilização mais individualista. Deveríamos especificar de que bem e de que mal se trata: “bem para a humanidade de hoje “/” mal para a humanidade de hoje “/ ” bem para a humanidade de amanhã “/” mal para a humanidade de amanhã, pois muitas vezes ou quase sempre nos mitos, o que pode ser um bem para a comunidade ou alguns indivíduos hoje, acaba sendo um mal para a comunidade de amanhã. Na realidade, a vida dos caçadores-coletores (e mesmo horticultores de floresta) repete em parte as ações empreendidas e sofridas pelo trickster: o caçador engana um animal, com armadilhas (disfarces, imitação de vozes de animais, etc.), e é muitas vezes também apanhado e morto porque não tomou o devido cuidado, porque tomou o reflexo pela realidade, como quando Sitconski toma o reflexo do pescador pelo próprio e acaba sendo morto por este (p.98).

2. Analisando a natureza do trickster, escreve KERÉNYI: “Disorder belongs to the totality of life, and the sprit of this disorder is the “trickster” (p.185). “A desordem pertence à totalidade da vida, e o espirito dessa desordem é o trickster”. 3. “In mythology, we hear the world telling its own story to itself” (KERÉNYI, p.176). “Em mitologia, nós ouvimos o mundo contando a historia dele mesmo, para si mesmo”.

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É muito significativo que, no ciclo mítico Winnebago do Hare (“Lebre”)4, a entidade mítica “Terra” (Earth) apenas ralhe com o herói a cada traição por ele cometida (matando os “irmãos” dela, seus tios), acabando sempre, no entanto, por perdoá-lo, como se tudo não passasse de uma brincadeira insignificante, ou admitindo até que ele fizera bem. Dar morte a um ser – no relato em questão para obter pontas de flechas, que serão as ferramentas vitais para o caçador –, pode parecer, de fato, não tão grave: afinal os caçadores precisam dar morte ao animal para dar vida à comunidade humana. Grave, no entanto, é interferir nos fenômenos naturais, como quando Hare prende o Sol numa armadilha (episódio 13, p.76). É somente então que “Terra” realmente castiga o seu neto (Hare), dando-lhe uma bem aplicada surra. Apenas em mais uma ocasião Hare leva outra surra da avó: é no episódio 21 (p.86). Ele perde os poderes que havia conseguido para os humanos, destes satisfazerem seus desejos sem fazer esforços. Radin (nota 36, p.94) parece admitir que é esta justamente a razão do castigo. É possível, no entanto, que o castigo se deva também ao fato de Hare ter recusado as três mulheres que a ele se ofereceram. Em sociedades simples, parece pouco provável uma moça ser recusada como esposa por ser “bela, porém insuficientemente bela”. Em geral, não há “solteironas” ou “solteirões” em sociedades indígenas, e a beleza física (mesmo que se pense obviamente na relatividade desse conceito que varia de grupo para grupo e através do tempo) pode não entrar em conta. Parece, portanto, que o trickster foi castigado por não ter respeitado as três primeiras moças que se lhe ofereceram, e não ter respeitado também a quarta, pois com esta ele teve relações incestuosas, desobedecendo as normas estabelecidas. Hare, enquanto animal (“Lebre”) é extremamente prolífero, sendo por isso um dos poucos animais que podem ser caçados durante o ano todo e, por isso mesmo, ligado a uma simbologia de morte e ressurreição (como o é também a lua5 em oposição ao sol). Enquanto herói antropossocial, porém, Hare assume um comportamento sexual6 inverso ao de Hare animal (a lebre) e ao Trickster (Wakdjunkaga), cujas aventuras incluem desde relações sexuais “extra-corpo” (Trickster mandando seu pênis através do lago para copular com a filha do chefe, episódio 16) até – tendose disfarçado em mulher – homossexuais (episódio 20). 4. Part II, pp. 63-96. 5. Acreditamos que esta é a razão pela qual em culturas tão distantes no tempo e no espaço, quanto a chinesa e a centro americana, a lebre é associada à lua, assim como, num folclore cristão, o é à Páscoa. 6. Além dessa relação incestuosa com a quarta moça, que parece corresponder, segundo RADIN, a um espírito aquático, Hare mantém relação sexual com a própria avó (Terra), relação portanto também incestuosa.

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Radin já tinha notado essa diferença de comportamento sexual entre as duas figuras míticas winnebago. Além disso, as lutas que Hare empreende, desde o início do relato, contra os “Grandes Espíritos” irmãos da avó (Terra) resultam todos em benefício para os homens: as flechas e as penas mágicas7, o tabaco (usado em rituais religiosos, sociais e de cura), as pontas de flecha de pedra, uma espécie de peixe em que Wakdjunkaga transformas as cabeças antropofágicas, etc; a partir do episódio 12 (matança da Formiga Gigante), a própria avó Terra começa a ajudar Hare8. Ao longo destas ações, Hare passa a ter, pouco a pouco, definidos os seus traços animais. Quando “Terra” o repreende, após a matança do primeiro dos “tios” (que acaba por se revelar um horrível Gafanhoto, realmente uma praga em potencial para as lavouras, assim como o é a Formiga), ela o identifica como o de “olhos grandes”. Na matança seguinte, ela acrescenta o epíteto “de orelhas grandes ou longas” e, finalmente, o de “patas grandes”. No episódio 10, ele racha o nariz (adquirindo “lábios leporinos”) e no episódio 13, o contato com o Sol lhe confere “fundilhos queimados”9. Comparadas às atividades de Hare, as do trickster Wakdjunkaga se apresentam muito mais como um aprendizado, nem sempre bem sucedido, de técnicas de caça. Além disso, de glutão (simbolizado pelo intestino longo demais) e de “desabusado” sexual, ele passa a se tornar, no final do relato, um “ser humano normal”, preocupado com o bem estar da humanidade, matando todos os seres por demais perigosos aos homens e deixando para estes últimos uma Terra habitável. Radin (Cap. 5 da Parte III – “The Winnebago trickster figure” – p. 132 e segs.) lê o ciclo mítico do trickster como um relato de evolução psíquica dessa entidade, leitura com a qual Kerényi não concorda muito: I must confess that I have not been able to discover, either in the Winnebago trickster stories or in any other archaic narrative or its dramatic representation, any such 7. As flechas – é verdade – ele as obtém e depois consegue fabricar ele próprio, ao se tornar vítima (não fatal) do Homem (o “ser que caminha sobre duas pernas” – “Beeing walking on two legs”); as penas mágicas, após ser raptado por uma águia que o deposita no seu ninho (obviamente para servir de alimento aos quatro filhotes que Hare, entretanto, mata, utilizando a pele de um deles para se transformar em ave e assim escapar voando). 8. Ajuda involuntária, porém, no episódio seguinte (13) em que Hare acaba por prender o Sol, numa armadinha feita com os cabelos da Avó. Já no episódio em que ele é engolido por outro dos Monstros do relato, a Avó o ajuda, fazendo com que o Ser engolidor o vomite. Hare é ainda arrastado por mais duas vezes ao estômago do monstro e na quarta vez ele se deixa engolir voluntariamente. Ainda que assim o faça para depois atacar e matar o monstro cortando-o por dentro, neste episódio Hare parece demonstrar que adquiriu um certo domínio sobre a própria morte, o que sugere um esquema de iniciação xamanística. 9. Completa-se, assim, a sua transformação em lebre; sendo que a capacidade de transformarse em animal é o poder que têm os xamãs.

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thing as the ‘inner development’ of the hero. Gods and primitive beings have no inner dimension, and neither have heroes, who inhabit the same sphere. (p.184)10

Para Kerényi, o arcaísmo dos relatos sobre o trickster é mais uma questão de estilo literário/cultural (p.182) e o autor traça paralelos entre eles e as farsas dóricas da Itália meridional (as “phlyakes”). É preciso no entanto observar que, ao negar dimensão interior a deuses e a heróis, Kerényi está se referindo a conceitos que foram historicamente construídos na nossa civilização ocidental e que são portanto resultado de uma visão especifica do mundo e da sociedade ocidental tal qual ela se apresenta nestes últimos séculos. Nada leva a crer que o trickster seja um “herói” no sentido ocidental do termo, assim que não se pode descartar a leitura de Radin no que se refere aos ciclos míticos winnebago (“The Winnebago trickster cycle” e “The Winnebago Hare cycle”). Radin destaca as etapas de um processo de lenta socialização, de um estado de consciência (de um trickster “mentalmente criança” que não percebeu ainda que mão esquerda e mão direita são ambas as partes de sua pessoa), para um estado de autoconsciência, de reconhecimento de sua própria estupidez, até que – assumindo cada vez mais a fisionomia de um verdadeiro ser humano – o trickster passa a se preocupar com o bem estar da humanidade, finalizando por tomar as características de divindade e criando para os seres humanos o Rito Medicinal11. Acreditamos que essa leitura de Radin não é propriamente equivocada, desde que se tome o relato como metáfora para algo mais complexo. A nosso ver, ainda que o relato possa ser ouvido pela assistência como uma estória tão somente burlesca, a estrutura dela é tal que, para pessoas iniciadas ela pode ter uma outra leitura, como relato que parece corresponder a um processo de iniciação social, no caso do ciclo do trickster, e de iniciação xamânica, no caso do ciclo de Hare que, segundo comentário do narrador, é o espírito responsável pelo mundo em que vivemos (p.53)12. Não é mais segredo hoje – até para quem não é etnólogo, mas leu os livros de Carlos Castañeda – que as velhas culturas americanas reconheciam e reconhecem 10. “Preciso confessar que não fui capaz de descobrir, tanto nas historias de trickster vinebago quanto em qualquer outra narrativa arcaica ou a sua representação dramática, algo como “o desenvolvimento interior” do herói. Deus e seres primitivos não têm dimensão interna nem a tem os heróis que habitam a mesma esfera. 11. Nas palavras de RADIN: “The evolution of a Trickster from an undefiened being to one with physiognomy of man, from a being psychically undeveloped and a prey to his instincts, to an individual who is at least conscious of what he does and who attempts to come socialised” (p.135). “A evolução de um trickster desde um ser indefinido para um com fisionomia de homem, desde um ser psiquicamente não desenvolvido e preso de seus instintos para um individuo que finalmente esta consciente do que faz e que tenta se tornar socializado”. 12. O informante de RADIN, em 1912, foi San Blowsnake, um Winnebago do clã Thunderbird, mas o narrador foi um Winnebago mais idoso, não identificado, pois aparentemente Blowsnake não tinha o direito de contar um mito sagrado (“a sacred one”) para um estranho e homem branco (vide p.111).

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vários níveis de profundidade de compreensão do mundo, da mesma forma, aliás, que outras culturas tradicionais, como por exemplo a cultura Banto13. Para dar somente um exemplo de uma leitura aprofundada do relato do mito do Trickster, examine-se com atenção o episódio que Radin reconhece como prova da “evolução” de Wakdjunkaga: a redução do pênis do herói (p.142) e a transformação dos pedaços cortados ou roídos pelo esquilo – depois de jogados na água – em plantas comestíveis. Numa sociedade em que uma sexualidade exagerada pode produzir um desequilíbrio entre o mundo humano e a natureza, pela multiplicação demasiada dos seres humanos, o controle dessa sexualidade (metaforicamente representada pela redução do órgão) redunda em menos gente e mais alimento. Não era muito diferente a concepção dos iniciados nos mistérios eleusinos, quando se abstinham de relações sexuais durante o inverno14. Ao contrário do Trickster Wakdjunkaga que se excede sexualmente e precisa aprender a se controlar, Hare aparece como tendo apenas duas vezes relações sexuais, em ambos os casos relações incestuosas. E com seres que não são propriamente humanos: no primeiro caso, com a avó, “Terra” (e não por acaso, Hare aí se apresenta como um personagem de um olho só, um dos atributos de personagens lunares), e depois com uma mulher misteriosa que logo desaparece e que Radin identifica com um “espírito das águas” 15. Terra e água, portanto, aparecem como espíritos-esposas mais para o fim do relato, enquanto no início dele (episódio 4), Hare – raptado por uma águia branca (ele próprio sendo definido como “Lebre branca”) – se transforma em pássaro, vestindo a pele de um dos filhotes-águias brancos que ele “acaba de matar”. Há ainda a observar que, enquanto Wakdjunkaga é mencionado como pai de filhos, as relações de Hare são aparentemente estéreis. Por fim, é ainda importante ressaltar o comportamento de Hare no episódio 23 (p.90), em que ele pretende que o gênero humano viva para sempre. É “Terra” que não concorda: “I have been created small and if all the people live for ever, they would soon fill up the Earth. There would then be more suffering that there is now, for some people would then always be in want of foud if they myltiplied greatly. That is why everything has an end. (p.90)”16. 13. Veja-se a respeito o artigo de Jacqueline ROUMERGUÈRE-EBERHAEDT (1993). 14. Inverno é a época do ano em que, ao menos na Europa, “o corpo de Dionyso não cresce”. 15. Nota de RADIN nº57, p.95: “This description might fit either a night-spirit-woman. It is, however, clearly a waterspirit-woman here for only they are supposed to be superlatively beautiful”. “Esta descrição pode se referir a uma mulher espírito da noite. Trata-se contudo claramente aqui de uma mulher espírito da água, porque somente estas são consideradas superlativamente belas”. 16. “Fui criada pequena – diz ela – e, se todo o povo viver para sempre, logo a terra estará lotada. Haverá, dessa forma, mais sofrimento do que agora, pois muitos seres humanos não terão alimento suficiente se eles se multiplicaram em demasia. E é por isso que todas as coisas terão que ter um fim”

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Hare reage a essa decisão da Terra com muita tristeza, pega seu cobertor, cobre-se com ele e chora, deitado a um canto. E é em seguida a esse incidente que ele cria o “Rito Medicinal” (p.90). Percebe-se, assim, que – como, aliás, o trickster de forma geral, Hare está comprometido, tanto quanto “Terra”, com o bem estar da humanidade. Neste ciclo, Hare e Earth dividem entre si os mesmos papeis que em outros ciclos míticos, são desempenhados por Old Man e Old Woman (mitologia dos Blackfoot, pg.127) ou por heróis gêmeos ou heróis companheiros (como, por exemplo, Pud e Pudleré dos Krahó): quando um deles exacerbara nos dons positivos ou negativos, o outro corrige. Na realidade as condições de vida na Terra não devem ser, segundo essa filosofia original e sábia da humanidade, nem fáceis demais para os seres humanos (viver eternamente, viver sem nenhum esforço não é bom, não é um bem), nem terríveis demais (viver sempre em busca de alimento, enfrentar animais monstruosos, quase invencíveis, como os que Hare mata ou desloca no espaço, para que não possam molestar os homens...); mas para isso é preciso que haja um equilíbrio e a morte tem que ser aceita. Da análise de Kerényi já ressaltamos a identificação que ele faz do “trickster” como “life-spirit” (“espírito da vida”). Outra observação interessante – que o aproxima de Lévi-Strauss – é que “em mitologia, nós ouvimos o mundo contando a história dele mesmo a sí mesmo (p.176)”. Já ao estabelecer paralelos entre os tricksters americanos e os da mitologia clássica (particularmente Hermes), Kerényi (p.183/3) nega que Hermes possa ser considerado, como quer N.O.Brown, (em “Hermes the Thief”) um “mágico” e que a herma (“ithyphallic herm”) possa ter um caráter apotropáico (guardando a fronteira). Ele acha mesmo que “there is no evidence that the profession of medicine-man even existed at the remote mythological period when the trickster held sway”17. Sabemos, contudo, por pinturas parietais paleolíticas, que a especialização de médico-feiticeiro ou, mais corretamente, xamã, deve ser uma das mais arcaicas da humanidade. Ao mesmo tempo que Kerényi percebe que, para a análise de monumentos sem textos, como os menhires e as hermas, seria importante ter acesso aos conhecimentos dos iniciados, pois “only those who had been initiated into the Cabiric mysteries of Samothrace knew the sacred story of the icthyphallic herms”18 (p.183). 17. “Não há evidencia de que a profissão de homem-medicina existiu mesmo neste período mitologico remoto em que o trickster dominou”. 18. “Somente os que foram iniciados nos misterios cabiricos da samotrácia conheceram a historia sagrada das hermas ictifálicas”.

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Além de aproximar Wakdjunkaga à figura de um Hermes Hercúleo (ou a um dos Dáctilos ideanos de natureza fálica que também era conhecido por “Heracles” – nota, pg.186), Kerényi segue Petazzoni (Paideuma, 1950), e aproxima o trickster também da figura do coyote, como “senhor dos animais” e, mais especificamente ainda da figura da aranha, salientando que o trickster winnebago fica a meio caminho entre esta (“trickster” por excelência do mundo animal) e Hermes (o “trickster” divino). Kerényi finaliza a sua análise, enfatizando as diferenças entre Wakdjunkaga (herói que, para ele, personifica o eterno estágio Philax) e o “divino” Hermes (o qual, no entanto, a julgar pelo hino Homérico a Hermes, só foi elevado à categoria de deus olímpico “a posteriori”). Esta insistência nas diferenças entre um deus (no conceito grego do séc. V A.C.) e um personagem mítico ameríndio, faz com que Kerényi termine por identificar o trickster americano como um “espírito da desordem”, o que o distanciaria de Hermes que – embora também trickster – seria um “espirito da ordem” . Queremos mostrar que, na medida em que os tricksters americanos – assim como os tricksters em geral, em maior ou menos grau – são instituidores do reequilíbrio na natureza (entre os seres humanos e o seu meio ambiente) eles também são “espíritos da ordem” (uma ordem não humana, uma ordem necessária à continuação da vida, que o homem civilizado não mais entende como “ordem”). E aí está uma questão que nos levaria a repensar mais um dos nossos conceitos: ou no Universo nada tem ordem ou – como querem alguns físicos atuais – também o Caos tem uma ordem. Pode-se retomar aqui uma observação de Kerényi, quando ele discute a natureza do trickster como o “espírito da desordem”, “o inimigo de alianças”19: “A desordem pertence à totalidade da vida, e o espírito desta desordem é o trickster.”20 A percepção da vida como uma totalidade, da vida humana como apenas mais uma – porquanto muito importante – das vidas necessariamente a preservar na face da Terra é fundamental justamente à reprodução do modo de produção que 19. p.185: “the spirit of disorder, the enemy of boundaries”. (“O espírito da desordem, o inimigo das alianças”) 20. “Disorder belongs to the totality of life, and the spirit of this disorder is the trickster. His function in an archaic society, or rather the function of his mythology, of the tale told about him, is to add disorder to order and so make a whole to render possible, within the fixed bounds of what is permitted, an experience of what is not permitted.” (p.185) (“A desordem pertence a totalidade da vida, e o espirito desta desordem é o trickster. A sua função numa sociedade arcaica, ou antes a função da sua metodologia, da historia contada sobre ele, é juntar ordem a desordem, fazendo assim um todo para tornar possivel nos limites fixos do que é permitido, uma experiência do que não é permitido”).

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Meillassoux chamou de “cinegético” ou “de punção”, e que caracterizou toda a humanidade primeva. O comentário de Jung é igualmente interessante. Chama a atenção para a semelhança entre o trickster e certos personagens bufões das histórias do folclore europeu (como Hanswurst) e a atmosfera de certas festividades populares medievais que chegaram aos tempos modernos, como por exemplo o “festum asinarium”, celebrado principalmente na França. A esta questão voltamos adiante. Para Jung, é claro, o “trickster” é um arquétipo ou, como ele o define (p.200) um “psicologema”, “an archetypal psychic structure of extreme antiquity. In his clearest manifestations he is a faithful copy of an absolutely indifferentiated human consciousness, corresponding to a psyche that has hardly left the animal level”21. Parece-nos complicado admitir que o trickster dos relatos míticos represente uma consciência correspondente a uma psique que mal ultrapassou o nível animal. O mito é, antes de mais nada, um relato e, ainda que a autoria desse relato seja reconhecidamente – não de um indivíduo – mas de uma coletividade, o mito não é contado na primeira pessoa do singular, ou no caso do plural, isto é: não se trata de um trickster ou de um “nós” contando as suas próprias aventuras22. O fato do contador de mitos referir-se ao trickster como um personagem que não é ele próprio, cria de qualquer forma um distanciamento entre contador e historia. Mesmo que na visão de Jung este distanciamento possa ser interpretado como consequência de uma repressão, isto é, como projeção para uma figura mítica que não o eu/nós, não se compreende por que, nesse caso, o mito teria que ter uma determinada estrutura, respeitar uma determinada sequência de episódios, resultando nas marcantes semelhanças (-que tanto espantaram Radin) entre os mitos de trickstrs de povos muito diferentes, como os índios das pradarias centrais e os do Noroeste americano. Que esse trickster, essa “collective shadow figure” possa povoar os sonhos de índios e não-índios nos parece inquestionável. No entanto, justamente entre indígenas norte americanos (as sociedades das planícies centrais) os próprios sonhos aparecem como bastante domesticados pela cultura (se é que podemos nos expressar dessa forma). Se existe esse controle sobre os sonhos, por que tudo o que concerne ao trickster teria que se cristalizar nos mitos como uma psique coletiva proto-humana?

21. “...uma estrutura psiquica arquetipica de extrema antiguidade. Nas suas manifestações mais claras, ela é uma copia fiel de uma consciência humana absolutamente indiferenciada, correspondendo a uma psique que mal deixou o nivel animal”. 22. Cremos que esta afirmação não fica invalidada, mesmo quando esporadicamente podem acontecer fatos como os presenciados por LÉVI-STRAUSS e contados em “A farsa do Japim” – (in Tristes Trópicos).

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Cremos que, pela própria vivência e pela necessidade a que obriga essa vivencia tão próxima aos outros seres vivos do planeta de que depende a continuidade da comunidade, os indígenas (caçadores-coletores, plantadores de roça e pescadores) conhecem muito mais da psique humana (e também animal) do que nós podemos supor. Veja-se apenas um exemplo: Entre os Baniwa do Alto Rio Negro, quando o jovem toma pela primeira vez o yagé (ayahuasca), ele tem a visão de uma onça que, ele o sabe, sai dele mesmo: é o seu alter-ego ou seu “id”. Depois dessa iniciação ele se tornará um caçador. Ele terá que ser como a onça que ataca e mata outros animais, mas terá que ter controle sobre essa “onça” que é ele mesmo: o ritual se chama por isso mesmo “Cariamã”, cuja tradução é “domar a fera” (MONTEIRO). Tudo isso parece muito próximo a um conhecimento de Freud. Não há de ser, assim, o mito que fugirá ao controle do grupo. Ele é um veiculo de integração precioso demais para que uma figura psíquica do inconsciente nele domine. Alias, Lévi-Strauss já demonstrou nos quatro volumes dos Mithologiques e nas obras que os seguiram, o quanto há de puro intelecto nos mitos, decomponíveis em vários códigos diferentes (astronômico, culinário, etc. etc.) É preciso, portanto, ver no “trickster”, acima de tudo, a expressão de conceitos culturais. Seria talvez mais interessante aproximá-lo, na sua caracterização de bufão, do conceito de liminaridade de que fala Turner em “O processo ritual”. O afastamento do trickster de tudo o que foi estruturado pelos homens (itens primeiros do Ciclo do Trickster Winnebago, referente à festa e aos preparativos da expedição guerreira) e o entendimento que ele passa a ter com todos os seres da natureza, seus “irmãos”, parecem corresponder, nesse ciclo, à expressão inicial de anti-estrutura muito mais que à expressão de “traços inferiores de caráter”. A ideia de um “outro mundo” (ou um “mundo paralelo”) como o avesso do “mundo humano de agora” (ou do mundo coetâneo, vivido pela comunidade) é uma ideia bastante generalizada em sociedades simples. Esta categoria de “avesso” pode mesmo irromper na vida tribal como uma válvula de escape para inconformados com o modelo que se lhes é apresentado pela cultura. Assim, sociedades indígenas das pradarias norte americanas reconheciam a categoria dos “contrários” (jovens que se declaravam rebeldes às normas, agindo de forma inusual, por exemplo, montando a cavalo ao contrário, lavando-se com areia em vez de água, etc.). O “avesso” pode, inclusive, aparecer como comportamento ritualmente estabelecido em cerimônias funerárias23, nada autorizando ver nesses ritos qualquer tipo de deboche. O “avesso” tem nesses

23. Durante o Oyne Kobéwa, repentinamente dois personagens bufos entram em cena, fazendo a assistência eclodir em gargalhadas. (Irving GOLDMANN ).

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casos que ser entendido como um grande “rir cósmico” a lembrar que a vida é transitória para todos os seres vivos, e que nem há tristeza que sempre dure, nem alegria que nunca acabe. Outras situações em que o “avesso” ou a anti-estrutura irrompe no mundo organizado foram apontadas por Max Gluckmann (Order and Rebellion in Tribal Africa) e pelo próprio Turner, que nelas inclui fenômenos da civilização, como São Francisco de Assis, o Carnaval e até movimentos artísticos como o de Bob Dylan. Podemos assim voltar a Jung, que identifica o trickster como “sombra coletiva” (“collective shadow”)24 e propõe a sombra pessoal como decorrendo em parte de uma “figura numinosa coletiva” (p. 202). Como, em Van Gennep, o “momento” (momento, por assim dizer, fora do tempo) “numinoso” é identificado por Turner com a “liminaridade” ou anti-estrutura, pode-se propor que esta “figura numinosa coletiva” ou “collective shadow” que o trickster é para Jung, seja entendida simplesmente como figura liminar ou anti-estrutura, conceito que evita a noção pejorativa de uma definição evolucionista como a de Jung. Isto não significa, contudo, descartar um enfoque histórico, enquanto explicação ligada à visão do mundo de caçadores-coletores, uma visão de mundo que foi, nos seus pontos fundamentais, comum a toda a humanidade paleolítica. Esses pontos fundamentais – como esperamos ter demonstrado nessa releitura de Radin – correspondem a uma filosofia do reequilíbrio entre a comunidade humana e a natureza. E é, pois, por este motivo que consideramos a figura do “trickster” a personificação da práxis original da humanidade. Dentre os autores mais recentes, é T. O. Beidelmann (1971), com estudos sobre os Kaguru da África, que mais tem insistido na necessidade de uma rediscussão do conceito de “trickster”, sugerindo, mesmo, que se abandone o termo25. Por outro lado, Sabatucci nega26 que uma sociedade qualquer conceba como próprias de seu panteão entidades ambíguas como as que chamamos “tricksters”.

24. “The trickster is a collective shadow figure, an epitome of all the inferior traits of character in individuals. And since the individual shadow is never absent as a component of personality, the collective figure can construct itself out of it continually. Not always, of course, as a mythological figure, but, in consequence of the increasing repression and neglect of the original mythologies, as a corresponding projection on other social groupes and nations” (p.209). (“O trickster é uma figura sombra coletiva um epitome de todos os traços inferiors de carater nos individuos. E como a sombra individual nunca esta ausete como a figura coletiva pode construer a si mesma for a da sua continualidade. Com tudo nem sempre como uma figura mitologica, mas em consequência da represão crescente e negligenciada da mitologia original, como uma projeção correspondente a outros grupos sociais e nações”). 25. A discussão precede a análise que Beidelmann faz das características dos personagens tricksters dos Kaguru, que são tricksters animais (lebre, hiena). 26. Comunicação pessoal (1989).

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Achamos que eliminar o termo não resolve o problema, se não soubermos exatamente com o que estamos lidando; e não é um levantamento exaustivo de todas as características comumente associadas às entidades ambíguas que nos dará a chave desse problema. Cremos que a chave se encontra, realmente, na compreensão da essência do “pensamento selvagem”. A liminaridade das entidades “tricksters” indica que elas são mediadoras entre os dois mundos: o humano (“cultura”, para Lévi-Strauss) e o mundo “outro” (“natureza”, para Lévi-Strauss). Mas qual é o motivo maior que exige essa mediação? É o reestabelecimento do equilíbrio, rompido freqüentemente pelas mesmas entidades tricksters... Nas sociedades humanas pré-agrícolas (e todas o foram há não muito tempo atrás) todo o sucesso do modo de produção depende dessa preocupação com o equilíbrio entre o homem e a natureza, obtido por um sistema complexo de tabus, pelo próprio cinegismo (escalonamento da produção) e pelo controle populacional. Portanto, a quebra de um tabu que, para as sociedades complexas pode não representar absolutamente nada, como arrancar uma flor ou um fruto ainda verde, é algo realmente grave para uma sociedade de caça e coleta, e pode ser entendido pelos seus membros como uma transgressão passível de um castigo tão severo quanto o seria um assassinato premeditado na nossa sociedade. E o próprio sacrifício de um indivíduo pertencente a este mesmo grupo pode ser entendido pela sociedade de caça-coleta como um “dom” necessário, pago à natureza para que o reequilíbrio se restabeleça. Se o trickster aparece como agente desse (re) equilíbrio, certamente a liminaridade ou os “atributos liminares” desse personagem não significam que ele esteja à margem da sociedade ou da cultura, como bem observa Beidelmann (p.32), mas justamente que esta entidade é capaz de passar de um mundo (o humano) para o outro (da natureza), a fim de avaliar e consertar os desequilíbrios. Sua natureza, muitas vezes meio animal, meio humana, corresponde muito menos a uma concepção de unidade da vida no planeta (no sentido de uma “participação” do todo) do que à noção de que se trata de uma entidade que pode se transformar em um animal ou em vários (como o Proteu grego), sendo nesse sentido o modelo imaginário do xamã. Beidelmann pode ter razão em observar que o fato das historias representarem animais agindo como seres da aldeia (seres zoomorfos, mas antropossociais, no dizer de Schaden) serve para estabelecer uma distancia social, para que se possa pensar em situações de outra forma difíceis de se tolerar (matricídio, fratricídio, roubo, canibalismo e crueldade para com parentes e vizinhos, de acordo com os exemplos dados pelo próprio Beidelmann), mas isto nos parece mais uma consequência ou uma forma de utilização pela sociedade, não porém a sua razão de ser. A razão de ser dessa representação é se saber que a vida depende da morte

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de outros seres (animais e vegetais) e que a morte é a mola mestra das correntes de reposição energética. Neste sentido, a vida no planeta não é entendida como um fluxo ininterrupto de energias que tudo repassa, de forma caótica, mas sim como um fluxo de energia entre mundo humano e mundo da natureza, que pode e deve ser controlado pelos seres humanos. Ser humano que se transforma em animal ou animal antropossocial são representações que, a nosso ver, não visam eliminar a oposição entre cultura e natureza, mas que visam lembrar que a vida humana depende das “estruturas alimentares” e que uma forma de voltar à comunidade humana após a morte é – como nas crenças esquimós – voltar como alimento, na forma de um animal que, assim, jamais deve ser desrespeitado. A estrutura, obviamente, representa sempre o ideal. De certa forma, numa economia de punção, é preciso existir a ideia de um equilíbrio entre a comunidade e a natureza, como uma situação ideal que deve continuamente ser recriada. E é nesse contexto que deve ser entendida a figura que se convencionou denominar “trickster”. Claro está que a ambigüidade que a caracteriza é muito mais uma projeção dos nossos valores ocidentais e cristãos (a importância que o individual ganhou na nossa cultura, a ideia de que um erro involuntário não pode ser castigado, que “inocentes” não podem pagar pelos “pecadores”, etc.). Um descuido que põe em perigo todo o grupo, mesmo que não seja o povo de hoje, mas o de amanhã ou o de depois de amanhã, aparece no mito sendo castigado severamente pelo “trickster”, às vezes recaindo o castigo sobre o infrator, outras vezes sobre a comunidade inteira. Na nossa lógica é uma ação “trickster” (como talvez a ação de Jeová castigando com a morte o carregador da arca que, escorregando, a tocou). Mas na lógica do “pensamento selvagem”27 é uma representação forte e necessária, didática, na medida em que, numa sociedade de transmissão oral, o modelo religioso é a melhor escola. “Pequenos deslizes” no entender de uma sociedade complexa, que acumula e desperdiça, são faltas gravíssimas numa sociedade de caça-coleta, e o ser humano adulto não as deve, não as pode cometer. É por isso mesmo que Don Juan disse a Castañeda (1972; 66) que o caçador foi o melhor homem que passou por este mundo, tanto assim que os seus pés não deixaram marcas na terra (...).

27. O “pensamento selvagem” não caracteriza somente caçadores-coletores, mas também horticultores de floresta, uma vez que o sistema de roça é muito mais uma “punção” na floresta do que uma plantação continuada, sistemática.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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14. As Transformações do Trickster Homenagem póstuma a EMIL SCHLAEPFER, nutricionista e cientista autodidata, que conviveu com os Munduruku na década de 1920, e me transmitiu, quando eu era criança, a admiração que sentia por eles. No fim da última glaciação, as geleiras descendo das altas calotas de gelo, formaram lagos, ao se derreterem em baixas altitudes. Assim se formaram os lagos dos Alpes. Com o aquecimento global, os grandes animais caçados se retraíram para o norte. Os últimos mamutes foram morrer na Sibéria. E as renas se mudaram para o que hoje é Noruega e Finlândia, seguidas por uma parte dos celtas dos Alpes, que hoje conhecemos como lapões. A população que ficou na região dos Alpes passou a se alimentar muito dos peixes que, nesses lagos de água gelada, eram abundantes. O povo passou a fazer casas sobre palafitas, nas bordas dos lagos,com pontes para a terra firme, que podiam ser retiradas à noite, para que predadores não entrassem na aldeia. É assim que, quanto ao instrumental da cultura material, se passa do macrolítico para o microlítico:anzóis, flechas e arpões menores. Naturalmente não se deixava de caçar, mas já não eram animais tão grandes. E, ao fim do dia, se voltava à segurança da aldeia. Nas Américas também ocorre, em tempos diversos, uma sedentarização em torno da pesca; por exemplo, nos lagos do México onde, além de peixes, em certas épocas do ano, apareciam aves migratórias. Na América do Sul, sabemos que às margens do golfo de Maracaibo, já havia uma população sedentária 15.000 anos A.C. (SANDERS e MARINO, 1970). Nos estuários de rios que correm dos Andes para o litoral do Pacífico (banhado por corrente fria), também se sedentarizaram populações que, no movimento migratório de Norte a Sul, não puderam ou não quiseram atravessar o deserto de Arica. Também na Amazônia há a fixação em margens fluviais. A pesca exige muito menos tabus que a caça. Pode-se pescar o ano inteiro, desde que se respeite a piracema e não se pesque nos lugares de reprodução dos peixes. Os pescadores tradicionais chegaram até os dias de hoje. Seguem de perto a ideologia da caça: se arrastam um peixe para fora da água, não o fazem sofrer agonizando; matam-no com um golpe certeiro na cabeça. E, se pegam peixes ainda pequenos, os devolvem às águas. Mas de qualquer forma, não há a mesma preocupação que existe com a caça, uma vez que os peixes põem centenas de

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ovas, e se reproduzem assim muitíssimo, ao contrário da maior parte dos animais terrestres que procriam uma vez só por ano e têm às vezes apenas dois filhotes. A observação da vida dos peixes certamente contribuiu para que as famílias passassem a ter mais filhos, isto aliado às maiores facilidades de uma vida sedentária. Assim que se pode esperar que o trickster se adoce na figura dos peixes. É verdade que o jacaré é tido, entre muitos indígenas, como o dono dos peixes, e isto se reflete na cerâmica arqueológica marajoara.No entanto, no Alto Xingú se faz uma festa para ele, homenageando-o com mandioca jogada no lago, e fazendo de conta que os peixes são os “piolhos” do jacaré (AGOSTINHO, P. Kwarip, “Mito e Ritual no Alto Xingu”. SP, E.P.U./ EDUSP 1984). Pescá-los, portanto, seria um favor prestado ao trickster, assim “amansado”. Realmente, parece que o senhor dos peixes se deixa amansar. Parece significativo que para os Gavião–Ikolen, os “dzerebãi” que vivem na floresta e podem se transformar em animais são os mais perigosos e são certamente os espíritos da caça. Os “zagapuyo” cuidam das frutas, das arvores da floresta e ficam bravos quando se corta a mata. Mas os “goihanei”, que moram debaixo da água costumam vir às festas dos Gavião e dançam com eles. São espíritos amigos. (Betty – MINDLIN, Couro dos Espíritos, Terceiro Nome/ SENAC, 2001, respectivamente, p. 134; 141). Jurupari (do Alto rio Negro) só pode ser apanhado quando na forma de um peixe, e isto, com um covo feito de cabelos de mulher (as mulheres participam na pesca). Loki, o trikster escandinavo, também somente é capturado quando se transforma em salmão. E, entre os Dogon, um dos ancestrais peixes se deixa crucificar, para pagar os “pecados” do “Renard pâle”. Finalmente, é preciso lembrar que os apóstolos de Cristo eram pescadores, e o peixe era, no início do cristianismo, o próprio símbolo de Cristo. Não queremos nos estender nessa questão aqui, mas seria muito interessante fazer um levantamento nas diversas mitologias, para mostrar como a pesca acabou por modificar bastante a ideologia. Outro “senhor dos peixes” é o boto. Segundo os Gavião-Ikolen “...quando a gente dorme na beira do rio o boto aparece, vira mulher para os homens, homem para as mulheres. É o boto agapi”1. Mas o boto não aparece tanto na mitologia dos indígenas amazônicos, que pescam principalmente nos lagos e rios na época da “seca” (quando as águas se retraem). O boto existe nos rios profundos, e é bem conhecido dos pescadores tradicionais da Amazônia. Acompanhando os enxames de peixes de que se alimenta, o boto chega a guiar os pescadores. Em 1983, em Humaitá, uma jovem aluna me contou que ela conheceu um pescador que ficou louco por ter matado um boto. Ele abriu o cetáceo à beira do rio para levar as entranhas à casa, onde as deixou numa vasilha sobre a mesa. Quando voltou, o boto tinha desaparecido e, depois, em casa, não achou mais também a vasilha. 1. B. MINDLIN, op.cit:53.

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De uma coletânea de 52 histórias orais da região de Santarém, (“Santarém Conta”), 15 se referem ao boto. Ele é descrito como podendo se apresentar na forma de um jovem bonito, vestido de branco, que vem participar das danças na aldeia. É tão bonito que todas as moças querem dançar com ele, o que provoca a animosidade dos namorados das moças. Numa das estórias, o boto, sob forma humana só se salva de um dos namorados precipitando-se ao rio e retomando sua forma verdadeira. O país dos botos se assemelha às vilas humanas: há também hospitais e médicos. Assim, há o relato de uma parteira chamada ao fundo do rio para ajudar no parto de uma boto-fêmea. Um boto, ferido por um pescador,não pode ser curado por seus companheiros aquáticos. É o pescador que o feriu que deve ser chamado para extrair a flecha ou o arpão, e curá-lo. Assim, há um relato de um homem que foi ao fundo do rio, curar um boto ferido. Na volta é acompanhado pelo “doutor” aquático (uma tartaruga). E a história termina com humor negro: o “doutor” aquático que não conseguiu curar o boto, vira a caça do dia do “doutor” humano. Conforme uma estória de Abaetetuba (coletânea “Abaetetuba conta”), o boto em forma humana assobia e pode por isso ser reconhecido. O boto pode também assumir a forma de uma determinada pessoa. Assim, uma mulher serviu janta a um boto que ela pensou ser o seu marido. Pelo visto, o boto como senhor dos peixes, ainda solicita dos humanos certas trocas (como por exemplo a moça que ele seduz e rapta), mas as relações imaginárias não são tão hostís assim. O boto “tucuxi” (uma das variedades da espécie) é mesmo tido como defensor dos humanos. O boto cor-de-rosa (só de uma moça olhar para ele, ele já a engravida) parece corresponder nas suas funções à sereia, na Europa, só que esta seduz e atrai para o fundo das águas marinheiros, que são homens; o boto, mais moças. Mas há também relatos de botos que salvam pessoas de afogamento, empurrando-as para as margens, o que aproxima o boto da sereiazinha de Andersen. A pesca transforma, aos poucos, o “ser terrível” (“deus ou eco”, como explicou um índio Karajá a BALDUS) em amigo dos humanos.

15. Dialogando com Eduardo Viveiros de Castro “In memória” aos líderes KUÃ ALEXANDRE TENHARIM (aldeia do Rio Marmelos-AM) e MODESTO TERENA (Taunay-MS), dos quais tive a honra de ser amiga.

1. “Predação canibal” ou práxis venatória? Desde que Eduardo Viveiros de Castro descobriu entre os Araweté “deuses canibais”, a atenção dele se concentrou no que ele chamou de “predação canibal”, aparentemente – se o entendemos bem - uma “força-motriz” que explicaria praticamente toda a ideologia tupi, seus rituais, as relações de afinidade x consangüinidade, como se o canibalismo estivesse na base da humanidade indígena. Vejamos, por exemplo, um pequeno trecho do capítulo 2 de 2002:163 –”Uma economia simbólica da predação”. É admirável como Viveiros de Castro analisa profunda e minuciosamente o problema da afinidade e todas as suas nuances, procurando esclarecer a questão da “predação canibal”. Sobre esta, escreve ele: “(...) o uso positivo da potencialidade, seu aproveitamento ritual, marca a afinidade com o selo simbólico do canibalismo (p.163). “Afinidade e canibalismo são os dois esquematismos sensíveis da predação generalizada, que é a modalidade prototípica da Relação nas cosmologias ameríndias” (p.164). “É a predação que é generalizada, não o parentesco; ela é a Relação”. “Assim, as ‘estruturas alimentares de parentesco’ de MEILLASSOUX (1975) com sua ênfase nas relações materiais de produção, devem ser vistas como circunscritas pelas estruturas autrement alimentares de não-parentesco – pelas relações simbólicas de predação” (p.166). “A predação generalizada ameríndia é uma figura do mundo ‘do dom e da luta’ dos homens (LEFORT, 1978), não do mundo do trabalho...” (p.167). A “predação generalizada”, sendo do mundo do dom, é portanto um tipo de troca. Lévi-Strauss, que viu a origem da humanidade baseada nas trocas de palavras, de bens e de mulheres (ou, melhor, de cônjuges) teria se esquecido de mencionar essa outra troca de “predação generalizada”?

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As trocas de bens, de serviços e de cônjuges é o que chamei, em artigos de 1982 e de 1985, de “trocas positivas”, as trocas no interior da comunidade. Correspondem ao que Viveiros de Castro, ao tratar dos principais estilos analíticos (2002:333-336), chamou “economia moral da intimidade”, enquanto a terceira vertente, que é a “economia simbólica da alteridade”é a coordenada das “trocas negativas”. Ambas as coordenadas, das “trocas positivas” e das “trocas negativas”, constituem a estrutura responsável pela reposição do modo de produção de caçacoleta. Ambas têm que ser levadas em conta, pois estão articuladas. Acho que realmente Lévi-Strauss deixou de atentar para este outro tipo de trocas que chamei de “trocas negativas” (emprestando a designação que Sahlins, (1970: 132-3) deu aos furtos fronteiriços de tribos inimigas (reciprocidade negativa”- troca periférica, especialmente intertribal) e ampliando-a também para as mortes dadas, no caso, não entre seres humanos inimigos, mas entre mortes dadas aos animais e mortes humanas). Na realidade, contrastando com as “trocas positivas” no interior da comunidade humana, a prática de caça-coleta exige, para restabelecer um equilíbrio com o que nós chamamos de “natureza”, essas trocas “negativas”: a) Negativas, no sentido de não-ação: não caçar determinada espécie de animal, para que ela possa se refazer da punção anterior feita pelos caçadores. É a morte de animais a que exige mais cuidado com relação a um reequilíbrio. Na coleta, as frutas são colhidas sem que se derrube a árvore. Mas, mesmo com relação à coleta, não se deve atacar a planta enquanto ela não se tiver refeito da coleta anterior. b) Negativas, no sentido de que a morte de seres humanos deve compensar a morte dada aos animais caçados; por isso mesmo, a morte é sentida pelos ameríndios como simplesmente necessária. O informante desana contou a ReichelDolmatoff (1968) como “Waímaxsê”, o dono dos animais, “troca” mortos humanos (ou aceita em “hipoteca” pessoas que ainda vão morrer) por animais para serem caçados. Recém-nascidos que não devem, por algum motivo, serem criados, são também “trocados” com a natureza, assim como, entre caçadores nômades, velhos doentes abandonados. Mesmo os horticultores de floresta, às vezes hoje mais pescadores do que caçadores, continuam tendo uma ideologia paleolítica. A roça segue, à semelhança da caça e coleta, um ciclo dentro da floresta, assim que esta se refaz completamente depois de alguns anos. Por isso Viveiros de Castro escreve: “No que respeita à caça, sublinhe-se que se trata de uma ressonância simbólica, não de uma dependência ecológica: horticultores aplicados como os Tukano ou os Juruna – que além disso são principalmente pescadores – não diferem muito dos grandes caçadores do Canadá e Alasca, quanto ao peso cosmológico conferido à predação animal (venatória ou haliêutica), à subjetivação espiritual dos animais,

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e à teoria de que o universo é povoado de potencialidades extra-humanas dotadas de perspectivas próprias” (2002: 357).. Realmente não se trata de uma dependência ecológica. Trata-se da manutenção do esquema de reprodução do modo de produção: a roça é uma “punção” na floresta, e, mesmo na pesca (embora ela esteja sujeita a menos tabus, devido à alta capacidade de reprodução dos peixes), não se pode perturbar as áreas de reprodução, não se pode pescar na piracema. O fato é que, na caça, se mata animais (que muitas vezes se reproduzem em número pequeno e às vezes só uma vez por ano), e foi assim a caça que determinou toda uma preocupação visando um reequilíbrio. É por isso que o “vingador da natureza” é geralmente um grande predador: na América Central e do Sul, para numerosas culturas, se trata do jaguar, pois ele pode efetivamente matar e devorar caçadores e humanos em geral. Mas pode também ser a “Mãe” de uma espécie caçada pelos humanos, que protege esta e castiga o caçador que comete abusos. Assim, por exemplo, o “senhor dos animais” dos Waika é Hayaliwa, o espírito do cervo vermelho, que transforma os transgressores em animais (ZERRIES, 1966). E, segundo Câmara Cascudo (1947), entre os Maku, o correspondente a Jurupari é o inhambu (Tinamus sp.). O próprio Jurupari se revestia do macacaraua (roupa de macaco) quando participava de rituais (só masculinos) no Alto rio Negro. Viveiros de Castro notou isso: “(...) o perspectivismo raramente se aplica em extensão a todos os animais ( além de englobar outros seres); ele parece incidir mais freqüentemente sobre espécies como os grandes predadores e carniceiros, tais o jaguar, a sucuri, os urubus ou a harpia, bem como sobre as presas típicas dos humanos, tais o pecari, os macacos, os peixes, os veados ou a anta. Pois uma das dimensões básicas, talvez mesmo a dimensão constitutiva, das inversões perspectivas diz respeito aos estatutos relativos e relacionais de predador e presa. A ontologia amazônica da predação é um contexto pragmático e teórico altamente propício ao perspectivismo” (2002: 353). Portanto, esses estatutos relativos e relacionais de predador e presa são realmente o que chamei de “trocas negativas”. É claro que, por detrás desses esquemas de “trocas negativas” está o que Meillassoux chamou de “estruturas alimentares”. A vida é concebida como mantida por energias que vão, através do alimento, dos animais e das plantas para os seres humanos, e dos seres humanos mortos, transformados em carniça para animais e adubo para plantas. Viveiros de Castro tem razão quando não concorda que essas estruturas alimentares sejam de parentesco. Mas seriam relações simbólicas de predação canibal?

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Para que os espíritos animais não percebam que os humanos querem se casar e reproduzir, os Desana dizem que vão “caçar” ou “pescar” mulher (são termos que na gíria ainda hoje se ouve em várias línguas do mundo). Ao contrário, quando vão caçar, para disfarçar, dizem que vão “namorar” fêmeas animais. Por isso mesmo, o senhor dos animais, o animal macho é, simbolicamente, um “cunhado”, isto é, um afim. As “estruturas alimentares” seriam assim, antes “estruturas alimentares de afinidade”. Cabe perguntar agora se esta identificação do animal como cunhado decorre tão só de uma analogia com as relações sociais entre os humanos, como geralmente se pensa, ou se, no fundo, decorre de coerções do modo de produção de caça-coleta: as atividades humanas, e as necessidades de continuação delas, formando uma visão do mundo, como já dizia Marx. Quanto aos rituais de antropofagia dos Tupinambá, vou voltar a algumas observações que fiz num artigo publicado na Revista de Antropologia, já há muito tempo (1983). Os dados a seguir são todos baseados nos cronistas. Inicialmente o inimigo é capturado e incorporado ao grupo, de inimigo “afim” transformado em parente. Por ocasião do seu sacrifício, sua testa é decorada da mesma forma que o ibirapema com que será morto: com uma pasta feita com casca de ovos de acauã, pintada por cima com desenhos geométricos. Assim, quando o ibirapema rachar a testa do sacrificado, é como se dois ovos se chocassem, e do ovo que é a testa do último, sai uma ave que é a alma dele e que acompanhará o sol diariamente, desde o nascer até o zenite (talvez por isso mesmo o capturado não fugisse à morte). Do zenite até o poente são as almas das mulheres que morreram de parto que acompanham o sol. Assim que o espaço cosmológico tupinambá estava sob o signo da horizontalidade, como costuma ser o espaço cosmológico na práxis venatória. O matador tupinambá dramatizará a morte dada como se fosse a sua própria morte. Dramatizando seu auto-sacrifício, ele dirá textualmente: “Da minha carne eu não como”, tal qual proclamava o sacerdote sacrificador asteca. Era realmente o único que não provava da carne ou do sangue do morto. Fazia- se tatuar sobre o peito, os ombros, o corpo, mas não sobre a testa, com os mesmos desenhos geométricos da testa do sacrificado e do ibirapema, como se os três (sacrificador, sacrificado e ibirapema) fossem uma mesma realidade. Após o sacrifício, o matador, nú, despojado de seus ornamentos, corria no pátio interno da aldeia, de um ponto para outro, enquanto as mulheres o chamavam pelo seu nome. Os Tupinambá observavam o tabu sobre o nome dos mortos recentes. Assim que, segundo as suas crenças, se alguém chamasse o recém morto pelo nome, ele voltaria ou apareceria. Por uma lógica ao contrário, assim, o sacrificador, simbolicamente morto, só se mostraria visível sendo chamado pelo nome, nome que será em seguida abandonado. Ele receberá um novo nome, após ficar quatro dias recluso em sua rede, imobilizado, o corpo amarrado como se fazia com o

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morto, sem falar, e mantendo uma abstinência, da qual apenas a água e uma papa de farinha estavam excluídas. Outros detalhes também são significativos. Para entrar em sua casa, o matador deveria passar através de uma abertura entre a corda e o arco, estendido por seu padrinho ritual à entrada da casa, sem tocar em nada, como se ele fosse um espírito. E a cerimônia realizada com a cabeça do morto introduzia uma “confusão simbólica” entre o matador e quem ele matou: um bracelete feito com os lábios do morto era colocado no braço do sacrificador, como se fosse a vítima que tivesse comido a mão que a matou. Além disso, o peito do matador era friccionado com um dos olhos retirados do morto, como se o morto devesse olhar agora do ponto de vista do seu matador. Após todos esses ritos, recolhido em sua rede, sob um processo de ressurreição, o grande guerreiro recebia um pequeno arco e flechas minúsculas, como se ele fosse um recém-nascido. Tudo isso não deixa dúvidas de que o sacrifício antropofágico dos Tupinambá era a dramatização de um auto-sacrifício. Auto-sacrifício para quem? Naturalmente para compensar a morte de animais caçados, não para deuses, pois eles não os tinham, só tinham espíritos-animais. Assim que os que comiam da carne e do sangue do morto eram simbolicamente animais. Viveiros de Castro (2002, p. 255) cita a resposta de Cunhambebe a Hans Staden quando este o recrimina por estar comendo carne humana: “Sou um jaguar. Está gostoso”. Acho que se deveria dar mais importância a esta resposta: no momento de comer do morto (que é simbolicamente um dos “nossos”), a pessoa só poderia assumir que está representando um animal. Lembramos que Huxley (1956), entre os Kaapor, pediu a um indígena que lhe mostrasse como antigamente sacrificavam um homem, e seu informante se comportou como se fosse um jaguar. Lembramos também que, nos rituais funerários bororo, que não são Tupi, são os afins que se encarregam de descarnar o morto, após o período em que ele ficou enterrado, o túmulo tendo sido regado no pátio, seu cadáver já estando em decomposição. É uma cerimônia secreta, em que é provável que houvesse antigamente ingestão de carne: estes afins representam as feras, isto é, os jaguares. Os consangüíneos não poderiam se encarregar desse ritual. É verdade que Viveiros de Castro torna a se referir à resposta de Cunhambebe: A abstinência do matador aponta para uma divisão do trabalho simbólico no rito de execução e devoração, onde, enquanto a comunidade se transformava em uma malta feroz e sanguinária, encenando um devir-animal (lembremos do jaguar de Cunhambebe), e um devir-inimigo, o matador suportava o peso das regras e dos símbolos, recluso, em estado liminar, prestes a receber um novo nome e uma nova personalidade social. Ele e seu inimigo morto eram, num certo sentido, os únicos propriamente humanos, em toda a cerimônia. O canibalismo era possível porque um não comia. (2002: 262)

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Viveiros de Castro percebeu, assim, muito bem, que a comunidade encenava um devir-animal, somente não deduziu disso o que afirmei acima: o matador dramatizava um auto-sacrifício (identificando-se ao inimigo morto), e a comunidade recebia esse sacrifício, identificando-se a animais (jaguares). Penso que esses ritos eram realizados de forma bastante inconsciente. Os Tupinambá admitiam mesmo conscientemente que a antropofagia era por vingança. Mas é uma troca de vingança por vingança, justamente no esquema das “trocas negativas” que se fazem com os animais, e que reequilibram as relações entre os seres humanos e a caça, pois o prisioneiro morto era, afinal, um caçador que deixaria de ser caçador. O modelo é pois a práxis de caça, e não uma “predação canibal”, ainda que muitos indígenas gostassem de comer carne humana, ou por acreditarem isto lhes dar longa vida, ou ainda porque absorveriam assim as boas qualidades do morto, e por isso não deixassem de a comer. Insisto que é importante que se perceba essa questão. Marx tinha razão quando afirmava que as atividades humanas, a práxis (isto é, o refletir sobre essas atividades, para que elas pudessem sempre se reproduzir) é que constroem a visão do mundo, a super estrutura. As coerções da atividade da caça (para que ela não acabe) são fundamentalmente a preocupação com um reequilíbrio entre comunidade e o que nós chamaríamos de recursos usados, deixando as forças da natureza se refazerem por si só. A isto corresponde uma moral que é a de respeito para com o Outro, e de partilha dentro da comunidade (uma vez que a acumulação em mãos de alguns exige uma super exploração da natureza). E que esta moral era comum a toda a humanidade não é uma projeção indevida, pois toda a humanidade foi, durante bilhões de gerações, só caçadora-coletora. Assim, passaríamos a compreender melhor os nossos indígenas, não como “bons selvagens”, no sentido rousseauniano, mas como detentores de uma ideologia paleolítica que corresponde a uma moral que produziu o ser humano completo, como deveria ser: de respeito e reequilíbrio para com o Outro (natureza em geral, e mesmo para com o inimigo), e de solidariedade para com os semelhantes. Certamente nem todos os caçadores seguiram à risca essa moral, mas as sociedades indígenas viam a falta de generosidade, a falta de solidariedade como o pior defeito de uma pessoa. E a crença em entidades (espíritos animais) a castigar o caçador que transgredisse as normas estabelecidas, agia certamente como controle, para que um equilíbrio fosse continuamente restabelecido. Percebemos assim também que o modo de produção capitalista, com as suas coerções para se reproduzir, está infelizmente destruindo o ser humano completo, como deveria ser, produzindo uma desumanização, o que só poderá ser revertido – se houver tempo – na medida em que pudermos salvar o planeta da destruição por nós causada, o que exige a recuperação de uma moral original e de uma prática que não pode ter o lucro como meta.

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2. “Perspectivismo e multinaturalismo na América Latina”...e sua razão de ser. Escreve Viveiros DE Castro que, na visão ameríndia, “a condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade” (2002: 355). Na realidade, é mais o fato de que, para os ameríndios, praticamente todos os seres do que nós chamamos Natureza, têm alma, têm espírito, e esse espírito tem qualidades semelhantes às dos humanos, às vezes mesmo superiores às dos humanos. Assim, por exemplo, os lapões dizem que o ser mais inteligente não é o homem, mas o urso. E segundo Lovejoy e Boas, “havia uma forte tradição de superioridade dos animais em relação aos homens – inclusive superioridade moral – na Antiguidade clássica do Ocidente (SAHLINS, 2007 p.579). As qualidades que os animais têm são bem conhecidas dos povos caçadores; a caça depende desse conhecimento. Talvez o termo “pessoa” seja mais indicado para identificar animais e plantas, na concepção ameríndia. Há pouco tempo li num jornal que se deveria chamar os golfinhos de “pessoas”, devido à sua inteligência e capacidade de comunicação. Outras muitas espécies têm essas qualidades. E, quanto a pensá-los como tendo alma ou espírito, é algo natural para povos que não desenvolveram o conceito de propriedade sobre o que não é humano. O conceito de propriedade se constrói muito lentamente, tempos depois que se instala a criação de animais e a agricultura intensiva. Mauss escreveu: “Um dos primeiros grupos com os quais os homens tiveram de contatar, e que por definição estavam lá para contatar com eles eram antes de mais os espíritos dos mortos e dos deuses. Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo” (1988:71). Mauss se enganou, na medida em que os primeiros seres com que os humanos tiveram que entrar em contato foram justamente os espíritos animais, espíritos que se identificam com o que nós chamamos de “espécie” (mas infelizmente nós esvaziamos este termo de alma). Como escreve Viveiros de Castro, “os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção está quase sempre associada à idéia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma ‘roupa’) a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie, ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs”. Essa forma interna é o espírito do animal: “uma intencionalidade ou subjetividade formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano oculto sob a máscara animal” (2002: 251). Se nas “estruturas alimentares”, a energia vai dos seres humanos para animais e plantas e destes últimos volta para os seres humanos como alimento, a idéia de que uma “pessoa” possa assumir várias “roupas” parecerá lógica.

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Quanto a ser o xamã um ser especial que pode ver o que está “debaixo da roupa”, parece que Viveiros de Castro tocou num ponto fundamental, pois eu acho que o transe xamânico é a própria chave para o perspectivismo. O xamã “precisa” efetivamente adquirir a perspectiva das “pessoas” do lado de lá, para poder exercer sua função de mediador. Em The shaman and the jaguar, Reichel -Dolmatoff, reproduz um mito dos Kogi (p.56), que tentei analisar. Noánase, filho de Kashindúkua (o primeiro xamã), herdou do pai os poderes de se transformar em onça e, durante a metamorfose, enxerga as coisas “de outro modo”, o que o capacita como curador, já que vê as doenças como besouros pretos que, como tais, pode devorar. Parece lógico que ele veja as doenças sob a forma desses coleópteros. Os besouros não só comem substâncias vegetais, mas também, penetrando no solo, animais em decomposição; comem mesmo fezes, fazendo assim o papel de uma espécie de agente transformador final, sendo também, efetivamente, transmissores de doenças. De qualquer forma, como a metamorfose implica numa suspensão do tempo, a interferência num período do ciclo que ainda está por ocorrer, parece ser a lógica subjacente, no caso. O problema de Noánase é que enxerga também os seres humanos diferentes, como alimento; e, como a metamorfose em jaguar implica também numa aguda sensação de fome, o xamã se torna altamente perigoso, ambivalente. A metamorfose ocorre sempre que Noánase coloca a máscara de jaguar e põe na boca a “bola azul”, a substância alucinógena, a mesma que foi dada pela Mãe Original a Kashindúkua. Bunkúase, o personagem mítico que é o homem comum, que não é xamã, pode se transformar em animais caçados pelas onças, isto é, nos animais clânicos dos grupos exogâmicos femininos. Por isso mesmo, assume uma atitude protetora para as possíveis vítimas humanas do xamã em transe, e enfrenta Noánase, tendo como companheiros homens-plantas, que este último vê como pés de milho. As mulheres são vistas por Noánase como pinhas, frutas selvagens, porque as mulheres é que são as coletoras. O transe xamanístico é descrito como uma morte, uma transposição a outro mundo: “...This is how they can penetrate into the other world” (p.112)...”The horizon opens like a door...”(p118) “When one drinks yagé, one dies…”1

1 “É assim que eles podem penetrar no outro mundo... o horizonte abre como uma porta...quando alguém bebe yagé, morre”.

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Este “outro mundo” é, certamente, algo ligado dialeticamente a este “de cá”, pois é descrito exatamente como “complementary world” (REICHELDOLMATOFF, op. cit.:192). Além do mais, a máscara feita de uma cabaça tem seu paralelo em máscaras mortuárias. No Alto Rio Negro tem sido encontrados enterros em canoas, tendo o cadáver a face oculta por meia cabaça. O padre Alcionílio da Silva diz que há 30-40 anos, ainda havia o costume de danças de máscaras na festa funerária, entre os Tariana; e ele encontrou o mesmo costume entre os Kobéua e os Uanana. Não concordo com Reichel-Dolmatoff quando ele nega que os problemas de que trata o xamã (envolvendo questões de sexo e alimentação) se enquadrem num sistema de referências mais amplo, de ordem do universo. Numa leitura inicial, o complexo xamanístico pode aparecer como meio desarticulado das concepções de uma ordem cósmica, o homem-jaguar irrompendo nesta de forma aparentemente caótica, para fazer vítimas ao acaso, servir a vinganças individuais e, paralelamente, operando curas. No entanto, a arte de curar e o aspecto “antisocial” de vitimar humanos são complementares entre si, numa “lógica paleolítica”. Assim, perspectivismo e multinaturalismo precisam, a meu ver, ser entendidos como elementos fundamentais da práxis venatória. Eles são necessários para o esquema de reequilíbrio entre os seres humanos e o que nós chamamos de natureza.

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MITOS E PRÁXIS – POR UMA ANTROPOLOGIA MARXIANA

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