Por uma democracia mais política: reflexões cooperativas sobre fragmentos de um pequeno grupo

May 23, 2017 | Autor: Mateus Fernandes | Categoria: Ação Coletiva, Teoria da democracia
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Por uma democracia mais política: reflexões cooperativas sobre fragmentos de um pequeno grupo

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB INSTITUTO DE CIÊNCIA POLÍTICA – FA/IPOL TEORIAS DA DEMOCRACIA PROFESSORA: LÚCIA AVELAR

ALUNO: MATEUS BRAGA FERNANDES MATRÍCULA: 09/0015461 CURSO: MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA POLÍTICA SEMESTRE: 2º/2009

INTRODUÇÃO “Não acreditamos que o discurso entrave a ação; o que nos parece prejudicial é que as questões não se esclareçam, antecipadamente, pela discussão”. Péricles.

As visões sobre democracia – seja como regime político, ou mesmo como modo de vida – são várias. E as discussões sobre suas formas e conteúdos são longas e prolíficas, por vezes conflituosas e, até mesmo, divergentes. Assim, a exigência de compreensão e interpretação parece estar sempre presente àquelas pessoas que se dedicam a estudar a política. Mas uma exigência de outro tipo, porém, é apresentada a quem pretende imergir mais fundo na política: a experimentação, enunciada em relatos e discursos fragmentados, de uma etnografia política. Esta parece ser outra ferramenta e um modo distinto de “observar” nosso objeto: a democracia política1. Como bem nos lembra Alessandro Pizzorno, entretanto, nós pertencemos ao mundo da democracia e, assim, não escolhemos a democracia somente oposição necessária a outros regimes – como um “second best”. Muito menos queremos oferecê-la como planejamento normativo para a ação política ou como aconselhamento aos governantes que almejam o melhor dos governos. Neste aspecto, sua distinção é precisa, embora não seja conclusiva: Our recommendations would in any case be incompetent or impotent. If we had considered ourselves equipped to enter politics, and we had had the stamina and the stomach for it, we would have made politics our vocation. But we have made the study of politics and

society our vocation. What does this imply?2 Inquietado com esta dúvida, surge a oportunidade de, por meio deste trabalho, extrair e comentar algumas reflexões feitas durante as leituras da disciplina Teorias da 1

Inicialmente, pode soar estranho adjetivar como “política” o substantivo “democracia”. Mais que um jogo sintático, a intenção é deixar claro que a política, ao contrário do que se faz comumente, poderia prescindir de adjetivos. Tendo como objeto de estudo a democracia política, afirmamos que a democracia é que deveria ter como fim a política – e não o contrário. O único fim da política, como relembra Arendt, é a liberdade – a liberdade de “viver entre os homens”, de agir, de “aparecer”. Uma ação política finalista, ou seja, que tivesse como finalidade algo extrapolítico, empobreceria a criatividade de dar início à ação e estorvaria sua continuidade por outros. (ARENDT, 2001, p.202). Assim, concordamos com Augusto de Franco quando enuncia, sinteticamente, “que a ‘utopia’ da democracia é a política – uma topia – e não o contrário”. (FRANCO, 2007. p. 305). 2 PIZZORNO, 2002. p. 10. grifo do autor.

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Democracia e tentar experimentá-las imerso na atividade política desenvolvida por um pequeno grupo. A tentativa será, portanto, a de ressaltar as implicações de se escolher o estudo da política como vocação, sem deixar de lado a condição de imerso na política – não-institucionalizada –, surgida da pluralidade de um pequeno coletivo de agentesobservadores. Continuando a tarefa sugerida por Pizzorno, queremos “criar transparência e ver as coisas políticas como elas são, além de expor a pretensão da linguagem por meio da qual a democracia é tornada aceitável ao povo”3. Para tanto, limitaremos a tarefa aos conteúdos da parte de reflexões e da parte de fragmentos. A divisão, apesar de um tanto arbitrária, indica que as “reflexões” são anotações feitas durante e a partir dos dez dias de mobilização propostos pelo coletivo “Brasília é limpa” nos atos do movimento “Fora Arruda”. Os “fragmentos” são a tentativa de explicitar, relatar e distinguir algumas das idéias que surgiram durante estas mobilizações, tentando relacioná-las a alguns dos textos lidos na disciplina.

REFLEXÕES “O propósito da Natureza é produzir uma harmonia entre os homens contra sua vontade e, de fato, através da discórdia”. Kant.

O grupo autodenominado “Brasília é limpa” surgiu como um encontro de algumas poucas pessoas, já mobilizadas para as atividades do movimento “Fora Arruda” – propostas pelos movimentos estudantil, partidário e sindical – e do “Brasília Limpa” – propostas pela OAB-DF e SINAPRO4. Surgiu, assim, de dentro, mas também em paralelo a esses movimentos. A partir da grande desmobilização repressiva que ocorreu no dia 09 de dezembro de 2009 – coincidentemente, Dia Mundial de Combate à Corrupção e a Impunidade – em Brasília, DF, o movimento surgiu como um FlashMob5 para propor

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Minha tradução e adaptação livre. Pizzorno escreve, literalmente, sobre Schumpeter, o seguinte: “He wanted to create transparency. He did not give advice. He wanted to help people to see things political as they are, or at least, to see how they can be made sense of. He exposed the pretence of the language through which democracy is made acceptable to the so-called bearer of sovereignty, the people. It is a task we ought to continue do discharge”. PIZZORNO, 2002. p. 10. 4 “A Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB), o Sindicato das Agências de Propaganda do Distrito Federal (SINAPRO) e o Sindicato dos Publicitários do Distrito Federal decidiram criar um movimento para mobilizar a sociedade brasiliense a limpar nossa cidade de qualquer relação com os atos indevidos de alguns”. Texto retirado do site: www.brasilialimpa.com.br 5 FlashMobs são aglomerações instantâneas de pessoas em um local público para realizar determinada ação inusitada (geralmente nonsense) e previamente combinada. Ao final da proposta, as pessoas se dispersam tão rapidamente quanto se reuniram, evitando explicações, comentários ou confrontos. A expressão geralmente

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outros vários FlashMobs, durante dez dias de mobilização e criação coletivas. Num ambiente seguro de proposição e experimentação, sugerimos e realizamos ações reais e virais, impactantes e reproduzíveis, sensíveis e compatíveis com as agendas dos demais movimentos. O grupo “Brasília é limpa” se descreveu como um coletivo em movimento, estruturado em rede, realizado em ambiente multiliderança, que manifesta seu descontentamento com a situação política de sua cidade por meio das seguintes idéiasforça: 

“Passe o Branco no Verde do Arruda” - Vemos que o atual governo do Distrito Federal se tornou insustentável e prejudicial a nossa cidade, tanto pelas práticas de corrupção, quanto pelo fisiologismo, pela descrença popular e pelas atitudes de repressão às manifestações. Detectado o problema, nossa proposta é mobilizar pessoas pela adoção de um elemento comum (o Branco) em contraposição aos cansativos coloridos partidarizados e ao governo verde arrudista. Assim, nosso “branco” não é somente para “limpar” a cidade, mas para relembrar que podemos desejar uma nova cidade, um novo governo, uma outra política.



“Manifeste Sua Honestidade” - Para além das críticas à situação atual, queremos compreender como a nossa cultura afeta nossa política e como nossas manifestações alteram nossas crenças. Cremos na possibilidade da nossa honestidade? Cremos na capacidade da nossa manifestação? Respondemos sim a essas questões e, portanto, nossa proposta é partir do diagnóstico dos problemas atuais e passar para a manifestação e experimentação das soluções possíveis e necessárias.

Assim, entre os dias 10 e 20 de dezembro de 2009, um grupo com 8 pessoas – algumas vezes chegando ao dobro desse número – realizou uma série de atividades e se articulou com os demais movimentos que reivindicam o impeachment do governador José Roberto Arruda do governo do Distrito Federal e a apuração dos dados levantados pela operação “Caixa de Pandora”, realizada pela Polícia Federal. Todos os dias houve um evento de mobilização e experimentação, chamado FlashMob, e uma reunião de se aplica a reuniões organizadas através de e-mails, SMS ou meios de comunicação social, como os sites mashflob e flashmob.com. Texto adaptado da Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Flash_mob

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reintegração, para avaliarmos a atividade realizada, prepararmos a atividade do dia seguinte e, as vezes, recebermos novos participantes6. Após os dias de mobilização, e a partir da avaliação final realizada pelos próprios integrantes do grupo, me encontrei com 2 deles7 para refletir sobre as atividades e sobre as conseqüências possíveis dessas mobilizações. Havíamos vivido a experiência do agente. Era hora de nos percebermos observadores, para trocarmos opiniões e juízos sobre o acontecido. A experiência democrática de fazer política por meios pacíficos e criativos – uma espécie de “cooperação reflexiva”, como propôs Axel Honneth8 – agora daria lugar à experiência – que também é democrática – de “reflexão cooperativa”. Assim, a partir de três perguntas iniciais surgiram vários comentários sobre o que aconteceu naqueles dias de dezembro e sobre as relações desses acontecimentos com as visões sobre política e sobre democracia de cada um dos três participantes da reflexão cooperativa: 1. Qual é a relação entre democracia e as mobilizações realizadas pelo grupo “Brasília é limpa”? 2. Quais são as palavras-chave para tratar da dinâmica – modus operandi (princípios), modus agendi (métodos de ação) e modus vivendi (propósitos) – desse grupo? 3. Quais são as conexões entre esta dinâmica e alguns dos dilemas da ação coletiva? A primeira necessidade para avançar com as perguntas seria buscar algum entendimento comum sobre o que estamos falando quando utilizamos a palavra “democracia”. Para tanto, descrevemos três aspectos que devem fazer parte deste entendimento comum: 

Para além de evidenciar e de buscar soluções para os conflitos aparentes, a democracia deve funcionar de modo a não bloquear nem esconder os conflitos latentes9. Assim, pode-se dizer que uma dinâmica democrática é a

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Alguns registros sobre as atividades realizadas estão disponíveis no site www.participacao.net/blog/ Agradeço ao Clóvis Henrique de Souza e à Renata Florentino pela generosidade com que passaram comigo um bom tempo, nos últimos dias de dezembro, tentando rememorar e remontar as imagens deste movimento. 8 Apud FRANCO, 2007. p. 325. 9 A esse respeito, vemos a ponderação de Reis: “ao passo que qualquer conflito, enquanto interação estratégica, corresponde por sua natureza à esfera do político, ele não necessariamente alcançará repercussão 7

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atitude constante de desconstrução dos

micro-fascismos (ou das

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autocracias), que abre brechas para que se percebam os conflitos (consigo e com o outro) aparentes e latentes. Entretanto, por entre as brechas que abrimos não passam todos os conflitos. Assim, a autocracia existente em cada pessoa impede o avanço radical da democracia. Portanto, a atenção com a democracia não deve focar somente nos conflitos, mas também em nossos possíveis bloqueios a eles. 

Os princípios hermenêuticos que nos guiam na interpretação de textos por meio da consideração “da parte e do todo” – e vice-versa – podem ser aplicados à experiência crítica de perceber a atuação “do local no global” – e vice-versa. Assim, neste entendimento de democracia, é possível e necessário refletir sobre as ressonâncias e conexões macro-políticas daquilo que acontece no micro-cosmo dos grupos locais, notando as implicações da democracia tanto no contexto global quanto no desenvolvimento local11.



Compreender a democracia passa por observar os padrões antidemocráticos que impedem seu desenvolvimento radical. Assim, é necessário não somente tratar da “ação política”, como também da “não-ação política”: o poder de obstruir, separar e excluir12 é também evidenciado por aquilo que “não acontece” na política.

na área das instituições políticas” (REIS, 1984. p. 150). Como, no âmbito deste trabalho, diferenciamos a política institucional da proposta radical de democracia política, ainda parece fazer sentido ressaltar a importância dos conflitos, sejam eles potenciais ou atuais, para usar os termos de Reis, e enfatizar sua necessária repercussão. 10 Para o Augusto de Franco, apoiado pelas idéias de Humberto Maturana, as circunstâncias autocráticas em sistemas de dominação tendem a reforçar e a retroalimentar atitudes míticas diante da história, sacerdotais diante do saber, hierárquicas diante do poder e autocráticas diante da política. É contra elas que se insurge a democracia política, tal como estou propondo aqui. A respeito da democracia como brecha aberta na cultura autocrática, cf. FRANCO, 2007. pp. 29-47 (e especialmente nota 10). 11 Sobre a noção de democracia como desenvolvimento e, em especial, como desenvolvimento local, cf. FRANCO, 2007. pp. 324-332. 12 A expressão é encontrada em FRANCO, 2007. p. 45 e é utilizada como sinônima à idéia de “poder vertical” ou de “práticas antidemocráticas”.

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FRAGMENTOS “Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero”. Antonin Artaud.

Em seguida, passamos a elencar algumas palavras-chave que pudessem nos guiar na rememoração dos acontecimentos e na compreensão de suas reverberações. A lista que se criou continha: Experimentação; Multiliderança; Desconstrução; Trabalho; Nomadismo; Revolução; Indivíduo; Método. Para cada palavra, foi elaborado um conjunto de idéias, que seguem em itálico, buscando estabelecer conexões entre a palavra, as experiências vividas e alguns conceitos utilizados em teorias da democracia. O esforço de reflexão cooperativa presumiu-se encerrado aí. Para avançar em cada palavra, tentarei construir um discurso fragmentado do contexto em que ela poderia se inserir.

EXPERIMENTAÇÃO ...para além da mera interpretação – e, até mesmo, em oposição à tarefa de interpretar como prévia à possibilidade de compreender – a experimentação surge como um campo ativo para a compreensão vivencial e para a diferenciação convergente das ações. Desde que houve a cisão entre a mente e o corpo, os filósofos e cientistas tentam buscar na racionalidade os limites para a mente humana. A criação de idéias e o desvelamento do mundo – por sua interpretação e compreensão – são tarefas da mente, são possibilidades dos seres racionais, são necessidades para a atuação política. A política racional, desse modo, poderia compreender melhor o mundo e as pessoas que habitam este mundo e apresentar um conjunto de medidas para sanar seus problemas. O agir-bem em política parecia estar confinado ao agir-racional. Entretanto, como nos relembra Reis, “na medida em que sejam egoisticamente motivados e racionais, os indivíduos não agirão naturalmente para a promoção do interesse comum”13. Não se trata, ainda, de discutir quais seriam os elementos que nos permitem superar este primeiro dilema da ação coletiva – para 13

REIS, 1984. p. 116.

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tanto poderíamos muito bem apelar aos “incentivos separados”, como propõe Olson. O questionamento que surge com a experimentação é justamente sobre a vinculação entre política e racionalidade, entre ação e interesse. Esqueceu-se, assim, do problema político para a ação, tal como já havia sido proposto por Spinoza14: o problema de experimentar – e de não saber exatamente – o que pode um corpo? Na retomada dessa questão, nota-se que pela experimentação das potências de um corpo – de um corpo político – pode-se alcançar outras possibilidades políticas para ação. O que se tentava, ao se optar pela experimentação em lugar da interpretação – e até mesmo em oposição a ela – era justamente conhecer outros limites para ação do corpo, para a criação coletiva e para a proposição de alternativas. Quando se pensou que a repressão policial iria silenciar e bloquear o corpo político dos manifestantes, foi o próprio corpo que ultrapassou seus racionais limites frente ao medo e à desmobilização para, mais uma vez, aparecer e agir. O corpo, na superação de seus limites, se encontra aberto aos fluxos das idéias e dos acontecimentos. Não precisa mais interpretar os fatos – frente ao tribunal da razão, pois sua própria atividade demonstra seu conteúdo. O corpo, assim, também age de maneira comunicativa, mas não o faz pela lógica dos interesses e objetivos, senão que criando para si um sentido de ação. E este sentido é criado justamente na união entre os elementos cinéticos – que são os movimentos, as velocidades, as intensidades – e os elementos dinâmicos – que são os limites dos afetos, a capacidade de afetar e de ser afetado – dos corpos, como nos mostrou Spinoza. Para tornar mais clara a idéia, vale citar integralmente uma bela passagem de Deleuze sobre os conceitos de Spinoza: Mas nós nos esforçamos em nos unir ao que convém com a nossa natureza, de compor nossa relação com relações que se combinam com a nossa, de reunir nossos gestos e pensamentos à imagem de coisas que concordam conosco. De um tal esforço nós estamos no direito de esperar, por definição, um máximo de paixões alegres. Nosso poder de ser afetado será preenchido em tais condições que nossa potência de agir aumentará. E se perguntarem em que consiste o que nos é mais útil, vemos bem que é o próprio homem. Pois o homem, em princípio, convém em natureza com o homem. [...] Assim, o esforço de organizar os encontros é de início o esforço de formar a associação dos homens sob relações que se compõem.15

Mas ainda resta saber se a política é a conjunção de projetos individuais ou a decisão sobre o destino comum? Aliás, existiriam estes tais “projetos individuais”, na 14

Pode-se encontrar essa discussão na “Ética”, III, proposição 2, escólio. Deleuze trata da “Ética”, IV, prop. 35, dem., corol. 1 e 2, escólio. Cf. DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problèm d l'expression. Paris: Les Éditions de Minuit, 1968. Cap. XVI – Visão Ética do Mundo.

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medida em que talvez o processo habermasiano de individuação seja somente um processo de assujeitamento foucaultiano? Reis pretende ver que esse processo de individuação, e o ‘individualismo’ resultante, preserva inequivocamente a política no estágio final, ao ver nele a coexistência de uma multiplicidade de projetos de auto-realização individual que necessariamente interferirão uns com os outros, 16 constituindo-se em focos potenciais de conflito e colaboração entre os indivíduos.

Mas talvez o autor se esqueça de que a negociação de aspectos individuais e privados é tarefa da administração17 – e não da política. A interferência recíproca18, as afetações e as relações é que marcam o domínio da política. Acreditando que a política é a liberdade de agirmos coletivamente no sentido da partilha de nosso destino comum, a idéia de experimentação favorece elementos caros a uma democracia política fundada no comunitarismo, na alteridade e na diferenciação. A experimentação, tal como foi proposta, favorecia a compreensão imediata dos acontecimentos, já que os corpos que agiam eram os mesmos corpos que recebiam os efeitos e afetos de suas ações. Aparecer, como sinônimo de agir, representava a liberdade de ação e a disposição à reação. A experimentação também possibilitava a diferenciação das ações tradicionais – que já estavam ocorrendo em paralelo e, algumas vezes, junto mesmo a nossas ações – e a criação de ações alternativas, já que a exposição imediata do corpo aos afetos permite decisões coletivas fundadas no gosto imediato, na sensibilidade, nas trocas de fluxos entre os agentes e os observadores, sem a necessidade de mediação, seja da razão, seja da mensuração de eficácia. Assim, o corpo que se encontrasse insatisfeito com a ação iniciada teria em sua própria possibilidade de continuar a atividade todo o maquinário para propor o inusitado. Ainda assim, a diferenciação precisa estar comprometida com a convergência, de modo a não haver eliminação da diferença, pois, como explicita Deleuze de maneira terrível: Se ocorre a alguém de encontrar um corpo que se compõe com o seu sob uma relação favorável, ele procura se unir com este corpo. Quando alguém encontra um corpo cuja relação não se compõe com a sua, um corpo que o afeta de tristeza, ele faz tudo o que está

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REIS, 1984. p. 67. Reis efetivamente nega essa possibilidade dizendo que “é bastante claro que o que teríamos seria algo radicalmente distinto da visão de uma sociedade orgânica e despolitizada contida na fórmula da ‘administração das coisas’”. REIS, 1984. p. 67. 18 Numa passagem posterior, Reis passa então a concordar que “o crucial [...] é que tenhamos a interferência recíproca dos objetivos de uns com os objetivos de outros”. Cf. REIS, 1984. p. 119. 17

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em seu poder para descartar a tristeza ou destruir esse corpo, isto é, para impor às partes desse corpo uma nova relação que convenha com a sua própria natureza.19

Em outras palavras, se o corpo se move em sentido contrário ao da multidão, não deve ser para destruir a multidão, mas para permitir o espalhamento, a dispersão. Corpos assim diferenciados não dependem do anonimato da multidão, pois suas conexões se dão pelos fluxos que emanam de sua aparição-ação. E é difícil “aparecer”, assim, na multidão indiferenciada e anônima. O que se queria a todo custo evitar é que a criação de novas ações ou levassem ao enfraquecimento do movimento, pela dispersão de iniciativas, ou produzissem disputas que forçassem à escolha e à demarcação destrutivas. Diferentemente das preocupações de Olson – de que “as dificuldades para a realização do interesse comum derivam [...] do problema de coordenação que resulta [...] da irrelevância da ação de qualquer indivíduo isolado relativamente à realização do interesse comum”20 – o que temíamos era a confusão para a qual alerta Pizzorno, comentada por Reis: Em certo sentido, não há diferença entre os conceitos de solidariedade e interesse. [...] De outro ponto de vista, constatar a existência de uma coletividade solidária de qualquer tipo é definir um foco coletivo de interesse. Assim, enquanto “interesse” diz respeito a qualquer fim ou objetivo próprio (“próprio” referindo-se seja a atores individuais, seja a atores coletivos), “solidariedade” refere-se ao compartilhamento de objetivos ou interesses (que pode dar-se, igualmente, em diferentes escalas).21

Novamente vale ressaltar que a experiência em nada pode ter a ver com a criação de finalidades para a ação, de modo que se obscureça a própria experiência em detrimento da interpretação da experiência. Em outras palavras, não se pode esperar a equivalência entre ação e liberdade – de tal modo que o sujeito seja livre somente enquanto age – se há qualquer aproximação entre experimentação e finalidade. Assim, o interesse coletivo do grupo que se propõe à experimentação é a realização de sua ação e o compartilhamento de suas “agendas” de ação – ainda que, de outro modo, a coletividade solidária que agia tivesse interesses próprios distintos e difusos.

MULTILIDERANÇA ...a vivência em ambiente multiliderança proporciona ganhos epistêmicos para a realização de atividades não-finalísticas e 19

IDEM. Ibidem. Apud REIS, 1984. p. 126-127. grifo do autor. 21 REIS, 1984. p. 131. grifo do autor. 20

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multimídias, como os FlashMobs. Não é somente a multidisciplinaridade da equipe que interessa, mas também a ativa variação das lideranças para a coordenação de distintas tarefas e, mais ainda, a tentativa constante de descentralização e distribuição do poder de proposição, organização e realização. A ação política, como compreendida aqui, a partir da proposta arendtiana, não se exaure na iniciativa e nem se finda em seus resultados. Assim, é líder da ação tanto aquele que a propõe quanto aquele que a leva a cabo. A alteração, inevitável no decurso da ação, expõe novamente, como “co-criadores”, aqueles que agem. Um grupo sem um líder não é um grupo sem ação e, muito menos, um grupo sem liderança. Mas um grupo que se funda na multiliderança evoca sempre o corpo coletivo para que suas ações sejam realizadas. E como os indivíduos fazem política – seja ela entendida como a conjunção de projetos individuais, seja a decisão sobre o destino comum – senão por meio da comunicação? Para Reis, tal comunicação, que deveria levar em conta os problemas de eficácia, se aproximaria da “ação” arendtiana e da “interação” habermasiana pelo conteúdo operatório, lógico e racional que envolveria22. Mas o problema pode não ser tanto de “eficácia” entre os meios e fins, mas o de “ganho epistêmico” a partir das opiniões e juízos compartilhados. Portanto, se a ação estratégica se utiliza de um saber prático e o trabalho, de um saber técnico, a interação seria fundada no saber teórico – no espírito – que articula pensamento, vontade e juízo. Assim, a ação política, que faria convergir os saberes, exige tanto a presença de agentes quanto de observadores, tanto de obras quanto de relatos. A dificuldade, porém, ainda permanece na articulação de distintas iniciativas. O problema de ação coletiva para articular e direcionar aparece constantemente. Qual é o sentido da ação? – perguntam-se os agentes. A solução parece ser simples, embora seu modo de realização seja complexo: impedir a centralização, favorecer as alianças provisórias entre os agentes, valorizar a opinião para a formação dos juízos da comunidade de observadores e estimular a desobediência – não a partir das regras aceitas, mas diante das ações realizadas.

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REIS, 1984. p. 85.

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Talvez seja esse o motivo principal por que um ambiente multiliderança não se compromete, a priori, com o “lado” e sim com o “modo”23.

O “modo” como são

apresentados e resolvidos os conflitos, o “modo” como são propostas e implementadas as ações, o “modo” como são decididos os sentidos e caminhos coletivos – é isso que indica que há, para além da alternância da liderança, sua descentralização e dispersão, enfim, sua “democratização”.

DESCONSTRUÇÃO ...como processo constante, fortalece a idéia de que a liberdade – e não a eficácia – é o fim das ações políticas empreendidas e que, para tanto, é necessário tanto prometer quanto perdoar. Como um acordo para se estabelecer um prazo limite de duração, a desconstrução cria um campo seguro dentro do qual se age e para o qual se oferece energia. Assim como o moto-perpétuo é pensável, mas não realizável, a disposição de um corpo a canalizar, continuamente, toda sua energia para uma ação é questionável. Como vimos, a partir das idéias deleuzianas sobre Spinoza, é pelo encontro dos corpos, na realização de afetações entre eles, que os elementos dinâmicos e cinéticos dos corpos se alteram. Surgem, assim, novas disposições. E essas disposições têm a ver tanto com os “interesses” surgidos (os afetos) quanto com os “lugares” ocupados (os movimentos). Um grupo que surge com a proposta inicial de se “desconstruir” estabelece para si que o fim de sua ação é a própria ação. O esforço do trabalho se concentra não na produção (de algo), mas na realização (da própria ação). Em outras palavras, poderia dizer que a sustentabilidade de ações políticas tem a ver com sua capacidade de distribuição. E, para evitar o risco constante da centralização, a desconstrução, entendida como o binômio descentralizar-distribuir, pareceu ser eficiente neste grupo. Novamente, importava menos “para quê” o grupo se juntava do que “como” tal grupo se dispunha à (e na) ação. O contraste mais imediato à proposta de desconstrução é justamente a idéia de que, na política institucionalizada, a alternância no poder (entendida como a manutenção mesma do poder e das instituições que o legitimam) é peça fundamental. Neste sentido, a 23

Para referências a essa idéia, cf. FRANCO, 2007. p. 157.

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primeira preocupação de Reis é com a autoridade democrática – com sua constituição e com sua manutenção. Porque a ciência política tem tantas preocupações com a autoridade? Seria porque a autoridade está obviamente ligada ao poder – teórico-prático de decidir, de interceder, de escolher, de ordenar – e à mudança política? Ou, antes, é porque a autoridade se funda, fácil e equivocadamente, a partir da verdade (seja ela interpretada ou não) e da erudição dos “melhores” (sejam eles técnicos ou filósofos)? Para este problema bastaria a solução principal da tradição liberal: o controle e a distribuição do poder? O quanto, em termos de perda em eficácia, estaríamos dispostos a obter para sustentar o “ingrediente libertário”24, como Reis o denomina, de mudar a autoridade política de tempos em tempos, de distribuir o poder e de evitar sua concentração, e de questionar a legitimidade de uma autoridade fundada na interpretação de uma verdade? É clara, para Reis, a necessidade da existência do poder para coordenar ações. Assim, parece tratar-se menos de uma autoridade desmedida e amoral e aproximar-se mais à autoridade de um júri25, a quem é dada a tarefa político-epistêmica de elaborar a melhor decisão – ainda que sujeita a falhas jurídicas. Reis escreve que “a contenção ou o controle do poder, de um lado, e a busca de eficácia, de outro, refere-se à eficácia para a realização de fins dados – que são, como se explicitou, fins coletivos, supostamente consensuais”26. Entretanto, esse apelo à eficácia da autoridade democrática nos leva inevitavelmente ao surgimento cada vez mais diverso de identidades coletivas “parciais”. E a identidade do sujeito tem a ver com autenticidade27 e não com autoridade. Autoridade tem a ver com reconhecimento intersubjetivo. Em outras palavras, a autoridade tem a ver com a autoria – constante – de obras. Por isso, ela não pode ser perene. A autoridade se funda na sua própria impermanência.

TRABALHO ...a diferença entre ação política e ação estratégica pode ser equivalente à diferença entre o lúdico e o laboral. A associação entre prazer e ação pode restabelecer o interesse pela política, favorecendo a participação, a interação e a espontaneidade. 24

REIS, 1984. p. 13. Sobre a proposta de autoridade democrática com um júri, cf. ESTLUND, 2008. 26 REIS, 1984. p. 14. com adaptações. 27 Sobre “autenticidade” e “identidade”, cf. REIS, 1984. pp. 38 e 60 25

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Ao propor uma atuação “leve, lúdica e prazerosa”, espera-se restabelecer o potencial de atração da política, favorecendo justamente a sua condição, ou seja, a pluralidade. O valor do trabalho, entendido desse modo, é a sua própria realização. Não se trata da simples negação do trabalho, mas da compreensão de que o fardo do labor28 ao ter de produzir objetos ou resultados favorece a especialização, a burocratização e a profissionalização da política – criando instituições que alijam pessoas do processo pela dureza de seu tratamento institucional e pela verticalidade de sua organização.

NOMADISMO ...para escutar o outro são necessários dois movimentos – descobrir quem é este outro e onde ele está. Assim, o nomadismo é tanto intersubjetivo quanto territorial. A ação política precisa afetar pessoas de formas diferentes (reinventado as práticas políticas) tanto quanto com conteúdos diferentes (para pessoas ainda não afetadas). Desterritorializar as práticas (as ações), os sujeitos (agentes e observadores) e os próprios territórios onde se age e a partir dos quais se observa pode ser uma forma de experimentar a radicalidade da democracia como política. Para Reis, no entanto, o problema da ação estratégica é o de como estabelecer fins para a ação do sujeito individual ou social, definindo amigos e inimigos com quem agirá, e reificando aqueles sobre quem agirá. Para o autor, portanto, não se trata de ações que têm o poder-de, mas também de ações que tem o poder-sobre. O problema é que incluir a necessidade de finalidade a toda ação – mesmo que esteja claro que nem toda ação política é, necessariamente, estratégica – é antropomorfizar a história e o sentido histórico. A ação humana não é parte da natureza, pois rompe seu ciclo eterno para realizar o sentido de seu destino humano – e, portanto, contingente. Além disso, refletir sobre a ação e o exercício do poder não implica a objetificação do sujeito, equivalendo-o aos objetos do ambiente. É possível pensar em um conflito que não reifique, 28

A diferenciação entre labor (labor) e trabalho (work), feita por Arendt, não nos interessa neste momento, já que ambos se opõem à categoria de ação justamente pela condição de terem de produzir objetos – para a sobrevivência e para a criação artificial do mundo. A ação, pelo contrário, não possui como fim nem a vida nem a mundanidade, sendo a liberdade seu equivalente e a pluralidade a sua condição. Cf. ARENDT, 2001.

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Por uma democracia mais política: reflexões cooperativas sobre fragmentos de um pequeno grupo que seja gerador de confiança juntamente com a oposição29. Assim, o que gera a confiança para a ação coletiva é a oposição e o conflito; e o que o permite a amizade (e a inimizade) é a distância – é necessária alguma distância para que a política da amizade seja possível.

REVOLUÇÃO ...qual é o sentido da revolução hoje? Como mudar o mundo sem tomar o poder? Esta aparente brincadeira com o título do controverso livro de John Holloway pode traduzir o desejo de pensar ações políticas que possam subverter a institucionalidade política que temos, para experimentarmos a política que queremos30. Assim, não somente ocorre a subversão do poder instituído – principalmente em sua face repressiva – como também exige a criação de alternativas

às práticas políticas tradicionais e

institucionalizadas. Nesse sentido, a experiência radical da democracia como política é subversiva e insubordinada. Seria ela, portanto, revolucionária? Sua base na descentralização e na dispersão subverte justamente os ciclos verticalizantes de representação e especialização. E sua proposta de fundar uma comunidade de agentes-observadores se insubordina31 à lógica – capitalista – de “isolar o produtor dos meios de produção”32.

INDIVÍDUO ...considerar o indivíduo não é somente ter atenção nas partes que formam o todo de um grupo, senão que trazer o “ambiente externo” 29

Sobre oposição e conflito, cf. PIZZORNO, 2002. pp. 09-10. Para Holloway, “toda e qualquer instituição representa uma forma alienada de relação social e uma forma de poder” (apud ALMEIDA, 2004. p. 237). O desejo aqui, entretanto, é menos o de destruição das instituições do que o de sua transformação. A experimentação, tal como expressa aqui, não implica em abdicar das instituições, como propõe o autor. Ainda assim, parece válida a aproximação entre a categoria “poder-fazer”, de Holloway, com as propostas de antipoder, em Foucault, e de experimentação, em Deleuze. 31 Augusto de Franco escreve literalmente: “não há nada mais subversivo que a democracia. Ela é uma insubordinação contra o poder vertical, entendido como o poder de obstruir, separar e excluir, aquele poder que se estrutura instalando centralizações na rede social para tornar seus agentes capazes de mandar alguém fazer alguma coisa contra sua vontade”. Cf. FRANCO, 2007. p. 8-9. 32 Ellen Wood cita Marx para afirmar que “o ‘ponto de partida’ da produção capitalista ‘não é outra coisa senão o processo histórico de isolar o produtor dos meios de produção’”. Cf. WOOD, 2003. p. 28. 30

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para a “segurança e o conforto do ambiente interno”, fazendo ao mesmo tempo a desmistificação das fronteiras entre o interno e o externo – individual e coletivamente – e a desterritorialização dos membros do grupo, que passam a se confrontar com situações “fora da zona de conforto” que um grupo, em espaço seguro, poderia bloquear ou esconder. A comunicação é potencializada na vida em comunidade, a qual permite, pela sociabilidade, a gênese de certa atividade política (em que há atores e observadores). Isto nos levará a um círculo virtuoso em que a atenção dispensada, por meio da reflexão (tarefa filosófica potencializada pelo pensar) e da imaginação (tarefa política facilitada pelo observar) é a atenção exigida pela comunidade.

MÉTODO ...o compromisso com o método se desdobra na observação e na experimentação de outros três compromissos: do modus operandi (princípios), do modus agendi (métodos de ação) e do modus vivendi (propósitos). O conteúdo das atividades realizadas deve traduzir o modo de vida democrático experimentado. Ou seja, a ação política deve ser fundada e limitada pelos princípios, pelos meios e pelos propósitos definidos e sustentados pelo grupo, em grupo.

ANOTAÇÕES FINAIS A tentativa de articular os acontecimentos recentes aos estudos realizados na academia é tanto difícil quanto rara – e, talvez, até mesmo rara porquanto difícil. Seja pelo vocabulário, seja pelo método, ou por outros motivos ainda – como a falta de exemplos, de paciência e de boa-vontade – pesquisadores e pesquisadoras realmente se confrontam com a suspeita levantada por Pizzorno: a minha vocação é a política ou o estudo da política? E, ao se tentar integrar ambas as vocações no mesmo pensamento – e, mais ainda – em um só estudo, como se portará o indivíduo?

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Postular que a democracia é um modo de vida, uma experiência comunitária que causa afetos no corpo e no espírito e uma prática cotidiana é assumir tarefa complexa. Radicalizar a democracia, fazendo-a sinônimo imperturbável de política, é ousar reelaborar os mecanismos não somente de nossa ação, mas também de nossas análises e juízos e de nosso pensamento. Afinal, as categorias científico-filosóficas dão conta daquilo que nos acontece? Nossas ferramentas de análise conseguem nos auxiliar na tarefa cotidiana de agir e de observar? Conseguiremos efetivamente – quando radicalizarmos a valorização da opinião em seu sentido político – considerar ciência aquilo que só pode ser feito de modo parcial, fragmentado e particular? Se a democracia política pode ser mesmo uma forma de cooperação reflexiva, resta saber como poderemos realizar, democraticamente, a tarefa seminal de refletir cooperativamente ao abordar as teorias da democracia. Este trabalho é um esforço nesse sentido, ainda que incipiente e carente de método e de imaginação. Aliás, como Arendt escreve, Kant deu o nome de imaginação à capacidade de “tornar presente algo que está ausente”33 – o que significa, literalmente, “considerar”34 o outro. Esta, portanto, é a faculdade que cria uma comunidade de considerados, de presentes e de participantes na atividade de analisar e julgar, já que, com a imaginação, que é realizada por uma “operação de reflexão”35, potencialmente cooperativa, refundamos aquela comunidade que permite articular outros pontos de vista. A proposta de futuro – se bem mereça algum futuro este trabalho – é que os fragmentos possam ser mais bem detalhados, mais ricamente comentados e recheados de exemplos, já que são os exemplos, como explica Arendt, que criam situações “de modo a ver no particular o que é válido para mais de um caso”36. E não seria essa, por fim, a tarefa de uma boa análise política?

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ARENDT, 1993. p. 82. Arendt menciona ainda, na nota 146, que a expressão “ter presente [em nosso espírito (nous)] o que está ausente” seria atribuída, antes, a Parmênides. Cf. ARENDT, 1993. p. 85. nota de rodapé 146. 34 É menos importante se a expressão que usamos seja “levar em consideração” ou “trazer para a consideração”. Ambas, a seu modo, dizem respeito ao exame ponderado, ao respeito; enfim, ao “dar atenção a”. 35 KANT apud ARENDT, 1993. p. 83. 36 ARENDT, 1993. p. 107.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, José Rubens Mascarenhas de. Resenha de “HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder: o significado da revolução hoje. São Paulo: Viramundo, 2003'. in: Politeia: História e Sociedade, v. 4, n. 1, p. 237-242. Vitória da Conquista: UESB, 2004. Disponível em: http://www.uesb.br/politeia/v4/resenha_01.pdf. Acesso em: 20 jan. 2010. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. [Trad. Roberto Raposo; Introd. Celso Lafer]. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 (orig. 1981). _______________. Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1993. ESTLUND, David M.. Democratic Authority: a philosophical framework. Princeton: Princeton University Press, 2008. FRANCO, Augusto de. Alfabetização democrática: o que podemos pensar (e ler) para mudar nossa condição de analfabetos democráticos. Curitiba: FIEP, Rede de Participação

Política

do

Empresariado,

2007.

Disponível

em:

http://alfademo.blogspot.com. Acesso em: 20 jan. 2010. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. (Col. Os Pensadores, Kant I e Kant II). [Trad. Valério Rohden, Udo Baldur Moosburger]. 3 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. PIZZORNO, Alessandro. “The impossibilities of Democracy: bogus or serious?”. In: European Political Science. European Consortium for Political Research, 2002. p. 0410. REIS, Fábio Wanderley. Política e racionalidade: problemas de teoria e método de uma sociologia ‘crítica’ da política. Belo Horizonte: UFMG/PROED/RBEP, 1984. WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo editorial. 2003 (orig. 1995).

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