Por uma epistemologia do invisível

June 22, 2017 | Autor: Céu Cavalcanti | Categoria: Feminist Epistemology, Abjection
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Por uma Epistemologia do Invisível
Entre Circuitos Científicos e Políticas da Abjeção

Céu Cavalcanti

Recebo a partir da disciplina de epistemologia do conhecimento em psicologia um convite a refletir teoricamente sobre temáticas que me tenham interpelado desde um referêncial epistemológico. Desse modo, ao refletir sobre possíveis temáticas a escrever, esbarro nas minhas recentes caminhadas pelos campos de estudos que se comprometem a pensar a partir de locais de desprivilégio. Em paralelo, me debruçar sobre o conceito de abjeção me tem sido tarefa importante tanto pessoal quanto academicamente. Esboço então tentativa de linearidade que componha as necessárias amarras teóricas ao apresentar a reflexão epistemológica que me ocorre nesse contexto.
Ao iniciar a organização desse texto, uma música chega na minha lista e parece de algum modo falar do que proponho. Trata-se de images, interpretada por Nina Simone. Ao deixar que a música me capture, presto atenção em sua letra, que fala: Ela não sabe sobre sua beleza/ ela pensa que seu corpo negro não tem glória/ mas se ela pudesse dançar nua sob as palmeiras/e visse sua imagem refletida no rio/ela saberia/mas não tem palmeiras nas ruas/e a pia não reflete imagens.
A princípio parece não haver relação direta de tal música com uma disciplina de epistemologia ou com a reflexão sobre construção do conhecimento dito e tido como científico. Porém, a mim a ligação parece tão clara que opto por usar essa música como guia a levar minha escrita quase delirante (numa proposta Deleuziana?) e deixar que o fluxo teórico que por hora me atravessa se some às interpelações que trago.
Uma primeira associação pode ser pensada ao refletir sobre como o aparato científico é posto como ferramenta privilegiada de enunciação. Como lócus possível de dizer sobre as coisas o que elas são. Desse modo se opera uma dinâmica de representação/reapresentação do 'real' que, depois de ser pronunciado se 'com-forma'. Penso de imediato algumas referências diferentes que defendem tal ideia. Parece então haver sentido em traçar alguma genealogia e entender que a partir do movimento entendido como giro linguístico o discurso adentra nos variados campos de produção de conhecimento e com isso, opera modificações nas relações dicotômicas entre sujeito-objeto. O que me chama atenção nesse ensaio é pensar, se há no jogo científico uma dinâmica de representação, em quais corpos e vidas o discurso do conhecimento não encontra eco, ou quando o faz, coloca tais vidas no lugar das anormalidades e do exótico. Busco então respaldo em debates epistemológicos contemporâneos para melhor pensar tais questões.

Das pias que não devolvem imagens
Como primeiro elemento de reflexão, me proponho a pensar sobre como os sistemas de pensamento delimitam redes que parecem hierarquizar discursos, distribuindo possibilidades diferentes aos sujeitos. A pia da música de Nina Simone me chega como potente metáfora, pois se o que libertaria as auto percepções da pessoa que possui o corpo negro era a possibilidade de ver seu reflexo de outros modos – nua, dançando, no rio, lhe é dada apenas a pia como ferramenta de ação. Tal pia pode ser entendida, ampliando a reflexão e puxando-a para o meu trabalho, como o conjunto de aparatos discursivos que delimitam as possibilidades de autoenunciação oferecidas no leque de nosso contexto sociocultural atravessado pelo sistema econômico que nos rege. Nessa perspectiva, faço um paralelo com a noção de que ter possibilidades variadas de se autoenunciar amplia os repertórios de vida possível, desfazendo territorialidades supostamente engessadas a que corpos são alocados e dotando de ferramentas "mais potentes" de percepção. Essa ideia, que pode ser encontrada sob diferentes nomes – empoderamento, agencia etc. me parece fazer algum sentido. Busco inicialmente então a referencia de Donna Haraway para pensar que se o campo científico é, em nossa cultura o lugar de dizer das coisas o que elas são, há atravessando esse constructo uma rede de interesses e jogos de poder que não devem ser subestimados. Desse modo, a ciência passa a ser entendida como um jogo de retórica que convenientemente torna invisíveis e universais os parâmetros que originam os enunciados. Corporifiquem-se, clama Donna Haraway, ao nos convidar a abandonar toda a inocência nós que ousarmos adentrar nas cavernosas paragens científicas. Em consonância, Bruno Latour nos mostra o quanto a ciência não é um microcosmos fechado em si mesmo, mas sim, um jogo atravessado por regras de variados campos, desde a economia dos sistemas de financiamento, até a dinâmica de internacionalização das demandas, passando por relações acumulativas de influências. Se Haraway nos pede pra nos atentarmos, Latour nos disseca as veias por onde corre o fluxo sanguíneo que rega os feitos de afirmação de verdades científicas. Desse modo, a partir do referencial epistemológico feminista trazido por Donna Haraway, podemos começar a pesar na relação que se estabelece entre jogos de poder regidos por sistemas de saber, com grupos 'irrepresentáveis' na cena coletiva.

Violentas Epistemes
Se há hierarquizações nas esferas de saber-poder, como se configura tal violência me parece ser importante ponto para refletir sobre como se operam as invisibilidades. Há dois caminhos a destrinchar.
1 – junto com Haraway penso que há certa invisibilização do sujeito que defende o conhecimento como neutro, como possível de ser elevado ao status de categoria universal. Esse ser, "autoidêntico a si mesmo", tem convenientemente seus marcadores apagados e atravessamentos como classe, raça, gênero, território passam a ser menosprezados na configuração de hegemonias intelectuais. Nesse sentido, invisibilidade protege o status e mantêm os supostos elevados patamares onde residem iluminadas criaturas chamadas cientistas.
2 – invisibilidade paradoxalmente antagônica também me parece ser delegada a certos grupos cujo 'apagamento' torna-se estratégico na manutenção do status quo das nossas cenas coletivas. Se os poderosos cientistas são transparentes, há uma miríade de seres tidos como inexistentes. Sua in-existência é posta como opção diante do 'desconforto' que trazem aos projetos civilizatórios calcados nas heranças colonizatórias banhadas na moral judaico-cristã e alimentadas por séculos de economias imperialistas eurocentradas.
Ao me deparar com esse complexo jogo, busco auxílio nos escritos de Gayatri Spivac, quando ao perguntar sobre se dentro dos jogos imperialistas, quais vivências são postas como subalternas, destrincha as redes de violências que operam mesmo nos campos das intelectualidades. Ela passa a falar então de "sanções narrativas" conferidas a vidas subalternas dentro de um sistema colonial. Posso pensar que, seria um efeito de tais sanções o fato de, na música de Nina, a pia ser o único local possível de construção narrativa para a mulher negra referida na música.
Tal invisibilidade, ainda me parece que por vezes é levada até seu ponto extremo. Zonas onde a vida é insuportavelmente pesada por não caber nos padrões normativos. Resgato a noção de abjeção para lembrar que, nas conceituações operadas a partir de instâncias normativas, sempre há vidas deixadas propositalmente de fora dos ideais eleitos como humanidade. Não humanos/monstros são expulsos para as zonas de não representação. Não se fala, não se vê, não se sabe sobre, parece ser a lógica almejada. Em Judith Butler encontro reflexão sobre como as abjeções se operam, porém, em Julia Kristeva me fica mais direta a relação entre jogos de abjeção e jogos de ciência. Em primeiro, a-bjeto é posto como paradoxal relação radicalmente diferente de ob-jeto. Nesse contexto, se temos no objeto um corpo passível de investimentos, colocamos tal 'objeto' como possível e desejável nos variados contextos de vida. Opera-se uma dinâmica de representação onde tal objeto encontra seu lugar nas dinâmicas culturais. Em paralelo, há corpos que não encontram possibilidades de investimento qualquer. Assim sendo, não se objetificam, não se materializam dentro e a partir das dinâmicas culturais. Esses seres, são expusos da categoria de humano e empurrados ao que Butler chama de zonas inabitáveis da existência. Como efeito político, a "desumanização" de corpos lhes deixa a mercê de toda uma série de atrocidades que sequer serão tidas como "crimes". Pois suas vidas são sempre tidas como menores e menos importantes.
Traçar paralelos entre políticas científicas e políticas de abjeção me parece portanto, ponto fundamental a se pensar epistemologias críticas.

Dar voz?
Quando nos pergunta "pode o subalterno falar?" Spivac não espera compor um manual de passos simples para visibilidade de grupos minoritários. O que se opera é mais a reflexão de como o sistema que define quem tem voz é desde sempre atravessado por projetos colonizatórios. Dar voz passa a ser um paradoxo similar ao que circula a palavra "empoderar", pois teria a/o intelectual que se vista de criticidades esse poder quase divino de "dar" voz a quem eleger como necessitada/o desse ato? Não ouso ainda em um pequeno ensaio buscar aprofundar essa questão, mas parto dela para refletir sobre que modelo de ciência é possível quando nos propomos a perceber com certa clareza as redes de opressão que nos atravessam ao distribuir privilégios a alguns contextos. Haraway segue sua reflexão por caminhos que me permitem traçar fina costura teórica ao propor que um outro modelo de ciência se faz necessário. Ciência de inspiração feminista, diriam algumas, ciência sucessora, diria Sandra Harding, ciência corporificada, nos diria a própria Haraway.
A modificação do pressupostos que delimitam o constructo teórico (como a intrincada noção de objetividade científica), fazem operar em cascata modificações também nos campos subjascentes. Penso então que, o embate na legitimação de uma ciência corporificada, que necessariamente é atravessado por debates da ordem de produção e legitimação dos discursos, necessariamente implica em pensar outras metodologias e formas de 'fazer' científico. Por sua vez, a modificação nesse fazer revela como produto, outras verdades conceituais sobre o mundo. Entendo nesse lócus, metodologia como um espaço propício a materializar proposições político-ideológicas que se originam a partir da reflexão epistemológica crítica.
Para finalizar tal breve ensaio, concluo com a reflexão de que, se há redes constantes de invisibilidade, a metáfora da visão nos é novamente útil. O convite feito por projetos de inspiração feminista parece ser potente ferramenta de autocrítica que me chega enquanto pessoa que busca se apropriar do campo 'científico'. Assim, bebendo nesse referêncial ao pensar sobre violências/colonialismos/opressões também dos campos intelectuais, me insurge o desejo crescente de que nós, enquanto pessoas que manipulam e mobilizam as maquinarias teóricas, possamos sempre nos responsabilizar pelo que escolhemos, aprendemos e queremos ver.

Referências
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. in: Louro, Guacira L. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
_________ Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Espasa libros, Madrid, 2010.
HARAWAY, Donna. Antropologia do Ciborgue. São Paulo: Editora Autêntica, 2009.
___________ Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. In: Cadernos Pagu. Núcleo de Estudos de Gênero/ UNICAMP. São Paulo, 1995.
LORDE, Audre. A Transformação do Silêncio em Linguagem e Ação. 1984 disponível em https://we.riseup.net/assets/171382/AUDRE%20LORDE%20COLETANEA-bklt.pdf. Acessado em 12/04/2014
PRINS, Baukje.; MEIJER, Irene Costera. Como os Corpos se Tornam Matéria: Entrevista com Judith Butler. In Revista Estudos Feministas. vol.10, n.1. 2002.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental – Transformações Contemporâneas do Desejo. Editora Sulina. São Paulo. 2006.
SIMONE, Nina. Images. In SIMONE, Nina. Pastel Blues: Philips Records, 1964
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2010.


Por uma Epistemologia do Invisível

Por uma Epistemologia do Invisível




Tradução livre da letra: "She does not know her beauty, She thinks her brown body has no glory. If she could dance naked, Under palm trees And see her image in the river She would know. But there are no palm trees On the street, And dishwater gives back no images." Disponível em: http://www.vagalume.com.br/nina-simone/images.html#ixzz39bveCznj

Entendo a tensão teórica que se opera a partir desses marcadores, porém entendo que ainda não busco aprofundar tal debate nesse ensaio teórico.
Marcando aqui o masculino propositalmente.
Entendendo corpo não apenas como materialidade, mas também como superfície por onde circulem afetos e intensidades.
Universidade Federal de Pernambuco
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Docente: Karla Galvão Adrião


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