Por uma eugenia mendeliana: as discussões e as (re)definições de eugenia no Correio da Manhã na década de 1930. IN: Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP -2015

May 26, 2017 | Autor: Priscila Peixoto | Categoria: History Of Eugenics
Share Embed


Descrição do Produto

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

1

ANAIS XXXII SEMANA DE HISTÓRIA

Cultura, Memórias e Resistências

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

3

Eduardo José Afonso (organizador)

ANAIS XXXII SEMANA DE HISTÓRIA Cultura, Memórias e Resistências 19 a 23 de outubro 2015

Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras de Assis

Departamento de História ISBN : 978-85-66060-16-4

Assis/SP 2016

Conselho Editorial

Conselho Consultivo

Sílvia Maria Azevedo (Presidente) Karin Adriane H. P. Ramos (Vice-presidente) Álvaro Santos Simões Junior André Figueiredo Rodrigues Carlos Camargo Alberts Carlos Eduardo Mendes Moraes Cleide Antonia Rapucci Danilo Saretta Veríssimo Gustavo Henrique Dionísio José Luis Bendicho Beired Lúcia Helena Oliveira Silva Márcio Roberto Pereira Maria Luiza Carpi Semeghini Matheus Nogueira Schwartzmann Miriam Mendonça M. Andrade Paulo César Gonçalves Ronaldo Cardoso Alves Vânia Aparecida Marques Favato

Adilson Odair Citelli (USP) Antonio Castelo Filho (USP) Carlos Alberto Gasparetto (UNICAMP) Durval Muniz Albuquerque Jr (UFRN) João Ernesto de Carvalho (UNICAMP) José Luiz Fiorin (USP) Luiz Cláudio Di Stasi (IBB – UNESP) Oswaldo Hajime Yamamoto (UFRN) Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ) Sandra Margarida Nitrini (USP) Temístocles Cézar (UFRGS)

Secretário Eduardo Gomes de Almeida Souza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp

S471a

Semana de História (32.:2015:Assis, SP). Anais do 32º Semana de História: cultura, memórias e resistências, Assis, SP, 19 a 23 de outubro de 2015 [recurso eletrônico] / Eduardo José Afonso (organizador). Assis: UNESP Campus de Assis, 2016. 563 f. : il. Vários autores ISBN: 978-85-66060-16-4 1. História. 2. Cultura. 3. Memória. 3. Democracia. I. Afonso, José Eduardo. II. Título. CDD 907.2

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA REITOR: Júlio Cezar Durigan VICE-REITORA: Marilza Vieira Cunha Rudge

FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ASSIS DIRETORA: Andréa Lúcia D. Oliveira Carvalho Rossi VICE-DIRETORA: Catia Inês Negrão Berlini de Andrade

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CHEFIA: Paulo Henrique Martinez VICE-CHEFIA: Áureo Busetto

CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COORDENAÇÃO: André Figueiredo Rodrigues VICE-COORDENAÇÃO: Paulo Cesar Gonçalves

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COORDENAÇÃO: Lucia Helena Oliveira Silva VICE-COORDENAÇÃO: Helio Hélio Rebello Cardoso Júnior

SECRETARIA DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA ASSESSORA ADMINISTRATIVA: Clarice Gonçalves ASSISTENTE ADMINISTRATIVA: Regina Lucia Gonçalves Truchlaeff

5

Coordenação Geral Eduardo José Afonso

Comissão Científica André Figueiredo Rodrigues Andréa Lúcia D. Oliveira Carvalho Rossi Áureo Busetto Carlos Alberto Sampaio Barbosa Eduardo José Afonso José Luis Bendicho Beired Lúcia Helena Oliveira Silva Milton Carlos Costa Paulo Cesar Gonçalves Paulo Henrique Martinez Wilton Carlos Lima da Silva

Secretaria Executiva Thiago Henrique Sampaio Uelisso Frederico da Cruz Empresa Junior de História Contemporânea

Apoio FAPESP CAPES Vunesp

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

7

Nossa Homenagem aos nossos grandes professores Professora Doutora Ana Maria Martinez Correa Professor Doutor Antonio Candido de Mello e Souza

APRESENTAÇÃO

Muitos foram os momentos descritos pela historiografia em que grandes impérios submeteram povos conquistados, não só pela violência, como pela imposição de hábitos e, principalmente, de uma língua oficial. No século XIX, por exemplo, quando da organização dos Estados Nacionais Capitalistas, a necessidade do desenvolvimento de uma capitalismo nacional, fez com que aquelas nuances – línguas regionais e costumes - que haviam sido desenvolvidas ao longo do tempo, e que representavam resistências, fossem derrubadas, em nome de uma unidade. A unidade do Capital Nacional. Criaram-se brasões – que

foram buscados na história –

bandeiras , hinos e uma série de símbolos que a população de regiões extensas, que não falavam a mesma língua, tiveram que identificar como suas – aqui podem ser claros os exemplos da Unificação de Itália e Alemanha. Hoje, século XXI, quando, diante de nossos olhos, aquele projeto da classe burguesa não faz mais sentido – não há mais possibilidade de se pensar num capitalismo nacional - vemos que os Estados, vagarosamente, vão perdendo sua função anterior. Quando se percebe, na atualidade,

a construção de um Estado

Planetário - onde o capital não teria mais barreiras - mais uma vez estamos diante de um processo, que poderíamos alcunhar de “rolo compressor”. A grande questão é que a forma com que se constrói este Estado Planetário, passa , necessariamente, pela destruição das identidades, desenvolvidas durante séculos e como sabemos, sempre como forma de resistência, ou seja, nossa língua e nossos costumes. Ocorre que com os atuais sistemas de informação – e não de formação, nem de conhecimento – não há mais espaço para a reflexão. A comunicação é volátil e a velocidade da tecnologia não nos dá espaço para pensar. Além disto, as tecnologias, hoje, nos ganham pela sua capacidade de nos encantar, de nos enfeitiçar. Estaríamos diante do fetichismo da mercadoria? Nossos hábitos e costumes, nossa língua e nossas formas de ver o mundo, são negadas, como coisas do passado. Esta é a maneira mais eficaz de permitir, aquilo que alguns autores chamam de “servidão voluntária”, ou como diz Zygmund Baumam, o desconhecimento do passado, ou do Interregno. Em nome deste raciocínio, propus o tema desta , tão tradicional, Semana de História , Cultura, Memórias e Resistências. Este evento, um fórum de debate, como

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

9

já é esperado por todos, pretendeu abrir espaço para a discussão deste tema, que cada dia se torna mais premente. Afinal, como nos identificar? Nestes tempos liquidos, de amores liquidos , de valores liquidos, e de modernidades liquidas, onde estamos nós? Se tudo é descartável, como nós mesmos, o que sobra do que já fizemos? Jogaremos no lixo a História, como coisa ultrapassada? Resgatar a Cultura como as formas dos saberes humanos e a História como um de seus elementos, as Memórias, como a soma das lembranças que nos identificam e, as Resistências como formas de manutenção de nossa unidade – não unidade de Estado e sim de Nação - é o caminho que devemos perseguir. É na resistência que nos reconhecemos. É , ou deve ser, nestes momentos de reunião, que devemos reavaliar , principalmente, como historiadores - no dialogo interdisciplinar - o que não pode deixar de ser feito em nome do resgate de tudo que é humano e sensível. A proposta da XXXII Semana de História da UNESP-FCL/Assis, portanto, foi de abrir espaço para o debate e discussão desses temas na perspectiva descrita acima. O evento, pretendeu, deste modo, criar condições para uma integração profícua entre especialistas - não só da História como de outras ciências - e comunidade acadêmica discente da UNESP – graduandos e pós-graduandos - a partir da apresentação de trabalhos, mini-cursos , palestras e mesas redondas , sempre com os temas : Cultura, Memória e Resistência. Defendemos, neste encontro, a importância da prática da interdisciplinaridade na discussão, debate e transmissão do conhecimento histórico produzido por pesquisas de excelente nível. Os textos apresentados aqui refletem o resultado destas preocupações descritas acima e representam o esforço, não só de professores, como de alunos de graduação e pós-graduação, no sentido de dar consistência ao que apresentamos nestes 5 dias de encontro com a História. Eduardo José Afonso XXXII Semana de História - Cultura, Memórias e Resistências Departamento de História - FCL/ASSIS - UNESP

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

11

Índice 1. Alcilene Jorge Lopes Amado e Lampião uma construção imagética......................................................... 15 2. Alex Rogério Silva As Representações dos Autos-da-Fé Ibéricos : A Função das Imagens na Sociedade do Antigo Regime................................................................................. 25 3. Aline Pádua e Nayara Kobori Do surgimento à modernização da imprensa no interior paulista: contextos históricos de São José do Rio Preto e Ribeirão Preto............................ 32 4. Ana Carolina de Souza Ferreira A censura inquisitorial de livros no século XVI em Portugal: o caso de Gil Vicente................................................................................................................... 45 5. Ana Carolina Menocci A ‘guerra’ de poderes no conto O caso da vara, de Machado de Assis: favorecidos e desfavorecidos na luta de sobrevivência na sociedade do século XIX.............................................................................................................. 58 6. André Luiz Rodrigues de Rossi Mattos Álvaro Vieira Pinto, a União Nacional dos Estudantes e a questão da universidade no início dos anos de 1960............................................................... 68 7. Andre Vitor Brandão Kfuri Borba Na Geral: A relação do Popular nos cordéis e crônicas futebolísticas de Nelson Rodrigues................................................................................................... 81 8. Andrea Ramon Ruocco As Formulações de Nação na Primeira República: Um percurso pela obra de Graça Aranha............................................................................................................ 91 9. Antonio Ricardo Calori de Lion O Espaço Cineteatral : Uma Reflexão sobre as mudanças arquitetônicas e urbanísticas em Cuiabá e Goiânia nos anos 1940................................................ 103 10. Augusto Martins Ramires Seria assim tão evidente? O entre tempos do sagrado e do profano no Ensino de História no Brasil Imperial............................................................... 114 11. Beatriz Sodré Ribeiro Representações da Memória em “A Máquina de Fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe........................................................................................................... 124 12. Bruno Cesar Cursini Gilberto Freyre e a Escrita de Si: O trabalho intelectual em suas obras literárias (1964 – 1980)...................................................................................... 132

13. Caroline Sauer Gonçalves A Mesa Inconfidente : Produção e Consumo de Alimentos nas Propriedades dos Conjurados.................................................................................................. 142 14. Eder Adriano Pereira Um Estudo sobre o Código do Menor de 1927 no espaço público brasileiro: uma interpretação arendtiana............................................................................. 151 15. Elói Felipe de Oliveira Thomas Formação do Partido dos Trabalhadores em Cuiabá (1979 -1985)................... 162 16. Emilla Grizende Garcia Sucupiragate: a alegorização da realidade na telenovela “O Bem-Amado”...... 170 17. Gabriel Ignácio Garcia Habitação e urbanização em Londrina através das fontes documentais do CDPH/UEL.........................................................................................................183 18. Gilvana de Fátima Figueiredo Gomes A Divulgação na diacronia: relações entre o projeto editorial e o movimento paranista (1947-1955)......................................................................................... 194 19. Henrique R. da Silva (et ali) O Ensino de História no Brasil: O papel dos PCN’S.......................................... 206 20. Jesiane Debastiani Revista de Imigração e Colonização: ideário temático da política imigratória... 218 21. João Muniz Junior A escrita da história e a narrativa biográfica em Raimundo Magalhães Junior... 232 22. João Pedro Roveri Uso de fontes históricas em sala de aula e seus reflexos na construção da narrativa dos alunos........................................................................................... 245 23. Lahís Moreno Gibelato Estereótipos de gênero em “O Asno de Ouro” de Apuleio.................................. 255 24. Lais Iaci Mirallas de Carvalho Álvaro Lins : O Imperador da Critica Brasileira.................................................. 265 25. Laura Meira Bonfim Mantellatto Modernização brasileira e sociabilidade: o homem cordial em contraste à cultura Individualista........................................................................................... 275

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

13

26. Léa Mattosinho Aymoré O Pasquim e a imprensa alternativa dos anos de 1970...................................... 285 27. Letícia Fernanda da Silva Oliveira Cordelista e Mulher: consonância e ruptura na escrita de Maria das Neves Batista Pimentel.................................................................................................. 298 28. Lucas Alexandre Andreto O Silêncio dos vencidos de Edgar de Decca e o bloco operário e camponês de São Paulo...................................................................................................... 308 29. Lucas de Araujo Barbosa Nunes O Mito permanece? Mário Pedrosa e a Missão Artística Francesa de 1816..... 320 30. Lucas Mateus Vieira de Godoy Stringuetti O Brigadeiro Eduardo Gomes: Uma interpretação de seus discursos políticos (1945-1950)........................................................................................ 332 31. Lucas Suzigan Nachtigall Uma questão de sucessão: O terceiro reinado e a família imperial................... 343 32. Luis Eduardo Bove de Azevedo Docência, história, e linguagens: Novas abordagens no processo de ensino e letramento de crianças........................................................................ 359 33. Matheus Henrique Marques Sussai Casa de madeira em Londrina: O Comércio e a utilização das edificações em Madeira...................................................................................................... 369 34. Mayara Brandão Venturini A escrita autobiográfica de Thomas Jefferson e as representações de si no século XIX................................................................................................... 381 35. Maysa Silva Oliveira A imigração chinesa para cuba no século XIX................................................ 393 36. Paula Tainar Souza O horror poético como ato de resistência ao horror da guerra........................ 404 37. Pedro Luis Zonta Junior Coronelismo e cultura política – uma aproximação teórica............................. 415 38. Phelipe Kauê Ferreira da Silva

Anatol no país do futebol: uma releitura sobre o racismo e ascensão social do negro no Brasil através do match (1900 – 1930).............................. 426 39. Priscila Bermudes Peixoto Por uma eugenia mendeliana: as discussões e as (re)definições de eugenia no Correio da Manhã na década de 1930............................................ 440 40. Rafaela Souza Maldonado A memória subterrânea representada nas telas de cinema................................. 453 41. Roberto Manoel Andreoni Adolfo A noção de lógica histórica em E. P. Thompson............................................. 464 42. Rogerio Aparecido Lopes da Silva Angeli “Um antigamente que sempre volta”: identidade cultural pelos mais velhos na obra avódezanove e o segredo do soviético, de Ondjaki.................. 475 43. Rosane Gazolla Alves Feitosa. As conferências do cassino lisbonense n’a berlinda: Rafael Bordalo Pinheiro e os inícios da geração de 70 portuguesa............................................ 485 44. Tatiane Ananias Fernandes Freitas O professor, a greve, a mídia e a opinião pública: reflexões a respeito da greve dos servidores do Paraná...................................................................... 498 45. Thiago Henrique Sampaio A primeira república portuguesa e a colônia de Moçambique: considerações iniciais........................................................................................ 512 46. Vanessa Pironato Milani O samba paulista tem samba no pé: Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini na coleção História da Música Popular Brasileira.......................... 529 47. Victor Gustavo de Souza O país das maravilhas americano: As terras brasileiras de acordo com os guias para emigrantes.................................................................................... 541 48. Wansley F. de Freitas A história oral como método de pesquisa das práticas e cultura escolar........... 552

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

15

Amado e Lampião uma construção imagética

Alcilene Jorge Lopes Graduanda em História - FMU Resumo A pesquisa tem por objetivo problematizar personagens singulares da obra Capitães de Areia de Jorge Amado. Para isso, o estudo procura relacionar as características do bando de lampião, narradas por Jorge Amado, e o imaginário social brasileiro sobre as ações lideradas por Lampião durante o início do século XX no nordeste do Brasil. Palavras-chaves: Lampião, Jorge Amado, Vargas.

1. Introdução Essa pesquisa procura identificar a construção da imagem de Lampião através do livro de Jorge Amado “Capitães da Areia”1, por compreendermos que esse eixo reflexivo pode remontar não somente um cenário politico e social de uma dada sociedade, como também demonstrar o impacto ou extensões de poderes paralelos constituído no imaginário social. O bando de Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como capitão Lampião, causou as mais diversas sensações referente a sua pessoa, como ódio, respeito, admiração e o desejo de vingança. Em sua atuação de 1920 a 1937 2, estabeleceram vínculos estreitos entre a população e desavença vigorosa com coronéis da região por onde passaram. Lampião não somente passou a povoar o imaginário da cultura popular nordestina como deixou muitos vestígios por onde passou. Como exemplo temos a ação do imigrante libanês Benjamin Abraão3 que registrou sua rotina na forma de filme documentário em 1936-1937, e no mesmo contexto a do Departamento de

1 - AMADO, Jorge: Capitães da Areia, São Paulo, Companhia das Letras, 2009. 2 - Levando em consideração que o cangaço tal como foi conhecido vigorou até a morte do braço direito de Lampião, o Corisco (1938), pois Lampião e Maria Bonita haviam sido mortos em Ângico em 1937. 3 - ABRAÃO, Benjamin: Lampião (1936 – 1937).

Impressa e Propaganda (DIP)4 que censurou as filmagens alegando o prejuízo a moral brasileira visto que exaltava a imagem de um bandido sanguinolento. Ao trabalharmos a apropriação da figura de Lampião não somente interagimos com a pessoa e personagem como passamos a compreender os mecanismos estruturais que geraram esse fenômeno, os elementos de conjuntura histórica. Como estudado por Leal5 (1978), que afirmou, ao analisar o caso especifico do bando de Lampião, que a população recorria ao coronel em busca de segurança para as resoluções de conflito, nascendo assim a capangagem6 e com ela o cangaço7 no nordeste, ou seja, essa força de segurança surgiu como uma resposta potencial ao poder autoritário que o coronel exercia, pois a população nordestina carecia de apoio de particulares para se estabelecer com tranquilidade. A obra Capitães da Areia evidência o cenário social pelo qual Lampião e seu bando passou. Para entendermos como a saga ocorreu devemos apreender o que é dito por Jorge Amado, no discurso direto e indireto. Será utilizada como fonte documental a obra Capitães da Areia, de Jorge Amado, entendida aqui como dispositivo vigoroso para captar o imaginário de uma época. Recorreremos às outras fontes documentais do período, como os jornais e revistas, para operacionalizar o cruzamento de dados e obtenção de referenciais comparativos sobre a leitura elaborada por Amado. Assim como livros ou memórias de pessoas do período para melhor compreender a visão dos que vivenciaram os acontecimentos. O imaginário social criado em torno da imagem de Lampião apresenta-se como importante aspecto da história nacional e evidencia com peculiar simbolismo, que se tornou tão impactante a ponto de gestar um imaginário próprio, no qual essas personagens ganha amplitude a tal ponto que mereceu intensas pesquisas não somente de brasileiros como Oleones Fontes com “Lampião na Bahia”, mas também de do 4

- D’ARAUJO, Maria Celina: A Era Vargas, 2ª edição, São Paulo, Editora Moderna, 1997.

5 - LEAL, Victor Nunes: Coronelismo, enxada e voto, ed. 4, São Paulo, Biblioteca Alfa-Ômega de ciências sociais, 1978. 6 - O capangismo é o fenômeno de milícia de “coronéis”, ou seja, são homens em uma força paramilitar particular. 7 - O cangaço surgiu como também uma força paramilitar, porém sem um coronel central ou um líder financiador, são homens organizados em interesses próprios para combater os milicianos, como estudado por Victor Leal.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

17

britânico Eric Hobsbawn com “Bandidos” e do norte americano Billy Jaynes Chandler com “Lampião: o rei dos cangaceiros”. 2 - Jorge Amado como fonte. Carece no momento elucidar o uso da literatura como fonte ou ferramenta fundamental para a pesquisa histórica. Segundo Antônio Ferreira 8 o uso da literatura como fonte histórica advém do seu contato profundo com o tempo estudado, e por ter sido tornado como uma representação ou uma caricatura do mundo, e principalmente pelo fato dos artistas e escritores entenderem que a arte deveria ser um desdobramento da vida social. A partir do século XX escritores desenvolveram um engajamento e um posicionamento perante a sociedade, então mais que retratar ou imaginar, descobriram que poderiam interferir ou moldar o meio social, no caso especifico de Jorge Amado ter essa visão nos permite questionar: porque ele era um sucesso em tiragens em países socialistas, ou por que espelhava seus ideais ou o porquê apresentava seu posicionamento político em suas obras. Para nos auxiliar nesse feito de nos aproximaremos de dois grandes nomes da critica literária Antônio Candido 9e Alfredo Bosi10. Segundo Candido (1975, p.115), Jorge Amado faz parte de um movimento no qual vigorava um dispositivo político, ao qual "o desenvolvimento do romance brasileiro, de Machado a Jorge Amado, mostra quanto a nossa literatura tem sido consciente da sua aplicação social e responsabilidade na construção de uma cultura". Ou seja, Jorge Amado tinha consciência que suas obras carregavam em si um instrumento de luta e tinha essa intenção de propagar os ideais que circulavam via partido comunista e visavam atingir as camadas mais pobres da sociedade e, além disso, procurava criar uma identidade e memória regional, imortalizando via ficcional práticas do cotidiano. Vejamos a justificativa de Candido: "A consciência social dos românticos imprime aos seus romances esse cunho realista, (...) e provêm da disposição de fixar

8 - FERREIRA, Antonio Celso: O historiador e suas fontes, São Paulo, Editora Contexto, 2009

9 - CANDIDO, Antônio: Formação da literatura brasileira, volume 2, edição 5, São Paulo, Livraria Itatiaia Editora LTDA, 1975.

10

- BOSI, Alfredo: História concisa da Literatura Brasileira, 38º edição, São Paulo, Cultrix, 1994.

literariamente a paisagem, os costumes, os tipos humanos" (CANDIDO, 1975, p. 115). Para Bosi (1994) a produção literária brasileira, de 1930 a 1950, que se compunham de signos e simbologias próprias de um povo e servia como ensaios sociais construiu uma ficção regionalista que partia do pressuposto de uma crítica à sociedade para dar vida aos romances. Como em Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis. Jorge Amado envolve-se com a literatura de proletariado e alcançou sucesso em tiragens em países socialistas, entretanto Bosi (1994, p.401) alerta que “o populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo passar por arte revolucionária”. Bosi (1994) classifica a obra “Capitães da Areia” como uma obra de depoimentos líricos, apesar de trazer a lasciva de narrar à vida no litoral e suas dificuldades. Contudo não podemos ter as afirmativas de cada literato como auto-anulativas e sim complementares, o motivo do engajamento politico de Jorge Amado não sonega ou obscurece que sua grande produção parte de uma formula novelesca que deu certo, e que foi feita de cunho mercadológico já que sabia que haveria quem consumisse seus escritos e fazia a questão de aproximar sua arte das camadas mais populares, e se utilizava disso para a disseminação de sua visão politica. 3. Capitães da Areia semelhanças e apontamentos do seu tempo. Amado percorreu em sua obra, capitães de areia, as seguintes linhas narrativas: moral, condições materiais, luta de classes e religião. Com personagens “reais” e fictícios que aproximava seu leitor ao desenvolver do texto, que tem como fio condutor a criminalidade e a punição contra crimes cometidos por ordem social 11 e com o pano de fundo a sexualidade. A ambientação da obra acontece em um casarão abandonado na beira da praia, local que mulheres não poderiam pisar caso não quisessem sexo, porém extrapola as ladeiras e becos de Ilhéus. Desde cedo os capitães da areia 12 tinham contato com o sexo, os menores aguardavam com ansiedade o momento que pudessem deitar ou 11 - Segundo o historiador Erick Hobsbawn, é todo e qualquer crime que tem como força motriz a desigualdade social. 12 - o nome do grupo de meninos que se união para sobreviver fazendo das mais diversas atividades como pequenos trabalhos como de sapateiro ou carregador ou furtos.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

19

derrubar uma mulher no areal e faze-la sua, mulheres que procuravam um parceiro sexual para seu deleite ou, as menos desavisadas, eram estupradas pelos garotos. Esse cenário se expande quando Amado nos diz que os garotos conheciam cada esquina e ladeira de a cidade de Ilhéus, na Bahia, geograficamente explorada e mapeada pelos personagens da obra, o que dava a liberdade e a possibilidade de cometerem roubos e furtos como mecanismo para a sobrevivência, já que a cidade era dividia, sendo que na parte alta, reservada aos ricos, não se obtinha ajudava os necessitados. A partir dessa chave a história dos garotos de rua, ou capitães da área, começa a se aproximar a trajetória de Lampião e seu bando, que tinha sua sobrevivência assegurada pelo conhecimento geográfico das zonas atacadas, o que permitia uma fuga mais eficaz e maiores chances de despistar os policiais. A obra apresenta o personagem Volta-Seca como elemento vindo das caatingas para o seio citadino litorâneo. Por rememorar seu passado e também tecer sua moralidade, esta personagem, está ligada a imagem que se criou de Lampião dentro do enredo criado por Amado. Na obra Volta-Seca é liderado por Pedro Bala13, essa liderança foi construída pela imagem e semelhança do “herói”14 das caatingas. Podemos notar essa construção ao observar um acontecimento narrado, que demonstra a coragem de Pedro Bala em assumir o risco de ser preso para recuperar a imagem de “Ogum”, entidade do candomblé, que por intolerância religiosa havia sido confiscada pela polícia. Precisamos nos ater há dois pontos importantes, os elementos integradores da esfera litorânea com a do agreste apresentados na forma de Volta-Seca, com seu padrinho Lampião - um personagem que não participa da história, mas que interfere na sua fruição -, e Pedro Bala, o garoto do litoral e assemelhado a Lampião. Volta Seca é descrito como um caboclo do sertão que perdeu suas terras quando um coronel as tomou para si logo que sua mãe faleceu. Na obra ele se dizia afilhado de Lampião. Seu sonho, dito em plenos pulmões, era voltar a encontrar o padrinho e se aventurar pelo Nordeste trazendo mais alegria ao povo sofrido e judiado 13 - Pedro Bala era o líder do bando Capitães da Areia, que ao termino do livro deixa de ser bandido para se tornar líder comunista. 14 - É necessário compreendermos que esse sujeito foi transvestido com diversas histórias transmitidas pela História Oral, o que dificulta chegarmos a uma construção pronta e acabada de Lampião.

pelos coronéis. Amado contextualiza este personagem descrevendo sua saga, que é marcada logo aos quinze anos quando vai para Aracaju e de lá entra em um trem sentido interior e tem seu encontro com Lampião. Após tal encontro passa a fazer parte do bando, e se tornou um assassino sanguinário, que quando preso contava mais de cem mortes. O que é intrigante nesse personagem, Volta-Seca, é que ele era real e sua história era verídica, não em todos os aspectos, pois temos que separar o ficcional e a dita realidade. Vale lembrar que Volta Seca, na vida real, havia sido capturado pouco antes da escrita do livro por Jorge Amado. Por ter sido uns dos poucos a serem presos se tornou um prisioneiro famoso e com muitas visitas. Em capitães da área a validade da liderança de Pedro Bala para Volta-Seca se dá pela semelhança em bravura como seu padrinho, Lampião, e também as benfeitorias e justiça que empregava ao grupo de meninos. Esses garotos tinham suas condutas pautadas nas regras criadas pelos “capitães da areia”, ou seja, tinham regras ou leis próprias para nortear a vida de cada menino. Lampião se torna no livro um personagem marcante não somente para o imaginário dos nordestinos como, também, pela premissa de suas caridades aos mais pobres, ao combater o poder tirânico dos coronéis e seus jagunços, milícia ou guarda costas. Podemos notar o impacto da imagem desse homem quando Amado o descreve como homem que “(...) mata soldado, mata homem ruim. Pedro Bala neste momento ama Lampião como a um herói, a um seu vingador. É o braço armado dos pobres no sertão (...)” (AMADO, 2009, p. 200). Vale lembrar que os crimes de ordem social não eram encarados como fruto de uma desigualdade latente entre os ricos, pobres e miseráveis e sim fruto de uma má formação de personalidade do sujeito, na obra esse contexto é apresentado de forma a evidenciar o posicionamento critico de Jorge Amado. A dificuldade de se consolidar uma estrutura de imagem única de Lampião decorre dos inúmeros relatos que se contradizem do mesmo, na obra de Amado podemos enxergar muito claramente a alcunha de herói construída entre a comunidade carente dos sertões. Contudo é um discurso que nele mesmo se carrega as contradições, pois segundo Pedro Bala Lampião mata homem mal, mas quem é o homem mal? O que deve ser extinto?

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

21

As construções heroicas sobre Lampião podem ser reforças por Oleones Fontes15, Eric Hobsbawn

16

e Billy Chandler

17

que nos ajudam a entender esses

desvios narrativos, porém revelam muito mais que a personagem que Virgulino Ferreira se tornou e sobre a estrutura que o gerou. Surgiu em Pernambuco na configuração de banditismo, que segundo Eric Hobsbawn, provém de crimes de ordem social, ou seja, o sujeito em condição de extremo desamparo recorre a extorsão e usurpação dos bens dos mais ricos ou favorecidos e distribui entre aos mais necessitados, e não constitui um caso isolado no Brasil somente com o Lampião, como também na Inglaterra com o Hobby Hood. A característica essencial para que esse grupo se consolidasse foi o aval da sociedade sertaneja, que o elegeu herói como uma resposta ou reinvindicação as suas condições vida. Lampião em entrevistas realizadas durante as suas passagens aos vilarejos afirmava que entrara na vida de bandido por querer vingar o assassinato do pai a mando de um coronel, mas que tinha anseio de sair daquela vida, entretanto a polícia de Pernambuco não permitia que ele se fixasse a terra para trabalhar por causa da perseguição18. Os sertanejos eram constantemente coagidos pelos coronéis e pela policia, a violência no agreste era excelência. Segundo Billy Chandler, em “Lampião: o rei do cangaço”, Hobsbawn romanceia e analisa de forma errônea a imagem de quem foi Lampião e o seu local social de atuação no cenário brasileiro, já que os bandidos de ordem social, como o próprio personagem Hobby Hood, roubava dos ricos e dava aos pobres. Segundo o autor essa foi a forma mais cliché para se tratar do assunto, mas Hobsbawn se esqueceu que Virgulino trabalhava a mando de alguns coronéis que lhe desse a confiança da guarita e repouso tranquilo. Mesmo encaixando essa figura na categoria de banditismo vingativo, o autor afirma que Hobsbawn tenta inocentar as atrocidades cometidas não somente a personalidade/personagem de Lampião como de outros personagens, como uma espécie de reparação ou um perdão social. Essa é uma chave que não cabe ao historiador exercê-la, quem pode fazê-la é a sociedade em seu tempo. 15

- FONTES,

Oleones Coelho: Lampião na Bahia, Petropólis, 3ª ed., Editora Vozes, 1999.

16 - HOBSBAWN, Eric J.: Bandidos, Rio de janeiro, Forense-Universitária, 1969.

17

- CHANDLER, Billy Jaymes: Lampião, o rei do cangaço, São Paulo ,Paz e Terra, 2003.

18 - FONTES, Oleones Coelho: Lampião na Bahia, Petropólis, 3ª ed., Editora Vozes, 1999.

Paralelamente a imagem de Lampião está às construções dos capitães da área elaboradas por Amado. Seriam esses meninos de rua realmente potenciais criminosos? Segundo Amado na forma que ele retrata a resposta seria, não, não são criminosos, o meio quando não propicia uma vida material digna aos seres humanos os incita a marginalidade, principalmente quando a desigualdade social estimula a luta de classes. Somente a revolução do proletariado seria a solução dos problemas dos meninos de rua para o autor. A esse respeito podemos recortar o seguinte trecho que descreve o perfil de João de Adão para com os Capitães de areia, vale lembrar que esse personagem é uns dos poucos adultos que circulava entre os garotos: (...) A não ser quando João de Adão ria dele e dizia que só a revolução acertaria tudo aquilo. Lá em cima, na cidade Alta os homens ricos e mulheres queriam que os Capitães da Areia fosse para as prisões, para o reformatório, que era pior que as prisões. Lá embaixo, nas docas, João de Adão queira acabar com os ricos, fazer tudo igual, dar escola aos meninos. O padre queria dar casa, escola, carinho e conforto aos meninos sem a revolução, sem acabar com os ricos (AMADO, 2009, p. 108 e 109).

Partindo desse ponto fica bem mais elucidativa a questão da critica social levantada por Jorge Amado, e como um escritor tem na sociedade em que vive manancial para se utiliza como ficção. Podemos, também, refletir sobre a prática de propagação dos ideais comunistas. De certo modo o banditismo é colocado como elemento de salvação e em paralelo a imagem de Lampião como sujeito que propicia a libertação das caatingas, pois ele é apresentado como quem a salva e a protege, como quem trouxe a justiça e o sossego aos marginalizados pelo Estado e oprimido pelos coronéis: (...) Só a caatinga é que é de todos, porque Lampião libertou a caatinga, expulsou os homens ricos da caatinga, fez a caatinga a terra dos cangaceiros que lutam contra os fazendeiros. O herói Lampião, herói de todo o sertão de cinco estados. Dizem que ele é um criminoso, um cangaceiro sem coração, assassino, desonrado, ladrão. Mas para Volta Seca para os homens, as mulheres e as crianças do sertão é um novo Zumbi dos Palmares, ele é um libertador, um capitão de um novo exército. Porque a liberdade é como o sol, o bem maior mundo. E Lampião luta, mata, deflora e furta pela liberdade. Pela liberdade e pela justiça para os homens explorados do sertão imenso de cinco estados: Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia (AMADO, 2009, p. 239).

Outro elemento agregador social foi utilizado pelo escritor quando Volta-Seca, personagem de Capitães da Areia, reflete sobre a comunidade em que foi inserido pelas eventualidades da sua vida. Os ricos são descritos como sujeitos que não só se impunham na cidade como também no sertão.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

23

Amado afirma que Volta-Seca: (...) aprendeu que não era só no sertão que os homens ricos eram ruins com os pobres. Na cidade, também. Aprendeu que as crianças pobres são desgraçadas em toda parte, que os ricos perseguem e mandam em toda a parte. Sorriu por vezes, mas nunca deixou de odiar. Na figura de José Pedro descobriu o motivo por que Lampião respeitava os padres. Se já pensava que Lampião era um herói, a sua experiência na cidade, o ódio adquirido na cidade, fez que ele amasse a figura de seu padrinho acima de tudo. Acima mesmo da de Pedro Bala (AMADO, 2009, p. 238).

Além de ressaltar os problemas vividos pelo grupo Volta-Seca, o personagem, reflete sobre a importância social do seu padrinho, e ainda evidência a relação politico e religiosa que Lampião tem com os padres.19 4. Considerações finais Para compreender a leitura critica elaborada por Amado é preciso compreender o movimento ou fenômeno cangaço20 a partir da sua estrutura geradora, o coronelismo, que foi um fenômeno que ocorre no Estado Novo21. O cangaço surge como resposta ao coronelismo vigente que adota para si funções do Estado, desenvolvendo assim um poder paralelo sob ordem e consentimento dos próprios governantes. Os coronéis eram homens influentes, doutores ou donos de fazendas de pequeno e médio porte na maioria das vezes, porém não deve-se crer que eram muito ricos apesar do padrão de ostentação que carregavam em toda a sua simbologia e signos22, conseguiam viver melhor que um sertanejo por conta das hipotecas do imóvel ou das terras, tendo junto consigo a força miliciana ou a capaganagem23. 19 - E foi exatamente essas considerações com os clérigos que Benjamin Abraão conseguiu filmar o cotidiano dos cangaceiros e nos deixar um registro cinematográfico do dia-a-dia de um grupo tipicamente nômade ou de vida cigana como de Virgulino Ferreira. Como descrito pelos biógrafos de Lampião Oleone Fonte “Lampião na Bahia”, e na obra cinematográfica “Baile Perfumado” de Lírio Ferreira e Paulo Caldas baseado no diário do fotografo, Billy Chandler “Lampião, o rei do cangaço”. 20 - O cangaço surgiu como uma força paramilitar, porém sem um coronel central ou um líder financiador, são homens organizados em interesses próprios para combater aos milicianos, como estudado por Victor Leal em Coronelismo, enxada e voto. 21 - D’ARAUJO, Maria Celina: O Estado Novo, Rio de Janeiro, Jorge Zanhar Editor, 2000. 22 Segundo Leal, o poder simbólico do coronel se dava desde sua alimentação com carne, leite, mel e sobremesas, suas roupas ternos e chapéus, o uso de automóvel e filhos alfabetizados em escolas da capital. 23 - O capangismo é o fenômeno de milícia de “coronéis”, ou seja, são homens em uma força paramilitar particular.

Essa estruturação de poder tal qual aconteceu foi fruto da maneira que o Brasil foi colonizado, a coroa portuguesa transferiu a segurança aos colonatos que interferiam nos problemas e jogos políticos através do peso do seu apoio as candidaturas, com o Estado Novo, Getúlio Vargas e seus ministros, esvaziam essas manobras nomeando interventores que estivessem alheios a essas estruturas, como apontado por Victor Nunes com base nos estudos de Oliveira Viana24. Por esse motivo temos a imagem que Pedro Bala projeta a partir dos relatos de Volta-Seca, para a comunidade carente aquele homem era a salvação e a justiça que pairava sobre as terras secas. Não se é a toa que o elegem que o bandido incomum, o bandido-herói como dito por Eric Hobsbawn, porém Billy Chandler alertou que entrar somente nesse víeis das bondades pontuais de um assassino é eximi-lo de sua culpa, logicamente não entramos nesse instante no prisma que Lampião foi brutamente morto pela policia e teve sua cabeça exibida como troféu da mesma forma que ele gostava de se exibir, não justificamos aqui a legitimidade ou não do ato de expor a cabeça do chefe dos cangaceiros. Voltemos a frisar uma frase da obra Capitães da Areia, para que criemos a dimensão da extensão de influência que esse homem exerceu como rei do cangaço: “(...) E Lampião luta, mata, deflora e furta pela liberdade. Pela liberdade e pela justiça para os homens explorados do sertão imenso de cinco estados: Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia”. – (AMADO, 2009, p. 239)

É exatamente essa força no imaginário do homem, baseada em uma construção dúbia de quem cometeu os mais diversos crimes, mas que tinha como principio base de suas ações o respeito pelas famílias pobres e desafortunadas foi sacralizada construindo um imaginário típico do bando de Lampião. A premissa de manter a honra, que era o bem mais valioso de pessoas que estavam esquecidas dos planos do governo ou renegadas a própria sorte em um ambiente que pouco ou nada tem a oferecer nos momentos de seca. Virgulino foi mais que um indivíduo que se destacou por beneficio ou maléfico a sociedade, ou por representação de sua imagem, que o sacralizou com força na memória coletiva. Fez ficar evidente uma região do país que é constantemente esquecida no estudo referente à República Velha ou Estado Novo. A imagem do Lampião registraram a existência de uma cultura típica, com linguajar, 24 - Os estudos foram embasados na obra “O idealismo da Constituição” de Oliveira Vianna.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

25

memória e história próprias, que por mais que não impactem a esfera econômica e política do Brasil estavam e estão presentes para serem apreciados e entendidos como pertencentes, e não de forma análogas, a uma construção de nação ou ideia de. Não é possível se chegar a uma única imagem do capitão das caatingas, sem ser tendencioso, pois a escrita e a análise da História precisa ser feita muito além do binômio bem versus mal, aqui conseguimos nos aproximar de parte dessas imagens construídas e registradas por Jorge Amado, contudo fazê-la não significa cultuar a um bandido e sim ampliar para o campo do debate teórico elementos culturais e vezes se tornam esquecidos em nossos estudos. As Representações dos Autos-da-Fé Ibéricos: A Função das Imagens na Sociedade do Antigo Regime. Alex Rogério Silva* Mestrando – UNESP – Franca RESUMO: “Os Autos-da-fé eram cerimonias processionais que acompanhavam a entrega dos presos ao poder secular que se encontravam nos cárceres do Santo Ofício e que terminavam sempre com um sermão seguido das leituras das sentenças (...). Um mês antes de sua realização, o Tribunal do Santo Ofício dava início aos preparativos para tal evento: construíam-se estrados e tribunas destinadas aos membros do tribunal eclesiástico da diocese, aos juízes, aos inquisidores, fidalgos e outros que tomassem parte da celebração. Armavam-se palanques para o povo, um dossel para o inquisidorgeral, um tablado menor para os leitores, um púlpito para o pregador e, se o rei assistisse, era preparado um trono riquíssimo, mas sempre mais abaixo que o dossel do inquisidor-mor.” (CARMELO, José Antônio; PECANTE, Maria Helena. O Judeu de Bernardo Santareno. Porto Editora, 1984). Os autos-da-fé realizados durante o período moderno foram objeto de inúmeras representações seja por meio da literatura, como por imagens, ou seja, através de pinturas, gravuras ou desenhos. As imagens, antes de se tornarem objetos culturais, expostos em museus, palácios e galerias, são pensadas a partir de um determinado tempo, espaço e representam ideologias, jogos de poder, na qual, cabe ao historiador identificar tais questões ao examinar uma dada sociedade. Os seres humanos de todas as localidades, como também de todos os períodos históricos fizeram uso da linguagem imagética para representar suas vivências, desavenças, estruturas e críticas sociais. A proposta desta comunicação é analisar a estrutura dos autos-da-fé da Inquisição Ibérica por meio das gravuras e pinturas e, além disso, refletir acerca da importância das imagens no contexto social da época. ** Mestrando em História e Cultura Social pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP – Campus de Franca). E-mail: [email protected].

Palavras Chave: Imagens, Inquisição, Auto-da-Fé.

I.

O Tribunal do Santo Ofício de Portugal e os Autos-da-fé O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, criado em Portugal em 1536, com a

finalidade de zelar pela pureza da fé católica dá inicio a um processo de perseguição àqueles que de alguma forma cometeram, pronunciaram ou defenderam heresias 25, na qual, os cristãos-novos26 seriam suas principais vítimas. Os crimes julgados pelo Tribunal eram de duas naturezas: contra a fé, como o judaísmo, protestantismo, luteranismo, deísmo, libertinismo, molinismo, maometismo, blasfêmias, desacatos, crítica aos dogmas; e contra a moral e os costumes, como bigamia, sodomia, feitiçaria, etc., com toda sua série de modalidades, e que se misturavam com o campo religioso. Os crimes contra a fé eram considerados mais graves do que os crimes contra os costumes e a moral, e as suas penas eram muito mais severas.27

25 Grayce Souza salienta a partir da passagem de Luiz Mott em Sodomia não é heresia: dissidência moral e contra cultura, que Heresia, no “sentido eclesiástico entende-se por um erro fundamental em matéria de religião, no qual se persiste com pertinácia. Objetivamente, é uma proposição contra um artigo de fé. Subjetivamente é um erro pertinente de um cristão contra uma verdade de fé divina e católica. O erro se encontra na inteligência e a pertinácia da vontade.” Já Ronaldo Vainfas em Inquisição como Fábrica de Hereges: os sodomitas foram exceção? apresenta uma definição histórica de heresia, ensejando que tal conceito dentro do próprio domínio teológico conhece subdivisões e comportou mediações na qual estimulou o exame de seus significados no decorrer do tempo em um dado espaço, conforme a conveniência da ação inquisitorial. Segundo as palavras de Vainfas: “Não por acaso na história das Inquisições, quer as medievais, quer as modernas, foi possível com um forte amparo teológico, conforme a conveniência da instituição inquisitorial e o contexto histórico, priorizar este ou aquele delito, considerá-lo mais ou menos heretical, pois a orientação teológica era suficientemente larga para incluir ou excluir pecados da lista dos erros de fé.” SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Para remédio das almas: comissários, qualificadores e notários da Inquisição Portuguesa na Bahia Colonial. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2014, p. 41 (nota de rodapé). VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como Fábrica de Hereges: os sodomitas foram exceção? In.: FEITLER, Bruno; LAGE, Lana; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). A Inquisição em Xeque: Temas, controvérsias, estudos de caso. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006. 26 Cristãos-novos assim eram chamados os judeus convertidos ao catolicismo depois da proibição do culto judaico em 1497. Obrigados a se converterem ao cristianismo, às vezes o faziam de fato, outras vezes não, mantendo uma aparência de vida cristã mas continuando a seguir as tradições judaicas. SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil Africano. São Paulo: Ática, 2008, p. 78. 27 NOVINSKY, Anita. A inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 56.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

27

Fig. 1: Armas e estandarte da Inquisição de Goa 28

Após a apuração processual acerca dos delitos cometidos era deliberado na Mesa do Despacho suas culpas e preparada sua sentença, na qual era proferida nos autos-da-fé, que poderiam ser públicos ou em algumas situações, particulares, em que ocorriam na mesa do Santo Ofício, ou dentro de igrejas, com um número reduzido de pessoas.

Fig. 2: Representação de um auto-da-fé público29 28 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - Séculos XV/XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 29 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - Séculos XV/XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Os autos-da-fé eram grandes festas populares, onde os réus eram apresentados publicamente, as sentenças resultantes dos processos inquisitoriais proferidas, e as penas aplicadas. Os autos-da-fé eram eventos que se realizavam aproximadamente uma vez ao ano, ou em alguma ocasião especial, como uma visita real ou um casamento da nobreza.

A organização do evento começava com o convite a

comunidade, com um mês de antecedência, prometendo a quem assistisse ao auto-dafé quarenta dias de indulgência. Os autos públicos eram muito dispendiosos (...). Construíamse estrados, utilizava-se mobiliário, decorações. Os autos-dafé duravam o dia todo e às vezes, quando o número de réus era muito alto, estendiam-se até altas horas da noite, chegando mesmo até o dia seguinte. À medida que os anos passavam, os autos-da-fé aumentavam seu caráter festivo e sua ostentação. Compareciam o rei, os infantes, toda a corte, e quando havia um visitante ilustre na cidade era convidado de honra. Voltando a seu país, muitos relatavam com aversão a cerimônia que presenciaram.30

A cerimônia tinha início na noite anterior com a procissão da cruz verde 31, e, com os primeiros raios solares com a procissão dos réus e inquisidores, que saiam do Palácio da Inquisição, passando por várias ruas da cidade até chegar à praça onde havia sido montada a estrutura para realização do cerimonial, em uma verdadeira encenação, uma representação teatral da fé. Os penitentes andavam descalços, vestidos com os sambenitos 32 e de cabeça descoberta, onde carregavam uma vela apagada, e, os excomungados uma mitra com a mesma simbologia presente nos sambenitos. Após a procissão, com a exposição pública dos réus, era rezada a missa e, em seguida, a leitura do sermão da fé, 30 NOVINSKY, Anita. A inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 66. 31 O objetivo dessa procissão era levar a cruz do Tribunal – a cruz verde – até o palco do auto-da-fé. A cruz tinha grandes dimensões (cerca de dois metros de envergadura) e simbolizava a redenção de Cristo, supostamente posta em causa pelos hereges. A simbologia da cor é relativamente evidente: o verde era utilizado como cor litúrgica em dias de festa normais e está ligado à ideia de esperança. A cruz era transportada velada, uma prática que encontramos em certas regiões da Europa durante a Quaresma, simbolizando o recolhimento da Igreja durante esse período que precede o momento regenerador da ressurreição de Cristo. BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - Séculos XV/XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 235, 236. 32 Sambenitos são hábitos penitenciais de linho cru pintados de amarelo com os símbolos de reconciliação com a Igreja (cruz vermelha de Santo André) ou os símbolos de excomunhão (o retrato do acusado rodeado por chamas e grifos). BETHENCOURT, Francisco. A Inquisição. In.: GOUVEIA, António Camões; MARQUES, João Francisco (orgs.). História Religiosa de Portugal – Vol.2. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2000, p. 127.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

29

exaltando os feitos inquisitoriais e em contrapartida denegrindo a imagem judaica e a leitura do Édito de fé, ressaltando os crimes perseguidos pela Inquisição. A essa altura da cerimonia dava-se inicio a leitura das sentenças. Os penitentes eram chamados com a vela acesa na mão para abjurarem de suas faltas, enquanto que os excomungados eram relaxados ao braço secular. Devido ao fato de alguns autosda-fé se prolongarem por dois a três dias, devido a leitura de todas as sentenças, somente no último dia eram realizadas os cerimoniais de abjuração e relaxamento. A execução dos relaxados era realizada em um local diferente daquele onde a sentença era proferida. Esta era a forma utilizada para separar dois cerimoniais: o primeiro da publicação das sentenças, realizado pelo Tribunal do Santo Ofício, um tribunal de foro religioso e o segundo cerimonial que era executado por autoridades civis. A estes condenados era dada a última oportunidade de morrerem como cristãos, sendo enforcados antes de serem queimados, ou, serem queimados vivos em caso contrário. Poderíamos pensar que este momento finda o cerimonial do auto-da-fé, entretanto, na memória, este evento se perdura por mais tempo. II.

A memória dos Autos-da-fé e suas representações Com o fim do auto-da-fé fica na memória a humilhação pública, na qual, em um

primeiro momento, o penitenciado se vê obrigado a andar em procissão vestido com o sambenito, mas, além disso, fazer uso dele até a comutação da pena por parte dos inquisidores. Marca esta que ficava pelo resto de sua vida como também aos familiares. Esta humilhação estimulava insultos no ambiente público e a inaptidão do penitente como de sua família para cargos públicos, além do confisco dos bens pelo Estado português, fazendo famílias inteiras ficarem na miséria.

Fig. 3: Hábitos penitenciais dos sentenciados: sambenitos33 Além disso, aos relaxados ao braço secular, antes da execução, eram retirados os hábitos e expostos nas paredes interiores de uma das principais igrejas da cidade, com uma legenda que continha o nome do sentenciado e o tipo do crime praticado. Com a deterioração dos sambenitos, em substituição, era colocado um tecido amarelo com o nome do penitenciado e suas culpas, além de um retrato do mesmo. Nesse sentido: O objetivo de perpetuar a memória infamante do relaxado é evidente, pois verificam-se roubos frequentes, petições constantes de famílias para ser retirado o hábito de um antepassado, bem como protestos de comunidades inteiras contra a presença de sambenitos em suas igrejas e paróquias.34 Dessa forma, a Inquisição utilizava de tais meios para instaurar na sociedade do Antigo Regime ao mesmo tempo um espetáculo, onde reunia-se toda a comunidade, para ver o triunfo da Igreja, mas também apresentar exemplos de pessoas que cometeram delitos contra a fé e as consequências de tais atos. Atinge-se assim uma pedagogia do medo.

33 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - Séculos XV/XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 34 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - Séculos XV/XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 260.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

31

Quando o auto-da-fé terminava, seus vestígios continuavam pairando pelo ar. O povo descrevia os acontecimentos aos visitantes, que chegavam de outros lugares e não tinham assistido ao auto. Pontos interessantes da cerimônia serviam como tema de conversa onde quer que homens e mulheres se reunissem para ouvir as últimas notícias e reviver os acontecimentos passados. Provavelmente os mais velhos comparavam o último sermão contra os descendentes de judeus aos que tinham ouvido em sua mocidade ou aos que seus pais e avós tiveram a oportunidade de ouvir em outra geração.35

Fig. 4: Auto-da-fé de Valladolid no ano de 1559.36 Em suma, a Inquisição, utilizou dos autos-da-fé para duas funções: proferir as sentenças oriundas dos processos desempenhados pelo Tribunal, apresentando os penitentes a sociedade, mas também como uma grande festa, ou nas palavras de Luiz Nazario, um espetáculo de massa, um Teatro de punição e extermínio armado em praça pública, onde compareciam Povo, Estado e Igreja para jurar fidelidade à Inquisição, assistir à humilhação dos condenados e celebrar o triunfo da fé nas formas do arrependimento dos réus ou de sua combustão no queimadeiro, o auto-da-fé geral era a encenação

35 NORTON, Howard Wayne. Sermões antijudaicos pregados nos autos-de-fé em Lisboa, de 1706 a 1750. São Paulo: Universidade de São Paulo (Tese de Doutorado), 1980, p. 326. NAZARIO, Luiz. Autos-de-fé como espetáculos de massa. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 103. 36 BETHENCOURT, Francisco. BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - Séculos XV/XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

espetacular do Dia do Juízo Final para uma massa festiva.37

Do surgimento à modernização da imprensa no interior paulista: contextos históricos de São José do Rio Preto e Ribeirão Preto Aline Pádua38 Nayara Kobori39 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação/Campus Bauru Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática 37 NAZARIO, Luiz. Autos-de-fé como espetáculos de massa. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 109. 38 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC), da Universidade [email protected].

Estadual

Paulista

(UNESP),

campus

Bauru-SP.

Email:

39 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC), da [email protected].

Universidade

Estadual

Paulista

(UNESP),

campus

Bauru-SP.

Email:

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

33

Resumo Pretendemos traçar aqui um panorama histórico do jornalismo no interior paulista desde o século XIX até a modernização dos modos de produção, a partir de meados do século XX. Para tanto, trazemos um levantamento bibliográfico sobre História da Imprensa, com a caracterização dos periódicos, apontamentos sobre a imprensa interiona, surgimento e evolução no estado de São Paulo, e os contextos de produção de dois jornais locais, A Notícia, de São José do Rio Preto, e Diário de Notícias, de Ribeirão Preto. Palavras-chave: História; Imprensa; Interior; Rio Preto; Ribeirão Preto. INTRODUÇÃO Compreendo como problemática a escassez de pesquisas acadêmicas que explorem a produção jornalística interiorana, sobretudo, em seus contextos plurais e peculiares, buscamos traçar neste artigo um panorama sobre a História da Imprensa no Interior de São Paulo, do surgimento à modernização, tendo como base a bibliografia disponível sobre o tema e, de forma mais profunda, explorar os contextos de produção de dois jornais locais, A Notícia, de São José do Rio Preto, e Diário de Notícias, de Ribeirão Preto, publicações das décadas de 50 e 6040. No

interior

de

São

Paulo,

a

imprensa

surge

impulsionada

pelo

desenvolvimento econômico, industrial, sociocultural, político e urbanístico das zonas interioranas (HIME, 1998) 41. Em Rio Preto temos O Porvir, em 1902; e em Ribeirão Preto, o semanário A Lucta, em 1884. Os jornais caracterizavam-se pela produção artesanal, com poucas páginas e tiragem reduzida, marcados pela escassez de recursos técnicos e financeiros. A linguagem tinha influência francesa, agressiva, marcada pela paixão dos debates e das polêmicas (RIBEIRO, 2007)

42

. Na virada do século, as

publicações nacionais passam por um processo de industrialização, com uso de equipamentos sofisticados e novos processos de produção. A linguagem também se 40A exploração dos contextos da imprensa interiorana das cidades de São José do Rio Preto e Ribeirão Preto são fruto das pesquisas de mestrado das autoras deste artigo (“A Notícia”: um retrato do jornalismo rio-pretense nos anos 1950 – Aline Pádua e A voz da igreja no "Diário de Notícias": Ribeirão Preto - 1961-1967 – Nayara Kobori) e pretendem contribuir para a compreensão do jornalismo dessas localidades, bem como suprir a carência de estudos sobre a imprensa dessas regiões.

41

HIME, G.V.V.C. Apontamentos da História da Imprensa em São Paulo. In: LOPES, D. F.; COELHO SOBRINHO, J; PROENÇA, J. L. (Orgs). A Evolução do Jornalismo em São Paulo. 2a ed. São Paulo: Edicon : ECA/USP, 1998.

42 RIBEIRO, A. P. G. Imprensa e História no Rio de Janeiro dos anos 1950. Rio de Janeiro: e-papers, 2007.

transforma, com a valorização da informação, presença de reportagens, matérias, entrevistas e as notícias de sensação (BARBOSA, 2007) 43. Nas décadas seguintes se destacam a consolidação da estrutura empresarial e a luta política no cenário nacional. Os anos 1950 são marcados pela modernização dos processos de produção da imprensa brasileira e pela transformação do imaginário da classe. Na linguagem, os padrões vigentes são gradualmente substituídos pelo modelo norte-americano, que privilegia a informação e a notícia, com uso do lead e da pirâmide invertida. No campo das ideias ganha força o imaginário em torno da modernidade, com os ideais de objetividade, neutralidade e imparcialidade e a busca pela profissionalização. Nesse contexto, o Diário de Notícias, de Ribeirão Preto, apresentou uma ampla modernização, tanto nos meios técnicos, quanto nas formas de linguagem. O jornal pertencia à Cúria Arquidiocesana da cidade e, por esse motivo, relacionava-se com assuntos eclesiásticos e religiosos. O periódico possuía relação com a Associeted Press, agência noticiosa americana que mandava releases através do telégrafo. Outra característica modernizante era a separação dos textos opinativos e editoriais, dos textos informativos. Havia presença de charges, quadrinhos e uma página reservada às mulheres, com dicas de cozinha, moda e comportamento. Já no A Notícia, de Rio Preto, a modernidade, expressa pelas novas técnicas redacionais e de linguagem, é vista como conformadora da profissão e patamar a ser atingido por um grande jornal. É na busca pela modernidade que a folha investe na reformulação de sua redação e maquinário. Também o ideal do profissionalismo está presente marcando o desejo do jornal por estabelecer uma identidade para a classe. O noticiário abarca informações internacionais, nacionais, regionais e locais, com destaque para a tendência ao localismo e à proximidade. IMPRENSA NO INTERIOR DE SÃO PAULO O Estado de São Paulo vivenciou o surgimento do seu primeiro jornal somente após a proclamação da Independência. Antes disso, não se podiam ler jornais editados no estrangeiro ou receber livros sem prévia autorização da Metrópole. Em agosto de

43 BARBOSA, M. História Cultural da Imprensa. Brasil - 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad, 2007.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015 1823, segundo Schwarz (2001)

35

44

, ocorre a primeira tentativa de implantação da

imprensa no estado, com a criação d’O Paulista, de circulação bissemanal, que contava com apoio da Província. Pouco mais tarde, em 1827, surge o primeiro jornal impresso do estado, O Farol Paulistano, pelas mãos do baiano José da Costa Carvalho. Nessa época, o Rio de Janeiro já contava com nove jornais impressos e outras sete províncias somavam 22 periódicos (Hime, 1998). Os grandes jornais da época são fisicamente semelhantes, compostos por duas folhas de formato extenso, privilegiam os artigos e os anúncios. No que se refere à diagramação, Schwarcz aponta que a primeira página é a mais racionalmente organizada, onde apareciam editorial, folhetins, atas, leis e discursos do Império, descritos de forma direta. As demais páginas eram compostas por quatro colunas, com disposição aleatória das matérias, misturando-se informação e publicidade. Já no tocante ao conteúdo, a autora destaca que “À época, tudo era tido como notícia, desde incidentes particulares, como a traição do marido ou brigas pessoais. Eram constantes os relatos de desavenças que envolviam compra de escravos, ou ainda, insultos a determinados elementos da sociedade”. No interior do estado, a imprensa

45

tem início em 1842 com a criação de O

Paulista, por Diogo Antônio Feijó, na cidade de Sorocaba. O jornal nasce 15 anos após a fundação do primeiro periódico impresso no Estado, O Farol Paulistano, de 1827, e 34 anos depois do início da circulação da Gazeta do Rio de Janeiro, de 1808, o primeiro jornal publicado no Brasil (Ortet, 1998; Hime, 1998)

46

. Na sequência

aparecem a Revista Comercial, de 1848 e os jornais O Nacional e O Mercantil, em Santos (1850); O Precursor e O Médico Popular, também em Santos (1851); e O Cometa e O Defensor, em Sorocaba (1852), segundo Gisely Hime (1998). De acordo com Fernando Ortet (1998), o surgimento da imprensa no interior de São Paulo esteve vinculado ao desenvolvimento econômico, industrial, sociocultural, político e 44 SCHWARCZ, L. M. Retrato em Branco e Negro. Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

45 Em “Imprensa do interior: conceitos e contextos”, Francisco de Assis (2013), a partir da observação dos estudos sobre imprensa, define a imprensa do interior como “meios de comunicação – e seus desdobramentos – estabelecidos em cidades de pequeno e médio porte, localizados em espaços um pouco ou muito distantes dos grandes centros urbanos (metrópoles). Podemos dizer, então, sem medo de cometer equívocos que interior, na pesquisa acadêmica sobre a imprensa – e mesmo no chamado censo comum -, consiste em território que não o das capitais e o qual pode estar situado tanto na parte interna das unidades federativas, quanto no litoral e na fronteira entre estados ou na divisa dos países” (ASSIS, 2013, p.14).

46 ORTET, F. A realidade do jornalismo do interior é desconhecida. In: Lopes, D. F.; Coelho Sobrinho, J; Proença, J. L. (Orgs). A Evolução do Jornalismo em São Paulo. 2ª ed. São Paulo: Edicon : ECA/USP, 1998.

urbanístico das cidades. Refletia ainda a crescente necessidade das elites locais de um espaço de expressão em meio às transformações citadinas, por meio do qual poderiam manifestar seus pontos de vista sobre a dinâmica local. Foram 1.081 jornais fundados no interior de São Paulo no espaço de um século (1842 a 1945). De 1823 a 1899 o ritmo de fundação dos jornais foi sempre crescente, nas décadas seguintes, porém, registra-se uma queda acentuada no surgimento de novas folhas. Entre 1900 e 1945, só apareceram 295 jornais, quantidade inferior à observada na década anterior (Gastão Thomaz de Almeida apud Ortet, 1998). Como principal característica dos jornais do interior destaca-se o localismo. Em 1962, durante o I Seminário de Jornalistas do Interior de Pernambuco, Luiz Beltrão apontava a imprensa interiorana como a “voz jornalística da nossa cidade”. Segundo o autor, a grande imprensa pode servir como meio de informação do “mundo afora”, mas são os diários e semanários locais a fonte de informação privilegiada pelo leitor do interior. Esse leitor, como destaca Beltrão 47, está interessado nos seus problemas cotidianos tanto quanto nas ocorrências nacionais e mundiais. Ele precisa de um meio de comunicação “que reflita os seus ideais e atitudes, seus costumes e convenções, seu nível de vida e sua atitude intelectual”. É esse o papel da imprensa local e regional. No mesmo sentido, Lopes (1998) 48, ao traçar um perfil do jornal do interior de São Paulo, afirma que “é no jornal local que o morador busca e encontra, numa linguagem acessível e própria, aquilo que interessa para o seu dia-a-dia”. Segundo o autor, os veículos locais são a principal fonte de informação para o morador do interior. Também Dornelles (2013)

49

, afirma que os periódicos do interior

priorizaram, historicamente, o localismo, ou seja, “a divulgação de fatos e acontecimentos de repercussão local, de interesse imediato dos moradores que residem no município-sede do jornal”. O localismo, segundo Dornelles, condiciona geograficamente a circulação das folhas impressas do interior, restringindo, por 47 BELTRÃO, L. O jornalismo interiorano a serviço das comunidades. In: Assis, F. de. (Org) Imprensa do interior: conceitos e contextos. Chapecó: Argos, 2013.

48

LOPES, D. F.; COELHO SOBRINHO, J; PROENÇA, J. L. (Orgs). A Evolução do Jornalismo em São Paulo. 2ª ed. São Paulo: Edicon : ECA/USP, 1998.

49

DORNELLES, B. O futuro do jornalismo em cidades do interior. In: Assis, F. de. (Org) Imprensa do interior: conceitos e contextos. Chapecó: Argos, 2013.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

37

consequência, seu âmbito de ação, já que estão amarradas a questões de espaço territorial, ao lugar da produção e da cobertura dos acontecimentos, ao espaço de circulação do jornal, aos conteúdos locais, ao interesse do público local e, especialmente, à economia da região por onde circula. Ligada à questão do localismo aparece também a proximidade. Um dos principais elementos da notícia jornalística, segundo Dornelles, a proximidade, que já vem sendo valorizada há décadas pelos jornais do interior do Brasil, deve ser vista como elemento mais importante na constituição do noticiário do interior. Citando Teun van Dijk (1996), a autora aponta que em se tratando dos valores-notícia, a proximidade local e ideológica é transversal a todos os outros valores. Assim, é se valendo da proximidade que o jornalismo consegue perceber os contextos que determinam os demais valores-notícia e, a partir daí, organizar os elementos valorativos, como a novidade, a atualidade, a relevância, a consonância, o desvio e a negatividade. Por sua vez, Camponez (2012) 50 afirma para a existência de diferentes formas de entender a proximidade. Citando Yves Agnés e Jean-Michel Croissandeau, aponta que para além da proximidade física e geográfica, há também as dimensões temporais, psico-afetivas, socioprofissionais e socioculturais. No caso dos media regionais e locais, afirma Camponez, a proximidade assume um significado próprio, marcante da sua especificidade e da sua identidade. Os conteúdos veiculados pelos jornais impressos do interior estão estritamente relacionados ao localismo e a proximidade, atendendo aos interesses da comunidade onde circulam. Nessas folhas ganha destaque a atuação das associações e das organizações não governamentais, o dia-a-dia das escolas, os clubes, o policiamento, o movimento do comércio, os movimentos culturais e a atuação de cidadãos que se destacam por ações sociais, comunitárias, educativas, artísticas e culturais. Esses jornais atuam não só com o objetivo de informar, como ocorre na grande imprensa, alguns deles fazem pressão sobre os governos locais, com campanhas na busca por soluções de problemas da comunidade, que se valem da exposição pública e recorrente do fato (DORNELLES, 2013).

50 CAMPONEZ, C. Jornalismo regional: proximidade e distanciações. Linhas de reflexão sobre uma ética da proximidade no jornalismo. In: Correia, João Carlos (Org). Ágora – Jornalismo de proximidade: limites, desafios e oportunidades. LabCom Books. 2012.

A MODERNIZAÇÃO DA IMPRENSA PAULISTA As transformações ocorridas na imprensa brasileira acompanharam, de certa forma, o desenvolvimentos das urbes e o crescimento das cidades. Houve uma racionalização do espaço urbano, tendo como uma das características o aprimoramento dos meios de transporte (construção de ferrovias, por exemplo), começo da industrialização e crescimento do mercado interno. Essas mudanças puderam ser constatadas no final do século XIX e início do século XX, com ênfase nas grandes metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro. Também os municípios do Oeste Paulista, porção nordeste do estado de São Paulo, alavancaram o seu desenvolvimento, oriundo da economia cafeeira51. Em 1950, a imprensa brasileira passou a se organizar em novos modelos de jornalismo; pautados no ideal de modernização explicitado acima. Assim, houve um abandono do molde francês de redigir jornais e os periódicos incorporaram os elementos norte-americanos de construção textual e gráfica. Podemos citar a introdução do lead 52, a profissionalização dos trabalhadores da área, a reestruturação do design das páginas e o privilégio pela informação. Ribeiro (2007) diz que o modelo estadunidense foi referência também para as perspectivas empresariais, refletindo as mudanças da época e a organização da modernidade urbana calcada no capitalismo. O jornalismo praticado nos municípios do

Oeste

Paulista

surgiu

impulsionado

pelo

desenvolvimento

econômico,

sociocultural, político e urbanístico das zonas interioranas (HIME, 1998). Muito mais do que as mudanças estruturais, o imaginário do conceito de classe foi significativo para empreender tais mudanças, que acompanham o ideal de modernidade, fazendo com que os jornais se tornassem grandes empresas comerciais, detentoras do poderio econômico, influenciando, assim, a sociedade53.

51 FOLLIS, F. Modernização urbana na Belle Époque paulista. São Paulo: Editora UNESP, 2004. 52 O lead é a abertura do texto jornalístico. Nele estão contidas as cinco principais perguntas que norteiam as notícias: Quem? O que? Quando? Como? Onde? Como? Por que? É o símbolo do jornalismo moderno – ele substitui o antigo nariz de cera, que era um texto introdutório longo. Ao lado do lead, temos a técnica da pirâmide invertida, que estrutura as informações de ordem decrescente de importância. Assim, caso fosse necessários cortes nas matérias, optava-se por editar os últimos parágrafos, sem comprometer o conteúdo do texto.

53 ABREU, A. A. Os suplementos literários: os intelectuais e a imprensa nos anos 50. In: ________et al (Org.). A imprensa em transiçao: o jornalismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro: Ed. Fundaçao Getulio Vargas, 1996.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

39

Em 1950, o Diário Carioca lançou o primeiro manual de estilo e redação do Brasil e introduziu em sua redação a figura do copy-desk, da qual os profissionais se revezavam para corrigir, editar e até, possivelmente, reescrever as matérias. Nesse cenário, podemos citar também o Última Hora, o Jornal do Brasil e o Tribuna da Imprensa, que deram uma nova roupagem à sua apresentação gráfica-editorial, modificaram a sua linguagem e passavam a estruturar a primeira página como uma “vitrine”, trazendo os principais acontecimentos noticiáveis, com o intuito de chamar a atenção do leitor (RIBEIRO, 2007). Ribeiro (2007) pontua que essa nova tendência de fazer jornalismo aprimorava a relação triangular entre o jornal, o público e a publicidade. O jornal passava a atrair a atenção do público por meio da linguagem, que através da busca pela objetividade dava uma representação do real. Dessa forma, o consumo de notícias se dava junto com a publicidade; esta última, contribuindo com a manutenção das folhas por meio de financiamentos. Sodré (1983)

54

diz que havia uma crescente dependência da

imprensa em relação à publicidade durante a segunda metade do século XX. Podemos abrir um leque para discutir a liberdade de imprensa na sociedade capitalista, que “existe” em função da autonomia do seu capital. Para o pesquisador, a dependência publicitária e a imprensa empresarial foram os grandes responsáveis pela preparação do golpe civil-militar de 1964, ocasionado pelo clima de instabilidade política desencadeada, dentre outros grupos, pela oposição dos grandes jornais ao governo de João Goulart que era considerado ameaça à propriedade privada. A NOTÍCIA: PERFIL DO JORNALISMO RIO-PRETENSE A edição de número 6.945 do A Notícia (AN), veiculada em primeiro de janeiro de 1950, marca o início das publicações realizadas pelo jornal durante a década. O matutino chegava ao 26º ano de circulação na cidade de São José do Rio Preto e região. Leonardo Gomes, que está à frente do periódico desde 1936, é apresentado como diretor-proprietário e redator. Como slogan e função a folha se propõe a ser o “Diário matutino da Araraquarense”.

54 SODRÉ, N. W. A História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1983.

O A Notícia é impresso em formato standard, contendo de quatro a seis páginas, podendo atingir mais de 30 em edições comemorativas. É na primeira e última página que se concentram os conteúdos informativos. As páginas internas trazem colunas e sessões especiais, editais, além de grande quantidade de anúncios. No decorrer da década de 1950, aparece com regularidade, nas páginas internas, a publicação da programação dos cinemas locais e de tabelas com resultados dos campeonatos esportivos. O temário do AN durante os anos 1950 é variado e envolve assuntos ligados à política, esportes e cidade. O noticiário político é forte no periódico com discussões que abrangem os âmbitos local, nacional e internacional. Sucessões presidenciais, negociações partidárias e ações da Câmara e Senado aparecem como foco principal das publicações sobre política nacional. Ganha destaque, por exemplo, em 1954, as polêmicas em torno do chefe do executivo, Getúlio Vargas, e, posteriormente, seu suicídio. Já o noticiário internacional gira em torno, sobretudo, das tensões entre os polos da Guerra Fria. As matérias relacionadas à política nacional e internacional são transcritas de outros veículos ou baseadas em release de agências de notícias. Os esportes são destaque também nas edições do A Notícia. Há divulgação de campeonatos e partidas de diferentes modalidades, mas o futebol aparece com maior frequência. Em 1957 dá-se início à divulgação de tabelas com resultados e classificação dos campeonatos paulista, carioca e amador municipal. Em relação aos acontecimentos da cidade, nota-se a presença de matérias sobre infraestrutura, problemas socais, saúde e educação. Há também a divulgação de festividades organizadas pelas entidades locais, eventos religiosos, saraus escolares, noites dançantes. Nesse sentido, aparece a seção “Vida Social”, que traz aniversários, falecimentos, formaturas, casamentos, etc. Além desses, temas variados, como beleza e esoterismo – com a publicação do horóscopo a partir de 1956 – aparecem no jornal. Como característica destaca-se a opção por criar seções temáticas ou colunas que exploram assuntos diversos – como esporte, política, política, arte, beleza – vêm assinadas por colaboradores, incluindo a presença feminina, e são publicadas regularmente. É importante notar que os temas explorados pelo jornal vão de encontro à definição de Beltrão sobre os periódicos do interior. Assim, ao privilegiar o noticiário local, atendendo aos anseios de seus leitores, o A Notícia é “a voz” de Rio Preto. Na mesma perspectiva, atua no que Mathein, citado por Dornelles, chamou de

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

41

“complemento à experiência cotidiana dos seus leitores, completando-a por meio da informação disponível, quer sobre a realidade mais próxima, quer sobre os acontecimentos mais distantes”. No tocante à linguagem, vemos no início dos anos 1950 recursos ainda muito próximos dos utilizados nas décadas anteriores. Títulos e textos são adjetivados e a objetividade ainda é ausente. As alterações nos recursos de linguagem, com introdução de novas técnicas, são lentas, mas gradativas. É assim que uso do título, linha fina e lead ganha espaço. A introdução do uso do lead, assim como título e linha fina em conjunto, apresenta desenvolvimento lento, com a não aplicação da técnica em sua totalidade. O lead tradicional não aparece em todas as matérias do jornal. Em muitos casos, os elementos Quem? O quê? Quando? Onde? Como? Por quê? estão diluídos ao longo do texto. Assim, outra técnica, a da pirâmide invertida, também aparece como pouco utilizada pelo periódico. É importante apontar também para a construção gráfica do jornal. São oito colunas verticais em formato standard. Os títulos aparecem em tipos grandes, em destaque sobre linha fina e texto. A linha fina comumente aparece em caixa alta, com letra pouco maior que a usada no corpo do texto. A utilização de fotos e ilustrações é recorrente, sobretudo, na primeira página e matérias esportivas. Também na publicidade esses recursos ganham força, com tipos e tamanhos variados. Há também diagramação diferenciada para colunas e sessões especiais. Outra questão importante, além da inserção de novas técnicas de linguagem e edição gráfica, é o discurso de modernidade presente no A Notícia. Nesse aspecto, destacamos as publicações realizadas em ocasião do 33º aniversário do jornal. Em 30/11/1956, trata-se da necessidade de tornar o jornal moderno. “Ao atingirmos o 33º ano de vida e trabalho, estamos no dever, obedientes ao imperativo dos interesses locais e regionais, de criar um grande diário, que seja, esse sim, não apenas o interprete das aspirações rio-pretenses, mas também uma expressão de fato, da pujança evolutiva de nossa cidade. Em resumo, estamos determinados a dar a Rio Preto e sua região um jornal ao nível de sua altura, um diário moderno, bem feito materialmente e plenamente satisfatório quanto a todos os mais requisitos que caracterizam um órgão de imprensa de nosso tempo. Já demos início à constituição de uma sociedade anônima, de capital adequado ao vulto do empreendimento, e na realização do qual entrará o patrimônio atual de nosso diário, juntamente com os nossos recursos financeiros suficientes para montar, organizar e

fazer circular “A Notícia” em moderna feição”. (A Notícia, p.1, 30/11/1956) No mesmo sentido, em 04/12/1956, aponta-se para a reforma do prédio do jornal na Rua General Glicério. Indica-se que o novo AN consistirá em três linotipos, uma impressora rota-plana, além de máquinas acessórias e complementares. Esses equipamentos, segundo a matéria, permitirão a publicação de um jornal de 12 a 16 páginas, com impressão a cores e abundante ilustração, atingindo a impressão de cinco mil exemplares por hora. Também o ideal da profissionalização aparece como discurso recorrente no jornal rio-pretense. De encontro ao que expôs Barbosa, ao identificar na narrativa de memória dos jornalistas dos anos 1920 a tentativa de estabelecer o grupo como uma classe profissional com suas místicas e contornos, há no AN o desejo por cunhar uma distinção para a classe e, assim, identificar os jornalistas dentro de uma classe profissional própria. Nesse sentido, merecem destaque as publicações que tratam do Curso Particular de Jornalismo realizado em Rio Preto, em julho de 1955, sob o patrocínio da Liga de Emancipação Nacional, segundo o programa da Pontifícia Universidade Católica e com aulas do jornalista Demostenes Gonzalez, secretário do jornal. Ainda em relação ao profissionalismo, mas tratando também da formação da classe profissional, há o registro dos congressos de jornalismo, como o “Congresso Mundial de Jornalistas nas comemorações do IV Centenário”. DIÁRIO DE NOTÍCIAS: RIBEIRÃO PRETO E O JORNALISMO A exportação da cafeicultura em Ribeirão Preto fez com que o município se modernizasse, tendo um amplo crescimento populacional, aumento e sofisticação das edificações, implantação de infraestrutura urbana, embelezamento, surgimento de clubes, cinemas e jornais. Apesar da face nova e moderna da cidade, a política do período republicano ainda era dominada pelos coronéis, os chamados “clãs eleitorais” que controlavam os votos, partidos e a administração pública (MATTIOLI, 2011) 55.

55 MATTIOLI, A. F. A teia do poder: coronel Junqueira e a política da Primeira República em Ribeirão Preto. XXVI Simpósio Nacional de História. ANPUH. São Paulo, 2011.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

43

No final do século XIX e início do século XX, a imprensa de Ribeirão Preto começou a se consolidar. O primeiro jornal longevo foi o Diário da Manhã, criado em 1898 por Juvenal de Sá, seguido do A Cidade, em 1905, por Enéas Ferreira da Silva e, posteriormente, por Orestes Lopes de Camargo56. Nos anos de 1950, os dois jornais mencionados deram início a uma tímida modernização gráfica-editorial, refletindo a urbanização da cidade, os princípios desenvolvimentistas de Juscelino Kubistchek e o ideal de modernidade da época57. Contudo, o jornalismo de Ribeirão Preto viveria seu período áureo na década de 1960, a modernização das redações, profissionalização dos jornalistas e o crescente privilégio do jornalismo informativo. Apesar de ser catalisado o golpe civil-militar brasileiro na mesma época, os anos de 1960 representam um novo modelo de prática jornalística em Ribeirão Preto, tendo como símbolos os jornais Diário da Manhã, Diário de Notícias, O Diário e A Cidade (de todos os jornais mencionados, apenas o A Cidade passou incólume o período ditatorial e se consolidou como o periódico de maior circulação na região)58. O Diário de Notícias foi fundado em 1928 pela família Silva Lisboa, tendo uma mudança de direção em 1944, quando passou para as mãos da Cúria Arquidiocesana. Nos anos de 1960, passou a ser dirigido pelo Padre Celso Ibson de Sylos, coordenador da “Frente Agrária Paulista”, movimento que buscava o diálogo com os trabalhadores assalariados da zona rural para adesão às reformas agrária. O conhecido “jornal dos padres”, como era chamado o Diário de Notícias, foi o que mais sofreu com a repressão política 59. Em dois de abril de 1964, o Padre Celso Ibson de Sylos foi perseguido pela Polícia Militar local e diário foi impedido de circular. Apesar dos problemas políticos enfrentados pelo jornal e pelo seu diretor, a folha seguia com o terceiro lugar no número de circulação, perdendo apenas para o Diário da Manhã e o A Cidade. O formato era standard, com uma variação de 4 a 12 56

ROCHA, P. M. & ZAUITH, G. A história da consolidação da imprensa do interior no contexto da Belle Époque Paulista. In: Revista Interin. Curitiba. V.11. N.1. jan/jul 2011.

57 SANT’ANA. A.

M. Imprensa, Educação e Sociedade no interior paulista: Ribeirão Preto (1948-1959). Dissertação (Mestrado em Educação Escolar) UNESP, Araraquara: 2010.

58 ARAÚJO, L. C. E. de. & GERALDO, S. Memória do Jornalismo Impresso de Ribeirão Preto – O início da profissionalização das redações (1965-82). XI Simpósio de Ciências da Comunicação na Região Sudeste/INTERCOM. Ribeirão Preto, 2006.

59 MARINO, D. Orquídeas para Lincoln Gordon: depoimentos sobre o golpe de 64. Ribeirão Preto: Legis Summa, 1998.

páginas, divididas em seções personalizadas (como esporte, política, informações da pastoral e uma página voltada especialmente para as mulheres). Apesar de não ser líder no público-leitor, observamos as semelhanças do DN com o jornalismo praticado nos grandes centros urbanos: uma diagramação moderna, introdução de fotografias e caricaturas, publicação de notas da assessoria americana Associated Press United e uso intenso da publicidade. A trajetória do DN é notável, visto que era um jornal moderno, representativo e com princípios norteadores de esquerda e católico. Havia uma preocupação do religioso com as questões e problemas sociais das camadas populares da sociedade. Destaca em um de seus editoriais: Os que quiserem seguir a bandeira do cristianismo terão que enfrentar de maneira decidida todos os grupos e pessoas, responsáveis pelas grandes injustiças da atualidade. E mais do que isto, terão que lutar com todas as suas forças para que possamos conseguir implantar, dentro dos princípios democráticos, um novo regime que satisfaça os reais anseios do povo60. Com uma face moderna e indo na contramão dos grandes jornais da capital, o Diário de Notícias configurava-se como um periódico local, com um jornalismo singular praticado em Ribeirão Preto. Percebemos, portanto, o diálogo político e moderno presente na imprensa, que refletia também nas estruturas políticas e sociais da cidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS A imprensa paulista estabeleceu padrões e lógicas que repercutiram no desenvolvimento dos meios de comunicação nacionais. Priorizar a análise Rio-São Paulo esbarra no problema de excluir a existência de outras perspectivas e dinâmicas locais complexas, que não se encaixam nas predefinições das duas principais capitais do Sudeste. Procuramos fomentar a discussão do jornalismo regional e local, entendendo as especificidades da região e, de que maneira, esse modelo nos ajuda a compreender a sociedade da época.

60 SYLOS, Padre Celso Ibson de. Posição dos Cristãos. Diário de Notícias. Coluna Nosso Comentário. 31 de ago. de 1962. p.2.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

45

De um lado, temos o A Notícia, de S. J. do Rio Preto, que na década de 1950 misturava o modelo francês e o norte-americano, na composição de suas matérias. As alterações significativas se fazem sentir mais no campo das ideias, com a adoção dos ideais de modernidade e profissionalismo. Do outro, temos o Diário de Notícias, jornal católico moderno, que praticou um jornalismo diferenciado nos ideias políticos da década de 1960 e também modernizou sua estrutura gráfica e textual. A modernidade, expressa pelas novas técnicas, é vista como conformadora da profissão e patamar a ser atingido pelos jornais, que reestruturaram os padrões jornalísticos e nos dão perspectivas para a compreensão do jornalismo brasileiro hoje.

A censura inquisitorial de livros no século XVI em Portugal: o caso de Gil Vicente Ana Carolina de Souza Ferreira Universidade de São Paulo61

Resumo: Este artigo tem por objetivo tratar dos procedimentos de censura inquisitorial sobre a Literatura Portuguesa, focando no caso específico da obra do dramaturgo Gil Vicente (1465-1536). Desta forma, buscaremos traçar o panorama histórico do estabelecimento da Inquisição em Portugal e como se organizou a censura de livros no século XVI. O exemplo de Gil Vicente é bastante profícuo para este fim, pois durante a vida do autor, os textos de suas peças foram publicados livremente, situação que mudou logo após a sua morte, em 1536, e que afetou as duas edições da Compilação de todas as obras de Gil Vicente, livro que apresenta a maior parte de sua obra. Por meio de dois exemplos, o do “Auto da Barca do Inferno” e o do prólogo da primeira edição da Compilação, mostraremos como as preocupações censórias se manifestaram. Palavras-chave: Inquisição portuguesa; Gil Vicente; Crítica Textual 1. Introdução As pesquisas inseridas na área da História podem se valer dos mais diversos tipos de documentos, entre eles o texto literário. Em geral, tais estudos focam em algum autor específico, em sua trajetória, no conteúdo de suas obras e como este se relaciona com o seu contexto sócio histórico, porém nem sempre se leva em consideração o processo de publicação desses textos como revelador de aspectos do período que se pesquisa. Desta forma, com os objetivos de estudar a transmissão de documentos escritos e restituí-los à sua legitimidade, surge o método da Crítica Textual. A Crítica Textual é uma disciplina filológica cujo surgimento remete à biblioteca de Alexandria no período clássico. Nesse momento, por meio do estabelecimento de sinais e algumas regras de transcrição pelos escribas em relação aos textos que ali 61 Mestranda do programa de Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

47

eram armazenados, nasce o embrião do que hoje se conhece por Filologia, demonstrando já esta primeira preocupação com o estabelecimento fidedigno do texto mesmo que de maneira ainda rudimentar. Contudo, talvez o momento mais relevante para a Crítica Textual seja o século XIX, com a criação de um método mais consistente de estabelecimento de textos por Karl Lachmman. Tal método permanece em essência como norteador da Crítica textual e implica em algumas etapas para o estudo da transmissão e reprodução do texto de qualquer documento escrito. Entre tais etapas, duas são relevantes para os estudos de fontes históricas: Recensão, na qual se faz a recolha bibliográfica sobre a publicação do documento e o levantamento de seus testemunhos/edições relevantes; e Colação, na qual por meio da comparação dos testemunhos elencados, se faz uma listagem das variantes substantivas entre eles. Estes procedimentos contribuem para entender a obra, literária ou não, e seu contexto de produção tanto quanto seu conteúdo, além de garantir a leitura de um texto fidedigno, isto é, na medida do possível, de acordo com a última vontade de seu autor. Nesse sentido, a relação direta entre produção e publicação de obras literárias e questões históricas permite o estudo, por exemplo, de períodos em que há o cerceamento, parcial e/ou total, da produção intelectual de um determinado país. Destarte, este artigo pretende descrever a relação entre a implantação da Inquisição em Portugal e, por consequência, da censura de livros no século XVI, evidenciadas pela transmissão da obra do dramaturgo Gil Vicente. Para tanto, passarse-á pelos fatos mais relevantes da vida e da obra do autor e pela trajetória da fundação da Inquisição em Portugal, dos mecanismos e organização de censura de livros e como isso se manifestou, tomando como exemplo dois textos vicentinos, a peça “Auto da Barca do Inferno” e o prólogo da primeira edição da Compilação de todas as obras de Gil Vicente. 2. Gil Vicente, transmissão de sua obra e as suas relações com a Inquisição portuguesa. Gil Vicente provavelmente nasceu em 1465 e morreu em 1536, ano de sua última peça, “Floresta de Enganos”, e, ironicamente, em que se estabelece a Inquisição em Portugal. Isto demonstra que durante sua vida, o autor não teve que enfrentar qualquer forma de censura em relação às suas obras.

O dramaturgo português teve sua estreia em 1502 com o “Auto da visitação”, também conhecido como “Monólogo do vaqueiro”, no qual Gil Vicente adentrou o quarto da rainha parturiente e representou um vaqueiro, homenageando, em castelhano, o nascimento do príncipe João. Neste episódio estava presente a rainha viúva de D. João II, D. Leonor de Lencastre que, impressionada com aquela performance inovadora62, torna-se a mecenas do dramaturgo. É por esta relação de mecenato e da condição de poeta áulico que se deve considerar que Gil Vicente ocupava, de certa forma, uma posição privilegiada na sociedade portuguesa. Suas peças eram escritas, dirigidas e às vezes até atuadas pelo próprio dramaturgo, e eram produzidas em função dos acontecimentos da corte, como casamentos, nascimentos ou mesmo mortes, e eram realizadas em seus diversos espaços, como capelas reais e castelos. Segundo Bernardes : A condição de artista de corte é, sem dúvida, a que melhor se adequa à figura de Gil Vicente. [...] Em boa verdade, a corte constitui um corpo social especialmente heterogêneo e conflitivo; deve-se ter em conta, de igual modo, que embora vinculado ao ponto de vista do rei, Gil Vicente assume a função de desvelador de realidades escondidas, afrontando assim, com toda a certeza, um sem número de conveniências instaladas. (BERNARDES,2008, p.24-25)63

As peças vicentinas costumavam satirizar a sociedade portuguesa, por meio de personagens que representavam tipos sociais ou personagens alegóricos. Os autos vicentinos apresentam um caráter de denúncia das corrupções dos indivíduos que se mistura ao ridículo das situações vivenciadas, trazendo crítica e humor ao mesmo tempo. As críticas aos comportamentos sociais se baseiam fortemente na ideologia cristã, pois, como aponta Pimpão (1947, p. 145)64, o autor não foi um humanista, mas sim “um representante do outono da Idade Média”, o que se reflete nas referências,

62 A representação foi tão inovadora que Gil Vicente foi considerado o criador do teatro em Portugal por muito tempo, até que este pensamento foi desconstruído por críticos literários como Francisco Rebello em O primitivo teatro português, ao considerar que o autor apenas amadureceu outras formas de apresentação que já existiam. 63 BERNARDES, J. A. Gil Vicente. 1ª edição. Coimbra: Edições 70, 2008.

64 PIMPÃO, C. "As correntes dramáticas na Literatura Portuguesa no século XVI". In: A evolução e o espírito do teatro em Portugal. Lisboa: Sociedade Nacional da Tipografia, 1947. p.140-155.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

49

em suas peças, aos grandes textos litúrgicos, bastante conhecidos por Gil Vicente (Teyssier 1982, p.14)65. Os autos vicentinos também circulavam por meio de impressões em folhetos avulsos, vendidos em um papel de material mais frágil e mais barato, pendurados em cordas. Deste tipo de impressão, foram encontrados sete textos de Gil Vicente, porém apenas dois sabemos que foram publicados durante sua vida: “Auto da Barca do Inferno” (1517) e “Farsa de Inês Pereira” (1523), sendo que o primeiro foi visto e emendado pelo autor conforme escrito em seu colofão. É interessante notar que, como já dito, Gil Vicente não sofreu qualquer forma de censura durante sua vida, porém talvez isso só tenha ocorrido porque nem D. Manuel nem D. João III conseguiram autorização papal até 1536 para estabelecer o tribunal do Santo Ofício em Portugal. O processo de estabelecimento da Inquisição em Portugal remete diretamente à Inquisição em Espanha, vigorante desde o século XV. Primeiro, por causa do édito de expulsão dos judeus do território espanhol em 1492, que ocasionou uma grande migração destes para Portugal; segundo, pelo casamento do rei D. Manuel com a filha dos reis espanhóis, Isabela, que exigiu a expulsão dos judeus de Portugal; e terceiro, porque os reis portugueses tentaram estabelecer a Inquisição nos mesmos moldes de Espanha, de maneira que o rei escolhesse quem ocupava a posição de Inquisidor Geral. Estes acontecimentos motivadores aconteceram sequencialmente, entretanto todos apresentam algo em comum: o fato da Inquisição na península ibérica ter como alvo principal os judeus. Assim, do reinado de D. Manuel é preciso destacar que, apesar de em um primeiro momento o rei ter aceitado a entrada dos judeus fugidos de Espanha em Portugal, ele não deixou de cobrar um alto imposto para cada um, e, além disso, por criar uma série de empecilhos para a saída dos judeus do país, acabou forçando o batismo aos que não conseguiram sair do país. (NOVINSKY, 1982)66 Estas atitudes não impediram D. Manuel de requerer o tribunal do Santo Ofício ao papa, o qual recusou o pedido diversas vezes por recear que em Portugal se praticassem os mesmo abusos cometidos pela Inquisição espanhola em relação aos 65 TEYSSIER, Paul. Gil Vicente – o autor e a obra. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982. 66 NOVINSKY, A. A Inquisição. 4ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1982.

judeus. Após a morte de D. Manuel, seu filho manteve a mesma empreitada com Roma, e em 1531 emite-se a primeira bula que institui a Inquisição em Portugal, porém Diogo Silva, o nomeado ao cargo de Inquisidor geral, não quer assumir tal função e por isso a bula é desvalidada. Apenas em 1536, graças a uma grande quantia de dinheiro e a influência de seu cunhado Carlos V, o rei D. João III consegue a bula definitiva. Obviamente, esta trajetória dos reis e dos judeus foi observada por Gil Vicente, afinal o autor trabalhava em função da corte e para os reis. Isto também se reflete em uma série de textos em que o autor ou representa a figura do judeu esteriotipadamente ou defende os cristãos novos, como em sua carta dirigida a D. João III sobre o terremoto de 1531. Curiosamente, o próprio rei encomendou ao dramaturgo a reunião de seus textos para a publicação do livro intitulado Compilação de todas as obras de Gil Vicente, que será o primeiro texto de teatro a ser vistoriado pelo Santo Ofício. A censura de livros em Portugal parece ter se iniciado em 1539, do qual data o primeiro livro (Insino Christão) com o dizer “aprovado pela santa inquisição”, porém ainda não havia uma organização quanto a essa prática. É a partir do ano seguinte, 1540, que nada sai impresso sem antes ser visto pelos censores e todos os navios eram examinados por “visitadores de naus”, a fim de se verificar se carregavam livros hereges. (Novinsky, 1982, p.52). Como aponta Nemésio (2011, p.4)67, isto reflete que a Inquisição só começou a funcionar plenamente após a nomeação do Cardeal Infante D. Henrique para o cargo de Inquisidor-Geral em 1539. Assim, a censura de livros funcionava de duas maneiras: preventivamente, exercida por meio dos índices expurgatórios e concessão de privilégios de impressão; e repressivamente, exercida por meio do controle das alfândegas, portos e livrarias públicas e particulares. Durante o século XVI foram impressos nove índices em Portugal e em três aparecem referências aos autos de Gil Vicente. O índice de 1551, “Rol dos livros defesos”, lista sete autos de Gil Vicente da seguinte maneira: 1. O auto de Dom Duardos que nom tiuer cesura como foy emendado. 2. O auto de Lusitania, com os diabos – sem eles poderse ha emprimir. 3. O auto de Pedreanes, por causa das matinas. 4. O auto do Jubileu de Amores. 5. O auto da aderencia do 67 NEMÉSIO, M. I. “Índices de livros proibidos no século XVI em Portugal: à procura da ‘Literatura”. In: Atas do I encontro do grupo de estudos lusófonos (GEL): Por prisão o infinito: censuras e liberdade na literatura. 2011, p.1-11 Disponível em: http://web.letras.up.pt/porprisao/ .

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

51

paço. 6. O auto da vida do paço. 7. O auto dos Phisicos. (VASCONCELOS, 1949, p.31)68

A Compilação havia sido encomendada pelo rei no final da vida de Gil Vicente e o autor morreu antes de concluir tal tarefa. Seu filho Luís Vicente se responsabilizou por terminar de editar a obra, enquanto sua irmã Paula Vicente conseguiu o privilégio de impressão com D. Catarina. Com a obra em curso de publicação era esperado que aparecessem indicações a serem seguidas previamente, indicações que se repetiram no índice de 1561. A Compilação de todas as obras de Gil Vicente sai impressa em Lisboa, pela oficina tipográfica de João Alvarez, no ano de 1562 e apresenta na capa os dizeres “Foi visto polos deputados da Sancta Inquisiçam”.

Imagem 2: reprodução facsimilar do frontíspicio da edição de 1562 da Compilação e ao lado em destaque para a parte inferior onde há o escrito referente à Inquisição

Apesar de apresentar tais dizeres, a Compilação sai sem seguir completamente as ordenações dos índices de 1551 e 1561, apenas excluindo três textos completamente (“Jubileu de Amores”, “Vida do Paço” e “Aderência do Paço”), enquanto as outras quatro indicações não foram obedecidas. Provavelmente isto ocorreu pelo fato de esta obra gozar de algumas condições privilegiadas, como ter sido encomendada pelo próprio rei, ter seu privilégio de impressão concedido pela rainha D. Catarina, e por ter sido a obra de um autor que foi apadrinhado pela rainha velha D. Leonor. 68 VASCONCELOS, C. M. Notas vicentinas: preliminares de uma edição crítica das obras de Gil Vicente. I a V. Lisboa: Edição da revista Ocidente, 1949. P.9-123 e 509-531.

A partir de 1576, a censura passa a ser tríplice (rei, bispo e inquisidor), demonstrando um enrijecimento neste procedimento. Ademais após a morte do rei, D. João III, e fim dos dez anos de privilégio concedidos para a impressão da Compilação, um comentário sobre essa obra reaparece no Catalogo dos livros que se prohibem, de 1581: Em 1581 os Senhores Deputados da Santa Inquisição, tendo à sua frente Frei Bartolomeu Ferreira, primeiro Revedor benigno dos Lusíadas, não renovaram a sentença. De modo algum por serem mais indulgentes! Muito pelo contrário, apenas porque, depois do desaparecimento de D. Sebastião e D. Catarina, se lembraram de que os textos vicentinos, que haviam escapado em 1562 […] precisavam de revisão severa, cortes e alterações profundas. Nesse sentido determinam expressamente que se proveja na emenda dos Autos de Gil Vicente que tem necessidades de muita censura e reforma – determinação que foi realizada com amplitude, como todos sabem, na 2ª edição de 1586. (VASCONCELOS, 1949, p.25).

Desta forma, se confirma que os privilégios relacionados a este livro e talvez a falta de organização primária salvaram minimamente a edição de 1562, o que não se renovou com a edição de 1586 da Compilação. Braacamp Freire (1944, p.462-463) 69, em sua tentativa de construir a biografia de Gil Vicente, realiza um cotejo entre ambas as edições da Compilação e chega aos seguintes resultados: Ficaram pois proibidas completamente em absoluto pela Inquisição as seguintes obras de Gil Vicente: Auto do Jubileu de Amores, Auto da Aderência do Paço e Auto da Vida do Paço, pela censura de 1551; Prólogo a D. João III, tragicomédia da Exortação da guerra, Templo de Apolo e Romagem de agravados, Auto das Fadas, Farsa do Clérigo da Beira, Auto dos Físicos, Sermão pregado em Abrantes e Carta a D. João III, pela de 1586. […] Por vontade dos Inquisidores toda a obra literária de Gil Vicente ficaria reduzida ao seguinte, que se pode dividir em quatro classes: 1.ª, ilesas: Visitação, Auto de S. Martinho, Auto das Ciganas, Farsa de Quem tem farelos, Trovas e Romance à morte de D. Manuel, Romance à aclamação de D. João III, Trovas ao Conde do Vimioso, a Felipe Guilhem, a Afonso Lopes Çapaio e a D. João III, e o Epitáfio; 2.ª, só com alterações […]: Auto da Sibila Cassandra, 1 verso alterado, Côrtes de Júpiter, alterações em 2 versos, Auto da Índia, em 4, Farsa do Juiz da Beira, em 1; 3.ª, só com supressões […]: Auto Pastoril Castelhano, suprimidos 6 versos; Auto dos Reis Magos, 49 versos; Auto de Mofina Mendes, 137; Auto Pastoril Português, 224; Auto da Feira, 31; Auto da Alma, 14; Auto da Barca da Glória, 9; Diálogo sobre a Ressurreição, 6; Divisa da cidade de Coimbra, 15; Amadis de Gaula, 5; O que os senhores de Portugal diriam ao beijar da mão, 1 verso suprimido; 4.ª, com supressões e alterações: Auto da fé, suprimidos 13 versos, alterado 1; Auto dos Quatro Tempos, 12 e 1; Auto da Barca do Inferno, 193 e 3; Auto da Barca do Purgatório, 5 e 2; Breve Sumário da História de Deus, 42 e 8;Auto da Cananea, 64 69 FREIRE, A. Braacamp. Vida e obras de Gil Vicente: trovador, mestre da balança. Lisboa: Ocidente, 1944.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

53

e 2; Comédia do Viúvo, 34 e 5; Floresta de Enganos, 3 e 7; Serra da Estrêla, 116 e 2; Triunfo do Inverno, 24 e 5; Auto da Fama, 1 e 2; Auto de Inês Pereira, 94 e 13; Auto da Lusitânia, 85 e 1; e finalmente o Dom Duardos, no qual as supressões e alterações são tantas que se não podem contar.

Para melhor visualizar como as emendas foram feitas, trazemos como exemplos para análise dois textos censurados de maneiras diferentes na edição de 1586 da Compilação: O prólogo da primeira edição, suprimido na segunda edição; e o “Auto da Barca do Inferno” parcialmente emendado. 3. Exemplos de censura na Compilação: os casos do “Prologo em que o autor deregia esta copia de suas obras ao muyto alto & excelso Principe el Rey dom Ioam o terceyro deste nome em Portugal” e “Auto da Barca do Inferno”. Na primeira edição da Compilação, o primeiro texto que aparece ao leitor é o “Prologo em que o autor deregia esta copia de suas obras ao muyto alto & excelso Principe el Rey dom Ioam o terceyro deste nome em Portugal”. Nesse texto, Gil Vicente escreve um texto àquele que financiou e encomendou a publicação de sua obra, remetendo a uma convenção comum da época de se fazer uma dedicatória e agradecimento ao mecenas do livro. O prólogo da primeira edição aparece em uma estrutura comum ao gênero carta do período, referenciando a Ars dictaminis influenciada pela retórica ciceroniana, em que se apresenta benevolentiae captatio, narratio, petitio e conclusio. Contudo, o que se mostra relevante para compreender por que motivo este texto foi completamente excluído encontra-se provavelmente em sua parte final, na qual o autor se compara indiretamente a Cristo e aos mártires, pedindo amparo à sua obra e, por fim, agradece ao rei pela encomenda. A comparação aparece da seguinte maneira no prólogo: Outro si querendo nauegar pola rota do seu exordio delles, pedindo a V.A. fauor & emparo, pera que minha enferma escretura nam seja ferida de lingoas danosas. Pareceme injusta oração pedir tam alto esteo pera tam bayxo edeficio, quanto mais que ainda dmo fora de tam nobre emparo, tenho confirado que Christo filho de Deos sob emparo de poderio eternal do Padre & todos seus bem auenturados sanctos nam passaram por esta vida tam liures, que dos malditos detratores nam fossem julgadas suas diuinas obras, por humanas liuiandades: sua sancta doctrina, por maxima ignorancia: sua manifesta bondade, por falsa malicia: sua sactissima graça, por

sorreticio engano: sua excelsa abstinēcia, por vil hipocresia: sua celeste pobreza, por terreno vicio. Pois rustico peregrino de mim, que espero eu? liuro meu que esperas tu? Porem te rogo que quando o ignorante malicioso te reprender, que lhe digas, se meu mestre aqui estiuera, tu calaras. (VICENTE, 1562, p.13) 70

Como podemos ver, há um pedido de proteção por detrás desta comparação, como se o autor já estivesse prevendo a possível censura de suas peças. Para justificar este desejo, Gil Vicente mostra que nem Jesus Cristo, nem os santos passaram por suas vidas sem terem sido vítimas de críticas levianas, o que, por consequência, pode acontecer a qualquer pessoa, incluindo ao autor. Desta forma, não podemos deixar de considerar que o dramaturgo está de fato se referindo à censura inquisitorial, já que, em 1531 quase se estabeleceu o Santo Ofício em Portugal, fato posteriormente consolidado, em 1536, enquanto o autor ainda estava vivo. Outro possível motivo para a exclusão deste texto da segunda edição da obra está em seu trecho final: Finalmente que por escusar estas batalhas & por outros respeytos, estaua sem proposito de emprimir minhas obras se V.A. mo nam mandara, nam por serem dinas de tam esclarecida lembrança, mas V.A. aueria respeyto a serē muytas dellas de deuaçam, & seruiço de Deos enderençadas, & nam quis que se perdessem, como quer que cousa virtuosa por pequena que seja nam lhe fica por fazer: por cujo seruiço trabalhey a copilaçam dellas com muyta pena de minha velhice & gloria de minha vontade, que foy sempre mais desejosa de seruir a V.A. que cobiçosa de outro nenhum descanso. (VICENTE, 1562, p.13)

No encerramento do prólogo se evidenciam dois fatos: primeiro, o de a encomenda da Compilação ter sido feita por D. João III; e segundo, o da justificativa para a impressão das obras ser que grande parte delas é de “devoção e a serviço de Deus endereçadas”. Como explicar as emendas realizadas pelo censor, se a obra vicentina apenas reproduzia os valores católicos, a ponto de ter sido encomendada pelo rei que instaurou a Inquisição? Provavelmente, portanto, este texto foi excluído por apresentar estes dados contraditórios ao afirmado pelo Santo Ofício, que possivelmente não gostaria de assumir que um livro com tantos conteúdos problemáticos tivesse sido encomendado por um rei católico e, curiosamente, com grande parte de peças com mote cristão.

70 VICENTE, Gil. Compilacam de toda las as obras de Gil Vicente. Obras completas de Gil Vicente Reimpressão fac-similada da edição de 1562. Lisboa: Publicações da Biblioteca Nacional, 1928.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

55

Em relação ao “Auto da Barca do Inferno”, temos que ponderar a existência da folha volante de 1517 como determinante para o cotejo entre testemunhos. Desta maneira, a colação envolve este texto como o texto de base em relação às duas outras edições da Compilação, por ter sido o único comprovadamente visto e emendado pelo autor em vida, enquanto os outros dois apresentam certos problemas de fidedignidade já apontados. Quando comparamos então o testemunho de 1517 com o de 1562, encontramos 406 variantes substantivas, isto é, do plano semântico (variantes de palavra, sintagmáticas e morfológicas)71, podendo ser classificadas em variantes de adição (95), omissão (74), substituição (227) e alteração de ordem (10), conforme a tipologia proposta por Blecua (1983)72. Ao empreendermos a mesma comparação entre os testemunhos de 1562 e o de 1586, encontramos 228 variantes substantivas, classificadas em variantes de omissão (223), substituição (4) e alteração de ordem (1). Podemos notar por esses dados que, a priori, a Inquisição simplesmente suprimia as cenas consideradas hereges. No caso do “Auto da Barca do Inferno”, temos, então, o corte das cenas do Frade e do Enforcado por completo. É preciso lembrar que, como o texto da edição de 1562 foi o de base para a edição de 1586, se quisermos saber quantas variantes o segundo apresenta em relação ao testemunho de 1517 basta somar as variantes encontradas nos dois cotejos. Desta forma, o testemunho de 1586 deste auto apresenta 629 variantes substantivas quanto ao testemunho de 1517. O cotejo entre os dois primeiros testemunhos demonstra que, apesar da peça em questão não aparecer nos índices de 1551 e 1561, ela foi consideravelmente adulterada. Estas modificações são atribuídas a Luís Vicente, que terminou de compilar a obra do pai. Já nesse cotejo, percebemos grandes alterações na cena do frade, na qual primeiro se omite alguns versos e depois se modificam as respostas do personagem de maneira que se ameniza a crítica construída em torno das suas corrupções morais e de seu cinismo. Na edição de 1586 a cena foi completamente suprimida. 71 Variantes de palavra são aquelas relacionadas ao léxico, sintagmáticas são as relacionadas a versos ou a mais de duas palavras seguidas, e morfológicas são as que se referem a mudanças de gênero, número e/ou pessoa discursiva. 72 BLECUA, A. Manual de Crítica Textual. Madrid: Castalia, 1983.

Folha volante (1517)73

Compilação (1562)74

Vem um Frade com ũa Moça pela mão e um broquel e ũa espada na outra e um casco debaixo docapelo, e ele mesmo fazendo a baixa começou de dançar dizendo: Tai rai rai ra rã, ta ri ri rã tarai rai rai rã, tai ri ri rã tã tã, ta ri rim rim rã hu há. Diabo Que é isso padre que vai lá? Frade Deo gracias, som cortesão. Diabo Sabês também o tordião? Frade Por que nam? Como ora sei. Diabo Pois entrai eu tangerei e faremos um serão. Essa dama é ela vossa? Frade Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu. Diabo Fezestes bem que é fermosa. E nam vos punham lá grosa no vosso convento santo? Frade E eles fazem outro tanto. Diabo Que cousa tam preciosa.

Entra um Frade com ũa Moça pola mão e vem dançando, fazendo a baixa com a boca, e acabando diz o Diabo:

Compilação (1586)

Diabo Que é isso padre que vai lá? Frade Deo gracias, sam cortesão. Diabo Sabeis também o tordião? Frade É mal que m’esquecerá. Diabo Essa dama há d’entrar cá? Frade Nam sei onde embarcarei. Diabo Ela é vossa? Frade Eu nam sei. Por minha a trago eu cá. Diabo E nam vos punham lá grosa nesse convento sagrado? Frade Assi fui bem açoutado. Diabo Que cousa tam preciosa.

Essas mudanças obviamente foram estrategicamente motivadas, possivelmente por um impulso de Luís Vicente de tentar preservar a obra do pai, já que ele sabia das indicações censórias sobre a Compilação e também porque de fato o texto foi vistoriado pelo Santo Ofício. Por outro lado, elas também revelam que o editor do texto não considerou as incoerências geradas, por exemplo, o frade dizer que não sabe quem é a dama que o acompanha, porém em seguida chamá-la pelo nome para irem até a barca do paraíso. Outra emenda que merece destaque refere-se à parte do enforcado. O discurso do personagem é o que motivou a supressão completa da cena, pois este compara a sua situação a de Cristo na cruz, tomando, assim como garantida a sua entrada na barca do paraíso:

73 CAMÕES, José (direção científica). As obras de Gil Vicente Vol.I a IV. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002. 74 Idem.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

57

E disse-me que a Deos prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deos louvado que em bôora eu cá nacera e que o senhor m’escolhera e por bem vi beleguins e com isto mil latins mui lindos feitos de cera.75

Por fim, vale destacar também a cena da alcoviteira, Brísida Vaz, mais modificada na edição de 1586 da Compilação. Na edição de 1586, a cena de Brísida Vaz é a única que apresenta variantes de substituição em relação ao texto de 1562, ou seja, é onde aparece a mão reformuladora do censor e não apenas supressões, como ocorrido em geral. Além da reformulação de dois versos, há também a exclusão de outros da fala da alcoviteira, justamente nos que ela assume a prostituição de meninas para os cônegos e se compara a Santa Úrsula, se dizendo melhor do que ela. Folha volante (1517)76

Compilação (1562)77

Compilação (1586)78

eu sou aquela preciosa que dava as moças a molhos. A que criava as meninas pera os cónegos da sé. Passai-me por vossa fé meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas. E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas. Santa Úrsula nom converteo tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhũa se perdeo.

eu sou Brísida a preciosa que dava as moças òs molhos. A que criava as meninas pera os cónegos da sé. Passai-me por vossa fé meu amor minhas boninas olhos de perlinhas finas. E eu sou apostolada angelada e martelada e fiz obras mui divinas. Santa Úrsula nam converteo tantas cachopas com’eu todas salvas polo meu que nenhũa se perdeo.

eu sou Brísida preciosa que dava as moças òs molhos. A que criava as meninas pera as vender muito bem Passai-me ora lá além

4. Considerações finais A Inquisição em Portugal foi motivada por um sentimento antissemita e por interesses financeiros. Ao basear-se no modelo espanhol de funcionamento e 75 Idem. 76 Idem. 77 Idem. 78 Idem.

organização, procurou exercer o controle sobre a população, tanto em relação às suas práticas religiosas, por meio do confisco de bens, aprisionamento e tortura de pessoas; quanto em relação à sua produção intelectual, por meio da censura e controle de livros. Segundo Novinsky (1982, p.54), “A censura de livros foi severíssima e eram considerados heréticos os que se referiam a “coisas lascivas e desonestas”, livros sobre feitiçarias, astrologia, assim como qualquer escrito contra a Santa Fé Católica e os bons costumes.”. No caso da obra de Gil Vicente, as determinações a respeito de suas peças parecem ilustrar no mínimo a incoerência dos preceitos inquisitoriais, já que o autor jamais foi contra quaisquer preceitos da fé católica, sendo estes, inclusive, a base para grande parte das críticas em seus autos. Obviamente, a censura de seus textos demonstra, primeiramente, uma tentativa da Igreja de preservar sua imagem, pois nos autos vicentinos denunciavam-se constantemente as muitas imoralidades comportamentais dos clérigos, frades, bispos etc. Por meio do cotejo entre os testemunhos de sua obra, podemos detalhar mais precisamente como se dava o processo de censura. No caso dos textos elencados neste trabalho, o prólogo da primeira edição da Compilação e o “Auto da Barca do Inferno”, nota-se que nos dois casos houve supressão total ou parcial do texto quando se traçou comparações entre uma pessoa e Jesus Cristo, ou ainda quando foram reveladas, de maneira direta ou indireta, as falhas comportamentais de personagens ligadas à Igreja. Apesar de não ter sido o foco desta análise, em relação ao plano linguístico das emendas, percebe-se que não há variantes morfológicas no cotejo empreendido entre as edições da Compilação quanto ao texto do “Auto da Barca do Inferno”, já que, além do texto base para a edição de 1586 ter sido o de 1562, não houve alterações linguísticas por parte do editor na segunda edição. Contudo, quando a edição de 1562 é comparada com testemunho de 1517, pode-se ver que há variantes morfológicas, indicando mudanças sutis no tratamento entre personagens ou na coesão do texto, por exemplo. Por fim, ressalta-se que os resultados obtidos pelo cotejo entre testemunhos do “Auto da Barca do Inferno” se distanciam dos apontados por Freire (1944), justificando a necessidade de serem refeitos, como proposto na pesquisa de mestrado “Estudo das variantes da edição de 1586 da Compilação de Todas as Obras de Gil

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

59

Vicente”, para um estudo mais definitivo acerca dos métodos censórios da Inquisição portuguesa no século XVI. A ‘guerra’ de poderes no conto O caso da vara, de Machado de Assis: favorecidos e desfavorecidos na luta de sobrevivência na sociedade do século XIX Ana Carolina MENOCCI79 Graduanda em Letras, Unesp - Assis

Resumo: O conto “O caso da vara” de Machado de Assis narra muito mais que o caso de uma vara, narra a história de Damião e Lucrécia, essa segunda quem sentiu na pele o pesa da tal vara que dá título ao conto. Nesse conto entrelaça-se uma ‘guerra’ de poderes como condição de sobrevivência na sociedade do século XIX em que cada um para salvar sua própria pele age de forma a manipular e prejudicar o seu próximo. Damião que fugiu do seminário passa a lutar pela sua permanência fora daquele lugar que lhe dava horror da forma que pode, manipulando e descumprindo sua promessa de apadrinhar a menina Lucrécia. Neste trabalho mostraremos como essas relações de poder funcionam e suas consequências. Palavras-Chave : Machado de Assis, Literatura Brasileira, Memória e História

I. Introdução O conto "O caso da vara" foi publicado inicialmente no jornal Gazeta de Notícias, no ano de 1891, e posteriormente foi republicado no livro Páginas Recolhidas, de 1899. O século XIX estava por acabar, e Machado de Assis publicaria apenas mais uma coletânea de contos e outros escritos (Relíquias da casa velha), em 1906. Páginas recolhidas é um livro considerado miscelânea de escritos, pois apresenta variedade temática e de gênero: conto, discurso, ensaio, comédia, evocação e crônica. Faremos uma análise do conto contemplando aquilo que mais importante será para nossa discussão, como o ponto de vista e a evolução da trama concomitante ao ritmo de emoções das personagens. O conto é narrado em terceira pessoa e traz em si mais do que uma narrativa. A história de Damião é aquela que dá inicio ao conto, porém no seu decorrer o que acontece é que outra história se entrelaça. Segundo Ricardo Piglia (2004) essa é 79 Bolsista FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) sob a orientação da profa. Dra. Gabriela Kvacek Betella

uma das “teses”: um conto sempre conta duas histórias, e essa segunda história ganha um lugar de destaque. A vara era de Sinhá Rita, e fora Lucrécia quem sentira o peso dessa tal vara, com intercessão de Damião. Se pensarmos me uma análise para o título da narrativa podemos dizer que um caso é um acontecimento, um fato ou uma ocorrência, porém a vara merece uma atenção maior. A origem da palavra do latim deriva a vara como haste flexível. Na Roma antiga, a haste era uma identificação de poder dos juízes, distinguindo os letrados dos leigos. No meio judiciário, a palavra era usada na Roma antiga para designar um bastão usado para abrir o caminho para dar passagem aos magistrados. Com o passar do tempo começou a ser usada como um símbolo para designar o poder, fazendo com que a população reconhecesse os juízes como autoridade. Foi a partir desses acontecimentos que atualmente o vocábulo “vara” passou a designar a unidade de jurisdição civil ou criminal. Permanecem vivas ainda hoje expressões como “debaixo da vara”, que indica a condução de alguém à presença do juiz. No Brasil Colônia, quando alguém se recusava a atender uma convocação legal era levado pelo oficial de justiça, que o ameaçava sob mandado judicial com uma vara. No dicionário encontramos quatorze definições de sentido diferentes para o vocábulo “vara”. Dentre essas reflexões há duas que merecem destaque para nossa análise. A primeira definição relevante é: açoite, castigo, punição e a segunda é: autoridade, símbolo de poder. O vocábulo pode nos servir para pensarmos na vara de Sinhá Rita. Passando por um resumo do conto para marcar a presença da vara temos: Damião é introduzido no seminário pelo padrinho, mas foge de lá. Depois da fuga, precisa de ajuda e procura Sinhá Rita. Depois de muito elogiar e com argumentação certeira, convence a amante do padrinho a ajudá-lo e Sinhá Rita convence também João Carneiro. Damião com suas anedotas atrasa uma das rendeiras de Sinhá Rita, a pequena Lucrécia que, no final da tarde, não consegue terminar o serviço e é punida por Sinhá Rita com uma vara, vara essa que Damião, antes defensor a se prometer apadrinhar a pequena, agora entrega o objeto para a punição da menina que clama por socorro sem sucesso. “O caso da vara” é curto, porém repleto de ações que são desencadeadas uma como consequência da outra. O conto começa com uma situação bastante pesada, a fuga de Damião do seminário: “Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

61

de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano, foi antes de 1850. [...]” (ASSIS, 1938, p.11)80 Logo após a simples descrição da fuga de Damião, o que vemos é o menino fugitivo, apavorado, avexado, amedrontado e totalmente desamparado. O grande homem que fora apresentado no seminário pelo padrinho, agora não passava de um menino vagando nas ruas sem saber que rumo tomar. Nas possibilidades de refúgio que teria, pensou em ir para casa, mas lembrouse que o pai estaria lá, e depois de um belo castigo o devolveria ao seminário. Damião parecia temer os castigos do pai, tinha medo de voltar para a casa não só pela ideia de que voltaria ao seminário, mas também porque levaria um belo castigo. Lembrou-se de seu padrinho João Carneiro, ele foi quem o levou para o seminário e apresentou ao reitor dizendo que ele era um grande homem, mas lembrou-se também que seu padrinho era um grande moleirão sem vontade. Podemos imaginar que a infância de Damião possa ter sido uma sucessão de acontecimentos parecidos com os deste momento em que ele buscava uma saída para conseguir aquilo que queria. Damião parece ter sido um menino mimado durante sua infância e adolescência, seu pai era bravo, mas seu padrinho, um moleirão que provavelmente se deixava levar pelas vontades do menino. Não se sabe se sempre fora assim, mas Damião tinha uma percepção dos fatos e um poder de argumentação muito hábil como veremos a partir de agora. Quase já sem saída, o menino fugitivo lembra-se de Sinhá Rita, ela era uma viúva que vivia de ensinar renda, crivo e bordado, muito querida de seu padrinho João Carneiro, o menino já havia percebido a situação entre seu padrinho e a viúva e resolveu aproveitar-se disso, tinha a ideia certeira, quase a invocar a ajuda de uma santa: " – Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... " (ASSIS, 1938, p.12) Quando Damião entrou na casa de Sinhá Rita, ela se assustou e, depois da explicação, que não gostava do seminário e que não poderia ser um bom padre, a viúva negou ajuda. Mas a argumentação do jovem passa de um simples pedido de alguém que está em desespero para uma súplica de alguém que coloca os sentimentos

80 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Contos: uma antologia. 2. ed. Sel., intr. e nota de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

do outro como forma de alcançar seus objetivos e até põe sua própria vida em jogo como condição para não voltar ao seminário: Pode muito, Sinhá Rita, peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, pela alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa. (ASSIS, 1938, p.13-14) A viúva, ainda não querendo ajudá-lo, apesar de poder, argumenta que a vida de padre é santa e bonita, mas Damião continuou dizendo que preferia a morte. Talvez ele já tivesse convencido Sinhá Rita, mas quando disse que seu padrinho não atendia ninguém, despertou na mulher o sentido do amor-próprio ferido e isso foi o que bastou para convencê-la a ajudá-lo. Damião está inserido na sociedade brasileira de seu tempo, o século XIX. Ele está em constante processo de formação de valores morais e sociais e, por aquilo que vemos no conto, seus valores não são os melhores. Damião joga com os sentimentos da viúva para conseguir aquilo que quer a todo custo, a ponto de dizer que morreria se ela não o ajudasse. Esse método de agir passa a uma pressão psicológica, de forma que se o menino morresse a culpa seria de Sinhá Rita por não querer ajudá-lo. Nesse momento começamos a observar a relação de poderes dentro da narrativa quando chega João Carneiro, Sinhá Rita não perdeu tempo e já foi dizendo que tinham de tirar o moço do seminário, usando um argumento prático: era melhor um padre a menos que um padre ruim, e fora da igreja também se podia servir ao Senhor. E ordenou ao padrinho do moço que fosse falar com o compadre. João Carneiro era uma pessoa acomodada às situações, um moleirão, como já dito, que não tinha a mínima vontade de embate com ninguém que fosse, preferia permanecer na sua posição intacta a tentar fazer algo por alguém, nem que fosse por seu afilhado, e não parecia se importar muito com ele: Não lhe importava, em suma, que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra cousa qualquer, vadio que fosse, mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado, e se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita [...] (ASSIS, 1938, p.17) E para não precisar convencer o compadre de que seu afilhado não queria ficar no seminário enxergava como uma saída a morte: "Ah! se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução - cruel, é certo, mas definitiva." (ASSIS,1938, p.17) Para continuar na sua comodidade de vida, o padrinho preferia até a morte de seu afilhado, via todas as saídas, até um decreto do papa que fosse, mas só

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

63

não queria convencer o compadre de que o moço não servia para o seminário. Mas precisou fazer isso e o compadre quis quebrar tudo e disse que se Damião não voltasse para o seminário o mandaria para uma prisão. E imaginamos que, com muito esforço, João Carneiro convence o pai de Damião que era melhor dormir e deixar para o outro dia, afinal talvez não fosse bom dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Para reforçar a obrigação de João Carneiro, Sinhá Rita manda um recado na mesma carta que recebera: “Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos” (ASSIS,1938, p. 21) Da mesma forma que Damião a manipulara para conseguir o que queria, agora era ela que manipulava o moleirão acomodado, da mesma maneira, jogando com os sentimentos deste e prometendo algo que provavelmente ele não queria: a distância entre os dois. Chegada a hora de recolher os trabalhos das mocinhas bordadeiras chega a hora também do nosso protagonista fazer valer sua palavra de apadrinhamento, uma vez que Lucrécia era a única que não tinha terminado o trabalho. Na instância da leitura, há uma expectativa pela atitude do jovem, e o leitor espera que a promessa se cumpra, e o herói possa redimir a situação de ameaça de violência que se instaura. Sinhá Rita agarrou a pequena pela orelha chamando-a de malandra e dizendo que Nossa Senhora, invocada por Lucrécia, não protegia vadias. E depois de uma tentativa de fuga da menina, agarrou-a pela orelha novamente dizendo que não perdoaria o atraso. A menina, talvez, já tivesse acostumada a apanhar, lembremos da passagem: “[...] Era uma advertência, se a noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume (grifo nosso). [...] ” (ASSIS, 1938, p.15) Era costume receber o castigo se a tarefa não estivesse pronta, mas dessa vez Lucrécia tinha esperança que seria diferente, tinha Damião para lhe proteger. E foi exatamente para ele que Sinhá Rita se dirigiu pedindo que pegasse a vara que estava encostada na marquesa.

Damião teve um sentimento humano: “Damião ficou

frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...” (ASSIS, 1938, p.2223) Sinhá Rita pediu a vara mais uma vez e Damião caminhou em direção a marquesa, Lucrécia pediu por socorro, pediu por tudo que houvesse de mais sagrado, pela mãe, pelo pai e por Nosso Senhor, Senhor esse ao qual Damião serviria dentro do seminário e ao qual também poderia servir aqui fora. Damião estava em uma situação bifronte: poderia honrar sua palavra e não entregar a vara, salvando a negrinha do

castigo ou então entregar a vara e obedecer a Sinhá Rita, que se encontrava com a cara de fogo e os olhos esbugalhados. Se na primeira vez que pede a vara a Damião há um “por favor” a encerrar a frase, o derradeiro é uma ordem: “Dê-me a vara, Sr. Damião!”. O rapaz se vê diante da iminência do castigo violento, da fragilidade de Lucrécia, mas também da ameaça de perder a nova madrinha. Lucrécia e Damião vivem, neste momento, uma agonia: a de perder a proteção. As duas histórias da narrativa se unem. No entanto, só o rapaz tem escolha. Este foi o fim da vara e do conto: “Damião sentiu-se compungido, mas ele precisava sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou a vara e entregou-a a Sinhá Rita.” (ASSIS, 1938, p.23) O “grande homem”, como fora apresentado ao reitor do seminário pelo padrinho, acabava de cometer um ato cruel e egoísta, sentia-se arrependido, mas entregara a vara a Sinhá Rita para que ela consumasse o castigo. Afinal, ele precisava tanto sair do seminário. O ato de precisar definiu a situação. O grande homem como fora apresentado ao reitor do seminário para servir a Deus agora esquecia-se que o mesmo Deus a quem ele serviria ensinou aos homens que deveriam amar ao próximo como a ti mesmo. O amor ao próximo ficou esquecido quando Damião colocou na frente a sua necessidade. José Luiz Passos no seu livro “Machado de Assis – o romance com pessoas” diz que

Damião não é um egoísta clássico; sua solução é racional em termos

hobbesianos e a sua clara percepção dos fatos converte sua decisão numa queda moral realizada através de um ritual de passagem laico que dramatiza na sua consciência a defecção do seminário. Não é em vão que no conto o autor utilize uma curiosa combinação de vocabulários e motivos religiosos e mundanos para retratar tal conversão: “Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhado, instava pela vara, sem largar a negrinha. Damião sentiu-se compungido, mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou a vara e entregou-a a Sinhá Rita.” Contrito, mas resolvido a priorizar seus próprios interesses, o herói está plenamente atento ao fato de que seu pesar deriva da consciência de uma ação má, que o compunge, tornando-o, enfim, moralmente adulto frente aos demais personagens machadianos.

81

Alcides Villaça acentua algo interessante para nossa análise: Se a primeira equação com a qual se deparou Damião, no princípio do conto, constituía o binômio querer/poder, a equação montada ganha, numa frase 81 PASSOS, José Luiz. Machado de Assis: o romance com pessoas. São Paulo: Edusp/Nankim, 2007.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

65

final, um terceiro elemento, o precisar, que multiplica e define a complexidade da escolha. (VILLAÇA, 2006, p.29)82 Damião, no início do conto pressionou Sinhá Rita dizendo que podia se quisesse. Agora ele também poderia se quisesse, mas a necessidade de precisar foi o suficiente para impedi-lo de agir a favor de Lucrécia. Ele estava dependente do favor de Sinhá Rita, que iria tirá-lo do seminário. Roberto Schwarz discorre muito bem sobre esse fato dizendo que “O favor, ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração e serviços pessoais.” (SCHWARZ, 2000, p.17)83 A questão do apadrinhamento também é algo que chama nossa atenção. O apadrinhamento sempre acontece por uma pessoa mais fraca precisar de outra mais forte para sua proteção. Esse apadrinhamento também pode ser visto como uma relação de favores. No início do conto, após fugir do seminário, Damião precisa de alguém que o proteja e encontra Sinhá Rita que se faz de madrinha, a fim de ajudar o moço a não voltar para o seminário. No decorrer do conto, surge outra possível relação de apadrinhamento: Damião, fortalecido pela proteção que conseguira, quer apadrinhar Lucrécia que é mais fraca que ele e corre o risco de apanhar. Contudo, Sinhá Rita “cobra” de Damião o favor, detém o poder senhoril sobre ele, e a segunda relação de apadrinhamento não se concretiza. No conto também há uma rede de relações de poderes: o pai de Damião detinha do poder sobre João Carneiro, que temia o compadre; por sua vez João também temia Sinhá Rita que era sua amante. Sinhá Rita não teme a ninguém, mas é temida pelas suas meninas, escravas bordadeiras, as quais ela castigava sempre que não terminavam o trabalho. E Damião? Poderíamos nos perguntar em que lugar da relação ele está. Damião soube se inserir nessa rede de poderes, manipulando e convencendo Sinhá Rita que, por sua vez, convenceu João Carneiro que o fugitivo não voltaria ao seminário. E Damião teve sua chance decidir algo: no momento em que entregara a vara para castigar a negrinha, ainda se sentindo arrependido, ele exerceu poder sobre a ação, e contribuiu para a violência ser consumada.

82 VILLAÇA, Alcides. Querer, poder, precisar: “O caso da vara”. Teresa 6/7, São Paulo, p. 17 - 30, 2006

83 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

Damião soube sobreviver às situações deste conto. O próprio nome do protagonista da história diz muito de seu comportamento. O nome Damião tem como significado aquele que vence, domador, aquele não cede diante de obstáculos quando o que está em jogo é a possibilidade de alcançar suas metas. Esse não ceder diante de obstáculos pode ser uma atitude boa ou ruim. No caso do conto, para alcançar seu desejo de não viver no seminário e depois de alcançar o apadrinhamento de Sinhá Rita, Damião se corrompe por fugir do seminário, por convencer Sinhá Rita usando argumentos apelativos e manipuladores e por se desvencilhar da iniciativa de amparar alguém mais fraco. A segunda “protagonista” do conto não obteve dos mesmos lucros que Damião. Era a que estava abaixo de todos os poderes na casa e também na sociedade. A propósito do seu nome, é possível estabelecer alguma ligação com duas personagens históricas: a primeira é a lendária Lucrécia que teria se suicidado no século VI a.C., após ser violada por Sexto Tarquínio (e referida por Machado na célebre crônica de 1894, “O punhal de Martinha”), num episódio que se tornou pretexto para a queda da Monarquia e estabelecimento da República na Roma antiga; a segunda personagem da História é Lucrécia Borgia, que viveu entre os séculos XV e XVI, filha do papa Alexandre VI, irmã do temido Cesare Borgia (por sua vez, inspiração para Machiavelli em O príncipe) e protagonista de uma história pessoal de superação dos estratagemas da família e da queda da casa dos Borgia. Os valores morais de Damião certamente afetaram suas atitudes, afetaram aquele momento em que se passa o conto e também afetariam decisões durante toda sua vida. Seus valores morais não eram bons para uma pessoa de bem, segundo o que aprendemos hoje em dia. Contudo, essa conduta incerta (como a de um rapaz sem rumo que foge do seminário) pode pontuar uma valorização social interessante para as condições externas. O moço havia prometido que apadrinharia a pequena Lucrécia, mas no momento em que poderia fazer isso, fez o oposto, entregou a vara a Sinhá Rita para que a castigasse. Seus valores morais aprumados e no rumo certo certamente o levariam a enfrentar Sinhá Rita, defender a pobre escrava e não entregar a vara. Mas e seus valores éticos e sociais? Lembremos que valores sociais e éticos são um conjunto de regras estabelecidas para uma convivência saudável dentro da sociedade em que vive. Lembremos ainda que estávamos no século XIX no Rio de Janeiro, no Brasil.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

67

Lucrécia era uma escrava, Damião era dependente dos favores de Sinhá Rita, devia a ela sua possível saída do seminário, os favores na época eram algo que causava muita dependência entre os lados favorecido e cedente. O conto passa-se antes do ano de 1850, embora Machado o tenha escrito no final do século, propositadamente datando a história antes da Lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico negreiro para o Brasil. As relações entre Lucrécia, Sinhá Rita e Damião, portanto, se estabelecem numa época em que nenhuma lei assegurava liberdade para as pessoas na condição de Lucrécia. Com essas afirmações podemos talvez até dizer que os valores sociais de Damião não estavam tão contrários aos costumes da época. Segundo os costumes da sociedade, não era crime ter escravos, sendo que o dono deles podia tratá-los da forma que lhe convinha, desde que fosse para assegurar a propriedade e a ordem estabelecida para tal. Damião precisava defender sua própria vontade, precisava sair do seminário, então entregou a vara. Mas foi contra sua palavra, e defendeu apenas seus interesses. Provavelmente nada o lembrava de que a menina escrava também era uma humana, que sentia dor, e, como ele, não queria ser castigada (lembremos que ele não quis voltar para casa porque seria castigado pelo pai, e quando o padrinho o ameaçou de surra, Sinhá Rita o defendeu). Parece que entre os representantes da nova geração brasileira, naquele momento, somente Damião tinha o direito de evitar o castigo e de repassar o peso dele (e da vara) a quem tinha de apanhar. Nesse momento forma-se mais um valor, mais um trecho da constituição dos seus valores de vida. O conto foi escrito no ano de 1891, três anos depois da abolição da escravidão. Apesar de Machado de Assis ter datado o conto como passado antes de 1850, com alguns pontos deste, parece querer mostrar que a sociedade não evolui em nada pensando no adquirir de formas igualitárias. Machado de Assis, em final de século, após a Abolição e a República, representa ainda comportamentos herdados pelo sistema que engendra a estrutura básica da sociedade. E com essas reflexões observamos como Machado soube aproveitar o espaço do conto para mostrar sua visão da sociedade em que vivia, denunciando costumes, os efeitos presentes da escravidão, tipos sociais e um rapaz como protagonista, deixando ao leitor as interpretações possíveis sobre o destino desse personagem explorado em seus valores através de poucas atitudes aparentemente corriqueiras. O final do conto é aberto, não sabemos se João Carneiro conseguiu convencer o compadre a não colocar Damião novamente no seminário, se Sinhá Rita fez mais

alguma coisa em prol do moço, e o que teria sido de Lucrécia. Não sabemos se continuou sendo escrava e castigada até a abolição da escravidão (que ocorreu mais de trinta e oito anos depois da data em que se passou a história). O comportamento de Damião, por sua vez, nos instiga a perguntar se ele teria se tornado um homem vaidoso e medíocre como Brás Cubas ou apenas um adulto que seguiu os passos do jovem, mantendo-se manipulador, interesseiro e egoísta.

Álvaro Vieira Pinto, a União Nacional dos Estudantes e a questão da universidade no início dos anos de 1960.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

69

André Luiz Rodrigues de Rossi Mattos Resumo Desde a fundação da União Nacional dos Estudantes (UNE), entre os anos de 1937 e 1938, surgiram no interior da entidade diferentes propostas com relação às mudanças na estrutura do ensino superior brasileiro. Porém, o primeiro fórum que debateu especificamente a reforma do ensino superior foi o I Seminário Nacional de Reforma do Ensino (I SNRE), em 1957, tendo se repetido 1958 e em 1959. Já nos anos de 1960, a UNE deixou de organizar os SNRE e estruturou um novo fórum, nomeado como Seminário Nacional de Reforma Universitária (SNRU), que terminou por desembocar em uma das maiores greves estudantis do Brasil: a greve do um terço, em 1962. Nesse contexto, Álvaro Vieira Pinto escreveu um texto polêmico sobre a necessidade da estrutura educacional superior ser radicalmente reformada. Esse texto foi publicado em livro pela UNE sob o título “A questão da universidade” e chegou a servir de roteiro para a luta pela reforma do ensino superior. Palavras-chave: movimento estudantil, Álvaro Vieira Pinto, reforma universitária, União Nacional dos Estudantes.

I. Introdução As reivindicações em torno de mudanças no ensino superior estiveram presentes em diversos documentos da União Nacional dos Estudantes (UNE), desde o início da entidade. Segundo Luiz Antônio Cunha 84, não seria exagero afirmar que a UNE havia nascido dentro de um protejo de reforma do ensino, quando no seu II Congresso Nacional, em 1938, aprovou o “Plano de Sugestão para uma Reforma Educacional Brasileira”. No entanto, a primeira iniciativa sistemática de debater a reforma do ensino superior surgiu com o I Seminário Nacional de Reforma do Ensino, em 1957. Posteriormente, esse seminário foi repetido em 1958 e em 1959, na Faculdade Nacional de Filosofia no Rio de Janeiro. Dentre os seus objetivos, estava discutir  Formado em Ciências Sociais e Mestre em História pela Unesp/Assis. É autor do livro “Uma História da UNE (1945-1964)” e atualmente atua como docente no Ensino Superior e Médio. 84 CUNHA, Luiz Carlos. A universidade crítica: o ensino superior na república populista. 3ª. ed., São Paulo: UNESP, 2007, p. 169.

temas sociais, pedagógicos e econômicos, relacionados à educação, além de fazer sugestões quanto ao polêmico anteprojeto da LDB e “criar uma consciência educacional nos meios estudantis”85. O último Seminário de Reforma do Ensino foi o de 1959. Em seguida, no ano de 1960, a UNE optou por um encontro mais ampliado, que se concretizou no I Seminário Latino-Americano de Reforma e Democratização do Ensino Superior, realizado em Salvador86. Terminado o encontro, a UNE expressou ter encontrado muitas semelhanças nos problemas que envolviam a universidade nos diversos países presentes, dentre eles, o “problema de acesso dos estudantes pobres” ao ensino superior87. Nesse contexto de encontros e constantes debates sobre a questão universitária, surgiram setores do movimento estudantil, como a Juventude Universitária Católica (JUC) que em 1960, avaliaram que a ideologia reformista é movimento virgem no Brasil. Afora o Seminário Latino-Americano há pouco realizado na Bahia, não temos recordações recentes de qualquer outra iniciativa. O movimento não tem dono, portanto. Faltam-lhe ideólogos, pessoas que conheçam os princípios e a realidade da universidade brasileira; e façam dos dois uma síntese de soluções diretivas.88

Com essa posição, a JUC ignorou os Seminários de Reforma do Ensino da UNE, realizados entre 1957 e 1959, ou não os considerou dentro de uma perspectiva reformista, mas se valeu da posição de que a reforma universitária “não tinha dono”, e se apropriou efetivamente da questão. Como os estudantes ligados à JUC terminaram por ocupar a presidência da UNE, a partir de 1961, também acabaram por dominar parte significativa do debate estudantil sobre a reforma universitária, o que nos anos de 1960, passou por dois momentos. Em primeiro, uma análise crítica da universidade, e em segundo, na formulação de uma proposta de reforma e numa estratégia de luta para alcançá-la, o que desembocou na greve do um terço de 1962. Porém, ao assumir uma proposta e se disponibilizar a lutar por ela, a UNE se lançou numa seara de posições heterogêneas e conflitantes, o que se mostrou difícil de romper. 85 Folha da Noite, 13/07/1959, p. 04. 86 Folha de São Paulo, 08/05 a 12/05/1960. 87 Folha da Manhã, 12/05/1960 a 29/05/1960. 88 Apud MARTINS FILHO, João Roberto. Movimento estudantil e Ditadura Militar - 1964-1968. Campinas: Papirus, 1987, p. 52.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

71

Os Seminários Nacionais de Reforma do Ensino haviam sido encerrados em 1959, e o Seminário Latino-Americano de Reforma e Democratização do Ensino Superior não se repetiu no ano seguinte. A partir disso, a UNE lançou um novo fórum para debater essas questões, que foram os Seminários Nacionais de Reforma Universitária (SNRU), realizados em Salvador, em 1961, em Curitiba, em 1962, e em Belo Horizonte, em 1963. Desses encontros, surgiram declarações, cartas, esboços de projetos para a reforma universitária e avaliações sobre o estágio de luta em que se encontravam as reivindicações estudantis. É significativo salientar que a realização dos SNRU e os temas que foram tratados neles emergiram de um processo efervescente das lutas estudantis em diversas faculdades e universidades brasileiras, que terminaram por ocupar um espaço significativo nas questões nacionais ligadas ao ensino superior. Dentre esse movimentos, cita-se os estudantes da Faculdade de Engenharia da Universidade Mackenzie, que lançaram uma longa greve com apoio de diversas outras faculdades, por meio da qual reivindicaram o afastamento de professores, autonomia universitária, federalização e denunciaram haver irregularidades na administração geral da instituição89; manifestações na Universidade de Minas Gerais, particularmente na Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas de Belo Horizonte, onde a JUC tinha um dos seus principais centros de militância, que denunciaram irregularidades e arbitrariedades junto à Congregação da Faculdade90 e; as greves de 1960 na Universidade da Bahia, posteriormente reconhecidas como a “primeira denúncia viva da crise da universidade brasileira”91. Frente ao contexto que foi abordado, ressalta-se que a Bahia parece ter sido um centro para as agitações estudantis no início dos anos de 1960, ou pelo menos, onde se encontrou um movimento forte e de tendência acentuadamente reformista, já que foi onde aconteceu o I Seminário Latino-Americano, que protagonizou umas das greves mais importantes da época, e também abrigou o I SNRU, sempre com apoio da União dos Estudantes da Bahia (UEB).

89 Folha de São Paulo, 05/05 a 11/08/1960. 90 PINTO, Yvon Leite de Magalhães. op. cit.; Folha de São Paulo, 11/08/1960 a 21/08/1960. 91 UNE: luta atual pela reforma universitária (1963). apud FÁVERO, Maria de Lourdes A.. A UNE em tempos de autoritarismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995, p. 107.

Desse contexto, com a realização do I SNRU (1961), a UNE reuniu o conjunto dos problemas do ensino superior, até então dispersos, no que José Luís Sanfelice92 indicou ser uma “tentativa de ensaiar” uma análise crítica da estrutura do ensino superior brasileiro. Para tanto, os estudantes reunidos em Salvador analisaram a universidade dentro do contexto geral em que entendiam que o país se encontrava, divididos em três eixos centrais: “a realidade brasileira”, “a universidade brasileira” e “a reforma universitária”, para as quais foram formadas comissões que se dividiram para analisar os diversos itens que constaram em cada tema geral. Quando os resultados de cada comissão foram anexados para a votação do relatório final, expressaram convicções diferentes, que representavam as várias tendências políticas e ideológicas que predominavam em cada região ou que tinham mais ou menos força no interior do movimento em nível nacional. No entanto, se sobressaíram as posições da JUC. Quando interpretadas num todo, a resolução final do I SNRU, intitulada como “Declaração da Bahia”93, interpretou que o Brasil era uma nação capitalista em fase de desenvolvimento, marcada por uma infraestrutura agrária de bases latifundiárias, dependente das potências estrangeiras, insuficiente em seus padrões de vida e com um grande desequilíbrio regional. Quanto à questão específica do ensino superior, o I SNRU apontou a sua relação com o conjunto da sociedade, indicando que a universidade refletia todos os problemas estruturais do país e, por sua vez, não conseguia retribuir com as soluções necessárias; dessa forma, falhava em sua missão social. Para esses estudantes, a maneira de se resolver o problema da questão universitária estava situada em um quadro maior, no qual as suas mudanças tinham que estar ao lado e em sintonia com outras transformações que eram preconizadas pelo conjunto das reformas de base, como a Reforma Agrária e Urbana, o que colocou a universidade no leque de problemas estruturais e urgentes de toda a sociedade brasileira. Dentre todos os temas abordados no I SNRU, dois deles parecem ter sido mais importantes. O primeiro é a participação dos estudantes nas direções das faculdades, em particular, pela dimensão central que assumiu nas mobilizações estudantis. O

92 SANFELICE, José Luís. A UNE na resistência ao golpe de 64. São Paulo: Cortez, 1986, p. 31. 93 Declaração da Bahia (1961) apud FÁVERO, op. cit., pp. 3-37.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

73

segundo é a autonomia universitária, questão que passaria por significativas mudanças nas interpretações estudantis. Desde o Seminário Latino-Americano de Reforma e Democratização do Ensino Superior, a participação dos estudantes nas direções universitárias, como órgão administrativos e conselhos das faculdades e universidades, chamou atenção dos estudantes. No entanto, a partir de 1960 a questão tomou fôlego. Na “Declaração da Bahia”, o tema da participação estudantil surgiu em porcentagem pouco modesta. Segundo deliberado, os estudantes deveriam compor 40% dos Conselhos TécnicoAdministrativos, Comissões, Congregações e Departamentos. O restante seria composto pelo corpo docente e por representantes dos profissionais, indicados prioritariamente dentre os egressos. Para os estudantes, esse era o único critério “capaz de assegurar a organicidade, harmonia e democracia que devem reinar no governo da comunidade universitária”94. Já com relação à autonomia, defendia-se que a universidade tinha que ter mobilidade para resolver seus problemas, a tempo, e de acordo com os interesses do ensino. Para tanto, foi aprovada a defesa da autonomia administrativa, didática e financeira. Terminado o I SNRU, suas resoluções continuaram sendo debatidas. Primeiro nas greves, que voltaram a acontecer nos Estados de Minas Gerais, Bahia e São Paulo, depois, nas greves que começaram com força na Paraíba, e especialmente em Recife, onde, sob a liderança da União dos Estudantes de Pernambuco (UEP), assumiria a mesma tônica vista um ano antes entre os baianos. Em decorrência da greve dos estudantes de Recife, a UNE convocou novamente uma paralisação nacional, em junho de 1961, com forte adesão95. Todas essa mobilização que se realizou após o I SNRU, manteve diálogo com a “Declaração da Bahia” e com as concepções que se formaram no interior do movimento universitário do início dos anos de 1960. Para parcela significativa dos estudantes, a universidade foi traduzida como “mero transmissor de cultura acumulada”96, quando tinha de estar vinculada à pesquisa e integrada na sociedade. 94 Declaração da Bahia (1961) apud FÁVERO,. op. cit., p. 28. 95 Folha de São Paulo, 15/06/1961, assuntos diversos, p. 12., ARANTES, Aldo; LIMA, Haroldo. História da Ação Popular: da JUC ao PC do B. São Paulo: Alfa-Omega, 1984, p. 20. 96 Declaração da Bahia (1961) apud FÁVERO, Maria de Lourdes. op. cit., p. 17.

Nesse sentido, a educação superior foi considerada “deformada em sua base econômica, porquanto subdesenvolvida, estratificada quanto à distribuição dos benefícios econômicos e sociais, democrática apenas formalmente”97. Na perspectiva dos estudantes, essa estrutura “deformada” não atendia ao projeto histórico brasileiro, ou seja, não contribuía para o desenvolvimento nacional na perspectiva do proletariado98. A universidade estaria inserida na mesma sociedade dividida em classes e na qual a democracia, que deveria ser um meio de expressão popular, havia se rendido aos interesses classistas. Nessa visão, a universidade também havia se tornado a expressão de uma das classes, a dominante, e não haveria reforma universitária para além de “meros retoques” enquanto as suas mudanças não fossem compreendidas dentro de um “processo mais vasto, que [seria a] Revolução Brasileira”99. Ao mesmo tempo, visto que os estudantes se atribuíram o compromisso de uma luta maior, na qual estavam na “vanguarda do mundo”, inclusive sendo eles mesmos os responsáveis por uma das contribuições para a tomada de consciência do povo, se identificou um conflito, aparentemente insuperável entre eles e a estrutura universitária. De um lado, estavam os estudantes, que se identificaram como o novo, aqueles que em um país subdesenvolvido, ao lado da classe operária, “representavam a área de atrito entre as reivindicações populares e o poder econômico e político que as quer sopitar”; em suma, eram os que estavam em luta pela libertação do homem, parte integrante daqueles que haviam se colocado ao lado da história para um mundo novo: o povo. Do outro, estava a universidade como reflexo da uma sociedade alienada, um instrumento de privilégio, que não atendia às necessidades do desenvolvimento nacional e nem das desigualdades regionais, condição que se materializava na imagem das cúpulas que a dirigiam, que “manifestavam um inegável caráter oligárquico”100. Na perspectiva, ao se considerar como a “parcela mais comprometida com o futuro, mais aberta aos novos ideais”101 é que se delineou a prioridade da sua presença 97 Ibidem. 98 Ibidem., p. 21. 99 Ibidem., p. 20. 100 Ibidem., p. 27. 101 Ibidem..

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

75

na direção das universidades como algo essencial para a renovação do ensino e dos valores acadêmicos, justificado por estes na lógica de que a “responsabilidade do governo [deveria] cair sobre os setores principais que a constituem”102, ou seja, o corpo discente. Como foi sintetizado por Roland Corbisier, ao tratar da reforma universitária, seria apenas com a participação dos estudantes que seria possível “a transformação da Universidade em um instrumento promotor do desenvolvimento, da emancipação econômica [e] do progresso social.103 Nesse sentido, durante todos os primeiros anos de 1960, a ideia de que caberia aos estudantes modificar o ensino superior se consolidou e inferiu diretamente em suas práticas de movimento e em seus repertórios. Envolto por essa missão, foi a partir do II SNRU (1962), realizado em Curitiba, que uma proposta de como chegar a esses objetivos, a qual vinha sendo formulada pelos estudantes, e uma linha de ação mais concreta passaram a existir, expressas no documento final do encontro, intitulado Carta do Paraná104. No entanto, quando o segundo Seminário foi realizado, o tema da reforma universitária, na perspectiva estudantil, estava bem mais em voga. Na visão dos estudantes, a luz das resoluções do Seminário anterior, a universidade ainda cumpriria a mesma função, ou seja, estava a “serviço das classes dominantes, que não [tinham] compromissos regionais, que não [serviam], enfim, aos interesses do país”105. Mas, se tomada em seu conjunto, a Carta do Paraná se dedicou menos à crítica da universidade e se empenhou mais em formular os direcionamentos que a reforma deveria seguir para atingir os objetivos estabelecidos pelos estudantes que, em suas perspectivas, tinham que circular em torno de “ser a expressão do povo (...) ser por todas as formas antidogmática (...) ser uma frente efetiva do processo revolucionário”106. Além de perceber um projeto de reforma universitária que vinha sendo proposto pela “burguesia”, a universidade continuava a ser antidemocrática e seletiva 102 Ibidem.. 103 CORBISIER, Roland. Reforma ou Revolução? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 129. 104 Carta do Paraná (1961) apud FÁVERO, op. cit., pp. 39-95. 105 Carta do Paraná (1961) apud FÁVERO, op. cit., p. 43. 106 Ibidem., p.47.

do ponto de vista econômico, político e social, além das críticas gerais já formuladas no I SNRU. No entanto, surgiram duas novidades: uma é a mudança de posição em relação à autonomia universitária; a outra é a participação estudantil como tema central para que a reforma da universidade efetivamente acontecesse. Sobre a autonomia, conforme indica Luis Carlos Cunha, as proposições estudantis estavam relacionadas à influência que as teorias de Álvaro Vieira Pinto, Diretor Executivo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)107, passaram a exercer nos meios estudantis. Durante o governo o de João Goulart, o ISEB passou a discutir intensamente as reformas de base, tema tratado nos seus cursos. Nesse contexto, houve a renovação de seus professores e uma forte aproximação junto aos setores reformistas, dentre eles, a UNE, e do conjunto dos estudantes, público que frequentou em grande número os cursos do Instituto. Em 1962, a UNE chegou a publicar, por meio da sua editora, um texto de Vieira Pinto chamado A questão da universidade108, que foi cedido gratuitamente para a publicação. Nesse texto, o autor corroborou com algumas posições estudantis e propôs novas questões a serem debatidas. No quadro em que Vieira Pinto entendeu a reforma universitária, os seus aspectos pedagógicos, defendidos pela burguesia, tinham que ter um papel secundário, haja vista, que a mudança principal estava em sua essência, ou seja, a universidade tinha que deixar de ser “uma peça do dispositivo geral de domínio pelo qual a classe dominante exerce o controle social, particularmente no terreno ideológico, sobre a totalidade do país”109, e passar ao serviço de outra força social, as classes populares em ascensão. Dessa forma, o conteúdo de classe e os seus aspectos pedagógicos e físico-estruturais deveriam ser entendidos em duas etapas diferentes. Em primeiro, os estudantes deveriam se indagar “para quem” tinha de ser feita a reforma universitária e, em seguida, “qual reforma universitária” fazer. Nessa perspectiva, a reforma da universidade tinha que ser arranjada a partir dos interesses daqueles que estavam fora

107 Sobre o ISEB, ver: TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fábrica de ideologias. Campinas: Unicamp, 1997. 108 PINTO, Álvaro Vieira. A Questão da Universidade. Rio de Janeiro: Ed. Universitária, 1962. 109 Ibidem., p. 23.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

77

dela, ou seja, a “universidade [iria] mudar de dono” 110, ou para se utilizar de uma expressão simbólica polêmica no período: criar uma universidade para os analfabetos. Mas essas mudanças na essência da universidade eram tarefa dos estudantes. Nessa luta, Vieira Pinto encontrou os representantes das forças que estavam em conflito no contexto geral da sociedade. De um lato, os estudantes, estariam ansiosos por verem realizada a libertação nacional. Do outro, estava a classe professoral, que entendida em seu conjunto, significaria a alienação, a arrogância, a defensora dos valores eternos e sendo muitas vezes policialesca111. Para Vieira Pinto, era esse contexto que deveria ser enfrentado pelos estudantes e, em última instância, só era possível optar entre dois lados: aliar-se ao grupo dirigente, representado pela cúpula e parte dos professores, ou tornar-se militante das “classes trabalhadoras”. Seria nesse processo que os estudantes iriam se tornar a “força de entrelaçamento das diversas forças que lutam por reformas”112. Assim, como os representantes das classes populares, Vieira Pinto atribuiu aos estudantes o principal papel pela transformação do ensino superior. Como objetivo dessa luta, segundo exposto pelos estudantes na “Carta do Paraná”, a reforma da universidade não poderia ser apenas uma reformulação de horários e currículos, mas tinha que se tornar “a expressão do povo”, de forma que a universidade se transformasse em “um baluarte na luta pela revolução brasileira”113. É nesse contexto mais geral das lutas sociais entre dominados e dominantes que Vieira Pinto considerou sobre os temas da autonomia universitária e da participação estudantil. Segundo o autor, essa autonomia só seria possível nos países onde os seus conflitos básicos já houvessem sido resolvidos. Nessa perspectiva, sendo o Brasil um país onde a universidade era tomada como “uma peça do dispositivo de domínio das camadas sociais espoliadoras”114, a autonomia assumiria um papel nocivo aos interesses do povo, pois seria um recurso utilizado pelas forças dominantes para manter o ensino superior como um instrumento de dominação.

110 Ibidem., p. 113. 111 Ibidem., pp. 70-71. 112 Ibidem., p. 134. 113 Carta do Paraná (1962) apud FÁVERO, op. cit., p. 79. 114 PINTO, 1962, op. cit., pp. 76-77.

Na posição do autor, a autonomia seria uma forma de diminuir a força estudantil na luta que se identificava no interior da universidade, na qual se empenhavam os “representantes autênticos do povo”. Desta feita, e considerado que a universidade estava caminhando para ter um “novo dono”, só poderia gozar de autonomia quando estes estivessem no seu comando. Já em relação as ações do movimento estudantil, a questão foi traduzida na dimensão das lutas políticas do movimento, que deveriam seguir “perspectivas práticas imediatas” da reforma universitária. Essas perspectivas e medidas formaram uma espécie de roteiro para o movimento, pelo qual, ainda, os estudantes tinham que elaborar o seu próprio projeto de reforma, pois enquanto não o tivessem, por mais imperfeito, ingênuo, impreciso ou errôneo que fosse, o movimento não possuiria condições de enfrentar o projeto que a classe dominante tentava lhe oferecer. Na perspectiva de Vieira Pinto, o horizonte da reforma universitária foi visualizado como parte de transformações estruturais de toda a sociedade brasileira. Segundo o autor, os estudantes tinham que desempenhar o papel de entrelaçar as reivindicações de todos os outros setores sociais, ou seja, a reforma universitária, apesar de estar sendo uma luta dos estudantes, pertencia aos movimentos populares, assim como as lutas operárias também pertenciam aos estudantes. Já em relação às medidas práticas que deveriam ser tomadas para a reforma, tinha lugar a participação estudantil nas direções da universidade, o que foi chamado de co-governo115. Esse era o instrumento de democratização e de mudança qualitativa da essência da universidade. Em seguida, deveria ter lugar a suspensão do vestibular, pois a universidade não poderia ser uma parte independente do processo geral de ensino. E, por fim, os estudantes precisariam travar uma intensa luta contra a cátedra vitalícia e fazer com que a universidade se entrosasse com os centros sociais de produção: as fábricas. Essas duas questões surgiram nas resoluções estudantis que constaram na Carta do Paraná. Segundo essas resoluções, a autonomia continuava a ser necessária para a mobilidade das universidades, como afirmado anteriormente na Declaração da Bahia, como forma para que elas resolvessem seus problemas a tempo e de acordo com os interesses do ensino. No entanto, surge um novo item, intitulado “fatores que condicionam a autonomia”, o qual dizia que a flexibilidade reivindicada para a 115 Ibidem., p. 156.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

79

universidade não poderia ser absoluta, pois estando vinculada à sociedade, a autonomia universitária [...] só [seria] válida enquanto atende[sse] às exigências desse meio116. Com relação à participação estudantil nos órgãos de direção, a reivindicação passou a ser de um terço. Além do mais, a reforma universitária passou a ser entendida como uma reforma de base e foi formulada uma longa lista de propostas, que esboçaram um projeto norteador para as reformas de estrutura do ensino superior, mantido um sentido crítico e modernizante, como a organização dos departamentos de curso no lugar das Cátedras. Dentre todas as posições debatidas pelos estudantes, a participação de um terço nos colegiados passou a ser a palavra de ordem do movimento, que foi entendido como o caminho para que os estudantes tivessem voz ativa nas direções do ensino superior, o que deveria alterar a correlação de forças no interior da universidade e possibilitar o início da sua reforma. Nesse cenário, para além daqueles que mesmo a partir de óticas variadas encaravam as mudanças da educação em uma perspectiva reformista e modernizante, quando não radical, como os estudantes e as posições de Álvaro Vieira Pinto, também houve posições mais tímidas, apesar de também circularem nos preceitos da modernização do ensino e, ao mesmo tempo, críticas ácidas contra as posições que haviam sido expressam em “A questão da universidade”. Nessa vertente do debate, se encontraram principalmente aqueles que viram no reformismo da educação, ou do conjunto das reformas de base, a influência do comunismo ou que se dispuseram ao combate às esquerdas e a contenção ou controle dos movimentos de reforma, quase nunca isentos de interesses e posições políticas. A exemplo das posições que foram defendidas pelo reitor da PUC do Rio Grande do Sul, a reforma tinha que ser lenta, gradual e cuidadosa, e passar principalmente pelos recursos técnicos de apoio à pesquisa e entrosamento com os setores de produção. A divergência mais geral da sua posição surge na oposição à gratuidade do ensino, o reitor era firme em determinar que a “gratuidade do ensino superior oficial é um fenômeno Sul-Americano de origem demagógica” e que “muito

116 Carta do Paraná (1962) apud FÁVERO, op. cit., p. 63.

mais seriedade advirá (dos alunos) para os estudos se se exigir contribuição de manutenção”117. Para o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS) 118, no desenho que se formou em suas propostas para as reformas do ensino no início de 1963, defendiam-se as posições de modernização e adequação do ensino ao tempo da “revolução tecnológica”, a extinção da cátedra vitalícia, a dinamização da universidade e o entendimento de que os recursos em pesquisa não eram despesas, mas sim, investimentos de alta rentabilidade. Ainda em plena divergência em relação às propostas estudantis, o IPÊS insistiu na defesa de que as universidades brasileiras tinham de receber apoio de instituições internacionais, o que na Carta do Paraná havia sido considerado como “a enorme infiltração imperialista em nosso ensino”, tendo sido considerado que “os institutos de ensino superior subvencionados por tais entidades (Fundação Ford, Rockfeller, etc) sofrem distorções, e não proporcionam ao estudante conhecimentos que sejam válidos”119. Além disso, professores e intelectuais conservadores também enfrentaram o debate que foi posto no meio estudantil e se lançaram na contra-ofensiva a essas ideias. Nesse leque, é possível exemplificar as posições que se construíram em oposição à UNE na colocação de dois autores. Em primeiro, Maurer, diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Mackenzie, que divulgou um manifesto direcionado aos estudantes no qual afirmou que “não menos inconsistente do que a forma, [seria] o conteúdo desse raciocínio [da participação estudantil como elemento de transformação da universidade]. Uma Universidade não [seria] uma assembléia política, onde a dialética dispensa o saber” 120, afirmava o professor.

117 OTÃO, Irmão José (1961) “A reforma universitária brasileira”, Educação e Ciências Sociais, ano VI, vol. 9, nº. 18, Setembro – Dezembro, p. 3-10. 118 O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS) foi fundado em 1961 e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), em 1959. Juntos, o IPÊS e o IBAD formaram um complexo voltado para as ações de contenção à influência das organizações de esquerda em diversos movimentos e segmentos sociais. Também lançaram filmes, revistas, estudos e livros de propaganda contrária ao comunismo. Para uma análise detalhada sobre essas organizações, ver: DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2006. 119 Carta do Paraná (1962) apud FÁVERO, op. cit., p. 53.

120 MAURER, W. A.. O Estado de S. Paulo, 23/06/1962, p. 08.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

81

Em segundo, Gustavo Corção, intelectual católico, antigo colaborador de Carlos Lacerda no jornal Tribuna da Imprensa e colaborador do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que defendeu, indelicadamente, que o modo imbecil de gritar, ou rosnar [...] a “universidade para todos” [defendida nas posições da UNE], é o de quem vê no exame vestibular, e nas demais exigências de capacidade, uma discriminação injusta, um privilégio que democraticamente deve ser combatido. Ora, por incrível que pareça, esse modo perfeitamente imbecil de desejar “universidade para todos”, que equivale rigorosamente á desejar “universidade pra ninguém”, porque não pode haver universidade sem exigências de capacidade, vem sendo fervorosamente defendido pelos universitários, e até por professores de filosofia121.

Em outro artigo, o mesmo Gustavo Corção dirigiu críticas árduas ao pensamento de Álvaro Vieira Pinto. Dizia o artigo: jamais imaginei que esse esquerdismo o levasse a dizer o que disse aos estudantes-que-nãoestudam (...) a Reforma Universitária tão falada tem como objetivo o aprimoramento do ensino das matérias desse nível, a modernização das instituições, o melhor aproveitamento dos mais bem dotados sem os quais o mundo não estaria hoje no ponto em que está (...) a reforma desejada e pregada pelo professor Vieira Pinto não tem nenhuma referência áqueles ideais singelos que o senso comum indica e que todos os estudantes-que-estudam desejam (grifo nosso).122

Em todas as suas vertentes, esses debates sobre a educação e a reforma universitária refletiram ou estiveram em diálogo direto com os meios estudantis. Esses temas estiveram em seminários, cursos, encontros, palestras, aulas de inauguração do ano letivo, assembléias e nas mais diversas publicações, desde a grande imprensa aos panfletos do movimento estudantil. Ao mesmo tempo, para além das diferenças em torno dos conteúdos da reforma universitária, existiram diferenças quanto ao próprio papel que os estudantes tinham que ocupar nessas mudanças e, ao mesmo tempo, díspares interpretações sobre o significado e as motivações da ebulição estudantil na luta pela mudança estrutural do ensino superior.

121 CORÇÃO, Gustavo. Problemas Universitários. O Estado de S. Paulo, 14/07/1962, p. 34. 122 CORÇÂO, Gustavo (1962). “Mais Pinto do que Vieira”, Ação Democrática, ano III, nº. 36, maio, p. 10.

NA GERAL: A RELAÇÃO DO POPULAR NOS CORDÉIS E CRÔNICAS FUTEBOLÍSTICAS DE NELSON RODRIGUES.

Andre Vitor Brandão Kfuri Borba Mestrando em Literatura e Vida Social na Unesp/Assis123

Resumo O futebol, com sua linguagem própria, constitui-se um terreno fértil para uma comparação entre o cordel e as crônicas esportivas, especialmente as de Nelson Rodrigues. Nesse ambiente podemos encontrar todo o palavrório típico do futebol mas com o recurso à prosa lírica e cortante, com uma dimensão épica, que “ninguém mais retratou num jogo de futebol”, segundo palavras de Armando Nogueira. Assim, esse trabalho busca estabelecer um paralelo entra crônica e cordel, destacando suas semelhanças: figuras de linguagem, expressões populares e jargões, o que permite que ambos os gêneros fiquem mais próximos do universo e do cotidiano dos leitores. Palavras-Chave: Crônica, Cordel, Futebol, Identidade, História

123 Sob a orientação do Prof. Dr. Francisco Cláudio Alves Marques

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

83

1. PONTAPÉ INICIAL Em um ensaio publicado no jornal Il Giorno, após a Copa do Mundo de 70, vencida pelo Brasil, Pier Paolo Pasolini124 esboça uma distinção entre um “futebol de prosa”, praticado pelos europeus, e um futebol de poesia, praticado pelos latinoamericanos, especialmente pelos brasileiros. Enquanto o primeiro estaria voltado para os resultados e regido pela observância às regras do sistema, o segundo se basearia na capacidade de invenção, improviso de cada jogador. Esse esquema proposto pelo intelectual italiano demonstra claramente a relação entre o futebol e a cultura na qual está inserido. Da mesma forma, os heróis são construídos a partir de protótipos nacionais, como uma aspiração, ou até mesmo inconscientes complexos deste povo. Ainda no mesmo ensaio, Pasolini fala do sistema de signos, algo que faria com que o futebol tivesse seu próprio sistema, com palavras que ele chama de “podemas”. Assim, o futebol pode representar um campo fértil para algumas reflexões a respeito do seu universo, tanto a respeito da linguagem como em se tratando de um fenômeno cultural total, como classifica o historiador Hilário Franco Júnior 125 e seu livro “A Dança dos deuses”. Neste, o futebol tem relação com a literatura, religião, psicologia, sociologia, antropologia etc. O que veremos a seguir é um estudo comparativo que buscará possíveis diálogos entre os cordéis e as crônicas futebolísticas de Nelson e de que forma estes gêneros contribuem para a construção do futebol de poesia, no caso brasileiro, com seus heróis e poetas. 2. CRÔNICA: GÊNERO MENOR? Segundo Davi Arrigucci Jr126., na acepção histórica o cronista é um narrador da História. Um registro da vida escoada, presenciando, lado a lado, as vivências da 124 PASOLINI, Pier Paolo. “Il calcio è un linguaggio con i suoi poeti e prosatori”. In: ____.Saggi sulla letteratura e sull’arte, Milão: Mondadori, 1999.

125 FRANCO JUNIOR, Hilário. A Dança dos Deuses. Futebol, sociedade, cultura, São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

126 ARRIGUCCI, Davi. Enigma e comentário. Ensaios sobre Literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

sociedade. Quer dizer, um gênero com profunda relação com o saber histórico. Inicialmente, no começo do século XX, le feuilleton designava um lugar preciso no jornal: o rez de chausse, rodapé, geralmente na primeira página. Era, como observa Marlyse Meyer127, um espaço vazio destinado ao entretenimento. Esse espaço geográfico do jornal serviu como ponto de partida para o que veio a se consolidar o gênero crônica no formato como o conhecemos. Walter Benjamin128 observa com propriedade que o historiador sempre buscou descrever os fatos e o cronista, anteriormente, se limitou a narrá-los. Ao narrar os acontecimentos, se aproximou do narrador tradicional, recuperando traços das experiências vividas no âmbito da tradição oral e, às vezes, incorporando-os também à chamada literatura culta129. Essa aproximação traz consigo a subjetividade ao transformar tais fatos históricos, frívolos e contados à distância, em ficção. O texto liberta-se dessa objetividade e adquire literariedade se transformando, portanto, em gênero literário130 . Transformada em arte e libertada das amarras do discurso histórico, a crônica permite uma tomada de posição e nos proporciona algo sublime: a história contada de diferentes pontos de vista por aqueles que sabem fazê-lo de forma tão apropriada. Trazendo essa realidade para o Brasil, mais especificamente para o Rio de Janeiro, lugar onde a cultura brasileira se desenvolveu a partir das mais variadas matizes, além do notável crescimento urbano experimentado no início do século XX, o cronista teve cenário fértil para produzir seus textos com base nos mais variados assuntos: filosofia, política, biologia, estética, etc131. Desse modo, a crônica, sendo um artefato moderno, feita para consumo imediato, que se submete às inquietações do indivíduo da cidade e à volatilidade da vida moderna das grandes metrópoles, adquire 127 MEYER, Marlyse. Voláteis e versáteis. De variedades e folhetins se faz a chronica. A crônica. O gênero e suas transformações no Brasil. São Paulo: Editora da Unicamp, 1992, p. 96.

128 BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

129 ARRIGUCCI, Davi. Enigma e comentário. Ensaios sobre Literatura e experiência, op. cit., p. 52. 130 DIMAS, Antônio. “Ambiguidade da crônica: literatura ou jornalismo?” in Littera: Revista para Professor de Português e de Literaturas de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Grifo, 1974, p. 51

131 DIMAS, Antônio. “Ambiguidade da crônica: literatura ou jornalismo?” in Littera: Revista para Professor de Português e de Literaturas de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Grifo, 1974, p. 49.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

85

pela sua complexidade, elaboração da linguagem, penetração psicológica social, força poética ou humor, uma forma de conhecer melhor os calabouços da nossa história e realidade social. Ainda podemos acrescentar que, segundo Antonio Candido, essa simbiose entre grandes autores e um gênero despretensioso, sem a necessidade de assumir um papel mais denso e profundo, traz a literatura para perto de nós. Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Essa humanização lhe permite recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição132. Diante de tudo isso não há como não sublevar o Cordel, e suas inúmeras semelhanças com a crônica, para esse cenário no qual a tradição oral está presente permeando a história ao rés-do-chão. 3. UM AMISTOSO: CRÔNICA vs CORDEL Analisando o capítulo anterior já nos deparamos com uma semelhança entre os dois gêneros: a acessibilidade. O cordel é impresso em papel ordinário, não feito para durar, assim como o jornal em que se publica a crônica, visto que esta, por ser um gênero moderno, visa o consumo imediato. Além disso, retomando o pensamento de Antonio Candido, a não necessidade de assumir um papel denso e complexo de outras formas literárias, faz com que essa produção venha para perto de nós, refletindo sobre questões do dia a dia, da cultura popular. Os termos presentes na cultura popular do futebol adentram a alma, tanto no cordel quanto na crônica. Podemos, por exemplo, observar a presença desses elementos no folheto de cordel “Brasil Campeão do Mundo”, de Raimundo Santa Helena, quando ele propõe em uma das estrofes: “traz a taça na chuteira”. Já numa primeira análise, nos recordamos de uma expressão criada por Nelson Rodrigues, e que é utilizada até hoje, publicada na crônica “O Divino delinquente”: “se uma equipe entra em campo com o nome do Brasil e tendo por fundo musical o hino pátrio — é 132 CANDIDO, Antonio et al. A crônica: O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Ed. da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, ´. 15.

como se fosse a pátria em calções e chuteiras, a dar botinadas e a receber botinadas.”133. Observamos a presença do imaginário popular que coloca a Seleção Brasileira como aspiração de todo o povo. De tal maneira que o futebol é resguardado como patrimônio cultural brasileiro, o que mostra sua importância para a construção de nossa identidade. É fato que somos lembrados ao redor do mundo pelo futebol ao invés de outros traços de nossa cultura. Um outro momento no qual percebemos afinidade dos termos empregados é quando o mesmo Santa Helena fala, no cordel “Tetra campeão em 86” a respeito do jogo Brasil 3 x Argentina 1. É do conhecimento de todos, mesmo de quem nunca chutou uma bola, que a maior rivalidade mundial está nessa peleja sul-americana. Assim, imprimindo dramaticidade ao discurso, o cordelista utiliza-se da seguinte expressão: “Zico faz um gol chorado”, demostrando, dessa forma, as dificuldades e os percalços deste confronto. Nelson Rodrigues também se apropria desta expressão na crônica “Morrendo ao pé do radio”. Esta crônica faz referência ao jogo Brasil e País de Gales, no qual a seleção brasileira venceu por um a zero. O gol conquistado neste jogo, considerado um dos mais difíceis do torneio, foi assim descrito por Pelé: “esse gol tão sofrido, tão chorado por milhões de patrícios.”134 Em futuros trabalhos será possível elencar mais exemplos de como essa cultura do futebol está arraigada a estes dois gêneros, agora mais próximos. Mas não só nos termos e recursos de linguagem presenciamos essa simbiose. Inclusive, recuperando Benjamim, é possível notar essa narrativa oral presente tanto no discurso encontrado nos cordéis, como na crônica ou, ainda, saindo do papel no rádio, com narrativas memoráveis a respeito do jogo. Ary Barroso e Mário Filho são exemplos de expoentes nesse meio de comunicação. Inclusive o segundo era também cronista e dono do Jornal dos Sports, que comprou de Roberto Marinho em 1936. No período pós-guerra com a expansão da TV passou-se a chamar os comentaristas das resenhas esportivas nessa mídia de “cronistas esportivos.” (grifo meu) 133 RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. Crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das letras, 1993, p.114.

134 RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. Crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das letras, 1993, p.67.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

87

Um exemplo de que as formas de comunicação se aproximam do povo e, dessa forma, se aproximam umas das outras, foi a Mesa Facit, criada em 1963, uma mesa redonda composta por comentaristas esportivos que debatiam sobre aspectos ligados ao futebol, inclusive políticos e culturais. A mesa contava com Armando Nogueira (também escritor de crônicas futebolísticas), Nelson Rodrigues, João Saldanha e Villas-Boas Corrêa, entre outros. O programa fez muito sucesso na época ao apresentar comentários inflamados com cada membro defendendo seu próprio time, como se fossem torcedores numa mesa de bar. Isso corrobora a aceitação do futebol como fenômeno cultural que transita nas diversas formas de narrativa, escrita ou além dela. Lembremos que Pasolini também, em seu ensaio, aproximou essa relação, e rompeu as fronteiras que poderiam separar a linguagem jornalística da literária. E a língua de Brera é, talvez, o caso mais bem qualificado do jornalismo esportivo italiano. Portanto não existe conflito “real” entre escritura literária e jornalística: o problema é que esta, coadjuvante como sempre foi, agora exaltada por seu uso na cultura de massa (que não é popular!), encampa pretensões um tanto soberbas, de “parvenu”.(PASOLINI, 1999, p. 2867)135

Num mesmo raciocínio por que não buscar uma interlocução entre todas estas formas? Pasolini ainda afirma que jornalistas simplificam conceitos a fim de torna-los compreensíveis para a cultura de massa. Não se pretende neste momento encontrar todas as respostas mas sabemos que hoje há uma imensa dificuldade de separar essas fronteiras de vulgarizações, entre o clássico e o popular. Torna-se, assim, difícil definir o que seria “literatura de primeira divisão” ou “literatura de segunda divisão”. E mais, se Pasolini chama os marginais (excluídos) de “elite”, o verdadeiro popular segundo ele, porque ainda não foram corrompidos por uma lógica capitalista, então poderíamos arriscar que cordelistas tão próximos do “rés-do-chão” representam uma forma genuína de representação cultural, assim como as várzeas do mundo. Uma dissociação descontextualizada, portanto, torna-se inapropriada sob quaisquer pontos de vista. 4. UM FUTEBOL DE POESIA, O DRIBLE E O GOL: A AFIRMAÇÃO DO 135 PASOLINI, Pier Paolo. “Il calcio è un linguaggio con i suoi poeti e prosatori”. Em _______. Saggi sulla letteratura e sull’arte. op. cit. , p. 2867.

HERÓI Pasolini falava da individualidade através da capacidade “monstruosa” de driblar136. Se esse futebol, vencedor, buscou a afirmação deste modelo baseado na invenção e no drible, subvertendo a objetividade e transformando a arte em gol, a figura do herói se torna determinante neste processo. Sobretudo no futebol brasileiro, o herói é presença indispensável em todos os momentos que percorrem nossa história. Os grandes feitos individuais se sobrepõem aos feitos coletivos mas, paradoxalmente, os transformam em feitos coletivos advindos da vitória. Em ambos os gêneros o herói cultural, do herói prometeico, aquele que vai buscar o fogo para iluminar a humanidade, aquele que representa a coletividade, que vai buscar a vitória em nome dela. Este ser iluminado se identifica com sua tribo, que aqui pode ser tanto um clube de futebol como a seleção, tornandose a moldura como um dos elementos do arquétipo do herói, como uma correlação entre a sociedade humana e a preocupação em construir um mundo para o homem, aqui falamos da construção e afirmação de um clube ou seleção através das vitórias advindas destes feitos heroicos. Percebemos essa tênue linha que separa o surgimento do mito com o fracasso suscetível ao se girar a roda da fortuna a cada domingo. Temos aí também uma carnavalização com a repetição desses ciclos em que, a cada semana, podem ser refeitos e, por consequência, o mito ressurge triunfalmente. Percebemos essa montanha russa de reedições da esperança ao percebermos o cordel “Brasil tetra campeão em 86”. Nele, o poeta deposita em Falcão, Júnior, Éder, Zico e Sócrates as esperanças de título: Júnior cobra pro Oscar Um corner com perfeição: cabeceando pro chão Consegue desempatar. E logo aos 19 Éder faz um gol de mestre Todo mundo se comove. 41 no final Falcão faz um gol legal Na goleada que chove. (SANTA HELENA, 1986, p. 2)

136 PASOLINI, Pier Paolo. “Il calcio è un linguaggio con i suoi poeti e prosatori”. Em _______. Saggi sulla letteratura e sull’arte. op. cit. , p. 2868.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

89

Não podemos esquecer que esse ressurgimento de esperança plena se dá após a derrota traumática de 82, com os mesmos jogadores e técnico. Ainda nesse ponto, além do caráter obstinado do herói arquetípico, observamos que os craques do cordel tem a superpersonalidade do herói se sobressaem de modo que seus dribles e gols, "feitos coletivos", são tão imediatos que não há vestígio de "obrigação" ou de "reflexão". Vemos isso ainda mais claramente em uma crônica de Nelson Rodrigues intitulada “Garrincha não pensa”. O sugestivo nome demonstra essa irracionalidade e naturalidade com que o ídolo age. Isso fica claro ao notarmos que, em nenhum momento, Garrincha precisa de obstinação e sacrifício para propor a magia (e os grandes feitos) com suas jogadas e gols:

Só agora começamos a fazer-lhe justiça e a perceber a sua superioridade. Comparem o homem normal, tão lerdo, quase bovino nos seus reflexos, com a instantaneidade triunfal de Garrincha. Todos nós dependemos do raciocínio. Não atravessamos a rua, ou chupamos um Chica-bon, sem todo um lento e intrincado processo mental. Ao passo que Garrincha nunca precisou pensar. Garrincha não pensa. Tudo nele se resolve pelo instinto, pelo jato puro e irresistível do instinto. E, por isso mesmo, chega sempre antes, sempre na frente, porque jamais o raciocínio do adversário terá a velocidade genial do seu instinto.(RODRIGUES, 1993, pag.68) 137

Garrincha, nosso herói macunaímico presente na arena de conflitos e vozes, representa a expressão genuína do anti-herói brasileiro, como nos mostra o antropólogo Roberto DaMatta138. Segundo ele, o herói deve ser trágico para ser interessante, com sua vida sendo definida por meio de uma trajetória tortuosa, cheia de peripécias e desmascaramentos. Destarte, nosso padrão de herói estaria mais próximo de tipos como o Conde de Monte Cristo, Pedro Malasartes e Lampião. Assim, a base do drama consiste, numa sociedade com pouca mobilidade, em fazer o personagem central terminar com mais do que possuía no começo da história. A possibilidade de tornar-se um craque como Pelé ou Garrincha, retrataria um ideal popular de ascensão. O nosso herói, portanto, precisa confirmar suas qualidades excepcionais para tornar clara a linha do seu glorioso destino139. 137 RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. Crônicas de futebol, op. cit., p. 75. 138DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. E-book: Rocco Digital, 2012. 139 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis, op. Cit., p. 258.

Destarte, o herói brasileiro visto nos campos de futebol é uma construção que reflete nossos complexos e aspirações. Buscamos, ao depositarmos no ídolo, construção de seus próprios feitos individuais, uma aspiração de conquistas e vitórias que não encontramos em outras esferas de nossa sociedade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O universo do futebol, como nos mostrou Hilário Franco Junior em seu livro A dança dos deuses, é profundo e permite que nos aprofundemos em inúmeras reflexões. José Miguel Wisnik140 em Veneno Remédio: o futebol e o Brasil, corrobora essa ideia com a tese de que o futebol é muito mais que um simples fenômeno típico de uma cultura de massa. Ele expõe as vísceras da identidade de um povo em campo com seus dramas, vitoriosos ou não. O ídolo se faz presente, portanto, como aspiração coletiva em cada canto do subúrbio, na viela do morro ou nas praias, espaços democráticos que carregam a esperança deste imaginário coletivo: todo mundo, algum dia, quis se tornar jogador de futebol. Pasolini também nos apresenta seu conceito de “elite popular” uma forma de enxergar a sociedade de baixo para cima, quebrando alguns paradigmas a respeito de pressupostos, inclusive acadêmicos. Sendo o futebol a “última representação sacra de nosso tempo”141 podemos ter aí também, talvez, a última forma de resistência para a luta política. Não se pode esquecer o alcance desse esporte como espetáculo midiático e a importância global que assume o posicionamento de um de seus protagonistas. Desta forma, podemos supor que essa legitimidade popular está em risco, dentro e fora dos campos, com uma tomada do esporte por uma burguesia consolidada. Ouso apresentar alguns indícios para reflexão: os altos ganhos propostos pelo futebol, de certa forma, substituem o pé-de-obra de outros tempos por jogadores de classe-média que veem nesse esporte chances de enormes ganhos. Nas arquibancadas, o futebol ascendeu como o fenômeno mais visto ao redor do mundo. O 140 WISNIK, José Miguel. Veneno Remedio: O Futebol e o Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

141 MOLTENI, Angela. "Pasolini i il gioco del caleio". http://www.pasolini.net/ saggistica--ppp-e-ilcaleioAM.htm; acesso em 09/12/2015 (minha tradução)

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

91

enriquecimento dos grandes clubes europeus através da profissionalização e transformação em empresas exclui o público genuíno e coloca quem pode “pagar mais” pelo espetáculo dentro das arenas, “expulsando” o torcedor de outrora. O caso brasileiro nos apresenta um alerta, a ser debatido em caráter de urgência. Coincidentemente, verificamos uma depauperação de aspectos genuínos de nossa cultura: no cordel, na crônica e no futebol. Neste, os estádios deformados em suas arquiteturas históricas, espaço genuíno dessas construções identitárias, e transformado em arenas pasteurizadas, padronizadas, levaram consigo nosso maior patrimônio: o torcedor da arquibancada e da geral. Carente de outras opções de inclusão em outras formas de cultura, essa gente marginalizada nessa sociedade dividida e com pouca mobilidade, agora não tem mais acesso ao patrimônio cultural que nos apresentou ao mundo. E mais, João Saldanha certa vez afirmou, no final dos anos 70, ao perceber fenômeno semelhante, mas dentro de campo, com um crescente branqueamento dos jogadores: “não tirem os negros do nosso futebol”. Podemos perceber esse aspecto também fora de campo, como foi possível constatar na última copa do mundo realizada no Brasil. Trata-se de uma exclusão perigosa pois ela carrega consigo outras formas de cultura popular. Desta forma, e finalmente, que esse debate se estenda a fim de salvaguardar nossa cultura: música, dança, literatura ou mesmo o futebol, dessa padronização e elitização impostas por uma camada que joga nos porões, consciente ou inconscientemente, aspectos tão relevantes de nossa HISTÓRIA.

As Formulações de Nação na Primeira República: Um percurso pela obra de Graça Aranha.142 Andrea Ramon Ruocco Mestranda História e Cultura Social UNESP Campus Franca. Orientadora: Profa. Dra. Vigínia Célia Camilotti.

Resumo: Durante os primeiros anos da república brasileira diversas formulações de nação percorreram o território. Artistas e homens de letras não ficaram alheios a estas formulações, e, entre experimentações estéticas, teceram suas propostas! Podemos encontrar estes discursos em escritos abertamente políticos, que tinham justamente o propósito de enunciar tais formulações, mas, na maioria das vezes, os encontramos de forma velada. A obra de Graça Aranha tem se mostrado riquíssima para compreensão destes mecanismos e também para nos debruçarmos sobre a pluralidade de formulações, já que o autor perpassa mais de uma durante sua trajetória, como a idéia de Germanismo e a de Latinidade. Assim, este trabalho se propõe a analisar a obra de Aranha sobre esta perspectiva e também explorar questões acerca da produção 142 Esta pesquisa é financiada pela Capes.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

93

cultural do período, inevitavelmente, discutindo as abordagens traçadas pela historiografia. Palavras-Chave : Primeira República, Germanismo, Graça Aranha, Belle Epoque, Brasilidade

“A encruzilhada do fim de século”143, esta frase cunhada por Antonio Dimas e que intitula um artigo de 1994, é um ótimo slogan para o cenário literário da passagem do século XIX e para as primeiras décadas do século XX. Logo nas primeiras linhas, Dimas ressalta que as duas primeiras décadas do XX, “ao contrário do que se ensinava até anos recentes” [e tenho percebido através de minha pesquisa que muito deste ideário ainda perdura, principalmente sob a égide do conceito de prémodernismo] “não foram tão infecundas no terreno literário”144, e, acrescento aqui, nem nos demais campos da produção cultural. Aos poucos, os Estudos Literários e a própria História, contrariamente à sentença da infecundidade, têm contribuído para clarear as especificidades e riquezas deste período de produção, e, assim, demonstrando que esta encruzilhada intersecionou projetos distintos e inúmeras experimentações estéticas. Creio, inclusive, que a presente pesquisa caminhe também neste sentido145. Paulatinamente, temos percebido que a literatura desta época, acalorada pelas inúmeras mudanças que ocorreram no cenário político e econômico brasileiro, cuja república dava seus primeiros passos, “abrigou posições as mais contraditórias e antagônicas, ferrenhas às vezes, todas elas pautando-se pelo ânimo de redesenhar um retrato de Brasil”, ora corroborando para construções de projetos identitários, ora propondo o melhor caminho a ser traçado pela república, o que venho chamar aqui de Formulações de Nação. 143 DIMAS, Antonio. A encruzilhada de fim de século. In: PIZARRO, Ana (Org.). América Latina: Palavra, Literatura e Cultura: emancipação do discurso. Campinas, SP: Editora Memorial; Editora Unicamp, 1994, p. 537-574. 144 Ibidem, p. 537. 145 Este artigo apresenta pela primeira vez, de uma forma geral e sintética, o projeto de mestrado que desenvolvo no programa de História e Cultura Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Franca, cujo título provisório é “Pré-Modernismos, Modernismos, e as Formulações de Nação da Primeira República: Diálogos na Trajetória de Graça Aranha”.

E é aí que encontramos José Pereira da Graça Aranha! Nascido em São Luís do Maranhão em 1868, Graça Aranha, muitas vezes reconhecido como o autor de uma única obra146, deixou publicações com formulações divergentes ao longo de sua trajetória, e, se utilizou de gêneros e formatos diversos: romances, teatros, ensaios filosóficos, artigos abertamente de cunho político. Cito aqui algumas das publicações: Canaã (1902), Malazarte (1911), Le devoir des neutres (1917), Revista Atlantida (diretor/editor entre 1919-1920), A Estética da Vida (1921), Machado de Assis e Joaquim Nabuco: comentários e notas à correspondência entre estes dois escriptores (1923), Espírito Moderno (1925), A Viagem Maravilhosa (1929), O meu próprio romance (1931)147, além de um vasto material de cartas – algumas delas escritas de forma premeditada para leitura pública – que hoje se encontram espalhadas por acervos como o da Fundação Joaquim Nabuco, da Academia Brasileira de Letras e da Casa de Rui Barbosa148. A diversidade de tipos de fontes incorporadas ao corpo documental é um ponto comum para aqueles que se dispõe a trabalhar com homens do período, estes homens de letras não se dedicavam à uma única atividade, eram romancistas ao mesmo tempo que trabalhavam em cargos públicos, jornais, eram editores, diplomatas... Aranha era mais um destes tantos casos. De certo, as palavras que se encontram nas páginas de uma autobiografia inacabada, ou melhor, de um romance de si mesmo interrompido pela morte do autor em 1931: “A unidade da minha vida está no espírito de libertação, que animou o meu ser moral desde a infância até a velhice” 149, trazem um termo difícil de reconhecer no conjunto documental que cerca José Pereira da Graça Aranha: unidade! 146 Canaã, ou Chanaa na grafia original, foi o primeiro romance de Aranha publicado em 1902. A maioria dos estudos sobre Graça Aranha partem desta obra; além da tese de doutorado de Maria Helena Castro Azevedo que resultou no livro publicado pela Academia Brasileira de Letras “Um senhor modernista: biografia de Graça Aranha”, os trabalhos que tenho me deparado não trabalham com um corpo documental mais amplo, ou, trazem Graça Aranha de forma periférica com intuito de conhecer outros personagens. Tenho também experimentado em minhas apresentações orais e conversas em meios acadêmicos perguntar: “Vocês ouviram falar de Graça Aranha? ”, “Conhecem alguma obra de sua autoria? ”; a negativa tem sido recorrente, e, quando reconhecem o autor, é novamente o nome Canaã que se destaca. 147 Todas estas obras citadas estão disponíveis no acervo digital da Biblioteca Brasiliana (USP), e os volumes da Revista Atlantida estão disponíveis na hemeroteca digital de Lisboa. 148 A obra “Cartas de Amor” de 1935, sendo publicação póstuma, reúne cartas trocadas com Nazareth Prado durante os anos em que estivera exercendo o serviço diplomático na França. A tiragem foi bem pequena, porém podemos ter acesso a este material também pela Biblioteca Brasiliana (USP). 149 ARANHA, Graça. O Meu próprio Romance. Companhia Editora Nacional. 1931.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

95

Esse tal pré-modernismo... Antes de partirmos para as formulações propriamente ditas, gostaria de fazer alguns apontamentos sobre o chamado pré-modernismo e seu trato pela a historiografia. Nomenclatura criada posteriormente, estes primeiros anos do século XX sob a esfera das artes e da literatura, é comumente chamado de pré-modernismo; em alguns casos, referido também como pós-romantismo. Em ambas nomenclaturas o período é tratado apenas como um momento de transição entre o romantismo e o modernismo. Como aponta Tania Regina de Luca em “República Velha: temas, interpretações, abordagens”150, “o peso simbólico de 1922 é de tal ordem que não apenas se impôs como marco periodizador da cultura brasileira, como também homogeneizou os antecessores sob rótulos genéricos, subtraindo-lhes a identidade” 151, ou seja, o modernismo teria se apresentado de tal forma [e sem dúvida, houve toda uma campanha para que a imagem da Semana de Arte Moderna fosse consolidada como um momento de ruptura e avanço] que a produção que o antecedeu foi subjugada. O termo “pré” foi cunhado pela primeira vez por Tristão de Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, no livro “Contribuição à História do Modernismo”152. A obra publicada em 1939, consiste em uma reunião de artigos de crítica literária, ou, como Athayde classifica, crônicas publicadas por ele mesmo no “O Jornal” em 1919. Athayde, no prefácio de 1939, se referia a esta literatura como uma literatura que corria o risco de cair no esquecimento: O exemplo de Veríssimo ou de Araripe, quando assim guardaram em livro as críticas de anos anteriores, também me animou, pois muito serviam ao crítico da nova geração que lhes sucedia. E assim também por um pouco de amor às nossas letras, para que se vá constituindo a cadeia literária 150 LUCA, Tania Regina de. República Velha: temas, interpretações, abordagens. In: SILVA, Fernando Teixeira; NAXARA, Márcia. CAMILLOTTI, Virgínia. (Orgs.). República, Liberalismo e Cidadania. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2003. p. 33-51. 151 Ibidem, p.42. 152 ATHAYDE, Tristão. Contribuição à História do Modernismo: I volume – O Premodernismo. 1 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1939. 277 p.

dos anos decorridos, para que se vão registrando as atas com que se reconstituirá um dia a história intelectual dos nossos tempos, - é que consinto em rebuscar o fundo das gavetas fechadas e mofadas.153

A junção destes textos em uma publicação, e seu prefácio inquietante, leva a crermos que o posicionamento de Athayde é justamente contrário à desvalorização do que havia sido produzido entes da Semana de 1922, e que almejava recolocá-la em discussão em 1939, quando os modernistas já teriam seu prestígio. O termo ‘premodernismo’, parece ter sido cunhado mais como tentativa de reunir sob uma mesma categoria uma diversidade de autores e obras, que transitavam por gêneros diversos – de obras de história, prosa, poesia, obras de cunho político e social – e não tanto como antecedente temático ou de clima decadentista. O criador do termo, lançou ao mundo uma nomenclatura que, como tudo, teria seu significado modificado ao longo do tempo, mas, que se tornou uma “designação que se impôs rapidamente”154. Texto importantíssimo que colaborou para que a produção anterior à 1922 fosse entendido como um período dito menor, foi “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”155 de Antônio Cândido, que fora publicado somente em 1965. Cândico assinala que a literatura brasileira do século XX se divide quase que naturalmente em três etapas: a primeira compreendendo o período de 1900 a 1922; a segunda que iria de 1922 a 1945; e uma terceira etapa que começaria em 1945. Esta primeira etapa poderia chamar-se pós-romântica, e, enquanto as outras duas integrariam um período novo, ela estaria ligada ainda aos movimentos do século XIX. De 1880 até 1922 não haveriam grandes mudanças, pelo contrário, seria um momento de estagnação, “uma literatura satisfeita, sem angústia formal”, ainda nas palavras do autor “o século literário começa para nós com o modernismo”.156 Retornando ao artigo de Luca, ao levantar os títulos de pesquisas realizadas entre 1939 e 1977 na USP157 e os artigos dos 112 primeiros números da Revista de 153 Ibidem, p. 9. 154 LUCA, T., 2003, p.40. 155 CÂNDIDO, Antônio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: _Literatura e Sociedade: estudo de teoria e história literária. 7 ed. São Paulo: Editora Nacional, 1985. p. 111-138. 156 Ibidem, p.112-113. 157 Catálogo de Dissertações e Teses Defendidas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

97

História, observou que somente no final da década de 1960 os primeiros anos da república tornaram-se objeto de estudo, e, que neste primeiro momento, poucos contemplavam aspectos culturais e sociais, predominando uma preocupação política e econômica. Já na década de 1970, os estudos da chamada “República Velha” migraram para os estudos da “Primeira República”, mas o golpe de 1964 teria influenciado também no tipo de abordagem: como pesquisas sobre a classe operária, formas de organização e condições de trabalho, e os movimentos ideológicos de esquerda que não teriam vingado. Somente a partir da década de 1980 emergiram os primeiros trabalhos que contemplaram uma perspectiva mais cultural. Este breve levantamento bibliográfico realizado por Luca nos dá elementos que levam à seguinte reflexão: a Teoria Literária entusiasmou e por vezes ditou as abordagens da historiografia justamente por comporem as poucas referências até quarenta anos atrás para aqueles que se aventuravam a explorar à produção cultural dos primeiros anos da república. Uma outra abordagem: Literatura da Belle Époque. Guardadas as devidas proporções, a manifestação artística que poderia ser denominada como pré-modernismo também apresenta paralelos ao desenrolar da belle époque parisiense, sobretudo se analisarmos o fenômeno dentro da cidade do Rio de Janeiro, que cada vez mais se firmava como um centro artístico e, como podemos perceber mais claramente pela proposta de modificação urbana de Pereira Passos, que via Paris como grande inspiração. Literatura da Belle Époque, é um termo mais recente utilizado pelos pesquisadores de Letras e historiadores afim de se desvincularem de um passado de publicações depreciativas sobre o período literário. Em 2013, em uma coletânea de artigos intitulada “Flagrantes da Literatura Brasileira da Belle Époque”, Vania Pinheiro Chaves demonstrou a preocupação em conceituar a opção pela expressão francesa, que também não é utilizada sob significação uníssona, mas que na coletânea em questão se resumia em um recorte periodológico compartilhado por Jeffrey D. Needell , para quem a Belle Époque carioca e, por extensão, a brasileira, iniciaria com a subida de Campos Salles em 1898 e seguiria, após o período revolucionário que se sucedeu à proclamação, à recuperação de um clima de tranquilidade mantido pelas

elites regionais158. E assim, o que antes se organizava sob um prefixo criticado por suprimir as especificidades da produção, passou-se a se organizar sob um recorte socioeconômico159. Um primeiro momento de Aranha: Germanismo? Ao desenvolver seu primeiro romance Canaã publicado em 1902, Graça Aranha não escolhe à toa o formato cujo Cânone Mínimo160 é alemão. Ao propor um tipo de romance de formação, um bildungsroman, opta por um formato muito mais alemão que francês, questionando o ideário da capital como única possibilidade. A história do personagem Milkau é uma das primeiras obras ficcionais a delatar o problema da imigração européia no Brasil, mas, Canaã vai além da história de desilusão com a terra prometida. Ao adentrarmos a narrativa, percebemos que o personagem principal, um imigrante alemão que vem ao Brasil por sua própria escolha a fim de encontrar a si mesmo no contato com a natureza exuberante, é também pessimista ao refletir sobre sua nação de origem, ou melhor, sua raça, tecendo por diversas vezes posicionamentos críticos em relação aos outros personagens alemães que adotaram o Brasil como a nova terra, como podemos perceber neste trecho: MILKAU – (...) O mau é universal, ninguém está satisfeito sobre estes tempos; todos se lamentam, e nem senhores, nem escravos, nem ricos, nem pobres, nem cultivados, nem simples têm o seu quinhão de alegria, de satisfação como queriam. (...). LENTZ – (...). Deixastes pátria, família, sociedade, uma civilização superior? MILKAU – Deixei o que era vão. LENTZ – E à Europa, à Alemanha nada mais te prende? MILKAU – Somente o que elas têm de grande no passado. Mas isto é o incorpóreo, é o invisível, e eu não preciso me sentar sobre as ruínas para amá-lo. É obra da imaginação e da memória. O meu culto ao que é humano é ativo, reside na dupla consciência da continuidade e da indefinidade do progresso. O que a Europa nos mostra, como forma de vida, é apenas um prolongamento desarmônico das forças de ontem e 158 CHAVES, Vânia Pinheiro. Introdução. In: CHAVES, Vânia Pinheiro (Coord.). Flagrantes da Literatura Brasileira da Belle Époque. Lisboa: Esfera do Caos Editores, 2013. p. 9-15. 159 Tenho optado por não utilizar o termo pois, embora não seja pejorativo, acredito que ele também é generalizante sob outros aspectos. 160 MAAS, Wilma Patrícia Marzari Dinardo. O Cânone Mínimo: O Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora Unesp, 2000.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

99

das solicitações do presente.161

Todavia, embora Lentz, o amigo alemão do personagem protagonista, tenha uma postura muito mais evidente sobre a questão racial presente no Germanismo, ainda há uma visão hierárquica racial nas falas de Milkau, cujo papel do imigrante europeu ariano se torna quase que missionário, a fim de guiar esta nova nação chamada Brasil que nascia no âmbito da decadência dos povos latinos e mestiços, sem que exista uma refutação do narrador onisciente. O mais curioso é como Graça Aranha expõe esta narrativa. Além do cânone alemão, a narrativa apresenta uma ornamentação não meramente decorativa, mas constituinte da obra, ou senão a própria obra. José Paulo Paes focaliza, ao analisar esta mesma narrativa, que o anseio por mudanças, além das experimentações de antigos modelos e suas misturas 162, trouxera um novo estilo também vindo da Europa, mas desta vez, sob inspiração da arquitetura: (...) na ambição de criar, para seu próprio século, uma arquitetura nova, integrada, orgânica, o movimento art nouveau se opunha ao ecletismo oficializado da Escola de Belas Artes de Paris, servilmente imitado pela belle époque carioca nas fachadas dos edifícios da Avenida Central. (…). O art nouveau literário, cuja conceptualização se demonstra menos difícil no terreno da prosa que no da poesia, buscou, tanto quanto o art nouveau das artes visuais e aplicadas, ultrapassar o ecletismo novecentista por via de uma síntese das tendências estéticas de fim de século, síntese que fosse capaz de exprimir organicamente a vida moderna como tal. 163

Uma das possibilidades para que o estilo fosse transcodificado para diversas áreas, é que, na passagem do século, artistas, escritores e poetas frequentavam os mesmos locais, e permaneciam em constante contato. Muitos liam e escreviam para as mesmas revistas – revistas que cumpriam um papel importante de crítica e reflexão sobre a república. A aproximação de ilustradores e escritores neste tipo de publicação 161 ARANHA, Graça. Canaã. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda., 2010. 2 ed. p.42-43 162 Daí, por exemplo, o demasiado uso do prefixo “neo” aplicado às diversas vertentes da literatura (neoparnasianismo, neonaturalismo, neossimbolismo) cujas obras apresentam, em muitos casos, mais de um estilo. Na arquitetura, o ecletismo e o estilo hibrido é também extremamente evidente, resultado de uma busca às referências europeias que foram também apimentadas por vários imigrantes italianos (obreiros e artesãos) que se direcionaram às cidades. 163 PAES, José Paulo. Canaã e o Ideário Modernista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992, p.19-21.

colaborava para este diálogo, é o que Flávio Motta já chamava a atenção em 1957 em um estudo sobre a art nouveau no Brasil: Seguindo o costume do “fin de siècle”, também intelectuais se empenhavam na publicação de revistas. A ilustração era o melhor atrativo para conquistar as simpatias do público. Surgiram assim pelo Brasil centenas de revistas, sendo algumas mais especializadas em artes plásticas e com inúmeras ilustrações nitidamente “Art Nouveau”: Revista da Semana, Careta, Fon-Fon, Malho, A Avenida, Renascença, Kosmos, Iris, Pirralho, etc. Entre os caricaturistas estavam Calixto Cordeiro e Raul Perdeneiras. (...). Todos eles tem o linearismo que pode ser interpretado como um reflexo das influências do “Art Nouveau”.164

Por conseguinte, a inspiração em formas naturais (sem deixar de ser tipicamente urbana), o traçado curvilíneo e sinuoso, criando uma sensação orgânica e de leveza e toda a importância da ornamentação desta art –– aparecem nestas narrativas da passagem do século. Em Canaã, a ornamentação se apresenta mediando simbolicamente a natureza brasileira e o projeto utópico do personagem principal Milkau165. Primeiro ponto de virada: do Germanismo para a Latinidade Diferentemente, a Revista Atlântida propunha ser um veículo de aproximação entre Brasil e Portugal principalmente a respeito de uma produção cultural e científica. Iniciada em 1915, em plena Grande Guerra, teve em sua direção João de Barros e João do Rio, em Portugal e no Brasil respectivamente. Em 1919, a partir do número 37, Graça Aranha se torna diretor em Paris, onde exercia também sua função de diplomata. Este triângulo entre Brasil, Portugal e França, com diretores e colaboradores distribuídos por dois continentes, anuncia a verdadeira intenção editorial da revista que passa a intitular-se “Órgão do Pensamento Latino em Portugal e no Brasil”. A apresentação aos leitores da modificação do subtítulo da revista a partir do número já citado é muito enfática em sua proposta de Latinidade, dando um lugar de destaque e atrelando o nome de Aranha também à mudança: 164 MOTTA, Flávio. Contribuição ao Estudo do “Art Nouveau” no Brasil: dissertação escrita para fins de concurso à cadeira n.15 de História da Arte. São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, 1957, p.29-30. 165 PAES, J. P., 1992.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

10 1

Com o presente número a Atlantida passa a poder intitular-se, legitimamente, ORGÃO DO PENSAMENTO LATINO EM PORTUGAL EM PORTUGAL E NO BRASIL. Com efeito, a aproximação luso-brasileira, para cuja defesa ela se fundou e por cuja realização tem combatido, só encontrará sua completa efectivação quando baseada no mesmo e ardente amor pela alma latina que vive e palpita nas duas Pátrias irmãs, filhas de uma só raça, aventurosa, leal e progressiva. Pela amável acquiescência do grande escritor que é o emitente Graça Aranha, tão querido e estimado nos meios intelectuais parisienses, a Atlantida confiou-lhe a sua direção literária em França. Espírito superior, alma idealista, inteligência de entusiasmo sempre vibrante, Graça Aranha traça nas primeiras páginas no nosso número hoje a síntese do nosso programa, e dos resultados que pretendemos colher. França-Brasil-Portugal, amando-se na mais estreita comunhão de aspirações e de interesses espirituais – eis toda a ambição dos que trabalham na Atlantida.166

É assim que Aranha é introduzido na revista, com a responsabilidade de apresentar em seu primeiro artigo, e justificando nas primeiras páginas do exemplar, uma unidade moral das nações latinas. Estas nações não deveriam conter-se em fronteiras pois sua união não se restringiria apenas ao tronco linguístico, mas estariam unidas, em suas palavras, por uma “mesma alma”. Diferentemente das experiências da Grande Guerra que recentemente acabara, a unidade não se daria pela guerra e pela morte, mas, pela inteligência, opondo-se ao mundo anglo-saxão. Pela fôrça do instinto da raça o povo brasileiro e o povo português se sentiram em comunhão de destino em defesa contra o germanismo que o quis eliminar das suas pátrias. 167

Neste texto “A Nação”, Aranha defende uma federação luso-brasileira como primeira medida para solucionar o mundo pós-guerra, cujo Brasil teria o papel importantíssimo de conduzir, pelo signo da Latinidade, as Américas. No número 38 da mesma revista no artigo “Catástrofe ou evolução?” diante de questionamentos como “Que significa a revolução da Rússia? Para onde vai a Alemanha? Como organizar as nacionalidades que se desmembraram da Áustria? Que destino terá o intrometido império turco?”, ele diz que o pessimismo estaria assoberbando o mundo e que a tese dos historiadores pessimistas seria muito simplória diante da complexa transformação 166 ARANHA, Graça; BARROS, João de; RIO, João do (dir.). Revista Atlantida. Vol. X. Ano IV. n.37. Lisboa, 1919, p.3. 167 Ibidem, p.8-9.

da sociedade, pois assinalaria o afundamento do velho mundo sem propor a criação de um mundo novo. E de qual mundo novo estamos falando? Um mundo guiado pela Latinidade168. Segundo ponto de virada: da Latinidade para a Brasilidade Poucos anos depois, Graça Aranha regressaria ao Brasil e se envolveria com os modernistas ao ponto de tornar-se um dos organizadores da Semana de Arte Moderna. Sem dúvida este é outro momento significativo em sua trajetória, pois revela uma nova quebra com seus comprometimentos anteriores, já que o grande mote dos modernistas era justamente uma dissociação com o velho mundo e a independência identitária e artística do Brasil em relação a Portugal; formulação muito díspar daquela em trabalhou na Revista Atlantida. Graça Aranha envolveu-se de tal forma com este Espírito Moderno169 - título de um de seus livros, que, após participar da Semana de 1922 como um de seus organizadores, rompeu dois anos depois com a Academia Brasileira de Letras onde possuía cadeira e era membro fundador. Acusava a Academia de imobilismo literário, e chegou a propor formas de controle sobre a produção literária: A Academia é uma contradição do espírito moderno, que agita e transforma todo o Brasil. Perante a opinião pública, que a deve policiar, entendi estimular a Academia a orientarse por esse espírito novo. Em seguida às palavras que lhe dirigi, apresentei o projeto de reforma dos seus trabalhos com o propósito de nacionalizar-lhe e modernizar-lhe a ação. O projeto foi rejeitado. A Academia quer persistir na sua posição eclética e antiquada, nefasta à literatura brasileira. Recusa-se a tornar-se um organismo útil e ativo, um fator do moderno sentimento nacional, seu representativo, seu guia. A Academia Brasileira morreu para mim, como também não existe para o pensamento e para a vida atual do Brasil. 170 168 No artigo “Variação lexical e performance semântica de um conceito político: latinidade, ideia latina e romanidade” Virgínia Célia Camilotti chama atenção para a variação vocabular em torno da ideia de união dos povos latinos, que teria se firmado no conceito de Latinidade justamente em oposição ao Germanismo. O termo Latinismo, por exemplo, não teria sido adotado como sinônimo de Latinidade para não ser confundido com ideias de raça e poder atreladas ao Germanismo, enquanto a proposta de união viria através de aparato moral e pela língua. CAMILOTTI, Virginia Celia. Variação lexical e performance semântica de um conceito político: latinidade, ideia latina e romanidade. In: CESAROLI, Josianne. NAXARA, Marcia. (Org.). Tramas do Político: linguagens, formas, jogos. Uberlândia: EDUFU, 2012. p.45-70. 169 Em referência a própria obra do autor “O Espírito Moderno” de 1925. 170 Após ter o projeto rejeitado na ABL, Graça aranha redigiu uma carta de desligamento em 18 de outubro de 1924 que foi incorporada e consta integralmente no livro “Espírito Moderno”.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

10 3

Mas a “ditadura do modernismo” também não perdoou a produção de Graça Aranha nestes anos seguintes à semana, que foi criticado por seus pares por tentar ser forçosamente moderno sem sê-lo. Cumprindo seu papel de um “verdadeiro modernista” ou não, Graça Aranha compartilhou a proposta de quebra com as formas de expressão europeias, dando as costas a Portugal em busca de algo que fosse genuinamente brasileiro... um posicionamento muito diferente do assumido na Revista Atlântida onde a nação deveria encaminhar-se para um futuro promissor justamente pela união das nações latinas, e também bem distante da proposta de Canaã. Algumas Considerações: Cambiando entre diversas propostas estéticas, e, podemos perceber que forma e discurso são, neste caso, indissociáveis, sua produção e trajetória 171 parece atravessar três propostas diferentes de formulação de nação: Germanismo, Latinidade e um Brasileirismo. O que a princípio parece um conjunto documental confuso, condensa várias propostas de Brasil. O mais intrigante é que estas transições de opinião não se apresentaram da mesma forma na produção de outros homens de letras. Na maioria dos casos a possível discordância e convivência de opiniões divergentes estavam muitas vezes imbuídas em heterônimos. Embora também podemos identificar algumas permanências em Graça Aranha, como seu apreço pela filosofia e a literatura alemã, estes três “pontos de virada” mais facilmente identificáveis: Canaã, a Revista Atlântida, e seu envolvimento com o movimento modernista, não foram seguidos por justificativas públicas. Houveram defesas públicas de seus posicionamentos, mas não em relação a suas mudanças de opinião. Talvez a obra inacabada e publicada postumamente, “O meu próprio romance” de 1931, seguiria neste sentido, mas, continuaremos na incógnita, pois a narrativa interrompida traça apenas os anos da infância até período em que foi universitário. ARANHA, Graça. Espírito Moderno. São Paulo: Cia Graphico – Editora Monteiro Lobato, 1925, p.59-61. 171 Adoto aqui o conceito de trajetória apontado por Pierre Bourdieu em “Razões Práticas: sobre a teoria da ação”.

Tanto a necessidade ou não de justificar-se, o incômodo de seus pares, ou a falta de incômodo pelo público externo diante das disparidades dos discursos de uma obra à outra, podem tornarem-se elementos para compreendermos a produção cultural neste início do século XX.

O ESPAÇO CINETEATRAL: UMA REFLEXÃO SOBRE AS MUDANÇAS ARQUITETÔNICAS E URBANÍSTICAS EM CUIABÁ E GOIÂNIA NOS ANOS 1940 Antonio Ricardo Calori de Lion Mestrando em História – FCL Unesp/Assis172

Resumo: No decênio de 1940, várias transformações urbanas ocorreram nas capitais do Centro-Oeste. Cuiabá passava por uma retificação urbana e Goiânia inaugurava algumas obras que faziam parte de sua construção, iniciada na década anterior. Havia 172 Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2014/16749-3. Membro do grupo de pesquisa Arte.com.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

10 5

em ambos os casos no plano oficial de Estado a construção de lugares culturais, dedicados sobretudo ao teatro e ao cinema, sendo construídos assim o Cine-Teatro Cuiabá e Cine-Teatro Goiânia inaugurados em 1942. Analisando principalmente publicações em periódicos da época e os próprios edifícios; almejamos refletir acerca do processo ocorrido nas capitais centro-oestinas colocando a produção arquitetônica enquanto dado cultural fundamental para (re)pensarmos as transformações implementadas pelos Interventores dos dois estados que então compunham a Região. Palavras-chaves: espaço cineteatral; arquitetura e cultura; Centro-Oeste brasileiro; invenção de tradições; símbolos modernos.

Apresentação Este trabalho traz resultados ainda incipientes da pesquisa em andamento acerca das construções dos cineteatros em Cuiabá e Goiânia, inaugurados em 1942. Esta reflexão tem como cenário histórico as mudanças urbanas ocorridas nas capitais centro-oestinas na década de 1940, sob o regime do Estado Novo - momento em que Cuiabá passou por uma retificação urbana e Goiânia fora inaugurada com o título de “Capital do Sertão”. Apesar do contexto em que este trabalho se pauta estar marcado pelas questões arquitetônicas e urbanísticas, serão apresentados diálogos com esses dois campos do conhecimento tendo como foco a reflexão pela história social desta Região, com foco nas sedes político-administrativas no primeiro quinquênio da década de 1940. Investigamos pela produção periódica, na primeira metade dos anos 1940, o aspecto ideológico do Estado Novo em relação ao progresso, levando à construção de edifícios em um novo perímetro em Cuiabá e à construção de Goiânia no bojo de políticas que propagavam a ideia progressista em que o Centro-Oeste passava. Percorrendo esta questão propagandística ideológica usada na região CentroOeste pelos Interventores, a grande referência neste debate (sobre a propaganda política no Brasil, no Estado Novo) é Maria Helena Rolim Capelato. Para a autora, após “um avanço considerável dos meios de comunicação” pelo mundo, “a propaganda política entendida como fenômeno da sociedade e da cultura de massas, adquiriu enorme importância nas décadas de 1930-40” 173. A importância presente nas 173 Ambos os trechos aspados neste parágrafo são de: CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em Cena. Propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas – SP: Papirus, 1998, p. 35.

discussões da autora, além do aspecto ideológico da propaganda institucional do Estado, também estão os apontamentos das especificidades em elementos da produção de símbolos para esta reverência ao progresso estado-novista: O poder utiliza meios espetaculares para marcar sua entrada na história (comemorações, festas de todo o tipo, construção de monumentos). As manifestações do poder não se coadunam com a simplicidade; a grandeza, a ostentação, o luxo as caracterizam.174 No que se refere ao conceito de progresso mencionado neste trabalho, entendemos segundo a crítica elaborada por Walter Benjamin, no qual é chamado metaforicamente de uma “tempestade”175, ou seja, em sua alegoria do anjo da história o autor aponta uma crítica ao progresso como sendo uma força que impele a história para o futuro: “A ideia de progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio homogêneo”176. Essa ideia de progresso colocada por Benjamin refere-se à “atualização”, que segundo o professor Carlos Eduardo Jordão Machado: [...] não acontece senão aniquilando a continuidade da marcha do progresso como sendo a própria história da humanidade; interrompendo-a, e, na ruptura, dar vozes ao que foi emudecido, ao que se perdeu no progredir.177

Ora, Walter Benjamin indica que este progresso está inserido em uma temporalidade homogênea e vazia, isto é, cronológica e linear. A forte característica ideológica de tornar o “sertão” em lugar “moderno” pela materialidade de obras com apelo estético contrário ao comum destes estados e por questões culturais instituídas como novas práticas tradicionais foi indicada em um momento em que a Marcha Para Oeste estava em evidência para os Interventores estaduais e para o próprio Governo Federal.

174 Ibidem, p. 37. 175 BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. ______. Obras Escolhidas - Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 226. 176 Ibidem, p. 229. 177 MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. Walter Benjamin: crítica à idéia do progresso, história e tempo messiânico. III Seminario Internacional Politicas de la Memoria. Buenos Aires, s/d, p. 5.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

10 7

A concretização desses programas progressistas com a criação da Fundação Brasil Central e de obras que simbolizassem um expressivo apelo propagandístico modernizador para a região e, principalmente o intenso investimento na publicidade dessas realizações através dos jornais, revistas, livretos e cinejornais para a população não só de Mato Grosso e Goiás, mas também de várias partes do país, tornam-se, desta forma, os principais indicadores dessa transformação almejada pelas Interventorias. Em entrevista ao jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, o editor-gerente do jornal O Estado de Mato Grosso tece vários elogios ao trabalho do Interventor Júlio Müller em relação ao desenvolvimento de obras no estado: [...] Prosseguindo a sua entrevista, disse o Sr. Martiniano que o empréstimo feito pelo Sr. Julio Müller, ao Banco do Brasil, permitiu ao Estado, libertando-se de velhos e onerosos encargos, conseguir guiar um regime de saldos que lhe tem permitido a execução de importantes obras públicas que fazem parte de um conjunto de realizações jámais verificado ao Estado. Depois de se referir às modernas edificações que se levantam na Capital, dando-lhe outra fisionomia, diz o entrevistado da “Gazeta de Noticias”: [...] - o Sr. Getulio Vargas por intermédio dos dois embaixadores de Mato Grosso junto ao governo Central, Srs. Capitão Filinto Müller e General Eurico Dutra, tem proporcionado a Mato Grosso um surpreendente ciclo de majestosas realizações de caráter nacional, tais como a ligação ferroviaria com a Bolívia, a ponte sobre o Paraguai, a edificação de novos quarteis, outros edificios federais, aprendizados agricolas, etc.178 No início da construção do Cine-Teatro Cuiabá, O Estado de Mato de Grosso publica uma reportagem com o engenheiro Cássio Veiga de Sá sobre o início das obras. No diálogo com o engenheiro responsável pela obra - contratado da firma Coimbra Bueno -, é notável a questão do apelo estético arquitetônico marcado por ele por meio da modernidade presente na construção do edifício, pelo que é mencionado vários pontos nas condições em que está sendo realizada a obra: [...] tendo em vista todos estes importantes pontos de doutrina da moderna arquitetura, no que diz respeito à construção de cinemas, que se projetou e se está construindo o Cinema de 178 A propósito da administração, Julio Müller concede ao Sr. Gabriel Martiniano de Araujo interessante entrevista à “Gazeta de Notícias”, do Rio. In: O Estado de Mato Grosso, 7 de março de 1940, p. 01.

Cuiabá. Nessas condições, como é fácil prever, teremos uma Casa que, no gênero, nada ficará a dever às mais modernas do país.179

Figura 01 – Cine-Teatro Cuiabá, 1942. In: MÜLLER, Júlio S. Relatório Apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas. Cuiabá, 1941 – 1942, p. 96. O jornal ainda traz a surpresa pelas dimensões vistas no canteiro da obra, na realização do início da construção: Uma viga de 18 metros de vão livre, num edifício, é qualquer coisa de notável, em que a arquitetura realiza prodígios de técnica que assombram os leigos. Está neste caso a viga de concreto e ferro do edifício do Cinema, sobre a qual, completamente suspensos, a uma altura de cerca de 8 metros, se apoiarão os balcões dessa moderna casa de diversões. Eis porque, para inaugurar esse importante detalhe daquela obra, ali compareceu, pessoalmente, o exmo. sr. Dr. Secretário Geral do Estado que, como engenheiro, mais que nós outros, leigos, soube certamente apreciar aquela bela peça, impressionante pela sua extensão pouco comum e cuja solidez se apoia num concreto de dados em que entra como base o calculo.180

179 Uma viga de concreto de 18 metros de vão livre no edifício do Cinema. In: O Estado de Mato Grosso, 10 de março de 1940, p. 01. 180 Idem.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

10 9

Estas obras inauguradas em 1942 simbolizariam o aspecto modernista no panorama cultural181 das capitais centro-oestinas interligando várias categorias para nossas análises. O aspecto arquitetônico está amplamente conectado aos usos destinados destes espaços, elevando assim essas duas características ao aspecto simbólico pelo qual há o apelo político dos Interventores naquele momento. O periódico O Estado de Mato Grosso estava ligado neste período ao Departamento Estadual de Imprensa e Propagada (D.E.I.P.) por suas direções estarem nas mãos da mesma pessoa: Archimedes Pereira Lima182 - que também fora diretor da Fundação Brasil Central, na década de 1950. Dedicou parte de sua trajetória a trabalhar em prol do Estado Novo, entre os anos de 1939 (com a fundação d’O Estado de Mato Grosso) e 1945 com o fim da ditadura de Vargas. O Cine-Teatro Goiânia foi protagonista durante o ano de 1942 de vários eventos oficiais. Antes mesmo de sua inauguração oficial - a primeira vez que foi projetada uma película - já havia ocorrido em suas dependências representações teatrais: o VIII Congresso Brasileiro de Educação 183; as Assembleias Gerais dos Conselhos Nacionais de Geografia e Estatística 184; e as solenidades do Batismo Cultural de Goiânia. Na ocasião de sua inauguração oficial, o Correio Oficial do Estado de Goiás trouxe em nota algumas considerações acerca do edifício recém-construído que traria entretenimento aos cidadãos da nova capital:

181 O Cine-Teatro Cuiabá foi propagandeado no jornal O Estado de Mato Grosso inúmeras vezes como “espaço moderno”. Em 29 de julho de 1943, veicularam um anúncio de filmes no qual a imagem da fachada do Cine-Teatro se completa com o slogan “luxo, elegância, modernismo”. O mesmo acontece com o Cine-Teatro Goiânia, propagandeado pelo jornal Correio Oficial, o qual abordaremos mais adiante. 182 “Formou-se advogado e investiu grande parte de seu talento na área do jornalismo, dirigindo os tradicionais periódicos cuiabanos: O Estado de Mato Grosso (1939) e Diário de Mato Grosso (1976), tendo fundado e dirigido O Correio do Sul, O 9 de Julho, de Campo Grande, Folha do Sul, de Aquidauana. No cenário carioca, foi redator dos jornais Gazeta de Notícias e Diretrizes. Tradutor da Agência Havas (France-Presse) e colaborador do jornal Correio da Manhã, ambos no Rio de Janeiro.” Cadeira 13 Archimedes Pereira Lima. Disponível em: . Acesso em setembro de 2015. 183 Instalado ontem nesta capital o VIII Congresso Brasileiro de Educação. In: Correio Oficial, 20 de junho de 1942, p. 01. 184 Instalam-se hoje nesta capital as Assembléias Gerais dos Conselhos dirigentes do I.B.G.E. In: Correio Oficial, 1º de julho de 1942 p. 01.

“Divino Tormento” é a superprodução da Metro Goldwyn Mayer, com os adamados artistas Nelson Eddy e Jeanette Mac Donald, que será exibida na terça-feira próxima, quando se dará a inauguração do Cine-Teatro Goiânia, obra monumental construída pelo Governo Estadual.185 A inauguração, portanto, ocorreu no dia 14 de julho de 1942 e é debatida por Gilson Borges havendo contradições - de acordo com o autor - sobre a exatidão dessa inauguração: Muitos afirmam que o Teatro Goiânia foi inaugurado no dia 05 de julho de 1942, juntamente com a solenidade do Batismo Cultural de Goiânia, quando o Interventor Federal, Pedro Ludovico Teixeira, fez um discurso onde tentava justificar a criação da nova capital, alegando razões topográficas (montanhas) e sanitárias (falta de água e sistema de tratamento de esgotos) para que a cidade de Goiás deixasse de ser a capital do Estado. [...] O único indício de uma inauguração do local é dado pela atriz Eva Todor, que afirma ter sido o Teatro inaugurado por ocasião da apresentação da peça Colégio Interno, no dia 21 de junho de 1942, antes mesmo do Batismo Cultural de Goiânia, quando uma placa comemorativa teria sido afixada no exterior do Teatro e descerrada pela própria atriz. Quando retornou a Goiânia, muito tempo depois, Eva procurou a placa, mas ressentiu-se de não tê-la encontrado.186 Notamos ainda que a oficialidade do início do uso dos Cine-Teatro Cuiabá e Cine-Teatro Goiânia está, conforme os apontamentos feitos acima, na primeira vez em que um filme foi rodado para uma plateia. No caso do Cine-Teatro Cuiabá, a data da inauguração oficial comemorada até a atualidade é o dia 23 de maio (de 1942), porém, no fim de abril de 1942, já haviam utilizado o espaço para a representação da peça teatral musicada Cala Boca, Etelvina adaptada e dirigida por Zulmira Canavarros. A apresentação destes dados e desta discussão é imprescindível, pois se tornaram referências no que tange ao culto à memória destes edifícios nas cidades-capitais onde foram construídos. Na propaganda feita pelo Correio Oficial sobre a inauguração do Cine-Teatro Goiânia há a exaltação de um espaço, clamando certa atenção para a modernidade presente no edifício e na forma como seria proporcionado o entretenimento:

185 A Inauguração do Cine-Teatro Goiânia. In: Correio Oficial, 12 de julho de 1942, p. 08. 186 BORGES, Gilson Pedro. Teatro Goiânia: história e estórias. Goiânia: Ed. da UCG, 2007, pp. 1718.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

11 1

Possuindo aparelhos cinematográficos moderníssimos, acomodações confortabilíssimas e, antes de tudo, higiênicas, aparelhagem de renovação de ar e tudo o mais que se possa exigir ao rigor da técnica cinematográfica, o Cine-Teatro Goiânia será mais um formidável ponto de diversões que a nova Capital oferece aos seus habitantes. Assim, pois, com a inauguração desse cinema, Goiânia se engalanará mais uma vez, o que será um acontecimento de intensa alegria para todos. Ao que fomos informados, a programação de filmes a serem exibidos obedecerá a esmerada seleção, a-fim-de satisfazer-se plenamente ao público em geral.187

Figura 02 – Cine-Teatro Goiânia, 1942. Fotografia de Hélio de Oliveira. In: UNES, Wolney. Identidade art déco de Goiânia. São Paulo: Ateliê Editorial; Goiânia: Ed. da UCG, 2001, p. 91. Sendo assim, Eric Hobsbawm nos serve de importante referencial para notarmos que essas contradições presentes na cultura daquele período de mudanças não era uma tentativa de negar o passado, mas sim de inventar novas tradições; dando outra “roupagem” ou não a práticas já existentes e ainda instituindo novas práticas culturais colocando-as como tradições, havendo assim certa conexão entre práticas socioculturais de vários lugares do país, como, por exemplo, o uso do cinema. Essa

187 A Inauguração do Cine-Teatro Goiânia. op. cit., loc. cit.

invenção de tradições pode provir tanto do Estado quanto da população se constituindo então em duas extremidades na produção de tradições. Importa-nos refletir todo o caminho trilhado de uma ponta à outra as colocando também no campo de estudos que estamos pesquisando. Para Hobsbawm, a “invenção de tradições” não é apenas realizada pelo poder político do momento, mas também por maneiras não-oficiais. Cabe a nós responder que no contexto em que se dão os acontecimentos da pesquisa ocorre uma produção em várias instâncias do que chamamos aqui de “invenção de tradições”. Atentando-nos para o que Eric Hobsbawm indica sobre essa produção, podemos destacar nas capitais centro-oestinas, nos anos 1940, a criação do grupo teatral “Pedro Ludovico Teixeira” em Goiânia; o grêmio literário “Júlia Lopes de Almeida”, que era ligado ao Clube Feminino - ambos em Cuiabá -, além dos cineteatros. Assim, nas palavras do autor essa tradição inventada pode sair do Estado ou de organizações sociais sendo que ela: Foi realizada oficialmente e não-oficialmente, sendo as invenções oficiais que podem ser chamadas de "políticas" - surgidas acima de tudo em estados ou movimentos sociais e políticos organizados, ou criadas por eles; e as nãooficiais - que podem ser denominadas "sociais" - principalmente geradas por grupos sociais sem organização formal, ou por aqueles cujos objetivos não eram específica ou conscientemente políticos, como os clubes e grêmios, tivessem eles ou não também funções políticas.188 Se havia a pretensão de se criar uma proposta de “refinamento” da cultura local, pela construção dos cineteatros em Cuiabá e Goiânia e seus usos não tivemos ainda dados válidos presente nas nossas fontes que pudessem responder a tal objetivo de investigação. Notamos que há preocupação dos Interventores em trazer práticas culturais e artísticas para Cuiabá e Goiânia tendo como templo os cineteatros, pelo viés do cinema, teatro, recitais, saraus e até eventos, como já citamos no caso do Cine-Teatro Goiânia, criando um sentido de tradição como discutido acima tendo como referência Hobsbawm. Estes eventos culturais indicam, ao nosso pensar, maior necessidade de estabelecer novas práticas e mudanças do que atender a uma proposta de refinamento da cultura. Sendo que para tal afirmação de refinamento dos hábitos culturais 188 HOBSBAWM, Eric. A produção em massa de tradições: Europa, 1870 a 1914. In: ______; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 271.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

11 3

teríamos como oposição os modos considerados arcaicos de cuiabanos e - no caso goianiense – o abandono das “velhas” tradições da cidade de Goiás, nos anos 1940, imperando hábitos considerados bárbaros e grosseiros. Se por um lado, hábitos cotidianos ligados ao meio rural pudessem ser vistos como reflexo do atraso dessas cidades, por outro podem revelar certo “grau” do desejo de urbanização por parte de grupos ligados ao poder governamental local, constituindo-se em uma elite intelectual em Cuiabá e Goiânia. Em uma coluna no jornal cuiabano A Cruz189, Firmo Rodrigues faz a seguinte crítica: “Que dificuldade tem encontrado a municipalidade para reprimir o abuso de soltarem nas ruas vacas e bezerros! É preciso que mudemos de hábito”. A crítica de Firmo Rodrigues reforça o apelo modernizador, pelos hábitos cotidianos neste caso, que Cuiabá precisaria passar para se adequar a condutas urbanas tendo como modelo a capital nacional. Firmo Rodrigues fazia parte de um seleto grupo de intelectuais, artistas e produtores culturais mato-grossenses atuando na primeira metade do século XX. Era pai de Dunga Rodrigues – figura igualmente creditada certa importância na História de Mato Grosso. Firmo José Rodrigues é lembrado, sobretudo, por suas ligações políticas “[...] uma vez que esse sujeito passou a fazer parte da elite política e intelectual de Cuiabá na primeira metade do século XX, ao exercer diversos cargos públicos, participar da política e escrever em jornais e revistas locais”190. O jornal A Cruz contrastava com outro periódico cristão que circulava no mesmo período, chamado A Pena Evangélica (editado pelos protestantes de Cuiabá). Destarte, o jornal A Cruz tinha a clara mensagem de combater ideais liberais propostos principalmente pela Igreja Presbiteriana, a qual editava, após a primeira metade dos anos 1920, A Pena Evangélica. Destinado a elite mato-grossense, seu público constituía-se dos integrantes da comunidade católica e, indiretamente, os que eram hostis a Igreja. Criado em maio de 1910, como órgão da Liga Social Católica Brasileira de Mato Grosso, com publicação quinzenal, tiragem de 1000 exemplares e sua redação instalada no Seminário Episcopal, teve, claramente, a missão de combater as ideias liberais, anarquistas e ou aliadas a reforma e a maçonaria. Estas

189 RODRIGUES, Firmo. Cidade Verde. In: A Cruz, 28 de janeiro de 1940, pp. 02-03.

190 XAVIER, Ana Paula da Silva. Processos Educativos da Infância em Cuiabá (1870-1890). Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012, p. 72.

representadas, no contexto em estudo, pelos maçons e livres pensadores, entre os quais se incluíam alguns professores e diretores de escolas.191

A ligação de Firmo Rodrigues em Cuiabá a produtores culturais se dá, principalmente, pela produção de peças teatrais com Zulmira Canavarros. Não há uma data precisa de quando a maioria desses trabalhos192 foram escritos e/ou adaptados, restando apenas o grande período em que foram produzidos (anos 1930 e anos 1940). Neste contexto apresentado ao longo do texto, calcado no ideal de progresso, estão os templos de cultura193 conectados com o processo de urbanização que se dá por ambos os cineteatros serem frutos dos projetos das mudanças urbanas ocorridas nestas cidades-capitais. No caso do Cine-Teatro Cuiabá, sua construção faz parte de um conjunto de obras erigidas pelo Interventor Júlio Müller, com a criação de um novo espaço urbano ao lado do centro antigo da cidade. Muitas dessas obras 194 localizam-se na avenida Getúlio Vargas que em 1940 (ano em que a crítica de Firmo Rodrigues foi feita no jornal A Cruz) fora loteada e construída. O Cine-Teatro Goiânia é marcado neste processo de urbanização e construção de uma nova arquitetura para Goiás com a data de inauguração oficial da capital goiana, por ter sido nele a cerimônia chamada de “Batismo Cultural” coordenada pelo Interventor Pedro Ludovico Teixeira. Essas mudanças, retificações, construções e invenções de novos espaços urbanos e edifícios modernos e referenciados com o ideal de conectar o povo centrooestino à comunidade nacional, seguindo o conceito de Benedict Anderson sobre as comunidades imaginadas195, tornam-se transfigurados em símbolos do progresso local 191 CARDOSO, Lilian A. Maciel. O jornal A Cruz: uma visão da educação no período de 1910 a 1920. In: Revista Educação Pública, Cuiabá, v. 5, 8, jul/dez. 1996, p. 102. 192 Estes trabalhos estão no acervo da Casa Barão de Melgaço, em Cuiabá. Estão organizados no documento Universo de Interesse elaborado pela prof.ª Dr.ª Elizabeth Madureira Siqueira, podendo ser consultado através do link: . Acesso em outubro de 2015.

193 KRACAUER, Siegfried. Culto da Distração. IN: ______. O Ornamento da Massa: ensaios. Tradução de Carlos Eduardo J. Machado e Marlene Holzhause. São Paulo: Cosac Naify, 2009. 194 Como exemplo, podemos citar as obras do Grande Hotel; Palácio da Justiça e Secretaria Geral do Estado, inauguradas entre 1940 a 1942.

195 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

11 5

e a cultura tem um objetivo fundamental neste processo ao abarcar formas materiais, hábitos e formas imateriais.

Seria assim tão evidente?: o entre tempos do sagrado e do profano no Ensino de História no Brasil Imperial. Augusto Martins Ramires196 Graduando - UFOP

196 Graduando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Mariana, Minas Gerais. E-mail: [email protected]

Resumo: O presente texto tem por objetivo descrever aspectos que embasam as articulações temporais desenvolvidas no âmbito do ensino de história no Brasil Imperial, no que diz respeito às amálgamas da história sagrada e da história profana. Destarte, parte-se de uma história do ensino de história atenta as articulações entre historiografia e ensino da história e uma história da historiografia preocupada com as configurações da historicidade. O colégio Dom Pedro II evidencia-se como âmbito institucional explorado, delineando-se as relações deste com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Obras de José Inácio de Abreu e Lima, “Compendio da História do Brasil” (1843); Justiniano José da Rocha, “Compendio” (1860) e Joaquim Manoel de Macedo “Lições de história do Brasil” (1861), nos servem de fontes para a análise em questão. Palavras-chave: Historicidade; História da Historiografia, Ensino de História.

I Na Europa entre os anos de 1750 e 1850, o cenário em geral adquire paulatinamente contornos nunca antes vistos. A revolução francesa singulariza os plurais. A revolução industrial encurta as distâncias e dinamiza a produção. O próprio tempo, como uma música, é metrificado. Sua sinfonia perpassa os ouvidos dos homens, levando-os a níveis catárticos impensáveis. Harmonias que transcendem o simples arranjo usual.197 O século XIX em seu rotulo de século da história, possibilita novas disposições de relação entre presente e passado, incluindo um tímido âmbito, o futuro. Todo um clima de reflexão sobre o próprio pensamento configura uma nova disposição histórica, a saber, o conceito moderno de história.198 A discussão sobre a problemática do século XIX, em seu aspecto intelectual, centra-se no âmbito europeu, abrangendo autores e correntes de pensamentos que 197KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006; PALTI, Elias. Koselleck y la idea de Sattelzeit. Un debate sobre modernidad y temporalidad. Ayer. História de los conceptos, N. 53, 2004. pp. 63-64. 198FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 8a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002; GUMBRECHT, Hans Ulrich. Cascatas de modernidade in: Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 9-32.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

11 7

influenciaram outros âmbitos intelectuais. Tais ideias produzem ecos que são ouvidos nos mais distantes e variados lugares. Nesse sentido, de forma pertinente elabora-se a questão: em que intensidade e constância a modernidade se insere em contextos específicos, com suas singularidades políticas, econômicas e sociais, nos quais em si, carregam específicas experiências de tempos? No Brasil, desde a independência e suas formulações de nação e construção da nacionalidade, encontramos tais ecos da Modernidade.199 Porém, cabe indagar a hegemonia de tal concepção, além de suas manifestações nos níveis narrativos. Para tanto, a partir da compreensão do conceito moderno de história, abre-se múltiplas possibilidades ao historiador sistematizar a formação e difusão dos aspectos temporais e de historicidade que embasam as representações e articulações do passado. Reinhardt Koselleck em sua tese sobre a semântica dos tempos históricos, destaca que a constituição do tempo histórico se baseia na configuração que a sociedade em questão elabora sobre sua temporalidade. Para tanto, o autor utiliza-se de duas categorias que expressam o tempo, a saber: “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”. Tais categorias permitem uma reflexão (meta histórica) sobre o tempo. François Hartog apropriando-se das considerações de Koselleck, formula a categoria ou instrumento heurístico à análise histórica: “Regimes de Historicidade”. Regime de Historicidade permite pensar e conceituar o tempo. Nesse sentido, a caracterização de cada relação temporal entre esses dois universais antropológicos (espaço de experiência e horizonte de expectativa) configuram uma ordem do tempo, pensável e representável. O autor, na formulação da noção, apresenta-nos que este possui relações intrínsecas com as maneiras de pensamento sobre o passado.200 Hartog ainda ressalta que um Regime de Historicidade não é puro em seu estado, e sim, possui constâncias de marcos dominantes, não obrigatoriamente homogêneos e hegemônicos. Porem, cabe destacar em qual medida as relações de 199ARAUJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo. Conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Editora Hucitec, 2008; ARAUJO, Valdei Lopes de. Cairu e a emergência da consciência historiográfica no Brasil (1808-1830). In: Estudos de historiografia brasileira. (Org). Lucia Maria Bastos Pereira das Neves… [et al.]. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011 (a).

200HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiência do tempo. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2013; HARTOG, F. O tempo desorientado. Tempo e história. “Como escrever a História da França?”. Anos 90, Porto Alegre, n.7, julho de 1997, pp.7-28.

Regimes de Historicidades são pertinentes à reflexão? Ou seja, além do plano do “tipo-ideal”, é possível analisar as estruturas de historicidade que emergem dos “mundos da vida”? No Brasil, com a fundação do IHGB em 1838 e a institucionalização de uma operação historiográfica específica, sob a égide do Estado e da indústria, delineia-se as expressões temporais e o arcabouço de um projeto de história nacional, inserindo o Brasil nesse movimento internacional do progresso: a “simultaneidade da nãosimultaneidade”. Em seus primeiros momento, o IHGB procurou definir as bases para a construção de uma história nacional, atendendo a algumas perspectivas políticas e ideológicas especificas. Nesse sentido, suas iniciativas são pautadas no recolhimento e sistematização de fontes, assim como a discussão de um programa que estruturasse as bases de uma história nacional. Uma especificidade de escrita da história, com suas articulações temática e temporais em âmbitos singulares.201 Manoel Salgado Guimarães, em seu estudo de 1988, sobre o IHGB e o projeto de uma história nacional, analisa a articulação das configurações da escrita da história no Brasil. Segundo Guimarães, as articulações entre passado, presente e futuro se estabelecem pautando-se nas concepções modernas de história, ou seja, uma matriz “iluminista” e “romântica”, servindo-se dos pressupostos do Instituto Histórico de Paris, no qual os homens de letras brasileiros seriam os receptores e principais continuadores do “esclarecimento”. Porém, nas entrelinhas de seu artigo, destaca-se a permanência de uma outra concepção de história, vinculada ao antigo “topos” da “história magistra Vitae”, no qual as características de exemplaridade são dominantes, como os relatos norteadores de uma moral, capaz de ensinar pela história. Trata-se da permanência ou fragmentação de uma ordem do tempo? Guimarães não nos fornece a resposta. Faceta marcante da historiografia brasileira, o adágio é objeto de discussões das formulações de uma história nacional, no âmbito dos procedimentos e recursos da escrita da história. O mesmo prefigura-se como ponto inicial em algumas das discussões contemporâneas sobre a história da historiografia, pois suas implicações explicitam as configurações de historicidade.202 201GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. In: Estudos Históricos: caminhos da historiografia. Rio de Janeiro, n.1, 1988, p. 5-27.

202OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2009. (tese de doutorado).

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

11 9

Temístocle Cezar, ao abordar os discursos inaugurais do IHGB, discorre sobre a normatização de um novo paradigma historiográfico, observando os princípios de “autoridades” e “oratória” que permeia, todavia, a escrita da história no século XIX. Propõe, nesse sentido, uma chave de leitura que destaque as aporias entre os antigos e modernos.203 Destarte, Cezar argumenta que o “topos” antigo se faz como que organizador das investigações do IHGB, consolidando os nives discursivo e epistemológicos. Sua especificidade é o contexto, no qual sua dissolução é pouco perceptível em prol da ideologia do progresso. O autor parece sugerir que exista duas configurações de tempos histórico em simultaneidade: dois Regimes de Historicidade. Mas ressalva: “que não significa que ele seja hegemônico em sua forma ideal-tipo, mas surge aqui e acolá matizado, modificado”. (CEZAR, 2011:97) Em contra partida, Valdei Lopes de Araujo, argumenta que entender as permanências do “topos” pela resistência à modernização, não é suficiente. E que o “topos” antigo teria, assim, função estrutural no projeto moderno, desempenhando objetivos universais na construção da pátria. Segundo Araujo, a função estrutural acontece por meio da fragmentação do “topos”, no qual se desarticula uma experiência histórica de mais de dois mil anos possibilitando uma reorganização significativa em uma outra configuração temporal. Sua permanência não se reconstitui como um outro Regime de Historicidade (cronótopo), em oposição ao Regime de Historicidade moderno.204 Dentre as perspectivas elucidadas, cabe indagar as manifestações de experiências de tempos e suas implicações na configuração e estruturação da historicidade nos manuais escolares, no âmbito do colégio Dom Pedro II. A experiência didática, em sua relação com a historiografia institucional, oferece-se como oportunidade singular de análise do tempo histórico.

203CEZAR, Temistocles. Lições sobre a escrita da história: as primeiras escolhas do IHGB. In: Estudos de historiografia brasileira. (Org.) Lucia Maria Bastos Pereira das Neves… [et al.]. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. 204ARAUJO, Valdei Lopes de. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX brasileiro. In: Aprender com a história?: o passado e o futuro de uma questão. (Org.) Fernando Nicolazzi, Helena Miranda Mollo, Valdei Lopes de Araujo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. (b).

II Na constituição disciplinar do Ensino de história no Brasil evidencia-se um consenso sobre a datação de seu momento fundacional: 1837, o primeiro colégio público brasileiro, o Colégio Dom Pedro II. Porém, não se pode eximir os discursos e propostas para a elaboração, em nives institucionais, de planos programáticos para o ensino de história antes de tal marco cronológico. Segundo Maria Schmidt, o Colégio Dom Pedro II aparece como determinante para a inserção da história nos currículos de ensino, inaugurando um período que a autora denomina de “construção do código disciplinar de história” no Brasil. A construção da disciplina de história configura-se como que influenciada pelas concepções Europeias da história, no que concerne aos seus manuais de ensino. Destaca-se a presença dos manuais franceses utilizados e traduzidos por professores no colégio imperial.205 A efetivação das diretrizes de ensino são pautadas nos movimentos de construção e consolidação do Estado Nacional - (formação da identidade nacional). Inseridos no bojo da elite intelectual do Império, os agentes de construção do ensino de história partilhavam alguns espaços em comum, ora como homens de letras na imprensa, ora espaços institucionais, como o IHGB e o parlamento. “Manter a ordem e difundir a civilização”, eis o mote de construto.206 No entanto, como afirma Nadai e Bittencourt, as referências de ensino de história não se constituem exclusivamente dos modelos referenciais franceses. Os confrontos narrativos sobre o ensino de história iniciam-se na década de 20 do século XIX. Disputas pelo poder e efetivações de projetos delineiam o cenário de disputa. No seio dos debates, duas concepções se destacam, ora uma história laica, pautada nos marcos cronológicos do Estado, ora uma história sagrada, arauto dos pressupostos morais e religiosos. No confronto entre estas duas concepções de história, as relações e mesclas são evidente. Convém ainda, elucidar que, anterior à constituição disciplinar do ensino de história, a história sagrada se faz hegemônica na cultura 205SCHMIDT, M. A. M. S. História do ensino de história no Brasil: uma proposta de periodização. Revista História da Educação – RHE. Porto Alegre, v.16, n. 34. Maio/ago. 2012. p. 73-91. 206DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto federativo: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005; MATTOS, S. R. Lições de Macedo: uma pedagogia do súdito-cidadão no Império do Brasil. In: MATTOS, Ilmas Rohloff de. Histórias do ensino de história no Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998, p. 31-44.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

12 1

histórica, difundida pelo âmbito oral e institucional: a igreja. Estabelecia-se assim, os marcos temporais e os preceitos morais na sociedade. Com a institucionalização disciplinar, a história profana disponibiliza uma nova concepção temporal: a civilização e o progresso.207 Segundo Circe Bittencourt, a história sagrada possui fins explícitos moralizantes. Seu tempo histórico é pautado por três aspectos: o tempo cíclico, o cronológico e o escatológico. O tempo cíclico se refere ao tempo natural, elaborado pelas estações e colheitas; o cronológico como medida físico externo; e o escatológico, pela anunciação dos fins dos tempos. O tempo na história sagrada se pauta por uma linearidade que vai desde a criação divina à consumação do mundo, comunicando-se à história humana. Seu sentido se observa pela revelação do Corpo “mistico” de Cristo e na espera escatológica.208 A história profana, por sua vez, estabelece os parâmetros da modernidade e os preceitos da civilização. Corte entre o passado e o presente. Definições de transformações temporais no sentido do progresso. “Progresso civilizatório”. O tempo se abria às possibilidades futuras, no arranjo totalizador no qual o presente e o futuro encontravam suas origens no passado.

III Na produção didática de história do Império, entre os anos de 1839 e 1870, os autores, em sua grande maioria, então vinculados ao IHGB e ao círculo intelectual político, evidenciando-se redes de sociabilidade que integram concepções e correntes intelectuais. Nas análises a seguir, será privilegiado os prefácios e introduções, assim como alguns capítulos e considerações, justamente por se entender estes espaços como que privilegiados das exposições teóricas e metodológicas, esboços

207BITTENCOURT, Circe. Os confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à história profana. Revista brasileira de História, São Paulo, vol. 13, no. 25/26, set. 1992/ago. 1993, p. 193-221.

208MARROU, H. I. A Teologia da História. In: História e Historicidade. (Org.) C. Higounet; C. Mazauric; G. Palmade; H. G. Gadamer; H. I. Marrou; P. Veyne; P. Villar; R. Mandrou. Trad. Ana Isabel Buescu. Lisboa: Gradiva, 1988.

característicos do século XIX. Serão utilizados três autores: José I. de Abreu e Lima (1843); Justiniano da Rocha (1960) e Joaquim Manoel de Macedo (1961).209 José Inácio de Abreu e Lima, ao escrever seu “Compendio da História do Brasil” em 1843, destaca em seu prefácio o fio condutor de seu trabalho: a filosofia da história de Hegel, no qual o desenvolvimento do “espírito” evidencia-se em sua manifestação progressiva e na autorreflexão sobre si mesmo. Usando dos exemplos da literatura, cultura e ciência, o autor sublinha as concepções de civilização e singularidade

nacional,

sugerindo

um

“hegelianismo

historicista”.

Outro

assinalamento importante é a figura do grande homem ou “sujeito extraordinário”, postulando a aceleração da finalidade do “espírito” em sua efetivação. O conceito de “regeneração” é o mote da configuração temporal.210 Justiniano José da Rocha, em seu “Compendio” de 1860, empreende uma crítica aos manuais franceses de história por suas especificidades e exaltações nacionais, propondo a inserção do Brasil como um dos protagonistas no movimento da civilização moderna, destacando as condições de “tríplice vida”: passado, presente e futuro no movimento da humanidade. Em meio as críticas das concepções de fonte e testemunho, sublinha o afastamento da humanidade à verdade eterna, pelas condições das paixões dos homens. Tal afastamento da verdade, configura o plano factual das histórias profanas. O início de sua narrativa é marcado pela visão teológica dos princípios divinos: da criação de Adão ao estado de organização social. Um tempo moderno com pontos sintomáticos da história sagrada. A história universal se faz como que um plano secundário no processo do verdadeiro sentido revelado por Deus.211

209O critério de seleção dos autores analisados se baseia na disponibilidade dos manuais em questão e a efetiva reflexão sobre o âmbito de sua própria escrita. 210ABREU e LIMA, José Inácio de. Compendio da História do Brasil. V.1. Rio de Janeiro: Eduardo e Benrique Laeiuert, 1843. Analise feita a partir do Prefácio e Introdução da Obra. José de Abreu e Lima foi General do exército e Historiador membro do IHGB (1794-1869). Sua narrativa inicia-se com a expansão marítima de Portugal e o descobrimento do Brasil até o período do príncipe regente D. Pedro I. Sobre “regeneração” ver: (Araujo, 2008.) Op. cit. 211Da ROCHA, Justiniano josé. Compendio de História Universal. V.1. Rio de Janeiro: regenerador, 1860. Analise feita a partir do seu prefácio; considerações preliminares e do cap. 1: história dos tempos primitivos. Justiniano da Rocha (1812-1862) foi jornalista, escritor e professor no colégio Dom Pedro II. Em seu “Compendio” Justiniano elabora uma narrativa em inicia-se na criação divina até a Roma cristã. Cabe destacar a articulação narrativa que Justiniano dispõe sobre o paradoxo do “tempo profundo” e tempo divino, argumentando em prol deste último: o tempo bíblico.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

12 3

Joaquim Manoel de Macedo em suas obras “Lições de história do Brasil” de 1861, destaca o caráter pedagógico e suas especificidades metodológicas para estes fins. Consta entre suas preocupações a evidenciação de preceitos de “transcendentes explicações filosóficas”, simplificada para os usos do ensino. Um meio termo entre uma história puramente factual e outra filosófica. Sua filiação deixa clara a sua posição quanto ao modelo de história: Varnhagen e sua “História Geral do Brasil”. Através de explicações e quadros sinópticos, busca-se o estabelecimento da compreensão dos conteúdos a despeito da memorização. Conceito de progresso e civilização embasam sua narrativa, assim como o de “regeneração”. A determinação material progressista é latente em seu relato. O autor, contudo, lança-se aos usos de hipóteses e especulações para determinados fatos históricos, citando os pressupostos hegelianos (grande homem). 212 Considerações finais: Valdei Lopes de Araujo destaca que, na historiografia brasileira, não existe uma grande defasagem conceitual dos intelectuais luso-brasileiros e europeus. E que a experiência moderna do tempo se abre de forma definitiva nas décadas de 1820 e 1830, gerando uma instabilidade em determinados âmbitos conceituais. O teor moralizante que constituía a essência de concepção do antigo Regime de Historicidade é repensado, abrindo-se novas possibilidades de articulações temporais. Nesse sentido, seguindo com Araujo, a semântica do adágio “história Magistra Vitae” assume outras características, outras formas de se aprender com a história.213 Segundo o autor:

212MACEDO, J. M. Lições de história para uso dos alunos do imperial colégio de Pedro Segundo. Rio de Janeiro: TYP. IMPARCIAL, 1861. Analise feita a partir de seu prefácio; lição 1: considerações preliminares e lição 2: descobrimento do Brasil. Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) foi um médico, escrito e professor do Colégio Dom Pedro II. Sócio fundador e secretario do IHGB. Sua narrativa inicia-se nos descobrimento do Brasil e a organização do Brasil colonia, abrangendo quase um século. 213ARAUJO, Valdei, Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX. Op. cit. A proposta de Valdei Araujo é entender a fragmentação do “topos”, para tanto, o autor problematiza nove pontos sistematizados dos novos usos do adágio. Indicamos apenas sua característica fragmentaria e de estruturação em um novo Regime de Historicidade.

“[…] De outro lado, uma definição lata, em que a história magistra vitae é toda aquela que reivindica ensinar e moralizar, mesmo que não necessariamente pelo exemplo e possibilidade de repetição. É essa segunda definição que tem aparecido mais frequentemente na bibliografia especializada, fazendo com que a categoria seja esvaziada de historicidade, já que o que a diferencia de outras formas de historiografia não é sua pretensão de aprender com a história, nem mesmo a de moralizar, mas um tipo específico de aprendizado.” (ARAUJO, 2011b:137-138)

Nos três autores sucintamente analisados, destaca-se uma forte presença das concepções modernas de história, com suas articulações temporais voltadas ao progresso. O termo “Civilização” emerge como categoria central dos preceitos modernos. Mesmo os aspectos sagrados da narrativa de Justiniano da Rocha, se articulam a uma visão totalizadora e progressista, realizando uma junção entre os preceitos divino e o tempo moderno. A moral e sua exemplaridade assumem outras conotações nas narrativas, uma formação do “súdito-cidadão”, Objetivando “manter a ordem e difundir a civilização”.214 Portanto, como nos destaca Virgínia Buarque ao descrever as especificidades da “apologética católica” e sua inserção nos tempos modernos a partir de Chateaubriand, no início do século XIX, a ideia de progresso é incorporada à moralidade metafísica e à ação da providência, abrindo-se às perspectivas futuras em um tempo especificamente

histórico.215 Incorporação pela igreja das noções de

liberdade e experiência, ressignificadas por um viés teológico. Nesse sentido, os manuais didáticos de história sagrada se inserem em uma perspectiva que engloba as relações temporais da modernidade. Inseridos em um Regime de Historicidade moderno, as articulações temporais presentes nos manuais didáticos, em suas esferas sagradas e profanas, professam uma mesma sinfonia. A ruptura entre passado e presente, aceleramento temporal e as concepções de progresso e civilização, regem a música da historicidade moderna. ***

214MATTOS, S. R. Lições de Macedo: uma pedagogia do súdito-cidadão no Império do Brasil. Op. Cit. 215BUARQUE, V. A. C. Uma história moral, apologética e… moderna? A escrita católica do século XVIII ao início do século XIX. História da Historiografia. Ouro Preto, n.6, março/2011. pp.142-157.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

12 5

“Dizer a evidencia da história não será, por isso mesmo, suscitar uma dúvida, reservar espaços para um ponto de interrogação: será assim tão evidente?”216 Longe de encaminhar o debate para uma solução ou chaves interpretativas dicotômicas, nossa intenção é a de suscitar dúvidas. Afirmar uma concepção moderna plena é negligenciar as diversas experiências de tempo constituintes da pluralidade dos mundos da vida, com suas próprias experiências. Questionar a homogeneidade de tais categorias interpretativas que, de certa forma, balizam as interpretações de nosso presente, se faz incontornável para o melhor entendimentos destas realidades. Seja ele “presentismo” ou “presente amplo”. Trata-se de um questionamento sobre os usos frequentes (desgastantes?) de tais categorias, principalmente no que concerne à análise da complexidade de relações que se inserem no Ensino de História hoje.

REPRESENTAÇÕES DA MEMÓRIA EM A MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS, DE VALTER HUGO MÃE

216 HARTOG, F. Evidencia da história: o que os historiadores vêem. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2013, p.11.

Beatriz Sodré Ribeiro - Mestrado – FCL UNESP Assis – CNPq217 RESUMO: No contexto da pós-modernidade, a fragmentação da identidade dá ao indivíduo uma sensação de liberdade dentro de um sistema do qual ele só participa na condição de engrenagem. Quando excluído deste sistema, tudo que lhe resta é a memória do que passou. Com base nesse princípio, esse trabalho analisa as várias engrenagens narrativas, que compõem o romance A máquina de fazer espanhóis (2010), de Valter Hugo Mãe, e mostra heróis em conflito entre a memória e o esquecimento, buscando entender os mecanismos de uma sociedade que, se por um lado almeja inserir-se no contexto da unificação européia, por outro descarta aqueles que já não acompanham o sistema produtivo. Pensando no presente como sendo o status da memória e no romance memorialístico como um modo de revisar a história, o objetivo deste trabalho é analisar as representações da memória presentes no romance de Hugo Mãe, sob a perspectiva diferentes autores. Palavras-Chave: memória; identidade; romance; pós-modernidade I. Introdução A memória representa a base do conhecimento e por meio dela atribuímos significados ao mundo que nos cerca, acumulando experiências às quais recorreremos frequentemente ao longo de nossas vidas. Nesta análise pretende-se demonstrar algumas das formas como a memória pode ser representada no plano da ficção, como esforço contra o tempo que ameaça as engrenagens do próprio ser. Levando em conta o interesse cada vez maior em relação aos estudos da memória, nota-se um crescente número de publicações de obras de “autoficção”, ficções nas quais o autor tem liberdade de, como afirma Dusilek, “criar e relatar, com a vantagem de que o leitor não saberá o que é mais ou menos imaginativo ou vivido.” Na obra intitulada A máquina de Fazer espanhóis, as representações da memória são utilizada como recurso estilístico para que António Jorge Silva, o narrador que que rememora, nos conduza pelos corredores do lar melhor idade. Local no qual nos deparamos com histórias de personagens anônimos e ilustres, que entre as paredes brancas do lar, revisitam suas memórias.

217 Sob a orientação do Prof. Dr. Marcio Roberto Pereira

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

12 7

Entre seus traumas e ironias da vida, este Silva contempla pela janela as crianças brincando na praça, entre promessas de uma vida ideal, mas sabe que no andar de cima, as janelas dão vista para o cemitério, que os para lá levados não terão outro destino senão as campas nas quais serão enterrados para sempre as memórias dos que se forem. o cemitério é o lugar de uma incómoda vida. Acusa uma vida limiar do perceptível que acontece aos olhos de quem se habitua ao movimento quase nenhum. O gasto do lugar morto de cada pessoa, o desbotado das fotografias ao sol que já não mostram cor e afundam os rostos no papel lentamente como a irem-se embora. há uma manifestação mínima que é como a comunicação possível com quem já não se comunica, com quem já não existe mais deixa uma pobre memória ali materializada do que foi. e apenas mais um aspecto tolo do que ali se pode perceber, porque a verdade do que se passa é que no inerte subsolo o que acontece só se compara com o apocalipse de todos os sentidos até a cessação da mais ínfima graça de se ter estado vivo. (MÃE, 2011, p. 101) A exemplo do fragmento citado, a obra chama a atenção para recorrentes traços metaficcionais, sobre os quais edifica-se o papel da literatura na propagação da memória como alternativa aos tendenciosos esquemas explicativos do saber que marcam a história oficial. Mas mais do que isso, coloca a literatura como um elemento de redenção, que nos conduz pela experiência do outro. No que se refere à relação entre história e memória, podemos dizer que estas sempre estiveram ligadas por serem ambas representações do passado, mas ainda que o campo da história busca estabelecer a reconstrução e reconstituição dos fatos, este sempre estarão incompleto e permeados de lacunas. Já a memória apresenta-se como um repertório de dados, é um conjuntos de lembranças que emergem do nosso inconsciente a partir elementos de referência que completam as lacunas a tornam verossímel, aproximando-a da realidade. Ainda que a memória seja dependente dos acontecimentos do passado, é preciso que se considere que seu status temporal é o presente, sendo a cisão entre passado e presente o que a caracteriza.

Um interesse cada vez maior pelo estudo da memória torna-se a grande característica deste século como afirma Huyssen, que vai chamar o fenômeno de “cultura da memória”. um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreendentes dos anos recentes é a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais. Esse fenômeno caracteriza uma volta ao passado que contrasta totalmente com o privilégio dado ao futuro que tanto caracterizou as primeiras décadas da modernidade do século XX (HUYSSEN, 2014, p. 9).

Para algumas das vertentes dos estudos culturais, a memória pode ser construída coletivamente por membros de uma dada cultura, reunindo lembranças objetivadas e institucionalizadas. Tais memórias são armazenadas, repassadas e reincorporadas pelas novas gerações. Walter Benjamin (BENJAMIN, 1994, p. 231) comenta sobre como o historicismo privilegia os vencedores, suprimindo a memória dos excluídos da história oficial, o que explicaria a necessidade humana de narrar experiências. A representação da memória na arte corresponde a uma ferramenta de propagação de registros que nos permite, a partir da experiência do outro, viver as sensações de uma existência que pode nos ter sido negada pela vida/ ou que poderia vir a ser a nossa em outro tempo e espaço. Ao preencher as lacunas deixadas em nossos registros, pratica-se um exercício ficcional no qual imprime-se a imaginação sobre os fatos ocorridos no passado. Essa dialética da memória e da identidade também produz muitos discursos ficcionais, já que a ficção se nutre da vida, e os romances escolhidos mostram bem como seus narradores se utilizam do discurso da reminiscência para marcarem o território de suas identidades, numa reconstrução atualizada de suas trajetórias. (DUSILEK, 2015, p.26) Na esfera da ficção, os procedimentos metaficcionais permitem a reconstrução histórica por meio da narrativa de determinado ponto de vista, a partir do qual se narra de maneira enviesada, podendo contaminar a reflexão histórica para apresentar uma alternativa sobre a história oficial.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

12 9

Entretanto, da mesma forma “os dados históricos facultados são/podem ser manipulados e manipuláveis”, já que o caráter lacunar das fontes e a imanente parcialidade a que o registro histórico pode estar sujeito, implica o desnudamento da forma como se constrói a história oficial. (ARNAUT, 2002, p.318) A obra de Hugo Mãe é composta por diversas engrenagens que remontam o passado de Portugal, permeado por interrupções de fatos que desencadeiam processos digressivos, evocando elementos da cultura portuguesa como o mito de N. Senhora de Fátima, a rivalidade entre os times Porto e Benfica, o fado de Amália Rodrigues e sobretudo a poesia de Fernando Pessoa. A partir destes elementos selecionados e articulados, a narrativa revela os processos de uma memória coletiva fabricada pelo Estado Novo, que impôs valores distorcidos, promoveu a valorização da pobreza, a alienação política e uma falsa sensação de orgulho e segurança, fazendo do cidadão português uma espécie de cúmplice fascista, acostumado a calar-se perante o nacionalismo radical. O narrador António Silva, depois de perder a mulher e aos oitenta e quatro anos, mergulha no passado e relata os fatos vividos no lar e a forma como desencadearam a revisão de seu conjunto de memórias. na manhã seguinte, hoje, abertas as portadas, entra uma luz pacífica pelo quarto e eu estou bem. são as melhoras da morte, com certeza. esse instante piedoso em que nos deixam vir ao de cima, quem sabe para nos entendermos, para nos rematarmos, antes de ser tudo passado. Estive a noite inteira no purgatório da ilusão e acordei para entrar no fugás turbilhão da memória, recuperando tudo, lembrando tudo como se a vida se condenasse em alguns minutos. (MÃE, 2011, p.249)

O tempo preciso da narrativa é a manhã da morte do personagem, que usa suas ultimas forças para registrar seus sentimentos mais íntimos e confessar suas mais intimas angústias autoincriminatórias, justificando seu pensamento orientado por uma doutrina fascista. Mas o exagero na sequência de explicações por parte do narrador indica uma armadilha se pensarmos que a memória humana é constituída a partir de um

sistema neurológico que se assemelha a uma máquina capaz de trazer para o tempo presente, um passado que já não existe. Lembranças podem ser apagadas pelo tempo ou pelo esquecimento e ao operar a máquina da memória, o sujeito pode editar lembranças, selecionando o que deve ser registrado e o que deve ser apagado, de modo que aquilo que se lembra, não é exatamente aquilo que se vive. Nessa perspectiva, a obra revela os mistérios do corpo e da memória, retratados como peças de uma mesma engrenagem capaz de questionar, fabricar e reescrever a história. Uma metáfora da cultura contemporânea obcecada pelo passado, mas que o pensa com perspectivas do presente, sem se dar conta de que este passado poderia ter sido fabricado por uma máquina da memória que articula elementos históricos e escreve a história a seu favor. Ao retomar elementos da cultura portuguesa, revelam-se também as engrenagens de um sistema que manipula a memória coletiva dentro de um contexto arbitrário. As representações da memória individual de António Silva e de outros personagens não só desafiam a história oficial, como também funcionam como uma forma de desautomatização e humanização do indivíduo frente ao sistema mecanicista que o exclui. As vozes individuais que se revezam para ilustrar os mecanismos da memória estão organizadas no fluxo do pensamento de António Silva que apresenta sua versão da história a partir do discurso indireto de personagens secundários que compõem o quadro de preocupações, engendradas pela memória em diversos temas. O grande destaque da obra está nos elementos selecionados pelo autor para ilustrar de que modo história e memória podem ser manipuladas. Hugo Mãe atribui vida e história ao personagem João da Silva Esteves e revela a angústia de um celebre morador da casa que seria apenas mais um Silva de Portugal, se Fernando Pessoa não tivesse se apropriado de sua existência e lhe tirado toda a metafísica num verso que ficou marcado para sempre na memória do povo português. A intertextualidade com a obra de Pessoa é a chave hermenêutica da narrativa que se abre num leque de perspectivas acerca da memória em suas

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

13 1

especificidades. O caso do Esteves sem metafísica é uma das metáforas da máquina da memória presentes na obra. nestes modos, sem pensar demasiado, para que o futuro lhe parecesse possível, joão esteves entrou mais uma vez na tabacaria alves e comprou o jornal a ordens do tio. entrou na tabacaria de sorriso educado, cumprimentou o senhor pessoa que ali estava de breve conversa com o dono do estabelecimento e depois cumprimentou o próprio dono do estabelecimento e pediu o jornal de sempre, com a iluminação de sempre, que era sobretudo uma beleza jovial que advinha de seus traços físicos privilegiados até dignos de um aristocrata qualquer. a genética, pensaria mais tarde joão esteves, tem destas ironias curiosas, põe-nos com a beleza de nobre a passar as fomes dos miseráveis (...) e o joão esteves saiu da tabacaria sem mais nada, inconsciente de que plantara no terreno fértil da criatividade de fernando pessoa um poema eterno. (MÃE, 2011, p. 69) Toda a trajetória do homem sugerida no poema é retomada e desdobrada como relato do relato individual daquele que teria vivido a situação ficcional. Um ponto de vista que rememora a memória de outro alguém. Um terceiro nível de memória, onde o narrador adentra a alma do personagem da ficção. O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica. (O dono da Tabacaria chegou à porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu. Quando sai pela porta da Tabacaria, Esteves entra para a história como aquele que é incapaz de pensar nas coisas todas que envolvem a essência humana. Naquele momento Esteves passa a representar a superficialidade de todos os homens, manipulado por aquele que escreveu a história e que portanto exerce poder sobre sua existência. Embora o protagonista António Silva, cidadão comum, possa se salvar de seu passado inglório por meio da morte e do esquecimento, o mesmo não acontece com o amigo Esteves, que poderia também passar despercebido, se não tivesse ficado marcado na história, pela chancela do poeta.

mas eu tenho muita metafísica, isto de os poetas nos roubarem a alma não é coisa descente, porque aquilo da poesia leva muita mentira. (...) é como lhe digo, senhor silva, conheci, era eu um moço novo longe até de saber que aquele seria o nosso grande poeta. a vida tem dessas coisas, quando não esperamos mete-nos numa grande história. bem, ou num grande poema, que também acaba por contar uma história., ou não é?. (MÃE, 2011, p. 51) No relato de António Silva, ao fim da vida, o desespero de Esteves reside em provar a profundidade de sua alma na iminência da morte. Por outro lado tudo iss pode não passar de invenção do herói António Silva que teme a morte, sem querer confessar suas convicções mais transcendentes. Assim pode também ele ter escolhido justamente o poema em que Álvaro de Campos mergulha nas profundezas da angústia e do pessimismo, para dividir com o poeta sua confusa angústia diante do fim. era exatamente como ler a tabacaria parte dois, ou frequentar a tabacaria e estarmos oitenta anos antes a confraternizar com os génios numa das histórias mais históricas d nação. (...) em mil novecentos e trinta e três saiu a tabacaria na capa da meior revista de literatura portuguesa, dirigida com importância pelo josé régio. eu soube já em trinta e cinco. senti-me afundado na metafísica. (...) o fernando pessoa havia morrido e o poema ficou para sempre a fazer que éramos amigos, com aquele cumprimento no fim, como regozijando por me ver. uma mentira qualquer, ou não?. . (MÃE, 2011, p. 96-7) As representações da memória na prosa poética de Hugo Mãe é uma clara manifestação metamemorialística, na qual se retrata a fragilidade do indivíduo por meio do relato de várias vozes transformadas em “epopeias da vida comum”. Organiza-se um conjunto de lembranças individuais que se originam de preocupações coletivas ou sentimentos universais. A posição duvidosa do narrador, no entanto, deixa algumas dúvidas: Seria Esteves uma vítima da articulação dos fatos na mente do poeta? Estaria Esteves também a operar sua própria máquina da memória, numa tentativa solitária de ser observado e resistir ao apagamento do tempo? Ou seria tudo invenção do senhor António Silva que nos conta a história e que diante da angústia, dá o ônus ao poeta para justificar a sua própria existência inglória? Questões que servem de material para a continuidade deste trabalho. REFERÊNCIAS

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

13 3

ARNAUT, Ana Paula. Post-modernismo no romance português contemporâneo: fios de Ariadne, máscaras de Proteu. Almedina Livraria, 2002. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. DUSILEK, Adriana. Metamemória e Romance.Curitiba: CRV, 2015. HUYSSEN, Andreas. Culturas do Passado-Presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto: Museu de Arte do Rio, 2014. MÃE, Valter Hugo. A máquina de fazer espanhóis. Editora Objectiva, 2010. PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Editora 247 SA, 2003.

GILBERTO FREYRE E A ESCRITA DE SI: O TRABALHO INTELECTUAL EM SUAS OBRAS LITERÁRIAS (1964- 1980) Bruno Cesar Cursini Graduação em História pela FCHS de Franca (UNESP – Campus Franca)

Resumo O objetivo deste trabalho é demonstrar a importância e a viabilidade de uma pesquisa com alguns escritos selecionados dentre os vários que compõem o espaço autobiográfico de Gilberto Freyre. Através de nossa documentação, pretendemos lançar luzes sobre as especificidades de gêneros diferentes da escrita de si (romance de si, diário e autobiografia) e analisar como, através de cada um desses gêneros, em

épocas diferentes, um mesmo autor é capaz de expressar-se acerca de si. Também desejamos investigar o sentido específico do escrever sobre si em Gilberto Freyre, suas motivações e objetivos ao produzir um volume expressivo de material deste tipo numa fase tardia da vida (1964 - 198-). A investigação será pautada pela história dos intelectuais e das ideias políticas, dada a natureza da figura que se examina e das fontes com as quais nos propomos trabalhar. Palavras-chave: Gilberto Freyre; Intelectuais; Autobiografia; Ficção.

Apresentação Dentre as muitas obras tidas como fundadoras de uma nova maneira de se pensar o Brasil, de se "inventar o Brasil" 218 destacamos a de Gilberto Freyre, por conta de seu ineditismo - não apenas ao fazer uma história doméstica do brasileiro, ao valorizar os culturalismos e ao dar uma nova, ainda que, por vezes, controversa visão étnica de nosso povo - mas também por introduzir, graças ao contínuo diálogo com a intelectualidade de sua época, novas bases teóricas com as quais trabalharem-se velhas questões219. Também é interessante analisar outras peculiaridades em Freyre, já que ele mesmo se define como um "outro gênero de bisbilhoteiro das intimidades da natureza

humana"220.

Essa

insinuação

o

aproxima

de

diversos

discursos

historiográficos em voga nas décadas do pós-guerra, e que só fizeram prosperar ao longo do século XX. Freyre é conhecido como um ícone da ruptura com o racionalismo iluminista, instilado entre nós principalmente através das obras de Tobias Barreto, Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna. 221 Freyre se vê como um detetive que dá um escopo artístico às suas investigações. 222 O resultado é o que já conhecemos. De Casa-Grande & Senzala, Fernando Henrique Cardoso223 nos diz: "Não é pesquisa que, repetida nos mesmos moldes por outrem, produza os mesmos resultados, como prescrevem os manuais na versão pobre do cientificismo 218 CARDOSO, Fernando Henrique. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 219 Idem. 220 FREYRE, Gilberto. Dona Sinhá e o Filho Padre: Seminovela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964. 221 COSTA LIMA, Luiz. A Aguarrás do tempo: Estudos sobre narrativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. 222 FREYRE, Gilberto. De menino a homem: De mais de trinta e de quarenta, de sessenta e mais anos. Recife: Global, 2010. 223 CARDOSO, Fernando Henrique. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 86.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

13 5

corrente." E Freyre, conhecido como alguém que "gosta que se enrosca de si mesmo" e que "saboreia elogios como a bombons" diz: [...] não ter Casa-Grande & Senzala, nenhum precedente europeu ou estadounidense sob qualquer aspecto. Seu método, uma nada ortodoxa mistura de métodos aplicados, em conjuntos inter-relacionados, criativamente ao Brasil. Sua linguagem, uma nada ortodoxa repulsa a jargões acadêmicos em qualquer especialidade científico-social. Nenhum purismo científico. Constante expressão literária. E uma também constante adoção de termos infantis, femininos, cotidianos, primitivos, a quebrar o nada seguido exclusivismo da expressão acadêmica. Ao contrário: a expressão acadêmica muito mais superada do que seguida. Nada passivamente adotada. Originalidades que não poderiam deixar de ser reconhecidas. (CARDOSO, 2013, p. 66)224

Nos anos 20 o crítico e jornalista norte-americano H. L. Mencken leu o texto de mestrado de Freyre, Social Life in Brazil in the middle of the 19th century "com a maior simpatia" e o aconselhou a expandi-lo "não em dissertação doutoral, mas em livro. Livro independente de compromissos acadêmicos."225 A independência de tais compromissos, entretanto, não parece indicar em Freyre um descuido com a grande problemática com que se defronta a historiografia: a aporia da verdade. 226 A consequência de todo esse pioneirismo metodológico será uma produção que tem como característica certa "fluidez conceitual"227 "construções hiper-realistas mescladas com perspectivas surrealistas que tornam o real fugidio." 228 Mas Gilberto Freyre não persegue o real. Seus negócios são com o "mais real que o real" de que fala Cocteau229. O que já foi citado nos permite inferir que ele não acreditava que tais negócios pudessem ser resolvidos pela via estritamente acadêmica, e não podemos nos esquecer de que, apesar de suas contribuições de uma vida toda para o estudo do homem em diferentes tempos da história do Brasil, do diálogo incessante com a 224 Idem, Op. Cit., p. 66. 225 Idem, p. 48 226 COSTA LIMA, Luis. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 227 COSTA LIMA, Luiz. A Aguarrás do tempo: Estudos sobre narrativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 216. 228 CARDOSO, Fernando Henrique. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 80. 229 FREYRE, Gilberto. De menino a homem: De mais de trinta e de quarenta, de sessenta e mais anos. Recife: Global, 2010.

antropologia, com a sociologia, psicanálise e até mesmo incursões no ramo da biologia e da medicina, Freyre sempre preferiu o título de escritor a qualquer outro, o que talvez revele pontos importantes da forma como ele mesmo via seu trabalho e os resultados deste. Sua obra tem traços memorialistas e autobiográficos. Casa-Grande & Senzala é um ensaio que traça o perfil de toda uma sociedade: da que constituiu o complexo do açúcar, e cujas instituições, segundo o autor, estender-se-iam a toda a América Lusa230. Mas era também a sociedade da qual Freyre se fez herdeiro. Nas suas próprias palavras: A história social da casa grande é a história íntima de quase todo brasileiro. [...] Nas casas grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social. No estudo da sua história íntima despreza-se tudo o que a história política e militar nos oferece de empolgante por uma quase rotina de vida: mas dentro dessa rotina é que melhor se sente o caráter de um povo. Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o tempo perdido. Outro meio de nos sentirmos nos outros - nos que viveram antes de nós; e em cuja vida se antecipou a nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos. (FREYRE, 1967, p. 56)231

Ao projetar a influência da sociedade aristocrática do açúcar na formação de todo o Brasil e se promover como legatário desta aristocracia, Freyre se representa como um dos grandes entre eleitos. Numa de suas passagens mais exaltadas, o Nordeste transforma-se na Grécia dos trópicos: compara-se a ela no poder criador de valores.232 Um estudo de seu espaço autobiográfico permite não apenas mapear a construção destes valores, sua aderência e crítica a eles, mas também a forma como ele se legitima como pertencente a um segmento de importância capital na gênese e reforma da sociedade brasileira. Em 1964 o escritor pernambucano, com uma trajetória acadêmica consolidada, amplo reconhecimento no Brasil e no exterior e consagrado editorialmente, faz sua primeira incursão oficial no mundo das belas letras: Dona Sinha e o Filho Padre seminoivela. O livro é uma clara tentativa de inserir-se entre pares artistas, o que fica 230 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 2001. 231 FREYRE, Gilberto. Nordeste: Aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967, p. 56. 232 Idem.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

13 7

nítido na dedicatória: "A Otávio de Faria, Jorge Amado, Guimarães Rosa, novelistas esplendidamente completos, cada um a seu modo, a admiração de um incompleto, quando muito, seminovelista."233 Não são meros amigos do autor. São novelistas profissionais e aclamados. Apesar dos frequentes rompantes de modéstia, Freyre deixa transparecer uma visão ambiciosa de seu livro que lhe permitiria, sem mais delongas, figurar entre os grandes ficcionistas. O diálogo com a arte é uma constante na obra de Freyre, do qual encontramos exemplos em diversos trabalhos. Um bastante significativo é Nordeste: logo no prefácio o autor classifica-o como "Impressionista" por tentar "Ver simplesmente. Não se trata de sondagem nem de análise". 234 Mas, adiante, observa: "Como os estudos anteriores, este apesar de mais impressionista, também exigiu pesquisas pelos arquivos regionais e portugueses; esforços de investigação; várias excursões pelas velhas zonas de plantação de cana" 235. Há uma intenção de amalgamar-se o rigor da investigação científica com a flexibilidade de uma obra de arte. Assim também, Dona Sinhá aventura-se a especulações de tom ensaístico sobre tópicos recorrentes na pesquisa de Freyre; uma história política do Recife nos últimos anos do império e até mesmo autocrítica literária, pois ao dar a seu livro a classificação de "seminovela" há uma intenção de se antecipar à crítica 236, intenção que transparece em diversos trechos, tais como: Afinal (...) o que é que você está mesmo pretendendo escrever? Romance? Crônica histórica? Ensaio com alguma coisa de ensaio desses espanhóis, por você tão admirados e que desde Cervantes, mesmo quando escrevem novelas para o grande público, escrevem, dentro delas, ensaios para um público menor, porém para eles, autores, melhor? (FREYRE, 1964, p. 19)237 233 FREYRE, Gilberto. Dona Sinhá e o Filho Padre: Seminovela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964, p. VIII. 234 Idem, Ibidem. 235 Idem, Ibidem. 236 ALVES RIBEIRO, Rodrigo. Dona Sinhá e o Filho Padre: O modo Gilberto Freyre de fazer literatura. In: BRAGA OLIVEIRA, Camila A. et al. (org.). Caderno de resumos e anais do 5º Seminário Nacional de História da Historiografia: Biografia e história intelectual. Ouro Preto: EdUFOP, 2011. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2015. 237 FREYRE, Gilberto. Dona Sinhá e o Filho Padre: Seminovela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964, p. 19

Mas não é apenas esse elemento que daria à novela o epíteto de "semi". Outro seria a ausência de enredo: "Tudo por amor a assunto que me pareceu digno de ser aproveitado em novela, embora sem enredo. Seminovela." 238. A estrutura da narrativa é vertiginosa e confunde: o narrador/personagem é Gilberto Freyre, que vaga pelo Recife numa jornada de revelação na qual descobre que o protagonista que ele vinha projetando para uma novela homônima ao título do livro na verdade existe, assim como todos os outros coadjuvantes que ele imaginara. Mas este protagonista chama-se José Maria e viveu no ocaso do império brasileiro, décadas antes do nascimento de Freyre. As semelhanças entre ambos não estão dadas; devem ser buscadas numa espécie de jogo que acaba sendo encorajado pelo autor. Por exemplo, quando ele diz que seu livro é [...] a história de um menino que se não existiu fora de nós existiu dentro dos antepassados de alguns de nós e até ainda existe dentro de nós próprios: suas relações com a Mãe, com o tio, com a mãe preta que o criou nos últimos tempos da escravidão, com a mãe d'água que lhe seduziu a imaginação de criança brasileira [...]. (FREYRE, 1964, p. 41-42) 239

E mais adiante, ao classificar sua obra como uma que "pela sua metodologia" se prende a um "ultra-realismo empático" descrito por ele como uma "identificação do autor com um ou alguns de seus personagens [...] através de difíceis combinações da técnica de ficção com a da confissão ou da autobiografia [...]" 240. Observemos como a própria obra se define: Este semi-romance - ou seminovela? - ninguém pense que seja, mesmo remotamente, autobiografia disfarçada; ou biografia romanceada; ou história sob a forma de ficção. Terá num ou noutro trecho um pouco de biografia não de um indivíduo só mas de vários, considerados na pessoa imaginária de um tipo como que sociologicamente ideal; e um tanto, também, de história: história de uma época de transição na vida brasileira e que foi a dos avós, já adultos, e a dos pais, ainda crianças, do autor. Mas não é romance. É novela. Seminovela, pelo menos. Quase tudo inventado. Imaginado. Fantasiado. (FREYRE, 1964. p. 177)241

Gilberto Freyre é, não nos esqueçamos, o mestre dos contrários: "Os contrários 238 Idem, p. 59 239 Idem, p. 41-42 240 Idem, p. 184-6. 241 Idem, p. 177.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

13 9

se justapõe, frequentemente de forma ambígua, e convivem em harmonia." 242 Assim também acontece com este livro, o que torna sua classificação tarefa um tanto ardilosa. O livro não pode ser entendido como autobiografia no sentido estrito do termo. Podemos, é fato, elencar elementos extratextuais que ligam o personagem principal ao autor: a infância no Recife, a expectativa de que ele se ordenasse padre 243, o parentesco com os Wanderleys de Serinhaém, entre outros. Mas nos parece bastante claro que Gilberto Freyre desejava que a obra fosse lida como ficção. Segundo Lejeune, o género autobiográfico é um género contratual, pois A problemática da autobiografia [...] não está [...] fundamentada na relação, estabelecida de fora, entre a referência extratextual e o texto - pois tal relação só poderia ser de semelhança e nada provaria. Ela tampouco está fundamentada na análise interna do funcionamento do texto, da estrutura ou dos aspectos do texto publicado, mas sim em uma análise, empreendida a partir de um enfoque global da publicação, do contrato implícito ou explícito proposto pelo autor ao leitor, contrato que determina o modo de leitura do texto e engendra os efeitos que, atribuídos ao texto, nos parecem defini-lo como autobiografia. (LEJEUNE, 2008, p. 53)244

Este contrato, o "pacto autobiográfico", celebra-se através de elementos de fácil identificação numa obra, todos centrados no nome próprio como fator de ratificação.245

Recorremos,

portanto,

ao

conceito

de

pacto

referencial:

Em oposição a todas as formas de ficção, a biografia e a autobiografia são textos referenciais: exatamente como o discurso científico ou histórico, eles se propõe a fornecer informações a respeito de uma 'realidade' externa ao texto e a se submeter portanto a uma prova de verificação. Seu objetivo não é a simples verossimilhança, mas a semelhança com o verdadeiro. Não o 'efeito de real', mas a imagem do real. Todos esses textos referenciais comportam então o que chamarei de pacto referencial, implícito ou explícito, no qual se incluem uma definição do campo do real visado e um anúncio das modalidades e do grau de semelhança aos quais o texto aspira. (LEJEUNE, 2008, p. 43)246

242 CARDOSO, Fernando Henrique. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p 80. 243 FREYRE, Gilberto. De menino a homem: De mais de trinta e de quarenta, de sessenta e mais anos. Recife: Global, 2010. 244 LEJEUNE, Phillippe. O pacto autobiográfico: De Rousseau à internet. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 53. 245 Idem. 246 Idem, p. 43.

Isto nos permite circunscrever Dona Sinhá e o Filho Padre no "relevo autobiográfico" de Gilberto Freyre. Relevo que, conforme nossos exemplos e citações demonstram, pode acabar se revelando extensível a boa parte de sua produção. Nossa ideia é proceder ao estudo deste romance de si amparados por fontes que, dentro de um recorte temporal e de gênero, sejam compatíveis com aquilo que buscamos. Pensamos que Tempo Morto e Outros Tempos está perfeitamente enquadrado nessa proposta. Trata-se de um diário íntimo cultivado por Freyre entre 1915 e 1930, porém editado e publicado apenas em 1975. Diferente do documento que vínhamos discutindo, este é um exemplo de literatura sem ficção. Sim, pois "[...] o território da literatura não se confunde com o da ficcionalidade. Assim como a ficção não se limita à literatura, tampouco a literatura repousa por inteiro no ficcional" 247. Trata-se, assim, de outro expoente do trabalho de Gilberto Freyre como literato, no qual ele afasta-se da atividade de ficcionista, mas não de "escritor memorialista", traço que, segundo ele, marca todos os escritores de língua portuguesa e mesmo os que com eles tiveram contato, como Larbaud248. O autor parece reconhecer em seu diário, primeiramente, um valor de documento histórico: Diários, autobiografias, memórias, cartas, estão entre os transmissores, alguns extremamente modestos, outros magníficos, de um tempo a outro [...]. Mas até os registros de um simples colegial podem ser documento de considerável importância para a transmissão do que é imortal nos tempos que em parte morrem, uns mais, outros menos do que os homens. Vários são aqueles diários que, não sendo obras-primas, têm contribuído para um sempre maior conhecimento do Homem pelos homens. (FREYRE, 1975, p. VIII)249

Como podemos ver, Freyre classifica os diários pela sua qualidade estética. Não são, afinal, apenas documentos: são obras de arte fadadas a perpetuar o nome de seus autores. A ambivalência, entretanto, neste caso, não é um privilégio de Freyre. Luiz Costa Lima nos dá conta do caráter híbrido dos escritos autobiográficos de modo geral: [...] a autobiografia não favoreceria um deslocamento entre 247 COSTA LIMA, Luiz. A Aguarrás do tempo: Estudos sobre narrativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p 340. 248 FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos: Trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. 249 Idem, p. VIII.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

14 1

discursos. Sua destinação natural seria a de documento histórico e auxiliar. Mas, já ao surgir, a autobiografia é acompanhada da desconfiança do historiador quando à sua fidedignidade. Mesmo antes de considerar a diferença que ela mantém quanto às memórias [...], vale notar que "o historiador está bem consciente de que as memórias são sempre, em certo grau, uma vingança contra a história" (Gusdorf, G.: 1956, 36). Eis, portanto, um segundo subconjunto potencialmente literário, que independe da ficcionalidade. Se uma autobiografia ingressar na literatura será, independentemente da desconfiança do historiador, enquanto correlato sensível-codificado do mundo fenomênico (COSTA LIMA, 2006, p. 351)250.

Faz-se aqui uma ressalva: Lejeune considera diário e autobiografia dois gêneros diferentes das escritas de si. Ao diário faltaria o caráter retrospectivo da autobiografia, um ponto fundamental. Entretanto, aplicamos a este diário em particular reflexões que usam o termo "autobiografia", pois julgamos que a teoria também lhe é pertinente. Além do mais, o próprio Lejeune diz que "[...] essas categorias não são absolutamente rigorosas"251 e que "Um diário mais tarde modificado ou podado talvez ganhe algum valor literário, mas terá perdido o essencial: a autenticidade do momento. Quando soa a meia noite, não posso mais fazer modificações. Se o fizer, abandono o diário para cair na autobiografia" 252. Confiando-se em Freyre, mesmo que a edição do diário tenha sido feita quase cinquenta anos depois de sua redação, foram omitidas apenas as partes que "se perderam, devoradas pelo cupim" e realizou-se "um ou outro acréscimo para esclarecer obscuridades". No mais, foram "conservadas repetições" e "respeitadas espontaneidades um tanto desordenadas"253. Todo o processo que levou ao resgate, edição e publicação deste documento é, por si só, tão retrospectivo quanto a escrita de uma autobiografia, já que feito pelo próprio autor. Embora ele deva ser respeitado em sua especificidade de gênero, pensamos não ser abusivo o emprego de teorias que, embora falem em "autobiografia" e não em "diário", se enquadram na definição do objeto. 250 COSTA LIMA, Luis. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 351. 251 LEJEUNE, Phillippe. O pacto autobiográfico: De Rousseau à internet. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 300. 252 Idem, ibidem. 253 FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos: Trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. VII.

Todo o prefácio de Tempo Morto e Outros Tempos é uma justificativa para a existência da obra como publicação. Embora evite emitir juízos de valor a respeito do diário, o autor não consegue deixar de, ao defini-lo, referir-se ao peso das questões de que se ocupa: Esses registros foram afinal registros de conversa de um homem consigo mesmo. De um homem desdobrado em dois: ele e o seu diário. De um homem analítico e, ao mesmo tempo, com uns instantes tão antianalíticos de devaneio poético, que o diálogo parece adquirir, por vezes, aspectos quase líricos. Há nas notas um misto de lirismo anárquico e de tentativa de organização: a de um adolescente e depois um jovem na sua primeira mocidade a buscar dar alguma ordem aos começos do seu pensar, do seu sentir, do seu viver, do seu existir. Ao seu preexistir e ao seu pós existir dadas suas preocupações com seu futuro e até com o futuro de sua gente, em particular, e do Homem, em geral (FREYRE, 1975, p. XIII).254

Estas preocupações coincidem com as que encontraremos em suas fases mais tardias, como os meandros da sexualidade humana, dilemas religiosos, contestação das ideias positivistas, entre outros. Mas a mais curiosa talvez seja a demonstrada em entrada com data de 1921 - em relação à história infância no Brasil e a importância de seu papel na interpretação de nossa sociedade. Em outubro do mesmo ano, em carta a Oliveira Lima, Freyre menciona a ambição distante de "escrever uma novela sobre um menino"255. Esta pode ser a gênese de nossa outra fonte, Dona Sinhá e o Filho Padre. A possível continuação deste diário, De Menino a Homem, foi localizada postumamente no Centro de Documentação da Fundação Gilberto Freyre e publicada no ano de 2010. Diz-se possível, pois seu formato é diferente: a escrita se dá num "Jorro coloquial" que produz o que o próprio autor classificará como um "diário anárquico"256. Mas, embora contenha, ainda que esparsa, uma datação - o que Lejeune considera condição primeira de um diário - este escrito foi feito de maneira retrospectiva: "Concebido em idade madura, provavelmente aos oitenta anos ou mais"257, o que o torna uma autobiografia estrita. Por ser "anárquico" o recorte temporal da obra é um pouco confuso: Certos episódios da infância do escritor 254 Idem, p. XIII. 255 CASTRO GOMES, Angêla de (org.). Em Família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. Campinas: Mercado das Letras, 2005. 256 FREYRE, Gilberto. De menino a homem: De mais de trinta e de quarenta, de sessenta e mais anos. Recife: Global, 2010, p. 134. 257 Idem, p. 16.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

14 3

misturam-se aos da vida adulta num vai e vem de recordações. Uns são vagos, enquanto outros recebem ênfase, são descritos em detalhes e retomados páginas depois. Por exemplo, o incêndio criminoso da casa da família Freyre na revolução de 30; os esforços que levaram a escrita de Casa-Grande & Senzala, assim como as glórias colhidas com sua publicação; o apego exagerado à figura da mãe - traço compartilhado pelo protagonista de Dona Sinhá e o Filho Padre, o menino José Maria que "vive em todos nós"258. O fato de ser póstuma torna esta obra um caso particular em relação a seus pares e reforça nosso interesse, já que pode levar a apreciação de aspectos que não seriam encontrados doutro modo. Ainda assim, o cuidado com o estilo e a época em que foi redigida deixa pouca margem para dúvidas: Freyre pretendia publicá-la em algum momento. É, portanto, nestas três fontes que este trabalho pretende ancorar-se a fim de compreender melhor a trajetória e o pensamento vivo do intelectual Gilberto Freyre. Elas foram destacadas de um "cânone" autobiográfico muito maior: há outros diários e romances de si. Nestas três obras, entretanto, podemos delimitar mais adequadamente uma investigação do olhar do autor sobre ele mesmo e sobre sua vida na infância e na primeira mocidade. Temos nelas representantes de gêneros distintos da escrita autobiográfica: o diário em sua forma quase pura, a autobiografia clássica e o romance de si. Por não fazerem parte do mesmo gênero, mas terem sido escritas pelo mesmo homem, elas nos permitem ter imagens - ou melhor, receber imagens diferentes deste homem. Trata-se de observar, através das especificidades, os recursos e limitações que cada gênero oferece, como estas imagens se aproximam e se afastam, os contrários se sobrepondo e, embora não se destilando em dialéticas, coexistindo em harmonia.

258 FREYRE, Gilberto. Dona Sinhá e o Filho Padre: Seminovela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964, p. 177.

A MESA INCONFIDENTE: PRODUÇÃO E CONSUMO DE ALIMENTOS NAS PROPRIEDADES DOS CONJURADOS MINEIROS

Caroline Sauer Gonçalves Mestranda em História - UNESP/Assis

RESUMO Assuntos relacionados a alimentação vem ocupando cada vez mais seu lugar na História, mostrando-se como uma vertente extremamente rica em possibilidades de investigação, uma vez que o ato de comer implica uma série de ações e atividades e requer inúmeras funções comerciais, dentre elas as atividades agrícolas. Dessa maneira, o trabalho a se realizar investigará as práticas alimentares, o consumo e a produção de alimentos em Minas Gerais na segunda metade do século XVIII, tratando-se especificamente do que comiam e como eram produzidos os alimentos nas fazendas localizadas na comarca do Rio das Mortes, que pertenciam a José Aires Gomes, José Rezende Costa e padre Manuel Rodrigues da Costa, participantes da Conjuração Mineira (1788 – 1789). Palavras-chave: História da alimentação; Produção de alimentos; Comarca do Rio das Mortes; Propriedades inconfidentes; Segunda metade do século XVIII;

INTRODUÇÃO A presença da alimentação na História, por conta de novas abordagens de pesquisas, vem crescendo e aparecendo cada vez mais. Qualquer que seja a sociedade, a alimentação está sempre relacionada, por exemplo, com as suas características e com aquilo que ela deseja passar como imagem de si.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

14 5

As escolhas e as rotinas de uma coletividade têm um caráter determinante sobre a mesma. Anda assim, mesmo com tamanha importância, a historiografia acerca da alimentação e sua história são pouco abrangentes e insuficientes, muito em decorrência de obstáculos diversos surgidos pela dificuldade no acesso às fontes de estudo, manuscritas e bibliográficas, assim como quanto ao seu levantamento, que podem ser muito diversas e incompletas e, algumas vezes, somente por acaso, surgem, deixando-nos, aliás, várias lacunas por preencher. Buscando-se avançar para além dessas dificuldades, a proposta do nosso trabalho é investigar as práticas alimentares e o mundo cotidiano dos produtores de alimentos na comarca do Rio das Mortes (atual sul de Minas Gerais), em Minas Gerais, na segunda metade do século XVIII, detendo-nos no estudo das peculiaridades das práticas sociais, consumo e produção de alimentos encontradas nas fazendas, roças, sítios e chácaras que pertenciam aos sediciosos envolvidos na Conjuração Mineira, com a finalidade de se conhecer a mesa inconfidente.

A PESQUISA A alimentação também envolve as relações de consumo, distribuição e produção destes alimentos que, posteriormente, serão consumidos por determinadas sociedades. Qualquer que seja a sociedade, sua alimentação sempre será relacionada com uma forma de comunicação, com ocasiões de troca e com atos de ostentação, o que constitui para esses grupos um critério que os diferencia dos demais, um critério de identidade. Desde que as relações alimentares das sociedades assumiram esse caráter determinante, fica difícil entender porque a historiografia tem demonstrado insuficiente interesse por este objeto de pesquisa, que é tão rico e abrangente. Nesse ponto surgiu o nosso interesse por realizar pesquisa com a história da alimentação, mas com seu foco analítico voltado para as relações de produção e de comércio de alimentos da mesa dos inconfidentes residentes na comarca do Rio das Mortes, em Minas Gerais, bem como a produção de gêneros alimentícios em suas propriedades agropastoris.

No Brasil, e mais especificamente no tocante às Minas Gerais colonial, a história da alimentação ainda não está, satisfatoriamente, completa, pois muitos assuntos ainda não foram explorados pelos historiadores. São exemplos disso o estudo da dietologia, ou melhor, o que se comia e como eram preparados os alimentos servidos, assim como quais utensílios eram utilizados para se preparar e degustar as refeições e os ritos acerca dessas refeições, permitindo-se codificar uma ampla rede de relações com a natureza e as práticas sociais ali encontráveis.259 Da

mesma

maneira,

temáticas

relacionadas

às

mercadorias

agropecuárias encontradas nas propriedades e na mesa inconfidente, como o conhecimento das plantações, hortas, pomares, pastos, das ferramentas das lidas agrícolas e pastoris, e o saber dos ciclos dos plantios e colheitas merecem estudos detalhados. Acerca do conhecimento da historiografia da Conjuração Mineira e de seus personagens, surgiu o questionamento sobre a produção e o consumo de alimentos que se fazia naquele momento. Procuraremos desvendar o que as personagens envolvidas no movimento insurreto mineiro comiam, quais alimentos produziam em suas propriedades agropastoris e quais as conexões que podem ser estabelecidas entre os alimentos produzidos nas propriedades pertencentes aos inconfidentes José Rezende Costa, padre Manuel Rodrigues da Costa e José Aires Gomes, residentes na comarca do Rio das Mortes e o mercado de consumo local. Dessa forma, o objetivo central da pesquisa que se realizará é investigar, em documentos primários impressos e manuscritos, informações sobre a produção e o consumo de alimentos, bem como as transações comerciais realizadas entre os inconfidentes pesquisados e a dieta alimentar vivenciada em suas casas. Em certa medida, nenhum estudo monográfico centrou esforços no mapeamento do dietário alimentar realizado pelos inconfidentes mineiros em suas casas. Poucas pesquisas mapearam o comércio e a produção de alimentos na comarca do Rio das Mortes, na segunda metade do século XVIII. O que se encontra na historiografia em sua quase totalidade, são estudos restritos à pesquisa das fontes oficiais, que não valorizavam as atividades que não aquelas que proporcionaram interesse imediato da Coroa portuguesa, como as produções agrícolas voltadas para o 259 MAGALHÃES, Sônia Maria de. A mesa de Mariana: produção e consumo de alimentos em Minas Gerais (1750-1850). São Paulo: Annablume, 2004

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015 abastecimento do comércio internacional.

260

14 7

Pesquisas para além da historiografia

tradicional, valorizando outros documentos além dos oficiais, merecem ser realizadas, pois ainda existem lacunas a preencher. Para dar base bibliográfica à pesquisa, nos reportaremos aos livros “clássicos” e aos autores que trabalham com a historiografia mineira colonial, bem como com relatos de viajantes que passaram pela comarca do Rio das Mortes, em meados do século XVIII e princípios do século XIX. Para isto analisaremos obras ligadas às recentes abordagens historiográficas concernentes à agricultura de subsistência e à constituição do mercado de abastecimento interno locais, articulados aos demais mercados regionais naquela referida época. 261 Embora a historiografia sobre a economia colonial mineira seja vasta, ela pouco abrangeu, especificamente, as fazendas inconfidentes. Dentro dessa temática se destacam a dissertação de mestrado262 e a tese de doutorado263, publicada em livro, de André Figueiredo Rodrigues, que mapeou e quantificou a produção

260 MENEZES, José Newton Coelho. O continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina: Maria Fumaça, 2000, p. 21

261 Sobre o assunto existem variados estudos. Entre estes se destacam os escritos por: ZEMELLA, Mafalda P. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2. ed. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1990; FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1966. LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da corte na formação política do Brasil: 1808-1848. 2. ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes; Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural; Divisão de Editoração, 1993; FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999; CARRARA, Angelo Alves. Minas e currais: produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007; ANDRADE, Francisco Eduardo de. A enxada complexa: roceiros e fazendeiros em Minas Gerais na primeira metade do século XIX. Belo Horizonte, 1994. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais; CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999; MENEZES, José Newton Coelho. O continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina: Maria Fumaça, 2000; RODRIGUES, André Figueiredo. Um potentado na Mantiqueira: José Aires Gomes e a ocupação da terra na Borda do Campo. São Paulo, 2002. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; RODRIGUES, André Figueiredo. A fortuna dos inconfidentes: caminhos e descaminhos dos bens de conjurados mineiros (1760-1850). São Paulo: Globo, 2010. 262 RODRIGUES, André Figueiredo. Um potentado na Mantiqueira: José Aires Gomes e a ocupação da terra na Borda do Campo. São Paulo, 2002. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

263 RODRIGUES, André Figueiredo. A fortuna dos inconfidentes: caminhos e descaminhos dos bens de conjurados mineiros (1760-1850). São Paulo: Globo, 2010.

agrícola para mostrar a riqueza proporcionada por este segmento econômico frente aos demais bens apreendidos pela Coroa portuguesa. A presente pesquisa avançará em relação aos citados anteriormente, mesmo dividindo o mesmo espaço físico e compactuando da mesma organização social ao rastrear o consumo e a produção de alimentos nas propriedades de três inconfidentes, saindo da análise generalista empreendida até então e avançando rumo às estruturas mínimas da vida econômico-social do produtor de alimentos, já que dispomos de documentação primária manuscrita e inédita que contém as listagens de compra e venda de alimentos entrados e saídos de fazendas inconfidentes

UM POUCO MAIS SOBRE A MESA DE MINAS GERAIS COLONIAL Concernentes à comida dos mineiros, o livro de Eduardo Frieiro 264 é o primeiro texto publicado sobre os hábitos alimentares e costumes dos habitantes de Minas Gerais. Seu estudo percorre uma cronologia que vai desde o descobrimento das Minas até a década de 1960, utilizando textos de viajantes estrangeiros, historiadores e ensaístas que escreveram sobre a região e sobre o Brasil de maneira mais ampla. A seleção empreendida pelo autor permite-nos conhecer e recuperar a fome, a escassez de alimentos, o abastecimento precário agravado pelo pequeno número de plantações devido à concentração de braços na mineração, que vivia, então, seus melhores dias, pelo menos até meados do século XVIII. No geral, parte-se do princípio de que a alimentação colonial do mineiro era bastante simples, marcada pela privação de gêneros de subsistência, caracterizada pela baixa quantidade de proteínas e pelo consumo de milho e mandioca nos períodos de maior dificuldade econômica, o que acabou por se constituir no principal sustento daquela população.265 Ao contrário do tão propagado princípio de que a economia mineira geria-se apenas pela mineração do ouro, a agricultura e, principalmente, a agricultura de subsistência, ganharam destaque na historiografia. Os trabalhos de José Newton 264 FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1966. 265 FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1966.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015 Coelho

Menezes266

e

Ângelo

Alves

Carrara267

apresentaram

o

14 9

universo

socioeconômico dos séculos XVIII e XIX. Ao comparar as propriedades rurais mineiras com as de Portugal, Carrara propõe a existência de dois modos de produção distintos existindo em Minas Gerais concomitantemente: o escravista e o camponês, que determinaram padrões agropecuários diversificados. Dessa maneira, as pessoas detentoras de domínios com predominância escravista controlavam a importação e a comercialização de sua produção, enquanto que os camponeses focavam-se na produção de subsistência. Com isto, a mineração, ao entrar em retração, a partir da segunda metade do setecentos, não provocou impactos econômicos intensos, apesar de o ouro representar, ainda, a mais significativa fonte de renda. Menezes analisa o abastecimento alimentar na comarca do Serro Frio, por meio de inventários post-mortem, testamentos e atas da Câmara, chegando a conclusão de que a região pesquisada não sofreu problemas no abastecimento de gêneros alimentícios ao longo do século XVIII, pois na região se produzia e consumia alimentos, de forma a suprir suas necessidades. Ainda sobre o crescimento da economia com base na agricultura, temos a dissertação de mestrado de Francisco Eduardo de Andrade 268, onde o mesmo observou que a economia mineira encontrou na agricultura de subsistência sua força socioeconômica e se tornou essencial. De acordo com sua pesquisa, o sistema mais adotado foi o de roças, que é um método muito simples e até mesmo rudimentar de se cultivar alimentos, porém, o mais compatível com a realidade daquele momento, uma vez que a prática agrícola ainda não tinha se desenvolvido e se mantinha muito simples. A região colonial das Minas Gerais também comercializava alimentos com outras regiões do país. De acordo com o estudo de Mafalda Zemella 269, o primeiro a explorar o assunto, a região das Minas Gerais fez emergir algumas 266 MENEZES, José Newton Coelho. O continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina: Maria Fumaça, 2000

267 CARRARA, Angelo Alves. Minas e currais: produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007.

268 ANDRADE, Francisco Eduardo de. A enxada complexa: roceiros e fazendeiros em Minas Gerais na primeira metade do século XIX. Belo Horizonte, 1994. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.

correntes de abastecimento ligadas a outros pontos da América portuguesa, como São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, onde cada uma dessas regiões conseguiu oferecer gêneros diferentes daqueles de que o território mineiro dispunha. Seu estudo analisa os mercados abastecedores, com o intuito de descobrir como os produtos chegavam às Minas Gerais, de que maneira eles eram distribuídos pelo território e, ainda, como eram consumidos, até o momento em que Minas se torna um território auto-suficiente e exportador. Outra obra de destaque é a de Cláudia Chaves270, que estuda a atuação dos tropeiros e mostra de que forma eles realizavam o transporte de mercadorias, inclusive gêneros alimentícios, entre diversas partes do território, bem como a possibilidade da existência de um mercado interno que possibilitava a circulação de produtos importados e produzidos no próprio território. O comércio realizado entre grandes homens de negócio e as trocas comerciais de alto padrão nas Minas Gerais entre 1712 e 1744 foram muito bem mostradas por Júnia Furtado271. Ela transmitiu a noção de classe social dentro da colônia, destoando-se da produção bibliográfica, uma vez que a maior parte dos trabalhos traz apenas o comércio simples e de subsistência. São estes estudos que compõem a base bibliográfica fundamental (e inicial) da pesquisa a realizar-se. Estes estudos nos possibilitam a compreensão dos cenários econômicos e sociais existentes nas Minas Gerais colonial. As abordagens mais recentes nos ajudam a ter uma visão mais objetiva de como funcionavam as unidades econômicas e produtivas mineiras como um todo, e não apenas alguns setores. Pois bem, se Minas Gerais apresenta economia diversificada e não apenas ligada ao setor minerador, mantendo respeitável comércio com outras províncias da América portuguesa, além de possuir destacável produção agrícola de subsistência, necessita-se, portanto, ampliar esse debate, especificando alguns dos 269 ZEMELLA, Mafalda P. O abastecimento da capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2. ed. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1990.

270 CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999.

271 FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

15 1

personagens que fizeram com que essa realidade existisse, mapeando-se restritivamente suas práticas comerciais e de consumo de alimentos, além das práticas sociais do alimento na mesa inconfidente.

METODOLOGIA A pesquisa visará descrever, interpretar e analisar a maneira como era a mesa inconfidente e os seus reflexos sociais na produção e compra de alimentos. Para isto, utilizaremos como base metodológica a pesquisa descritiva, que aparecerá sob duas formas: documental e bibliográfica. A pesquisa documental, em que analisaremos documentos primários manuscritos e impressos com a intenção de se poder descrever e comparar casos e costumes, diferenças e semelhanças entre práticas alimentares de três mineiros envolvidos na sedição mineira de 1788-1789, para se reconstituir informações do passado, com o propósito de se descobrir generalizações e especificidades. Assim, serão analisados os 11 volumes dos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, em especial o seu volume sexto, onde estão indicados os autos de sequestro empreendidos às propriedades inconfidentes, permitindo-nos evidenciar o modo de vida e a inserção produtiva daqueles fazendeiros, poucos explorados pela historiografia no tocante à compreensão da sociedade mineira do século XVIII, em especial a relacionada ao universo alimentar e aos seus assuntos correlacionados.272 Outra fonte documental importante será a Correspondência ativa de João Rodrigues de Macedo273, em dois volumes impressos, que nos permitirá ambientar as relações comerciais existentes naquele momento. No tocante ao universo alimentar, as fontes primordiais serão constituídas pelos sequestros, inventários, listagens de compra e venda de alimentos, documentos de propriedade de terras e pagamento de dízimos, que registram os alimentos produzidos e consumidos e os aspectos socioeconômicos das personagens a 272 AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Governo do Estado de Minas Gerais, 1976-1983. 10 v. AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira: complementação documental. Ouro Preto: MinC; IPHAN; Museu da Inconfidência, 2001. v. 11.

273 OLIVEIRA, Tarquínio J. B. de. Correspondência ativa de João Roiz de Macedo. Ouro Preto: ESAF; Centro de Estudos do Ciclo do Ouro; Casa dos Contos, 1981. 2 v.

serem estudadas, custodiados no Arquivo Histórico da 13ª Seção Técnica do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em São João del-Rei, Minas Gerais. Alguns documentos serão pesquisados junto ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no Rio de Janeiro, notadamente aqueles relacionados aos sequestros e inventários originais pertencentes aos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Ainda no Rio de Janeiro, pretende-se pesquisar libelos cíveis que tiveram os três personagens a serem analisados como requeridos pela justiça colonial em cobranças de dívidas, custodiados no Arquivo Nacional (ANRJ).274 Já para o desenvolvimento da pesquisa bibliográfica, utilizaremos relatos de viajantes como Auguste Saint-Hilaire275 e John Mawe276, que nas primeiras décadas do século XIX estiveram nas Minas Gerais e passaram pelas propriedades pertencentes aos sediciosos mineiros, e leitura crítica aos textos tradicionais sobre a economia agrícola mineira setecentista e outros que tiveram a alimentação como foco de pesquisa.

274 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) – Rio de Janeiro / RJ 1. Autos de Sequestro em bens do padre Manuel Rodrigues da Costa. 1791. [DL 101.5] 2. Sequestro em bens de José de Resende Costa. 1799. [DL 70.9] 3. Traslado de Auto de Sequestro feito em bens do coronel José Aires Gomes, 1802. [DL 973.1] Arquivo Nacional (ANRJ) – Rio de Janeiro / RJ 1. Coleção Inconfidência Mineira / Fundo 3A - Caixa 3032 – Libelos Cíveis: José de Resende Costa (2 pacotilhas) - Caixa 3032 – Libelos Cíveis: José Aires Gomes (6 pacotilhas) Arquivo Histórico do Escritório Técnico II da 13ª SR / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – São João del-Rei (Minas Gerais) - Testamentos, inventários, listagem de compra e venda de alimentos, documentos de propriedade de terras e pagamento de dízimos de residentes na Comarca do Rio das Mortes. Diversos personagens.

275 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975.

276 MAWE, John. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1978.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

15 3

Um Estudo sobre o Código do Menor de 1927 no espaço público brasileiro: uma interpretação arendtiana.

Eder Adriano Pereira Mestrando em História. UNESP/ Assis

Resumo: Este artigo pretende desenvolver uma breve análise sobre o conceito da ação arendtiana, articulado à realidade jurídica do Código do Menor, promulgado em 1927 no Brasil. Para tal analise, utilizaremos como referência e compreensão, o conceito de ação dialógica, neste caso, transposto ao âmbito do poder público e jurídico brasileiro. Tal conceito filosófico de Arendt, aplicado às manifestações discursivas submetidas aos menores na vigência do Código de 1927, nos levará a compreender as posturas dialógicas exercidas no espaço público, pela via da ação de poder do protocolo jurídico, sobre as mais diversas legitimações, palavras e atos, onde o resultado estabeleceu durante anos a população menor pobre, estruturas de autoridade e garantiu a legitimidade das instituições e das leis. Palavras chave: Arendt. Discurso. Ação. Codigo do Menor. Brasil.

INTRODUÇÃO [...] senhores, como recurso supremo, eu me volto para a infância – os pequeninos de hoje que serão os grandes de amanhã; é nela que ponho as esperanças da grandeza do atual regime pela regeneração da pátria. [...] Temos uma pátria a reconstruir, uma nação a firmar, um povo a fazer... e para empreender essa tarefa, que elemento mais dúctil e moldável a trabalhar do que a infância?277

277 Discurso proferido por Lopes Trovão no dia 11 de setembro de 1896 no Senado Federal, Rio de Janeiro. Apud: MONCORVO FILHO, Arthur. Histórico da Protecção à Infância no Brasil: 1500-1922. 2ª edição. Rio de Janeiro: Empreza Graphica Paulo Pongetti, 1927. p. 128-131.

Atualmente o contexto jurídico brasileiro tem passado por um amplo estudo historiográfico sobre as mais diversas fontes documentais. Nesse sentido, este artigo se apresenta como uma breve análise sobre o conceito da ação, proposto filosoficamente por Hannah Arendt e aplicado a esfera “dialógica jurídica” do Código do Menor promulgado em 1927, o qual vigorou no Brasil durante sessenta e três anos e, regrou pela via discursiva estatal o tratamento legal que deveria regular a infância pobre brasileira. Convém mencionar que tal “dialogismo” posto à esfera jurídica brasileira, proposto neste trabalho, configura-se sobre a concepção dialética discursiva, em especial, bakhitiniana, onde neste caso, especificamente, tanto Arendt como Bakhtin concordam sobre o fato de que é através do diálogo que os sujeitos se constituem sobre um contexto em que todos podem participar, em condição de igualdade no espaço público e político o qual interagem. Dentro do exposto, Bakhtin nos complementa que todo [...] discurso é a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela linguística, os que têm importância primordial para nossos fins. (BAKHTIN, 2008, p. 207)278 Nesse sentido, o espaço político conjectura-se sobre o ambiente dialógico dos confrontos entre os diferentes grupos sociais, onde cada grupo, discursivamente, pela via da ação, conforme Arendt, afirma sua identidade. Complementar ao exposto, Hannah Arendt em sua análise sobre a “condição humana” presente na obra “A Condição Humana” de 1958, apresenta o seu próprio conceito de poder. Este estabelecido e alcançado no espaço público das relações humanas pela formação da vontade comum, a qual, só é possível por meio da ação discursiva, a qual garante visibilidade ao homem perante o mundo. Visibilidade esta, somente possível em um espaço próprio para o desempenho desse tipo de atividade, que leva em conta a pluralidade humana, ou seja, o espaço público.

A via da ação discursiva nas entrelinhas do Código do Menor de 1927

278 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução Paulo Bezerra. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

15 5

O conceito de ação proposto por Hannah Arendt faz parte da tríade da condição humana (labor, trabalho e ação) referenciados no livro “A Condição Humana”, publicada inicialmente em 1958. Tais tríades filosóficas da “condição existencial humana” são explicitadas pela autora como atividades fundamentais da vita activa dos homens na Terra. Onde segundo Arendt, As três atividades e suas respectivas condições tem íntima relação com as condições mais gerais da existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados, ou seja, tudo aquilo com a qual eles entram em contato tornase imediatamente uma condição de sua existência. A objetividade do mundo e a condição humana complementam-se uma a outra, por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas e estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana. (ARENDT, 2005, p. 16)279 A autora em seus estudos, em especial na obra aludida acima, faz-nos debruçar reflexivamente sobre as questões filosóficas que envolvem a interação dos homens em seu meio social e político, sobre o arquétipo da “teia das relações humanas”. Estas por sua vez, dentro da teorização de Arendt somente são possíveis, sobre a concepção do pluralismo político pela via activa da ação, contrapondo assim, pelo viés crítico e filosófico a massificação autoritária a qual isolou o homem a uma esfera de poder impositivo, restritivo e alienante em determinadas contextualizações políticas, econômicas e ditatoriais, experienciada, sobretudo na Europa do século XX. Nesse contexto, segundo a autora, de todas as ações indispensáveis e presentes nos espaços de relações humanas, somente duas destacam-se como políticas: a ação e o discurso, das quais possibilitam no âmbito das relações humanas o surgimento da chamada “estrutura dos interesses humanos”280. Para compreendermos esta “ação dialógica arendtiana”, aplicada ao contexto da lei do Menor de 1927 e do poder público jurídico brasileiro, é fundamental debruçarmos sobre as manifestações “discursivas de interesses estatais”, submetidas aos menores na sociedade brasileira por posturas dialógicas exercidas no ambiente público, pela via da ação de poder do protocolo legal, sobre as mais diversas legitimações, palavras e atos onde o resultado, estabeleceu estruturas de autoridade, 279 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução: Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. 280 LAFER, Celso Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

como o Código do Menor de 1927. Código este, o qual garantiu durante sessenta e três anos, a legalidade das instituições e das leis, as quais promoveram por décadas a massificação e distinção sem direitos a educação 281, do sujeito menor, pobre e marginalizado, pela via da palavra de ordem e lei. Posto isso, sobre a questão da inclusão social e educacional da criança, Arendt, defende a condição de uma educação pautada na tradição para a convivência desta no espaço público das relações humanas, pois a criança para a autora apresentase como sujeito pré-político, ou seja, os adultos é quem possuem o papel de oportunizar através das “estruturas de uma tradição posta” as condições para que elas possam constituir-se sobre as mesmas “em um mundo que não é mais estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição”. Para Arendt, o papel da educação determina uma função importante para a conservação do mundo, pois, se trata de apresentar às novas gerações o conjunto de estruturas racionais, científicas, políticas, históricas, linguísticas, sociais e econômicas que constituem o mundo no qual eles vivem. No entanto, a falta de responsabilidade e o despreparo dos adultos para introduzir os recém-chegados no mundo na configuração educacional do século XX, apresentam-se para Arendt, manipulado “sobre o propósito real da coerção, porém, sem uso da força”282. Assim, proteger "a criança do mundo e o mundo da criança" nas argumentações da autora seria livrá-la do "cerco daquilo que poderia persuadi-la como novo e imediato", visto que a perda da tradição poderia extinguir os alicerces de uma sociedade forjada nos vastos domínios de um passado ideal.

A Condição humana do menor brasileiro "Mello Mattos cuidava de forma paternal dos pequenos filhos de famílias pobres do Rio de Janeiro, ora entregando-os aos cuidados de seus amigos e conhecidos bem de vida, ora internando-os em patronatos ou instituições filantrópicas da época". (VIANA, 2004, p. 235) 283 281 Educação entendida neste contexto não pelo princípio de igualdade, mas como mantenedora das tradições e conduzida pelos cuidados dos adultos sem o viés político. Pois, segundo a autora política é uma área que pertence apenas aos adultos, agindo como iguais - igualdade que não poderia existir entre crianças e adultos (Arendt, 1958). 282 ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1985. 283 VIANNA, Guaracy Campos. Direito Infanto-Juvenil - Teoria, prática e aspectos multidisciplinares. Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 2004.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

15 7

No Brasil, a estrutura política de assistência ao menor por diversos momentos esteve na pauta das críticas políticas e sociais da época da Primeira República, no entanto, A promulgação do Código do Menor representou à possibilidade efetiva de se firmar a legislação de assistência e proteção aos menores. É interessante observar que ao fixar os critérios de funcionamento da Justiça de menores em sua relação com os órgãos de assistência e repressão, pretendeu-se instituir a preponderância e legitimação da justiça como instância máxima na organização e definição de competências sobre a infância e as famílias pobres. Nesse movimento de localização e definição da infância, os juristas balizaram a identificação e a constituição da produção do estereotipo do menor abandonado ou delinqüente. (CÂMARA, 2008, p. 06)284 Este primeiro documento legislativo normativo sobre a infância no Brasil, ou seja, o Código do Menor de 1927, também intitulado de Código Mello Mattos, em alusão ao seu formulador José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, foi legislado e aplicado sobre um momento decisivo de organização e disciplinarização da população brasileira, ou seja, os dois primeiros decênios do século XX, onde a ideologia do Estado do Bem Estar Social Público se instaurou sobre os alicerces de uma “velha” e burocrática285 República, abrangendo-se assim, na forma de controle social as camadas mais pobres da população, operários e especialmente os menores, estes os quais o Código do Menor de 1927 qualificava: [...] os menores segundo a sua conduta: “expostos” eram os menores de sete anos, os menores de dezoito anos eram considerados “abandonados”, os que esmolassem ou vendessem pelas ruas eram classificados de “vadios” e os que frequentassem prostíbulos recebiam a denominação de “libertinos”. O Código aboliu definitivamente a “teoria do discernimento” e dessa forma, os menores de quatorze anos passaram a ser considerados inimputáveis. (FERREIRA, 2008, p. 7)286 Sob o escopo de “analise transposta” pela terceira dimensão da vita activa, a ação, indicada por Hannah Arendt, especificamente, na obra A condição Humana de 1958, torna-se legítimo esboçar o domínio público brasileiro sobre o escopo 284 CÂMARA, SÔNIA. Sob a defesa da República: A Produção da infância pobre nos debates jurídico-educacionais no Brasil e em Portugal nas décadas de 1910-1920. Artigo, 2008. Disponível em http://sbhe.org.br/congresso. Acessado em 21 de setembro de 2014. 2852 Burocracia; segundo Hannah Arendt, [...] é a forma de governo na qual todas as pessoas estão privadas da liberdade política. In. Sobre a violência. p.59. 1969.

286 FERREIRA, Laura Valéria Pinto. Menores desamparados da proclamação da república ao Estado Novo. Artigo, 2008. Disponível em: Revista Virtú (UFJF) http://www.ufjf.br/virtu/edicoesanteriores/setima. Acessado em 10 de maio de 2015.

filosófico da autora, em especial, à realidade presente na linguagem do Código do Menor de 1927, pois, pela narrativa que este documento nos apresenta, podemos suscitar pelo campo da vita activa da ação, o âmbito discursivo jurídico da infância pobre, uma vez que, "é através das palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo nascimento"287. E esse “segundo nascimento”, no caso dos menores no Brasil, a partir de 1927, se deu pelas mãos de um Código postulado na ação da esfera pública conservadora, onde os menores pobres referidos como vulneráveis situavam-se como uma ameaça à sociedade pública idealizada e proposta pelo Estado que se idealizava. Posto isso, Arendt nos evidencia que: Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso e da ação para se fazerem entender. (ARENDT, 2004, p. 188)288 O Código do Menor de 1927, somente se estruturou por mais de sessenta anos na realidade da infância brasileira, 1927 (reformulado em 1979) a 1990 com o advento do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), devido ao seu discursivo de poder e ordem que exercia e mediava sobre todas as classes sociais, principalmente, às camadas mais populares ou pobres, durante todo o seu período de vigência. É perceptível que o discurso jurídico estabelecido nos canônicos artigos do Código do Menor de 1927 refletiu nos ideários de massificação social do menor postulando-o fora de uma singularidade de proteção legal e criteriosamente regulada. Sobre este assunto Rizinni, (1997, p. 49)289 nos esclarece que: As propostas e encaminhamentos de política para a infância fazem parte da forma como o Estado brasileiro foi se constituindo ao longo da história, combinando autoritarismo, descaso ou omissão para com a população pobre com clientelismo, populismo e um privilegiamento do privado pelo público, em diferentes contextos de institucionalidade política e de regulação das relações entre Estado e sociedade.(RIZINNI,1997, p. 49)290 Nesse contexto, o Código de Menor de 1927 articulou sobre suas 287 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 4.ed. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1989. Pag.189 288 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução: Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. 289 RIZINNI, Irene. Por uma reforma civilizadora do Brasil: A essência das idéias no âmbito da Justiça.In: O Século Perdido – Raízes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.Universitária Santa Úrsula, 1997.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

15 9

normatizações o tratamento estipulado àqueles aos quais qualificava socialmente como diferentes ou iguais, pois como o próprio termo “menor” supunha, não detinham direitos de cidadania perante a sociedade. Com isso, observa-se uma característica latente do jogo normativo do Estado sobre o ambiente das relações discursivas, ou seja, o domínio sobre a condição sócio-jurídica e infanto-juvenil dos condicionados menores, articulando-se assim, a vigilância pública de aparência sobre as ações da “teia de relações humanas”, em especial, às enquadradas nos argumentos do Código do Menor de 1927. Nesse âmbito, é válido remetermos ao escopo filosófico de Arendt, a qual nos evidencia que o espaço público, também é o das representações da aparência, ou seja, uma representação possível e oportuna quando os homens reúnem-se no espaço público para a ação de interesses comuns e visíveis. Assim: O espaço da aparência passa a existir sempre que os homens se reúnem na modalidade do discurso e da ação, e, portanto, precede toda e qualquer constituição formal do domínio público e as várias formas de governo, isto é, as várias formas possíveis de organização do domínio público. [...] Onde quer que as pessoas se reúnam, esse espaço existe potencialmente, mas só é potencialmente, não necessariamente nem para sempre. (ARENDT, 2004, p. 249)291. Para autora, o espaço de aparência não se resume a uma implicação da ação enquanto atividade de interação política, mas como produto consolidado e objetivado através das obras que se concretizam pelo fato dos homens viverem através de processos de mediação coletiva. Nesse território aparente de viver e estar entre os homens, no caso brasileiro, fez-se a politicamente o Código do Menor de 1927, regulando o espaço público brasileiro sobre uma conjuntura de leis verticais dispostas por uma elite que atribuía, sobretudo, poderes “instrumentais”, de vigilância, regras codificadas e de punição aos setores populares, onde tinham a certeza de “quem eram” esses sujeitos menores, e essa relação de uma construção do perfil do menor abordado neste aparato de leis é e está implícita tanto em suas palavras quanto em seus atos. 290 RIZINNI, Irene. Por uma reforma civilizadora do Brasil: A essência das idéias no âmbito da Justiça.In: O Século Perdido – Raízes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.Universitária Santa Úrsula, 1997. Pag.49. 291 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução: Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

Assim, o sujeito menor, dentro de suas atitudes relacionais na esfera do espaço público brasileiro, era percebido como um problema para a estrutura social do espaço de representação aparente da chamada “República Velha”. Muitos menores nesta época, ou seja, primeiros decênios do Século XX encontravam-se sem amparo familiar, o que os arrebatava a condutas impróprias como: a mendicância, vadiagem, prostituição, delinquência e o crime. Posto isso, a repressão policial incidia sobre os chamados maiores e menores sem distinções de atos ou idades. Sobre o tratamento dado a essa clientela, o Código do Menor especificava em alguns artigos segundo os capítulos I e II que: CAPITULO I - DO OBJECTO E FIM DA LEI Art. 1º O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente (Grifo meu), que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade competente ás medidas de assistencia e protecção contidas neste Codigo. CAPITULO II - DAS CREANÇAS DA PRIMEIRA IDADE  Art. 2º Toda creança de menos de dous annos de idade entregue a criar, ou em ablactação ou guarda, fóra da casa dos paes ou responsaveis, mediante salario, torna-se por esse facto objecto da vigilancia da autoridade publica, com o fim de lhe proteger a vida e a saude.  Art. 3º Essa vigilancia comprehende: toda pessoa que tenha uma creança lactante ou uma ou varias creanças em ablactação ou em guarda, entregue aos seus cuidados mediante salario; os escriptorios ou agentes de informações que se occupem de arranjar collocação a creanças para criação, ablactação ou guarda.  Art. 4º A recusa de receber a autoridade, encarregada da inspecção ou qualquer pessoa delegada ou autorizada em virtude de lei, é punida com as penas do crime de desobediencia, e em caso de injuria ou violencia com as do crime de desacato.

Diante dos artigos expostos nos capítulos I e II nota-se nas entrelinhas de suas expressões discursivas implícitas e explícitas que o tratamento jurídico ofertado pelo aparato estatal, através da vigência do Código do Menor de 1927, centralizou para si o discurso sobre a responsabilidade de vigilância dos menores qualificados a partir de então como, abandonados e delinquentes. Em nenhum momento fomentou pela via institucional a restauração familiar e cidadã dos mesmos. Ao contrário, promoveu a burocratização das relações pela figura externa das autoridades fiscalizadoras e simbolizadas pelo poder de inspeção, julgamento e punição. Complementar ao exposto, Lafer nos remete que, restaurar, recuperar, resgatar o espaço público que

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

16 1

permite, pela liberdade e pela comunicação, o agir conjunto, e com ele a geração do poder [...] (LAFER, 2003, pág. 35)292 O poder sobre as questões da infância promovido pelo Código do Menor fez com que, não somente os espaços públicos abertos das cidades brasileiras se reestruturassem no que condizia ao “novo discurso e tratamento” a clientela dos menores em estado de vulnerabilidade, mas as próprias instituições estatais de internação e amparo tiveram que reinventar a postura dialógica sobre os atores que exerciam as tradicionais funções burocráticas nestes espaços públicos. E isso só foi possível pela via da ação comunicativa das relações que “zelaram pela disseminação das palavras do Código” no espaço público brasileiro, pois conforme os artigos 54 e 55 do Código do menor de 1927: “Art. 54 - Os menores confiados a particulares, a institutos ou associações, ficam sob a vigilância do Estado (grifo meu), representado pela autoridade competente”. Art. 55 - A autoridade, a quem incumbir a assistencia e pprotecção aos menores, ordenará a apprehensão daqulles de que houver noticia, ou lhe forem presentes, como abandonados os depositará em logar conveniente, o providenciará sobre sua guarda, educação e vigilancia, podendo, conforme, a idade, instrucção, profissão, saude, abandono ou perversão do menor e a situação social, moral e economica dos paes ou tutor, ou pessoa encarregada de sua guarda, adoptar uma das seguintes decisões. a) entregal-o aos paes ou tutor ou pessoa encarregada de sua guarda, sem condição alguma ou sob as condições qe julgar uteis á saude, segurança e moralidade do menor;; b) entregal-o a pessoa idonea, ou internal-o em hospital, asylo, instituto de educação, officina escola de preservação ou de reforma; c) ordenar as medidas convenientes aos que necessitem de tratamento especial, por soffrerem de qualquer doença physica ou mental; d) decretar a suspensão ou a perda do patrio poder ou a destituição da tutela; e) regular de maneira differente das estabelecidas nos dispositivos deste artigo a situação do menor, si houver para isso motivo grave, e fôr do interesse do menor.293 Portanto, seu período de vigência (1927, reformulado em 1979, a 1990), o discurso da lei sobre o menor foi caracterizado pela maciça participação estatal dos 292 LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. São Paulo: Paz e Terra, 2003. 293 BRASIL. CÓDIGO DE MENORES DE 1927. Lei n° 17943 – A, de 12 de outubro de 1927. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/d17943a.htm. Acesso em: 11/03/2014.

“homens que detinham o poder da e sobre a palavra”, nos assuntos referentes a essa clientela, ou seja, os “homens tomam iniciativas, são impelidos a agir”. (ARENDT, 2004, pág. 198)294. Tais relações e ações pelo uso da lei “dos adultos sobre a minoridade”, ocasionaram a obtenção de um acordo o qual pregava o “Estado de atenção”, não somente às questões do menor pobre, mas a todos os atores que interagiam nos espaços públicos, onde o resultado disso construiu por décadas as condições de autoridade e poder sobre as questões da infância, sobretudo, pobre brasileira.

Conclusão A disciplina não pode se identificar como uma instituição nem como um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo (grifo meu), que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos. (FOUCAULT, 2008, p. 189)295 Posicionar-se analiticamente sobre as estruturas narrativas do Código do Menor, instituído ano de 1927, posto sobre a concepção da via activa arendtiana, a ação, historicisa dentro de um embasamento filosófico uma fonte documental dialógica e activa que “só foi possível na esfera pública” (ARENDT, 2001, pág. 193)296. Sem dúvidas, este escopo de leis, situa-se historicamente como um marco jurídico nas questões do trato a questão dos menores no Brasil, a partir do ano de 1927 na chamada Primeira República. No entanto, seu discurso paternalista estatal utilizou das Instituições e de seus agentes para disseminarem a “palavra de ordem” sobre “a população de menores”, considerados vulneráveis e perigosos para e nos espaços públicos das capitais brasileiras, em especial, os acometidos pela pobreza. Nas entrelinhas do Código do Menor de 1927, figuraram diante de seus objetivos jurídicos, sob a regulação da infância pobre brasileira, a verdade de comunicação e persuasão daqueles que o legislaram, ou seja, políticos e juristas 294 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução: Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. 295 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução Raquel Ramalhete. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. 296 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Tradução Celso Lafer. São Paulo: Editora Perspectiva, 5ª edição, 2001.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

16 3

intelectuais da tradicional República Velha. Pois, dentro de uma sociedade onde o poder de “letramento” era singular a elite, o Código serviu como um instrumento aplicativo de via única, ou seja, dentro dos interesses e compreensões daqueles que os formularam. Nessa totalidade, o menor abandonado, o delinqüente ou o enquadrado em determinada situação de risco, estiveram por décadas, amparados e vigiados por um aparato de leis repressivas, as quais os condicionaram a uma “condição humana” restrita em todos os espaços públicos das cidades brasileiras. Convém explicitar, que o tratamento regulado no Código do Menor a clientela estipulada em seus artigos: abandonados, delinquentes e em situações de risco, transgrediu durante anos uma tutela legal às vitimas acometidas por outros crimes como: sedução de menores, defloramento e espancamentos devido ao fato de que as massas, politicamente neutras e indiferentes, “podiam facilmente construir a maioria num país de governo democrático, e que, portanto, uma democracia podia funcionar de acordo com normas que, na verdade, eram aceitas por uma minoria” (ARENDT, 2004, pág. 362)297. Nesse contexto de aceitação por uma minoria, elitista e moldada por um patriarcalismo machista, crimes como o de sedução de menor, por exemplo, figurou por décadas no Brasil, sobre o “hábito discursivo” dos crimes de reflexos passionais do homem, sobrepondo-se a estrutura do trauma físico e psicológico da vítima, em sua maioria, do gênero feminino. Vítima esta, somente colocada em evidencia pela primeira vez na jurisdição da lei, no ano de 1941 com a promulgação do Código Penal Brasileiro, o qual regulamentou o crime de sedução como: [...] o ato de seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, com o fim de com ela manter conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança (Art. 217)298. No entanto, essa margem de idades especificou um dos valores de respeitabilidade moral e social preponderantes da cultura de poder do homem no 297 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução: Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. 298 BRASIL. CÓDIGO DE MENORES DE 1927. Lei n° 17943 – A, de 12 de outubro de 1927. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/d17943a.htm. Acesso em: 11/03/2014.

século XX, ou seja, a virgindade não maculada da “recém-formada mulher” e o consequente casamento ou a ilusão pela via discursiva do mesmo. O paradoxo das leis de proteção ao menor no contexto de construção do ambiente público e democrático brasileiro, confrontado sobre as teorizações filosóficas de Hannah Arendt, referenciadas na obra “A Condição Humana” publicada no ano 1948, desvela-nos um período em que a ação activa dos discursos elitistas sobre a massa menor pobre pelo recurso, muitas vezes autoritário e lacônico das leis, configurou as bases da autoridade estatal sobre as principais características do homem pertencente a uma sociedade de massa, ou seja, o isolamento, a falta de relações e consciências sociais e, de direitos jurídicos formulados para o bem estar de todos.

Formação do Partido dos Trabalhadores em Cuiabá (1979 - 1985)

Elói Felipe de Oliveira Thomas Mestrando em História Universidade Federal de Mato Grosso299 Resumo: Este artigo é resultado de uma dissertação de mestrado desenvolvida no programa de pós graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso. A pesquisa pretende analisar as relações sociais, políticas e culturais que permitiram o desenvolvimento do Partido dos Trabalhadores na capital mato-grossense, durante o período da redemocratização, que ocorreu de maneira diferente de outras regiões do país, se tornando um partido considerado de quadros, e não de massas. Palavras-Chave : Partidos Políticos, Partido dos Trabalhadores, Nova República

I. Introdução Este artigo pretende ser uma amostra de dissertação realizada no programa de pós graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, analisando os processos históricos que desembocaram na criação e desenvolvimento do Partido dos Trabalhadores na cidade de Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. A pesquisa 299 Pesquisa com apoio financeiro da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

16 5

ocorreu a partir do seguinte questionamento: porque o PT, neste recorte espacial, diferente do que ocorreu em vários centros urbanos, não conseguiu se tornar um partido de massas? A partir deste pergunta central, apareceram as demais: quais eram os grupos sociais que participaram da sua formação? Como esses grupos se organizavam dentro deste organismo? Quais eram as suas propostas políticas? O recorte temporal escolhido leva em consideração a lei do pluripartidarismo que ocorreu em 1979, e o surgimento das ideais da formação de um partido que organizasse politicamente a camada trabalhadora brasileira. O ano de 1985 como término desse recorte se justifica pelo começo da Nova República, e as primeiras eleições para a prefeitura depois do fim do regime militar. Dessa forma, começamos a desenvolver a pesquisa. Para analisarmos o objeto, devemos entender o contexto da formação do PT, tanto no aspecto macro quanto no micro, ou seja, o contexto do final da ditadura militar e a expansão urbana, principalmente nas regiões interioranas do país. Utilizamos também conceitos desenvolvidos pela ciência política, devido à maioria dos estudiosos que se debruçaram sobre o tema terem origem nessa área, e portanto, a pesquisa tem um diálogo com a História e a Ciência Política, retomando também os estudos referentes à área da História Política. Segundo Remond: De fato, a renovação da história política foi grandemente estimulada pelo contato com outras ciências sociais e pelas trocas com outras disciplinas. É uma verdade geral a utilidade, para todo ramo do saber, de abrir-se a outros e acolher contribuições externas, mas o objeto da história política, sendo por sua natureza interdisciplinar, torna isso uma necessidade mais imperativa que em outros casos. É impossível para a história política praticar o isolamento: ciênciaencruzilhada, a pluridisciplinaridade é para ela como o ar que ela precisa para respirar.(REMOND,2003. p.28)300 Portanto, para compreendermos o nosso objeto de pesquisa, devemos nos relacionar com as demais disciplinas. Para compreender porque o PT não se tornou um partido de bases em Cuiabá, levamos em consideração as elites políticas existentes, o contexto político nacional e local, a base social em que o partido estava inserido. Para analisarmos essas questões, utilizamos dos conceitos de elite, classe social, partido, desenvolvidos nas áreas de sociologia e ciência política. 300 REMOND, René. Introdução. In. _____. (org.) Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 29.

Desta forma, iremos analisar a configuração social e a construção do PT no recorte espacial em questão, ou seja, o processo de formação. Para tanto, iremos fazer um apanhado dos estudos referentes ao nosso objeto de pesquisa. O tema na historiografia é vasto, devido a diversos fatores, como a novidade política do PT, ser o primeiro partido criado de baixo para cima no Brasil, sem uma interferência da burguesia, e enxergar o socialismo como um sistema político concreto no país. Martinez(2007) divide o PT em três fases: o “partido contra a ordem”, na década de 1980, o “partido dentro da ordem”, na década de 1990, quando adentra as prefeituras e aumenta o seu número de parlamentares, e o “partido da ordem”, a partir de 2002, quando conquista o governo federal. Iremos analisar a primeira fase, assim conceituada: Uma periodização inicial pode na compreensão desses aspectos. Vistas nos dias de hoje, a orientação majoritária e a trajetória do PT poderiam ser vislumbradas em três grandes momentos. O primeiro, encerrado entre 1980 e 1990, corresponde ao irrompimento político na arena política nacional e internacional, marcada pela oposição à ditadura militar e ao projeto político de sobrevivência institucional desta. O plano de promover uma transição ‘lenta, gradual e segura’ para a democracia, que fora concebido no seio do regime militar, visava institucionalizar práticas de poder e de governo instauradas a partir de 1964. Podemos dizer que essa foi a fase em que a atuação política do PT esteve voltada contra a ordem estabelecida no país, ainda que o partido tenha recorrido aos canais institucionais em vigor como forma de crítica e de negação política, participando de todas as eleições realizadas e da Assembléia Constituinte e exercendo a administração municipal em diferentes regiões do Brasil.301

Podemos perceber neste trecho o PT como um partido antissistema, ou seja, que crítica o capitalismo, e a ditadura militar, se propondo a construir um novo governo, com uma perspectiva socialista. Destacamos também o crescimento eleitoral do partido em regiões em que havia um certo grau de desenvolvimento do capitalismo, como explica César (2002): Pode-se afirmar, portanto, que o PT surgiu e cresceu contrariando as análises que o apontam como evidência de anacronismo e atraso, nas regiões economicamente mais desenvolvidas do Brasil, de estrutura social mais complexa, onde a qualidade de vida e a cidadania atingiram seus patamares mais elevados, ou, então, naquelas regiões que, não tendo atingido níveis elevados de desenvolvimento, sofreram, entretanto, os impactos da modernização. Na verdade, foi a transformação do padrão de desenvolvimento do país, tornando-se mais 301 MARTINEZ, Paulo Henrique. O Partido dos Trabalhadores e a conquista do Estado. In: REIS, D. A. RIDENTI, M. (org.) História do marxismo no Brasil, v. 06, Campinas-SP: ed. Unicamp: 2007, p. 240.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

16 7

consentâneo ao das nações de capitalismo avançado, que ofereceu as condições para o nascimento e o crescimento do PT. 302

Dessa forma, o partido é entendido como consequência da modernidade social, ou seja, consegue um certo nível de desenvolvimento em locais em que houve um avanço capitalista, trazendo complexidades políticas e sociais. Eram locais em que o nível de cidadania conseguiu atingir um nível de avanço social, fazendo-se necessária a organização política. Devemos entender que o estado de Mato Grosso, durante a década de 1970, estava passando por transformações sociais, devido a dois principais fatores: a migração da população do campo para a cidade, no entorno da capital mato-grossense, e a migração ocorrida para ocupar a região amazônica. A ocupação da Amazônia foi uma política desenvolvida pelo regime militar através de interesses comerciais existentes de expansão da fronteira agrícola. Vieram para Mato Grosso correntes migratórias de diversas regiões do país, principalmente da região Sul, Sudeste e Nordeste, trazendo consequências para a cidade de Cuiabá, se tornando um tema de várias pesquisas desenvolvidas na Universidade Federal de Mato Grosso. Entre estes pesquisadores, destacamos Barrozo (2008), que explica esse processo: Havia por parte dos militares uma preocupação de ordem estratégica na extensa fronteira da Amazônia com os países vizinhos e territórios coloniais (Guianas). Até o final da década de 1960 e início da década de 1970, a economia da Amazônia continuava a ser predominantemente extrativista, razão pelo qual precisava ser transformada. Entre os objetivos do plano para ocupar a região, podem ser explicitados: a formação de grupos populacionais estáveis, tendentes a um processo de auto-sustentação; a adoção de uma política imigratória para a região, com aproveitamento de excedentes populacionais internos e contingentes externos selecionados; a fixação de populações regionais, especialmente no que concerne às zonas de fronteira; a adoção de políticas de estímulos fiscais e de crédito. 303

Desta forma, a política do regime militar de ocupação amazônica tinha objetivos de ocupar uma região de baixa densidade populacional, dando incentivos fiscais às 302 CÉSAR, Benedito Tadeu. PT : a contemporaneidade possível – base social e projeto político (1980-1991) Porto Alegre: ed. UFRGS, 2002, p. 246.

303 BARROZO, João Carlos. Políticas de colonização: as políticas públicas para a Amazônia e o Centro-Oeste. In. _____ (org.) Mato Grosso: do sonho à utopia da terra. Cuiabá: EDUFMT, 2008, p. 20.

empresas privadas através dos bancos públicos. As empresas ocupavam a região, e o governo entrava com a infraestrutura para viabilizar os projetos privados. Essas empresas utilizavam da força de trabalho local, e dos migrantes que chegavam. Joanoni Neto (2007), assim destaca a situação de Cuiabá durante esse período estudado: A Capital Cuiabá também sofreu os efeitos do processo migratório. Muitos migrantes por não terem condições de seguir viagem, ou por terem se decepcionado com as áreas de fronteira, fixaram-se naquela capital. [...] Cuiabá recebeu boa parte desse refluxo e os resultados disso podem ser vistos na quantidade de ocupações irregulares que cresceu assustadoramente nos anos de 1970, 1980 e 1990. Os ‘grilos’, como são popularmente conhecidos na cidade, já regularizados pelo poder público por força do fato consumado e transformados em bairros. A evolução do número de habitantes mostra bem o fato ocorrido. As consequências desse crescimento desmedido foram e ainda estão sendo estudadas em seus mais diferentes aspectos. É consenso que a causa predominante de tal crescimento urbano seja a política dos governos Estadual e Federal, que estimulou a migração para o Mato Grosso, segundo vários estudiosos.304

Neste trecho podemos perceber o crescimento dos bairros periféricos da cidade, sendo consequência da política migratória desenvolvida pelo regime militar. Os grupos ocupavam os lotes vazios, e ali formavam moradia, originando os chamados “grilos”, que eram ocupações urbanas irregulares. Com o crescimento populacional dessas ocupações, elas acabavam se tornando regularizadas pelo Estado. Porém, eram nesses locais que o Partido dos Trabalhadores conseguiu maior inserção e número de militantes. Para desenvolver a pesquisa, foram utilizadas fontes jornalísticas e orais. A primeira é entendida como um documento que é produzido não de forma isolada, mas dentro de grupos sociais, podendo estar ligados à interesses partidários ou econômicos, portanto, tentamos extrair o suficiente das notícias para tentar entender o objeto de pesquisa. As fontes orais foram entendidas como documentos-monumentos 305, ou seja, são fontes que possuem uma intencionalidade, de preservarem as suas memórias. Os entrevistados poderiam ser pessoas que militaram no partido no período estudado, ou 304 JOANONI NETO, Vitale. Fronteiras da crença. Ocupação do norte de Mato Grosso após 1970. Cuiabá: EDUFMT, 2007, p.104. 305 ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: História dos, nos e por meio dos periódicos. PINSKY, Carla Bessanezi. (Org.) Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2010.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

16 9

de outras gerações, ou que estavam em outros partidos, mas que estavam acompanhando o desenvolvimento do PT. Utilizamos também o conceito de classe social desenvolvido por Edward Thompson : Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matériaprima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas (THOMPSON, 2011. p.910).306

Para o historiador, classe social é construído historicamente, através de processos, e não é algo que estava pronto num determinado momento. A classe trabalhadora é resultado de diversos acontecimentos ocorridos na história, que se parecem desconectados, mas que são resultados de um mesmo fenômeno, de determinadas determinantes históricas e sociais, que no fim, originam uma consciência de classe. Para se falar desta consciência de classe, devemos utilizar um termo criado por Thompson , o conceito de “experiência”: O que descobrimos (em minha opinião), está num termo que faltava: ‘experiência humana’. [...] Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo – não como sujeitos autônomos, ‘indivíduos livres’, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ experiência em sua consciência e sua cultura (as duas expressões excluídas pela prática teórica) das mais complexas maneiras (sim, ‘relativamente autônomas’) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem por sua vez sobre sua situação determinada. (THOMPSON,2009,225-6)307

Desta forma, Thompson coloca o sujeito na teoria marxista, através do termo experiência. Neste termo, devemos levar em consideração as relações culturais e sociais existentes. Para o autor, existe uma base social, que são os determinantes materiais existentes numa determinada sociedade, as relações de produção, que irão influir nos indivíduos, este momento ele denomina de ser social. Estas determinantes são tratadas ao longo do tempo pelos indivíduos, percebendo nessas relações materiais as necessidades e os interesses que estão em antagonismo com outros grupos sociais, 306 THOMPSON, Edward P. Formação da classe operária inglesa, 1: a árvore da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 09-10. 307 THOMPSON, E. P. Miséria da teoria ou um planetário de erros. 2009, p. 225-226.

e desta forma estas experiências são tratadas dentro de práticas culturais, sociais, até emocionais, e estes grupos acabam se identificando enquanto classe social. Portanto, classe é uma construção histórica, e ocorre quando os diferentes grupos sociais se identificam enquanto classe trabalhadora em contraposição a chamada classe dominante. Portanto, podemos entender que as correntes migratórias, a expulsão da população do campo para a cidade, trouxeram novas relações culturais e sociais em Cuiabá. Começou a existir uma massa populacional que não estava assistida pelo Estado, e essa população reivindicava serviços básicos, como saneamento básico, escola, creche, e desta forma ocorriam os enfrentamentos com o Estado. Esses enfrentamentos ocorriam através de protestos que esses grupos organizavam, e reprimidos pelo aparato repressor do Estado. Através dessas movimentações, a Igreja, representada na Paróquia do Rosário, aparecia como uma das forças que atuavam na organização dessa população. Este foi um local importante para o PT cuiabano, devido a ser o espaço utilizado para a formação dos primeiros militantes para o partido. Importante também destacar o papel da Igreja durante a redemocratização política do país. Na década de 1960, ela esteve relacionada com a Teologia da Libertação, principalmente nos locais periféricos, mas nos principais centros urbanos a Igreja se mantinha conservadora. Durante a década de 1970, a Igreja fez um movimento em direção ao centro, defendendo posições favoráveis aos direitos humanos, contra a tortura. Em Cuiabá, essa Igreja organizava trabalhos na periferia, voltadas para a emancipação política e espiritual, tendo um discurso mais humanitário. Portanto, a relação da paróquia com o PT era marcada por rusgas, devido ao partido ter uma outra proposta política, mais voltada para o campo material, ou seja, a mudança deveria ocorrer de maneira organizada em partido, podendo utilizar dos instrumentos institucionais quando fosse necessário. Outros locais em que o partido conseguiu ter uma inserção foi no meio acadêmico. O movimento estudantil deu importantes contribuições para a estruturação do partido na cidade, tendo como uma ilustração dessa importância, a primeira sede do PT ter sido em uma república de estudantes. Esse setor trazia militantes que contribuíam nas discussões e na prática política através dos trabalhos de base na periferia.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

17 1

Devemos analisar um dos instrumentos políticos que eram organizados pelo partido, os chamados núcleos de base. Estes núcleos garantiam a democracia interna do partido, ou seja, as decisões deveriam ser tomadas através de suas consultas, e nesses locais se realizavam o trabalho de politização das discussões com a população. Em Cuiabá, esses núcleos eram organizados nos bairros periféricos. Porém, os trabalhos de nucleação esbarravam em problemas do chamado “senso comum”, utilizando aqui um termo de Gramsci, que a entendia presente na superestrutura social, desenvolvida através de grupos dominantes, se tornando pensamentos dominantes. Esses problemas eram a identificação do PT com o comunismo e os seus preconceitos característicos, como a divisão dos bens com a população. Dessa forma, o partido começa principalmente

de

bairros

periféricos,

com poucos movimento

militantes, oriundos

estudantil,

docente,

e

posteriormente entraria no movimento sindical, principalmente com a criação da CUT (Central Única dos Trabalhadores) que facilitaria nos trabalhos de sindicalismo. E devido ao seu número de militantes ser pequeno, os recursos financeiros também eram escassos, não possibilitando uma maior estruturação do partido. A entrada do PT nos pleitos eleitorais eram caracterizados pelas chapas sem coligações com demais partidos, na primeira metade da década de 1980, devido a acreditarem que as demais organizações tinham ligações com a burguesia e os militares, portanto não representavam os interesses dos trabalhadores. Outra característica era o caráter educativo das campanhas, ou seja, os militantes não tinham perspectiva de vitória, e portanto, a função era denunciar à população as causas da situação social e econômica em que elas se encontravam. Porém, nas eleições, o PT não conseguia eleger os seus candidatos. Portanto, tentamos responder ao questionamento da pesquisa, porque o PT não conseguiu se tornar um partido de massas em Cuiabá? A tentativa da resposta foi pensada a partir do conceito de classe social de Edward Thompson, ou seja, não existia um sentimento de pertencimento à uma classe, de caráter transformador, contra outra classe que está contra os seus interesses. O que existia naquele momento eram grupos sociais que tinham alguma consciência política, desenvolvida através dos enfrentamentos com o Estado, e que mantinham contato com outros grupos sociais que ajudavam na dinamização dessa consciência política, mas que não se expandia

para outros grupos. Era uma cidade que tinha uma elite política voltada para a economia agrária, e que diferente de outras regiões em que ocorreu uma entrada significativa do partido na população, em que essa população se identificava com o discurso de mudança social, e que havia uma certa modernização econômica, em Cuiabá essa identificação não ocorreu de maneira mais intensificada. Porém, entendemos que essa nova forma de fazer política, baseada na defesa e conquista de direitos, ainda estava em formação.

Sucupiragate: a alegorização da realidade na telenovela “O Bem-Amado” Emilla Grizende Garcia308 Mestranda no Programa de Pós-graduação em História Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus Assis Resumo: Tendo em vista que a análise da programação televisiva permite a compreensão histórica de aspectos sócio-políticos de uma dada sociedade, em um determinado período, pretendemos investigar neste trabalho as imagens e representações encetadas pela telenovela “O Bem-Amado”, de Dias Gomes, referentes ao caso Watergate. Ao realizar um paralelo em “O Bem-Amado” com um dos maiores escândalos da história política dos Estados Unidos, Dias Gomes buscou, através de uma abordagem crítica e cômica, tratar elementos subjacentes à sociedade e política brasileira nos anos iniciais da década de 1970. Palavras-Chave : Televisão, Telenovelas, O Bem Amado, Dias Gomes Introdução A compreensão da televisão, a partir do referencial teórico do historiador, possibilita a abertura de novas perspectivas de análise uma vez que a TV é o meio comunicacional mais representativo do período contemporâneo. Ao dotar de historicidade os produtos televisivos, encontramos subsídios que possibilitam a abertura de perspectivas para a compreensão histórica de comportamentos, valores, identidades, ideologias e representações lançadas sobre a estrutura e a dinâmica social, política e cultural de uma dada sociedade, em um determinado período. 3081 A pesquisa que resultou neste artigo, conta com financiamento da CAPES.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

17 3

Conforme pondera Áureo Busetto, a análise dos produtos televisivos a partir da dimensão histórica possibilitaria aos pesquisadores contemplarem “aspectos específicos da vida social e cultural dos últimos 50 anos, ambas amplamente tocadas pela TV, além das relações do meio com demais formas e linguagens da produção cultural” 309. Na prática historiográfica contemporânea todas as fontes, sejam elas escritas ou audiovisuais, contém a parcialidade e a intencionalidade. A análise histórica dos produtos audiovisuais, como a telenovela, segue as mesmas premissas do documento escrito com relação à objetividade, visto que nenhum documento fala por si mesmo. As fontes audiovisuais são, como as demais, evidências de um processo ou evento ocorrido e contêm representações socialmente constituídas que podem ser interpretadas a partir de múltiplas variáveis310. Sob este ângulo, a imagem não representa diretamente a realidade, sendo uma construção dotada de um sentido próprio que seleciona eventos e personagens a serem lembrados ou esquecidos. Segundo Cássia Palha, o historiador ao investigar o texto audiovisual, como de uma ficção seriada, depara-se com: uma linguagem de alta complexidade marcada pela integração de sons e imagens, pelo jogo de interesses da ação e da omissão em ângulos de câmera, construção de cenários, iluminação, planos e montagens, pela fragmentação de informações em detrimento do todo, pelo deslocamento do sensacionalismo, pela diversidade e mistura de códigos e gêneros, pela apropriação de outras textualidades midiáticas e pela pedagogia da repetição de todos esses elementos, reconstruindo-os constantemente através de uma banalização que tende a fundir realidade com ficção.(PALHA, 2008, p.27)311 Esta complexa hibridização torna muito tênue os limites precisos entre a ficção e a realidade, uma vez que em uma obra ficcional pode incorporar elementos inerentes à realidade do momento de sua produção. Rompendo com a estrutura extremamente melodramática, as telenovelas produzidas na década de 1970, dirigiram a câmara para um ambiente brasileiro renovando a linguagem televisiva ao introduzir 309 BUSETTO, Áureo. Vale a pena ver de novo: organização e acesso a arquivos televisivos na França, GrãBretanha e no Brasil. História: São Paulo, v.33, n.2, p. 380-407, jul./dez. 2014, p. 384.

310 NAPOLITANO, Marcos. Fontes audiovisuais: a história depois do papel. In: PINSKY, Carla. Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2011, p. 239-240.

311 PALHA, Cássia R. Louro. A Rede Globo e o seu Repórter: imagens políticas de Teodorico a Cardoso. Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2008, p. 27.

gravações externas, diálogos coloquiais, trilha sonora nacional, protagonistas antiheróis, em um cenário contemporâneo. O folhetim eletrônico que abriu precedentes para produções mais ousadas e profissionalizadas foi “Beto Rockfeller” 312 que manteve uma sintonia com a movimentação sociopolítica do ano de 1968. Veiculadas em tempo real, as telenovelas realistas são formatadas visando construir para o telespectador uma representação conhecida e reconhecida da existência. Ao reproduzir o mundo em que esse telespectador vive, a telenovela passa a ser um espaço que integra o drama e o risível, o real e o ficcional. O historiador ao analisar a narrativa audiovisual contida em uma ficção televisiva, tem um registro de memória, pois neles estão contidos enunciados ideológicos, representações e práticas sociais nas quais os personagens podem ser entendidos como uma alegoria de seu próprio tempo 313.

Segundo Busetto, para um

estudo histórico da telenovela deve-se partir de uma perspectiva relacional, considerando a estrutura - econômica, política, social e cultural - na qual a obra está inserida, articulando-as em função do tempo e espaço 314. Trata-se de desvendar os projetos ideológicos com os quais a obra dialoga e estabelece contato, considerando sua singularidade dentro de seu contexto histórico-social. Neste sentido, busca-se por meio deste trabalho, investigar as imagens e representações encetadas pela telenovela “O Bem-Amado”, de Dias Gomes, que fazem referência a acontecimentos inerentes ao contexto sócio-político do período de sua exibição. Especificadamente, será analisado como Dias Gomes traçou, dentro 312 HAMBURGUER, Esther. Beto Rockefeller, a motocicleta e o Engov. In:

Revista Significação, nº 41, São Paulo, 2014, p. 17. “Beto Rockfeller”, de Braúlio Pedroso, foi exibida entre 04 de novembro de 1968 a 28 de novembro de 1969, na Tupi de São Paulo e na TV Rio. Esta telenovela consolidou a posição dos autores brasileiros, que afirmaram sua autonomia frente a roteiros estrangeiros, distantes da realidade nacional. Ao inserir no interior da trama fatos, acontecimentos retirados de jornais e revistas da época, Bráulio Pedroso buscou trazer o cotidiano para o vídeo, o que significava, segundo as palavras do autor, “escrever uma novela com uma proposta realista”. BORELLI, Silvia Helena Simões; ORTIZ, Renato; RAMOS, José Mário Ortiz. Telenovela: história e produção. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 78.

313 Utilizamos como referencial teórico os conceitos de apropriação e de representação formulados por Roger Chartier. O historiador francês entende por “apropriação” a prática de produção de sentido para o discurso, uma história social das interpretações, que se formata a partir das relações estabelecidas entre texto, impressão e leitura (CHARTIER, 1990, p. 26). O conceito de representação concebido por Chartier pode ser definido como um “instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através de sua substituição por uma “imagem” capaz de o reconstituírem memória e de figurá-lo tal como ele é”. Cf. CHATIER, Roger. História cultural: entre práticas e representações. Petrópolis: Vozes, 1994. Entendemos alegorização como uma constante, no processo de representação. Cf. BURKE, Peter. Historia como alegoria. Estudos Históricos, vol. 9. São Paulo, 1995. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141995000300016. Acesso em 15/09/201.

314

BUSETTO, Áureo. Ensino sobre a TV: preâmbulo de uma pesquisa. In: PINHO, Sheila Z.; SAGLIETTI, José R. C. (Org.). Núcleos de Ensino. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 166.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

17 5

dessa narrativa ficcional, paralelos ao caso Watergate. Utilizando-se de um viés crítico e cômico, Dias Gomes fez referências ao escândalo Watergate transpondo-o para a realidade ficcional presente na trama de “O Bem-Amado” que, por sua vez, continha representações críticas subjacentes à sociedade e política brasileira dos anos iniciais da década de 1970. A construção narrativa presente neste folhetim eletrônico deriva diretamente do arcabouço ideológico do autor, bem como da realidade a qual estava submetido: Dias Gomes, intelectual e escritor comunista, que tinha sua produção veiculada na Rede Globo de TV, no período mais repressivo da ditadura, o do governo Médici. Dias Gomes: alegoria e realidade em “O Bem-Amado” As telenovelas de Dias Gomes são conduzidas pela apropriação de fatos inerentes ao contexto sociopolítico ao qual foram produzidas suas obras. Focalizando a realidade nacional através de situações cotidianas, Dias Gomes buscou representar “elementos do absurdo dentro da realidade, com uma dose muito grande de cultura popular”315. Na televisão, assim como no teatro, Dias Gomes fez constantes referências a fatos reais, explorando o painel da realidade brasileira possibilitando a nacionalização das temáticas e da linguagem televisiva. O teledramaturgo detinha uma preocupação constante em imprimir à sua produção cultural um tom de crítica política e sátira social, desenvolvendo uma linguagem especial, cuja sutileza possibilitasse driblar a censura e, ao mesmo tempo, representar criticamente a realidade. Nesse sentido, pode-se notar que suas obras são regadas com comédia de costumes, realismo crítico podendo ser mesclado com o realismo fantástico, com o épico brechtiano e até mesmo, com o melodrama316. Ao longo do tempo, Dias Gomes foi condensando, capital específico como intelectual comunista ou, mais amplamente, como artista de esquerda identificado com a discussão nacional-popular, que concebia a cultura popular como um elemento de transformação socioeconômica. Em suas obras, concebidas tanto para o teatro 315 GOMES, Dias. Nota do autor.

In: MERCADO, Antônio (Org.). Coleção Dias Gomes: os falsos mitos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 563.

316

SACRAMENTO, Igor. Nos tempos de Dias Gomes: a trajetória de um intelectual comunista nas tramas comunicacionais. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2012, p. 463.

quanto para a televisão, estão presentes questões amplamente discutidas entre as décadas de 1960 e 1970, derivadas do processo de modernização, como a contraposição entre aspectos que representam o moderno e o tradicional, entre o urbano e o rural. Mudanças comportamentais como o divórcio e a emancipação feminina, o preconceito racial, choque entre gerações, também foram abordadas por Dias Gomes.

O coronelismo, aspectos inerentes à cultura popular nordestina,

juntamente com representações do candomblé são elementos que perpassam recorrentemente a obra do teledramaturgo. Entre as principais obras Dias Gomes para a televisão está à telenovela “O Bem-Amado”, que foi veiculada no ano de 1973, às 22 horas, pela emissora Rede Globo. “O Bem-Amado” faz parte do conjunto de criações do teledramaturgo, que eram inspiradas em pequenos fatos da vida cotidiana alcançando a conjuntura sociopolítica vigente. Segundo consta na autobiografia de Dias Gomes, o argumento que originou a peça era quase anedótico e se fundamentou em um fato verídico, contado por Nestor de Holanda, ocorrido em uma pequena cidade do interior do Espírito Santo317. Esta cidadezinha não possuía um cemitério e uma das plataformas eleitorais propostas por um dos candidatos era a construção de um “campo santo”. Tendo a percepção que esta crônica poderia ser desdobrada em uma sátira política, Dias Gomes desenvolve a estória, criando o personagem principal, baseado em um de seus desafetos – Carlos Lacerda. Diferentemente das demais produções do gênero melodramático, “O Bem-Amado” não seguiu os códigos clássicos de realismo representavam da realidade cotidiana. A narrativa que tece a trama desta telenovela é marcada por referências a fatos reais, possíveis de serem identificados pelos telespectadores. Segundo José Dias318: Dias Gomes continuava, no seu faro jornalístico: antes de escrever, se dedicava à pesquisa de fatos e, para isto, contava com a colaboração da pesquisadora Marília Garcia. Aprofundava o conhecimento da realidade, buscando seu significado, suas relações determinantes, transformando o material bruto da pesquisa em ficção de nível, que recebia, além do mais, como acabamento, pinceladas de humor, arrematando o ridículo. Com isso O Bem Amado foi se firmando cada vez mais na televisão brasileira (DIAS, 2009. p. 101). 317 GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 187.

318

DIAS, José. Odorico Paraguaçu, o bem-amado de Dias Gomes: história de um personagem larapista e maquiavelento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009, p. 101.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

17 7

Como bem observado por José Dias, Dias Gomes era um autor que detinha a sutileza de misturar ingredientes extraídos da realidade com outras formas dramatúrgicas como a sátira, o cômico e o fantástico, garantindo na sua ficção uma maior profundidade. A trama “O Bem-Amado”, é regida pelas estratégias de um político populista – Odorico Paraguaçu (papel representado por Paulo Gracindo), que fez do cemitério a bandeira de sua eleição. A cidadezinha de Sucupira, no litoral baiano, tem belas praias, boa pesca e uma próspera indústria de azeite-de-dendê, mas não tem cemitério onde enterrar seus mortos. O que talvez não fosse um problema grave — e todos continuassem a levar os defuntos para descerem à terra 3 léguas adiante —, se as eleições não estivessem próximas e se Odorico Paraguaçu, "coronel" de seus cinqüenta anos, formado em direito e perito em citações de Castro Alves e Rui Barbosa, não fosse candidato a prefeito.319 Com o slogan “Vote em um homem sério e ganhe um cemitério”, Odorico foi eleito e cumpriu sua promessa de campanha, construindo um cemitério em Sucupira. Entretanto, a obra prioritária do seu governo não pôde ser inaugurada devido à falta de um defunto para a solenidade. Equilibrando-se entre o ódio dos Medrado e a irrestrita simpatia das três solteironas Cajazeiras, famílias dominantes e politicamente rivais, Odorico utiliza-se de sua influência socioeconômica para conquistar a qualquer custo, o seu objetivo principal: a inauguração do cemitério. Contudo, como não conta com nenhum defunto para esta solenidade, o prefeito desencadeia uma série de estratagemas e ações políticas visando solucionar esta “problemática defuntícia”. E é a partir das ações de Odorico que o autor construiu o eixo condutor de toda a trama. Além dos Medrados, o prefeito tem como inimigos políticos declarados, o protético Lulu Gouvêia, o médico Juarez Leão (Jardel Filho) e Neco Pedreira (Carlos Eduardo Dollabela), escritor frustrado e único jornalista do semanário de Sucupira, "A Trombeta". Estes personagens buscavam minar os planos e artimanhas arquitetadas por Odorico em sua busca incessante por um defunto. Assim, o enredo se desenvolve tendo como desfecho a morte do prefeito, considerado o “bem amado do povo”. O Caso Sucupirgate As referências à realidade concreta, em “O Bem-Amado”, não se deram somente no argumento que originara a estória e em aspectos inspirados na vida 319 Cf. Revista Veja, 31/01/1973, p. 80.

cotidiana brasileira, revelados em costumes, diálogos e comportamentos dos personagens. De acordo com Igor Sacramento, Dias Gomes foi hábil em relacionar seu trabalho ficcional a fatos históricos a ele contemporâneos320. Como todo mundo já ouviu falar de Watergate, Dias Gomes, mais uma vez, canalizou para a sua fábrica de imagens uma cena consagrada pela realidade. É sempre bom fornecer ao telespectador um ponto de referência que ele seja capaz de identificar. Não importa de onde tenha sido extraído. Basta que seja conhecido. (SACRAMENTO, 2012, p. 311)321

Expandindo as fronteiras para além da realidade nacional, Dias Gomes buscou estabelecer paralelos ao maior escândalo político ocorrido nos Estados Unidos – o caso Watergate. Embora a telenovela “O Bem-Amado” fosse uma adaptação da peça “Odorico, O Bem-Amado e os mistérios do amor e da morte”, escrita em 1962, Dias Gomes não desdobrou o texto original, exibido nos palcos, da mesma maneira que nas telas da TV. Vale ressaltar que, para a elaboração desta telenovela (com duração de 178 capítulos) o texto representado no teatro (cujo espetáculo teria duração média de 150 minutos), teve que ser consideravelmente ampliado, incorporando novas temáticas, personagens, a fim de criar subtramas. Para tanto, Dias Gomes utilizou-se de representações de acontecimentos contemporâneos à exibição da trama, que pudessem ser facilmente identificados e apropriados pelos telespectadores, como ao caso Watergate. O escândalo Watergate, aconteceu em pleno contexto da Guerra Fria, entre os anos de 1972 a 1974, no governo de Richard Nixon. O presidente Nixon foi alvo de uma série de investigações que escrutinaram a corrupção e operações ilegais presentes em seu governo. No dia 17 de julho de 1972, em plena campanha eleitoral para a presidência dos EUA, alguns funcionários do Partido Republicano, foram surpreendidos tentando instalar um sistema de escuta clandestino na sede do comitê nacional do partido democrata norte-americano, localizado no edifício Watergate 322. Todavia, mesmo com evidências ligando o episódio ao comitê de Nixon, o presidente foi reeleito com ampla margem de votos. 320 SACRAMENTO, 2012, op. cit., p. 311.

321 Cf. Jornal do Brasil, 25/09/1973, p. 02.

322Disponível em: http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,as-manobras-de-nixon-no-caso-watergateimp,1067503. Acesso em: 15/09/ 2015.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

17 9

O escândalo veio à tona por intermédio do trabalho de dois jornalistas do Washington Post, Bob Woorward e Carl Bernstein que investigaram o ocorrido e descobriram que os assessores do presidente conduziram o esquema de espionagem política a fim de favorecer sua reeleição. Em reportagem publicada na revista Veja – edição 228, de 1973, Nixon além de ser pressionado pelo Congresso norte americano para que fosse encerrada a Guerra do Vietnã, encontrou problemas na condução da política interna: No entanto, em um paradoxo, não todo estranho a sua carreira Nixon enfrenta uma das maiores crises de seu governo, hostilizado pelo Congresso e pela imprensa de seu país, e levado ao banco dos réus pelo clamor da opinião pública mundial. Sobretudo, o sexagenário Richard Nixon está só, vitima de seu próprio estilo, caracterizados pela concentração de poder e o hábito de decisões a portas fechadas, em silêncio e em segredo.323 Pressionado pela política externa e interna, Nixon negou o envolvimento ao caso Watergate. No entanto as investigações conduzidas pelo jornal The Washington Post e a divulgação das gravações das conversas telefônicas, contribuíram para provar que o presidente estava a par das ações de espionagem. Com a pressão da imprensa e da população, em maio de 1973, foi criada uma comissão no Senado para investigar o caso oficialmente. A investigação teve acesso às fitas gravadas e identificou que Nixon sabia das operações ilegais. Além das gravações, declarações aventadas pelos interrogatórios dos funcionários ligados ao presidente revelaram que, desde 1970, Nixon havia determinado às agências de inteligência que espionassem seus adversários políticos em busca de alguma informação proveitosa. A procura por tais informações se deu através do assalto de correspondências, pela invasão de casas e escritórios e outras ações escusas. Os depoimentos dos envolvidos também revelaram que os crimes cometidos na Casa Branca não se limitaram somente ao caso de Watergate, pois incluíam sabotagem política, pagamentos a entidades públicas e espionagem. Com uma grave crise política instalada, o Congresso Nacional decidiu, em 1974, dar início ao processo de impeachment. Entretanto, em 08 de agosto do mesmo ano, pouco antes da votação do Congresso pela cassação de seu mandato, Nixon renuncia ao cargo de presidente dos Estados Unidos. A rede de espionagem e subornos evidenciada pelo caso Watergate assegurou que, a cada escândalo político ocorrido no período, fossem acrescentadas o sufixo “323 Cf. Revista Veja, 17/01/1973, p. 32.

gate”. Transpondo para sua narrativa ficcional, elementos que representam o incidente Watergate, Dias Gomes cria, com boas pinceladas de bom humor e crítica, o caso “Sucupiragate”. Na trama de “O Bem-Amado” o caso inicia-se assim... Odorico instiga um conflito armado entre as duas famílias que desde o período oligárquico disputavam o poder político em Sucupira, os Medrados e os Cajazeiras. Nesse conflito, para o contentamento do prefeito, há uma vítima fatal – Demerval (Nannai), o barbeiro. Acreditando que poderia enfim inaugurar a grande obra de seu governo, Odorico é surpreendido com o rapto do defunto. A fim de descobrir quem realizou o sequestro do morto o prefeito percebe que a única maneira ter acesso a essa informação seria através das confissões realizadas na Igreja. Dias Gomes formula então o gancho necessário para realizar o paralelo com caso Watergate. Odorico Paraguaçu percebe, então, que a única forma de saber quem efetivou o rapto do defunto seria através da confissão. A primeira ação de Odorico foi tentar convencer o Vigário (Rogério Fróes) que revelasse os segredos do confessionário 324. Sem sucesso, e determinado a seguir com seu plano, Odorico convence Dirceu Borboleta (Emiliano Queirós) a instalar um sistema de escuta no confessionário. “Talqualmente” à Nixon, Odorico organiza com Dirceu Borboleta o “apretrechamento espionista” com intuito de descobrir os segredos de seus inimigos políticos. Com a armação, além de ter acesso às histórias picantes e tragicômicas dos moradores, Odorico descobre que seus inimigos políticos – Emiliano Medrado e Lulu Gouveia sequestraram o defunto de seu próprio velório, a fim de enfraquecê-lo politicamente. Porém, um problema técnico no microfone instalado na Igreja impede que Odorico ouça a informação do local onde o corpo foi enterrado 325. Assim, o prefeito com a ajuda de seu secretário, prossegue com a escuta e gravações das confissões dos moradores de Sucupira. Dias Gomes elabora a correlação ao assalto ao prédio Watergate seguindo o desencadeamento histórico dos acontecimentos. No mês de junho de 1972, cinco homens são surpreendidos tentando instalar aparelhos de escuta no comitê nacional do Partido Democrata, localizado no prédio Watergate, em Washington. No universo ficcional de “O Bem-Amado”, o Vigário 324 GLOBO MARCAS. O Bem-Amado, 2012, 10 DVDs (2160 min). Cena disponível no DVD 08, em 01:21:55 segundos.

325 Ibidem. Cena disponível no DVD 08, em 01:24:45 segundos.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

18 1

descobre os microfones instalados no confessionário e, juntamente com o Cabo Ananias (Augusto Olímpio), invade a casa onde estava estabelecido todo aparato de escuta. Lá, surpreendem Dirceu Borboleta, que busca ouvir a confissão de sua mulher – Dulcineia Cajazeira (Dorinha Duval)326. A investigação sobre a invasão ao prédio Watergate foi conduzida pelo jornal The Washington Post que confirma envolvimento de Nixon e, mobiliza a opinião pública norte-americana. Na ficção televisiva, após receber a informação do crime, descoberto pelo padre, Neco Pedreira (Carlos Eduardo Dolabella) estampa a primeira página do periódico local, A Trombeta, com a seguinte manchete: “Espionagem no confessionário”, atacando diretamente seu inimigo político, o prefeito Odorico Paraguaçu. Em todo desdobramento do caso, a imprensa, especificadamente o jornal A Trombeta, veicula reportagens críticas expondo o envolvimento do prefeito e a corrupção presente em seu mandato. Em fevereiro de 1973, devido à repercussão do caso, foi criada uma Comissão no Senado a fim de averiguar o envolvimento de membros da Casa Branca. A comissão recolheu depoimentos de todos os envolvidos. Conforme as investigações se aprofundaram, são divulgadas as gravações dos grampos telefônicos utilizados pelo presidente como ferramenta de chantagem política. Na telenovela, o caso foi levado a Câmara dos vereadores pela oposição e foi aberto um inquérito que colheu depoimentos. Objetivando findar o inquérito, Odorico Paraguaçu chantageia Donna Medrado (Zilka Sallaberry) afirmando que pode divulgar as gravações de suas confissões. Sem se intimidar, Donna divulga a Comissão a informação da existência de fitas contendo as gravações dos moradores de Sucupira. A pressão se torna ainda maior com a reportagem de Neco Pedreira “Comissão elege que Odorico entregue a gravação”327. Entre os meses de abril, maio 1973, os três dos principais assessores do presidente Nixon renunciam em meio à suspeitas de envolvimento no caso. A Casa Branca comunica que Nixon tem ligação com a invasão. Sete de seus principais assessores, incluindo o secretário de Justiça, John Mitchell, são indiciados por obstrução da Justiça. Paralelamente, em Sucupira, Odorico demite Dirceu Borboleta 326Ibidem. Cena disponível no DVD 09, em 03:06:21 segundos. 327 Ibidem. Cena disponível no DVD 10, em 00:55:10 segundos.

com o intuito de impedir qualquer ligação de seu nome ao caso. Em uma cena emblemática, Odorico Paraguaçu afasta Dirceu “Em nome da moral e dos bons costumes”328. Nesta cena, se torna explicito o paralelo realizado por Dias Gomes com a realidade vivenciada no governo Médici. Pressionado pela imprensa e por seus opositores na câmara municipal, Odorico Paraguaçu não consegue ter seu nome desvinculado ao caso. Todavia, a situação se complica quando Dirceu Borboleta, encarregado das escutas, rouba as gravações do gabinete do prefeito e descobre que Odorico é o verdadeiro pai de seu filho. Transtornado, Dirceu estrangula sua esposa e é preso. O prefeito não consegue sequer aproveitar a situação para inaugurar o cemitério com o enterro de Dulcinéia, pois as irmãs Judicéia (Dirce Migliaccio) e Dorotéia (Ida Gomes) enviam o corpo para o jazigo da família, em outra cidade. O escândalo do envolvimento do prefeito com a esposa de Dirceu é descoberto por Neco Pedreira que recupera parte das gravações. Em seu jornal, Neco publica a seguinte manchete “Sexo no confessionário: Prefeito envolvido”329. Quando se torna público que as gravações estão em poder do prefeito, a crise se torna inevitável. Enfraquecido politica e moralmente, Odorico Paraguaçu, se torna alvo dos membros da oposição que articulam seu processo de impeachment. Desesperado, Odorico conta apenas com a ajuda das duas irmãs Cajazeiras que embora o considerem culpado pela morte de Dulcinéia, o apoiam para que a família Medrado não ganhe o jogo político. Buscando reverter à situação, Odorico tem a ideia de simular um atentado contra si mesmo, jogando a culpa do crime na oposição, passando assim, de réu à vítima. Contudo, Zeca Diabo (Lima Duarte) sentindo-se traído pelas armações do prefeito, vai até o gabinete do prefeito e o mata com três tiros. Enfim, o cemitério de Sucupira é inaugurado com o enterro de Odorico Paraguaçu, com direito a discurso de Lulu Gouveia (Lutero Luiz), elogiando as virtudes do morto. Entretanto se torna relevante observar, na trama criada por Dias Gomes, exibida até outubro de 1973, que os fatos narrados no universo ficcional de Sucupira, antecedem os desdobramentos reais do caso Watergate. Recorrendo as repercussões do caso através das reportagens veiculadas na época, especificamente na Revista Veja, percebe-se que desde maio de 1973, havia rumores sobre um possível impeachment 328 Ibidem. Cena disponível no DVD. 10, em 00:02:18 segundos. 329 Ibidem. Cena disponível no DVD. 10, em 02:13:52 segundos.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

18 3

ou mesmo a renúncia do presidente Nixon. Ao apropriar-se de tais informações, Dias Gomes, em sua ficção, pôde antecipar fatos que realmente aconteceriam no caso Watergate, como o processo de impeachment do presidente dos EUA, bem como, sua busca incessante de Nixon para encontrar alguma alternativa para se esquivar deste processo. Todavia, em “O Bem-Amado”, Dias Gomes foi mais longe ao relacionar política internacional a elementos subjacentes à própria sociedade e política brasileira dos anos iniciais da década de 1970. Ao abordar a corrupção, a busca incessante por informações, invadindo mesmo o espaço mais íntimo e sagrado, como o do confessionário, Dias Gomes expõe de forma crítica e cômica, algumas características que pode ser observadas no governo Médici. Desde o golpe militar de 1964, a ditadura instaurada no Brasil teve forte apoio dos Estados Unidos, que visavam não só, impedir o avanço socialista na América (vide Revolução Cubana), como ampliar seu mercado consumidor. A politica externa brasileira de ampla cooperação com os EUA, passou a se estruturar seguindo três princípios “a unidade continental, a solidariedade econômica continental e a segurança hemisférica”330. Rapidamente, empréstimos e investimentos chegaram ao Brasil, visando em última instância, alinhar as necessidades do desenvolvimento econômico com o militarismo da Guerra Fria. A Doutrina de Segurança Nacional, ideologia orientadora do regime militar, foi fundamentada na Doutrina seguida pelas Forças Armadas dos EUA, concebida em pleno contexto da Guerra Fria. No Brasil, a Doutrina de Segurança Nacional forneceu postulados aos militares para articularem a manutenção de um Estado forte conjuntamente com a supressão dos princípios fundamentais do regime democrático: os direitos civis e a própria Constituição 331. E, para garantir a manutenção do Estado autoritário, o aparelho militar direcionou sua atenção à questão de segurança nacional. Para tanto, foram implantados serviços de informação (ou inteligência) que buscavam concentrar todo tipo de informação da política interna e externa. Os serviços de inteligência militar planejavam ações e estratégias que tinham o objetivo 330 SILVA, Francisco C. O Brasil no mundo. In: REIS, Daniel Aarão (Org.). Modernização, ditadura e democracia: 1964-2010. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014, p. 143.

331

BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília (Orgs.). Brasil republicano: o tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 32- 35.

de coletar, analisar e julgar de informações visando suprimir os inimigos do regime. Tais informações eram obtidas por meios de investigações, grampos telefônicos, assaltos em correspondências, invasões domiciliares e a tortura. Com a implantação destas

estratégias

buscava-se

garantir

o

esmagamento

das

organizações

revolucionárias, bem como, o silenciamento das oposições moderadas. Assim, o governo firmava-se com altos índices de popularidade, ancorado nos “milagrosos” resultados econômicos e esportivos. Conclusão Por meio da análise das cenas de “O Bem-Amado”, que compõe a paródia ao caso Watergate, se torna possível verificar que o autor, ao abordar a corrupção presente na política norte americana, conduz a temática para o contexto político brasileiro. Dias Gomes ao direcionar a ação para o espaço do confessionário, no qual o personagem principal buscou extrair os segredos confessionais, expõe de forma sutil e cômica, a busca incessante por informações presentes no contexto internacional – Guerra Fria e caso Watergate - quanto no contexto nacional – os anos mais repressivos da ditadura militar brasileira. Extrair a confissão - seja instalando sistemas de escuta no confessionário, seja por meio da tortura - era uma questão indispensável para manutenção do poder tanto na ficção em Sucupira, quanto na realidade politica brasileira dos anos de chumbo. Ao estabelecer uma correlação com o caso Watergate, Dias Gomes não só apresenta de forma cômica o caso mais emblemático de corrupção na política norteamericana, mas também a lança luz ao bastidor político nacional da época, que era imerso por operações ilegais. Através da análise das cenas de “O Bem-Amado” que compõe a paródia ao caso Watergate, se torna possível obter um olhar sobre a dinâmica histórica e o processo de ressignificação do passado uma vez que estas imagens contêm enunciados ideológicos, representações e práticas sociais, nas quais os personagens podem ser entendidos como alegorias de seu próprio tempo.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

18 5

Habitação e urbanização em Londrina através das fontes documentais do CDPH/UEL Gabriel Ignácio Garcia graduado em História/UEL Resumo: Este trabalho propõe, num primeiro momento, versar acerca da importância do Centro de documentação, como um espaço imprescindível para o historiador. Em seguida, a pesquisa, aborda duas fontes distintas em sua tipologia, mas que se dialogam na temática proposta. Por meio da seleção de uma planta arquitetônica, investigaremos uma das formas de habitação mais comuns no norte paraense no século passado. Posteriormente, tendo como fonte uma série fotográfica, veremos as possibilidades de apreensão do processo de urbanização em Londrina na década de 70, momento histórico este em que a cidade vivenciou políticas públicas na área de habitação. Os resultados aqui apresentados são fruto de uma pesquisa desenvolvida no Centro de Documentação e Pesquisa Histórica (CDPH) da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Palavras-chave: História; Documentação; Planta arquitetônica; Fotografia. Introdução Atualmente, Centro de Documentação e Pesquisa Histórica (CDPH), situado na Universidade Estadual de Londrina (UEL), constitui-se como um local de

referência em guarda e preservação documental no norte do Paraná. Sua trajetória teve início da década de 1960, através da ação de um grupo de professores da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Londrina. Naquele momento foi realizada uma campanha para coletar documentos e peças, e dessa forma fundar um museu. Nasceu, assim, o Arquivo Histórico, que acabou sendo transferido para uma das salas do Campus Universitário, em 1973. Mais tarde na década de 80 foi criado através de uma iniciativa de professores e estagiários do Departamento de História e Filosofia o Arquivo Histórico se torna o atual Centro de Documentação e Pesquisa Histórica, oferecendo também um espaço para a pesquisa aos alunos. Em 2005 foram inauguradas novas instalações no térreo do Instituto de Referência em Ciências Humanas (IRCH), local este onde funcionaria até os dias de hoje atendo ao público em geral. O trabalho desempenhado pelos profissionais e estagiários do Centro por meio de diversas atividades entre elas as constantes exposições favorece a disseminação e divulgação da documentação sob guarda. Os objetivos traçados pela direção do Centro vão no sentido de possibilitar “guarda, a organização, a preservação e a divulgação de documentação histórica, bem como servir de laboratório de apoio à pesquisa, ao ensino, à extensão e à capacitação, além da prestação de serviços”332. Até o ano de 2005 a proposta do Centro no que tange a questão documental era com um maior enfoque nos documentos regionais, posteriormente, optou-se por efetuar uma mudança na temática, desse modo passando a abarcar concomitantemente as linhas de pesquisa que estão sendo desenvolvidas pelo Departamento de História. Tais linhas são: história e ensino, história e linguagens, territórios do politico e práticas culturais, memória e imagem333. Cabe aqui também ressaltar a importância do Centro de documentação e da sua atuação para a proteção da memória. Como aponta Jacques Le Goff, é na “memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”334. Sendo assim é fundamental que exista um dialogo entre a comunidade acadêmica (que envolve 332 Informações coletadas no pagina virtual do CDPH. Disponível em: http://www.uel.br/cch/cdph/? content=novo_historico.htm. Acesso em: 13 nov. 2014. 333 Op. Cit.

334 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994. 3.ed, p. 477.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

18 7

pesquisadores, docentes e alunos), e a sociedade com esses centros propiciando dessa forma que, o conhecimento produzido através de tal documentação não fique restrito ou isolado a poucos indivíduos, mas, pelo contrario, que seja compartilhado e apropriado pela comunidade de uma forma mais abrangente. Acerca de tais relações, Heloísa Liberalli Bellotto afirma que, a: [...] interligação entre documento de arquivo e sociedade passa pela relação entre arquivos e governo, entre arquivos e patrimônio cultural, entre arquivos e pesquisa histórica e entre arquivos e cidadania. De instrumentos essenciais para o funcionamento de uma entidade [comunidade], sejam os atos dispositivos que o comandem, sejam os documentos comprobatórios, que o provem, sejam os registros informativos que o acionem e o movimentem, os documentos de arquivo, passada a utilização ligada às razões estritas que os originaram, depois de criteriosamente avaliados e selecionados, serão preservados, em quantidades limitadas por essa seleção, para efeitos de pesquisa científica, herança cultural e testemunho social335. Ao longo do presente artigo procuraremos interpretar algumas das fontes selecionadas e estudadas durante pesquisa. Iniciaremos o trabalho com o estudo da planta arquitetônica de uma casa de madeira, passando em seguida à fotografia (que foi selecionada de uma série). Cada uma das fontes selecionadas será contextualizada e problematizada separadamente, pois cada tipologia documental dispõe de aparatos conceituais distintos, dessa forma esperamos perceber a colaboração que as mesmas podem trazer para a pesquisa histórica desenvolvida sobre as formas de moradia e o processo de desenvolvimento da região de Londrina. Questões estas que, estão intimamente ligadas entre si. A Planta arquitetônica: memória e patrimônio A casa de madeira se constituiu como uma das formas de habitação mais comuns na Região Norte do Paraná. Compreender tais construções, e mais que isso, o projeto arquitetônico destas formas de moradia é de grande importância para o estudo passado. Cabe apontar a importância de se notar também as características que essas casas de madeira adquiriram em Londrina e região. Como nos afirma Juhani Pallasmaa, “as edificações e cidades são instrumentos e museus do tempo. Elas nos

335 BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. São Paulo: T.ª Queiroz, 1991, p. 103.

permitem ver e entender o passar da história e participar dos ciclos temporais que ultrapassam nossas vidas naturais”336. Apesar disso, infelizmente muitas das plantas arquitetônicas não são devidamente arquivadas e conservadas, e, consequentemente, acabam se perdendo com o tempo. Como discorrem Aline Abreu dos Santos, Silvana de Fátima Bojanoski e Margareth Regina Freitas Gonçalves: No século XX, desenhos originais muitas vezes foram mantidos no escritório do arquiteto, e apenas as cópias estavam autorizadas a ser levadas para o canteiro de obras. Contudo, as plantas eram armazenadas sem os devidos cuidados e muitas vezes presas de diversas maneiras, enroladas ou dobradas337. Apesar de tais perdas, atualmente, uma boa parcela pode ser encontrada nos Centros de documentação como é o caso do CDPH. A pesquisa com essas plantas arquitetônicas oferece grandes possibilidades aos historiadores. O estabelecimento de uma maior compreensão das formas de construção, das diferenças que existiram entre um projeto e sua construção, das edificações que foram destruídas e só restaram às plantas, são algumas das possibilidades. Além isso, merece atenção especial, as características próprias que a arquitetura em madeira adquiriu na região norte do Paraná, recebendo influencias culturais dos imigrantes vindos pra a região no transcorrer do século XX. Como lembra Antônio Carlos Zani: A cultura arquitetônica de construir e habitar edifícios de madeira durou aproximadamente 40 anos e sustentou boa parte da demanda construtiva do norte do Paraná de 1930 a 1970 e esteve condicionada ao potencial madeireiro e a mão-de-obra disponível na região deste período. [...] Esta arquitetura foi representativa do período cafeeiro e fruto dos sonhos de milhões de trabalhadores que se deslocaram para o norte do Paraná e marcou com sua simplicidade e beleza os cenários urbanos e rurais338.

336 PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos; tradução técnica: Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Bookman, 2011, p. 49.

337 SANTOS, Aline Abreu Mignon dos. GONÇALVES, Margareth Regina Freitas. BOJANOSKI, Silvana de Fátima. Planta arquitetônica em papel translúcido: um diálogo entre arquitetura, arquivologia e patrimônio. Rio de Janeiro: Acervo, v. 27, n. 1, 2014, p. 371.

338 ZANI, Antônio Carlos. Arquitetura em madeira [livro eletrônico]. Londrina: Eduel, 2013. Disponível em: http://www.uel.br/editora/portal/pages/arquivos/arquitetura%20em %20madeira_digital.pdf. Acesso em: 11 de fev. 2015, p. 9.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

18 9

A partir do momento em que se verifica a inexistência ou a pouca aplicabilidade das politicas públicas de preservação das edificações históricas, as plantas arquitetônicas, se tornam um dos últimos recursos para o estudo dos modelos arquitetônicos extintos. Sendo assim, a [...] preservação das plantas, juntamente com a documentação que compõe o projeto arquitetônico, permite analisar não só o edifício/monumento, mas também a concepção, a história da representação gráfica, o processo de construção e seus agentes responsáveis, em tempos e dinâmicas variadas. Às vezes, essa documentação pode se tornar a única referência das obras demolidas e daquelas que nunca saíram do papel. Esses documentos também são importantes para a conservação e restauração do patrimônio construído339. A planta arquitetônica selecionada dentro do acervo do CDPH foi a de nº ICN258 que se encontra arquivada na mapoteca III gaveta II, datada de 27 de outubro de 1945. Essa planta está inserida em uma série, que conta com diversas outras plantas arquitetônicas de casas de madeira, não só de Londrina, mas de cidades vizinhas também, como Cambé e Rolândia. Abaixo, na fotografia da planta, é possível notar a deterioração nas laterais da fonte ocorrida antes da mesma chegar ao Centro de Documentação.

339 SANTOS, Aline Abreu Mignon dos. GONÇALVES, Margareth Regina Freitas. BOJANOSKI, Silvana de Fátima. Planta arquitetônica em papel translúcido: um diálogo entre arquitetura, arquivologia e patrimônio. Rio de Janeiro: Acervo, v. 27, n. 1, 2014, p. 372.

Figura 01: Planta arquitetônica confeccionada por D. A. Cabral Eng. Civil, datada de 1945.

No canto inferior direito da planta, em uma pequena tabela, constata-se que o projeto da casa se selecionada foi feito para a cidade de Cambé, e localizava-se na 4ª data, 7 ª quadra. É possível ver, ainda, que o proprietário era o Senhor Bortelo Loni e que o terreno d construção tinha a dimensão de 563,28 m². A planta foi elaborada pelo Escritório de engenharia Caviúna e o valor orçado na época era de CR 16.000,00, tendo o engenheiro D. A. Cabral Eng. Civil como responsável por tal projeto. Vale aqui pontuar acerca do tipo de suporte material em que se encontra o desenho de tal planta. O papel translúcido utilizado para a confecção do projeto trata-se de um tipo de papel comumente usado por parte dos arquitetos a partir do século XIX, quando, [...] foram elaboradas as primeiras normas técnicas de representação gráfica de projetos, visando uma linguagem comum para facilitar a comunicação. O papel translúcido foi uma boa solução para a produção da arquitetura desse período, pois permitiu que desenhos de outros suportes pudessem ser copiados, além de ter sido extremamente útil durante a etapa do projeto arquitetônico, uma vez que pode ser usado também para redesenhar e sobrepor diferentes opções de um mesmo projeto340. Acerca das características da casa observa-se que no projeto ela possuía uma varanda, uma sala, uma cozinha (sendo que a cozinha apresenta um forno e uma 340 SANTOS, Aline Abreu Mignon dos. GONÇALVES, Margareth Regina Freitas. BOJANOSKI, Silvana de Fátima. Planta arquitetônica em papel translúcido: um diálogo entre arquitetura, arquivologia e patrimônio. Rio de Janeiro: Acervo, v. 27, n. 1, 2014, p. 327.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

19 1

chaminé), quatro quartos, um corredor e uma dispensa. A casa teria também o chão de soalho de madeira, elevada, com a parte de baixo certamente fechada, possuindo as dimensões de 12,00 x 7,00 m². Não consta no projeto a existência de um banheiro no interior da casa. A disposição da área construída no terreno (no canto superior esquerdo da planta), deixando uma grande área livre nos fundos, nos que leva a crer que, possivelmente, o banheiro viria a ser erguido nos fundos da residência. A casa possuía duas portas sendo que uma delas era voltada para a rua e a outra para os fundos e pode-se observar a existência de nove janelas o que leva a crer que seria uma casa bem arejada, ventilada, iluminada. Além disso, no projeto constava uma fachada lateral com três janelas e uma varanda voltada para a rua. A altura entre o soalho e o forro era de três metros. Levando em conta as características da planta estudada entre elas a quantidade e o tamanho dos cômodos, foi possível perceber que se tratava de um projeto de uma casa de madeira, destinada a atender as necessidades de uma família simples, com uma condição de vida relativamente boa para o período em questão. Devido ao fato de não constar na planta o endereço exato de onde se daria a construção da casa, não foi possível verificar se a mesma foi ou não construída, e se foi, em quais condições de preservação se encontra atualmente. A Fotografia e o contexto da urbanização de Londrina na década de 1970 A utilização da fotografia como fonte histórica assim como as plantas analisadas anteriormente, carece de maneiras especificas no seu estudo. Como bem nos alerta Ana Maria Mauad as imagens não falam por si próprias, mas é necessário que as perguntas sejam feitas341. Nesse sentido Peter Burke criticou a posição de historiadores que tendem a usar as fotografias apenas como ilustrações e para comprovar conclusões que estes já haviam alcançado, sendo assim, a imagem capturada não suscita novos questionamentos e respostas para tal documento 342. Além disso, o estudioso aponta para a necessidade de uma critica de fonte, pois: [...] da mesma forma que outras formas de evidencia, fotografias podem ser consideradas ambas as coisas evidencia da história e história. Elas são 341 MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: Fotografia e História Interfaces. Rio de Janeiro: Tempo, v.1, n.2, 1996.

342 BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004.

especialmente valiosas, por exemplo, como evidencia da cultura material do passado. [...] A expressão câmera inocente cunhada na década de 1920, levanta um aspecto genuíno, embora a câmera tenha que ser empunhada por alguém e alguns fotógrafos sejam mais inocentes do que outros343. Não restam duvidas de como as fotografias são importantes para o conhecimento do passado, pois a fotografia: “compreendida como documento revela aspectos da vida material, de um determinado tempo do passado, que a mais detalhada descrição verbal não daria conta”344. Seguindo esse raciocínio Mauad, partilhando do conceito de documento monumento de Le Goff, argumenta que a fotografia não somente nos informa acerca do passado como também, conforma e deforma uma determinada visão de mundo. Em conformidade com Mauad, desde o seu surgimento no século XIX até boa parte do XX a fotografia foi tida como sendo um retrato fiel da realidade, isso se deve em grande parte pelo advento do positivismo 345. A ideia de câmera inocente reflete bem isso. Primeiramente os Annales e em seguida outras correntes historiográficas questionaram tal conceito, de forma que, atualmente, a fotografia é entendida não mais como uma representação da realidade, mas como sendo um produto cultural e social, com diversos usos e significações. O fotógrafo no momento em que decide retratar determinada cena, acontecimento ou lugar, acaba por fazer uma seleção da realidade que está a sua volta, ou seja, o indivíduo no momento de realizar uma fotografia escolhe aquilo que vai ou não vir a “entrar” no enquadramento de sua lente. Assim, para ocorra uma devida compreensão da fotografia é necessário ter em vista que a mesma é fruto de técnicas materiais próprias de seu tempo, também é resultado de um contexto histórico social, religioso, politico e cultural e de toda uma intencionalidade do sujeito que a produziu 346

. Anna Tereza Fabris aponta que essa forma de composição imagética: [...] cria uma visão de mundo a partir do mundo, molda um imaginário novo, uma memória não seletiva porque cumulativa. Em sua superfície o tempo e o espaço inscrevem-se como protagonistas absolutos, não importa se imobilizados, ou até melhor se imobilizados porque passiveis de uma

343 Op. Cit. p. 24.

344 MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: Fotografia e História Interfaces. Rio de Janeiro: Tempo, v.1, n.2, 1996, p.25.

345 Ver: BORGES, Maria E. L. História & fotografia. Belo Horizonte: Autentica, 2005. 346 Op. Cit. 26.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

19 3

recuperação, feita de concretude e devaneio no qual a aparente analogia se revela seleção, construção, filtro347. A série de fotografias da qual a fonte em questão foi selecionada, retrata o processo de desfavelamento ocorrido durante a gestão do prefeito Dalton Paranaguá (1927-2014). Paranaguá foi eleito prefeito de Londrina em 1969 pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e ficou no cargo até 1973. De acordo com o que apresenta uma fonte jornalística publicada no jornal da Associação Comercial e Industrial de Londrina (ACIL) 348, em 1970 o Serviço Autárquico de Saneamento (SAS) juntamente com o Serviço de pavimentação programam um projeto intitulado “sanear para depois asfaltar”. As primeiras áreas a serem beneficiadas foram a Vila Fraternidade e Vilas Portuguesas com o trabalho de drenagem de pântanos. Posteriormente as favelas Bom Retiro, Grilo, Esperança, Pito Acesso, Grilinho, Boa Vista, Novo Mundo, Vila Paulista e Marisa começaram a ser desmanchadas. A SUCAM (Superintendência das Companhias de Saúde) juntamente com acadêmicos da UEL e pessoas ligadas às secretarias de Saúde e Bem-Estar Social ofereceram aos moradores que foram retirados da favela Bom Retiro, atividades de recreação, medicina preventiva e alfabetização (Mobral) além de outros cursos entre eles o de higiene. No final do mandato de Paranaguá, 250 famílias deixaram de viver em condições sub-humanas de um total de 600 famílias. Tal processo de desfavelamento se insere em um contexto histórico de crescimento de Londrina e de forte êxodo rural. Segundo o prefeito José Richa (sucessor de Paranaguá) Londrina possuía 68,42% da população vivendo na região urbana no começo da década de 70. Sendo assim, da mesma forma que em outras tantas cidades brasileiras não houve um planejamento para lidar com a migração de tamanho contingente populacional. Essa série de fotografias em destaque foi doada por José divino Gonzaga, e cuja autoria das mesmas é desconhecida. Elas retratam exatamente o momento em que a população dessas favelas estava se preparando para deixar aquelas localidades. Nas fotografias foram registrados esses momentos do desfavelamento, onde pode-se 347 FABRIS, Annatereza. Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991, p. 81. 348 Informações publicadas pelo jornalista Widson Schwartz. http://www.acil.com.br/jornal-detalhe/85/5/213. Acesso em: 14 nov. 2013.

Disponível

em:

constatar pessoas retirando os seus pertences dos barracos, barracos sendo demolidos, caminhões da Prefeitura Municipal e carroças auxiliando nas mudanças e pilhas de telhas e madeira que certamente seriam reaproveitadas. Em meio aos adultos nota-se a presença de crianças, o que nos leva a pensar na questão educacional, ou seja, será que foi elaborada uma ação afetiva no sentido de inserir essas crianças no sistema de educação? Observam-se também as precárias condições sanitárias (propiciando o surgimento e a disseminação de doenças) e a qualidade das habitações em que essa população vivia, com pouquíssima assistência do poder público até então.

Figura 02: Pessoas retirando móveis de um ônibus que servia como moradia. P&B (Vila Fraternidade).

A fotografia selecionada dessa série (figura 1) retrata o momento em que uma família que tinha como chefe o Sr. Sebastião dos Santos apelidado de Índio (senhor negro, de camisa branca, ao fundo do lado esquerdo), retira os seus móveis de dentro de um ônibus que servia de moradia. Detalhe para as precárias condições em que se encontrava o ônibus, onde toda a sua família morava, ao fato de que não teriam conseguido pagar o aluguel de uma casa localizada na Vila Santa Terezinha. Na ficha anexada à fotografia consta o relato de uma das filhas do Sr. Sebastião, afirmando que: “Moramos dentro do ônibus durante sete anos. Não podíamos pagar aluguel, esse foi o jeito encontrado por meu pai para sobrevivermos assim que chegamos a Londrina [...]”349. Posteriormente o ônibus foi vendido a um ferro velho e com a finalidade de se conseguir comprar uma casa popular. 349 Relato registrado na ficha de catalogação das fotografias que compõe a série.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

19 5

Essa fotografia nos permite ter uma compreensão importante acerca da forma como se deu o processo de crescimento de espaço urbano de Londrina e como se deram as políticas públicas de urbanização e assistência a essa população menos abastada. Exposto isso, corroboramos com Borges que afirma que as “imagens fotográficas devem ser vistas como documentos que informam sobre a cultura material de um determinado período histórico e de uma determinada cultura, e também como uma forma simbólica que atribui significado as representações e ao imaginário social”350. Considerações finais Após esta discussão cabe apontar para a importância exercida pelo CDPH de Londrina, propiciando a guarda documental e favorecendo a pesquisa e estudo dessas fontes, basilares para o trabalho do historiador e o conhecimento do passado, e ao mesmo tempo como um espaço que pode contribuir muito para a formação docente. É de grande valia e merece destaque o processo de preservação e conservação documental que é desempenhado pelos profissionais do Centro, com um processo que envolve diversas etapas, entre elas: a identificação, o inventário, a restauração, a conservação e a catalogação. Podemos perceber no desenrolar do artigo a formas como cada uma das fontes apontadas e analisadas podem colaborar para a pesquisa histórica e o maior desenvolvimento do conhecimento histórico, afinal: [...] um documento só é verdadeiramente útil, só se torna peça de um discurso científico quando pode ser compulsado, analisado, conferido, por qualquer um. Ou de modo mais específico, quando a comunidade científica pode verificar as bases empíricas de uma argumentação351. A planta arquitetônica nos permitindo um entendimento acerca das casas de madeira que durante um grande período de tempo foram umas das formas de habitação mais comuns no Norte do Paraná e que atualmente, infelizmente, vem caindo sendo destruídas para dar lugar a casas de alvenaria e edifícios, sem nenhuma politica de preservação por parte do Estado e dos governos. Dessa forma é de grande importância o trabalho com tais plantas como um meio de resgatar a memória de tal forma de habitação e estudar com maior clareza as características que essas moradias vieram a 350 BORGES, Maria E. L. História & fotografia. Belo Horizonte: Autentica, 2005, p. 72-73. 351 GUARINELLO, Norberto Luís. Breve Arqueologia da História Oral. In: Revista da Associação Brasileira de História Oral, n.º 1, jun. 1998, p. 65.

adquirir em Londrina e região. A série fotográfica por meio da qual é possível analisar o processo de crescimento de Londrina na década de 70, do mesmo modo apontou as politicas publicas de saneamento e urbanização para algumas áreas como é o caso da Vila Fraternidade.

A Divulgação na diacronia: relações entre o projeto editorial e o movimento paranista (1947-1955)

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

19 7

Gilvana de Fátima Figueiredo Gomes352 UNESP/ASSIS Resumo: O texto se propõe a discutir a relação entre o projeto editorial da revista paranaense A Divulgação (entre 1947 e 1955) e as propostas do movimento paranista desenvolvido na década de 1920. Partindo de questões da História da Imprensa e da História Intelectual buscamos mapear e analisar como os projetos paranistas foram apropriados duas décadas depois de seu surgimento por um periódico fundado e dirigido por Arnauld Ferreira Velloso, um militar baiano. Além disso, há a intenção de levantar hipóteses que permitam se aproximar das circunstâncias que levaram o periódico a refundar, a sua maneira, o movimento identitário liderado por Romário Martins. A relação de dois tempos, aquele da década de 1920 e o contemporâneo aos anos de 1940, serve para medir o alcance do projeto identitário paranaense que superou limitações institucionais, mas também para acompanhar continuidades e rupturas nas representações culturais. Palavras-chave: História Intelectual; imprensa; identidade paranaense; periódicos; regionalismos.

Introdução A revista curitibana A Divulgação passou a circular a partir de novembro de 1947; inicialmente com periodicidade bimestral, a partir de 1953, revista foi editada mensalmente, sem grandes interrupções, até novembro de 1965 353. Ao todo, 205 números da revista que se pretendia divulgadora dos “feitos paranistas”, “das conquistas dos araucarianos” “do ritmo do progresso paranaense” chegaram ao público e em cada número artigos, reportagens, seções, colunas, além de um considerável material iconográfico, eram distribuídos em um número de 40 a 60 páginas. Intelectuais reconhecidos, local e nacionalmente, assinavam muitos desses trabalhos e emprestavam seu prestigio à publicação. A despeito da constante produção e da riqueza documental apresentada por A Divulgação, a revista nunca foi fonte ou objeto privilegiado de pesquisa. Assim, ao acompanhar a trajetória da revista A Divulgação surgem diversos pontos de questionamento que ainda carecem de investigação. Neste trabalho, abordamos um 352 Mestranda em História e bolsista CAPES. 353 Todo o acervo de A Divulgação pertence à autora do trabalho.

desses pontos: a herança paranista reclamada pelo periódico, tendo em vista que o movimento paranista se desenvolveu vinte anos antes da fundação da revista e que havia enfraquecido ao longo da década de 1930. A proposta aqui é compreender as relações estabelecidas entre A Divulgação (final de 1940) e o movimento paranista (final de 1920); na impossibilidade de estabelecer causas dessa retomada, optamos por discutir hipóteses e por analisar a forma como a revista tornou contemporâneas as propostas desenvolvidas pelos primeiros paranistas. O diálogo de dois tempos permitirá ao fim compreender, em um estudo especifico, uma característica definidora dos processos humanos e fundamental para historiografia, a saber: as continuidades e rupturas que permeiam as construções e representações culturais. O paranismo, A Divulgação e o paranismo n’A Divulgação Há uma grande dificuldade em definir o que teria sido o paranismo. De uma maneira sintética poderíamos definir tal movimento como um projeto de discussão e criação de uma identidade para o estado do Paraná ocorrido no final da década de 1920, sob a direção de Romário Martins. Tal definição se ancora (e supera) diversos posicionamentos e conflitos construídos a partir de variados percursos teóricos e metodológicos que, por uma questão de espaço, não podem ser mencionados aqui; vale mencionar, no entanto, que a discussão permanece. Fabricio Leal de Souza em Nação e Herói: A trajetória de intelectuais paranistas faz um balanço das diversas interpretações já elaboradas sobre o paranismo, deixando evidente a complexidade de definição: As atribuições são tão vagas quanto repletas de sentidos: toada não apenas para expressar um regionalismo paranaense, mas também sua brasilidade, seu cosmopolitismo e ausência de nativismo. É imaginário cultural ou ideologia dominante; figuração de uma identidade coletiva ou negação de homogeneidade. Buscam-se suas origens nas mais belas e intrépidas aventuras dos tropeiros ou nas patrióticas batalhas da Guerra do Paraguai, Revolução Federalista e Contestado; já o seu desenvolvimento com a redefinição da República ou a partir de 1930, 40, 50 e 80.354 354 SOUZA, Fabricio Leal de. Nação e Herói: A trajetória dos intelectuais paranistas.

Dissertação de Mestrado (História), UNESP. Assis, 2002. p. 04.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

19 9

Longe de debater cada um dos pontos levantados por Souza, pretendemos apenas demonstrar que as possibilidades de compreensão do paranismo são amplas. De todas as interpretações, destacamos aquela elaborada por Irã Taborda Dudeque355 para quem o paranismo era um movimento regionalista “ao inverso”, referindo-se ao fato de que sua pretensão não era afirmar uma superioridade do estado em detrimento às demais federações, o objetivo era igualar culturalmente o Paraná aos grandes centros nacionais, como São Paulo e Rio de Janeiro. O termo paranismo só passou a ser utilizado como definidor de uma proposta de debate em torno do ser paranaense a partir de 1927 quando Romário Martins o utiliza não para definir o nativo do Paraná, mas todo aquele que mantém uma relação especialmente afetiva com o estado e nele procura produzir algo salutar. Apesar de não ser a preocupação desse trabalho, reforçamos que seria ingênuo supor que antes disso não existissem propostas difusas que mais tarde confluiriam para o movimento organizado356, no entanto, o movimento paranista se articula a partir da publicação do Manifesto Paranista e o Programa do Centro Paranista, elaborados por Romário Martins em outubro de 1927; na sequência, a revista Illustração Paranaense assume a função de estruturar a ação dos intelectuais que se reuniram em torno do projeto. Os últimos suspiros do projeto paranista podem ser medidos com a União Paranista, em 1932, projeto que não vingou e durou poucos meses. Esses projetos tinham em comum a vontade de criar símbolos para o Paraná. Mas a tarefa era um pouco ingrata, afinal o estado era jovem, com uma história pouco pujante e mais, formado por diferentes etnias o que lhe dotava de aspectos culturais muito diversos e que dificilmente poderiam ser homogeneizados. Sobre isso, Irá Taborda Dudeque afirma: A solução da equação foi fornecida pela geografia, pela flora e por novas definições verbais. Foi estipulado que o diferencial do homem do Paraná estaria não nele próprio, mas no seu entorno. O clima que o submetia ao gelo das geadas era ‘europeu’, mas era também o elemento que unia o novo homem do Paraná à força do índio que o antecederá, que

355 DUDEQUE, Irã José Taborda. Espirais de Madeira: uma história da arquitetura em

Curitiba. Studio Nobel. São Paulo, Fapesp. 2001. 356 BEGA, Maria Tarcisa. Sonho e invenção do Paraná: geração simbolista e a construção da

identidade regional. Tese de Doutorado (Sociologia). USP. São Paulo, 2001.

andava nu pelo planalto de Curitiba, a cultivar um sadio desprezo pelo clima357. Ao trabalhar com elementos da natureza, a proposta do paranismo pretendia ultrapassar as dificuldades de construir uma identidade para um estado caracterizado pela multiplicidade étnica. A opção por valorizar um ou outro elemento cultural poderia acarretar um sentimento de exclusão entre indivíduos e comunidades que não se percebessem como parte daquela projeção, por outro lado, os elementos da natureza representavam ao mesmo tempo as dificuldades vencidas por todos e as qualidades adquiridas ao longo desse período. Optou-se pelo termo paranista que correspondia, nas palavras de Romário Martins, a “todo aquele que tem, pelo Paraná, uma afeição sincera, e que notadamente a demonstra em qualquer manifestação de atividade digna, útil à coletividade paranaense358”. Para Dudeque: O neologismo fez com que todos muito folgassem. A definição era tão vaga, tão abrangente, que a alcunha de paranista podia ser distribuída, sem contradições, ao criador de um bezerro-campeão, ao presidente da República, ás burguesas que espantavam o tédio em associações beneficentes, aos operários mais comportados, aos fabricantes de bolachas amanteigadas, aos excelentíssimos senhores ministros e às demais autoridades militares e civis359. Para promover suas propostas, os paranistas agiram em várias frentes. Além dos manifestos e da Illustração Paranaense (a revista do movimento) esses intelectuais construíram um conjunto simbólico, que se tornaria oficial em bandeiras e brasões, a partir dos elementos recorrentes na natureza do estado: e nesse caso, o pinheiro foi o elemento mais valorizado. Trabalharam na construção de narrativas históricas que fundavam um Paraná antes mesmo de sua existência oficial, em 1853. Nessas narrativas, a unidade territorial, o suposto esforço coletivo em busca da dominação da natureza e a seleção de heróis nacionais que se tornavam, então, heróis paranaenses serviram para fortalecer tradições e unificar comunidades no presente. Nesse repatriar de grandes nomes, intelectuais, militares, políticos, homens de empresa, bandeirantes, colonizadores e lideranças indígenas foram enfileirados como 357 DUDEQUE, p. 59 358 MARTINS Apud LEAL, p. 75. 359 DUDEQUE, p. 60.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

20 1

exemplares da grandeza paranaense. A origem desses sujeitos pouco importava, afinal, a definição paranista abraçava aqueles que haviam produzido algo de salutar no Paraná, independente da sua origem. Para garantir que seriam ‘ouvidos’, os paranistas tomaram cadeiras no Instituto Histórico e Geográfico do Paraná, no Centro Paranaense de Letras, na Academia Paranaense de Letras e institutos escolares de formação básica. Ainda, produziram um conjunto de lendas que, embora elaboradas nos de 1920, foram apresentados como a organização da memória oral local e que passados pouco menos de um século estão presentes em uma infinidade de instituições oficiais e não oficiais. Artistas plásticos filiados ao movimento se encarregaram de marcar as cidades com os grandes sujeitos dessas lendas e histórias, e projetos gráficos baseados em pinheiros e pinhas que cobririam calçadas e praças de diversas cidades do Paraná. No entanto, ainda que atualmente existam indícios do êxito paranista, o movimento se desarticulou já no inicio dos anos de 1930. Dentre as dificuldades enfrentadas pelo paranismo para sua manutenção, a maior se relaciona com a instalação do governo Vargas em 1930 e a mudança nas relações de poder locais; em 1937, com o Estado Novo e a proibição de projetos regionalistas, atuações e projetos paranistas seriam extintos. Entre 1932 e 1947 há um hiato nas produções que se afirmavam paranistas. Nos meses finais de 1947 o tenente-coronel do exército Arnauld Ferreira Velloso colocava em circulação na cidade de Curitiba e de outras regiões do estado, a revista A Divulgação360. O subtítulo do periódico, Intercâmbio Cultural, Econômico e Financeiro indicava uma amplitude de pautas as quais A Divulgação se dedicaria; a primeira capa, em que figuram de um lado engrenagens e locomotivas ladeadas por edifícios imponentes e, de outro o campo sendo arado não mais pela tração animal e sim, pelo maquinário moderno, enquanto que no centro, um rosto humano 360 Ao longo do texto, algumas posições teóricas serão explicitadas. Contudo, achamos

pertinente neste momento, lembrar que a utilização da imprensa como fonte de pesquisa em História demanda um conhecimento amplo do periódico em análise, afinal “”Tem-se ali registro múltiplo, do textual ao iconográfico, do extra texto – reclame ou propaganda – à segmentação, do perfil de seus proprietários àqueles dos consumidores. Texto, imagem, ilustrações, reclames e seções – em princípio, independentes de análise mais profunda - , evocam em seu conjunto, de imediato, o quadro histórico em que se pretende transitar. Sobre isso ver: MARTINS, Ana Luiza. Da fantasia à História: folheando páginas revisteiras. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/his/v22n1/v22n1a03.pdf Acesso em: 21 de outubro de 2013.

indistinguível exceto pela sua função de pensador e escritor conforme indicam sua expressão reflexiva e o lápis que segura, evidencia o papel central que a revista atribuiu as atividades intelectuais na compreensão das circunstâncias que se apresentavam no Paraná do período. A revista circularia até novembro de 1965, contudo, seria errôneo supor que do primeiro ao último número, o perfil editorial d’A Divulgação tenha se mantido. Ao longo da pesquisa, os elementos gráficos e materiais e os conteúdos permitiram mapear três momentos editoriais distintos, aqui tratados como fases: a primeira, quando A Divulgação se caracterizava como uma publicação cultural, com acentuada presença de textos em detrimento ao material iconográfico abordando temáticas como política, economia, história, via de regra, a partir de uma análise especializada. Há uma fase de transição, entre 1955 e 1958, quando a revista testa novos conteúdos se afastando de debates intelectuais e se aproximando da cobertura do mundo social. De 1958 até 1965, a revista se constrói como uma revista feminina, operando a partir de lógica de que as mulheres deveriam ocupar um duplo espaço: o privado, ligado ao lar e a família, e o público, em que as mulheres deveriam exercer funções profissionais, ultrapassando uma visão recorrente na própria revista de que às mulheres o mundo do trabalho era restrito. Neste trabalho, nos deteremos apenas na primeira fase, período onde realmente há vinculação ao paranismo. De 1947 a 1955, Arnauld Ferreira Velloso se encarregaria, na qualidade de proprietário do periódico de escrever todos os editoriais da revista e é através deles que nos aproximamos das especificidades do projeto editorial da revista. No primeiro desses textos, intitulado Divulgando, Velloso informa a que veio A Divulgação: “Divulgar dentro e fóra das fronteiras do estado o que existe no Paraná, isto é, tudo quanto diz respeito à nossa gente e à nossa terra, é uma tarefa que por si só justificaria o nosso aparecimento na imprensa. E aqui estamos procurando cumprir essa útil tarefa da melhor maneira361”. Velloso era nascido em Alagoinhas, na Bahia e viveu até os trinta anos no Rio de Janeiro onde acumulava experiência na imprensa pois havia contribuído para diversos veículos de imprensa de projeção nacional: A Noite, Noite Ilustrada, Observador econômico e Financeiro, Nação Armada e Cultura Política eram alguns

361 VELLOSO, Arnaud F. Divulgando. A Divulgação, Curitiba, n. 1-2, nov.-dez. 1947. p. 01.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

20 3

dos espaços de atuação de Velloso362. Porém, suas obrigações profissionais o ligavam diretamente ao exército onde fez carreira e, em 1939, Velloso foi enviado ao Paraná para servir no Quartel General da 5ª Missão Militar. Quando chegou ao estado, Velloso deve ter se deparado somente com um paranismo sutil, afinal, era um momento impróprio para práticas regionalistas. Ainda assim, ele encabeçaria um projeto com as dimensões de A Divulgação. A revista apresenta desde o inicio um aspecto interessante, não somente em termos de conteúdo: a capa colorida, a qualidade da impressão, a variedade de sessões e o apelativo intelectual363 faziam da revista um projeto grandioso, bancado em parte, segundo dados da revista, pelo grande número de anunciantes de que dispunha e pela crescente quantidade de assinantes do periódico. No mesmo editorial citado logo acima encontraremos a primeira vinculação da revista ao paranismo: “Ela [a revista] se propõe simplesmente a propagar ideias e realizações ‘paranistas’ por todo o Brasil. Assim como se fazem as trocas no domínio das transações comerciais, também se operam permutas no domínio das conquistas do espírito364”. É importante esclarecer que essa retomada do paranismo não era aleatória, correspondendo a uma série de demandas contemporâneas a fundação da revista. Tratar dessas demandas não significa procurar as causas da recuperação dos temas e projetos paranistas pela A Divulgação, apenas compreender o emaranhado de situações entrecruzadas no momento de sua fundação e aqui só o faremos em termos hipotéticos. Antes disso, porém, é necessário esclarecer minimamente os termos da recuperação do paranismo por parte d’ A Divulgação. Entre 1947 e 1955, a revista publicou 1667 textos dos quais é possível destacar aproximadamente 343 textos que se ligam claramente ao paranismo, ou seja, cerca de 20% da produção textual da revista, na sua primeira fase, se liga ao movimento da década de 1920. Se destacam, 362 Velloso recortava cuidadosamente cada uma das suas contribuições a esses jornais e

revistas e as colava em uma espécie de diário da sua atuação na imprensa. Parte desse material se deteriorou pela ação do tempo, dois deles estão acessíveis, ainda que as condições não sejam as ideais.

363 Quando nos referimos ao apelativo intelectual pensamos na primeira capa e nas sessões A Divulgação no conceito de ilustres paranaenses em que diversos nomes intelectuais saúdam o inicio das atividades do periódico. 364 VELLOSO, Arnaud F. Divulgando. A Divulgação, Curitiba, n. 1-2, nov.-dez. 1947. p. 01

nessa produção, cerca 77 textos que reconstroem a história do Paraná a partir da perspectiva de positivação do passado do estado entendido então em versão estendida, em outras palavras, novamente, se escreve a história do Paraná antes mesmo de sua emancipação política. Além desses, textos que recompõe eventos que se tornaram datas comemorativas a partir de iniciativas paranistas, lendas produzidas nos anos de 1920 e de autoria de Romário Martins e cerca de 142 produções literárias vinculadas a estética paranista compõe a versão de paranismo da revista A Divulgação. No geral, todos esses textos procuram sedimentar a identidade paranaense nos mesmos moldes do projeto paranista, ou seja, vinculado a paranidade não ao critério de natalidade ou de uniformidade cultural, mas ao fato de que uma vez que se constrói algo no Paraná se cria um vinculo com o espaço paranaense e com todos aqueles que também construíram algo para o estado. No segundo número da revista, um texto manifesto intitulado Paranistica, de autoria de Romário Martins é publicado como forma de afirmar a qual paranismo A Divulgação está vinculada. O texto, apresentado como uma “série de teses sobre o meio Físico e Vital, o Meio Econômico, o Meio Social, o Meio especialmente Educativo e Intelectual, o Meio Cívico e Moral do Paraná365” conceitua novamente o paranismo: Paranista é simbolicamente aquêle que em terras do Paraná lavrou um campo, vadeou uma floresta, lançou uma ponte, construiu uma máquina, dirigiu uma fábrica, compoz uma estrofe, pintou um quadro, esculpiu uma estátua, redigiu uma lei liberal, praticou a bondade, iluminou um cérebro, evitou uma injustiça, educou um sentimento, reformou um perverso, escreveu um livro, plantou uma árvore366. Além disso, o contexto eufórico do pós-Segunda Guerra, com a queda do Estado Novo e a projeção de um futuro econômico e político que deveria ser “dourado” foi aproveitado como prova de que o Paraná estava cumprindo seu caminho rumo a um futuro marcado pelo progresso. O discurso de A Divulgação apresentava um Paraná positivado, com riquezas naturais e construções humanas que o tornavam semelhante aos grandes centros nacionais. Retomar o paranismo e construir essa visão do Paraná coloca A Divulgação na esteira de diversos projetos que se pautaram em um discurso marcado pelo ufanismo regional; a identidade 365 Redação. A Divulgação. Fevereiro e Março de 1948. P. 39. 366 MARTINS, Romário. Paranistica. A Divulgação. Fevereiro e Março de 1948. P. 38.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

20 5

paranaense que pretendia estabelecer, ou seja, um Paraná moderno e fadado ao progresso, e a revista alimentava a sociedade com essas representações, tornando o seu trabalho responsável pela disseminação desse imaginário social367. Em setembro de 1955, A Divulgação tem novamente um editorial intitulado Divulgando. Neste texto, Velloso lembra que o periódico está se aproximando do décimo aniversário e que nesta altura a revista já tem seu perfil delineado. O termo paranismo, enfatizado no primeiro Divulgando, não aparece mais. Longe de exaltar os feitos dos seus pares, o editorial ressalta a qualidade técnica do periódico e, em uma posição muito diferente daquele evidenciada no ato de seu lançamento, afirma: “Os mais variados temas sociais, econômicos, políticos e artísticos são ventilados de modo sintético e sugestivo, livres de injunções de grupo.368 Nesse momento, a revista explicitamente se aparta de qualquer vínculo com o paranismo. O abandono do discurso paranista havia marcado as páginas de A Divulgação desde 1953. Se em alguns momentos daquele ano, que marca a comemoração do centenário da emancipação política do estado, a revista vinculou em suas páginas notícias sobre as festividades do centenário e chegou mesmo a publicar uma edição especial intitulada Álbum do Centenário em que reuniu fotografias de momentos históricos do estado, não há mais nenhuma referência ao paranismo ou algo que se assemelhe. Ambos os processos, o de retomada do paranismo e o de afastamento do discurso construído por Romário Martins só permitem uma possível compreensão a partir de hipóteses, afinal, a documentação ainda não permite se assegurar de quais teriam sido os potenciais objetivos desses movimentos. Como hipóteses da 367 Nos afirmamos aqui na discussão de Bronislaw Baczko, aceitando sua definição de imaginário social e enfatizando o papel que os meios de comunicação de massa ocupam nesse processo. Citando o autor “Num só movimento, os meios de informação de massa fabricam uma necessidade, que abre possibilidades inéditas a propaganda e encarregam-se, simultaneamente, de satisfazer essa necessidade. Com efeito, aquilo que os mass media fabricam e emitem, para além das informações centradas na actualidade, são os imaginários sociais: as representações globais da vida social, dos seus agentes, instâncias e autoridades; as imagens dos chefes, etc. Em e mediante a propaganda moderna, a informação estimula a imaginação social e os imaginários estimulam a informação, contaminando-se uns aos outros numa amálgama extremamente activa, através da qual se exerce o poder simbólico. BACZCO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund el Alii. Anthropos-Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 313. 368 VELLOSO, Arnauld F. Divulgando. A Divulgação. Nº 94-95, Curitiba, Setembro de 1955. (grifos nossos)

aproximação d’ A Divulgação com os projetos paranistas podemos apresentar três situações que não são excludentes e, portanto, podem, cada uma, concorrer com a sua parte neste percurso: a primeira tese está relacionada a um periódico vanguardista surgido um ano antes de A Divulgação, sob a direção de Dalton Trevisan, O Joaquim faria uma critica violenta aos paranistas tratados como medíocres. A Divulgação seria assim, uma resposta de Velloso e seus pares aos ataques, reafirmando o lugar dos paranistas na construção do Paraná. Uma segunda explicação,está ligada a perda de parte do território do Estado por inciativa do governo Vargas que criou o Território Federal do Iguaçu. A perda territorial reacendeu em espaços governamentais o debate sobre a identidade e a unidade territorial e pode ter funcionado como catalisador da retomada do paranismo. Por fim, a própria queda do Estado Novo e o fim das restrições a práticas regionalistas poderiam ter fornecido a autorização oficial para que o debate paranista (que parece ter sobrevivido em meios não oficiais) voltasse a se manifestar. O que teria causado o abandono do discurso paranista pela A Divulgação permanece uma incógnita: a morte de Romário Martins, líder inconteste do grupo, pode ter desestruturado o debate que já tinha concorrência em outros espaços como os projetos acadêmicos desenvolvidos a partir dos anos de 1950 pela UFPR que tinha então, linhas de pesquisa em História Econômica e História Demográfica. De acordo com Szeszs: Tais estudos ao abordarem o regional, expresso em índices populacionais ou econômicos, por meio de temáticas, como ocupação territorial e estrutura social, priorizam dados geográficos e índices populacionais. Nessas interpretações, o perfil societário foi transformado em fenômeno em si, e deixaram de investigar a força dos nexos sociais escondidos atrás das transformações da natureza, e dos agregados estatísticos369. Esses outros debates atrairiam a sua cota de intelectuais e de público e, retirariam do paranismo a prerrogativa de construtor da identidade paranaense. Contudo, este é um ponto que merece uma pesquisa a parte. Aqui tratamos apenas de levantar hipóteses que explicassem o abandono do paranismo pela A Divulgação e por 369 SZESZ, Christiane Marques. O conceito de região: discurso e representações do Paraná.

Anais do IV Encontro Regional da Associação Nacional de Hitória – ANPUH/PR: Cultura e Cidadania. Londrina, Outubro de 1995. p. 314.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

20 7

outros grupos que aderiram, eventualmente, as propostas daquele movimento articulado na década de 1920. Considerações finais O trabalho do periódico A Divulgação retomou diversos pontos do movimento articulado nos anos de 1920 e procurou afirmar uma identidade para o Paraná, de estado moderno e destinado ao progresso. Atraiu a principio, diversos intelectuais renomados no estado e por alguns anos, conseguiu manter-se fiel ao projeto que esboçou nas suas primeiras publicações. Mas, não conseguiu escapar ao seu tempo e, a despeito de retomar um discurso aceito como legitimo por diversos grupos não conseguiu sustentar-se como divulgadora dos “feitos paranistas”, alterando ao longo dos anos seu perfil editorial. Ainda assim, é possível perceber que a revista apela para tempos que não os seus: o passado, ao buscar nas falas paranistas a sustentação teórica de seu projeto e o futuro, onde projeto a execução daquilo que apresenta como o destino do Paraná. Diacrônica, na sua trajetória, A Divulgação é também diacrônica naquilo que procura construir como o seu perfil. Sua trajetória, serve para demonstrar que a despeito das restrições institucionais determinados discursos sobrevivem em espaços de sociabilidade e convencem aqueles que poderão ser continuadores de uma obra, por meios nem sempre mapeáveis. Ainda há muito que se investigar sobre o entrecruzamento do paranismo e do universo político paranaense. As retomadas, as negações ou negociações entre o movimento paranista e os grupos políticos poderiam servir para esboçar a extensão das propostas paranistas nos anos que seguiram a sua formulação. Também poderiam servir para, a partir da aprovação ou não daqueles que se utilizaram de elementos paranistas em sua trajetória, perceber, mesmo que superficialmente, a disseminação do movimento no todo social. Outro ponto, implicaria em compreender as limitações de pesquisa sobre o tema tendo em conta as instituições que hoje são proprietárias dessa produção. Cruzar a produção historiográfica paranaense e não paranaense sobre este tema serviria para compreendermos o imaginário acadêmico sobre o tema, evidenciando diferenças e compartilhamentos entre aqueles que conhecem o paranismo antes de exercerem a

função de intelectual e aqueles que somente o conhecem enquanto objeto de pesquisa. Além disso, essas instituições transformaram as produções paranistas em patrimônio e isso, por si só, poderia resultar em uma pesquisa. Ainda por observar também, estão as manifestações paranistas no anos de 1930. Resistindo ao nacionalismo de Vargas e procurando outros espaços de sobrevivência é bastante provável que existam outras produções paranistas, provavelmente, menos ventiladas socialmente. Observar essas produções permitiria compreender a adesão de intelectuais no pós Estado Novo ao paranismo, suas reelaborações e, principalmente, a percepção daqueles que se ocuparam de manter o movimento no período de arrocho do estado. Ainda incluso neste último ponto, poderíamos traçar os percursos intelectuais dos intelectuais ligados A Divulgação e perceber nas suas trajetórias, as relações estabelecidas com o paranismo, ao longo do Estado Novo e também despois do esfacelamento do primeiro governo getulista. A figura de Arnauld Ferreira Velloso, nos parece a mais emblemática, nesse sentido. Chegando ao Paraná a serviço do Estado Novo, ele abandonará suas funções militares e se empenhará no debate, em torno da identidade paranaense. Referências Bibliográficas BACZCO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund el Alii. AnthroposHomem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. BEGA, Maria Tarcisa. Sonho e invenção do Paraná: geração simbolista e a construção da identidade regional. Tese de Doutorado (Sociologia). USP. São Paulo, 2001. DUDEQUE, Irã José Taborda. Espirais de Madeira: uma história da arquitetura em Curitiba. Studio Nobel. São Paulo, Fapesp. 2001. MARTINS, Ana Luiza. Da fantasia à História: folheando páginas revisteiras. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/his/v22n1/v22n1a03.pdf Acesso em: 21 de outubro de 2013 SZESZ, Christiane Marques. O conceito de região: discurso e representações do Paraná. Anais do IV Encontro Regional da Associação Nacional de Hitória – ANPUH/PR: Cultura e Cidadania. Londrina, Outubro de 1995. SOUZA, Fabricio Leal de. Nação e Herói: A trajetória dos intelectuais paranistas. Dissertação de Mestrado (História), UNESP. Assis, 2002. Fontes citadas (em ordem cronológica) VELLOSO, Arnaud F. Divulgando. A Divulgação, Curitiba, n. 1-2, nov.-dez. 1947. Redação. A Divulgação. Fevereiro e Março de 1948. MARTINS, Romário. Paranistica. A Divulgação. Fevereiro e Março de 1948. VELLOSO, Arnauld F. Divulgando. A Divulgação. Nº 94-95, Curitiba, Setembro de 1955.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

20 9

O ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL: o papel dos PCN’S Henrique R. da Silva (Graduação em História: Unoeste – Universidade do Oeste Paulista) Jackeline Cristina A. Oliveira (Graduação em História: Unoeste – Universidade do Oeste Paulista) João B. da Silva (Graduação em História: Unoeste – Universidade do Oeste Paulista) Alba Regina A. Arana (Doutorada em Geografia: Unoeste – Universidade do Oeste Paulista) RESUMO O ensino de História deve desenvolver a reflexão do educando despertando a compreensão da história do mundo e da sociedade na qual ele esta inserido. Desta forma, este trabalho tem como objetivo discutir a importância do ensino de Historia, verificando as mudanças ocorridas no ensino de história nas escolas da rede pública paulista, enfocando o papel dos PCN’s. A pesquisa foi de abordagem qualitativa, cuja opção metodológica foi a pesquisa bibliográfica. Sabemos que a escola é um ambiente de construção de aprendizagem, no qual o procedimento de ensino e aprendizagem deve propiciar ao educando a desenvolver seu pensamento, e nesse procedimento cabe ao professor se interrogar de que forma o educando irá compreender aquilo que o educador apreendeu na universidade. Palavras-chave: Ensino De História; Reflexão; Sociedade; Aprendizagem.

Introdução. O presente artigo tem como objetivo analisar as mudanças ocorridas no ensino de história nas escolas da rede pública paulista. E ainda pretende-se compreender o novo olhar sobre o processo educativo atual enfocando o ensino dos conteúdos de história. Foi realizado um recorte temporal que se inicia nos anos 90, o período em que ocorreram a formação e implantação das mudanças na legislação referente à educação por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais. (PCN’s). A proposta de mudança no ensino de história no Brasil foi resultante das teorias que surgiram na década de 1990, durante a Conferência Mundial sobre Educação para Todos. Os debates tinham como preocupação a elaboração de um conjunto de diretrizes e estratégias voltadas para a

promoção da educação básica com base nos princípios da equidade e qualidade. Promovendo o exercício da cidadania voltado para a construção de uma sociedade plural e democrática. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, cuja opção metodológica foi a pesquisa bibliográfica, que buscou aprofundamento na temática em questão, por meio de leituras, análises e reflexões da produção de autores diversos que discutem o tema. Espera-se que as informações obtidas no referencial bibliográfico durante a pesquisa nos permitam desenvolver e ampliar nossos conhecimentos sobre o tema desenvolvido e que os resultados apontem para um melhor aproveitamento da leitura em suas diversas possibilidades O ensino de História no Brasil Para compreendermos melhor as mudanças propostas no método de ensino de história e nos seus conteúdos é necessário revisitarmos um pouco do ensino da disciplina no Brasil. A História como disciplina obrigatória escolar passou a ser imposta na metade do século XIX, momento que houve a afirmação do Estado Nacional. Abrangendo parte do período imperial e o início da República, sua inspiração era o modelo francês, devido a isso o ensino se direcionava para a formação cultural das elites, e seus conteúdos privilegiavam os grandes heróis nacionais, os seus feitos e sua doutrina. (NADAI, 1992).370 O estudo da História do Brasil como ciência só foi revelado em 1895. Era embasada na cronologia política e nas análises de biografia de brasileiros ilustres, além de situações consideradas expressivas para a consolidação da nacionalidade. (MAGALHÃES, p.169).371 Conforme Kátia Abud372 (1998), esses princípios conduziram os programas e currículos escolares até período muito recente. A História compreensível, cronológica 370 NADAI, Elza. O ensino de História no Brasil: trajetória e perspectiva. In: Revista Brasileira de História, v. 13, n. 25/26, p. 143-162, 1992. 371 MAGALHÃES, Marcelo de Souza. História e cidadania: por que ensinar história hoje. In: Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, p. 168-184, 2003. 372 ABUD, Kátia. Currículos de História e políticas públicas: os programas de História do Brasil na escola secundária. In: O saber histórico na sala de aula, v. 2, p. 28-41, 1998.).

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

21 1

e eurocêntrica passou a ser adestrado nas escolas secundárias como um conhecimento pronto e acabado. Também houve o contato com a Escola dos “Annales”, uma corrente de pensadores e historiadores que apresentavam novas propostas para o conhecimento da história e seus próprios objetos. Com eles a preocupação da história se voltava para a história de longa duração, para a vida política, para a organização social e para o cotidiano. Mudando a forma de se interpretar e entender o significado do que era a história. (FREITAS, 2013).373 Conforme essa nova visão, a importância de estudar o cotidiano das pessoas e seu mundo representou uma profunda ruptura com a maneira de conhecer da história. Durante o regime militar a repressão política-policial fez que a História se ocultasse como disciplina independente, do currículo do ensino. Surge a disciplina Estudos Sociais, assim, o Estado detinha um poderio mais severo sobre o ensino e a importância de como utilizar a História como uma máquina de produção de um espírito cívico. (Nadai, p.157).374 Com o fim da ditadura militar no final da década de 1980, os ares da democracia afloram no país e com ele novas propostas curriculares por todo o país. Era um momento de renovação política em busca da consolidação da democracia. Em meados dos anos 80 os conhecimentos escolares foram intensamente questionados e redefinidos por reformas curriculares. E dentro dessa renovação foi natural que a disciplina de história também buscasse uma mudança conceitual e prática de seus conteúdos e métodos de ensino: “Os historiadores voltaram-se para a abordagem de novas problemáticas e temáticas de estudo, sensibilizados por questões ligadas a história social, cultural e do cotidiano, sugerindo possibilidades de rever no ensino fundamental o formalismo da abordagem histórica tradicional.” (BRASIL, 1997. p.28)375.

373 FREITAS, Itamar. REFORMAS EDUCACIONAIS E OS CURRÍCULOS NACIONAIS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL REPUBLICANO (1931/2009). Cadernos de História da Educação, v. 12, n. 1, 2013. 374 NADAI, Elza. O ensino de História no Brasil: trajetória e perspectiva. In: Revista Brasileira de História, v. 13, n. 25/26, p. 143-162, 1992. 375 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia. Secretaria de Educação fundamental. Brasília: MEC. p.28 SEF, 1997.

Em 1986 inicia-se a redação da proposta curricular de História de 1º e 2º grau, fruto de amplos debates de professores e educadores para sua elaboração. Mesmo assim no decorrer desse processo de redação diversas versões da proposta foram sendo debatidas com os professores. Em relação ao currículo da disciplina de história, as mudanças feitas na gestão de Paulo Renato se prolongaram por muitos anos e a mais notável delas foi à instituição dos Parâmetros Curriculares Nacionais, PCN’s. A própria compreensão de história varia, como nos PCN’s de 1997 e 1998 se mostra resistente o alinhamento aos novos incômodos, como a investida de manter o destaque na experiência coletiva. Assim apesar de manifestar as particularidades entre “saber histórico” e “saber histórico escolar”. Analisando as concepções de ensino para o ensino médio nota-se a ideia de agregar a micro e a macro história, as especificidades e as divulgações e a chamada história das mentalidades. (FREITAS, 2013).376 Os PCN’s a propõem nas séries iniciais e finais a sistematização do ensino históricos por eixos temáticos: História local e do cotidiano, História das migrações populacionais, História das relações sociais, da cultura e do trabalho e História das representações e das relações de poder e no ensino médio os eixos temáticos são propostos para buscar o conhecimentos e desenvolver habilidades, representação e comunicação, investigação e compreensão e contextualização sócio-cultural. A proposta era que o ensino de história passasse a operar com a interdisciplinaridade, transversalidade e chamado currículo por competências, também foi direcionado para promover o desenvolvimento da cidadania e para a capacitação para os usos das tecnologias. Nos últimos anos o grande avanço em termos de ensino e desenvolvimento de capacidades dos alunos centrou-se na elaboração e implantação de uma nova concepção para o ensino de história como disciplina que promove a cidadania e busca a democracia. A promulgação das leis 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e 11.645, de 10 de março de 2008 foram fatores decisivos para a mudança na concepção da história. De acordo com estas leis, a disciplina deveria absorver o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na 376 FREITAS, Itamar. REFORMAS EDUCACIONAIS E OS CURRÍCULOS NACIONAIS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL REPUBLICANO (1931/2009). Cadernos de História da Educação, v. 12, n. 1, 2013.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

21 3

formação da sociedade nacional (Lei n. 10.639/2003). A declarada lei foi alterada cinco anos mais tarde para abranger a luta [...] dos povos indígenas no Brasil, a cultura [...] indígena brasileira, além da sua cooperação nas áreas social, econômica e política, aptos à história do Brasil (Lei n. 11.645/2008). (LIPPOLD, 2008)377 Democratização do ensino no Brasil Com o fim do regime militar o Brasil passou por profundas transformações na área da educação, política e na sociedade. Depois de um longo período de controle às liberdades civis e políticas, começou uma nova fase na história no Brasil com o processo de redemocratização, que foi direcionada para a ampliação dos direitos sociais da população preconizando uma instrução mais ativa dos cidadãos e da sociedade no gerenciamento do rumo do País. E, nessa conjuntura de transformações econômicas e políticas, a educação da mesma forma passou a ser reavaliada. (CASTRO, 2008).378 De modo geral, as demandas em redor da educação nas décadas de 1980 e 1990 apontaram duas diretrizes principais a democratização do ensino e a reorganização da escola, segundo as novas exigências econômicas e tecnológicas de produção. Após a promulgação da Constituição de 1988 foi sancionada a Lei Federal 11.645, de 10 de março de 2008 que alterou a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 a qual implementava as diretrizes e bases da educação nacional, para integrar, no currículo oficial da rede de ensino, a responsabilidade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. As reformas introduzidas na LDBEN pela Lei Federal 11.645, de 10 de março de 2008, não anularam nem rescindiram as leis anteriores, mas ampliaram a obrigatoriedade dos estudos relacionados à questão indígena. Nos anos 1980 e início dos anos 1990 na elaboração dos PCN’s apareceram os questionamentos dos métodos e das concepções entendidas como tradicionais e propunham que os estudos referentes à produção do conhecimento histórico deveriam 377 LIPPOLD, Walter Günther Rodrigues. A África no curso de licenciatura em história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: possibilidades de efetivação da Lei 11.645/2008 e da Lei 10.639/2003: um estudo de caso. [periódico na internet] 2008 378 CASTRO, Marcelo L. Ottoni de. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A EDUCAÇÃO BRASILEIRA APÓS 20 ANOS. [periódico na internet] 2008

proporcionar novos olhares aos professores e alunos. A preocupação da disciplina deveria se direcionar para os agentes condutores da história, para os povos e culturas sobre os quais os estudos deveriam lançar seus olhares, discutindo a introdução de novas fontes utilizadas pelos historiadores na produção do conhecimento e a própria noção de tempo histórico, também apresentaram mudanças nas relações entre a História e outras disciplinas. Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. A intercessão do Poder Executivo nos processos legislativos fez com que, em 1995, surgir-se um episodio extraordinário na história da educação do país: a Leis De Diretrizes e Bases Da Educação Nacional começou a ser normalizada mesmo antes de ser determinada, em dezembro de 1996. (HERMIDA, 2012).379 Com o intuito de estabelecer um modelo educacional inspirado pela globalização o novo currículo foi embasado com a complementação na área da humanas com as ciências naturais e suas tecnologias. Adequando o perfil do aluno às demandas das novas exigências do mercado globalizado. Para atender a esse propósito em 1996 na LDBEM o artigo 2°. Ressaltava a finalidade da educação: a capacidade para o exercício da cidadania, e habilidades para o trabalho. A mesma LDBEM, em seu artigo 35, caracteriza os objetivos do Ensino Médio, afirmando que eles destinam-se à consolidação e o aperfeiçoamento dos conhecimentos, ao mesmo tempo em que projeta o aluno para o trabalho e para a cidadania, sustentando em orientações éticas, além de proporcionar a compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos de nosso tempo. Em 2003 ocorreram alterações na Lei Federal 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEM), com a adição de dois artigos relacionados ao ensino de História: Art.26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura AfroBrasileira. (Incluído pela Lei 10.639, de 9 jan. 2003).

379 HERMIDA, Jorge Fernando. A reforma educacional na era FHC (1995/1998 e 1999/2002): duas propostas, duas concepções. Anais do IX Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”, 2012.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

21 5

Art.79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. (Incluído pela Lei 10.639, de 9 jan. 2003) (GUIMARAES, 2010)380 O artigo 26-A, ao decretar a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura da África e Afro-Brasileira, determina o que ensinar o conteúdo programático, readquirindo a importância do estudo da luta dos africanos e afro-brasileiros. O artigo 79-B das “Disposições Gerais” da LDBEM acrescentou, no calendário escolar, a data nacionalista 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra. Esta data faz referência à memória da morte de Zumbi dos Palmares, um dos fundamentais líderes da luta dos escravos no Quilombo dos Palmares. A busca pela introdução das tecnologias na sala de aula, principalmente na área de humanas ainda apresenta-se como um desafio, já há algumas décadas julga-se necessário introduzir as novas tecnologias para se ter uma aula dinâmica. Conforme Karnal, 2009,381 multiplicaram-se os retroprojetores, os projetores de slides e, posteriormente, os filmes em sala de aula. Mas ele assevera que mesmo com muitos recursos tecnológicos empregados a aula pode ser extremamente conservadora e ultrapassada contando todos os mais modernos meios audiovisuais, e uma aula pode ser muito dinâmica e inovadora utilizando giz, professor e aluno. Concluindo que podem ser utilizados os novos meios de aprendizagem, mas é a própria concepção de História que deve ser repensada. Analises dos PCN’s e suas propostas para o ensino de História Nesse cenário das reformas educacionais brasileiras dos anos 1990, o MEC divulgou os Parâmetros Curriculares Nacionais. O processo de preparação dos PCN’s passou por um estudo efetuado, a requisito do MEC, pela Fundação Carlos Chagas, a respeito de propostas curriculares de estados e municípios brasileiros. Com base desses estudos, elaborou-se uma “versão preliminar” e colocou-se um debate nacional, do

380 DA SILVA, M.; GUIMARAES FONSECA, S. Ensino de História hoje: errâncias, conquistas e perdas. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 31, n. 60, p. 13-33, 2010

381 KARNAL, Leandro. História na Sala de Aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2004.

qual se envolveram professores universitários, representantes de secretarias estaduais e municipais de educação, além de outros educadores e pesquisadores. E sobre a proposta focada ao Ensino Médio, a disciplina História é exposta como parte complementar da área: “Ciências Humanas e suas Tecnologias”, ao mesmo tempo em que orientação curricular, o PCN + exibe a proposta de trabalhar a História ensinada a partir dos seguintes eixos temáticos: cidadania: diferenças e desigualdades, cultura e trabalho, transporte e comunicação no caminho da globalização e nações e nacionalismos .(DE MACEDO NETO, 2012).382 Os PCN’s para o ensino médio apontam uma observação aprofundada sobre as temáticas e conceitos que já se mostraram em outros anos, apesar disso têm como objetivo central a preparação para a cidadania, ou seja, há uma responsabilidade em organizar a formação da cidadania com o conhecimento e domínio dos conceitos históricos. Não o objetivo em profissionalizar o aluno, no entanto é necessário que eles possuam conhecimento sobre os fatos e acontecimentos históricos. Um dos propósitos é impor o trabalho pedagógico com propostas de leitura de bibliografia especifica sobre os temas estudados. Na perspectiva dos PCN’s, o ensino de história deve associar-se com as outras disciplinas que compõem a área denominada Ciências Humanas e suas Tecnologias. A abordagem que decorre nos Parâmetros para o ensino de história recomenda claramente que a escola deverá se submeter aos temas da História Nova, principalmente aqueles relacionados ao cotidiano, realizando as articulações entre a micro e a macro história, buscando nas peculiaridades dos resultados os desenvolvimentos necessárias para as percepções do processo históricos. Baseando-se dos problemas contemporâneos, cabe ao professor escolher as competências estabelecidas pelos PCN’s que deve aprimorar, para poder formar os conteúdos que sejam significantes para o educando. Desse modo a seleção acarretará, necessariamente, em apoderação de posições teórico-metodológicas claras e objetivas, para que a constituição dos objetos seja as melhores para o entendimento da contemporaneidade. Os objetivos dos PCN’s e como eles tem método para suas aplicações 382 DE MACEDO NETO, Manoel Pereira. CURRÍCULO E ENSINO DE HISTÓRIA NOS DOCUMENTOS OFICIAIS: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA HISTÓRIA ENSINADA NO ESTADO DA PARAÍBA. Revista Espaço do Currículo, v. 5, n. 1, 2012

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

21 7

Os PCN’s, especificamente para ensino de História, direcionam-se para uma reavaliação técnicas dos textos, onde passaram a constatar os fundamentos do conhecimento histórico; também é realizada uma análise do currículo pelo professor, com isso há a redefinição do papel do docente, inserindo sua liberdade na escolha do seu método pedagógico. Outro ponto a ser apresentado é o uso da fundamentação pedagógica norteada no construtivismo, por onde o aluno passará a ser o sujeito ativo do desenvolvimento de aprendizagem e não simples receptor de conhecimentos, já que o aluno não é uma folha em branco pronta para ser escrita, ele apodera-se de conhecimentos prévios de mundo e de sociedade. No ensino médio os PCN’s indicam uma reflexão enraizada sobre os conteúdos e conceitos que já se apresentaram nos anos anteriores, porém tem como objetivo essencial à preparação para a cidadania. Não há intuito em profissionalizar o aluno, mas é preciso que ele possua conhecimento sobre as conjunturas e acontecimentos históricos. Uma das finalidades dos PCN’s é insistir no trabalho pedagógico com recomendações de leitura de bibliografia sobre os temas estudados. O ensino de História tem seu papel crucial neste levantamento, por meio destas novas posturas o professor deve orientar a formação da identidade nacional. As orientações dos PCN’s são sobre as escolhas de praticas pedagógicas que possibilitem o aluno refletir sobre seus valores e práticas cotidianas, relacionando-as com as problemáticas históricas que não constituem seu grupo de convívio, mas que fazem parte da composição da História local, regional e nacional. Dessa forma o aluno tem uma noção de como é constituído o todo nacional, de que a História é marcada por conflitos, que existem continuidade e também descontinuidades das práticas e dos valores ao longo das transformações históricas. De acordo com Bittencourt (2004)383 as propostas recentes tem procurado concentrar-se na relação entre ensino e aprendizagem e não mais exclusivamente no ensino. Para ensino de História, a autora aponta que não se deve ter como apreensão do conteúdo somente a capacidade de dominar informações, conceitos de determinado período histórico, mas também a capacidade de fazer comparações com outras épocas,

383 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.

períodos, utilizando novos dados, como tabelas, imagens, mapas e interpretações de textos. Avanços do PCN’s, novas propostas metodológicas. A disciplina de História, em seu desenvolvimento de concepção como conteúdo escolar, passou por numerosas etapas no que se referem as temáticas a serem ensinadas, aos questionamentos sobre sua aplicabilidades na docência e aos princípios que precisariam ser empregados. O ensino baseado na memorização dos acontecimentos e a preferência por aula expositiva acabou por estratificar uma idealização de ensino de História. Nela, o importante era ter maior acumulo de conhecimento decorado. Além do mais, um eficiente educador era aquele que exigia e cobrava a memorização de datas e nomes. Sendo assim, gerações de educadores e educando foram sendo formados: aprendendo História sem, efetivamente, apreendê-la de maneira reflexiva e consequentemente, significativa. Na década de 90, foram criados os PCN’s, e com o passar dos anos, começaram a serem lidos e compreendido, adequado criticamente as diretrizes curriculares de diversos estados e municípios começaram a se definir com base neles. Em seguida tornaram-se conhecidos, foram sendo apropriado como um documento provocador de mudanças, que introduz a definição do que é preciso ensinar em todas as disciplinas, especialmente ao constatar que a escola, consequentemente como a sociedade, é responsável pela concepção de competências mais constante, que habilitam a acessar conhecimentos e lidar com métodos em permanente mudança, do mesmo modo que a sociedade. (PETRY KEHRWALD E FILIPOUSKI, 2012).384 Um aspecto geral da temática nos PCNEM é que se extinguiram as antigas listas de conteúdos fatuais mínimos determinados, para dar espaço a orientações que têm por finalidade organizar os conteúdos que o professor seleciona com autonomia. São parâmetros que buscam facilitar e orientar os professores na preparação dos conteúdos propícios aos alunos das escolas em que trabalha. Desse modo, esses parâmetros são preparados como indicador daquelas demandas consideradas essenciais para que o educador e a escola efetuem os currículos de História mais adequados que se harmonizam com a formação dos educandos de suas específicas regiões e escolas, que têm perfis e demandas distintas. 384 PETRY KEHRWALD, Maria Isabel; FILIPOUSKI, Ana Mariza R. EDUCAÇÃO BRASILEIRA DEPOIS DOS PCN: VISÃO DE FUTURO “[periódico na internet], 2012”.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

21 9

Como consequência os Planos de Ensino, do mesmo modo que a Proposta Pedagógica vêm se modificando em documento de identidade da escola, onde no lugar em que são demonstrados os objetivos que contemple e que tenha nexo com a uma sociedade inteira, sendo similarmente conduzidos do que se deve atender em termos avaliativos de todos que a apresentam-se. Os documentos precisam ser corrigidos periodicamente, deste modo às incertezas se reaparecem, de certa forma os planos da escola, as vantagens dos estudantes, as carências das famílias, as experiências dos professores, evidenciam uma etapa muito confiante de mudanças. Visto que foram difundidos os PCN’s vêm facilitando o professor na sua função de se empenhar em incentivos à sua atividade docente e de ocasionar contemplações que conduza transformações qualitativas no ensino. É inquestionável sua relevância como idéia educativa, como limite que inicia novas e diferentes maneiras de aproximação da História, principalmente no ambiente escolar. Os parâmetros se estabelecem em um progresso na grandeza do ensino da disciplina, visto que indica uma concepção de trabalho e de entendimento da História. Com a possibilidade de expansão das abordagens e o conceito a respeito das fontes documentais para o conhecimento da História, motivando a busca pela modificação dos recursos didáticos e a aplicação de novas linguagens em sala de aula. São modificações que se sobrepõem para os professores se aprimorarem e buscar uma constante progressão profissional. Esse novo papel destinado ao professor de não ser mais o depositário único do saber em sala de aula, vai de encontro com o pensamento de Schmidt e Cainelli385 ao afirmarem que “a concepção de documento histórico exclui qualquer relação autoritária, como a do ensino sempre centrado no professor”.

CONCLUSÃO Criados nos anos 90, os PCN’s foram formulados com a responsabilidade de se tornarem um referencial para o currículo das escolas, sendo assim, foram produzidos documentos com os conteúdos a serem ministrados que abrangiam o Ensino Fundamental e Médio. Tinham como meta atender às novas exigências advindas do processo da abertura democrática, o que levou ao estabelecimento de 385 (SCHMIDT,Maria Auxiliadora, Cainelli, Marlene. Ensinar História. 2ª ed. São Paulo; (Coleção pensamento e ação na sala de aula) Scipione, 2009

uma nova regulação social nas políticas educacionais que traziam consigo novos enfoques, ao abordarem conceitos, como cidadania, democracia e direitos sociais, mas que também visam a realidade social estabelecendo assim inter-relações para a consolidação do regime democrático. Vale ressaltar que os PCN’s avançaram consideravelmente em relação aos currículos considerados tradicionais trazendo alguns aspectos da realidade social para dentro da escola, abrindo a possibilidade de que questionamentos sejam feitos em relação ao cotidiano. No século XXI, a visão da disciplina de história procura estabelecer articulações entre as dimensões da cultura histórica e a cultura escolar numa perspectiva mais emancipatória que vise a conscientização dos alunos e a ampliação de seus conhecimentos históricos.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

22 1

Revista de Imigração e Colonização: ideário temático da política imigratória Jesiane Debastiani Mestranda em História – UNESP/Assis

Resumo Criada em 1940, a Revista de Imigração e Colonização é considerada como órgão oficial do Conselho de Imigração e Colonização, se tornando um dos principais veículos relacionados à divulgação e discussão da política imigratória desenvolvida pelo Governo de Getúlio Vargas nos anos de 1940 a 1945. Através de um inventário classificatório da Revista, a presente comunicação tratará das temáticas que percorrem os artigos das Revistas, para isso será realizada uma analise dos temas, apresentando seus principais autores, para que desta forma, buscar-se entender a preocupação do Governo Vargas diante de uma politica imigratória que se adequasse ao Brasil. Palavras Chave: Revista de Imigração e Colonização, Política Imigratória, Governo Vargas.

Introdução No Brasil, até grande parte do século XIX, ainda predominava a mão de obra escrava, principalmente na grande lavoura cafeeira, e a imigração ainda não tinha despertado interesse econômico para o Estado e para fazendeiros. Somente com a extinção do tráfico de escravos (1850) e a Lei de Ventre Livre em 1871, governo e proprietários de terras passaram a cogitar com maior ênfase a vinda de imigrantes. Em meados do Oitocentos, uma experiência pioneira foi desenvolvida pela iniciativa particular de Nicolau Campos Vergueiro, que promoveu a imigração, sob o sistema de parceria. Com o fim do sistema escravista, o governo como também cafeicultores que se viram sem mão de obra, intensificaram novas experiências de trabalho com a mão de obra imigrante: sistema de parceria, locação de serviços, colonato.

O sistema de parceira foi substituído pela locação de serviços, mas seus resultados tão pouco agradaram. No final do século XIX ganhou forma o regime de trabalho denominado de colonato. Na década de 1880, surgiu a Imigração Subvencionada, caracterizada pelo financiamento das passagens pelo governo, o que desonerava imigrante e fazendeiro dessa significativa despesa. Foram organizadas na Europa campanhas de propaganda com o intuito de trazerem para o Brasil os imigrantes que se propusessem a trabalhar nas fazendas de café, que desembarcavam em Santos e depois levados para a Hospedaria dos Imigrantes, onde permaneciam por alguns dias até serem encaminhados para as fazendas. O sistema de imigração subvencionada permaneceu até o fim da década de 1920, sendo substituído por uma nova proposta de controle da imigração, mais seletiva e restritiva, característica singular da política imigratória do governo de Getúlio Vargas. Setores da elite do governo Vargas foram influenciados pelo ideário da eugenia vindo, sobretudo, dos Estados Unidos. Além das subdivisões determinadas pelas diferentes correntes já estabelecidas na Europa e nos Estados Unidos, os eugenistas brasileiros trataram de estabelecer sentidos próprios para o movimento no país . Um dos principais pesquisadores e divulgadores das ideias eugênicas no Brasil foi Renato Ferraz Kehl, que contribuiu para o desenvolvimento de uma avaliação e um tratamento eugênico para a imigração. Para ele, a composição da população brasileira era inegavelmente marcada pela fusão com essas “raças inferiores”, desta forma, era possível desejar ou planejar uma política imigratória que evitasse a entrada de mais indivíduos dessa categoria.386 Política Imigratória de Vargas: restrição e seleção Em 1930, quando Getúlio Vargas assumiu a presidência do país, teve início um novo debate sobre a imigração, no qual vários setores da elite se preocuparam em encontrar o imigrante ideal para povoar as vastas terras brasileiras e influenciar na formação do povo brasileiro. 386 GERALDO. Endrica. O Perigo Alienígena: Política Imigratória e Pensamento Racial no Governo Vargas (1930-1945). Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2007.p.15.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

22 3

A Assembléia nacional Constituinte apresentou as primeiras idéias restritivas e seletivas para a evolução da política imigratória, pois nesta foi definida a “lei de cotas”, presente no paragrafo 6º do artigo 121, que determinava as medidas a serem tomadas em relação à entrada de imigrantes, como o estabelecimento do limite anual de dois por cento para cada nacionalidade, referente ao número total dos respectivos imigrantes fixados no Brasil nos últimos cinquenta anos.387 Júlio de Revorêdo, contemporâneo à época em que se fixou a “lei de cotas”, considerava a lei como inaplicável, “e isso pela razão muito simples de que não temos estatísticas das saídas de imigrantes, a não ser de alguns anos para cá. Não se pode determinar o número dos imigrantes fixados, é evidente, sem um confronto entre as entradas e saídas.” 388 Após o regulamento da “lei de cotas”, foi aprovado em 9 de Maio de 1934 o Decreto n.24.215 regulamentado pelo decreto n.24.258, que dispõe sobre a entrada de estrangeiros em território nacional. O decreto, marcado pela presença de ideias eugênicas, explicitava a preocupação do Governo com a entrada de imigrantes no país. Inicialmente o Decreto n.24.258 trazia a classificação, em categorias, dos estrangeiros que entrassem no país, separando-os em imigrantes e não imigrantes, sendo imigrantes primeiramente agricultores e estrangeiros que ao vir para o Brasil permaneçam por mais de trinta dias, exercendo profissão licita, os não imigrantes seriam os imigrante não agricultores. De forma semelhante, ou até mesmo como a base da política imigratória de 1940, o Decreto n.24.215 dispôs sobre os imigrantes que não seriam aceitos em território nacional: aleijado, mutilado, cego, surdo-mudo, deficiente mental, deficiente físico, toxicômano, menor de dezoito anos e maior de sessenta anos, cigano, nômade, analfabetos, de conduta manifestante a ordem publica, estrangeiros que em algum momento foram expulsos do Brasil e estrangeiros que exercessem uma profissão ilícita. Durante a presidência de Vargas, as ideias eugênicas tinham aceitação por parte de membros do governo, como por exemplo, o Ministro da Justiça e Negócios 387 REVORÊDO, Julio de. Imigração. São Paulo: Empresa Gráfica Revista dos Tribunais. 1934. p.47. 388 REVORÊDO, Julio de. Imigração. São Paulo: Empresa Gráfica Revista dos Tribunais. 1934. p.85.

Interiores, Francisco Campos, argumentava que a imigração livre não era algo interessante para o Brasil, onde a entrada de estrangeiros havia se tornado uma questão de polícia. As ideias eugênicas procuravam melhorar a raça brasileira, através do branqueamento, ou seja, da vinda de imigrantes brancos desejáveis ao país e controlando a entrada de estrangeiros através de uma política de imigração, que para o Governo era uma forma de proteger o trabalhador nacional.389 Como já foi analisado, quando Getúlio Vargas assumiu a presidência do país, em 1930, a política imigratória sofreu transformação importante. O Estado deveria controlar e selecionar as correntes imigratórias que mais se adequassem ao país, caracterizando desta forma, a imigração durante o governo Vargas, como uma imigração restritiva e seletiva no que diz respeito ao imigrante. Maria Luiza Tucci Carneiro, ao analisar a política imigratória imposta no Governo Vargas, a considera como uma legislação intolerante que discute a questão da política imigratória imposta no Governo Vargas, acionada de forma a legitimar a ação repressiva contra aqueles que, segundo o discurso oficial, eram considerados elementos ameaçadores à composição racial, à ordem social e política brasileira.390 Fábio Koifman acredita que, sob esse prisma, “a política imigratória no Brasil de fato estabeleceu critérios e regras a serem cumpridas quanto ao tipo de imigrante que o Estado Novo considerava indesejável e desejável. Em uma lógica muito própria dos pensadores eugenistas, que, em última análise, propunham a necessária interferência e a ação do Estado com o fim de melhorar as gerações futuras, foram estabelecidos critérios e valores dentre as características dos diferentes grupos humanos com o fim específico de instruir e controlar de modo a produzir a mais adequada seleção de elementos reprodutivos.”391

Imigrantes “desejáveis” e “indesejáveis” Com uma política imigratória restritiva baseada nas ideias eugenistas o imigrante estrangeiro passou a ser analisado como imigrante desejável ou indesejável

389 KOIFAN. Fábio. Imigrante Ideal: o Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 390 CARNEIRO. Maria Luiza Tucci. A imagem do imigrante indesejável. Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo. Seminários – nº 3: Crime, Criminalidade e Repressão no Brasil República. 2001. 391 KOIFMAN; Fábio. Imigrante Ideal: o Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 38.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

22 5

e, com isso, tornou cada vez mais complicada a entrada de imigrantes indesejáveis no país, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial. Os imigrantes considerados desejáveis para a política imigratória eram os suecos e portugueses. Os portugueses eram aceitos pelo governo de Getúlio Vargas, por serem considerados como a “matriz” do povo brasileiro, por apresentarem maior facilidade de assimilação étnica. Muitos portugueses que vieram para o Brasil, diferentemente do que estipulava a política imigratória, de que os imigrantes deveriam ir para o interior, principalmente para o meio rural, foram para os centros urbanos. Durante todo o governo de Vargas, muitos decretos-leis restringiram a imigração estrangeira, entretanto estes não eram aplicados em sua maioria aos portugueses. Com a Segunda Guerra Mundial, intensificou-se ainda mais o caráter restritivo da imigração, até mesmo à imigração portuguesa, que tinha maior liberdade, foram impostas algumas restrições. No grupo de imigrantes portugueses, as medidas restritivas destinavam-se a sacerdotes, missionários, pregadores e religiosos; a exploradores e membros de expedições que não fossem científicas; a pessoas relacionadas às organizações que utilizavam ideologia contrária à política do Estado Novo; pessoas que pretendiam trabalhar no magistério, escritórios e ocupações urbanas e que não precisassem de conhecimentos específicos; a estrangeiros de outras nacionalidades que tivessem adquirido a nacionalidade portuguesa ou a do Estado Americano e judeus. Para o Governo Vargas, os imigrantes indesejáveis eram: japoneses, negros, indígenas, judeus, pessoas não brancas, pessoas com deficiência física, doentes físicos e mentais, idosos. Como observa Elena Pájaro Peres, tanto o alemão quanto o japonês e o judeu eram os elementos mais visados, sendo apontados como perigosos à segurança nacional por serem ‘inassimiláveis’, postura preconceituosa que vinha sendo alimentada desde décadas anteriores. Durante a Segunda Guerra, essa postura se tornou mais forte, sem, entretanto desaparecer depois de cessado o conflito mundial.392

Maria Luiza Tucci Carneiro considera o governo Vargas como um governo antissemita, que proibiu a imigração de judeus, mostrando certo racismo e preconceito por parte do governo e de seus representantes com os judeus. Em seu livro, Brasil: 392 PERES. Elena Pájaro. “Proverbial Hospitalidade: a Revista de Imigração e Colonização e o discurso oficial sobre o imigrante (1945-1955)”. Revista Acervo. Rio de Janeiro, v.10, n-2, jul/dez, 1997, p 91.

um refúgio nos Trópicos, traz exemplos de pessoas que tentaram entrar no Brasil, mas pelo fato de serem judias, voltaram à Alemanha.393 A Revista de Imigração e Colonização Durante o Estado Novo, vários decretos foram criados para controlar a entrada de estrangeiros, promulgados em 1938, traziam as leis sobre a entrada de estrangeiros, sobre as quotas de entrada, sobre a fiscalização dos estrangeiros, sua hospedagem, sobre as empresas de navegação que traziam os imigrantes e sobre o Conselho de Imigração e Colonização. O Conselho de Imigração e Colonização foi criado em 1938 pelo Decreto-Lei nº406. Seu regulamento, definido no Decreto nº 3.010, teve grande significado sobre a questão da imigração no Brasil. A sede do Conselho se localizava no Palácio do Itamaraty, era composto por sete membros, todos escolhidos por Getúlio Vargas: sendo um Presidente, dois Vice-Presidentes, quatro Conselheiros, além dos Observadores do Estado e o chefe da Secretaria. A nomeação dos membros era feita em decreto referendado pelo ministro de Justiça e Negócios Interiores. O Conselho estava diretamente ligado ao Ministério das Relações Exteriores E era responsável por organizar seu regimento interno. O Conselho realizava reuniões frequentemente para tratar de diversos assuntos. Tinha como principais funções fiscalizar a entrada de estrangeiros, principalmente agricultores, realizarem tratados de imigração com outros países, e estudar as melhores correntes imigratórias para o Brasil. Alguns órgãos estavam relacionados ao Conselho, como o Serviço de Vistos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores (MJNI). Durante o funcionamento do Serviço de Visto do MJNI, quatro nomes foram responsáveis pelo órgão e consequentemente avaliaram os processos de entrada de estrangeiros: Francisco Campos, Vasco Leitão da Cunha, Alexandre Marcondes Filho e Fernando Antunes. Outro órgão também relacionado ao Conselho era o Serviço de Registro de Estrangeiros (SER), responsável por fiscalizar a permanência de estrangeiros no país, de acordo com o regulamento. 393 CARNEIRO. Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos Trópicos: a trajetória dos refugiados do nazi-fascismo. tradução Dieter Strauss, Angel Bojadsen. São Paulo: Estação Liberdade: Instituto Goethe, 1996.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

22 7

Com o surgimento do Conselho de Imigração e Colonização, foi criada a Revista de Imigração e Colonização, em 1940, órgão oficial do Conselho, cuja função principal era divulgar assuntos relacionados à imigração: artigos sobre determinadas correntes imigratórias, pesquisas dos membros do Conselho, legislação, decretos, estatísticas. A Revista era publicada em três ou quatro edições por ano, sendo muitas vezes enviada para o exterior. Os artigos, em geral, eram escritos por membros do próprio Conselho, defendia a imigração de estrangeiros desde que fosse selecionado seu aspecto físico, social, mental e profissional, sendo que o imigrante desejável o agricultor, o técnico e o operário. As edições da Revista de Imigração e Colonização pesquisadas neste trabalho correspondem ao início de sua publicação até o fim do Estado Novo, ou seja, de 1940 a 1945. Durante o período trabalhado foram analisadas dezoito edições da Revista. Anualmente, eram publicados quatro números, apenas os anos de 1941 e 1945 apresentaram três edições, pois uma única revista contemplou dois números, muitas vezes devido ao decorrer da Segunda Guerra Mundial. Analisando a estrutura, a aparência da Revista, entende-se que se trata de um periódico de assinatura para um grupo social especifico, sem caráter comercial, sem apresentar ilustrações, monocromática e com quantidade expressiva de páginas, variando de 150 a 210, com aparência próxima a de um livro. A Revista, como já foi mencionado, era o órgão oficial do Conselho de Imigração e Colonização. Tinha como objetivo publicar pesquisas, debates, leis e decretos, questões políticas em torno da imigração e colonização, como também os problemas demográficos que o Brasil enfrentava. O periódico apresentava em sua composição um sumário, seguido pelos artigos, uma parte denominada Legislação, Noticiário, Livros e Revistas e Estatísticas. É interessante mencionar que a partir do Ano IV, referente a 1943, aparece no início da Revista os nomes de todos os membros do Conselho, os observadores dos Estados da União, o Chefe da Secretária do Conselho e o Diretor da Revista, juntamente com uma tabela do Serviço de Registro de Estrangeiros e os nomes de seus encarregados no decorrer do ano de sua publicação. A Revista trazia um grande número de artigos, escritos sempre por homens, na maioria membros do Conselho – dentre eles, Arthur Hehl Neiva e o major Aristóteles

de Lima Câmara, como parte da pesquisa pretende-se analisar o perfil social e profissional destes homens, no momento sabe-se que muitos intelectuais mantinham uma união com o governo, muitos foram convocados a assumirem cargos no Executivo, ou então, a ocupar os principais cargos nos conselhos, como no caso do Conselho de Imigração e Colonização. Esse contingente de intelectuais encontrava-se dividido em homens de confiança do governo, os administradores da cultura, as carreiras tradicionais e as novas carreiras técnicas. Analisando os intelectuais que se encarregavam do Conselho de Imigração e Colonização e da Revista, percebe-se preliminarmente que muitos faziam parte destas novas carreiras técnicas, pois incorporaram as fileiras estáveis que então se abriram no quadro permanente dos ministérios recém-criados, os inspetores de ensino, de imigração, do trabalho Ideário temático nos artigos da Revista Uma análise, amparada na metodologia desenvolvida no trabalho de Robertha Triches394, através do levantamento dos artigos, dos assuntos mencionados e de seus autores, possibilitou a classificação dos artigos que compõem a Revista por temas. No recorte temporal proposto, de 1940 a 1945, foram publicados 66 artigos que, pensados sob essa ótica, distribuem-se de acordo com os seguintes temas: Eugenia, Dados Estatísticos, Política Demográfica, Assimilação e Nacionalização, Adequação do Imigrante, Guerra e Imigração, Estudos sobre Imigração e Colonização, Economia das Colônias Brasileiras, Imigração e Colonização em outros países e Outros temas. O tema Eugenia contém apenas quatro artigos ao todo na Revista, entretanto é um tema de grande importância, afinal as ideias eugênicas estavam sendo à base de uma politica imigratória restritiva e seletiva, autores como Oliveira Vianna, Edgar Roquette Pinto são os escritores representantes desta temática na Revista, analisando as características antropológicas de arianos, semitas, mongóis, como também as características antropológicas do povo brasileiro. A temática da eugenia presente na Revista mostra uma preocupação do Conselho de Imigração e Colonização e dos representantes do governo, com o tipo 394 TRICHES. Robertha Pedroso. Os sentidos do Atlântico: a Revista Lusitania e a colônia portuguesa no Rio de Janeiro. Tese de Mestrado. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2011.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

22 9

antropológico de imigrante que vem para o Brasil e como ele pode contribuir para o branqueamento da população. Dados Estatísticos é um dos temas menos trabalhados na Revista, contendo apenas dois artigos, seus autores são o médico Antônio Gavião Gonzaga e Giorgio Mortara, que em 1939 veio para o Brasil exercer a função de assessor técnico do Conselho Nacional de Estatísticas, na Revista são apresentados os dados estatísticos da imigração japonesa para o Brasil em 1908 a 1940 e o censo demográfico do Brasil de 1940-1941. Giorgio Mortara em seu artigo chega à conclusão de que o desenvolvimento das populações das capitais nos últimos cinquenta anos foi relativamente maior do que a população total.395 Desta forma, percebe-se que a maior parte da população de imigrantes ainda permanece nas capitais, levando a uma superpopulação nestes locais, enquanto que os interiores dos Estados necessitam de imigrantes para seu povoamento. Política Demográfica é um tema pouco frequente nas páginas da Revista, com três artigos de Giorgio Mortara, Aristóteles de Lima Câmara e Dulphe Pinheiro Machado, sendo os dois últimos membros do Conselho de Imigração e Colonização, os assuntos abordados são o desenvolvimento demográfico da América, especialmente o Brasil nos anos de 1840-1940, um artigo que aborda um assunto interessante do autor Aristóteles de Lima Câmara, analisa a politica demográfica brasileira, concluindo: “que a América do Sul pode perfeitamente abrigar uma população igual a de toda Eurásia, e que o Brasil pode conter uma população duas vezes maior do que a que poderão conter os Estados Unidos e o Canadá reunidos. Adianta ainda que o vale do Amazonas esta em condições de conter uma população fortemente densa.”396

A temática Assimilação e Nacionalização, com sete artigos, trata dos processos de assimilação e nacionalização ao qual os imigrantes são impostos, assuntos como a colonização alemã no sul do Brasil e o modo que ocorreu esta assimilação, a importância da nacionalização do ensino, povos que melhor se assimilaram com a população brasileira, a arte popular brasileira como uma forma de nacionalização do 395 MORTARA. Giorgio. O censo demográfico de 1940. Revista de Imigração e Colonização. Ano III, n.1;Abril de 1942. p.107. 396 CÂMARA. Aristóteles de Lima. Alguns reparos sobre a política demográfica brasileira. Revista de Imigração e Colonização. Ano II, n. 2 e 3; Abril e Julho de 1941. p. 818.

imigrante e a raça, língua e religião como determinantes para o caráter nacional de um povo. Autores como Ribeiro Couto, Renato Almeida, Joaquim Pimenta. Antônio Gavião Gonzaga analisa a importância da nacionalização: “em um país de tão complexas condições biogeográficas, econômicas e culturais, com uma enorme área territorial e baixa densidade de população, como o nosso, o problema da nacionalização é de vital importância: a par da integração da nossa própria gente no sentido da sua maior e mais intensa cooperação no conjunto das atividade da vida nacional, imperioso se torna seja ainda intensificado o abrasileiramento dos alienígenas.” 397

O tema Adequação do Imigrante com apenas dois artigos, de autoria de Dulphe Pinheiro Machado e Júlio Oscar Tenório, trata da adequação do estrangeiro como caráter temporário e o conceito de apátrida e como é visto esse imigrante considerado apátrida, e que deveria haver um Decreto especificamente para este tipo de imigrante. Guerra e Imigração é um tema que surge nas edições de 1943, após o Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial, com isso surge uma preocupação sobre o contingente imigratório que virá para a América com o fim da guerra e os refugiados de guerra. Na Revista esta temática, com seis artigos, apresenta autores como Castro Barreto, Estanislau Fischlowitz, Fernando Mibielli de Carvalho, Afonso Bandeira de Melo, Mauricio Wellisch trabalharam a imigração no após-guerra, migrações e a Paz Futura, as formas de imigração que deveriam ser empregadas após a guerra. Para Fernando Mibielli de Carvalho, com o fim da Segunda Guerra, “haverá no Mundo um excesso de população faminta e desamparada a colocar onde há espaço e condições melhores de vida, a América do Sul (especialmente o Brasil) possui grande extensão de território vazio capaz de receber nossos irmãos. Assim sendo o Brasil terá de abrir suas portas a imigração para acolher uma parte do excesso de população de outras regiões do globo.”398

A temática mais trabalhada na Revista, Estudos sobre Imigração e Colonização, com trinta artigos, possui autores como: José de Oliveira Marques, Henrique Doria dos Vasconcelos, Afonso Arinos de Melo Franco, Lincoln Nodari, Péricles de Melo Carvalho, Goldophim Torres Ramos. Nestes trinta artigos os assuntos apresentados são referentes a estudos, pesquisas, relatórios de viagens, como: influência estrangeira na história social de 397 GONZAGA. Antônio Gavião. Fatores de assimilação nacionalizadora. Revista de Imigração e Colonização. Ano I, n.4; Outubro de 1940. p. 849. 398 CARVALHO. Fernando Mibielli de. Ainda a emigração do após-guerra. Revista de Imigração e Colonização. Ano IV, n.4; Dezembro de 1943. p.68

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

23 1

Minas Gerais, composição da sociedade brasileira, evolução da política imigratória, relatório de viagem feita a Bastos e ao Vale do Itajaí, transporte de trabalhadores nordestinos a Amazônia, imigração dos sulistas dos Estados Unidos para o Brasil, meios e processos para se escolher o imigrante desejável, fatos heroicos de Félix Pacheco, Artur Hehl Neiva e Miguel Couto contra a campanha nipônica. O autor Dulphe Pinheiro Machado, preocupado com o imigrante “desejável” para o país, conclui: “para encher nossos vazios demográficos, temos necessidade de braços; todavia, de braços ordeiros, sadios e operosos, de elementos úteis a coletividade. Precisamos de agricultores capazes de pôr em evidencia nossas enormes riquezas naturais; temos carência de técnicos e de operários qualificados, que possam promover o desenvolvimento de nosso parque industrial e de contribuir para o nosso engrandecimento econômico.” 399

O tema Economia das colônias brasileiras, contendo sete artigos e autores como: Frank W. Bulcock, Emilio Willens, Rubens Massena, Luís Frederico Kalkman, abordam um relatório escrito por Frank W. Bulcock, Ministro da Agricultura e Pecuária do Estado de Queensland, na Austrália em visita ao Brasil para estudar a agricultura do país, desenvolvimento econômico em diferentes núcleos coloniais, comercio que as colônias alemãs constituídas em países transatlânticos podiam manter com seu país de origem, especificamente no caso das colônias no Brasil, relatório da Divisão de Terras e Colonização sobre a visita a algumas colônias, onde foram analisados os trabalhos para sua fundação, sendo visitadas as colônias de Goiás, a colônia do Amazonas, Boa Vista, a colônia agrícola nacional do Pará e a colônia do Maranhão. Imigração e Colonização em outros países, apresenta apenas três artigos, tendo como principal autor José de Oliveira Marques, os artigos abordam uma viagem feita a Argentina em busca de informações sobre a organização colonizadora do país, documentos sobre a corrente imigratória de sulistas dos Estados Unidos que vieram para o Brasil a partir de 1886 e a questão agrária no Uruguai no ano de 1945. A ultima temática Outros Temas, contendo dois artigos, são de autoria de Carlos Frederico Ph de Martius e José Augusto. A Revista traz aos seus leitores um documento escrito há cem anos em que Carlos Frederico Ph. de Martius expõe suas considerações sobre a História do Brasil e um artigo que trata da importância de educar as mães, entretanto para isso é necessário que se tenha uma escola doméstica 399 MACHADO. Dulphe Pinheiro. Meios e processos de atrair imigrantes desejáveis. Revista de Imigração e Colonização. Ano V, n.3; Setembro de 1944. p.464.

para ensinar essas mulheres a se tornarem verdadeiras donas de casas, o artigo também traz a questão da mortalidade infantil que muitas vezes se deve a deficiência na alimentação das crianças. Considerações Finais A Revista teve papel importante na divulgação e defesa da política imigratória do Governo Vargas. Uma política restritiva, que procurava selecionar o imigrante ideal, restringindo ou mesmo proibindo a entrada dos “indesejáveis”. Muitos aspectos dessa política fazem parte das páginas da Revista de Imigração e Colonização, objeto de estudo desta pesquisa. Com a classificação dos artigos em temática percebe-se a importância que o Governo e sua política imigratória davam às questões relacionadas à eugenia e à assimilação e nacionalização, como também aos estudos sobre imigração e colonização – a temática mais trabalhada pela Revista, com 30 artigos. Escritos, em sua maior parte, concentrados nas publicações dos anos de 1943 e 1944, época em que o Conselho de Imigração e Colonização restringiu a entrada de imigrantes e apenas se dedicou a estudar as correntes imigratórias mais adequadas ao Brasil. Chega-se à conclusão de que havia a preocupação do Conselho de Imigração e Colonização em aprimorar a Imigração e Colonização no país. Percebe-se também a preocupação do Conselho com as correntes imigratórias após o fim da Segunda Guerra Mundial, sobre o modo que a política imigratória deveria agir com a grande movimentação de imigrantes que se iniciaria com o fim da Guerra. Temas como Eugenia, Assimilação do Imigrante e a Adequação deste, ilustram a importância da eugenia na politica imigratória na definição do tipo de imigrante desejável e indesejável e quais as correntes imigratórias mais adequadas à conjuntura nacional. FONTES Revista de Imigração e Colonização, 1940-1945. BIBLIOGRAFIA BASTOS, Pedro Paulo Zahluth; FONSECA, Pedro Cezar Dutra (orgs.). A era Vargas: desenvolvimento, economia e sociedade. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

23 3

CAMMAROTA. Luciana. Imigrantes nas cidades no Brasil do século XX, coordenação: Maria Helena Simões Paes, Íris Kantor. São Paulo. Editora Atual, 2007. CARNEIRO. Maria Luiza Tucci. “A imagem do imigrante indesejável. Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo”. Seminários – nº 3: Crime, Criminalidade e Repressão no Brasil República. p.1-14, 2001. CARNEIRO. Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos trópicos: a trajetória dos refugiados do Nazi-Fascismo. Tradução de Dieter Strauss, Angel Bojadsen. São Paulo: Estação Liberdade: Instituto Goethe, 1996. CODATO. Adriano Nervo, GUANDALINI JR. Walter. Os autores e suas ideias: um estudo sobre a elite intelectual e o discurso politico do Estado Novo. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 32, 2003, p. 145•164. FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro: 1930-1983. Rio de Janeiro: FGV, 1983. GERALDO. Endrica. “O combate contra os “quistos étnicos”: identidade, assimilação e política imigratória no Estado Novo”. Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v15, n-1, pág. 171-187, 2009. GERALDO. Endrica. O Perigo Alienígena: Política Imigratória e Pensamento Racial no Governo Vargas (1930-1945). Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2007. GONÇALVES. Paulo Cesar. Mercadores de Braços, Riqueza e Acumulação na Organização da Emigração Europeia para o Novo Mundo. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2008. GONÇALVES. Paulo Cesar. Migração e Mão-de-Obra: Retirantes Cearenses na economia cafeeira do Centro-Sul (1877-1901). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2002. KOIFMAN; Fábio. Imigrante Ideal: o Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. LESSER, Jeffrey. “Um Brasil melhor”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 21. n. 1, 2014. MICELI. Sérgio. Intelectuais a brasileira. São Paulo. Companhia das Letras. 2001. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Estado Novo: ideologia e poder /Lúcia Lippi Oliveira, Mônica Pimenta Velloso, Angêla Maria Castro Gomes. Rio de Janeiro : Zahar, 1982.

PERES. Elena Pájaro. “Proverbial Hospitalidade? A Revista de Imigração e Colonização e o discurso oficial sobre o imigrante (1945-1955)”. Revista Acervo. Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 85-98, jul/dez, 1997. PRADO JUNIOR. Caio. 1907-1990. Evolução política do Brasil e outros estudos. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1980. REVORÊDO, Julio de. Imigração. São Paulo: Empresa Gráfica Revista dos Tribunais. 1934. TRICHES. Robertha Pedroso. Os sentidos do Atlântico: a Revista Lusitania e a colônia portuguesa no Rio de Janeiro. Tese de Mestrado. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2011.

A escrita da história e a narrativa biográfica em Raimundo Magalhães Junior

João Muniz Junior (Faculdade de Ciências e Letras de Assis, UNESP)400

Resumo: 400 Esta comunicação é resultado de uma pesquisa de Mestrado em História financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

23 5

Raimundo Magalhães Junior procurou escrever retratos biográficos assumindo o desafio de pari passu contar a história de uma época. As narrativas de vida desenvolvidas por esse autor estão cuidadosamente ancoradas na superfície irregular do terreno histórico do tempo em que viveram os seus protagonistas. Contemporâneos de Magalhães projetam a imagem do trabalhador incansável, pesquisador nato, revisor intransigente de si mesmo e dos outros, autor bissexto, historiador e literato por excelência, possuidor do hábito de nunca parar de pesquisar sobre um biografado, seja pelo gosto da pesquisa, seja pela oportunidade de efetuar acréscimos em futuras reedições. Ainda segundo seus contemporâneos, algumas facetas próprias deste biógrafo: do historiador, a tenacidade para a pesquisa; do jornalista, o estilo leve e envolvente; da experiência de escritor, a “alma” de literato. Palavras-chave: História; Biografia; Raimundo Magalhães Junior. Introdução A biografia possui os ingredientes necessários para atrair a atenção do leitor: a ideia de ser o receptáculo de uma vida sobre a qual nutrimos uma quase necessidade de compreensão, reflexão, o desejo de olhar no espelho das palavras que procuram captar uma trajetória pessoal que, na maioria dos casos, já não faz mais parte do mundo dos viventes e encontrar um pouco de si mesmo; a busca por experiências de vida que inspirariam, libertariam da própria existência, mesmo que por breves momentos. As fronteiras do gênero biográfico são reconhecidamente fluidas e em cada época esta modalidade de escrita foi alvo de expectativas que correspondiam ao desejo de se aproximar deste ou daquele modelo.401 No mundo antigo, na hagiografia, na modernidade, nas ciências sociais ou na historiografia, a biografia foi objeto de disputas epistemológicas, teórico-metodológicas, mas nunca perdeu sua essência: a constituição híbrida, isto é, a tensão entre um regime de verdade e a liberdade criativa402. Trata-se de um gênero de escrita que sofre de desconfiança, para dizer o mínimo, como pode exemplificar Bakhtin: O mundo da biografia não é fechado nem concluído, e o princípio de fronteiras firmes não o isola no interior do acontecimento da existência. A biografia, decerto, participa do acontecimento, mas é só pela tangente [...] 401 REVEL, Jacques. História e Historiografia: exercícios críticos. Tradução de Carmem Lúcia Druciak. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.

402 LORIGA, Sabina. O pequeno x: da biografia à história. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

[uma vez que a sua] participação direta ocorre o mais perto possível do mundo da família, da nação, da cultura. A biografia é um ato orgânico e ingênuo que se realiza na tonalidade estética, no interior de um mundo em princípio aberto, mas que tem seus próprios valores autoritários e organicamente autossuficientes. A vida biográfica e o discurso biográfico sobre a vida estão imersos na fé e no calor que dela emanam; a biografia é profundamente confiante; [...] da mesma forma que a confissão repercute fora das suas próprias fronteiras. [...] Como os valores biográficos estão submetidos ao domínio da alteridade, eles não são garantidos e nada os mantém, pois não podem ser internamente fundamentados por completo. (BAKHTIN, 2000, p. 179-180).403 A biografia desde o seu surgimento na Antiguidade, quando ainda era chamada de “vidas” se distinguia da história, pois além de esta última ser a narrativa das coisas públicas também é guiada pelo desejo de verdade, enquanto que no biografismo, gênero descritivo tanto do público quanto do privado, se desenvolve além de um discurso de verdade, também a abertura para a imaginação. Ou seja, a biografia nasce como gênero híbrido, compósito. Isto foi por muito tempo a marca de nascença que simbolizava o estigma da biografia, mas hoje podemos enxergar nesta marca a singularidade mesmo de um sucesso e mais, de veredas ricas em possibilidades de análise e escrita historiográfica. O gênero biográfico, enquanto forma narrativa permite que o leitor teça comparações entre sua própria história com a de outra pessoa, independentemente do tempo e do lugar, isto é possível pelo fato de que as vicissitudes humanas são atemporais: “as biografias influenciam o modo como os leitores enxergam a natureza humana em geral, certos indivíduos em particular ou a si mesmos”. (VILAS BOAS, 2002, p. 38)404. Todavia, a ideia de que a biografia atende um leitor em busca de si mesmo se choca com outra noção, a de que as biografias visam atender os apelos de leitores alienados, fúteis e curiosos sobre a vida dos biografados. São muitas as interpretações para aquilo que se considera um “retorno” da biografia: a crise do marxismo, a libertação de uma história quantitativa e serial que havia subjugado a história factual, ou seja, a evolução da historiografia francesa, o desenvolvimento do diário e da autobiografia, o crescimento de um público leitor 403 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 404 VILAS BOAS, Sérgio. Biografias & biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Samus Editorial, 2002. .

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

23 7

erudito, ou não, sedento de narrativas (auto)biográficas, ou ainda, o apelo ao voyeurismo. Todavia, a confluência da reflexão historiográfica e do gosto do público pela biografia se operou em virtude de um fator mais determinante: a renovação do individualismo.405 Apesar de serem variáveis as tentativas de explicação para o boom do gênero biográfico das últimas décadas, uma coisa não se pode negar: a importância do gênero na reflexão historiográfica atual. Levi (1996) destaca que A biografia constitui [...] o canal privilegiado através do qual os questionamentos e as técnicas peculiares da literatura se transmite à historiografia. Muito já se debateu sobre esse tema, que concerne sobretudo às técnicas argumentativas utilizadas pelos historiadores. Livre dos entraves documentais, a literatura comporta uma infinidade de modelos e esquemas biográficos que influenciaram amplamente os historiadores. Essa influência, em geral mais indireta do que direta, suscitou problemas, questões e esquemas psicológicos e comportamentais que puseram o historiador diante de obstáculos documentais muitas vezes intransponíveis: a propósito, por exemplo, dos atos e dos pensamentos da vida cotidiana, das dúvidas e das incertezas, do caráter fragmentário e dinâmico da identidade e dos momentos contraditórios de sua constituição (LEVI, 1996, p. 168-169)406. A biografia é uma possibilidade de reconstituição de um momento social, carrega em seu bojo o sistema político e o seu contexto social atrelado aos aspectos individuais vinculados com a época do biografado. A biografia reúne dois caracteres distintos, mas que mantêm relações entre si: “De um lado, há a trajetória de vida; de outro, a síntese histórica, representada pelo tempo social [mais amplo (inserção do autor), mais global e mais universal (estudos da condição de vida)].” (LENA JUNIOR, 2012, p. 209)407. A antiga diálise grega que opunha biografia e história – a primeira, de cunho descritivo; a segunda, com status de narrativa – foi, de certa forma, resolvida em nossa contemporaneidade: “cada vida pode ser vista como sendo, ao mesmo tempo, singular e universal, expressão da história pessoal e social, representativa de seu 405 LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: Da biografia. In: REMOND, René. Por uma história política. Tradução de Dora Rocha. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 141-184.

406 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína.; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p. 167-182. 407 LENA JUNIOR, Hélio de. Gregório Bezerra: o ser camponês e o tornar-se comunista. In AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso. Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica. São Paulo: Letra e Voz, 2012. p. 207-225

tempo, seu lugar, seu grupo, síntese da tensão entre a liberdade individual e o condicionamento dos contextos estruturais” (FERRAROTTI apud GOLDENBERG, 1997, p. 36).408 A biografia reformulada nas últimas décadas fez cair o véu da falsa oposição entre indivíduo e sociedade. O indivíduo não se constitui de maneira solitária: sua existência é possível apenas “numa rede de relações sociais diversificadas” (PRIORE, 2009)409. Ao mesmo tempo em que a vida de um indivíduo é o ponto de confluência de eventos e forças sociais, assim também, suas ideias, representações e imaginário convergem para o contexto social ao qual ele pertence. Estabelece-se então, não o jogo de cabo de guerra que têm em uma extremidade o indivíduo e na outra a sociedade, mas uma lógica de barganhas, de trocas entre o geral e o individual. Sendo assim, Longe de refletir o social, o indivíduo se apropria dele, o mediatiza, filtra e retraduz projetando-o em uma outra dimensão [...], a de uma subjetividade, alcançando assim a definição do indivíduo como síntese individualizada e ativa de uma sociedade. Dessa forma, a biografia deixa de ser um anedotário para focar na ação social do indivíduo. (MALATIAN, 2008, p. 26-27).410 Lemos (1997) assevera que a valorização da individualidade não significa necessariamente um olhar que procura explicar o geral a partir do singular. Segundo ele, o estudo de trajetórias individuais pode oferecer um campo de análise de determinadas questões históricas sempre relacionadas com o social.411 Como resolver então a difícil questão das relações entre indivíduo e sociedade? Em primeiro lugar, pensar as condicionantes sociais que enlaçam o indivíduo e também as características que o singularizam; depois, deve-se pensar em evitar o particularismo e igualmente evitar analisar o próprio sujeito a partir de suas particularidades; e por fim, “não há indivíduo fora de seu tempo, assim como não há sujeito totalmente enjaulado

408 GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: Como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. Rio de Janeiro: Record, 1997.

409 PRIORE, Mary del. Biografia: quando o indivíduo encontra a história... Topoi, v. 10, n. 19, 2009, p. 7-16.

410 MALATIAN, Teresa Maria. A biografia e a história. Cadernos Cedem, v 1, p. 16-32, 2008. 411 LEMOS, Renato Luís do Couto Neto e. Benjamin Constant: biografia e explicação histórica. Estudos Históricos, v. 10, n. 19, Rio de Janeiro, 1997, p. 67-81.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

23 9

por seu contexto (SCHWARCZ, 2013, p. 71).412 Vale destacar que Schmidt (2004) acredita que o biógrafo, principalmente sendo um historiador, não deve procurar resolver o problema da falsa oposição entre indivíduo e sociedade optando por um dos “polos”, o do indivíduo ou o da sociedade, mas sim adotando estratégias narrativas que retratem a constante tensão entre o personagem e os dilemas e as possibilidades da época em que viveu.413 Afinal, como afirma Levi: Nenhum sistema normativo é suficientemente estruturado para eliminar qualquer possibilidade de escolha consciente, de manipulação ou de interpretação das regras, de negociação. A meu ver a biografia é por isso mesmo o campo ideal para verificar o caráter intersticial – e todavia importante – da liberdade de que dispõem os agentes e para observar como funcionam concretamente os sistemas normativos, que jamais estão isentos de contradições. (LEVI, 1996, p. 179-180)414. A fim de tentar superar este dualismo das tensões entre indivíduo e contexto, Schmidt (2004) propõe pensar o contexto como um “campo de possibilidades historicamente delimitadas” (GINZBURG, 1989, p. 183)415 e Lembrar que os indivíduos biografados – como qualquer indivíduo –, a cada momento de suas vidas, têm diante de si um futuro incerto e indeterminado, diante do qual fazem escolhas, seguem alguns caminhos e não outros. Se hoje esse futuro já é passado, e o resultado das escolhas feitas conhecido, o biógrafo tem a tarefa de recuperar o “drama da liberdade” dos personagens – as incertezas, as oscilações, as incoerências e, por que não? O papel do acaso –, mostrando que suas trajetórias não estavam predeterminadas desde o início. (SCHMIDT, 2004, p. 139).416 O alerta de Schmidt (2004) para aqueles que tomam a cargo a empreitada biográfica é para que se evite a todo custo abordar a trajetória do biografado de forma artificial, teleológica, linear e excluir da narrativa biográfica a postura apriorística de expressões 412 SCHWARCZ, Lilia. Moritz. Biografia como gênero e como problema. História Social, Campinas, n. 24, p. 51-73, 2013.

413 SCHMIDT, Benito Bisso. Grafia da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica. História Unisinos, v. 8, n. 10, p. 131-142, 2004. 414 LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína.; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p. 167-182.

415 GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades à margem de “Il ritorno de Martin Guerre”, de Natalie Zemon Davis. In: GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989, p. 179-202.

416 SCHMIDT, Benito Bisso. Grafia da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica. História Unisinos, v. 8, n. 10, p. 131-142, 2004.

como “desde pequeno”, desde “sempre”, que apenas reforçam a “ilusão biográfica” denunciada por Bourdieu (1996)417. Seria necessário pensar o sujeito não como mero reflexo da sociedade, mas como produtor de costumes, conhecimentos e poderes.418 A biografia histórica, política, permite ao autor apreender as lógicas do processo social, colocando no meio da trama o indivíduo enquanto agente social, com o cuidado de dar um tratamento especial para a dialética entre a cultura política e as ambiguidades dos indivíduos. Esta “biografia histórica hoje reabilitada não tem como vocação esgotar o absoluto do ‘eu’ de um personagem, como já o pretendeu e ainda hoje o pretende mais do que devia” (LEVILLAIN, 2003, p. 176).419 A análise de obras que se ocupam em narrar trajetórias individuais é uma rica possibilidade de análise para o historiador, porque muitas das questões debatidas por este profissional em seu campo de atuação também são enfrentadas pelo gênero biográfico: as condições de liberdade, de escolha e relações de poder presentes na vida humana, as relações entre indivíduo e sociedade, o indivíduo e a história, a questão do jogo de escalas na análise histórica. A presente comunicação de pesquisa tem por objetivo discutir alguns aspectos estudados em nossa Dissertação de Mestrado, intitulada “Biografia e história: panteonização e iconoclastia em narrativas de Raimundo Magalhães Junior”, que desenvolvemos junto ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP, Assis/SP no período entre 2013-2015. Sendo assim, em função do espaço limitado, procuramos compartilhar apenas algumas das reflexões desenvolvidas em nossa dissertação de mestrado sobre a obra biográfica de Raimundo Magalhães Junior, autor que obteve sucesso editorial nos diversos projetos literários que assumiu durante sua carreira de escritor, mas que ao longo destas três décadas desde a sua morte, em 1981, exceto raras exceções, acabou caindo no esquecimento e chega a ser praticamente um ilustre desconhecido, principalmente nos meios acadêmicos e entre os que se mostram interessados na história e na cultura brasileiras. 417 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína.; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p. 183-192. 418 SCHWARCZ, Lilia. Moritz. Biografia como gênero e como problema. História Social, Campinas, n. 24, p. 51-73, 2013. 419 LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: Da biografia. In: REMOND, René. Por uma história política. Tradução de Dora Rocha. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 141-184.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

24 1

Em 1923, Raimundo Magalhães Junior veio com 17 anos do Ceará para a cidade de Campos, interior do Rio de Janeiro, sendo que foi nessa cidade que ele encerrou sua vida escolar ao concluir o curso de preparatórios no Liceu de Humanidades, equiparado ao Colégio D. Pedro II. Apesar de ter se envolvido ao longo da carreira com diversas modalidades de escrita, a sua principal atividade remuneratória, segundo ele próprio, foi o jornalismo. Talvez esta profissão, sem as exigências de escolaridade de então, tenha absorvido suas energias e se algum dia o projeto de ingressar na vida acadêmica ocupou sua mente, tal sonho nunca se realizou. Vale ressaltar que em diversas oportunidades ele demonstrou orgulho de sua condição de autodidata. Em 1930 Raimundo Magalhães Junior migra para a cidade do Rio de Janeiro, no início de uma década que ficaria marcada pela institucionalização de universidades como a de São Paulo e a do Brasil, no Rio de Janeiro. Nesse cenário, ainda era incipiente a configuração do campo acadêmico do historiador, campo plural e que começava a ser marcado pela transição entre os historiadores autodidatas e os profissionais. O perfil do historiador nesse tempo é diversificado, sem formação acadêmica específica, trata-se de um escritor polígrafo, envolvido em diversas áreas como a política, a diplomacia, a imprensa, a advocacia, a literatura e o ensino. O historiador amador, que podemos chamar de escritor de história, dedicava-se a atividades como a confecção de romances históricos, de biografias, edição de documentos raros, redação de volumes escolares, além de se dedicar ao ensaio, a organizar coleções de história, pesquisava em arquivos e bibliotecas, sendo que quase todos eram jornalistas ativos. Era valorizado no historiador os seus dotes literários na estrutura da narrativa historiográfica. É ponto pacífico que a criação das universidades no Brasil durante a década de 1930, com destaque para a Universidade de São Paulo em 1934, impulsiona, com a formação de profissionais da História, o desenvolvimento de pesquisas, a publicação obras e de revistas especializadas. Além da criação das universidades, estabelece-se um intercâmbio frutífero com professores franceses ao longo dos anos 1930-40, como Henri Hauser, Émile Coornaert, Émile G. Léonard e Jean Gagé, Fernand Braudel, que vieram para as universidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Raimundo Magalhães Junior começou a sua produção biográfica nos anos 1950.

Portanto, as primeiras turmas de profissionais formados em História pelas universidades começavam a influenciar a produção do conhecimento histórico vinculado a um lugar social: o meio acadêmico. Estamos diante de um autor autodidata (que se orgulhava desta condição), um intelectual polígrafo difícil de ser enquadrado rigidamente em uma moldura profissional, já que no âmbito do trabalho com as letras, foi jornalista, tradutor, poeta, contista, romancista, cronista, teatrólogo; também atuou na política, foi vereador; circulou entre a elite literária e intelectual ao se tornar membro da Academia Brasileira de Letras, integrante e presidente em vários mandatos da Sociedade dos Autores Teatrais, SBAT; além de ter sido membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, IHGB Magalhães chegou a ser chamado de historiador por alguns de seus contemporâneos. Todavia, ele próprio não se considerava um historiador profissional, mas “um escritor de história” e afirmava que sua maneira de escrevê-la era por meio das biografias. Apesar de abertamente nunca ter se posicionado como historiador, reconhecemos em seu biografismo uma obra de valor historiográfico. Assim, apesar de não ter formação específica na área, Raimundo Magalhães pode ser chamado de um escritor de história, guardou pontos em comum com tantos outros intelectuais polígrafos de sua época que se interessaram pela temática historiográfica e produziram escritos nesse sentido. O biógrafo ficou famoso como escritor polêmico, acusado de ter gosto por posições anticonservadoras e muitas vezes na contramão de seus contemporâneos, confrades e colegas de trabalho, como exemplo, os da Academia Brasileira de Letras e os do jornalismo. Meticuloso ao extremo em suas pesquisas, revisor intransigente de obras suas e alheias, norteado sempre pela perspectiva de compreender melhor a sociedade brasileira de seu tempo a partir do exame histórico do período de transição da Monarquia para a República. O biografismo de Magalhães é construído no período de 1950 a 1970, sobretudo nas décadas de 50 e 60 e continua atual.420 Uma primeira leitura poderia apontar a 420 Raimundo Magalhães Junior é autor de 21 biografias, destas, 16 são publicadas nas décadas de 1950 e 1960, ou seja, cerca de 76%; as outras 5 biografias, neste caso, os 24% restantes, pertencem aos anos 1970. A fim de constar, são estes os títulos da obra biográfica de Magalhães: Artur Azevedo e sua época (1953); O Capitão dos Andes: história pitoresca de um Caudilho (1955); Machado de Assis, Desconhecido (1955); Ideias e imagens de Machado de Assis (1956); Três panfletários do Segundo Reinado (1956); D. Pedro II e a condessa de Barral (1956); O fabuloso Patrocínio Filho (1957);

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

24 3

qualidade do texto conciso, influenciado pelo homem de imprensa. Uma análise mais cuidadosa permitiria identificar uma escrita mais próxima da narrativa historiográfica, inspirada por questões relacionadas à história cultural, social e política do Brasil de meados do século XIX às primeiras décadas do século XX. O seu texto biográfico é rico pelas questões que suscita para uma reflexão sobre a constituição híbrida do gênero, parte de história parte de literatura, que almeja, por meio da narrativa de vidas, construir um conhecimento histórico relacionado a uma perspectiva historiográfica. Apesar de se envolver com a escrita da história por meio de suas biografias, de elaborar palestras e textos sobre o passado do país, ele foi um pensador de história e não um historiador profissional, foi alguém interessado pela historiografia, como demonstrado em aulas concedidas a convite da Academia Brasileira de Letras. Raimundo Magalhães inicia sua produção biográfica na segunda metade do século XX, a partir de algumas concepções historiográficas em vigor e de outras ainda ligadas ao século anterior. Seria frustrante a tentativa de colocar sob ele uma legenda classificatória, assim como o seria em relação a outros intelectuais polígrafos de seu tempo que também produziram biografias, apesar de ser evidente a opção que ele faz pela biografia histórica. É notável a preocupação do biógrafo com o trabalho de pesquisa, dedicando uma porção considerável do seu tempo a fim de investigar documentos para fundamentar os seus textos. Esta faina pela pesquisa nos faz indagar sobre suas veredas metodológicas, sobre a maneira como conduzia suas investigações pelos arquivos e como digeria os seus “achados”. O autor tinha prazer e até mesmo certo orgulho das suas descobertas de documentos inéditos, de acervos intocados, o que lhe abria espaço para asserções interpretativas sobre a cultura, sociedade e política de uma história recente, sobretudo da transição da Monarquia para a República. O estudo do seu biografismo foi uma oportunidade para discutir sobre o gênero Deodoro, a espada contra o Império 2 vol. (1957); Machado de Assis, funcionário público (1958); Ao redor de Machado de Assis (1958); Poesia e vida de Cruz e Sousa (1961); Poesia e vida de Álvares de Azevedo (1962); Rui: o homem e o mito (1964); As Mil e Uma Vidas de Leopoldo Froés (1966); Poesia e vida de Casimiro de Abreu (1965); A vida turbulenta de José do Patrocínio (1969); Martins Pena e sua época (1971); José de Alencar e sua época (1971); Olavo Bilac e sua época (1974); Poesia e vida de Augusto dos Anjos (1977); A vida vertiginosa de João do Rio (1978).

biográfico e suas relações com a narrativa literária e a escrita da história. Além disso, tivemos a possibilidade de questionar a temporalidade e a noção de história compartilhada pelo texto, bem como sobre o método biográfico, a forma como acontece o aproveitamento dos resultados das pesquisas nos arquivos. A escrita biográfica de Magalhães parece refletir uma preocupação do escritor com a ideia de que seria preciso estudar e refletir sobre a vida e a obra de indivíduos que se movimentaram na cena pública na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX e que teriam contribuído para a construção da nação. O propósito de Magalhães Junior parece ter sido o de escrever sobre a história social e política do Brasil a partir de protagonistas retratados em narrativas biográficas. A escrita biográfica do autor está alicerçada em dois fundamentos: uma metodologia historiográfica e uma liberdade criativa, a chamada “arte de biografar”. Em relação à metodologia historiográfica, trata-se do processamento de uma matéria prima: a documentação, que uma vez pesquisada, passa então a ser lida, selecionada, analisada e interpretada. Já a liberdade criativa, a “arte de biografar”, contempla elementos como estilo, elegância, a capacidade de criar um enredo dramático da vida do protagonista, enfim, o emprego dos dotes literários. Embora, em Magalhães Junior, seja valorizada a obra de dramaturgo, contista, escritor de ficção, o traço literário não é tão marcante em suas biografias em função da enorme preocupação de inserir farta documentação em suas narrativas de vidas. A metodologia historiográfica e a liberdade criativa são dois fundamentos da estrutura de um edifício biográfico composto pelo estudo equilibrado da vida e do contexto histórico, sobre as relações entre o protagonista e a época em que viveu, sobre a sociedade na qual estava imerso. Por meio da biografia, Raimundo Magalhães pretendia efetuar a renovação e por que não dizer, uma atualização da narrativa historiográfica. O hibridismo inerente ao gênero biográfico, como analisa Dosse (2009) 421, é cuidadosamente balanceado nas narrativas de Raimundo Magalhães Junior. Este hibridismo marca o seu biografismo, cuja fronteira entre história e literatura é fluida, difícil de mapear, há uma interpenetração constante entre ambas.

421 DOSSE, François. O Desafio Biográfico: Escrever uma Vida. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

24 5

O biógrafo leu autores consagrados como Maurois e Strachey, sendo que do último incorporou o método de se preocupar ao mesmo tempo com a figura biografada, com o ambiente da época e com os acontecimentos históricos do seu tempo. Mas foi além da perspectiva fortemente baseada em uma abordagem psicologizante adotada por estes autores na escrita de biografias. Raimundo Magalhães Junior causava espanto com a sua enorme capacidade de trabalho e de pesquisa, com o sucesso alcançado na dramaturgia, no jornalismo e na escrita de biografias. Nos diversos projetos literários em que se envolveu a recepção ao autor e à sua obra foi imensa, principalmente no tocante às histórias de vida. Os locais mais visitados pelo biógrafo em busca de material documental para suas biografias seriam endereços como o Museu Imperial de Petrópolis, a Fundação Casa de Rui Barbosa, o Arquivo Nacional, o Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual era membro, a Biblioteca Nacional e Arquivo e Biblioteca da Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito em 1956. O autor se valia também de sua rede de contatos no mundo diplomático, literário, jornalístico, editorial, confrades na ABL, no IHGB, para obter documentos, entrevistas com pessoas ligadas de alguma forma à figura que por ventura estivesse biografando. Ele foi avaliado como escritor de biografias históricas, no sentido do que foi caracterizado por Antonio Candido, isto é, um gênero cujo objetivo é a compreensão do papel da personalidade e, através dele, da época, caracterizando assim, uma técnica para interpretar a história e os fatos sociais a partir das perspectivas dos indivíduos neles envolvidos.422 Ou ainda, como pressupõe José Honório Rodrigues, que o biógrafo não deveria individualizar o processo histórico, mas situar o biografado no tempo em que viveu e explorar as redes de poder às quais estive ligado, mapeando como influenciaram e foram influenciados na e pela sociedade na qual estiveram inseridos.423

422 CANDIDO, Antonio. Limites da biografia. O Estado de S. Paulo, São Paulo, Suplemento Literário, 24 de janeiro de 1959, p. 37. CANDIDO, Antonio. Perenidade da biografia. O Estado de S. Paulo, São Paulo, Suplemento Literário, 28 de fevereiro de 1959, p. 37 423 RODRIGUES, José Honório. A biografia, sua evolução e sua técnica. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Quinto Caderno, 9 de junho de 1957, p. 1-2.

Vale lembrar que Paulo Rónai424 comenta que Magalhães Junior sempre conseguira equilibrar a difícil dosagem entre história pública e história privada e que Antonio Olinto425, sem meias palavras, o define como um “mestre” na escrita de biografias e também historiador. O biógrafo não fica restrito ao campo da metodologia histórica na composição de seus retratos em papel e letras. Por meio de seus distintos narradores, em várias ocasiões, ele se arrisca em investidas pela identidade subjetiva de seus biografados, revelando um narrador onisciente. É um risco calculado, da parte do biógrafo, se insinuar pela mente, pelos sentimentos do biografado, interpretando suas ações, suas emoções. Trata-se de uma abordagem que confere um sabor diferenciado à biografia e como não há exageros, não se torna algo cansativo, lugar comum. O leitor está diante de uma narrativa que reconstitui os passos de um protagonista e da época em que viveu, mas que é também uma versão da vida de alguém a partir da perspectiva do autor. Cabe então questionarmos: o que seria a biografia senão uma versão para uma trajetória pessoal? Diante dos fatos, dos documentos, cabe ao biógrafo lançar mão de suas habilidades a fim de costurar os elementos que dispõe: cartas, diários, matérias de jornal, documentos oficiais, a obra do biografado, entrevistas, depoimentos, enfim, toda uma gama de fontes que se oferecem ou que estão lá para serem cotejadas. Não basta apenas fazer um relato do que se encontra na pesquisa, não é suficiente descrever o material encontrado. Neste aspecto se destaca Raimundo Magalhães Junior e a sua capacidade de lidar com as fontes, o seu dote interpretativo a fim de extrair da investigação o que se encontra nas entrelinhas, as intensões ocultas, as “verdades” e não apenas a verdade, a habilidade de preencher os vazios documentais com a imaginação, a (re)criação de diálogos, a composição dramática do quadro político e social. O trabalho de entretecer o material pesquisado e preencher as lacunas com a imaginação seria os procedimentos de análise daquilo que chamamos de operação

424 RÓNAI, Paulo. R. Magalhães Junior, o biógrafo das letras brasileiras. In MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. Poesia e vida de Cruz e Sousa. 2 ed. São Paulo: LISA – Livros Irradiantes S/A, 1971, pp. XI-XX. (Homens e Épocas das Letras e das Artes Brasileiras, v.1). 425 OLINTO, Antonio. O Globo, Rio de Janeiro, Suplemento Literário (coluna “Porta de Livraria”), 13 de novembro de 1961, p. 5.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

24 7

biográfica do autor; expressão conceitual inspirada na operação historiográfica de Certeau (1982)426 e que em nossa dissertação é explorada de maneira mais detalhada. As biografias assinadas por esse escritor prezam por um constante intercâmbio entre o individual e o geral, entre o biografado e a época em que viveu. Para a historiografia, as biografias de Raimundo Magalhães Junior analisadas em nossa pesquisa são uma possibilidade de caminho, uma alternativa viável de estudar a história da transição da Monarquia para a República no Brasil. Raimundo Magalhães Junior, biógrafo escritor de história, construiu uma obra biográfica marcada pela inserção de um narrador eficiente, conciso, ocupado com a descrição de documentos e que se divide entre esta tarefa e a de interpretar as fontes. A partir dos fatores que discutimos ao longo do nosso estudo, a sua obra biográfica pode ser considerada uma variedade de escrita da história, portanto, com valor historiográfico. Foi preocupado com o tema da construção do nacional que o biógrafo retratou figuras eleitas por seu protagonismo na cena pública de meados do século XIX até as primeiras duas décadas do século XX. Figuras que se destacaram por sua atuação no campo das letras, da política ou que transitaram em ambas as esferas. Infelizmente, ainda são raros os trabalhos que se voltam para analisar a temática do estudo de uma biografia histórica produzida fora dos muros acadêmicos e inserida em um período de transição entre os chamados historiadores amadores e a formação/atuação dos primeiros profissionais do ramo. Ao concluirmos as nossas análises sobre esse autor e sua produção biográfica, sentimo-nos gratos pelo aprendizado relacionado à pesquisa em arquivos, como os da Fundação Casa de Rui Barbosa, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Letras, pelo contato com um tempo da história brasileira, com uma determinada concepção de escrita da história e ainda, com o rico debate sobre o gênero biográfico.

Uso de fontes históricas em sala de aula e seus reflexos na construção da narrativa dos alunos

426 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

João Pedro Roveri427 Silmária Reis dos Santos428 Graduandos do curso de História /FCL/Assis

Resumo: O presente trabalho constitui-se na apresentação e reflexão acerca de uma das atividades desenvolvidas durante o ano de 2015 no PIBID (Programa Institucional de Bolsa de iniciação a Docência) – vinculado ao curso de História da UNESP/ Faculdade de Ciências e Letras de Assis-SP, efetivado na E.E. Profª Cleophânia Galvão da Silva com os alunos do 9º ano (8ª série) do Ensino Fundamental. O objetivo dessa experiência foi utilizar procedimentos de interpretação documental em sala de aula, em diversos tipos de fontes históricas (cinema, fotografias e relatos orais), e dessa forma suscitar nos alunos a construção de narrativas acerca do tema estudado na ocasião (Consequências da Segunda Guerra Mundial). Finalizada a atividade, procedeu-se a análise dos textos produzidos a fim de verificar de que forma a metodologia influenciou na construção narrativa dos alunos. Palavras-Chave: Fontes históricas, narrativa, aprendizagem. Apresentação O uso de fontes históricas no Ensino de História é um mecanismo importante na elaboração de metodologias de aulas para construção do conhecimento histórico do aluno. Isso porque, ao ter contato direto com as fontes, dinamiza-se o modo “tradicional” de execução de aula, bem como se estimula a curiosidade dos alunos na investigação dos objetos históricos. Contudo, não há a intenção de formar os alunos como “pequenos historiadores”, mas sim fazer com que estes desenvolvam seu pensamento histórico crítico a partir das diferentes representações que são construídas no âmbito da história. Nesse sentido, a diversidade de fontes e suas respectivas metodologias de análise utilizadas em sala de aula intersecta esse saber científico com o saber escolar, uma vez que apresenta aos alunos maneiras de analisar um objeto histórico dentro de 427 Graduando do curso de História da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP-Assis e bolsista de Iniciação Científica (PIBIC) sob a orientação do Profº Dr. José Carlos Barreiro, com financiamento pela CAPES. 428 Graduanda do curso de História da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP-Assis e bolsista de Iniciação à Docência no Programa Institucional de Bolsa de iniciação a Docência (PIBID), sob a orientação do Dr. Ronaldo Cardoso Alves e Dr. Alonso Bezerra de Carvalho, subprojeto História, financiado pela CAPES.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

24 9

suas especificidades. Posto isso, a própria narrativa histórica dos alunos, a partir das fontes históricas trabalhadas em sala de aula, torna-se uma representação ou interpretação de um momento histórico, passando a ser uma nova fonte para as pesquisas na área do Ensino de História. As reflexões apresentadas nesse trabalho se orientam a partir dessa perspectiva. As narrativas analisadas na sequência foram produzidas pelos alunos do nono ano do Ensino Fundamental de uma escola pública estadual no município de Assis, dentro do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência (PIBID) – subprojeto História da FCL-Assis. O programa foi proposto em 2007 e teve sua regulamentação mais detalhada pelo Decreto n. 7219/2010. Sua criação corresponde a uma demanda nacional de programas na área da educação que objetivem estreitar as relações entre teoria e prática e favorecer a inserção na docência. Desde sua criação, o programa funciona com a intenção de fomentar a iniciação à docência com a finalidade de melhor qualificá-la, mediante projeto específico de trabalho e concessão de bolsas, abrangendo as diferentes áreas do conhecimento que fazem parte do currículo da educação básica429. Dentro do PIBID está previsto que os alunos bolsistas, durante as aulas observadas, façam intervenções que sejam pertinentes a um projeto, a um plano de ação dos bolsistas dentro do ambiente escolar. São, portanto, intervenções direcionadas. A experiência a ser relatada aqui se situa ao lado de outras realizadas no decorrer do ano, que tiveram como fio condutor o uso de Fontes Históricas para o desenvolvimento da discussão com os alunos. É licito para qualquer historiador saber que o seu estudo realiza-se a partir da pesquisa de uma fonte histórica, pois necessariamente “o conceito de História como campo de conhecimento é fundamentalmente relacionado ao conceito de fontes históricas”430. Nesse sentido, ao considerar que o trabalho de reflexão realizado por teóricos e pesquisadores da história perpassam o universo escolar pelo crivo da didática da história, através de livros didáticos, filmes, jornais, revistas, fotografias..., 429 GATTI, Bernadete A; ANDRÉ, Marli E. D. A.; GIMENES, Nelson A. S.; FARRAGUT, Laurizete. Um estudo avaliativo do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid). São Paulo: FCC/SEP, 2014. p.9. 430 ABUD, Katia Maria ; ALVES, Ronaldo Cardoso ; SILVA, A. C. M. . Ensino de História - Coleção Ideias em Ação. 1. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2010. v. 1.p.12.

e até mesmo pelo próprio discurso do professor, há a necessidade deste, ao trabalhar com diversas fontes históricas, apresentar aos alunos a complexidade que há nos diferentes discursos. A promoção dessas formas de pensamento histórico exige que a formação do aluno esteja fundamentada num conceito de História que o leve à compreensão da realidade social e das ações dos homens localizadas no tempo. Para tanto, é preciso utilizar materiais que permitam a construção do texto histórico e o chamado a atividades intelectuais que encaminhem o aluno para o desenvolvimento do pensamento histórico.431

A História mais do que uma disciplina que analisa os fatos do passado, tem um papel social e politizador, já que os alunos são estimulados, também, a pensar e produzir opiniões acerca dos problemas do seu tempo. A construção da consciência histórica, nesse sentido, entra como mais um fator na formação do aluno, visto que este ao longo do seu tempo escolar apreende informações sobre a sociedade e o mundo, tornando esse conhecimento favorável ou não a sua vida prática. Entende-se aqui por consciência histórica “a suma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo” 432. Para o autor, a forma de expressão no qual os indivíduos explicitam suas ideias e reflexões se dá através da narrativa, tornando assim o homem agente e participante consciente da história. Em suma, “A consciência histórica constitui-se mediante a operação, genérica e elementar da vida prática, do narrar, com o qual os homens orientam seu agir e sofrer no tempo”

433

. Contudo, isso não quer dizer que a experiência que foi

realizada com os alunos da E.E. Cleophânia Galvão da Silva resultou na construção imediata da consciência histórica, para isso, há por trás todo um processo de formação do aluno ao longo do tempo escolar no qual requer um engajamento do docente na elaboração das aulas. Dadas as péssimas condições que temos enfrentar na maioria das escolas públicas brasileiras, devido ao descaso com a educação e educadores, dificulta-se ainda mais a elaboração de aulas que contribuam para boa formação dos alunos.

431 Ibidem, p.13. 432 RÜSEN, Jörn. Razão histórica: Teoria da história, fundamentos da ciência histórica. Brasília: Ed. UnB, 2001.p.57. 433Ibidem, p.66.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

25 1

A metodologia de aula elaborada foi realizada com o uso de três fontes históricas, (filme, fotografia e relato oral que serão explicitadas no decorrer do artigo), dentro de suas especificidades no campo da Didática da História. A Didática da História constitui-se torno de um objeto diverso do objeto da História. Se esta investiga o passado e constrói um conhecimento próprio, a versão escolar ultrapassa as simples transmissão de saberes para se tornar um campo do conhecimento no qual se imbricam a História ciência e a História escolar, cada uma com elementos próprios. 434

Apesar das especificidades e particularidades a serem trabalhadas, cada uma dessas fontes, quando relacionadas ao Ensino de história, levam a um denominador comum: são possibilidades de construção do conhecimento histórico. Carregadas de significados, objetivos, escolhas e etc., tais fontes históricas, quando utilizadas em sala de aula descontroem a noção de que história se dá apenas com a análise de documentos, visão essa positivista que vem sendo combatida a um bom tempo 435. No Brasil a partir da década de 1970, segundo Kátia M. Abud: As novas abordagens, os novos objetos, outras fontes, outras linguagens foram se incorporando ao ensino de História. As novas tendências e as correntes historiográficas que entendem a História como construção, aliadas a concepções que envolvem o processo de ensino-aprendizagem, provocaram transformações bastante profundas na construção da História como conhecimento escolar. Tais transformações produziram modificações na Didática da História e provocaram uma reformulação na prática pedagógica. É necessário que se destaque a introdução e a permanência, nos documentos curriculares, de orientações sobre o uso das novas linguagens, a despeito da inércia da organização escolar no sentido de consolidá-las como práticas cotidianas. 436

Desde então essas novas linguagens (fílmicas, iconográficas, musicais...) só vem aperfeiçoando-se no Ensino de História, deixando de serem enxergadas como confirmação da “história verdadeira”, para serem vistas como representações do espaço e do tempo. Logo, uma linguagem cinematográfica (filme) pode ser “um instrumento auxiliar de formação histórica, com a finalidade de integrar, orientar e 434 ABUD, Katia Maria ; ALVES, Ronaldo Cardoso ; SILVA, A. C. M. . Ensino de História - Coleção Ideias em Ação. 1. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2010. v. 1.p.09.

435 Segundo a Profª Kátia Maria Abud a concepção de História da escola metódica tem sua ruptura marcada, sobretudo a partir da obra de Marc Bloch e Lucien Fèbvre e da fundação da revista Annalles: Anais de História Econômica e Social. Ver: ABUD, Katia Maria. A construção de uma Didática da História: algumas idéias sobre a utilização de filmes no ensino. História, v. 22, n. 1, p. 183-193, 2003. p.185. 436 Ibdem, p.184.

estimular a capacidade de análise dos estudantes ” 437, os estudantes são levados a entender a narrativa fílmica e o contexto de sua produção, ou seja, tudo que está por trás de uma produção (direção, autores, atores, enredo...) podendo utilizar esse mecanismos no quotidiano, em ocasiões fora dos espaços escolares, por exemplo, ao assistir uma filme em casa, podem pesquisar sobre a obra. Quanto ao uso da fotografia, esta, assim como o filme não deve ser tida como verdade histórica, mas sim produto de uma subjetividade (interpretação) humana, intrínseca a um processo de construção no qual os estudantes têm a possibilidade de formar novos conceitos dando (re)significação aos fatos históricos formados a partir da imagem.438 É importante lembrar que as fontes históricas utilizadas na experiência em questão, são referentes ao período da Segunda Guerra, um evento traumático da história recente,

e por isso envolvem elementos constitutivos da memória,

principalmente da memória coletiva, pois para Maurice Halbwachs (1990) não há como dissociar memória individual e coletiva, ou seja, a memória deve ser compreendida, sobretudo, como um fenômeno coletivo e social. Portanto, se a memória é um fenômeno social, entender a divisão social do tempo se faz necessária, pois há uma relação direta entre memória coletiva e tempo. O tempo é importante na medida que nos permite conservar e lembrar dos acontecimentos que ali se produziram. Acontece também que não reconstituímos o quadro temporal senão depois que a lembrança foi restabelecida e então somos obrigados, a fim de localizar a data do acontecimento, dele examinar em detalhes todas as partes. Mesmo assim, já que a lembrança conserva os traços do período ao qual se reporta, este só foi lembrado talvez, porque havíamos vislumbrado esses traços, e pensado no tempo em que o acontecimento se realizou. A localização, aproximativa e muito imprecisa de início, definiu-se em seguida quando a lembrança estava presente. Não é menos verdade que, em grande número de casos, é percorrendo em pensamento o quadro do tempo que ali encontramos a imagem do acontecimento passado: porém, para isso, é preciso que o tempo seja capaz de enquadrar as lembranças. 439 437 NÓVOA, Jorge. Apologia da relação cinema-história. Revista Eletrônica Olho da História, 1995, p.06. 438 Partindo do conceito de “Representação” de Roger Chartier, no âmbito da História Cultural, em que esta tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler .Ver: CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. p. 17. 439 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva; tradução de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Vértice, 1990. p. 101.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

25 3

O uso desses três tipos de fontes históricas em sala de aula permite a construção do conhecimento histórico a partir de atividades que encaminhem para o desenvolvimento do pensamento histórico, visto que, a exibição e debate das fontes em sala de aula produzem narrativas que abordaram o pensamento histórico dos alunos. A narrativa nesse sentido, segundo Jörn Rüsen: [...] pode ser vista e descrita como essa operação mental constitutiva. Com ela, particularidade e processualidade da consciência da história podem ser explicitadas didaticamente e constituídas como uma determinada construção de sentido sobre a experiência do tempo. 440

Dadas as referências que orientam nossa análise, faremos a seguir uma breve apresentação da intervenção, seguida da análise do material produzido pelos alunos e por fim, um balanço crítico da experiência como um todo. A experiência em questão foi realizada durante as aulas em que se trabalhava o tema “Segunda Guerra Mundial”. Formulamos uma apresentação intitulada “Consequências da Segunda Guerra Mundial”, que teve como objetivo específico chamar atenção para a destruição gerada pelo conflito, e como objetivo geral ajudar no desenvolvimento da consciência histórica. O caminho que escolhemos para conduzir a aula, conforme já foi dito, foi o de apresentar diversas fontes históricas do período da Segunda Guerra, alinhadas a proposta da aula: Chamar a atenção para destruição ocasionada pelo combate. Nesse sentido, já está indicado o que essas fontes mostram: em síntese – destruição. Foram apresentadas 19 imagens, 2 trechos de relatos orais, cenas de 1 filme, e 1 uma reportagem jornalística. As imagens retratavam a destruição causada pelos bombardeios (por exemplo, a cidade de Roterdã na Holanda441), os mortos no campo de concentração de Auschiwitz442 e o bombardeio atômico no Japão443. Os trechos dos relatos orais foram 440 Apud: BARCA, I. REZENDE, E.; SHIMIDT, A.(orgs.) Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011, p. 43. 441 Retiradas do site do United States Holocaust Memorial Museum (USHMM). Ver: http://www.ushmm.org/outreach/ptbr/article.php?ModuleId=10007681 Data de acesso: 22/04/15. 442 Retiradas do site do oficial do Museu e memorial: Auschiwitz e Birkenal. Ver: http://auschwitz.org/en/museum/news/ Data de acesso: 22/04/15. 443 Retiradas dos sites: http://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/hiroshima-e-nagasaki-bombas-e-terror.htm , Data de acesso: 21/04/2015.

retirados de uma matéria especial do canal “G1”

444

, intitulada “Após 70 anos, últimos

sobreviventes não esquecem horrores de Auschwitz”. Utilizamos os relatos de dois senhores poloneses: Sofia Posmysz e Kazemierz Albin. O filme escolhido foi “Anne Frank” (“The Diary of Anne Frank”, no original), do diretor Jon Jones, produzido no Reino Unido e lançado no ano de 2009. Na ocasião apenas comentamos sobre o filme e exibimos alguns trechos. Em intervenções posteriores voltamos a trabalhar com o filme de forma mais detalhada. A reportagem jornalística foi retirada de uma edição do programa “Fantástico”, exibido pela rede Globo. A reportagem tratava da experiência do britânico Nicolas Winton, que organizou o resgate de 669 crianças da antiga Tchecoslováquia, antes delas serem reportadas ao campo de concentração. A apresentação seguiu a seguinte ordem: Foram mostrados aos alunos dados estatísticos em relação aos mortos: Número de soldados mortos, número de mortos nos campos de concentração, número total de mortos por nacionalidade. A relação dos militares mortos foi retirada do Atlas Histórico Mundial445, e está reproduzida na tabela a seguir: Vítimas Militares na Segunda Guerra Mundial em alguns países País União Soviética

Combatentes mortos (aproximadamente) 13,6 milhões

Alemanha

4,0 milhões

Japão

1,2 milhões

França

530 mil

Inglaterra

400 mil

Itália

400 mil

Estados Unidos

300 mil

Em seguida, foram exibidas as imagens da destruição em Roterdã, na Holanda; depois as imagens relacionadas a Auschwitz, e por fim as imagens do http://www.hiroshimacommittee.org/, Hiroshima Day Committee, Site dedicado à memória de Hiroshima e Nagasaki. Data de acesso: 21/04/2015. 444Disponível no canal do G1. Ver: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/01/apos-70-anosultimos-sobreviventes-nao-esquecem-horrores-de-auschwitz.html, data de acesso: 22/04/2015. 445 KINDER, Herman, HILGEMANN, Werner. Atlas Histórico Mundial, v.2. Madri, Istmo, 1983.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

25 5

bombardeio atômico no Japão. Logo após exibir as imagens, forma apresentados os relatos orais. Na sequência, foram exibidos os trechos do filme de Anne Frank e por último o trecho da reportagem referente a Nicolas Winton. A exibição dos dados e das fontes foi feita de forma a estabelecer um diálogo com os alunos, ouvindo seus comentários e reflexões. Sugerimos aos alunos, no início da aula, que anotassem no decorrer da apresentação os fatos ou situações que chamassem sua atenção, e que poderiam se achassem conveniente, fazer perguntas ao final da folha. No final da aula, foi dado um tempo para que os alunos revisassem as anotações e acrescentassem o que achavam necessário. Essa folha contendo os dados, comentários e perguntas dos alunos constituiu-se como nosso “instrumento de pesquisa”. As diferentes fontes e, por consequência, as diferentes abordagens, tiveram como intenção evitar a “banalização” dos dados numéricos apresentados no início da aula, e também com o intuito de apresentar aos alunos diferentes produtos da subjetividade humana para construção do conhecimento histórico446. Utilizamos a fotografia com a intenção de reconstituir minimamente exemplo de cenário de destruição da guerra. O instante “congelado” nas fotografias auxilia nesse sentido, mas para que a reconstituição extrapole esse momento, são necessários outros elementos que permitam reconstituições históricas mais amplas 447. Para auxiliar nessa reconstituição, introduzimos na apresentação os relatos orais dos sobreviventes do holocausto: Relatos que possuem toda a particularidade carregada pela memória e cumprem, neste caso, também a função de auxiliar na compreensão e interpretação dos fatos abordados nas representações imagéticas. Os relatos orais, o filme e o trecho da reportagem foram apresentados para dar dimensão pessoal, individual para o conflito Mundial – algo que julgamos necessário, visto que estávamos tratando da memória recente da humanidade e do horror vivenciado por uma geração. Ao analisar as produções escritas dos alunos, elencamos alguns itens a serem observados nas narrativas. Esses itens estão compilados na tabela a seguir:

446 ABUD, Katia Maria ; ALVES, Ronaldo Cardoso ; SILVA, A. C. M. . Ensino de História - Coleção Ideias em Ação. 1. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2010. v. 1.p.09. p.166. 447 Ibidem, p.150.

Relação entre item observado e citação nas narrativas dos alunos Item observado Número de ocorrências Dados numéricos (Número de

(num total de 12 trabalhos) 8

mortos) Imagens Relatos orais Filme e reportagem Conjuntura Perguntas Pesquisa (Aluno-pesquisador)

6 4 2 1 1 1

Fizemos a tabela, entre outros motivos, para aferir o impacto da utilização dos diversos tipos de fontes na produção escrita dos alunos. Percebemos que a frequência de citações diminuiu conforme a ordem da apresentação. Dessa forma, a fonte mais citada foi a imagética, e as menos citadas foram o filme e a reportagem. Notamos que apenas um aluno inseriu em sua produção a conjuntura da guerra: O fato dela ser fruto de uma disputa entre potências. Da mesma forma, apenas um aluno fez as perguntas que sugerimos no início da aula. E por fim, achamos interessante reportar que um dos alunos realizou uma pesquisa, por interesse próprio, acerca do inglês Nicolas Winton, assunto da reportagem apresentada. O mais curioso de tudo é que a produção escrita dos alunos, onde aparentemente o uso das fontes não produziu tanto impacto, na medida em houveram poucas referências as mesmas e não se percebe uma análise crítica do material apresentado, não corresponde a atitude dos alunos no momento da aula: Curiosos, impressionados, questionadores e agitados ante a apresentação. Esse fato nos expõe a algumas reflexões acerca da metodologia empregada e das condições reais da escola pública em questão. Em primeiro lugar, percebemos que o uso das imagens atingiu sua função primária: Tornar a discussão mais atrativa aos alunos. Entretanto, não ultrapassou essa função. Deve ser feita a ressalva, como indica a professora Circe Bittencourt448, que o uso das imagens exige dos professores

448 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2009.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

25 7

tratamento metodológico adequado, para que sua utilização não se limite apenas à função de chamar a atenção. Outro ponto a ser observado é a dificuldade dos alunos em transcrever as ideias. Esbarramos, inevitavelmente, na defasagem da habilidade de redação dos alunos. Algo que parece interiorizado a boa parte das turmas do ensino básico público. Por fim, concluímos que apesar de não atingir todos os objetivos, a intervenção atingiu seu objetivo específico: Expor o quão destrutiva foi a Segunda Guerra Mundial, e de forma a não provocar indiferença quanto a essa destruição. O balanço que fazemos da intervenção, apesar de não ser o esperado, é antes de tudo positivo. A oportunidade serviu para observar os problemas tanto da utilização da metodologia empregada, quanto os problemas gerais que envolvem a sala, que podem se repetir em outros lugares. Contudo, a diversidade das fontes aqui apresentadas, dentro de suas especificidades de análises, pode ser entendida como fontes geradoras de novos conhecimentos históricos uma vez que contribuem para a orientação temporal dos alunos em sua vida no processo de formação da consciência histórica, bem como para nós educadores relacionar o conhecimento adquirido no campo acadêmico e sua práxis, proporcionando uma aprendizagem mútua para os alunos (no uso e aprendizagem com fontes históricas), e para nós bolsistas (na elaboração de metodologias de aulas), possibilitando o aprimoramento na formação docente.

Estereótipos de gênero em “O Asno de Ouro” de Apuleio

Lahís Moreno Gibelato449 Unesp-Assis – Programa de pós-graduação em História Resumo: Na obra do século II d.C., O Asno de Ouro450, Apuleio utiliza o artifício literário da metamorfose, para que o protagonista Lúcio seja um observador incógnito de realidades muito diversas daquelas de que o aristocrático personagem faz parte. A partir das análises das representações construídas nas histórias narradas tanto pelo protagonista, como por outros personagens é possível compreender um pouco mais sobre a diversidade de olhares sobre o mundo antigo. Nesse sentido, as representações de estereótipos de mulheres e homens, bem como sobre as relações que entre eles se estabelecem podem ser usadas para compreender o sentido da sátira criada pela crítica de Apuleio. Para embasar as análises dessa pesquisa utiliza-se do conceito de gênero, definido por Joan Scott como uma categoria de análise das relações entre masculino e feminino. Palavras-Chave: Apuleio, Império Romano, estereótipos de homens e mulheres ***

O presente texto que visa trabalhar brevemente algumas questões que embasam uma pesquisa a nível de mestrado que se encontra em desenvolvimento, bem como as primeiras conclusões formuladas a partir de análise das representações de relações de gênero na obra O Asno de Ouro de Apuleio. A pesquisa tem como temporalidade o segundo século da era comum, entre os anos de 125 e 170 d.C. período aproximado em que Apuleio viveu, escreveu e publicou suas obras. A partir da escolha de algumas histórias contadas pelo protagonista da obra ou pelos personagens encontra-se indícios da sociedade a que o autor pertence. Entende-se que o potencial de pesquisa das representações vai muito além de figuras e personagens 449 Bolsista de mestrado do Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

450 Para este trabalho, é utilizado a tradução direta do latim para o português de Ruth Guimarães, da obra O asno de ouro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1969. Todas as citações em português são desta edição. Entretanto passagens são estudadas em latim a partir da edição bilíngue (latim-inglês) de Metamorphoses. Editado e traduzido por J. Arthur Hanson. Londres: LOEB, 2001. Volumes I e II.: APULEIUS. Methamorphoses. Books I-VI (vol I). Edited and Translated by J. Arthur Hanson. London: Loeb classical Library, 2001. APULEIUS. Methamorphoses. Books VII-XI (vol II). Edited and Translated by J. Arthur Hanson. London: Loeb classical Library, 2001.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

25 9

individualizadas, e integram um complexo campo de relações observado e representado pelo autor do livro. Esse tipo de análise foi possibilitado a partir da emergência das novas propostas e novos enfoques, que a historiografia que emergem em meados do século XX têm suscitado, entre reflexões sobre cultura e relações sociais em geral. Tais mudanças são consequência de novos questionamentos epistemológicos que as Ciências Humanas se defrontam desde a década de 1960 451. Nesse nova onda, também a análise mais detalhada da literatura como fonte documental começaram a proliferar. Dessa forma, a literatura é compreendida como uma estrutura prenhe de significados, e passou a ser vista pelos historiadores como uma fonte documental tão importante quanto as fontes arquivísticas, contribuindo para aquilo que Jacques Le Goff452 chamou de a “explosão documental”. Desde então, o estudo da literatura, em especial a satírica, tem sido muito utilizado tanto por historiadores marxistas como por aqueles ligados à Escola dos Annales, como uma fonte para o estudo das camadas menos favorecidas da população, menos presentes em outros tipos de fontes escritas. A obra literária pode ser assim explorada como uma visão, certamente ficcional, mas nem por isso menos vívida das representações sociais, entretanto, analisadas como uma construção de autores determinados para objetivos específicos; que não deixam de resultar de observações concretas de um mundo social e que podem, por isso, ser exploradas com proveito pelos historiadores sociais453. Dentre os novos temas acima citados, os chamados estudos de gênero têm aumentado substancialmente nos últimos anos. Os estudos de gênero são definidos por Margareth Rago454 como estudos que dão conta da “construção social e cultural das diferenças sexuais”. Isto é, o termo “gênero” não deve ser utilizado de modo simplista, apenas como sinônimo de “mulheres”. O conceito de gênero é definido por

451 FUNARI, Pedro Paulo A.; GARRAFFONI, Renata Senna. Gêneros e conflitos no Satyricon: o caso da dama de Éfeso. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 101-117, 2008. p. 102.

452 LE GOFF, Jacques. (org.). A História nova. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 453 FUNARI, Pedro Paulo A.; GARRAFFONI, Renata Senna. Gêneros e conflitos no Satyricon: o caso da dama de Éfeso. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 101-117, 2008. p. 104-106

454 RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu, v. 11, p. 89-98, 1998. p. 90

Joan Scott455 como “o saber a respeito das diferenças sexuais [...] produzida pelas culturas e sociedades sobre as relações humanas”. Portanto, é preciso compreender como se constituem os limites e relações do feminino e do masculino dentro de uma dada sociedade cultural e historicamente localizada. Dessa forma, é necessário desnaturalizar a visão de que o gênero é biologicamente determinado, pois a sexualidade biológica não é definida por si mesma. Assim como os termos que definem o “homem” ou a “mulher” não são naturais, mas construções históricosociais. Enquanto perspectiva analítica, o gênero é proveniente da modificação dos estudos da História das Mulheres que emergiu a partir dos anos de 1960 e 1970 com o pressuposto a reintegração da mulher na História 456. Entretanto, Glaydson da Silva457 adverte de que tratar a opressão feminina como o fator principal da história das mulheres da Antiguidade pode se tornar uma “armadilha”, pois acaba por transformar a primeira em uma subcategoria da história dos homens. Portanto, é preciso compreender como se constituem os limites e relações do feminino e do masculino dentro de uma dada sociedade cultural e historicamente localizada, analisando-as em conjunto, assim como são construídas. Nascido em Madaura (atual Argélia), cidade do norte da África sob o domínio romano, por volta de 114 e 125 d.C., Apuleio teria morrido no ano 170. Viveu então, entre os governos dos Imperadores Adriano (117-138 d.C.) e Marco Aurélio (161-180 d.C.). Pertencente à família a de dirigentes de sua cidade, chegou a alcançar o cargo de duúnviro de seu pai na cúria458. Foi educado em Madaura e a sua alta condição social posteriormente fez diversas viagens para completar seus estudos, chegando a estudar direito e eloquência em Roma, centro do Império 459. Apuleio era 455 SCOTT, Joan. W. Prefácio à gender and politics of History. Tradução de Mariza Corrêa. Cadernos Pagu: dossiê desencontro, desamores e diferenças. v. 3, p. 11-28, 1994. p. 12 456 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter. A Escrita da história: novas .perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992. p. 75.

457 SILVA, Glaydson José da. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e no Satyricon, de Petrônio: representações e relações. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. p. 5354.

458 LA ROCCA, Adolfo. Introduzione. In: ______. Il Filósofo e la Città: Commento storico ai Florida di Apuleio. Roma: L’Erma di Bretschneider, p. 11-78, 2005. p. 14

459 FANTACUSSI, Vanessa. O culto da deusa Ísis entre os romanos no século II: representações nas Metamorfoses de Apuleio. 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, Assis. 2006. p.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

26 1

um viajante, e por isso conheceu diferentes regiões e culturas, como ele mesmo destaca em sua obra Apologia460. Sua obra O Asno de Ouro foi provavelmente escrita posterior às suas longas viagens, por volta dos anos de 160 e 170 d. C. Mas, ao contrário do que considera Fantacussi461 não seria uma “autobiografia metafórica”, já que a narrativa básica não seria original de Apuleio, mas a tradução e adaptação de um livro grego462, do século I d. C. Entretanto, a narrativa de Apuleio pode ser considerada original por todas as adaptações e adições feitas a partir da história base, com, inclusive, um final inédito. A obra O Asno de Ouro trata da história de Lúcio, um viajante, proveniente de uma família de alta condição social. O protagonista se envolve romanticamente com a escrava de uma feiticeira. Detentor de uma curiosidade extrema, acaba se metamorfosear em um burro e antes de se transformar de volta é levado por bandidos que faziam um assalto à casa de seu anfitrião. No decorrer da narrativa o burro Lúcio viaja para várias cidades, e encontra-se envolto dos mais variados grupos sociais, desde bandidos salteadores até riquíssimos comerciantes. São contadas muitas histórias, tanto pelo próprio Lúcio que observa atentamente tudo que acontece ao seu redor, quanto por outros personagens que de alguma maneira se envolvem com o protagonista. As histórias narradas podem ser vistas como um frutífero campo de análise das representações feitas pelo autor sobre o mundo antigo. Certamente esses fatos e histórias, assim como as relações sociais representadas nessa obra, devem ser analisadas com cautela pois são construídas a partir de uma visão masculina de um autor de classe social elevada. Ainda assim, essa obra literária, assim como tantas outras, pode ser um instrumento de grande importância para o estudo das relações

42

460 SILVA, Semíramis Corsi. Relações de poder em um processo de magia no século II d. C.: Uma análise do discurso Apologia de Apuleio. 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – Universidade Estadual Paulista, Franca. 2006.

461 FANTACUSSI, Vanessa. O culto da deusa Ísis entre os romanos no século II: representações nas Metamorfoses de Apuleio. 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, Assis. 2006. p. 44

462 MILLAR, Fergus. The world of The Golden Ass. The journal of Roman Studies. Published by: Society for the Promotion of Roman Studies, Vol. 7, p. 36-75. 1981.

sociais no universo da Antiguidade, pois mesmo sendo de ficção, carregam indícios que permitem a reconstrução de aspectos culturais dessa sociedade. A sátira latina surge, segundo Fantacussi463, com o objetivo ironizar a sociedade da qual emerge, em um período de transformações políticas e culturais. E sendo “filho de seu século”, como designa Parattore464, Apuleio não está imune a esse contexto de crítica. Ao comparar as obras de Ovídio e de Petrônio, Glaydson José da Silva465 percebe que enquanto temática, a mulher tem sido a categoria preferida cuja ironia e o humor masculino são direcionados. Essa necessidade de extrapolar elementos do real para basearem sua sátira que “leva os autores latinos a exagerarem e caricaturarem as características negativas das mulheres que descrevem” 466 Segundo Silva467, os exageros que “denunciam” as intenções dos autores no texto. Do mesmo modo, podemos direcionar essa análise à obra de Apuleio, dado que em O Asno de Ouro grande parte das personagens femininas estão associadas a características infames. Sendo assim, se narrativa satírica usa o exagero e o estereótipo para criticar características consideradas próprias do gênero feminino, é possível também pensar as representações do masculino com os valores do autor, já que o saber sobre as relações de gênero constitui-se em uma perspectiva relacional, não independente um do outro468. Semíramis C. Silva ressalta que por esse autor já possuir reconhecimento como filósofo e orador, O Asno de Ouro deve ter sido escrito para obter maior 463 FANTACUSSI, Vanessa. O culto da deusa Ísis entre os romanos no século II: representações nas Metamorfoses de Apuleio. 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, Assis. 2006. p. 46

464 PARATORE, Ettore. Apuleio. In: _______. História da literatura latina. Trad. Manoel Losa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. p. 811-830, 1987. p. 820

465 SILVA, Glaydson José da. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e no Satyricon, de Petrônio: representações e relações. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.

466 SILVA, Glaydson José da. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e no Satyricon, de Petrônio: representações e relações. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. p. 40.

467 SILVA, Glaydson José da. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e no Satyricon, de Petrônio: representações e relações. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. p. 3940

468 SCOTT, Joan. W. Prefácio à gender and politics of History. Tradução de Mariza Corrêa. Cadernos Pagu: dossiê desencontro, desamores e diferenças. v. 3, p. 11-28, 1994. p. 12

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

26 3

notoriedade diante de um público diferente do habitual, isto é, daqueles que se interessavam somente por filosofia e discussões mais recorrentes nas outras obras469. No entanto, mesmo utilizando a linguagem de um romance, a obra não deixa de discutir questões sobre filosofia, moral, política e misticismo. Sendo uma obra que visa, muitas vezes, a crítica social através da sátira, é provável que existia uma familiaridade entre autor e leitor em relação os temas ironizados na obra. Para que a sátira de determinado assunto faça sentido deve haver certo “incômodo” diante dele, tanto para o autor quanto para o leitor, já que se não fizesse sentido para ambos, não seria necessário. Os temas que são trabalhados por Apuleio, fazem parte da sociedade romana, mesmo que em muitas passagens ele trate de classes sociais diferentes da dele próprio, o mais importante não é a veracidade do relado, mas sim os indicativos de sua visão de mundo – que pode ser compartilhada com seus leitores. No contexto histórico vivenciado pelo autor, o Império ainda passava por uma série de mudanças. A condição feminina também foi alcançada, principalmente relacionado ao matrimônio e ao gerenciamento de dote e de heranças 470. Tais mudanças projetavam uma certa autonomia feminina que não era bem vista por alguns autores do Principado – como Sêneca, Tácito e Tito Lívio. Esses autores criticavam, em seus escritos, as mulheres “incontroláveis”, sempre as comparando e contrapondoas com esposas idealizadas dos primeiros tempos de Roma – as conhecidas matronas. As críticas e as comparações com modelos de mulheres ideais são vistas como uma tentativa de “moralização da sociedade”, o que é observável inclusive em leis criadas durante o período do Imperador Augusto (27 a.C.-14 d.C.) que tinham por finalidade reprimir o adultério, dificultar o divórcio, favorecer matrimônios entre pessoas do mesmo segmento social e aumentar a natalidade471. Ainda que essas mudanças tenham se iniciado séculos antes do nascimento de Apuleio, os desdobramentos regiam as críticas no período do autor. A busca pelo retorno de uma moral tradicional idealizada 469 SILVA, Semíramis Corsi. Aspectos de religiosidade de Apuleio: Entre magia e filosofia no II século d. C.. Revista Brasileira de História das Religiões, Maringá, v. 1, n. 3, 2009. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html. Acesso em: 01/08/2010. p. 4

470 CARVALHO, Margarida Maria de; GONÇALVES, Ana Teresa Marques. Mulher romana e casamento na obra de Apuleio. História. São Paulo, v. 12, p. 115-122, 1993. p. 117-118

471 CARVALHO, Margarida Maria de; GONÇALVES, Ana Teresa Marques. Mulher romana e casamento na obra de Apuleio. História. São Paulo, v. 12, p. 115-122, 1993. p. 118.

era presente, e possível pressupor que o autor romano-africano também partilhava dela. No trecho de O Asno de Ouro em que Apuleio apresenta aos leitores a história de um moleiro e de sua mulher adultera, encontram-se indícios que corroboram as questões acima levantadas. O protagonista Lúcio já metamorfoseado em um asno é vendido para um padeiro. Como um observador atento, Lúcio vê tudo que se passa na casa do padeiro como um curioso e interessado espectador que em certo momento se envolve nos acontecimentos. Para descrever a esposa do padeiro, ele utiliza todos os defeitos que uma mulher poderia ter: Pode-se dizer que nenhum vício faltava a essa infame criatura; pelo contrário, estavam todos reunidos na sua alma, como numa latrina emporcalhada: ela era cruel e mesquinha, bruta, bêbada, rebelde, teimosa, avara nas suas torpes rapinas, pródiga nos seus gastos vergonhosos, inimiga da fé, hostil ao pudor. Por outro lado, desprezava, calando-os aos pés, os numes divinos. Em lugar da religião, falsa e sacrilegamente professava a crença presunçosa num deus que proclamava único. Sob a aparência de observâncias vãs, enganava a toda a gente, principalmente ao mísero marido. Bebia de manhã à noite, e se prostituía durante o dia472 Ao contrário do marido, que em poucas palavras foi descrito por Lúcio completamente diferente de sua esposa: “O padeiro que me comprara a peso de dinheiro era um homem bom e modesto”473. Em uma noite em que o marido jantaria na casa de um amigo, portanto, propício para o adultério, a esposa preparou uma farta ceia para seu amante, o jovem Filesítero. Entretanto, foi surpreendida pela volta inesperada do marido, obrigando a esposa a procurar, em uma caixa de madeira usada para guardar trigo, um esconderijo para o amante. Lúcio descreve as ações da esposa diante da situação: Depois, dissimulando, com sua astúcia natural, a infâmia de sua conduta, e deixando transparecer na expressão uma fingida segurança, perguntou ao marido por que deixara a mesa do amigo, com quem mantinha tão estreitas relações de amizade, e voltara tão cedo.474

472 APULEIO. O Asno de Ouro. IX, 14. 473 APULEIO. O Asno de Ouro. IX, 14. 474 APULEIO, O Asno de Ouro. IX, 23.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

26 5

Depois de muita insistência da esposa, o padeiro narrou o que se sucedera durante o jantar na casa do vizinho. Ambos descobriram que a esposa havia escondido um amante em sua casa: [...] Empurrando bruscamente a mesa, descobriu a gaiola e dela tirou um homem cuja precipitada respiração se processava com esforço. Ardendo de indignação com a afronta, pediu a espada. Fazia já menção de degolar o moribundo, quando, ao pensamento do perigo em que nos meteria a todos, eu lhe contive com esforço o louco impulso [...] Aconselhei em seguida, baixinho, a mulher, persuadindo-a a se afastar da loja por um tempo [...], pois, a julgar pelo calor e raiva de que estava possuído, não era de duvidar que meditasse também contra si mesmo e contra a mulher algum sinistro projeto475 O narrador Lúcio-asno apresenta a ironia diante da cena que se passava: “[...] narrou o infortúnio da casa do outro, inconsciente do que se passava na sua” 476. Ao ouvir a história de adultério a esposa amaldiçoa a vizinha, e mais uma vez é descrita pelo protagonista observador como extremamente ardilosa em dissimular seus atos: Durante todo esse relato, a mulher do padeiro que tinha uma longa prática de impudência e de perfídia amaldiçoava a mulher do lavador de panos e imprecava contra ela. Era, dizia, uma sem-vergonha, uma ordinária, a desonra e o opróbio de todo o seu sexo [...] Entretanto, secretamente minada pelos remorsos de uma consciência sórdida, tinha pressa de livrar o cúmplice de um abrigo que o incomodava, e não cessava de dar a entender ao marido que era hora de ir dormir.477 Nesse momento, percebendo uma oportunidade, Lúcio-asno decide interferir nos acontecimentos a que presencia. Ao vislumbrar os dedos do amante escondido para fora da pequena caixa, aplica-lhe um duro golpe de seu casco, o que fez com que o jovem desse um agudo grito de dor, e encontrado pelo marido. Ao descobrir o adultério em sua casa, o padeiro escolhe vinga-se do amante de sua própria maneira. Diferente do vizinho a que buscou irracionalmente a morte daquele que trouxe a desonra para sua casa, o padeiro decida subjugar o amante para mostrar toda sua virilidade:

475 APULEIO, O Asno de Ouro. IX, 25. 476 APULEIO, O Asno de Ouro. IX, 23. 477 APULEIO, O Asno de Ouro. IX, 26.

[...] Depois de ter trancado sua mulher em outro cômodo, deitou sozinho com o jovem e gozou plenamente a doçura de vingar o seu himeneu profanado [...] acompanhada de um corretivo cuidadoso, laçou-o porta a fora O rei dos sedutores, fora do negócio, sem esperança, com as brancas nádegas magoadas no tratamento suportado durante a noite, e depois de dia, fugiu acabranhado. O padeiro impôs logo o divórcio à mulher e expulso-a imediatamente de casa478 Por fim, ao retratar a reação da esposa frente a decisão do marido, Lúcio descreve as ações da adúltera, não apenas como diretamente associadas ao caráter dela, mas estreitamente ligada ao gênero feminino: Voltando às suas práticas antigas, exercitou-se nos artifícios familiares ao seu sexo. Procurando bem, descobriu uma velha feiticeira que, com devoções e malefícios, podia conseguir fosse o que fosse479 Fica claro nas passagens escolhidas o tipo de representação construída entre homens e mulheres. Apuleio caracteriza a esposa sem que tenha nem um único valor moral valorizável, e diferente do que salienta Veyne em A história da vida privada, o marido não é criticado por falta de vigilância e por deixa o adultério florescer 480, pelo contrário, é destacado pelo protagonista as ações tomadas para a retomada da honra e da virilidade. Nesse trabalho é ressaltado a importância do estudo da obra O Asno de Ouro para a o estudo das relações de gênero na Antiguidade romana. É claro que tal obra literária, assim como todo relato sobre o passado, não pode ser explorada como um reflexo imediato das realidades sociais, ou como um relato neutro, mas como uma construção feita por um autor determinado, e para objetivos específicos. O que não signifique que não resultem de observações concretas e que podem, por isso, ser exploradas com proveito pelos historiadores sociais481. Os estudos de gênero têm levado a historiografia a repensar as formas de relações entre homens e mulheres nas sociedades, voltando-se para um novo prisma para as análises. Nessa perspectiva, os textos literários podem ser considerados fontes 478 APULEIO, O Asno de Ouro. IX, 28. 479 APULEIO, O Asno de Ouro. IX, 29. 480 VEYNE, Paul (Org.). O Império Romano. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges. (Dir.). História da vida privada: Do Império ao Ano Mil. São Paulo: Cia das Letras. v. 1, p. 17-212. 2009. p. 49

481 FUNARI, Pedro Paulo A.; GARRAFFONI, Renata Senna. Gêneros e conflitos no Satyricon: o caso da dama de Éfeso. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 101-117, 2008. p. 104106.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

26 7

riquíssimas para o desenvolvimento de estudos em diferentes contextos históricos. A obra de Apuleio, especificamente, apresenta a oportunidade de compreender um pouco mais profundamente as representações que são feitas das relações de gênero sobre um prisma masculino do universo aristocrático. Desta forma, é importante levar em consideração questões que vão além da referência textual, buscando compreender o autor, seu contexto e público alvo da obra. A utilização de literatura como documento, pode apresentar uma série de aspectos ligados a atividades cotidianas e das estruturas sociais em geral e que, muitas vezes, diferem das representações universalistas de autores antigos. O que permite ir além dos estudos tradicionais, que se resumem substancialmente em estudos sobre a classe dominante. Certamente, as representações que Apuleio faz não pode ser considerado a realidade da população em seu período, mas possibilita compreender a visão de um provinciano da elite sobre as formas de socialização em seu contexto. Seu olhar, não é imparcial, e de forma nenhuma é isento de julgamento. Como ressalta Glaydson José da Silva482: A busca de historicidade em testemunhos literários no estudo da Antiguidade, para além de uma carência de fontes, revela que estes testemunhos não são somente produtos de imaginação e ficção, mas que, também, carregam em si indícios que permitem a reconstrução de aspectos culturais de uma dada sociedade, tornando-se assim, importantes instrumentos de análise e compreensão social. De fato, as representações construídas por Apuleio tem como finalidade condenar comportamentos que o autor da obra julgava inadequados e podem ser consideradas como espelho de seus “temores”. Nesse sentido, os exageros dos vícios considerados próprios das mulheres, como o adultério, a dissimulação, a ganância e a vingança que fazem parte da “perversidade” feminina destacada, bem como da falta de governo dos homens em relação a essas mulheres, que são representados como sendo frequente e facilmente manipulados pelas esposas, pode ser um indício do temor ou incômodo do autor frente às buscas femininas por uma maior autonomia, sem que fossem constantemente controladas por seus maridos. A ironia se faz presenta em momentos em que personagens masculinos não percebem a perversão de suas esposas, como no trecho em que o marido critica a mulher do vizinho enquanto ainda 482 SILVA, Glaydson José da. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e no Satyricon, de Petrônio: representações e relações. 2001. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. p. 33

ignora que passa pela mesma situação. Nesse sentido, o autor demonstra a necessidade de que homens reestabeleçam a virilidade que lhes é devida.

Álvaro Lins : O Imperador da Critica Brasileira Lais Iaci Mirallas de Carvalho483 Graduanda da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP/Assis Resumo: O presente trabalho realiza um estudo sobre o crítico literário Álvaro Lins (1912-1970) que com os seus julgamentos críticos influenciou o panorama literário do século XX e contribuiu para a consolidação do pensamento sobre a cultura brasileira. No ano de 1963 publicou a obra Os Mortos de Sobrecasaca: obras, autores e problemas de literatura brasileira. Ensaios e estudos 1940-1960 em que construiu um balanço sobre o legado modernista para a literatura e a cultura no Brasil elencando os cânones que deveriam permanecer imortalmente no cenário literário nacional. Palavras-chave: Álvaro Lins; Crítica Literária; Cânone Literário. 1. Introdução Álvaro Lins atou no cenário da literatura brasileira no século passado como jornalista, intelectual, político, historiador, professor, investigador, diplomata e crítico cultural, alcançando indiscutível prestígio e reconhecimento nacional pela contundência de seus julgamentos. Lins se dedicou com maestria ao ofício da crítica literária em seu tempo, acompanhando não só os principais eventos da vida literária e cultural do Brasil como também do mundo, focando especialmente nas obras lançadas e autores em pleno exercício da escrita. Devido a sua grande importância para a 483 Bolsista de Iniciação Científica: processo nº 2014/26625-0, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

26 9

literatura brasileira, o crítico foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras para se tornar o quarto ocupante da cadeira 17 no ano de 1955. Em tempos passados, antes da expansão das faculdades de letras, os jornais eram o local privilegiado de discussão de ideias literárias, criando, inclusive, um estilo próprio de reflexão sobre a literatura. A discussão do objeto literário se dava, essencialmente, no jornal, tornando-a acessível a um público amplo e heterogêneo. Isto é, a literatura não era vista como especialidade e sim como tema de interesse geral dos leitores instruídos ou que queriam aprimorar seus conhecimentos. Segundo Eagleton (1991) no seu livro A função da crítica484, os debates literários, que eram promovidos pelas primeiras críticas publicadas em periódicos, convidavam à contradição, abrindo espaço para a reflexão social a partir das obras analisadas. Em vista disso, Lins era conhecido como um “homem de Letras”, que escrevia suas reflexões nos rodapés dos jornais, espaços que anteriormente eram destinados aos romances de folhetim. O homem de letras se concebia como escritor, desenvolvendo um estilo próprio para produzir uma obra com um viés criativo nas páginas de jornal. Assim, a crítica era literária não por analisar a literatura (muitas vezes, o tema pertencia à política, à história, ou à cultura), mas por se assumir como literatura. Escritores como Lins eram conhecidos como críticos de rodapé, como observa a estudiosa Flora Sussekind: Os anos 1940 e 1950 estão marcados no Brasil pelo triunfo da crítica de rodapé. O que significa dizer: por uma crítica ligada fundamentalmente a não especialização da maior parte dos que se dedicam a ela, na sua quase totalidade bacharéis; ao meio que é exercida, isto é, o jornal – o que lhe traz, quando nada, três características formais bem nítidas: a oscilação entre a crônica e o noticiário puro e simples, o cultivo da eloquência, já que se tratava de convencer rapidamente leitores e antagonistas, e a adaptação às exigências (entretenimento, redundância e leitura fácil) e ao ritmo industrial da imprensa; a uma publicidade, uma difusão bastante grande (o que explica de um lado, a quantidade de polemicas e, de outro, o fato de alguns críticos se julgarem verdadeiros “diretores de consciência” de seu publico, como costumava dizer Álvaro Lins); e, por fim, a um diálogo estreito com o mercado, com o movimento editorial seu contemporâneo (SUSSEKIND, 1993, p. 16-17). 485 484 EAGLETON, Terry. A Função da Crítica. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 485 SUSSEKIND, Flora. Papéis Colados. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1993.

O crítico possuía uma presença jornalística muito intensa, essa personalidade extremamente inerente fez com que pudesse exercer o papel de orientador da opinião publica, revestido de um caráter de autoridade que não era só literário, mas também moral. Foi considerado por Carlos Drummond de Andrade o “imperador da crítica brasileira”, pois analisou de maneira regular e segura a produção literária da época: Foi o imperador da critica brasileira entre 1940 e 1950. Cada rodapé de Álvaro, no correio da manhã, tinha o dom de firmar um valor literário desconhecido ou contestado. E quando arrastava um autor o melhor que o arrastado tinha a fazer era calar a boca (BOLLE, 1979, p. 47). 486

O intelectual foi responsável pelo rodapé semanal de crítica literária do Correio da Manhã do Rio e escreveu artigos semanais que acompanharam passo a passo a produção literária brasileira da época. Aliás, escreveu para jornais e revistas diversas, tais como Folha da Manhã, A Tribuna, Diário de Notícias, Jornal do Comércio, Folha do Norte, etc. Nestes rodapés semanais, Lins emitiu opiniões e julgamentos sobre questões que excedem o plano da literatura, visto que seus estudos abordam temas como política, questões sociais e históricas, além de reflexões sobre a própria atividade crítica, assim como teorizações sobre a função da literatura no âmbito social e individual, como salienta Eduardo Cesar Maia: [...] Em sua maioria, tinham como finalidade precípua o recenseamento de novos autores e o comentário crítico de obras recém-publicadas, além da discussão de temas literários, políticos e ideológicos do momento. A maior parte da obra crítica de Lins foi realizada, portanto, no calor da hora, atendendo as demandas e contingências que cercam a atividade jornalística. Em algum desses rodapés, no entanto, o crítico pernambucano refletiu não exclusivamente sobre obras concretas ou circunstanciais, mas a respeito do ato crítico em si: o papel da literatura e da crítica literária, as perspectivas dos demais críticos e teóricos da época e também sobre aqueles pensadores do passado que influenciavam sua visão pessoal de crítica e de literatura (MAIA, 2012, p.7). 487

O crítico pernambucano atuava como um diretor de orientação e consciência, uma vez que emitia juízos, consagrando ou rechaçando estreias e lançamentos 486 BOLLE, Adélia B. de M. A obra crítica de Álvaro Lins e sua função histórica. Petrópolis: Vozes, 1979. 487 LINS, Álvaro. Sobre crítica e críticos. Eduardo Cesar Maia (Org.). Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2012.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

27 1

literários de acordo com seus critérios de valor, descobrindo assim novos bons escritores. Nem mesmo os nomes célebres da literatura brasileira eram poupados de suas rigorosas avaliações, o que, muitas vezes, gerava polêmicas e causava dinamismo na vida cultural da época. Devido ao gabarito de Lins, a sua função de crítico literário não foi apenas de comentarista livros, mas se tornou um fundamental formador de opiniões. Álvaro Lins, ao acolher um novo autor simultaneamente já o procedia a uma hierarquização, o livro tinha a sua posição fixada na vida literária, da qual resultava ou a sua consagração no panteão literário da época ou sua saída do mundo das letras com o estigma de subliteratura. A respeito desta influência, uma nota publicada ilustrou esse fenômeno: “No dia seguinte à publicação do rodapé de Álvaro Lins sobre Sagarana, a obra de Guimarães Rosa passou a ser procuradíssima nas livrarias. E essa procura continua cada vez mais intensa” (SUSSEKIND, 1993, pg.18)488. Após esta publicação Sagarana possuiu um súbito êxito comercial, o que deixou evidente o prestígio conquistado via imprensa pelo crítico, resultante da sua personalidade bem formada e bem orientada. Assim, a obra de Lins tornou-se indispensável para a literatura brasileira. Segundo o autor Jean Yves Tadié (1992)489 o crítico se encaixa no quesito da crítica falada, ou seja, na expressão crítica dos jornalistas, dos que escrevem para a imprensa, pois estes tem o duro dever de analisar centenas de livros não do passado ou raramente dele, mas, sim, da atualidade, dos quais, grande parte está condenada a desaparecer. Esta questão exige múltiplas características de quem a elabora, é preciso produzir com agilidade, propor escolha de obras, ajudar a esclarecer alguns conceitos importantes do livro sobre o qual se fala e um dos critérios mais importantes: julgar o “valor estético” da obra, quanto maior for ele, mais o método se aplicará, mais a obra pode ser compreendida por si mesma, mais encarna uma visão universal e se torna um clássico imortal. Sobre esta questão da crítica jornalística, é preciso evidenciar uma citação memorável de Álvaro Lins: Os artigos de crítica são escritos sob o pequeno prazo de uma semana, que separa um do outro. E nunca se poderá imaginar as dificuldades que esse sistema de crítica coloca diante de seus autores. Todo crítico deveria praticá-lo ao menos durante seis meses. Este exercício tornaria 488SUSSEKIND, Flora. Papéis Colados. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1993.

489 TADIÉ, J. Y. A Crítica Literária no Século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S. A., 1992.

todos eles mais compreensivos e mais humildes, pois sei de alguns que escrevem uma página por semestre e se julgam com o direito de exigir sempre a perfeição de artigos feitos todas as semanas sob a inspiração dos assuntos mais diferentes. A verdade é que esta crítica semanal não pode ser exclusivamente artística, como aquela que se realiza pacientemente para os livros, mas deve apresentar um caráter jornalístico. Torna-se necessário ser jornalista para praticar a crítica de jornal (LINS, 1944, p.50). 490

O crítico pernambucano reconhecia que a crítica jornalística tinha seus limites, objetivos e alcance específicos. O caráter circunstancial, a exigência de prazo e a obrigação de lidar com autores novos, ainda não classificados dentro do cânone literário, faz da crítica jornalística uma atividade única, muito diferente, por exemplo, do trabalho de um acadêmico que realiza um estudo historiográfico ou de um estudioso que se se aprofunda com tempo sobre autores já consagrados: A crítica dos mortos, trabalhando sob perspectivas já definidas e sobre obras já classificadas, é bem diferente daquela que se realiza sobre os contemporâneos, para os quais não temos as perspectivas nem as classificações; a crítica geral, a dos largos panoramas não é a mesma que se executa sobre figuras, fatos e livros isolados. Como estudar, por exemplo, toda a psicologia de um autor, aquelas suas reações e modos de ser em face da vida que se vão refletir na sua obra, e toda sociologia do seu ambiente marcando e influenciando essa mesma obra, num simples artigo de jornal? (LINS, 1946, p. 44). 491

O crítico possuía características e estilos próprios: extrema sensibilidade literária e intuição aguçada, juntamente com uma personalidade crítica inerente, maturidade intelectual e moral, formação multicultural e atenta supervisão ao valor literário. Acreditava que a ele era incumbida uma missão de cunho ético, pela experiência adquirida em seus estudos e leituras, ensinar os outros a ler apreciando a arte da verdadeira literatura. Essa vontade de participação e de influência nos debates literários é uma das marcas da crítica de Álvaro Lins, dado que para ele: Um crítico não se define somente pelo valor estritamente literário e artístico de suas páginas, mas pela sua atuação na vida literária, pela sua influência, pelos resultados dos seus trabalhos, pelos erros que condena ou evita, pelas realizações que sugere ou provoca com as suas ideias. Um crítico é uma espécie de político no mundo das letras, um “regente” da literatura (LINS, 1944, p.50). 492 490 LINS, Álvaro. Jornal de Crítica, 3ª série. Rio de Janeiro: Olympio, 1944. 491 LINS, Álvaro. Jornal de Crítica, 4ª série. Rio de Janeiro: Olympio, 1946. 492 __________. Jornal de Crítica, 3ª série. Rio de Janeiro: Olympio, 1944.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

27 3

Na década de 1960, Álvaro Lins se dedicou a reeditar sua obra, reuniu seus artigos e ensaios publicados anteriormente nas páginas de jornais para levar sua crítica à posteridade. Ao republicar seus artigos, o crítico fez alterações significativas nos textos, pois estava livre para modificá-los de acordo com suas próprias formulações, já que no jornal o crítico era preso, orientado e limitado pelas regras da imprensa. Álvaro Lins, portanto, desejava permanecer no tempo, e só o livro lhe proporcionaria esse privilégio de permanência. Como enfatiza Bolle, o crítico publicou em livros quase tudo o que escreveu nas páginas dos jornais proporcionando a possibilidade de “acompanharmos passo a passo o desenvolvimento de sua crítica, e o desenrolar do panorama da literatura brasileira daquela época, panorama que ele próprio ajudou a montar” (BOLLE, 1979, p. 41-42)493. A maioria dos textos está recolhida no Jornal de Crítica, que foi editado por Lins em sete séries. 2. Os Mortos de Sobrecasaca: um panorama do cânone Modernista brasileiro Álvaro Lins marcou a crítica nacional com os seus artigos e ensaios publicados nas páginas de jornais, logo para grande crítico só restaria realizar uma grande obra. Em 1963 publicou um conjunto de ensaios sobre crítica literária Os Mortos de Sobrecasaca: obras, autores e problemas de literatura brasileira. Ensaios e estudos 1940-1960. Nesta obra o crítico reuniu diversos artigos oriundos dos Jornais de Crítica para construir o cânone literário modernista nacional baseado nas suas concepções de análises e julgamentos de valor, com uma leitura que resgata diversos autores, e é capaz de gerar uma nova configuração para a literatura brasileira. De acordo com Tristão de Athayde, Álvaro Lins ao transformar seus rodapés de crítica em artigos de crítica profissional, instaurou-se ainda mais como um imperador, pois esta transposição “lhe permitiu uma segurança excepcional de juízos” (1946, p.26) 494, ou seja, concretizar historicamente seus julgamentos.

493 BOLLE, Adélia B. de M. A obra crítica de Álvaro Lins e sua função histórica. Petrópolis: Vozes, 1979.

494 ATHAYDE, T. “Críticos”. In: LINS, Álvaro. Jornal de Crítica, 4ª série. Rio de Janeiro: Olympio, 1946.

Na análise das obras presentes na antologia, o crítico confere especial atenção aos elementos internos ao texto: na poesia há preocupação intensa com a métrica, o verso, a escolha do tipo de verso e de tema, e também, com a “sensibilidade” e o “sentimento” do poeta; na prosa, tem olhar aguçado para o enredo e seu desenvolvimento (coerência, facticidade e organização lógica), com o cuidado de verificar se o autor introduziu os elementos na trama narrativa, e construiu contundentemente os personagens. É nítida sua aversão a teorias, escolas, estilos, influências, e é evidente seu apreço pela inspiração, pelo esforço e pelo respeito ao amadurecimento do escritor: A revolta contra os códigos, no domínio literário e artístico, resulta, como a sua consequência, numa maior afirmação de personalidade, que não vai tendendo para a escravidão e, sim, para uma completa libertação. [...] As obras estéticas que nos transmitem uma sensação mais pura e mais íntima de vida são aquelas que nasceram dos espíritos livres: livres das escolas, das fórmulas, dos preconceitos, de todos os limites e de todas as servidões (LINS, 1941, 24-33). 495

Com base nos estudos de Roberto Reis verifica-se que o cânone literário significa na literatura um conjunto de obras que são consideradas clássicas, e que devem ser preservadas para as futuras gerações, pois seu valor é indiscutível: “Nas artes em geral e na literatura, que nos interessa mais de perto, cânon significa um perene e exemplar conjunto de obras – os clássicos, as obras-primas dos grandes mestres -, um patrimônio da humanidade” (REIS, 1992, p.70)496. Pode-se dizer que Lins defende a imortalidade de uma obra devido a sua literariedade, pelas suas qualidades intrínsecas que fazem com o que leitor assimile seu conteúdo e reflita sobre sua vida, a sociedade e tudo o que lhe convém. Na chamada antologia, Álvaro Lins realiza este propósito, formula um panorama literário de vinte anos de produções modernistas, elegendo os escritores que deveriam permanecer no cânone da literatura brasileira por toda a história, uma vez que as obras contêm o principio denominado por Ítalo Calvino “literatura como função existencial” (CALVINO, 1990, p.39) 497, ou 495 LINS, Álvaro. Jornal de Crítica, 1ª série. Rio de Janeiro: Olympio, 1941.

496 REIS, R. Cânon. IN. JOBIM. J. L. (org). Palavras da crítica. Tendências e conceitos no estudo da Literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 65-92.

497 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

27 5

seja, as obras produzidas e suas autores proporcionam aos seus leitores um amplo conhecimento da vida, da sociedade e dos homens. O cânone literário de Álvaro Lins é composto por autores que produziram obras permeadas de qualidades estéticas e senso artístico, uma vez que para ele a obra deve implicar aspectos literários, e não permanecer em plano descritivo e informativo por si mesmo. Na esfera poética elegeu como autores imortais Carlos Drummond de Andrade (a definição do nosso tempo), Mário de Andrade (a imaginação de um homem e a imagem de um movimento literário em sua obra poética), João Cabral de Melo Neto (um poeta original da sua geração), Vinícius de Moraes (poeta maior), Cecília Meireles (consciência artística e beleza formal), Jorge de Lima (poeta regionalista, nacionalista, brasileiro), Raul Bopp (um poeta particular e representativo do Modernismo), Bueno de Rivera (um modernista retardatário), Augusto dos Anjos (poeta moderno e vivo) e Thiago de Mello (o estreante). Em sua visão estes poetas merecem destaque pelo valor formal de suas obras, o trabalho com a linguagem, a técnica em conjunto com o trabalho artístico e a criação poética que levam a originalidade estética e temática. As reflexões de Álvaro Lins esclarecem que ele entendia por “poesia moderna” uma perfeita conjunção entre substância e forma poética. A economia de referências a textos clássicos da teoria literária nos seus ensaios poéticos confirma seu apego à crítica jornalística, de caráter mais imediato, voltado para a recepção de livros de poetas da atualidade. Otto Maria Carpeaux notou a significação da crítica de Álvaro Lins sobre a poesia brasileira contemporânea: Vejo o mérito principal do critico Álvaro Lins na sua critica da poesia brasileira contemporânea; duplo mérito num país em que, ao lado duma poesia de alta significação, as vaidades poéticas pululam. Acredito que o Sr. Álvaro Lins, só ele reconheceu e declarou, com toda a clareza e autoridade que a poesia brasileira contemporânea possui [...] poetas que seriam primeira ordem em qualquer literatura americana ou européia e que o são na literatura universal (CARPEAUX, 1999, p. 460). 498

No Romance, Lins inseriu em seu quadro de permanência Octávio de Faria (autêntico romancista), Lúcio Cardoso (capaz de chegar ao subsolo da natureza humana), José Lins do Rêgo (memória e imaginação), Graciliano Ramos (arte do estilo), José Geraldo Vieira (a experiência transbordante), Clarice Lispector 498 CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios reunidos. Olavo de Carvalho (org.). Rio de Janeiro: UniverCidade/Topbooks, 1999.

(experiência incompleta), Érico Veríssimo (uma grande técnica junto com uma grande temática), Amando Fontes (esplendor de enredo e indigência de estilo), Antônio Alcântara Machado (autêntico representante do Modernismo em prosa), Guimarães Rosa (uma grande estreia), Murilo Rubião (lançado para a linha de Franz Kafka) e Marques Rebelo (mundo carioca), em vista de que as obras destes escritores possuem temas que marcam caracteristicamente os dramas da sociedade brasileira: mazelas do meio social, como a pobreza, a expansão das cidades em detrimento do campo, desvalorização do proletariado. Além do retrato dos impasses do país, Lins insere como obras canônicas aquelas que abordaram a paisagem regional, ressaltando as maravilhas do interior, problemas políticos, assim como romances introspectivos e em esfera psicológica. Os autores acima citados estão presentes no cânone literário de Álvaro Lins pelo fato de que realizaram exemplarmente a missão de relatar a vida, a alma, a sociedade brasileira, sempre unidos a qualidade da forma, que caracterizam a excelência de uma obra literária segundo sua perspectiva de interpretação. A estudiosa Bolle afirma que Lins foi um crítico que obteve grande êxito em seus estudos no campo da ficção: Os estudos sobre Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Jorge Amado [...] José Lins do Rego, Érico Verissimo – para só falar dos mais conhecidos – são de um acerto que a crítica atual só faz reconfirmar (BOLLE, 1979, p.66).499

No teatro, apesar de o crítico evidenciar este gênero como desprivilegiado entre os demais, ele elenca os autores que obtiveram sucesso na realização desta arte, como Marques Rebelo (uma estreia positiva) e Nelson Rodrigues (um dos melhores profissionais do espetáculo), em vista de que estes escritores conseguiram colocar em suas obras a técnica da arte dramática, ou seja, tornar o público suscetível a compreender uma sensação física, direta, imediata, da realização de uma peça, por meio de temáticas nada convencionais, atmosfera dramática e diálogos instigantes. Com relação aos intelectuais e críticos atuantes na época, Lins enfatiza a importância desses escritores no estudo de outros autores representativos da literatura brasileira, uma vez que a posição destas personalidades representava significativo impacto no mundo das Letras. Assim, entre os intelectuais que merecem destaque pela importância de sua obra, Lins exaltou Lúcia Miguel Pereira (consciência literária), 499 BOLLE, Adélia B. de M. A obra crítica de Álvaro Lins e sua função histórica. Petrópolis: Vozes, 1979.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

27 7

Mário de Andrade (a personalidade vinte anos depois), José Veríssimo (um legado para a história literária) e João Ribeiro (para sempre um moderno). A proposta da antologia de Álvaro Lins foi tratar de “ideias, problemas e livros” (LINS, 1963, p.440)500 resgatando diversos autores e obras para demonstrar sua visão acerca dos mesmos, principalmente de sua geração, mas também dos novos escritores que surgiam. Nesta publicação o crítico consagrou escritores e também consolidou sua posição contrária à produção de muitos outros, o que demostra o seu compromisso de formular o seu cânone do Modernismo Brasileiro. 3. Conclusão Álvaro Lins como crítico literário, nas páginas de jornais ou no livro impresso, influenciou decisivamente o cenário literário nacional, colaborando para a definição de nossa história literária: “Nesses casos, vê-se em que medida Álvaro Lins pôde contribuir para erigir o panteão literário de sua época, por meio de julgamentos quase sempre incisivamente certeiros. Sua obra se torna, assim, de consulta imprescindível para a História Literária” (BOLLE, 1979, p.67).

501

É impossível negar a importância deste crítico para a literatura brasileira, pois a autoridade que alcançou em sua época como analista da literatura não foi determinada por um decreto ou por apenas um estudioso, mas sim pelo conhecimento de que ele regeu durante as décadas de 1940 a 1960 o pensamento de toda a cultura do país. Bolle declara em seu estudo A obra crítica de Álvaro Lins e sua função histórica que o crítico atuou enfaticamente na vida literária, interviu em resultados, motivou e atraiu leitores consagrando-se como: Imperador da critica brasileira, regente da literatura, mestre da crítica, responsável pela reitoria das letras brasileiras, prefeito da crítica: todos esses títulos aplicados a Álvaro Lins remetem ao sentido de autoridade (BOLLE, 1979, p.48).502

Esta competência atribuída a Lins advém de sua postura firme e convicta de seu ofício, já que conquistou sua autoridade crítica texto a texto, entusiasmando incontestavelmente seu público leitor. Por conseguinte, é de extrema relevância a 500 Os Mortos de Sobrecasaca: obras, autores e problemas de literatura brasileira. Ensaios e estudos 1940-1960. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

501 BOLLE, Adélia B. de M. A obra crítica de Álvaro Lins e sua função histórica. Petrópolis: Vozes, 1979. 502 BOLLE, Adélia B. de M. A obra crítica de Álvaro Lins e sua função histórica. Petrópolis: Vozes, 1979.

recuperação das críticas de Álvaro Lins e dos autores que consagrou na obra Os Mortos de Sobrecasaca, em vista de que um crítico que regeu o pensamento de um país durante anos e ao final de sua carreira elaborou um panorama da literatura moderna não pode ser deixado de lado quando se pretende compreender a configuração de nossas letras.

Modernização brasileira e sociabilidade: o homem cordial em contraste à cultura individualista Laura Meira Bonfim Mantellatto Mestranda em Psicologia e Sociedade Faculdade de Ciências e Letras de Assis/ FCL UNESP Resumo: esse artigo tem como objetivo explorar, por meio de revisão bibliográfica, os contornos do projeto de modernização que se assentou no Brasil, adotando como reflexo dessa condição, o aumento de pessoas morando sozinhas, verificado a partir da década de 1970. A partir dessa característica, aprofunda-se na vivência de solidão, própria da cultura individualista, em contraste ao padrão de sociabilidade orientado pelo paradigma do homem cordial, os quais se manifestam enquanto experiências a serem equilibradas por pessoas que moram sozinhas. Diante de tal investigação, conclui-se que, a despeito do período contemporâneo difundir a premissa da liberdade individual, a especificidade do sentido gregário e da cordialidade ainda constituem-se enquanto modos de sociabilidade significativos da cultura brasileira. Palavras-chave: modernização; sociabilidade; individualismo. Apresentação O projeto de modernização tem como característica basilar o estabelecimento do indivíduo no espaço urbano, condição que configura novos aspectos relacionados à sociabilidade e ao âmbito subjetivo. À vista disso, Elias (1994) 503 aponta o subsequente descolamento do indivíduo em relação ao conluio familiar proporcionado 503 ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

27 9

pela vivência urbana, afastando-se, pois, da necessária adequação aos ditames nele inscritos, de modo a enfraquecer o papel dessa instituição enquanto administradora de subjetividades. Tal aspecto coercitivo exercido por meio da organização familiar, também foi evidenciado por Ariès (1981)504, de acordo com o qual a regulação das particularidades dos integrantes de determinada família atende a papéis estabelecidos a priori da manifestação do desejo do sujeito: condição que representa uma antítese à ideologia da liberdade individual e exercício de singularidade, as quais dão tonalidade à experiência contemporânea. Desse modo, o empreendimento urbano se estabelece enquanto local de convivência daqueles que são heterogêneos entre si, favorecendo o investimento do sujeito em sua diferença, tendo em vista que esse espaço constrói-se em sentido contrário ao das pequenas comunidades, onde a preocupação era preservar a semelhança entre seus membros, combatendo os elementos estrangeiros que destoavam de tal conformação. A modernização aproxima-se, dessa forma, de uma pluralização do enredo social, diante da qual o indivíduo tem o sentimento de particularidade amplificado e os contornos de sua individualidade sobremaneira demarcados. Holanda (1995)505 reconhece uma fissura na organização social brasileira em relação aos modos de sociabilidade que se estabelecem. Para esse autor, apesar do desenvolvimento de um ideal de modernização no país, as relações sociais estabelecidas reiteram os valores de ordem patriarcal. Se o percurso moderno gera, sobretudo, um distanciamento do indivíduo de sua comunidade de origem. Para o autor em questão é, sobretudo, no âmbito da família que a força conservadora opera e se reproduz de forma mais intensa: “as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição entre nós”506. A despeito de o país estar suscetível à ideologia do capitalismo, as relações sociais operam segundo a lógica tradicionalista, o que culmina num paradoxo entre o homem cordial e a cultura individualista, orientada ao fortalecimento da heterogeneidade. Assim, o paradigma de socialização do Brasil tem como eixo a cordialidade e proximidade e combinação com

504 ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. 505 HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. 26. Ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 506 HOLANDA, S. B. Ob, cit., p. 196.

o outro, em detrimento da relação do indivíduo consigo mesmo, a fim de diferenciarse. Figueiredo (1995)507 aborda essa questão referindo-se ao pressuposto de independência, próprio da atualidade, como afastamento do sujeito da necessidade invariável de seguir valores advindos de uma ordem hierárquica, desta forma, abre-se a possibilidade da pessoa orientar-se segundo suas próprias premissas. No entanto, o exercício desta liberdade, afirmará o autor, restringe-se ao campo do privado, onde o sujeito usufrui da ausência de normas sociais. Como reflexo dessa condição, Elias (1994)508 sugere que se desenvolve no indivíduo uma experiência de cisão entre seu mundo interior e a sociedade. A autenticidade cultivada no meio privado deve-se restringir no campo social, posto o fortalecimento dos ditames sociais, que operam numa sociedade individualizada. As atitudes públicas tendem a ser, sobremaneira, calculadas e protocolares, daí a concepção de indivíduo blasé no contemporâneo; em contrapartida, o cerceamento daquilo que é espontâneo será libertado na esfera íntima. O espaço privado, antes referência necessária ao ambiente familiar, afrouxa-se e assume novas configurações na atualidade. Assim, Elias (1994)509 estabelece que a organização social a partir de grupos enquanto reduto para os sujeitos, diz respeito a comunidades primitivas, onde o controle e a proteção do indivíduo são exercidos pelos outros, responsáveis por atuar diretamente na postura e escolhas a serem adotadas particularmente. A identidade singular é suplantada pela referência ao agrupamento de origem, assim, as pessoas, nessa condição, apropriam-se de uma identidade-nós Com o advento da industrialização, e desenvolvimento das cidades, o sujeito desprega-se de tal ordem, e fortalece-se o ideal de autonomia. O controle antes atribuído ao outro, é internalizado – além daquele operado pelo Estado -, daí advém o processo civilizador, consolidado por Elias. Em oposição ao que indica Ariès (1981)510, o sujeito individualizado sensibiliza-se em relação à diferença – aquela que desenvolve em si, e que o outro, da mesma forma, carrega. Portanto, nas sociedades em que predomina a ruptura com a tradição e exercício da liberdade individual, o 507 FIGUEIREDO, L. C. Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos. São Paulo: Editora Escuta, 1995, p. 26-44. 508 ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. 509 ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. 510 ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

28 1

convite à diferenciação será um ideal, de forma que, em oposição à identidade-nós, será erigida a identidade-eu. Todavia, Elias (1994) designa que o trânsito entre essas duas categorias indenitárias não é estanque, assim, o sujeito pode apropriar-se tanto de pressupostos coletivos, como individuas, segundo as particularidades do contexto que está inserido, como também, de seu desejo. Por isso, no que tange ao intenso processo de individualização no contemporâneo, o autor assevera: Mas essa conformação social das relações humanas não extinguiu a necessidade humana fundamental de um impulso de afeição e espontaneidade nos relacionamentos com os outros. Não faz desaparecer nas pessoas o desejo de segurança e constância na afirmação da afeição dos outros por elas, nem a contrapartida desse desejo, o da companhia daqueles de quem elas gostam. (Elias, 1994, p. 167). O movimento de desagregação dos indivíduos perante os grupos, em especial, o de parentesco, também figura no pensamento de Giddens (2002) 511 ao desenvolver as categorias de sociedade heterônoma e autônoma. A primeira refere-se ao governo do sujeito a partir de instituições e ordens elaboradas à revelia de seu desejo, em vista disso, cabe ao indivíduo submeter-se a instruções que advém do exterior. Em contrapartida, numa sociedade autônoma, atribui-se à pessoa a alternativa de empoderar-se das decisões referentes à sua vida, em especial no campo privado, visto que os ditames sociais permanecerão atuantes através do Estado e autocontrole, no espaço externo. À luz disso, o autor em questão interpreta a sociedade ocidental, da atualidade, como pós-tradicional, onde se instaura o regime do questionamento e consequente superação de paradigmas até então hegemônicos. A trajetória, e constituição dos indivíduos, se darão por meio da reflexividade, a partir da qual opera a contestação e significação do que é experimentado pelos sujeitos: [...] a tradição, ou os hábitos estabelecidos, ordena a vida dentro de canais relativamente fixos. A modernidade confronta o indivíduo com uma complexa variedade de escolhas e, ao mesmo tempo, oferece pouca ajuda sobre as opções que devem ser selecionadas. (Giddens, 2002, p.79). Desse modo, abordaremos o conflito entre o modelo de sociabilidade orientado pelo viés patriarcalista, e aquele assentado nos valores liberais, por meio de uma característica que se desenvolveu concomitantemente ao processo de

511 GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

modernização no Brasil. Berquó (1998)512 identifica uma mudança na estruturação familiar brasileira a partir dos anos 70, quando é desencadeado o crescimento de unidades domésticas. Naquela década, o aumento de residências fora de 4,1%, enquanto o aumento populacional foi de 2,5%, colocando em cheque a ideia de que a ampliação de casas seja reflexo do aumento populacional. No Brasil, a partir do ano de 1967, o ideal de modernização fortalece-se, e o movimento de progresso tem como meta a aproximação dos padrões de vida do chamado Primeiro Mundo. Este período corresponde à intensificação das migrações, industrialização e urbanização do país. Até 1980, o Brasil já alcançava o objetivo de se colocar lado a lado com as principais potências mundiais, quanto à produção e consumo. Para isso, a assimilação da ideologia capitalista - liberdade individual e enfraquecimento da tradição - também foi abundante, principalmente pela chegada da televisão, e consequentemente, da cultura de massa, no seio familiar (Mello, 1998)513. De acordo com os dados do último censo, realizado em 2010, verificou-se persistência de tal manifestação, tendo em vista que o há um aumento de habitações no Brasil, ao passo que, a quantidade de pessoas por domicílio diminui. No ano de 1991, 6,5% da população brasileira vivia só; já em 2000, era 9,1%; da população, por fim, em 2010 atingiu-se o número de 12,2% (IBGE, 2011)514. Aprofundando-se nesse conflito aqui trabalhado, a dissertação de mestrado “Entre a solidão e a amizade: cartografias contemporâneas da subjetividade”, Peres (2000)515 aborda a vivência desses sentimentos por jovens universitários que deixaram suas cidades natais para iniciar os estudos acadêmicos. Para isso, o autor vale-se de um grupo terapêutico, sem um tema pré-definido, onde esses jovens expõem suas novas experiências, dentre elas, a que atinge maior incidência é o conflito entre o contato e distanciamento do outro. A iniciar pela mudança de cidade, os jovens 512 BERQUÓ, E. Arranjos familiares no Brasil: uma visão demográfica. Em: SCWARCZ, L. M. (Org.) História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 422-433. 513MELLO, J. M. C.; NOVAIS, F. A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. Em: SCWARCZ, L. M. (Org.) História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 560-606. 514 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Característica da população e dos domicílios: resultado do universo. Rio de Janeiro, 2011.

515 PERES, W. S. Entre a Solidão e a Amizade: cartografias contemporâneas da subjetividade. 2000. 153 p. Dissertação de Mestrado em Psicologia – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

28 3

relatam que um sentimento de desamparo surge de tal distanciamento do núcleo familiar, isto devido à falta de referências até então bem conhecidas e fixas. Essa mudança de vida os coloca numa condição de desterritorialização, em que deverão buscar novos pontos de confiança por si mesmos, como condição desse processo de descolamento do que era conhecido.

Disso também advém a necessidade de

ressignificar valores e modos de relacionamento que até então se tinha, baseados no contexto de onde vieram. O que emerge de tal condição é, inicialmente, o encontro com a solidão, a qual é bastante estigmatizada pelos estudantes, a partir daí surge o imperativo de proximidade com outras pessoas, já que a solidão é entendida, pelos jovens em questão, como um sentimento a ser evitado. [...] associada à ideia de isolamento e de abandono, a solidão representa, na nossa cultura, a negação de alguns valores considerados fundamentais à realização humana, como o trabalho, o amor e a aceitação social. Nesse sentido, aquele que sente ou que busca a solidão é visto, quase sempre, como um desajustado, um doente, um marginal [...]. (Ortelan, 1996516, p. 15, citado por Peres, 2000, p. 79). O autor indica uma tendência à patologização do estar só, a fuga da condição de estar só orienta os jovens e, amplia o autor, a sociedade, posto que esta é uma máxima difundida no senso comum. O que é defendido nesta dissertação, no entanto, é a solidão como uma possibilidade de potência, ou seja, de recolhimento para cultivo da reflexão e produção de novas formas de se lançar para o outro, o que se dá a partir da ruptura com o que é habitual. Dificilmente este outro viés da solidão ganha ênfase nos discursos dos estudantes envolvidos na dissertação, e aqui faço uma ressalva, na produção bibliográfica a respeito do tema, sendo que a possibilidade de recolhimento e exercício da reflexividade é inadvertidamente colocada de forma generalizada como uma conduta narcísica do indivíduo contemporâneo. O autor pontua que a reprodução do descrédito quanto à solidão viabiliza mecanismos de homogeneização de subjetividades, uma vez que engendra a repetição do que está dado, afastando a possibilidade de ruptura, estranhamento e diferenciação, portanto: Tomar a experiência da solidão como uma estilística da existência [...] um trabalho sobre si mesmo para a construção de um estilo de vida, permite às pessoas fomentarem novos 516 ORTELAN, J. A. Os sentidos da solidão na produção da vida. 1996, 119 p. Dissertação de mestrado em Psicologia - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

processos de subjetivação que produzam outros modos de viver. (Peres, 2000, p.146). Nesse mesmo sentido, se desenvolve a dissertação “Só há solidão porque vivemos com os outros: um estudo sobre as vivências de solidão e sociabilidade entre mulheres que vivem sós no Rio de Janeiro”, Martins (2010)517. A ideia de estudar essa temática teve como questão disparadora encontros promovidos pela Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro, em 2008, destinados a pessoas que se sentiam solitárias, o intuito era o de que, através das reuniões, esses indivíduos construíssem uma rede de vínculos entre si, a fim de protegê-los da solidão, além de oferecer auxílio terapêutico. A autora pontua que, para o secretário, responsável por tal programa, a solidão era vista como um problema social, já que, para ele, a solidão deveria ser combatida, pois, uma vez que as pessoas rompem com o isolamento, a tendência de elas adoecerem seria menor. No entanto, com a mudança de governo municipal, o projeto fora encerrado, assim, a autora decidiu realizar sua pesquisa através de entrevistas com mulheres que morassem sozinhas na cidade, justamente para problematizar as questões de solidão e sociabilidade que atravessavam a idéia do antigo projeto. Martins defende que se deve ampliar o entendimento sobre a condição de morar só, já que isso não é referência necessária à condição de isolamento, portanto, de cisão do contato social. Com base nas entrevistas realizadas, a autora identificou que tais pessoas investem, sim, em relações sociais, e que isto atua diretamente nos significados atribuídos às experiências de estar só. Há, nessa situação, uma preferência pela privacidade enquanto pressuposto de liberdade e empoderamento, de forma que esse recolhimento só se dá em relação aos outros, numa teia de relações, das quais o sujeito se refugia: “O espaço da casa – espaço de privacidade – representa [...] um locus de construção do sujeito na medida em que é o terreno no qual ele expressa sua vontade e estabelece proximidades com um reino da liberdade”518. A aproximação, na categoria de sinônimos, entre solidão e isolamento, o que amplia o estigma referente a essa experiência, não condiz com as vivências de quem 517 MARTINS, R. I. “Só há solidão porque vivemos com os outros...” Um estudo sobre as vivências de solidão e sociabilidade entre mulheres que vivem sós no Rio de Janeiro. Fev. de 2010, 104 p. Dissertação de Mestrado. Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 21 novembro de 2015. 518 Martins, R, I. Ob, cit., p. 34.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

28 5

mora só, justamente pela questão do empoderamento acima mencionado. Ou seja, a solidão representa uma opção do sujeito de recolhimento, enquanto o isolamento está para uma vivência forçada de distanciamento da sociedade. Desta forma, é possível estabelecer conexões entre a solidão, privacidade e recolhimento, sendo que essas experiências dizem respeito a algo que pode ser prazeroso e, portanto, almejado pelas pessoas. Disso decorre a afirmação de uma das entrevistadas, em tal dissertação, que dize gostar de estar sozinha, e não de ser sozinha; o que opera no gerenciamento entre essas duas situações é, justamente, o seu desejo de busca ou distanciamento das demais pessoas. Outra categoria que aparece nos discursos colhidos é o poder que se refere à plasticidade do regramento doméstico, sem a interferência de outrem; há, também, experiências de proximidade entre o cuidado da casa e aquele atribuído a si: eu adoro fazer faxina, porque eu acho que a faxina é a minha vida também, as coisas que não estão legais eu vou arrumando também (sic) 519. Com isso, pode-se visualizar mais claramente a solidão como disparadora da ressignificação de si. A autora assinala que o espaço referente à companhia dos outros, segundo as entrevistadas, é a cozinha. Elas relatam o esvaziamento de sentido em preparar refeições sem outra pessoa com quem possam compartilhar, disso se segue o hábito de comer fora, ou produtos pré-prontos, a autora também vale-se do adendo que, a primeira forma de socialização do humano, se dá através do paladar, no caso, da amamentação, de forma justificar a cozinha como lugar de vinculação. O ato de cozinhar, afirma o escritor Mia Couto, é uma forma de amar, portanto, é razoável estabelecermos uma conexão entre a falta de sentido atribuída a essa atividade, como percepção da ausência do outro, que não é suplantada pelo centramento do sujeito em si mesmo. Está é uma das rachaduras que nos permite visualizar que morar só não se constitui como um estilo de vida dissociado das relações sociais, muito pelo contrário, o silêncio do outro é sentido. A partir dos depoimentos, Martins (2010)520 indica que, na experiência dessas pessoas, a situação de estar só é de fundamental importância no que se refere à singularização frente escolhas cotidianas, além de questionamentos subjetivos; uma vez ultrapassada a dimensão de circunstância deliberada, sobrevém o sentimento de 519 Martins, R, I. Ob, cit., p. 44. 520 MARTINS, R, I. Ob, cit., p. 80.

solidão enquanto isolamento. Morar só representa o poder de administrar o distanciamento e proximidade com o outro, tento como parâmetro o desejo do indivíduo. O isolamento desabrocha quando as possibilidades de realização de tal desejo são, por algum motivo, impedidas. Esta colocação nos permite ampliar a análise para o contexto social, a partir de Elias (1994) 521, que desenvolve a ideia de diferenciação entre eu interior, sobremaneira resguardado pelo sujeito, e o eu protocolar/exterior, responsável pelo contato formal com as demais pessoas, orientado segundo os ditames sociais. O sentimento de solidão imposta, assim como na experiência de morar só, surge diante do bloqueio de manifestação do verdadeiro eu, acompanhado de sua espontaneidade, disto emerge a ideia de solidão em meio à multidão. A condição de isolamento, portanto, figura como incapacidade de realização dos desejos particulares, aproximando-se da noção de desamparo. Na dissertação de mestrado “Civilização suficientemente boa? Entre o princípio do desamparo e o desamparo como princípio” (Hoshina, 2008)

522

é

abordado o tema central da modernidade de valorização do indivíduo, responsável por distanciá-lo das tradições, lançando-o numa condição de desamparo. Para o autor, há duas saídas possíveis frente a essa condição: a primeira seria a inatividade frente a tal situação, e a segunda, diz respeito à abertura para novas possibilidades de satisfação. O cenário de liberdade irrestrita, que culmina na ausência de referências de identificação, seria responsável por gerar no sujeito contemporâneo um estado de desamparo total, posto que o desenvolvimento subjetivo só se dá em relação ao outro. Birman (2006), citado por Hoshina (2008)523, defende que a origem do mal-estar na atualidade advém, justamente, dessa falta de parâmetros, o que antes fora equilibrado pela tradição, cuja função era dar coesão e destinamento prévio à vida dos indivíduos. Revestido pela ideia de auto-suficência, o sujeito, no contemporâneo, recai no desamparo repetidamente, ao negociar a satisfação de seus desejos com aqueles que provêm do outro e, eventualmente, abrir mão de sua satisfação.

521 ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

522 HOSHINA, H. Y. Civilização Suficientemente Boa? Entre o princípio do desamparo e o desamparo como princípio. 2008. 116 p. Dissertação de Mestrado em Psicologia – Faculdade de Ciências e Letras de Assis

523 BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação - 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

28 7

Para Fuks (1998)524, citada por Hoshina (2008), a publicidade se valerá de tal condição, já que, através do consumo, o sujeito pode satisfazer seus desejos, sem precisar estar aberto a negociações, como as relações interpessoais determinam. O imperativo da sociedade de consumo será justamente esse, de distanciamento da sensação de desamparo através do consumo. Hoshina defende, no entanto, que a condição de desamparo, enquanto abertura para o novo, não deve ser negligenciada, já que é necessária para o desenvolvimento do sujeito. Dessa forma, pensar na solidão, no resguardo do sujeito, como uma experiência a ser evitada, recai numa condição de negar essa vivência e não poder se desenvolver a partir dela. Aprofundando-se nesse pensamento, para Bachelard (1974)525, a casa – referência primeira à proteção, ao acolhimento e segurança -, convida o sujeito a entrar em contato com experiências sensitivas e dá-las significados através dos devaneios. Desta forma, por convidar o sujeito ao processo de reelaboração, resgate de memórias e produção de novos sentidos, a casa aparece como um espaço de integração psíquica. A singularidade da experiência obtida em tal espaço está relacionada à sobrevivência da infância entre suas paredes: [...] sem a casa, o homem seria um disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida [...] Sempre, em nossos devaneios, a casa é um grande berço. (Bachelard, 1974, p. 201). Para o autor, a vivência de abrigo associada à busca pela solidão está atrelada à constituição do sujeito, ou seja, a segurança do espaço proporciona à pessoa elementos que lhe permitem um mergulho em si mesma: a integração externa proporciona a interna, e vice-versa. A casa corresponde, então, aquela onde essas experiências de solidão, tédio, de sonhos e devaneios estão resguardadas. Quando angustiantes, essas sensações tornam-se suportáveis devido ao contorno de segurança e acolhimento próprio do lugar. O espaço habitado, experimentado, significado, é, portanto, vetor de subjetivação. Assim, residir só, pode representar uma possibilidade para o estabelecimento de vínculos interpessoais mais íntegros, uma vez que a pessoa 524 FUKS, L. B. Narcisismo e Vínculos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.

525 BACHELARD, G. A poética do espaço. Em: Os Pensadores XXXVIII. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

se fortalece nos momentos de resguardo: o jogo desejo/frustração - impreterível no relacionamento com outras pessoas -, pode ser elaborado e, portanto, suportável. Com base na revisão bibliográfica, foram identificadas diferentes facetas atribuídas, respectivamente, à individualização no contemporâneo, da qual tomamos como figura a experiência de morar só, estilo de vida em franco crescimento no cenário urbano atual. Existem poucos trabalhos que discutam esse fenômeno de outra perspectiva, ou que, ao menos, levem em consideração seu aspecto multifacetado. A individualização aproxima-se tanto da solidão, quanto da liberdade, sendo ainda é dominante a interpretação estigmatizada, associando-a ao isolamento. Neste trabalho, buscamos revisitar tal experiência, por meio do exame bibliográfico e relatos de pessoas que vivenciam essa condição, onde identificamos que, a continuidade de certa crítica e evitamento no tocante à solidão se dão num contexto onde os valores familiares, e de ordem conservadora, ainda reverberam. O modelo de vínculos familiares transborda os lares e conduz a reprodução de tais relações no âmbito social, de tal forma que o sujeito que se recolhe e resguarda sua intimidade corresponde ao oposto do homem cordial enunciado por Holanda (1995) 526, o qual ainda parece ser um paradigma de socialização contumaz no Brasil.

O Pasquim e a imprensa alternativa dos anos de 1970 Léa Mattosinho Aymoré527 Mestranda de História - UNESP/Assis Resumo: O Pasquim foi um semanário de enorme sucesso, que obteve um grande êxito editorial desde o seu lançamento em junho de 1969. Em contraste com o nebuloso clima político e social da época sua tônica era o humor, começando pelo próprio nome, O Pasquim. Fundado por Tarso de Castro, Luiz Carlos Maciel e Sérgio Cabral numa mesa de bar de Ipanema, foi Jaguar quem bolou o nome, como forma de cortar o barato das “pessoas sérias” que iriam considerar o jornal um pasquim. Para entendermos o imediato sucesso do semanário junto a seu público é preciso analisar 526 HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. 26. Ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995 527 Sob a orientação do Professor Dr. Milton Carlos Costa.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

28 9

as particularidades do cenário em que foi criado, na boêmia zona sul do Rio antes de 1970, bem como a importância da imprensa alternativa entre os anos de 1960 e 1970. Na época havia duas grandes classes de jornais alternativos, uma delas composta por jornais predominantemente políticos, cujas raízes remontavam à ideologia nacionalista dos anos de 1950 e à popularização da ideologia marxista dos anos de 1960. A outra classe de jornais alternativos era oriunda das influências dos movimentos de contracultura norte americanos, voltados à critica dos costumes e à ruptura cultural. O Pasquim inserese nesta segunda classe de alternativos. Este trabalho se propõe a analisar até que ponto essa conjunção de fatores foi determinante para que O Pasquim se tornasse um jornal bastante influente ao longo de sua trajetória. Palavras-chave: Imprensa alternativa; Contracultura; O Pasquim; Ditadura civilmilitar.

Introdução O Pasquim, surgiu num contexto histórico e num ambiente muito específico, o cenário contra-cultural carioca do final dos anos de 1970. Compunha esse contexto uma camada boêmia e intelectualizada da sociedade carioca, a chamada “esquerda festiva”, definida por Ruy Castro em sua “Enciclopédia de Ipanema” da seguinte forma: A esquerda dita séria, não gostava da Esquerda Festiva. A direita também não. Ambos usavam a expressão para ofender os membros da dita. Mas estes não se ofendiam e achavam ótimo pertencer a uma esquerda que não se julgava triste e que, mesmo quando as coisas estavam pretas, assumiam seu amor por festas e regabofes. Ela seria impraticável em países como a Argentina ou o Chile, onde todos se levam a sério demais em política. Nesse sentido, a festiva pode te sido até uma contribuição original de Ipanema à esquerda mundial: mantinha acesa a chama revolucionária e, ao mesmo tempo, aplacava os ânimos mais exaltados que queriam partir para soluções armadas.528

Ele considera como sendo as principais realizações da esquerda festiva nos anos 1960 e 1970, os réveillons promovidos por Albino Pinheiro e Jaguar no Clube Silvestre; as noites de samba no restaurante Zicartola; o show Opinião, com Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale; o jornal O Pasquim e os ciclos de debate sobre variados temas que ocorriam no Teatro Casa Grande.529 Ao situar O Pasquim no contexto dessa esquerda festiva, percebemos que o jornal carregava também, características festivas, 528 CASTRO, Ruy. Ela É Carioca: Uma Enciclopédia de Ipanema. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 118. 529 Idem

oriundas do momento cultural e do local em que foi concebido. Incluem-se aí os bares cariocas Jangadeiros, Zeppelin, Degraus e Varanda, verdadeiros pontos de encontro dessa geração. Nesses bares, o jornal era pensado e personagens eram criados num experimentalismo que se distanciava de tudo aquilo que era produzido até então, inclusive pela própria imprensa alternativa. Zuenir Ventura, em sua célebre obra “1968: o ano que não acabou”, cita o poeta Ferreira Gullar, um membro assumido da tal esquerda festiva, que considera muito sabiamente “A esquerda recorreu então à festa como uma forma de se manter, de ir adiante, de não morrer, de resistir.” 530 Em sua análise, Zuenir identifica o trecho entre Ipanema e Leblon como o pedaço mais inteligente e boêmio do Brasil, naquela época, e caracteriza a geração de 68 como a última geração literária do Brasil, cujo aprendizado intelectual e percepção estética foram forjados pela leitura, uma formação que lhe conferiu o gosto pela palavra argumentativa.531 Várias pesquisas já foram realizadas tendo O Pasquim como fonte e objeto de estudo. Em seu trabalho, Brígida da Cruz Santos, faz uma análise da seção As Dicas, durante o período que vai de 1969 a 1971. 532 A seção, idealizada em conjunto por Jaguar e sua mulher Olga Savary, em pouco tempo tornou-se uma das mais populares e significativas dentro do jornal, consolidando inclusive a palavra “dica”, uma abreviação de indicação, na língua escrita do Brasil. “As Dicas”, que iam desde endereços de lojas e restaurantes, com indicações de preços, hoje algo muito comum, mas impensável na época, até dicas e antidicas que debochavam de aspectos políticos e sociais do cenário nacional e internacional, além de outros veículos de comunicação. A crítica por vezes se transformava em auto-crítica, começando pelo próprio nome do periódico “O Pasquim”. A seção traduzia a vida comum e ao mesmo tempo boemia de seus editores e sua linguagem estava em sintonia com a linguagem das ruas. Esse aspecto, somado à sua informalidade contribuía muito para o sucesso do semanário, que propiciava aos leitores um espaço livre para a elaboração de uma nova forma de pensar e se comportar. 530 VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. 3. ed. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008,p. 48. 531 Ibid. p. 52.

532 SANTOS, Brígida da Cruz. Quem ri por último não entendeu a piada: as dicas de O Pasquim (1969-1974). Dissertação de Mestrado. Assis, SP: Universidade Estadual Paulista, 2002.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

29 1

Acreditamos que a seção As Dicas era representante da liberdade de expressão. Um local livre para qualquer tipo de opinião, pensamento, ou mesmo para falar de uma loja, de uma personalidade do bairro, enfim todo assunto poderia ser discutido ou citado, e esse espaço também era aberto para todos os colaboradores. O leitor via-se livre para propalar seu pensamento proibido nas escolas, comunidades, manifestações públicas, entre outros.533

O livro de José Luís Braga, O Pasquim e os anos 70, faz uma análise global do semanário desde sua criação em 1969 até sua morte na década de 1980. A análise que ele realiza se dá por meio de três eixos: a história factual, cronológica distribuída em fases distintas; as formas e os conteúdos de O Pasquim e as relações entre o periódico e o contexto em que se inseria. Braga ainda dedica um dos capítulos para tratar do jornal no período entre 1978 e 1980, em que o Pasquim se tornou o jornal dos anistiados, porém não se aprofunda no conteúdo das colunas e entrevistas realizadas nessas edições. Ele conclui sua pesquisa relatando a decadência do semanário nos anos seguintes, justamente por não conseguir adaptar sua forma e conteúdo aos “novos tempos” e ainda devido a sucessivos prejuízos financeiros. Através das peripécias da história do Pasquim, observa-se o esforço de manter uma coerência com as posições originais de sua fase dinâmica, que durante muito tempo resultaram na produção mais crítica da imprensa brasileira. O Pasquim traça um percurso até o ponto em que sua crítica não podia mais se aprofundar, nem inventar novas perspectivas para apreender os novos dados da realidade. Ele se enfraquece na medida da redução de sua pluralidade. A força de seu discurso, que foi sempre a de marcar uma oposição, passa a determinar sua fraqueza, o que faz do Pasquim um jornal ‘datado’.(BRAGA, 1991, p. 246)534

Já a tese de Márcia Neme Buzalaf, concentra-se no período em que O Pasquim funcionou sob censura, entre 1969 e 1975.535 Num primeiro momento a pesquisa aborda o cenário de nascimento do periódico, sua relevância e seu imediato sucesso, mesmo sendo considerado “subversivo” pelos militares. A autora também aborda as suas três fases iniciais: da primeira edição até a de número 71, quando seus principais redatores são presos; os quatro anos em que o jornal esteve submetido a censores cariocas, de janeiro de 1970 a dezembro de 1973; e o período de censura centralizada em Brasília, de dezembro de 1973 a março de 1975. O estudo ainda 533 Ibid. p. 85 534 BRAGA, J. L. O Pasquim e os anos 70: mais pra epa que pra oba. Brasília: Editora UNB, 1991. p. 246. 535 BUZALAF, M. N. A censura no Pasquim (1969-1975): as vozes não silenciadas de uma geração. Tese de Doutorado. Assis, SP: Universidade Estadual Paulista, 2009.

analisa as diversas formas encontradas pela equipe do semanário para driblar a censura e fazer chegar ao leitor, as discussões e os assuntos que eram esperados. Na tentativa de ampliar o entendimento sobre as contradições, as relações estabelecidas sob o poder da censura no mais irreverente e duradouro jornal alternativo daquela época, os arquivos oficiais nos mostram como a censura retratava o periódico e seus jornalistas e como a dinâmica da censura afetou a produção do Pasquim.536

A autora descreve o período de censura atravessado pelo periódico caracterizando-o em três fases: uma censura circunstancial no inicio do jornal; uma censura prévia ao material jornalístico, feita por militares cariocas junto aos redatores; e finalmente uma censura realizada em Brasília, com o objetivo de por entraves ao processo de produção do jornal. A primeira fase é considerada profundamente anárquica devido a total ausência de uma censura interna instalada na redação. Essa fase foi fortemente marcada por capas que anunciavam entrevistas de grande repercussão, como as com Leila Diniz e Carlos Miéle, em que os redatores exploravam os entrevistados visual e textualmente. Busalaf também considera outra característica marcante dessa fase as frases-editoriais que deixavam claro o posicionamento do jornal em relação ao seu jornalismo opinativo, tais como: “O Pasquim não se responsabiliza pela opinião de seus colaboradores; aliás, nem pelas suas” (edição 09, de 1969), “Somos contra tudo o que a gente pode ser contra” (edição 10, de 1969), “O PASQUIM – um jornal que sente o drama de escolher um lema por semana” (edição 16, de 1969) e “O PASQUIM – ame-o ou deixe-o” (edição 58, de 1969).537

Em outras frases-editoriais o jornal expunha com humor as pressões que sofria: “O PASQUIM – um pequenino enganador” (edição 34, de 1970), “O PASQUIM sabe de tudo e não quer entrar em detalhes” (edição 38, de 1970), “Se alguém pensa que o Pasquim se atemoriza com ameaças e pressões, pode tomar nota de uma coisa: é verdade” (edição 56, de 1970).538

A autora menciona um episódio ocorrido nessa primeira fase, em 12 de março de 1970, quando uma bomba de fabricação caseira teria sido colocada na redação do jornal. O explosivo felizmente não detonou, e não saíram mortos ou feridos do episódio, na época se especulou que a tentativa de atentado teria partido de grupos 536 Ibid. p. 136. 537 Ibid. p. 140. 538 Ibid. p. 143.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

29 3

ligados ao TFP, que teriam se sentido ofendidos com o conteúdo da entrevista de Leila Diniz, mas nada ficou provado.539 A noticia sobre o “quase atentado” foi divulgada pelo próprio Pasquim na edição de número 40 em 19 de março de 1970, por meio de um divertido e cáustico texto descrevendo o incidente e de uma fotomontagem mostrando a equipe do Pasquim, com caveiras no lugar dos rostos.

Figura 1: O Pasquim, edição 40, rio de Janeiro, 19 de março de 1970. Abaixo segue um trecho do texto que acompanhava a ilustração: (...) Damo-nos por vencidos, como diria um purista. Até agora, ainda não sabemos quem colocou a bomba na rua Clarisse Índio do Brasil (vocês já repararam no nativismo de nosso endereço) na madrugada de quinta-feira doze de março (felizmente, como sempre, estávamos no bar). Mas já sabemos, naturalmente, a direção e de onde veio o ataque. E sabemos, sobretudo, o que pretendem os agressores. Assim, para evitar qualquer futuro atentado, damos acima aquilo que tão ardentemente desejam os terroristas: ver nossas caveiras. Pela ordem, da esquerda para a direita: Luiz Carlos Maciel, Paulo Francis, Jaguar, Fortuna, Tarso, Millôr, Henfil, Ziraldo, Sérgio Cabral, Paulo Garcez e a caixa de uísque vazia. 540

Desde o inicio de 1970, havia um censor responsável pelo Pasquim, Marina Brum Duarte, também responsável por censurar as músicas do Chico Buarque. Sua relação com a equipe de redatores estava muito longe de ser profissional, ainda mais quando descobriram o fraco de Dona Marina pela bebida. Segundo Jaguar era deixada 539 Idem. 540 Ibid. p. 144.

uma garrafa de uísque na mesa da censora, até o final do dia ela já tinha bebido tudo, só então levavam o material pra ela aprovar. 541 Essa relação terminaria em breve com a destituição de Dona Marina de suas funções e com a prisão da maior parte da equipe após a publicação da edição de número 71, em que havia uma fotomontagem com a famosa obra de Pedro Américo “Grito do Ipiranga”. O cartunista adicionou à imagem de Do Pedro I um balãozinho com a frase extraída da música de Jorge Ben: “EU QUERO MOCOTÓ!!”. A brincadeira foi vista como uma evidente provocação ao reproduzir e zombar da pintura que tem um caráter patriótico.542

Figura 2: O Pasquim, edição 71, Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1970. Os membros da equipe do Pasquim foram chamados a prestar depoimento, e permaneceram presos por dois meses. Como já foi relatado no primeiro capitulo a equipe não se deixou abater e o jornal não deixou de ser publicado, pois pode contar com uma equipe de colaboradores de peso. Todo o processo envolvendo a prisão da equipe do jornal e a colaboração da classe intelectual e artística foi exposto e ironizado, segundo eles “havia um surto de gripe na redação do Pasquim”, nas páginas do semanário. A edição de nº 73 que foi publicada entre 11 e 17 de novembro de 1970, já estampava a questão na frase-editorial de forma sutil “O Pasquim - O jornal com algo a menos”, e ilustra na capa de forma menos sutil a figura de um lobo ameaçando um carneiro, com os dizeres "Enfim, um Pasquim inteiramente automático. Sem o Ziraldo. Sem o Jaguar. Sem o Tarso. Sem o Francis. Sem o Millôr. 541 Ibid. p. 145. 542 Ibid. p. 149 e 150.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

29 5

Sem o Flávio. Sem o Sérgio. Sem o Fortuna. Sem o Garcez. Sem a redação. Sem a contabilidade. Sem gerência e sem caixa".543 Já a frase-editorial da edição de número 74, traz um tom de resistência “O Pasquim - Apesar dos pesares” e ilustra a capa com o ratinho Sig perdido no meio de um labirinto repleto dos mais importantes nomes do meio cultural e literário que vieram em socorro do Pasquim na ocasião, e ainda completa “Ainda com algo menos, mas agora com muitos mais”544 Busalaf considera que esse período não serviu apenas como uma demonstração de força do jornal em sua capacidade de resistir, mas serviu também para fortalecer as relações entre a equipe fixa do jornal e seus colaboradores. A censura não afastou o grupo de colaboradores do jornal – que poderia ter optado por manter-se afastado para não ser associado aos subversivos jornalistas e ser, assim, passível de ser interrogado. Pelo contrário. Atraiu e fortaleceu relacionamentos entre os membros da geração do Pasquim, que, neste momento, de fato, sente-se parte do jornal e de uma “turma”. O termo “patota”, por mais generalista que seja, é consonante com esse sentimento e foi impresso diversas vezes no jornal. Também fica claro que o momento “de exceção” do Pasquim e as circunstâncias da publicação do jornal durante a prisão dos jornalistas consolidaram a linguagem e o estilo do jornal.545

Mesmo após a soltura da equipe a censura previa continuou ocorrendo no Rio de Janeiro, o censor mais marcante dessa segunda fase foi o general Juarez Paz Pinto, pai de Helô Pinheiro, a garota de Ipanema, que tinha uma relação no mínimo interessante com a “patota”. O material a ser avaliado era entregue ao censor na praia, ele lia ali mesmo no posto 6, entre uma partida de biriba ou outra e depois ele mesmo ia entregar na redação.546 Segundo Marcia Neme Busalaf, tudo muda em dezembro de 1973 quando a censura de Pasquim transfere-se para Brasília, se esvaziando completamente o espaço de relações e possibilidades da equipe do jornal com os censores. O material era enviado por correio para a capital para ser analisado, sem qualquer possibilidade de questionamento sobre os vetos, depois era reenviado para o Rio de janeiro e a equipe tinha que aproveitar o que não fora vetado para montar a edição e mandar pra gráfica. 543 Texto publicado na capa da edição de número 73. 544 Frase presente na capa da edição de número 74. 545 Ibid. p. 158. 546 Idem.

De acordo com depoimento de Miguel Paiva eles tinham que mandar pra Brasília muitas vezes uma edição com o triplo de material que normalmente fariam para poder ter material liberado o suficiente para compor uma edição normal.547 Bernardo Kucinski reproduz em seu livro uma carta de Ziraldo que relata o martírio semanal a que O Pasquim estava submetido pela censura prévia de Brasília. (...) Segunda-feira é um dia de morte na sede d’ O Pasquim. Se explica. Toda matéria ainda está em Brasília, aguardando liberação da censura. E a Nelma fica aqui, tensa, tentando falar com um tal de Irmão - este é o apelido do cara – que é o quebra –galho que a Nelma arrumou lá em Brasília pra ir lá na Policia Federal, pegar o material e devolver pra gente, por um malote de favor. Se ele não pegar o negócio no aeroporto, levar na policia, pegar na policia e botar no avião numa transa ajeitada pela Nelma, babau, não tem O Pasquim. (...) Amanhã a Nelma avisa: chegou. E corre todo mundo pr’O Pasquim, pra ver o que sobrou. É uma brincadeira sinistra. (...) O Ivan Lessa rola no chão, espuma, chora – literalmente – baba, sai da sala, desiste, se desespera. Sérgio Augusto fica fazendo tudo igual... como sou mineiro, saio correndo com o que sobrou nas mãos dizendo: ‘ainda dá pra fazer um número, deixa que dá’. O Ivan fica enfurecido com a minha atitude. Meia hora depois, passa o inferno e todos nós sentamos ofegantes e animadíssimos, pra ajeitar o número e começar uma maneira de enganar os homens na semana seguinte. Aí, na quarta e na quinta paginamos e terminamos o número. Sexta ele vai pra gráfica e nós já temos que mandar novamente o material pra Brasília. Esta é a rotina. Uma coisa, nós aqui na redação decidimos, num momento de lucidez: nós não vamos ficar loucos (...)548

A situação perdura até a edição de número 300, em 29 de março de 1975, quando oficialmente é decretado o fim da censura prévia no Pasquim, que teria acabado “tão misteriosamente como começou” segundo Millôr, em seu célebre artigo Sem censura, publicado no editorial do mesmo número. “Cinco anos depois, tão misteriosamente como começou – ‘ordens superiores’ – a sinistra censura sobre este jornal se acabou. O Dr. Romão, o último interventor de plantão dos vinte ou trinta que passaram pela tarefa nesses mil e quinhentos dias de violências, comunicou a Nelma ‘Vocês agora não precisam mandar mais nada para a censura’. Mas, vício do ofício, não conteve a ameaça ‘Agora a responsabilidade é de vocês’. A responsabilidade sempre foi nossa. Quando esteve em visita ao Pasquim, um homem, pela conversa, pertencente aos extremos da extrema direita (...) não conseguiu, definitivamente, entender uma coisa: que tivesse havido tantas prisões, no Pasquim, por crime de imprensa, estando o jornal sob censura prévia. O fato é que, mesmo sob censura prévia, a responsabilidade sempre foi nossa. (…) Dez dos principais redatores ficaram presos durante exatamente dois meses, sessenta dias, sem culpa formada, com interrogatórios constantes mas sem nexo, até que, muito tempo depois de todos soltos, o inquérito foi arquivado. No ínterim o jornal caíra de cem para setenta mil exemplares e a publicidade paga se retraía ao nível zero. Agora o Pasquim passa a circular sem censura. Mas sem censura não quer dizer com 547 BUZALAF, M. N. op. cit., p.166. 548 Apud: Carta de Ziraldo a Claudius, s. d. arquivo MM. In: Kucinski, Bernardo. Jornalista e Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: EDUSP, 2003, p. 221 e 222.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

29 7

liberdade. Pois a ordem de liberação, como a ordem de repressão, não partiu de nenhuma fonte identificável. (…) De modo que – não nos enganamos! – assim como a ordem veio, pode ser negada amanhã de manhã e o jornal apreendido no momento em que você lê este artigo. A ausência de censura no Pasquim é, assim, neste momento e neste país, um privilégio amedrontador e quase insuportável. (...) Mas continuaremos a trabalhar, com a liberdade interior, que é nossa e nunca nos tiraram, e com o medo, que é humano.”549

Em sua obra, Kucinski, analisa o Pasquim sob a ótica do que teria sido a imprensa alternativa dos anos 1960 e 1970, traçando um panorama sobre o surgimento, os caminhos percorridos e o legado deixado pela imprensa alternativa brasileira em nossa sociedade, O Pasquim é analisado tanto em meio à conjuntura da época, quanto em suas particularidades que contribuíram para torná-lo um grande sucesso editorial e um precursor de mudanças não apenas comportamentais, mas também na linguagem jornalística e publicitária. Em sua análise Bernardo Kucinski considera a existência de duas grandes classes

de

jornais

alternativos,

uma

delas

era

composta

pelos

jornais

predominantemente políticos, cujas raízes remontavam à ideologia nacionalista dos anos de 1950 e à popularização da ideologia marxista dos anos de 1960. Suas principais características eram o didatismo e o dogmatismo presentes em reportagens e artigos com forte teor político, em que tanto eram levantadas questões envolvendo o endividamento externo, o agravamento das mazelas sociais, quanto eram discutidos temas clássicos das esquerdas como o caminho para a revolução brasileira. A outra classe de jornais alternativos era oriunda das influências dos movimentos de contracultura norte americanos, e por meio deles também se influenciava do orientalismo, do anarquismo e do existencialismo de Jean Paul Sartre. Eram jornais voltados a critica dos costumes e à ruptura cultural. O Pasquim insere-se nesta segunda classe de alternativos, que além de instituir o culto a cultura underground, ainda iniciou um movimento próprio de contracultura, transformando as linguagens do jornalismo e da publicidade. Porém, esses jornais de cunho contra-cultural não deixavam de atuar no plano da contingência política, por meio da oposição sem tréguas ao regime militar.550 549 FERNANDES, Millôr. Millôr no Pasquim. São Paulo: Editora Circulo do Livro, 1977, p. 184 e 185. 550 Kucinski, Bernardo. Op. Cit., p. 14 e 15.

Nesse plano, mantinham-se nos marcos de uma cultura convencional de esquerda e da crítica intransigente. Seus protagonistas, muitos deles antigos militantes da esquerda, haviam adotado o existencialismo mais como fuga instintiva do dogmatismo das esquerdas e da própria realidade opressiva do que como adesão a uma nova concepção de ser. Não criticavam a cultura estabelecida das esquerdas; apenas, não mais a adotavam como filosofia de vida. 551

Por suas raízes, profundamente cariocas, Jaguar imaginou O Pasquim como um jornal representativo do bairro de Ipanema, a exemplo do novaiorquino Village Voice, pioneiro da imprensa underground americana, fundado no boêmio bairro do Village de Nova York em 1955. Porém, O Pasquim foi além de um jornal de bairro, pois sua visão crítica extraída do microcosmo carioca em que era produzido atingia e era compartilhada por artistas e jovens de todo país. Até porque seus principais alvos eram a ditadura militar, a classe média moralista e a grande imprensa, e apesar de particularidades relativas ao local especifico em que era gestado, sua voz encontrava eco onde quer que ele fosse distribuído.552 Um outro aspecto o diferenciou do Village voice, foi que logo na edição nº 32, em janeiro de 1979, apenas seis meses após seu lançamento, O Pasquim já vendia 225 mil exemplares, ao contrário do seu inspirador novaiorquino que teve um crescimento lento, e que só começou a dar lucro sete anos depois de lançado. A característica mais marcante do Pasquim, responsável por torná-lo único no meio editorial brasileiro foi a revolução na linguagem que ele promoveu não apenas no cotidiano das pessoas, mas também nos meios jornalísticos e publicitários. Aparentemente essa revolução teria se iniciado por acaso, quando Jaguar, praticamente transcreveu uma entrevista feita por ele e por Paulo de Tarso com Ibrahim Sued, para as páginas do Pasquim sem colocá-la na famigerada linguagem jornalística, sem fazer o tal do copy-desk, que ele desconhecia por ser “apenas um chargista”. A entrevista foi publicada daquela maneira natural, exatamente como fora feita, por falta de tempo de reescrevê-la, e o resultado foi a aprovação dos leitores, que gostaram daquela forma inovadora de entrevistar, abusando do tom informal proposto pela oralidade.553 O autor também identifica os dois principais aspectos que teriam se articulado e contribuído para o surgimento da imprensa alternativa: a ambição das esquerdas em 551 Idem. 552 Ibid. p. 209. 553 Ibid. p. 210.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

29 9

protagonizar as transformações que propunham, e a demanda, por jornalistas e intelectuais, de espaços alternativos em que pudessem se expressar. Pois o trabalho na grande imprensa e nas universidades em muitos casos já estava fora de cogitação. Fundindo até certo ponto a história das esquerdas brasileiras com a historia da imprensa alternativa.554 Além disso, as primeiras edições do Pasquim já exibem traços, seções e maneirismos que o caracterizariam durante toda a sua existência: a grande entrevista, provocativa e dialogada que introduziu o estilo coloquial no jornal; a coluna As Dicas uma inovação que depois seria imitada por toda a imprensa brasileira; o bairrismo; a página de underground de Luis Carlos Maciel, o personagem imaginário Pedro Ferreti, pseudônimo compartilhado por todos os redatores, criado para criticar anonimamente; o ratinho Sig, criado por Jaguar em homenagem a Sigmund Freud; os artigos ácidos de Paulo Francis; as tiras do chopnics, personagem criado por Jaguar e Ivan Lessa ainda na época do Jornal dos Sports combinando as idéias de beatniks, movimento contracultural norte americano e o carioquíssimo chope. Kucinski salienta a importância do humor destilado nas paginas do Pasquim naquele difícil período. “Sua agressividade, suas incursões no inconsciente do opressor, a desmoralização do imaginário repressivo, tudo isso gerava uma profunda irritação no aparelho militar.” 555 E foi justamente por ser um jornal de humor que O Pasquim teve mais possibilidades de driblar a censura, diferente de outros jornais políticos que estavam presos a necessidade de um convencimento lógico. Ou seja o humor foi seu maior trunfo. O autor também discute as razões que teriam levado ao desaparecimento dos jornais alternativos, procurando ir além do fator exógeno, que explica o seu surgimento, a resistência à ditadura. É certo que com a abertura, a grande imprensa foi apropriando-se dos temas até então exclusivos dos alternativos, recontratando muito dos seus jornalistas, contribuindo para o esvaziamento de seu papel social, pois a partir dali fazer oposição ao governo não era mais exclusividade da imprensa alternativa.556 Para ir além na questão o autor analisa o modelo ético-político da imprensa alternativa, e identifica como um de seus principais aspectos o desprezo ao 554 Ibid. p. 16 e 17. 555 Ibid. p. 220. 556 Ibid. p. 25.

lucro e aos fatores de ordem prática que envolvessem administração, organização e comercialização tornando-os vulneráveis às pressões externas e às suas próprias contradições.557 Outro fator que contribuía muito para o seu enfraquecimento era o sectarismo, um traço ideológico que permeava não apenas as divergências internas, mas também as novas questões de cunho ético surgidas com o desenvolvimento da conjuntura política, sendo que vários desses jornais encontravam-se vinculados a partidos políticos e a movimentos basistas. Nas articulações predominantemente jornalísticas, como foram Bondinho, O Pasquim e o exemplar Coojornal, pesaram a falta de uma tradição cooperativista. Em outros, como Movimento, pesou a ausência de valores democráticos nas relações cotidianas, por sua vez oriunda de uma supervalorização da ideologia, em detrimento do comportamento – e, nessa ideologia, da ação revolucionária em detrimento da relação democrática. A não valorização do respeito mútuo, do direito de divergir, a incapacidade de operar novas propostas participativas que surgiram nos jornais basistas, em especial após 1976, contribuíram para fragilizar os jornais alternativos. Em países com tradições interpessoais mais democráticas, alguns jornais do ciclo alternativo sobreviveram e se consolidaram: Village Voice, nos Estados Unidos, Time Out e Private Eye, na Grã-Bretanha, Liberation, na França. Mas todos eles mudaram de caráter, e hoje são parte da imprensa convencional. 558

Por isso, Kucinski conclui que o desaparecimento dos alternativos coincidiu com o fim de um ciclo, que no Brasil coincidiu com o fim da ditadura brasileira, sem contudo ter relação direta com ela. Era o fim de um ciclo cuja ética era representada pelas propostas de transformação social e pela crença na realização social por meio da ação coletiva. E nesse contexto o autor situa o surgimento inesperado do Partido dos Trabalhadores, que contribuiu para aglutinar amplos setores da esquerda em torno de novos paradigmas. Estava eliminada a supremacia do dogma. O novo partido, que reunia católicos, comunistas, socialistas e sindicalistas pragmáticos, negava a própria necessidade de haver uma doutrina. Com o PT foram implodindo um após o outro todos os partidos e agrupamentos leninistas, em especial o que também implodiram jornais alternativos apoiados na sua militância.559

No caso do Pasquim, seu declínio não associa-se apenas a questões conjunturais como o a abertura do regime militar e o fim de um ciclo na sociedade brasileira, mas também a diversos problemas financeiros, resultado de uma postura 557 Idem. 558 Ibid. p. 27 e 28. 559 Ibid. p. 28.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015 antiempresarial predominante na equipe, e também devido a

30 1

um processo de

envelhecimento de linguagem. O Pasquim que durante grande parte dos anos de 1970 atingira um público leitor muito amplo de adolescentes e jovens adultos nas grandes cidades e no interior foi perdendo a capacidade de se renovar e criar, ao não se institucionalizar como entidade capaz de absorver as novas gerações e com elas interagir, enfim, tornara-se o jornal dos pais e não mais dos filhos. “Os jovens já não sabiam o que era O Pasquim”.560

CORDELISTA E MULHER: consonância e ruptura na escrita de Maria das Neves Batista Pimentel Letícia Fernanda da Silva Oliveira561 560 Apud: Entrevista com João Carlos Rabello, realizada em 30/12/1979. In: Kucinski, B. op. Cit. p. 230. 561 Letícia Fernanda da Silva Oliveira, Graduada em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP. Mestranda do Programa da Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Assis. Pesquisa realizada com o apoio financeiro da CAPES. E-mail: [email protected]

UNESP/Assis Resumo: Oriunda de uma forte comunidade poética situada em Teixeira-PB e filha de Francisco Chagas Batista, um dos poetas populares mais importantes do começo do século XX, Maria das Neves Batista Pimentel destaca-se por ser a primeira mulher a publicar um folheto de cordel, em 1938. Para transgredir o cânone masculino da literatura popular ela utiliza o pseudônimo de Altino Alagoano, o que torna possível a conquista da palavra poética por uma mulher. Promove então uma dupla ruptura, rompendo com o seu próprio mundo, o feminino, e rompendo com a tradição familiar dos Nunes-Batista, em que apenas os homens eram cantadores ou poetas. A poetisa transpõe para seus versos os valores patriarcais vigentes na sociedade nordestina em que vive, sendo um dos principais deles o da honestidade feminina. Palavras-chave: Maria das Neves Batista Pimentel; Literatura de Cordel; mulher. Introdução Em seu ensaio denominado Um teto todo seu562, Virginia Woolf traz uma série de questionamentos acerca da escrita feminina. O mais importante deles talvez seja aquele que questiona o porquê de as mulheres serem sempre alvo da ficção escrita pelos homens, mas nunca autoras de suas próprias histórias. Investigando obras de séculos esparsos, ela conclui que poucas são as mulheres que se sobressaem a ponto de terem suas obras publicadas e atingirem a fama, e cita, como os maiores exemplos e exceções de sucesso, Jane Austen, as irmãs Brönte e George Elliot, autoras de importantes romances mundialmente conhecidos, entre estes Orgulho e preconceito563 e O morro dos ventos uivantes564. A conclusão a que a escritora britânica chega é que são poucas as mulheres que se destacam, porque a grande maioria das mulheres mal sabia ler, eram ensinadas apenas a cumprirem seus afazeres domésticos e as trivialidades que as mantivessem dentro do lar e longe de sérios questionamentos. Torna-se difícil pensar que elas teriam a liberdade de escrever e virem a alcançar algum dia importância pública enquanto autoras, já que as mulheres não tinham direito à palavra pública. Até bem pouco tempo, a figura feminina permaneceu em menoridade perante a figura 562 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 563 Publicado pela primeira vez em 1813. 564 Publicado pela primeira vez em 1847.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

30 3

masculina, sendo esta a do pai ou marido. A submissão feminina sempre foi um grande empecilho para o sucesso, e a independência de uma mulher solitária era algo praticamente impossível.565 Sobre as mulheres romancistas ela tece algumas considerações, afirmando que sendo a mulher sempre atarefada, seus romances seriam sempre escritos aos poucos, entre uma tarefa cotidiana e outra, e, às vezes, escondendo essa atividade de seus familiares e sempre dos visitantes eventuais. A mulher que fosse descoberta enquanto escritora seria alvo de riso e julgamento alheio. Chega também à conclusão de que as mulheres sempre escreviam romances, pois era a literatura mais fácil de ser produzida durante o cotidiano feminino, pois não exigiam tanta concentração quanto a poesia. Seguindo seu raciocínio ela afirma que mesmo que não reconhecidas como autoras, muitas vezes eram as mulheres as transmissoras das lendas folclóricas, contando-as para os seus filhos ou para outras mulheres com quem conviviam. Em sua dissertação intitulada “Mulheres cordelistas: Percepções do universo feminino na Literatura de Cordel”566, a pesquisadora Doralice Alves de Queiroz faz uma afirmação em consonância com a da escritora britânica. Durante muito tempo, os sentimentos, as visões do mundo, as aspirações femininas foram recalcados na escrita, e, salvo algumas exceções, foi talvez na oralidade e no âmbito doméstico que a voz feminina pôde dar sua contribuição artística e poética.567 A paraibana Maria das Neves Batista Pimentel (1913-*) 568 foi a primeira mulher a romper a hegemonia masculina no mundo dos folhetos de cordel nordestinos, mesmo que sob o pseudônimo de Altino Alagoano, o nome de seu marido. Sendo o Nordeste uma região que seguia os preceitos patriarcais com forte 565 Tecem considerações sobre essa temática também as autoras: MEYER, Marlyse. “Mulheres romancistas inglesas do século XVIII e romance brasileiro”. In: Caminhos do Imaginário no Brasil. São Paulo: Edusp, 2001. E PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005.

566 QUEIROZ, Doralice Alves de. Mulheres cordelistas: percepções do universo feminino na literatura de cordel. 2006. (Mestrado Literatura Brasileira)-Faculdadede Letras da UFMG, Belo Horizonte, 2006. 567 Ibid., p. 13. 568 O ano da morte de Maria das Neves Batista Pimentel não foi encontrado em pesquisas feitas na internet. Quando o livro de Maristela Barbosa Mendonça foi lançado ela completava 80 anos.

veemência, ela se utiliza desse artifício como uma máscara para conseguir a aceitação do público, para fugir da censura que recairia sobre uma mulher que toma a voz e conta também as suas histórias. Para ela era claro que uma mulher não poderia sair à rua para cantar e vender seus versos, que ela não conseguiria conquistar o público. Tal fato pode ser notado em uma das várias transcrições feitas por Maristela Barbosa Mendonça569 das entrevistas que realizou com Maria das Neves, na ocasião de sua pesquisa: Todos os folhetos que foram vendidos na Livraria de meu pai ou que foram impressos, tinham nome de homem, eram homens que faziam, não existia naquele tempo, folheto feito por mulher, e eu, para que não fosse a única, né?, meu nome aparecesse no folheto, não fosse eu a única, então eu disse: – Eu não vou botar meu nome. Aí meu marido disse: – Coloque Altino Alagoano.570

A pesquisa de Maristela é uma das poucas que se aprofundaram na história de Maria das Neves e dos Nunes-Batista, unindo-as. Mesmo sendo citada em alguns estudos, é, na maioria das vezes, traçado um retrato superficial da poetisa. Tal aprofundamento se deve às entrevistas concedidas por Maria das Neves e também pelo fato de seu filho mais velho, Altimar Pimentel, ser revisor do livro de Maristela e a pessoa que a auxiliou nos rumos das entrevistas. Altimar também se dedicava à cultura popular e era escritor, teatrólogo, folclorista e professor. Falar da escrita de Maria das Neves é também falar da história de sua vida e daqueles que a precederam. É importante ressaltar que a família da poetisa vinha de uma forte comunidade poética que se situava na Serra do Teixeira, também na Paraíba, e que era intrinsicamente ligada à cultura popular e à oralidade, tendo nela uma grande quantidade de glosadores, cantadores e poetas. Tal fato a orgulha profundamente, e Maria das Neves busca ressaltar isso em seus versos recitados em frente a pesquisadora: Eu sou filha de poeta e neta de repentista meu avô era Ugolino e meu pai Chagas Batista 569 Cf. MENDONÇA, Maristela Barbosa de. Uma voz feminina no mundo do folheto. Thesaurus: Brasília, 1985. 570 Ibid., p. 70.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

30 5

também faço poesia o poeta é um artista. Exaltado em seus versos, o pai, Francisco das Chagas Batista (1882-1930), foi um dos maiores poetas pioneiros do Cordel Nordestino. Narrou em suas histórias temas tradicionais, temas circunstanciais, mas também dedicou muitos folhetos a contar a história do cangaceiro Antonio Silvino, que era seu parente. Destacou-se também como um grande editor, fato que pôde proporcionar a Maria das Neves o acesso a uma vasta quantidade de histórias editadas por ele. Além das histórias dos folhetos ela também tinha acesso a muitos romances eruditos pertencentes à sua livraria. Em seus relatos, Maria das Neves consegue deixar explícita a forte ligação que tinha com o pai e também que ele era seu modelo de homem, marido e poeta, mostrando como ela vivencia os preceitos patriarcais, em que o homem é sempre o centro de todas as atenções. É no pai que ela se inspira na hora de compor seus versos, mesmo que ele nunca tenha lhe ensinado como versava, mas ela o via compondo e buscou copiá-lo: “Eu era muito pegada com ele, entendeu? Ele nunca explicava como fazia (folhetos), agora eu vi e copiei, né? (...) Ele era muito pegado a mim, e eu era muito pegada a ele. Mas, ele nunca me explicou”571. A pedido do marido, Maria das Neves escreveu os três folhetos por ela publicados, por necessidades financeiras. Os três eram reelaborações em folhetos de cordel a partir de obras eruditas, sendo os títulos O Corcunda de Notre Dame (1935), romance de Victor Hugo; O amor nunca morre (1935), romance de Prévost d’Exiles; e O violino do diabo ou o Valor da Humanidade (1938), romance de Enrique Perez Escrich; sendo o último o de maior sucesso, que teve mais de uma tiragem572. Também em uma entrevista concedida a Maristela, Maria das Neves descreve como se dá seu processo de criação poética. O primeiro passo era trocar o português erudito pela linguagem popular, para facilitar a assimilação da história narrada em versos pelos leitores/ouvintes: Você sabe que o romance é feito numa literatura alta. O povo não entende, mesmo lendo não entende, não compreende e nem vai perder tempo para ler o romance. Então eu transformei aquela literatura no linguajar do povo, no modo que o povo 571 PIMENTEL apud MENDONÇA, op. cit., p. 60. 572 Os três folhetos encontram-se transcritos em MENDONÇA, op. cit.

fala, que o povo entende. (...) eu peguei o miolo. A coisa mais, que me interessa. (...) O romance é o roteiro, agora aqui eu vou transferir toda essa história para o linguajar do povo e versar. (...) Eu não posso me afastar da linha do romance, não! Eu posso criar, ajudar no mesmo sentido. (...) Então aqui neste romance O Violino do Diabo ou o Valor da Honestidade, então, a lição que eu salientei neste romance, foi a honestidade da moça e do velho, entendeu? Que aquele homem fez toda a trapalhada, toda a trapaça para iludir esta moça. 573

Ao fazer a transposição das histórias francesas, ela busca enquadrar o enredo nas normas de conduta vigentes no Nordeste patriarcal, principalmente no que diz respeito à honra feminina. Tais normas de conduta também eram profundamente alicerçadas nos fundamentos da Igreja Católica, pois esta exercia domínio e influência sobre a formação cultural do nosso povo.574 Sendo assim, era exigido que as mulheres fossem honradas, puras e virgens. Como afirma Simone de Beauvoir em sua obra O segundo sexo575: (...) Legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios empenharam-se em demonstrar que a condição subordinada da mulher era desejada no céu e proveitosa à Terra. As religiões forjadas pelos homens refletem essa vontade de domínio: buscaram argumentos nas lendas de Eva, de Pandora, puseram a filosofia e a teologia a serviço de seus desígnios (...) As moralidades e costumes, como lembra Paul Zumthor em A letra e a voz 576, enquanto emanações da memória coletiva, eram transmitidos e perpetuados oralmente. Eles provinham de duas fontes diferentes: a antiguidade e a repetição. Essas fontes ressoavam na literatura popular nordestina, que replicava a moralidade tradicional e mantinha um certo caráter feudal, como afirma Luiz Tavares Júnior em O mito na Literatura de Cordel577, também sempre retomando personagens honradas e dotadas de bravura e lealdade exemplar, atributos que eram de extrema importância

573 PIMENTEL apud MENDONÇA, ibidem, p. 71.

574 Cf. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48ª ed. São Paulo: Global, 2003; FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento urbano. São Paulo: Global, 2006. 575 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 25.

576 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 88.

577 TAVARES JÚNIOR, Luiz. O mito na Literatura de Cordel. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980, p. 19.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

30 7

para as mulheres idealizadas. Os folhetos cumpriam um papel didático-moralizante, advogavam a favor do patriarcado e perpetuavam tais modelos. O folheto de Maria das Neves que alcançou maior sucesso foi O Violino do Diabo ou o Valor da Humanidade. O enredo contava a história de Maria, filha do Velho Izidoro, um homem viúvo. Este era músico e para que sua filha o pudesse acompanhar em suas apresentações, ou seja, ir à público, ele sugere que ela se vista como homem. É possível então assinalar uma semelhança entre este folheto e a própria história da poetisa, que precisa usar um pseudônimo masculino para que seus folhetos sejam aceitos pelo público. Maria, para escapar do julgamento popular então passa a acompanhar o pai, pois também era musicista, e se apresenta como Mariano. Um jovem marquês chamado Luiz a vê ainda vestida de homem e acha Mariano um jovem maravilhoso e logo descobre que ele era na verdade a filha do músico que estava disfarçada e se chamava Maria. O marquês então decide pôr à prova a honestidade da bela jovem, pois para ele a honestidade feminina poderia ser sempre vencida. A importância dada, no sertão nordestino, à honra e à virtude feminina pode ser atestada nos seguintes versos do poema: A virtude é um lago que faz de águas bem cristalinas, um espelho de diamante, uma jóia rara e fina, onde o vício não pode lançar a mão assassina! A mulher honesta e boa de perfeita educação é o cofre onde a virtude faz sua morada, então o homem mais sedutor não mancha seu coração!578 Esta jovem pura e bela esplendor da mocidade amava muito a virtude a honra, a honestidade a seu coração de virgem não conhecia a maldade!579 578 PIMENTEL apud MENDONÇA, op. cit., p. 126. 579 Ibidem, p. 127-128

Como exemplos de mulheres que não deveriam ser seguidas, a poetisa retrata de maneira negativa em outros versos outras ações femininas que seriam incorretas, de acordo com os costumes daquela sociedade. Por exemplo, quando cita o caso de uma das amantes de Luiz, a atriz Elizabeth, que o abandona para casar com um velho rico: A amante respondeu: - Luiz, peço-lhe perdão! encontrei um homem rico que pretende minha mão e eu seria uma tola perdendo esta ocasião. Pois eu convidei o velho p’ra chá comigo tomar quero dar-te adeus Luiz embora fiquei a chorar!... pois eu só quero o dinheiro depois mando o velho andar!... Porém Luiz eu te amo nunca deixei de te amar eu só quero os milhões e com o velho casar depois que pegar o peixe irei contigo falar Perdoa caro marquês a minha ingratidão mas preciso aparentar ter boa reputação apesar de ter-te dado alma, vida e coração!...580 Outra personagem feminina retratada de maneira negativa é a viúva Rosália, que ajuda o marquês Luiz a adentrar no ambiente familiar de Maria: Rosália era conhecida por viúva endinheirada frequentava a alta roda de todos apreciada 580 PIMENTEL apud MENDONÇA, op. cit., p. 152-153.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

30 9

e sempre em seu palácio havia festa afamada. Rosália para iludir possuía habilidade na sua alma infame e negra reinava a perversidade ninguém como ela sabia fazer uma falsidade! E Luiz já conhecia o seu coração malvado porque em outra conquista ela o tinha ajudado e os planos que formava sempre dava resultado!...581 Essas duas mulheres são o perfeito oposto de Maria, que era pura, honesta e leal, e cujo nome remetia à Virgem Maria, maior modelo de conduta feminino entre os virtuosos. Um importante contraponto entre as condutas também é o fato de que Maria é uma mulher submissa, dependente de seu pai, enquanto as outras representam a liberdade de circular no espaço público e também de não precisarem de fato de um homem, apenas os querem para tirar vantagens. Elizabeth era uma atriz, ou seja, era uma mulher conhecida publicamente e, pelo fato de ser amante de Luiz, não era mais uma jovem casta e pura. É ardilosa em seus planos de se casar com um velho para poder aproveitar de sua riqueza e depois voltar para Luiz, homem por quem diz estar verdadeiramente apaixonada. Logo após a sua confissão, o jovem a compara então com Maria, que estava longe de ser hipócrita como a atriz. Rosália era um outro tipo de mulher que também não seguia as normas de conduta vigentes. Sendo viúva e possuindo bastante dinheiro, frequentava as altas rodas sociais e convivia frequentemente com homens. É ardilosa, pois consegue enganar a todos e faz planos mirabolantes para conseguir alcançar seus objetivos ou os de seus amigos, como por exemplo, o fato de fingir ser uma mulher pobre que se muda para perto da casa de Maria e Izidoro, apenas com o intuito de apresentar Luiz como se fosse seu sobrinho e também um homem pobre. Os dois até apostam dinheiro

581 Ibidem, p. 139.

caso a conquista de Luiz dê certo e ele consiga provar que mulher nenhuma é honrada. Após ser testada de diversas formas por Luiz582, a jovem Maria consegue provar que é verdadeiramente uma mulher honrada e, assim, o jovem marquês se convence de que ela é digna de seu respeito e de seu amor. Maria das Neves tinha também outros onze irmãos, entre os quais se destacam Sebastião Nunes Batista, que foi também poeta popular e um importante pesquisador da Literatura de Cordel, e Paulo Nunes Batista, também poeta popular, e que escreveu quase 30 livros na chamada “alta literatura”, ou, literatura erudita. Em uma entrevista publicada pelo jornal eletrônico “A Nova Democracia”, realizada em 2007, o entrevistador pergunta a Paulo Nunes Batista se existem mulheres cordelistas, pois elas são menos faladas e conhecidas. Batista então destaca o fato de Maria das Neves, sua irmã, ter sido a primeira cordelista brasileira: A minha irmã Maria das Neves Batista Pimentel, a Mariinha, foi a primeira cordelista do Brasil. Quando ela publicou o folheto havia muito preconceito. Mulher não podia escrever cordel. O que o homem faz a mulher pode fazer igual. Ela tem inteligência, cultura, vontade.583

A citada entrevista encontra-se no livro Literatura de Cordel, de Salomão Rovedo. A escrita de Maria das Neves apresenta consonâncias e rupturas com a literatura de cordel nordestina, sua voz é ambivalente. Apresenta rupturas, pois ela é a primeira mulher a tomar a voz e publicar os seus versos. Ruptura também com o mundo feminino, no qual foi criada e em que vive, sendo mãe e esposa. Ruptura com a tradição dos Nunes-Batista, em que apenas os homens publicavam, mesmo que ela e suas quatro irmãs tenham frequentado a escola e pelo fato de lerem bastante, ela é a única a se arriscar no mundo da escrita e dos versos. A consonância ocorre por ela transpor em seus versos os valores masculinos daquela sociedade em que vivia: a voz masculina ecoa em seus versos. É consonante 582 Luiz Tavares Júnior fala em seu livro O mito na Literatura de Cordel que era algo muito comum os heróis e heroínas serem postos a diversas provas, isto era um meio de saber se eles eram mesmo dignos de conseguirem o seu final feliz. Cf. TAVARES JÚNIOR, Luiz. Op cit.

583 ROVEDO, Salomão. Literatura de Cordel: O poeta é sua essência. Rio de Janeiro, 2009, p. 238. Disponível em: https://archive.org/stream/LiteraturaDeCordel/SalomoRovedoLiteraturaDeCordel#page/n0/mode/2up. Acesso em: 10/10/2015.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

31 1

também ao escolher publicar com um nome masculino, não realizando uma ruptura completa com aqueles padrões vigentes. Para que sua voz seja ouvida é preciso endossar regras e valores vigentes no mundo masculino. Considerando o período em que Maria das Neves publica os seus folhetos, o final da década de 30, é preciso considerar que esta década e as precedentes ainda impunham muitas restrições às mulheres. Isso ajuda a entender porque a poetisa não conseguiu romper completamente todas as barreiras que lhe cercavam e também a sua negação enquanto poetisa. O machismo da sociedade patriarcal ainda era muito forte e fazia parte de sua criação, e então, propriamente por reproduzir esses valores, ela sabia que o que fazia não era “correto” segundo esses preceitos. Na sociedade brasileira e em toda nossa literatura, poucas eram as mulheres que se aventuravam no campo da escrita. Apesar da constante negação de seu papel como poeta, fato que pode ser percebido nas transcrições das entrevistas feitas por Maristela Mendonça, em que a poetisa afirma: “(...) mas eu nunca fiz folheto, não, nunca fiz” 584, não há dúvidas de que Maria das Neves cumpriu um importante papel não só para a Literatura de Cordel brasileira, mas também para nossa Literatura como um todo, pois sendo a primeira cordelista mulher ela serviu de exemplo para muitas outras mulheres que a sucederam. Novas mulheres cordelistas começam a surgir apenas na década de 1970585, quarenta anos após a publicação dos folhetos de Maria das Neves, mas não há dúvida de que estas foram muito influenciadas pela coragem da solitária poetisa pioneira.

584 PIMENTEL apud MENDONÇA, op. cit., p. 57. 585 Cf. QUEIROZ, op. cit.

O SILÊNCIO DOS VENCIDOS DE EDGAR DE DECCA E O BLOCO OPERÁRIO E CAMPONÊS DE SÃO PAULO. Lucas Alexandre Andreto586. Unesp – Assis. Resumo A obra “O Silêncio dos Vencidos” de Edgar De Decca levantou uma polêmica historiográfica ao criticar, no fim dos anos 70, a bibliografia que havia sido produzida até então sobre a “Revolução de 1930”. Na perspectiva de De Decca, as análises do período, para não reproduzir a ideologia dos vencedores da história, deveriam executar seu trabalho sobre o período sob os olhos de um outro agente: O Bloco Operário e Camponês de São Paulo (BOC-SP). O presente trabalho pretende expor e analisar alguns elementos que constituíram a obra “O Silêncio dos Vencidos”, buscando evidenciar o debate historiográfico em que estava inserido, o momento histórico do qual foi fruto e o papel que desempenha o BOC-SP dentro da obra. Palavra(s) chave(s) : Edgar De Decca ; Bloco Operário e Camponês; Partido Comunista do Brasil (PCB)

Introdução “1930: O Silêncio dos Vencidos” de Edgar de Decca tem origem na tese de doutorado defendida pelo autor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) durante o ano de 1979, cujo título era “As dimensões históricas do insucesso político”. Foi publicado pela primeira vez em 1981 pela Editora Brasiliense. Lançado em meio ao ressurgimento do movimento operário, a crise da ditadura militar e início do processo de redemocratização brasileira, o livro de De Decca trazia uma crítica a praticamente toda a historiografia até então construída sobre a “Revolução de 1930”: ao aceitar de antemão os elementos supostamente constitutivos deste tema, como a questão da industrialização, a política oligárquica, o tenentismo, o liberalismo e o autoritarismo, os historiadores aceitaram também o discurso ideológico dos vencedores da dita “Revolução de 30”, reproduzindo-o em forma de ciência e verdade histórica, silenciando a dimensão dos agentes sociais que foram vencidos (nesse caso, a classe operária). Contra essa história que legitimava a 586 Mestrando Departamento de História FCL/Assis.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

31 3

memória do vencedor sob o selo da ciência, De Decca se propõe a salientar a existência de propostas de revolução desconsideradas pelos vencedores da história. Define-se um processo revolucionário a partir de 1928 devido a uma possibilidade dos acontecimentos estarem nesse momento substantivados na categoria de “revolução democrático-burguesa” e do Partido Democrático, os “revolucionários” 587 e o Bloco Operário e Camponês (BOC), definido pelo autor como “partido eleitoral da classe operária”, formarem um conjunto de oposição ao Partido Republicano Paulista (PRP) num acordo tácito que tinha como ponto comum o combate à oligarquia e a liderança do movimento sob Luiz Carlos Prestes. Entretanto, a proposta de revolução do BOC tinha a peculiaridade de ter como elemento central a luta de classes, fator este que determinou a exclusão deste agente político do acordo tácito e o ocultamento de sua memória no momento em que o BOC teve de assumir a contradição “capital-trabalho” que se manifestava na greve dos gráficos de 1929 e a Revolução de 30 que se fez vitoriosa. Pretendemos aqui evidenciar um pouco da trajetória intelectual de Edgar De Decca e de alguns elementos que foram constitutivos na construção desta obra, procurando situá-la dentro de sua historicidade e, ao final, analisar o papel que nela desempenha o BOC-SP. Edgar Salvadori de Decca nasceu em Santos (SP), em 1946. Em 1966, começou o curso de Física na Universidade de São Paulo (USP), transferindo para o curso de História (apesar de que seu desejo era cursar Filosofia) um ano depois “um pouco influenciado pelos movimentos estudantis de 1967, 68”, segundo suas próprias palavras (MORAES; REGO, 2002, pag. 264). De Decca tinha gosto pelo caráter experimental, teórico e especulativo da física, e continuou a frequentar o curso até 1969, mesmo já estando no curso de História. Após terminado o curso de História, o autor voltará ao curso de Física para terminá-lo, chegando a ministrar aulas desta matéria posteriormente. A passagem de Edgar de Decca pelo curso de física talvez seja o primeiro elemento a ser destacado como tendo alguma importância para a elaboração de “O Silêncio dos Vencidos”. A esse respeito, De Decca dirá em entrevista a José Geraldo

587 “revolucionários” é o nome que De Decca usa para designar os tenentistas.

Vincide Moraes e José Marcio Rego para o livro “Conversas com Historiadores Brasileiros”, lançado em 2002: A problemática do tempo é uma problemática fundamental. O tempo, enfim, seja ele absoluto, seja variável. A questão do tempo sempre me fascinou na História. Como se constitui o tempo? Não mais um tempo físico, mas um tempo histórico. Quer dizer, como você faz a história? Contando, elaborando tempos, projetando tempos, vivendo tempos. Isso foi algo que me deixou muito fascinado. Na Física eu era fascinado pela física relativista, os livros que eu tenho na minha estante de Física são todos artigos de divulgação da teoria da relatividade, da relatividade do tempo. Quer dizer, quando cheguei na História e vi que havia também ali a questão da relatividade do tempo, vi que “estava em casa”. Achei que não podia ter escolhido lugar melhor. Estava literalmente em casa. Até hoje eu me fascino por isso, pela elaboração do tempo na narrativa da história. Esse interesse levou-me diretamente ao estudo da elaboração do tempo pela memória dos vencedores e encontrei em Carlos Alberto Vesentini um amigo e historiador muito criativo. Juntos, escrevemos nosso primeiro ensaio sobre a memória, que foi o artigo “A revolução do vencedor”, que iria se tornar matéria de capa da revista SBPC em 1977. Pela primeira vez, uma revista científica voltada para a área das ciências exatas dava como matéria de sua capa um artigo que tinha sido considerado completamente inovador na área das ciências humanas. Os tempos eram outros, realmente. Quem diria, um trabalho de historiografia sendo reconhecido pela área das ciências exatas como renovação epistemológica. O físico incompleto encontraria o seu reconhecimento na área de História ( DE DECCA, In MORAES; REGO, 2002. Pag. 269).

Então, como aparece a questão do tempo neste artigo de História publicado numa revista de Física, onde aparecem as primeiras formulações que no futuro viriam a ser não apenas “O Silêncio dos Vencidos” de Edgar De Decca, mas também “A teia do fato” de Carlos Alberto Vesentini? Iniciando o artigo com a citação de um relatório feito pelo General Waldomiro de Lima em 20 de julho de 1933, que discursa a respeito da “transição entre duas etapas da história política” que o Brasil estava passando naquele momento, uma marcada pela política oligárquica e o outro em que “a Nação vê renascer a sua consciência política e olha o futuro com ânimo de caminhar pelos seus próprios passos”, De Decca e Vesentini declaram explorar tal discurso como o de um personagem comprometido com o poder, de forma a preocuparem-se com a periodização e com quem faz essa periodização. O ponto de partida do artigo, é que “o discurso advindo de alguém intimamente relacionado com o exercício do poder ao mesmo tempo que sugere a memória histórica também é parte do fazer da história”, ou melhor, o discurso de Waldomiro de Lima, na perspectiva dos dois autores, “é o fazer da política enquanto o refazer da memória” (DE DECCA; VESENTINI, 1976.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

31 5

Pag. 60. Grifos do autor). A Revolução de 30 marcaria o momento exato que o Brasil deixaria de ser objeto e tornar-se-ia sujeito. Na primeira dessas etapas, a Nação dorme seu “sono cataléptico” não por sua vontade, mas como vítima dos “cantos de sereia dos reguletes”, ou seja, do sistema político. Desperta desse sono supõe uma revolução – a Revolução de 1930 - na qual a Nação, agora sujeito, renasce com “nova consciência política”. Esse marco divisor definido politicamente como uma revolução é caracterizado no nível ideológico como tendo criado “nova mentalidade nacional. A segunda etapa é o futuro de uma Nação/Povo caminhando “por seus próprios passos” como promessa de uma administração “ad hoc” que se exerce agora e que é o resultado da revolução que eliminou os “falsos guias” do passado. A revolução, embora inaugure uma nova etapa de “consciência política”, não realiza imediatamente esse ideal de “plena integração do país no regime republicano”, isto é, necessita de uma fase de “transição”, o que torna decisivo esse momento político, posto que aí se constrói o futuro e exorciza-se o passado, num só movimento de constituição da memória(DE DECCA; VESENTINI, 1976. Pag. 61. )588 .

Para De Decca e Vesentini, o que essa memória que ao se constituir solidamente como discurso oculta, são os outros discursos de propostas políticas existentes no mesmo período, mas que perderam o jogo da luta política, sendo agora excluídos da história. Todas as outras propostas de revolução existentes antes de 1930 desaparecem, e este marco periodizador determina o processo revolucionário que carrega o futuro da nação. Os autores se propõem a recuperar as diversas propostas que marcaram o jogo político na década de 20 e fazer uma outra periodização que desrespeite e anule a periodização dos vencedores da história. Para eles, o processo revolucionário estava aberto ao menos desde 1927/28, momento em que existia ao menos três propostas de revolução: A do Partido Democrático (PD), a dos tenentes e a do Bloco Operário e Camponês. Logo, a questão do tempo aparece no artigo “A revolução do vencedor” como o tempo da revolução, o tempo da ruptura entre duas eras, o tempo do marco periodizador que define, por excelência, a memória histórica da nação. Este marco periodizador tão importante é relativo dependendo da ótica do ator político inserido no processo revolucionário que o historiador adota para analisar o evento. Aqui, configura-se a principal proposta do “Silêncio dos Vencidos”: analisar o processo revolucionário ocorrido ao fim da década de 20 sob o ponto de vista dos vencidos da história, isto é, a classe operária e o seu “partido eleitoral”, o Bloco Operário Camponês (no livro de De Decca, mais especificamente a sessão do BOC da cidade de São Paulo). 588 Grifos do autor

A influência da Física sobre Edgar De Decca ainda será importante para outro elemento constitutivo de seu livro: a crítica à historiografia da Revolução de 30 que havia sido elaborada até então. Em “O Silêncio dos Vencidos”, Edgar De Decca faz crítica aos historiadores que, segundo ele, retiram o termo “revolução burguesa” de sua historicidade, definida no livro como a vitória da burguesia europeia sobre o Antigo Regime, aplicando-a a eventos da história brasileira como a Proclamação da República, a Revolução de 30 ou o processo brasileiro de industrialização, chegando a argumentar que também Karl Marx se colocou contra a historiografia que analisou o golpe de Estado de Luís Bonaparte através de modelos como “cesarismo” (DE DECCA, 1988, pag. 62). Aqui fica claro que a crítica de De Decca aponta para Florestan Fernandes, em seu livro “A Revolução Burguesa no Brasil” e sua escola de seguidores que tem como expoentes o já citado Octavio Ianni e Francisco Weffort. O capítulo em que comparece essa crítica, intitulado “A revolução burguesa: o discurso e seu lugar” é todo voltado para uma tentativa de buscar a historicidade do discurso da revolução burguesa dentro do desenvolvimento do próprio marxismo, situando-o da forma como comparecia em Marx, Lênin e Rosa Luxemburgo, respectivamente. Mais a frente, De Decca indica objetivamente em nota de rodapé aqueles contra quem se coloca: Luís Werneck Vianna em seu “Liberalismo e Sindicato no Brasil”, e como já dito, Florestan Fernandes e sua obra sobre a revolução burguesa. Os autores citados acima são representantes pelas análises da política populista dos governos brasileiros entre 1930-64, em que a categoria do “bonapartismo”589 comparece em alguma medida, apesar de não se poder afirmar que ela foi aplicada diretamente para explicar o período. A esse respeito, Weffort assinalou que Dentro da experiência histórica europeia o “bonapartismo” seria talvez a situação política mais próxima dessa que procuramos descrever para o Brasil. De todos os modos pareceu-nos conveniente evitar o uso dessa expressão que nos teria obrigado a comparações, que fogem do âmbito deste artigo, entre países de diferente formação capitalista (WEFFORT, 1978.p 70).

De toda forma, o que estabelece uma possível comparação entre as interpretações da política populista brasileira efetuada por estes autores e o “18 de Brumário” de Marx é a ideia de uma “autonomização relativa do Estado”, isto é, a atribuição ao Estado de um papel arbitral diante das classes sociais, na qual o “chefe do Estado, nas “funções de árbitro”, passa a decidir em nome dos interesses de todo o 589 Para uma análise das categorias de “cesarismo” e “bonapartismo” nas interpretações dos governos populistas brasileiros nas obras de Ianni e Weffort, ver DEMIER, Felipe Abranches. Bonapartismo e cesarismo nos estudos sobre o populismo brasileiro. In Outubro n°. 19, 2011, p. 105- 154.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

31 7

povo, estabelece alianças com os setores urbanos das classes dominadas e encarna a imagem da soberania do Estado em face das forças sociais em conflito. Características essas que levaram nos autores indicados a caracterização do populismo sob o conceito gramsciniano de “Estado de Compromisso” 590 que será a caracterização feita também por Boris Fausto em “A Revolução de 1930”. Vitoriosa a revolução, abre-se uma espécie de vazio de poder, por força do colapso político da burguesia do café e da incapacidade das demais frações de classe para assumi-lo, em caráter exclusivo. O Estado de compromisso é a resposta para essa situação. Embora os limites da ação do Estado sejam ampliados para além da consciência e das intenções de seus agentes, sob o impacto da crise econômica, o novo governo representa mais uma transação no interior das classes dominantes, tão bem expressa na intocabilidade sagrada das relações sociais no campo (FAUSTO. 1997.p. 150).

Além do que foi explicitado no começo deste artigo, Boris Fausto respondeu ao “Silêncio dos Vencidos” de De Decca no prefácio à edição de 1997 de “A Revolução de 1930” dizendo Pelo menos durante alguns anos, teve influência uma releitura do período segundo a qual os últimos anos da década de 1920 teriam sido marcados por uma conjuntura revolucionária cuja expressão mais visível e ao mesmo contraditória seria o Bloco Operário e Camponês (BOC), frente legal do PCB. O desenlace negativo de uma conjuntura revolucionária teria deixado aberto o caminho à fração da classe dominante que assumiu o poder nos anos 1930, permitindo-lhe dar dignidade de revolução ao episódio de outubro de 1930 e construir a figura de um inimigo – as oligarquias – derrubado pela ação redentora dos aliancistas. [...]Convém apenas lembrar que se trata, no caso, de uma aplicação equivocada da vertente historiográfica que introduziu uma nova abordagem, concentrando-se na história dos dominados ou dos vencidos. No Brasil da década de 1920 não havia conjuntura revolucionária em que o proletariado tivesse a iniciativa, não chegando a classe operária organizada a constituir um ator político relevante. Quanto ao BOC, foi uma organização minúscula que interessa apenas à história da esquerda ( FAUSTO. 1997.p. 17).

De Decca dirá o seguinte a respeito das críticas que recebeu de Boris Fausto: [...]a crítica do Boris Fausto eu acho pobre. Ele se restringe a uma oposição ao meu argumento historiográfico sobre a importância do Bloco Operário e Camponês. É uma crítica tipicamente positivista. Será que esse bloco operário camponês era forte mesmo? Será que ele tinha chance de chegar ao poder? Acho muito ingênua essa crítica do Boris porque o problema não é esse. O problema é se houve ou não capacidade de enunciado revolucionário desse programa. E houve. Muita gente acreditou nele. O problema não era se ele tinha base social, com os operários sindicalizados etc. Ele se instituiu como discurso, como prática discursiva de ideologias. A classe é uma episteme da política, quer dizer, não é possível na década 590 WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. P. 4950.

de 1920 fazer política, agir politicamente, atuar politicamente sem o recurso ou discurso de classe. Hoje, você não precisa mais falar em classe, ninguém fala, o discurso político não se sustenta mais sobre o discurso de classe. Na década de 1920 era o inverso, nenhum político podia ignorar as classes. Então, eu as institui como lugares de sujeitos políticos. Por isso, nem me dei ao trabalho de responder ao Boris Fausto. Era gastar tinta à toa (DE DECCA ,1976. p. 279).

Em 1969, Edgar de Decca saiu do Brasil e foi para o Chile juntamente com sua primeira esposa, Maria Auxiliadora Guzzo de Decca, não por comprometimento político, mas “por conta de problemas pessoais e, também, motivado por adquirir nova experiência de vida”591. Nesta época o Chile passava pela experiência da tentativa de implantar o socialismo por vias democráticas, levada a cabo pelo governo de Salvador Allende. A esse respeito De Decca diz “nós fomos nos aventurar num processo de mudança em que acreditávamos muito”592. Apesar disso, De Decca e sua esposa não pareceram se envolver grandemente com o movimento revolucionário chileno, afirmando gozar de “uma situação confortável” diferente daqueles brasileiros que estavam realmente exilados, mas faziam trabalhos voluntários em Concepción, região do sul de Santiago, onde encontravam-se focos de militância e uma colônia de brasileiros593. Quando a situação política no Chile começou a ficar mais crítica, aproximando-se o golpe de Estado de Pinochet, amigos de De Decca o aconselharam a deixar o país e então ele passou dez meses viajando pela América Latina até o Caribe. De Decca fez parte daquela juventude que, nas palavras de Eric Hobsbawm, “descobriram que viajar por países do Terceiro Mundo era factível e estava na moda”(HOBSBAWM. 1995. P. 284). [...] Como a América Latina era muito barata e havia aquele clima de solidariedade enorme entre jovens e universitários, com pouco dinheiro se viajava muito. Ficamos, por exemplo, dez meses em alojamentos de universidades como a de Lima, Quito, Bogotá etc. Existia uma América itinerante e isso era uma prática comum; foi uma época maravilhosa (DE DECCA , 1976. p. 266).

Como não é novidade, a década de 60 e 70 do século XX é marcada pelo surgimento da contracultura e das revoltas jovens e estudantis que tem como marco principal o ano de 1968. O capitalismo passava por uma etapa em que suas forças produtivas exigiam o crescimento de ocupações profissionais que só eram possíveis 591 EDGAR DE DECCA. IN MORAES, José Geraldo Vinci de; REGO, José Marcio. Conversas com historiadores brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2oo2. P. 265. 592 Idem. 593 Idem.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

31 9

de serem exercidas através da educação secundária e superior. Como bem assinala o já citado historiador britânico, Hobsbawm, antes de 1939, Alemanha, França e GrãBretanha eram países com uma população total de 150 milhões de habitantes e não tinham juntos 150 mil universitários. Ao final da década de 80, contavam-se os universitários aos milhões594. O estudante rebelde seria assim, uma consequência indesejada do aumento do ensino superior. Das muitas interpretações possíveis a respeito das motivações que levavam estes estudantes à rebeldia, ficaremos com a do historiador em que já estamos nos apoiando, segundo a qual, a consequência mais imediata e direta do imenso aumento do número de ingressantes universitários na década de 60, foi a tensão entre essa massa de estudantes despejada nas universidades e instituições que não estavam física, organizacional e intelectualmente preparadas para tal acontecimento. O ressentimento que estes jovens, universitários de primeira geração, nutriam contra a autoridade da universidade (com o qual não estavam acostumados), ampliava-se facilmente para o ressentimento contra qualquer autoridade e inclinava os estudantes para a esquerda595. É importante notar que essa juventude não formou apenas um novo ator político, mas também um novo mercado. Isto, por sua vez, possibilitou o que foi, talvez, sua característica mais importante: um internacionalismo cultural, difundido pelos gostos compartilhados como o rock e o blue jeans, fator que (não escapou aos olhos apurados de Hobsbawm) também demonstrava a “esmagadora hegemonia cultural dos Estados Unidos da América na cultura popular e nos estilos de vida” 596. Este estilo juvenil se difundia diretamente através de discos e fitas, cujo veículo de promoção era principalmente o rádio. Difundiam-se através da distribuição mundial de imagens e contatos internacionais de turismo juvenil que distribuíam fluxos de rapazes e moças de blue jeans por todo o globo, em que Edgar De Decca e Maria Auxiliadora eram um exemplo particular. Neste clima, De Decca conta que Acho que estava mais propenso a ter uma vida de hippie do que de militância de esquerda. O filme de minha juventude foi o Sem Destino [Easy Rider], com o Peter Fonda, Jack Nicholson e Dennis Hopper. Era o 594 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. P. 290. 595 Idem. P. 295. 596 Idem. P. 320.

sonho, pegar a Panamericana e subir a América do Norte sem saber o destino. Dependendo de quem encontrasse no meio do caminho, mudavase o rumo: com franceses para Machu Pichu, com suecos para a Jamaica [...] (DE DECCA. 1976. p. 266).

Da mesma forma, foram importante influência no pensamento de Edgar de Decca as músicas de cantores como Elvis Presley e Bob Dylan, que segundo ele, “eram os ícones que davam a dica de que você devia seguir sua própria intuição” (Idem), estando este pensamento na gênese de seu interesse pelo Arquivo Edgar Leuenroth (que contém vasto material sobre as organizações anarquistas) na ocasião de sua vinda para a Unicamp e também na sua “aversão às organizações políticas (comunistas ou de qualquer tendência), ao sistema de poder hierárquico e à adesão a crenças autoritárias” (Idem). Esses elementos da trajetória de De Decca, tiveram grande importância para a constituição do que será “1930: O Silêncio dos Vencidos”, ao mesmo tempo que explicitam o peso do momento histórico em que a obra nasceu. Ideias pautadas nas categorias do “indivíduo”, “autonomia”, “subjetividade” etc estarão na ordem do dia para a juventude da década de 60 e 70 e podemos sentir seu peso quando, em “O Silêncio dos Vencidos”, Edgar De Decca faz críticas a figura do “intelectual como demiurgo da sociedade”(DECCA. 1988. P. 33), supostamente característico dos intelectuais que, segundo o autor, escreveram a “história do vencedor” e que aqui já os explicitamos. Entretanto, quando se trata de marcos de rupturas históricas, não é absurdo afirmar que “O Silêncio dos Vencidos” está permeado por uma tríade: 1930, o ano do qual o livro trata e que marca a passagem do Estado brasileiro federalista e descentralizado para o Estado centralizado, populista e disposto a confrontar-se com a ascensão da sociedade de massas; 1968, o ano das lutas por liberdade e início de uma valorização da categoria do “indivíduo” frente à sociedade; e por fim, 1985, o ano em que o Brasil retorna as liberdades democráticas e a sociedade reconhece oficialmente as liberdades individuais. Contudo, se tivéssemos de seguir o exemplo do livro e apontar um ano “oculto” que explicitasse o processo das lutas de classes, certamente seria o ano em que a tese “Dimensões históricas do insucesso político” foi defendida: 1979. O orientador de Edgar de Decca foi Carlos Guilherme Mota, historiador célebre por seu livro “Ideologia da cultura brasileira”. Em sua banca examinadora estavam (além de seu orientador) Marilena Chauí, Maria Stella Bresciani, Fernando Novais e Adalberto Marson.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

32 1

Mas o ano de 1979 é marcado pela então recente ascensão do movimento operário através das greves do operariado do ABC paulista, que superava os sindicatos ditos pelegos através das “comissões de fábricas” (uma nova forma de organização operária então surgida no interior das fábricas), ganhava simpatia de diversos setores da sociedade civil, notadamente parte das classes médias e a Igreja Católica, e servia como canalizador de descontentamentos populares que se tornaram essenciais na pressão para a redemocratização do sistema político brasileiro. Era característico desse “novo” movimento operário, o confronto à linha política dos partidos clássicos da esquerda brasileira (principalmente o PCB) e a iniciativa para criação de novos modelos de organização e orientação política, resultando na criação do Partido dos Trabalhadores (PT) no ano de 1980. Em larga medida, “O Silêncio dos Vencidos” é expressão do encontro (contraditório) da intelectualidade herdeira das revoltas estudantis da década de 60 e deste ressurgimento do movimento operário, que tinha como plano de fundo a decadência da ditadura militar. Não a toa, os elementos desses dois eventos se manifestam de forma confluente na obra: o confronto com os representantes clássicos das ideias de esquerda (o PCB, a tradição soviética e os intelectuais ligados a ela), uma valorização da ideia de autonomia, principalmente autonomia em relação aos sindicatos e partidos, e principalmente o pedido de democracia. É sob esse plano de fundo que De Decca abre o primeiro capítulo de seu livro dizendo: [...] Uma dada homogeneização teórica colocou determinados setores da sociedade na condição de vencidos, imaginando-se que as perdas dos intelectuais eram da mesma grandeza daquelas ocorridas no interior da classe operária. As análises teóricas que se seguiram ao golpe de 64 enquadraram numa mesma dimensão de vencidos a classe operária e os projetos políticos dos intelectuais [...] (DE DECCA. 1988. P. 32).

Para Edgar De Decca, os intelectuais acadêmicos travestiam seus interesses particulares como interesses da classe operária, as derrotas que esses intelectuais sofreram no campo político eram entendidas como derrotas da classe operária, mas na verdade, os interesses da classe operária não necessariamente confluíam totalmente com os interesses desses intelectuais, logo, a voz da classe operária era ocultada pela voz do “intelectual demiurgo da sociedade”. Em outras palavras, a classe operária precisava de “autonomia” em relação à intelectualidade (e poderíamos adicionar, ao sindicato, ao partido, ao Estado, ou qualquer outro “alienígena” pronto para dominá-

la), ou para usar um termo de Claude Lefort citado em um trabalho legatário de “O Silêncio dos Vencidos”, “O proletariado é sua própria teoria”597. Esse combate aos tradicionais representantes da classe operária, bem como o pedido de democratização da política também pesa na adoção feita por Edgar De Decca do conceito da “revolução democrático-burguesa” de Rosa Luxemburgo sobre o conceito de “revolução democrático-burguesa” de Lênin, adotada pela tradição da III Internacional e dos partidos comunistas. O conceito de “revolução democrático burguesa” de Rosa Luxemburgo é entendido por Edgar De Decca em “O Silêncio dos Vencidos como “liberdades políticas e direitos sociais para o proletariado”, enquanto o de Lênin (que é apresentado como o conceito do “vencedor”) está ligado com o avanço das forças produtivas(Idem. P. 64). Não é demais salientar que o Bloco Operário Camponês tem um caráter contraditório no livro de De Decca, ele não é apenas representante da classe operária, ele é também o “emparedamento” da classe numa instituição oficial, e apenas por isso é aceito no acordo tácito das oposições ao PRP. Significa dizer que o próprio BOC era um mecanismo de dominação da classe, que a controla, tira sua autonomia e silencia sua voz, que ao que tudo indica, é melhor expressada para o autor na vertente anarquista do movimento operário, fator este que De Decca não desenvolve, mas é desenvolvido por Ítalo Tronca em “1930: A dominação Oculta”. O que se manifesta aqui, é a típica aversão às organizações partidárias característica dos movimentos de 68, que se identificara com o caráter “autônomo” que o movimento operário brasileiro parecia tomar no fim da década de 70 e com o consequente questionamento dos sindicatos e dos partidos tradicionais da esquerda que ele trazia consigo. No quinto capítulo do livro, que leva um nome bem sugestivo, “a questão democrática e o partido dos trabalhadores” o autor defende que o tema da democracia também ensejou práticas políticas que polarizaram os agentes sociais no interior da luta de classes, e nesse sentido, o BOC se destacou por ser o único que explicitou a questão da democracia sob um conteúdo classista598. Contudo, Edgar de Decca coloca em oposição duas formas de articulação do dito “tema da democracia” no interior do BOC: o primeiro era definido “a partir de uma política de classe independente jogada 597 MARONI, Amnéris. A Estratégia da Recusa: análise das greves de maio/78. São Paulo: Brasiliense. 1982. P. 19. 598 DE DECCA. O Silêncio dos Vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1988. Pag. 183.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

32 3

no próprio terreno institucional regulamentado pelo Estado burguês”, e o segundo “vinculado à solução da questão agrária, na luta dos camponeses contra o feudalismo”599, isto é, a proposta leninista de revolução burguesa. De Decca tece uma crítica a política do BOC nesta época, pois para ele, “a questão da democracia submetia-se a um temário da revolução que a explicitava na perspectiva da revolução agrária, sendo deslocada completamente a existência do partido dos trabalhadores como fundamental”600. Para De Decca, a existência de um partido dos trabalhadores na cena política deveria privilegiar o “tema da democracia”, e a revolução só poderia sufocar a democracia. Tratava-se de uma mensagem para sua própria época: o Partido dos Trabalhadores deveria canalizar a sociedade civil para a conquista da democracia, e então parar por aí.

599 Idem. Pag. 204. 600 Idem.

O Mito permanece? Mário Pedrosa e a Missão Artística Francesa de 1816

Lucas de Araujo Barbosa Nunes Mestre em História (UNESP/ASSIS) Resumo: A história da chamada Missão Artística Francesa de 1816 tem sido constantemente retomado pelos estudiosos que se interessam pelo período, sendo nesses últimos anos, alvo de constantes questionamentos. Nestes estudos, os historiadores detiveram-se em analisar os percalços que adiaram e modificaram o projeto da Academia de Belas Artes no Brasil, mas raramente explicaram o mecanismo e o significado disso tudo. Essa foi a novidade de Mário Pedrosa ao escrever, em 1955, a tese “Da Missão Francesa – Seus Obstáculos Políticos”. Entretanto, não chegou a ser defendida, permanecendo inédita por muito tempo. O que pretendo fazer nesta comunicação é uma breve reflexão sobre essa tese, explorando suas relações tanto com alguns trabalhos que a precederam, quanto com outros que foram elaborados em diálogo com ela. Nos limites desta comunicação, pretendo me ater ao seguinte aspecto: Apesar desta tese ter sido publicada em 1998, o mito da “missão francesa” ainda permanece? Palavras-Chave : Mario Pedrosa, Missão Francesa, D. João VI, Academia de Belas Artes

Introdução Nos últimos anos vem crescendo o número de trabalhos que estudam sobre a história da arte brasileira do século XIX, principalmente papel que a “missão francesa” teve na vida cultural brasileira. Até recentemente a nossa historiografia tratava o episódio da seguinte forma: a pedido do ministro conde da Barca 601, d. João VI manda contratar na Europa um grupo de artistas e artífices que viessem fundar 601 Antonio Araujo de Azevedo (1754-1817), o conde da Barca, foi ministro e embaixador extraordinário junto a Corte de Haia (1787), negociando e assinando, no mesmo ano, o tratado de paz entre Portugal e França. Em 1801, torna-se ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, se encarregando também, dois anos depois do Ministério do Reino. Foi um dos conselheiros que mais incentivou a vinda da família Real ao Brasil.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

32 5

uma Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro, com objetivo de modernizar e disseminar a arte culta européia em terras brasileiras. Para este propósito, conde da Barca encarregou o Marquês de Marialva, embaixador português na França. Diplomata de alto prestígio, Marialva consultou então o naturalista alemão Alexander Humboldt, a respeito dos propósitos do conde da Barca. Ciente da proposta, Humboldt o apresentou a pessoa mais indicada para resolver o assunto: Joachim Lebreton, secretário recém-demitido da Academia de Belas Artes do Instituto de França. Entretanto, Marialva não participou das negociações com Lebreton. Ele deixou para o seu auxiliar na embaixada, o encarregado de negócio Francisco José Maria de Brito, conhecido como Cavaleiro Brito. Lebreton entrou em negociação com o Cavaleiro Brito 602, que resultou no embarque para o Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1816, no porto de Havre de Grace, num pequeno veleiro norte-americano, o Calphé, fretado por Lebreton 603. Tal empreendimento não deu certo devido às perseguições políticas do Cônsul Geral francês Jean-Baptiste Maler604 e as intrigas promovidas pelo pintor português José Henrique da Silva605. A difusão desta versão histórica foi atribuída ao historiador Afonso d'Escragnolle Taunay, em seu afamado livro A missão artística de 1816

606

.

O livro foi editado pelo

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1911, e depois em separata no ano seguinte. Nele, o autor lançou mão do estilo épico de escrita para narrar o 602 O Cavaleiro Brito chegou a adiantar, do próprio bolso, 10.000 francos para as despesas de viagem desses artistas ao Brasil. 603 Na última edição de seu livro sobre a “missão francesa”, Afonso Taunay utilizou documentos dos arquivos franceses e portugueses com o objetivo de mostrar, passo a passo, todo o desenrolar das negociações entre Lebreton e os agentes diplomáticos portugueses em Paris. 604 Em dezembro de 1814, Jean-Baptiste Maler foi nomeado Cônsul-Geral da França no Brasil, aportando no Rio de Janeiro em abril de 1815. Antes de ser diplomata, Maler foi soldado das hostes contrarevolucionárias e emigrado desde 1792, voltando à França em 1814 para lutar pela causa legitimista e à Restauração. Suas atividades como cônsul foram marcadas por um profundo sentimento contrário a tudo o que parecesse ameaçar a monarquia restabelecida na França. Para ele, os artistas reunidos por Lebreton e trazidos para o Brasil eram um perigo constante à estabilidade das relações entre as duas coroas, uma vez os consideravam expatriados por motivos políticos. 605 Henrique José da Silva nasceu em Lisboa em 1772. Desembarcou o Brasil em 1819 para substituir Lebreton, morto em 09 de junho de 1819, no cargo de diretor da Academia de Belas Artes. 606 A Missão Artística de 1816 foi editado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1911 e também em separata no ano seguinte. Uma segunda versão foi publicada em 1956, contendo várias mudanças.

episódio da vida desses artistas franceses no Brasil. Segundo Araujo, este estilo de escrita tinha como objetivo “embelezar a narração, acrescentando-lhes pormenores em que a aparente precisão de minúcias dá a ilusão de verdade” 607. Ao longo do livro, o historiador considerava a vinda dos artistas franceses como uma espécie de “missão civilizadora”. Foi Afonso Taunay o responsável pela ideia de “missão francesa”. Autores que o precederam trataram o tema de um modo diferente, muito bem apontado por Squeff: No seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, Debret utilizou a expressão “notre colonie”. Porto-Alegre, seguindo o mestre, referiu-se ao grupo como “colônia de artistas franceses”. Já Moreira de Azevedo, escrevendo alguns anos depois, utilizou outra nomenclatura para designá-los: fala simplesmente em “artistas franceses”, ou, de modo ainda mais genérico, “diversos artistas hábeis”. Em Belas Artes: estudos e apreciações, Feliz Ferreira optou por retomar a expressão de Debret, aludindo à “notabilíssima colônia artística que o conde da Barca fez vir ao Brasil (Felix Ferreira: 1885). No que é seguido por Gonzaga Duque, que também faz referência à “colônia Lebreton” em sua A arte brasileira (1995:90). Na obra de Taunay, a palavra “missão” tem dois significados. Em primeiro lugar, refere-se à incumbência, encargo. Para ele, partira da corte portuguesa a ideia de convidar artistas franceses para fundar uma instituição dedicada às artes e ofícios no Brasil, sugerindo assim a idéia de algo planejado, uma tarefa a ser cumprida, um projeto, compromisso com alguém. Em segundo lugar, a palavra “missão” resume a visão do autor a respeito do papel desempenhado por estes artistas. Diante de um ambiente quase selvagem, a estética trazida pelos franceses prometia ser civilizadora. O autor se refere algumas vezes aos franceses como “artistas missionários”, dando-lhes uma função de continuadores do processo civilizador na América, iniciado pelos portugueses.608 Esta versão consagrada em torno da “missão francesa” foi contestada pelo crítico de arte Mário Pedrosa, em sua tese Da Missão Francesa – Seus Obstáculos Políticos 609.

Até pouco tempo desconhecida nos meios acadêmicos, essa tese, de

607 ARAUJO, Karina Anhezini de. Um metódico à brasileira: A História da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939). 2006. 218p. Dissertação (Doutorado em História). Faculdade de História, Direito e Serviços Sociais, Unesp-Franca, 2006, p.46. 608 Esta visão implicou também em desqualificar as manifestações artísticas coloniais, como o barroco. 609 No ano de 1955, o Colégio Pedro II (CPII) abriu um edital para o provimento da cátedra de

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

32 7

forma original e pioneira, procurou “fundamentar e discutir quais eram esses “percalços” políticos”610. Para ele, a “missão francesa” nunca teve um caráter oficial, ou seja, fruto do convite formal de d. João VI 611. Os artistas bonapartistas vieram para o Brasil por conta própria, precipitados pelas perseguições políticas que assolaram a França depois do Governo dos Cem Dias de Napoleão Bonaparte. Baseando-se em uma farta documentação, principalmente os acervos diplomáticos do Rio de Janeiro, e “em uma fundamentação teórica inovadora para o estudo das artes no período, um marxismo bastante sofisticado”612, o nosso crítico chegou a conclusão que o fracasso da “missão francesa” foi de ordem política, e não fruto de intransigências reacionárias ou de intrigas políticas: Havia uma incompatibilidade manifesta entre os artistas que vieram, todos bonapartistas fervorosos, principalmente o seu guia, e a realidade de uma Corte ainda apavorada com as idéias revolucionárias que ainda agitavam a França, mesmo depois da queda de Bonaparte, e começavam, aliás, a espalhar-se pelo resto da Europa, minando os próprios países vitoriosos sobre o Corso. 613. A originalidade da tese está justamente em enxergar a vinda desses artistas franceses em um contexto maior: a situação da Europa pós-Napoleão, a Restauração, o terror branco: A queda de Napoleão, Waterloo – eis o motivo determinante que impeliu esses nomes brilhantes e já feitos em França a procurar emigrar para tão longe. Sem Waterloo não teria havido a Missão Francesa de 1816, pelos menos com as História Geral e do Brasil, que naquele momento se encontrava vaga. Professor interino de história desde 1953, Pedrosa candidatou-se para este concurso com a tese Da Missão Francesa – Seus Obstáculos Políticos, mas ela não chegou a ser defendida, permanecendo inédita por muito tempo. Só veio ao conhecimento público graças ao livro organizado por Otília Beatriz Fiori Arantes: Acadêmicos e Moderno: Textos Escolhidos III. 610 ALAMBERT, Francisco. Portugal e Brasil na crise das artes: da Abertura dos Portos à Missão Francesa. In: OLIVEIRA, Luíz Valente; RICUPERO, Rubens (org.). Abertura dos Portos. São Paulo: Editora Sesc São Paulo. 2007, p.156. 611 Laudelino Freire, no livro Um século de Pintura no Brasil (1916), colocou-se sutilmente contra a hipótese de Afonso Taunay, buscando mostrar que os franceses vieram por conta própria para o Brasil. Ele havia se baseado em um artigo publicado no Diário Fluminense de 12 de janeiro de 1828, na qual sustentava que a vinda desses artistas não tinham nenhum caráter oficial, vieram para o Brasil sem serem convidados. 612 ALAMBERT, Francisco. 2007, p.156. 613 PEDROSA, Mario. 1998, p.89.

personalidades que a compuseram. 614. Foi neste ambiente europeu conturbado, com a recondução dos Bourbons e as perseguições políticas que muitos bonapartistas procuravam exílio em outros países. Depois da queda definitiva de Bonaparte, a situação dos artistas da “missão francesa” era insustentável: A situação de todos esses homens era precaríssima, a começar pelo velho pintor consagrado, que havia perdido inclusive a fortuna da mulher, sem falar nos seus clientes imperiais, com um filho, Carlos, “bonapartista ardente, como seu irmão Augusto, o escultor” dispensado do exército por suas convicções bonapartistas, e que era o mais insofrido para a partida; Debret, que perdera o filho, Montigny, que perdera a posição na corte de Jerônimo Bonaparte; todos eles, enfim, se sentiam com que desamparados, como ruínas de um imenso naufrágio. Quando a Le Breton, sem emprego, às portas da miséria, “seu persona”, nos diz o provecto historiador, era “ingratíssima aos Bourbons, recém-reentronizados em França. Precisava expatriar-se, pois não tinha meios de subsistência senão as colocações oficiais”. 615 Todos eram vítimas desse “imenso naufrágio”: de um lado os artistas franceses que fugiam das perseguições políticas, e do outro a Coroa portuguesa que assistia as transformações que o capitalismo ia promovendo em suas estruturas políticoeconômica, principalmente com o fim do pacto colonial e o processo de abertura dos portos brasileiros. O decreto de 28 de janeiro de 1808, que abriu os portos brasileiros as “nações amigas”, modernizou “a acanhada vida colonial, com padrões de costume e idéias novas”. Com isso, concentrou-se no Rio de Janeiro uma “camada funcionária e faminta de empregos, sob o patrocínio do estado-maior de domínios, reunindo explorados e exploradores no mesmo solo”616. Essa burocracia que se instalava nas instituições brasileiras “eram particularmente ciumentos de seus postos dados no Brasil” 617, vivendo em guerra não só com os brasileiros como também, no caso específico, com os artistas franceses. Desde a vinda da monarquia portuguesa ao Rio de Janeiro, acelerou-se a diferença entre uma 614 PEDROSA, Mário. 1998, p.100. 615 PEDROSA, Mário. 1998, pp.102-103. 616 FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. - 13ª ed. - São Paulo: Globo, 1998, p.249. 617 PEDROSA, Mário. 1998, p.83.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

32 9

burocracia enraizada e as necessidades de renovação do próprio aparelho do Estado. Desde a sua chegada, a intenção de Lebreton era fundar uma instituição não só dedicada a educação artística, mas também ao ensino de técnicas e ofícios. Mas isso se mostrou fora de questão, principalmente em uma sociedade baseada no trabalho escravo. O grande interesse da corte residia na arte que esses artistas traziam na bagagem, o neoclassicismo, do que o ensino de técnicas modernas. Qualquer iniciativa que contribuísse para a racionalização do trabalho e consequentemente a emancipação técnica eram pouco apreciados. Para que uma Escola de Belas Artes funcionasse à maneira das instituições francesas, foi necessário, segundo Pedrosa, “que toda uma época de transição transcorresse até que as amarras políticas e os laços culturais com Portugal afrouxassem”618. Como podemos perceber, os obstáculos políticos que os componentes da “missão francesa” encontraram se mostraram intransponíveis. A tese também trouxe alguns elementos importantes para redirecionar os estudos sobre a arte neoclássica que a “missão francesa” trouxera ao Brasil. Segundo Pedrosa, o movimento vindo de fora teria contribuído para interromper uma via original que se cristalizava no Brasil: o barroco brasileiro. Esta forma regionalizada produzida a partir da tradição barroca portuguesa assumiu, com os trabalhos de artistas como Aleijadinho, uma expressão singular e nunca vista em outras partes do mundo. Esta discussão volta à tona em Regionalismo e Formas Clássicas, publicada em 1960619. O trabalho poderia ter influenciado a historiografia sobre o tema, mas não o fez. E sobretudo, como bem apontou Alambert, também por percalços de ordem política: A tese foi escrita para ser defendida em concurso para admissão de professor de história no tradicional Colégio Pedro II, o que nunca aconteceu. Nesse momento, seu autor, que é reconhecidamente um dos mais importantes teóricos e críticos de arte moderna, estava amplamente envolvido tanto nos grupos da vanguarda concreta que se firmava no Rio de Janeiro quanto no projeto das bienais de arte de São Paulo. Ao mesmo tempo, o crítico de arte, que foi um dos primeiros militantes trotskistas da 618 PEDROSA, Mário. 1998, p.59. 619 PEDROSA, Mário. Regionalismo e Formas Clássicas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 03 de fev. 1960. Neste artigo, Pedrosa procurou explicar a tese sobre a especificidade brasileira da implantação neoclássica que teria ocorrido no princípio do século XIX. Esta teria se confrontado no Brasil com uma forma regionalizadora derivado do barroco português, mas acabou se beneficiando ao se ajustar a uma realidade de unificação nacional em progresso em um Brasil que começava a se tornar independente.

América Latina, travava polêmicos debates dentro do Partido Socialista Brasileiro e por isso era malvisto tanto pelos comunistas quanto pela direita em geral. O fato é que a tese só veio a público em 1998. 620 Se no primeiro texto, Afonso Taunay criou o nome “missão francesa”, foi com a publicação da segunda versão do livro, em 1956, que ela atingiu enorme repercussão na historiografia brasileira, elevando-se a um status de verdade histórica. Taunay teve acesso a outros documentos621 sobre a vinda dos franceses para o Brasil, além do livro de Morales Los Rios Filho, que confirmavam a sua hipótese de que a “missão francesa” teria sido uma ideia de d. João VI e do seu ministro conde da Barca. Além disso, o historiador destacou, de forma genérica, a importância da arte barroca na cidade do Rio de Janeiro: No Rio de Janeiro de 1808, que havia de realmente inspirado pela estética? Talvez só a linda igreja da Glória do Outeiro, o majestoso Mosteiro de São Bento, a elegante e tão distinta igreja da Santa Cruz dos Militares, a preciosa igreja do Terceiros do Carmo e o aqueduto da Carioca, revestida de grandiosa simplicidade romana. 622 Por muito tempo a historiografia brasileira aceitou essa hipótese pois, “a fundamentação de Taunay, baseada em documentos e jornais da época, não deixa fissuras em sua argumentação, e torna verossímil a sua hipótese de uma missão oficial”623. Entretanto, trabalhos mais recentes retomam a hipótese de Pedrosa, criticando não só a versão consagrada de Taunay, como também reavaliam o papel da “missão francesa” na história da arte brasileira. No ano de 1980, Donato Mello Junior descobriu duas cartas escritas por Nicolas Taunay que, de alguma maneira, contradiz algumas de seu bisneto 624. Na primeira carta, ele ofereceu aos monarcas portugueses seus serviços como professor das 620 ALAMBERT, Francisco. 2007, pp.156-157. 621 Na última edição de seu livro, Taunay apresentou uma impressionante documentação dos arquivos diplomáticos franceses que demonstram claramente toda a negociação entre Lebreton e os agentes diplomáticos portugueses em Paris. 622 TAUNAY, Afonso. 1956, p.03. 623 TREVISAN, Anderson Ricardo. Debret e a Missão Artística Francesa de 1816: aspectos da constituição da arte acadêmica no Brasil. Plural, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, nº14, 2007, p.13. 624 JÚNIOR, Donato Mello. “Nicolau Antonio Taunay – Precursor da Missão Artística Francesa de 1816. Duas cartas suas inéditas colocam-no na origem remota da Missão”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, abr.-jun. 1980, nº.327, pp.5-18.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

33 1

princesas e dos príncipes d. Miguel e d. Pedro, e também como conservador das coleções de arte da corte real. Na segunda carta, endereçada à Carlota Joaquina, pediu que o contratasse como pintor da Família Real, cargo que nem existia oficialmente em Portugal e muito menos no Brasil. Com essa duas cartas de Nicolas Taunay, o autor concluiu que: A vista das duas cartas autógrafas de Taunay é lícito concluir que, em face dos acontecimentos sucedidos em 1815 e que culminaram com a derrota de Napoleão Bonaparte, sentindo-se inseguro quanto ao seu futuro artístico, econômico e político, Antônio apelou para o Príncipe Regente e para D. Carlota Joaquina no sentido de lhe proporcionar um emprego de professor dos Príncipes e das Princesas ou Conservador da sua galeria de Arte. Esta petição, escrita, possivelmente, sob intensa emoção, em junho ou agosto de 1815, foi recebido por D João VI que teve a iniciativa de enviá-la e de consultar o seu culto Ministro conde da Barca, que provavelmente também conhecia o renome do artista, no sentido de aconselhá-lo. Pela carta à D. Carlota e pela familiaridade da redação ficamos informados da sua passagem por Portugal, detalhe até hoje desconhecido. Abre-se aqui uma pista para pesquisa do fato625.

Possivelmente estas cartas foram redigidas depois de 03 de julho, quando os exilados da Coligação tomaram Paris, após a batalha de Waterloo. Nesse período, os antigos aliados de Napoleão sofriam com os reverses da política e se convertiam em exilados. Foi devido a este clima de instabilidade política que Nicolas Taunay ofereceu os seus serviços a d. João VI, antes mesmo das negociações entre Lebreton e os agentes diplomáticos portugueses. Essa atitude teria, assim, precedido a proposta de Lebreton ou qualquer iniciativa do governo português, e este teria apenas reagido mais tarde à iniciativa dos próprios artistas franceses. O crítico de arte Quirino Campofiorito, em seu livro A Missão Artística Francesa e seus Discípulos 1816-1840626, tem a mesma opinião de Afonso Taunay no que se refere a origem e fracasso da “missão francesa”. Entretanto, ele considerava que a arte neoclássica trazida por esses pintores interrompeu não só uma tradição colonial, o barroco, mas também foram os responsáveis por introduzirem no ensino artístico brasileiro os ditames do academicismo:

625 JÚNIOR, Donato Mello. 1980, p.16. 626 CAMPOFIORITO, Quirino. A Missão Artística Francesa e seus Discípulos 1816-1840. Edições Pinakotheke, Rio de Janeiro, 1983.

Este modernismo laico e progressista, mas imposto de fora, além de cortar a tradição colonial de raízes religiosas e barrocas, deu início ao ensino oficial de belas artes no Brasil, imprimindo-lhes os cânones austeros e acadêmicos que marcariam tão profundamente a evolução de nossa pintura oitocentista. 627

Ele ainda considerou que esse academicismo imposto de fora “afastou-se indiscutivelmente dos estimulantes debates que acompanharam na Europa as sucessivas oposições entre neoclássicos, românticos, realistas e impressionistas” 628, aproximando assim da opinião de Pedrosa. Afonso Ariano de Melo Franco também é da mesma opinião, destacando que a “missão francesa” de certa maneira “cortou uma evolução criadora do rococó-brasileiro, que era um estilo vigorosamente nacional”629 e muito diferente do barroco europeu, que era uma arte aristocrática630. Em uma série de documentos conservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, Elaine Dias analisou as correspondências diplomáticas trocadas entre Lebreton e os diplomatas portugueses, em 1815, ainda em Paris 631. O que chamou a sua atenção foi que, com base nos documentos datados de 03 de outubro e de 09 de dezembro de 1815, os ministros portugueses não tinham nenhuma ideia da assim chamada “missão francesa”. Além do mais, não possuíam instrução ou ordem da corte que pudesse atender às demandas ou ajudar financeiramente tal viagem. Mesmo com a ajuda financeira por parte de um dos diplomatas portugueses, a vinda desses artistas não tinham nenhum caráter oficial, ou seja, um projeto idealizado e financiado pela corte portuguesa.

627 CAMPOFIORITO, Quirino. 1983, pp.13-14. 628 CAMPOFIORITO, Quirino. 1983, p.14. 629 FRANCO, Afonso Arinos de Mello. Jean Baptiste Debret – estudos inéditos. Rio de Janeiro: Fontana, 1974. Acervo da Biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, p.28. 630 Mario Barata, no entanto, é mais radical e diz que a questão da interrupção natural do barroco brasileiro pela vinda da missão francesa não se coloca, por ser “anti-histórica”. O autor defende ainda que a pintura religiosa do barroco-rococó, apesar suas obras de valor, não atingira um nível de ação e de estrutura comparável com o barroco europeu, mesmo aquele do final do século XVII. Segunde ele, a persistência dessa arte colonial, representaria uma paralisação, que tornaria o país incapaz de uma inserção no mundo moderno, em uma espécie de “hemiplegia” (BARATA, 1983:385). 631 DIAS, Elaine. “Correspondências entre Joachim Le Breton e a corte portuguesa na Europa – O Nascimento da Missão Francesa de 1816”. Anais do Museu Paulista. História e cultura material. São Paulo: Universidade de São Paulo, ju-dez. 2006, vol. 14, nº.02.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

33 3

Centrado na vida e obra do pintor francês Nicolas-Antoine Taunay 632, Lilia Moritz Schwarcz afirmou que a “missão francesa” não foi obra de um convite oficial do governo luso na América, mas sim de um punhado de artistas bonapartistas que por iniciativa própria vieram para o Brasil em busca de refazer a vida. Na verdade, segundo a autora, parece ter havido uma convergência de interesses: Na verdade, parece ter existido uma convergência de interesses. De um lado, imagine-se uma série de artistas, formados pela Academia de Artes Francesa, no mais estrito estilo neoclássico, vinculados ao Estado napoleônico e inesperadamente desempregados. De outro, uma corte estacionada nos trópicos, longe, portanto, da metrópole européia e carente de uma representação oficial. Foi dessa maneira, e da conjunção dessas duas situações, que surgiu aquela que é hoje conhecida como a “Missão Francesa de 1816” - ou então a “colônia francesa”, denominação que naquele contexto se deu a tal grupo de artistas, o qual aportou no país em início do século XIX.633

Dos trabalhos estrangeiros que se dedicaram a analisar a “missão francesa”, destaca-se a tese de doutorado do pesquisador Alberto Cipiniuk, com o título L'Origine de l'Academie des Beaux-Arts de Rio de Janeiro634. Neste trabalho, o autor demonstra que a iniciativa do convite não partiu do benfeitor real, muito menos das ideias iluministas do conde da Barca: a própria “missão francesa” havia se convidado, sem haver um convite oficial. Como podemos perceber, os trabalhos mais recentes retomam a hipótese de Mário Pedrosa, questionando não só a oficialidade do convite de d. João VI, como também a influência da arte neoclássica no campo artístico brasileiro 635. Apesar disso, a ideia da “missão francesa” como continuadores do processo civilizatório brasileiro criou raízes na historiografia brasileira, principalmente nos meios institucionais brasileiros. 632 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 633 SCWARCZ. Lilia Moritz. 2008, p.13. 634 CIPINIUK, Alberto. L'Origine de l'Académie des Beaux-Arts de Rio de Janeiro. Paris, thèse presentée pour l'obtension du grade de Docteur en Philosophie et Lettre, Université Libre de Bruxelle, 1989-90. 635 Para alguns autores, a vinda da missão francesa não interrompeu a história da arte brasileira, apenas lhe forneceu novos elementos, como é o caso de Mário Barata (1983), e para outros significou a quebra de qualquer possibilidade do desenvolvimento de uma arte legitimamente brasileira, em uma continuação natural do barroco, a tese de Afonso Arinos (1874).

O livro A Missão Francesa, financiado pela filial financeira do grupo francês PSA Peugeot Citroën, apresenta uma visão positiva da história da “missão francesa”, considerando-a como uma “missão civilizadora”. No prefácio, escrito pelo diretorsuperintendente da instituição, a versão da oficialidade da “missão francesa” ainda pendura: Através deste livro, o Banco PSA Finance Brasil S.A. convida-o a uma viagem a essa fascinante época, quando a convite da corte portuguesa no Brasil (agosto de 1816), veio ao Rio de Janeiro a Missão Artística Francesa, chefiada por Joachim Lebreton e composta por um grupo de artistas plásticos. ( SEM REFERˆ´NCIA)

É um discurso bastante afinado com os dados levantados por Afonso Taunay e Morales de los Rios Filho, atribuindo a história da “missão francesa” um caráter senão oficial pelo menos oficioso. No que se refere a influência do neoclassicismo nas artes brasileiras, Luiz Marques questiona a opinião de Mário Pedrosa que afirmava que os componentes da “missão francesa” vieram para o Brasil “alterar o curso de nossa verdadeira tradição artística, que era barroca, via Lisboa”636. Segundo Marques: Em oposição a essa tese, tive mais de uma vez a oportunidade de lembrar que o barroco, fora de sua acepção estrita (isto é, a arte de Roma e de Nápole nos anos 1620-1720 circa), presta-se particularmente mal a caracterizar o “temperamento de um povo” não-europeu, pois é uma arte europeia. E tanto mais europeia o é em Portugal, onde, longe de emanar de um não sei quê de profundamente português, ela adentra o país por meio de encomendas régias e de corte a artistas italianos tais como Agostino Cornacchine, Camilo Ruscone e dezenas de outros. Sobretudo sob D. João V, o barroco português é uma arte de estrita observância romana. Portanto, a Missão Francesa, não significa, como pensa Pedrosa, o recalque de “nossa verdadeira tradição, que era barroca, via Lisboa” por uma cultura francesa estranha a essa “tradição”. A Missão de 1816 é apenas o reflexo, no Brasil, da lenta passagem da hegemonia romana à hegemonia francesa nas Academias europeias, passagem que se inicia, se precisarmos de datas, com as encomendas vaticanas a Pierre Subleyras nos anos 1740 e se consuma com David.637

Longe de ser um “nacionalista” ou de compartilhar com a historiografia modernista da época638, a grande questão de Pedrosa era mostrar os problemas das 636 PEDROSA, Mario. 1998, pp.83-84. 637 Luiz Marques, Claudia Mattos, Mônica Zielinsky et Roberto Conduru, “Existe uma arte brasileira?”, Perspective [En ligne], Version originales, mais en ligne le 30 septembre 2014, consulté le 22 juillet 2015. URL: http://perspective.revue.org/5543; DOI: 10.4000/perspective.5543 638 Segundo Squeff, Pedrosa compartilhava de duas tendências que eram comuns na historiografia modernista: a predileção pelo período barroco e a tendência a diminuir, quando não simplesmente

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

33 5

influências externas na história da arte brasileira. Para ele, o neoclassicismo transplantado para o Brasil teria impedido a consolidação de um processo pelo qual a “civilização portuguesa começava a ganhar aqui contornos de cultura local”. Além disso, “ela vinha também interromper uma atualização que possivelmente nos seria melhor assegurada via Portugal”, que se aproximava do Romantismo inglês, e que depois “triunfaria em todo o Continente”639. Ou seja, a “atualização estética” que os artistas franceses prometiam trazer para o Brasil já vinha sendo superada na Europa pelo Romantismo. Em um país em fase de amadurecimento cultural e material e sem grandes tradições consolidadas e assim suscetíveis a todas formas de novidades, “haveria de atingir o estágio de “cultura orgânica”, fazendo a devida triagem na sucessão de ismos que por aqui aportassem, de modo a criar uma autêntica arte nacional”640, tendo o cuidado em não “degenerar em nacionalismo político, cívico, patriótico sob suas diversas costumeiras xifrinadas”641. Essa era um dos fundamentos da crítica de Pedrosa, inclusive ao recapitular a maneira pela qual chegaram ao Brasil a arte barroca e neoclássica. Portanto, a tese de Pedrosa está intimamente ligado ao projeto de modernismo que ele defendia: o rompimento de uma arte acadêmica e de um passado colonial português, como bem demonstrou Alambert: O modernismo brasileiro, em seu projeto de romper com o passado imediato (a arte acadêmica) e com o longínquo (o passado colonial lusitano), promove uma forte operação histórica. De um lado se volta contra a tradição portuguesa, vista como elemento fundamental para o atraso constante nas relações sociais e culturais do Brasil (como se pode ver no clássico estudo de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil). De outro, sobretudo do ponto de vista estético, quer romper com a tradição européia transplantada para o Brasil monárquico do século XIX, cujo exemplo seria justamente o academicismo plasmado na Escola de Belas Artes, herdeira da confusa trajetória do projeto modificado da Missão Francesa. Mas, ao mesmo tempo, guarda desses dois momentos aspectos importantes. Do passado colonial, resgata a capacidade de adaptação às limitações e condições locais, capazes de superar a mera imitação e criar o novo. Do mundo acadêmico tudo deveria ser negado menos a idéia cosmopolita de se recorrer às influências suprimir a importância da Academia de Belas Artes, e os valores a ela vinculados. Ver: SQUEFF, Letícia “Mario Pedrosa e a arte acadêmica brasileira”. XXIX Colóquio CBHA, 2009, p.318. 639 PEDROSA, Mario. 1998, p.16. 640 PEDROSA, Mario. 1998, p.13. 641 PEDROSA, Mario. 1998,p.145.

progressivas externas (sobretudo do modernismo francês), desde que a serviço do processo de formação de uma cultura nacional emancipada. Guardaria ainda uma curiosa semelhança com o projeto original da missão: a idéia de que o conhecimento técnico era parte decisiva da emancipação social e cultural. 642

Como podemos perceber, apesar dos inúmeros trabalhos que contrapõem a hipótese de Afonso de Taunay, a sua versão histórica da “missão francesa” criou raízes profundas difíceis de serem arrancada não só no campo historiográfico brasileiro, mas também nos meios institucionais. Ou seja, mito permanece.

O Brigadeiro Eduardo Gomes: Uma interpretação de seus discursos políticos (1945-1950)

Lucas Mateus Vieira de Godoy Stringuetti643 UNESP – ASSIS. Resumo O presente texto é parte da pesquisa de mestrado do curso de pós- graduação em história pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho de Assis, o qual ainda se encontra em sua fase inicial de desenvolvimento. Para tanto nossa ideia é analisar os discursos políticos do Brigadeiro Eduardo Gomes (1896-1981), em suas duas candidaturas à presidência da República, pela União Democrática Nacional (UDN), nos anos de 1945 e 1950 no Brasil, a fim de identificarmos sua posição política nesse período. Ao mesmo tempo, averiguar entre essas duas eleições, se o Brigadeiro manteve um passado tenentista, de acordo com o ideal dos tenentes em que ele esteve vinculado na década de 1920 e quais eram os temas que mais apareciam em 642 ALAMBERT, Francisco. 2007, p.162. 643 Mestrando em história e Sociedade pelo Programa de Pós- Graduação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho de Assis (UNESP) e graduando em letras pela mesma instituição.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

33 7

sua campanha política pela UDN, averiguando se estes temas estavam no programa do partido e qual sua posição sobre eles. Palavras chave: Tenentismo; Brigadeiro Eduardo Gomes; UDN; discursos políticos.

Introdução A década de 1920 no Brasil se insere num contexto de uma constituição liberal, com políticas oligárquicas de onde vem a expressão liberalismo oligárquico, iniciado em 1889 e transcorrido até 1930. Desta maneira, não temos um governo que definitivamente iria servir ao coletivo, ou a coisa pública nos moldes de uma República, pelo contrário, foi um período extremamente limitado na construção de nossa democracia e na expansão da cidadania no Brasil. Esse período de nossa história política teve a exclusão de uma maioria no processo de participação política em detrimento de uma dominação de uma minoria, o qual os termos Coronelismo, oligarquia e política dos governadores fizeram parte do vocabulário desta época.644 Especificamente os anos de 1920 foi um momento de várias reinvindicações, como as regulamentações das relações de trabalho e de maior participação política, tornando possível a falência do sistema de representação vigente na República, a intolerância dos que detinham o poder diante dos direitos das novas forças sociais, justamente com a cisão entre as elites. Ao mesmo tempo, foi uma época de mudanças nas formas de expressão artística, o qual se buscou conhecer e entender o país, elaborando propostas para a modernização do Brasil.645 Podemos pensar também, que os anos de 1920 no Brasil, além de terem apresentado grandes acontecimentos históricos, como os movimentos tenentistas, já

644 RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira República e o liberalismo oligárquico. In: DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (Orgs.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.91. 645 RODRIGUES, Marly. O Brasil na década de 1920: Os anos que mudaram tudo. 3ª ed. São Paulo: Memórias, 2010, p.63.

ressaltados, foi um período no qual surgiu o Partido Comunista Brasileiro e a Semana da Arte Moderna, em São Paulo. A introdução do rádio foi outro acontecimento importante, exatamente quando se iniciavam os festejos do Centenário da Independência, em 7 de setembro de 1922. Vários periódicos, até hoje editados, também surgiram na década de 1920. Como comenta Marly Rodrigues: Em 1921, foi fundada em São Paulo a Folha da Noite; em 1925, o Diário da Noite; em 1926, a Folha da Manhã e o São Paulo jornal; em 1927 surgiu o Diário Nacional, órgão do Partido Democrático; em 1928, começou a circular um semanário especializado em esportes, mais tarde tornado diário, a Gazeta Esportiva, e em 1929, o Diário de São Paulo que, como o Diário da Noite, fazia parte da cadeia de Diários e Emissoras Associados, que Assis Chateubriand iniciara em 1919, com a compra de O Jornal, do Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro surgiram O Globo, comandado por Irineu Marinho e, em 1929, a empresa proprietária de A Noite, então o jornal mais popular da cidade, expandiu-se passando a publicar A Noite Ilustrada, Carioca e Vamos ler, revistas de grande circulação na década seguinte.646 Percebe-se assim, a importância da década de vinte em nosso país, com grandes acontecimentos históricos, principalmente se formos pensar nos meios de comunicação que surgiram nesta época, como o rádio, a expansão da imprensa e também o cinema, que segundo Rodrigues, “[...] revelam a urbanização e a modernização do país, resultantes do desenvolvimento do próprio sistema capitalista”. 647

Com relação à década de 1940 no Brasil, podemos destacar as duas eleições à presidência da República como acontecimentos importantes, e como períodos que nos interessam aqui, a de 1945 e 1950. A primeira eleição de 1945 se dá num período de passagem de um governo ditatorial para a democracia, isto é, saímos do Estado Novo varguista, para alcançarmos novas eleições presidenciais, principalmente com o direito das mulheres votarem conquistados em 1932, mas só posto em prática em 1945. É no ano de 1945 que surgem também os três principais partidos que, segundo Boris Fausto, iriam existir no período de 1945-1964. Para Fausto, a antiga oposição liberal, herdeira dos partidos democráticos estaduais, de oposição ao Estado Novo, 646 Ibidem, p.61. 647 Ibidem, p.63.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

33 9

formou-se em abril, com o nome de União Democrática Nacional (UDN). Concomitantemente, surgiram o Partido Social Democrático (PSD), em junho de 1945 e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), em setembro de 1945. 648 Na eleição à presidência da República deste período, Dutra saiu vitorioso pelo PSD, deixando o Brigadeiro em segundo lugar. No ano de 1950 tivemos novas eleições, nas quais o PSD lançou um político mineiro quase desconhecido, o advogado Cristiano Machado; a UDN retomou o nome do Brigadeiro Eduardo Gomes como seu candidato e Vargas concorreu pelo PTB. Vargas conseguiu obter uma grande vitória, com 48,7% do total dos votos, enquanto o Brigadeiro não passou dos 29,7%, e Cristiano Machado, de 21%5649. Para escrever nossa pesquisa pretendemos utilizar o método parecido com o de Quentin Skinner que foi apresentado pela primeira vez no final dos anos de 1960, em Meaning and understaing in the history of ideas, com um longo artigo publicado na revista History and Theory, isto é, o contextualismo linguístico, ligado à história das ideias. Ao mesmo tempo, Skinner apontou críticas aos procedimentos analíticos textualistas e do contextualismo sociológico, utilizados naquela época650. Assim, Skinner criticava a abordagem textualista, que insistia em ler e reler determinado texto até chegar a uma compreensão adequada de seu significado, da mesma maneira que Skinner era contra o contextualismo que naquele momento privilegiava o contexto social, o contexto dos fatores religiosos, políticos e econômicos que determinavam o significado de qualquer texto dado, constituindo-se assim, como algo, de estrutura última para o esforço em compreender as ideias de determinados textos, em vez do contexto linguístico, nas estratégias de compreensão de um determinado texto. Pensamos assim, que, ao interpretarmos os discursos políticos do Brigadeiro Eduardo Gomes, do mesmo modo como Skinner, situaremos o texto ou os discursos pesquisados de Gomes em seu contexto de convenções linguísticas e sociais que 648 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fundação de Desenvolvimento da Educação, 1995, p. 385. 649 Ibidem, p. 405. 650 SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Autor, texto e contexto: A história intelectual e o “Contextualismo Linguístico” na perspectiva de Quentin Skinner. Fênix, Minas Gerais, v.5, n°4, out./nov./dez. 2008, p.3.

regem o tratamento dos temas e problemas que os textos nos demonstram, conforme o próprio autor. Segundo Ricardo Silva: A ênfase nas convenções linguísticas para a reconstituição das intenções autorais parte do pressuposto de que todo autor – especialmente o autor de textos políticos – está envolvido em um ato de comunicação quando escreve ou publica seu texto. De modo a ser compreendido pelos leitores, não lhe resta outra alternativa a não ser mobilizar, em seu discurso, os padrões convencionais de comunicações acerca dos temas para os quais deseja chamar a atenção.651

Segundo a teoria e o método skinneriano, do contextualismo linguístico, diante do qual devemos nos deslocar para o texto e contexto de um determinado período histórico, leva-se em conta que, nas falas dos autores, em seu mundo mental e no repertório linguístico de sua época que o historiador das ideias deve buscar a interpretação de seu texto. Justifica-se, então, a eleição neste Projeto para tal abordagem na análise dos discursos políticos do Brigadeiro Eduardo Gomes, pois busca-se refletir sobre o momento histórico de produção de seus discursos, pondo em discussão a questão do autor, o texto e o contexto em que enuncia e a forma que utiliza para fazê-lo, assim como propõem os teórico do contextualismo linguístico. Por outro lado, dando ênfase a outra questão, a qual faz parte de nosso objeto de estudo, o que nos chama atenção e que seria de extrema importância na problematização de nossa pesquisa, é que se analisarmos parte da historiografia brasileira que estudou a temática do tenentismo, cujo movimento contou com a participação de Gomes, veremos que suas ideias, vinculadas aos movimentos tenentistas de 1922 e 1924, e representadas, ao mesmo tempo, por um coletivo de tenentes que também participaram das insurreições, têm sido passíveis de questionamentos e problemáticas ao longo da história. A historiografia da década de 1970, por exemplo, pode ser vista através de dois pensamentos opostos sobre o tenentismo, no que diz respeito a sua representação social.

651 Ibidem, p.309.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

34 1

O primeiro é o trabalho de Virgínio Santa Rosa, o qual afirmou que o movimento tenentista era uma força militar que tentou fazer politica, sendo porta-voz da classe média, ou seja, o tenentismo seria o seu legítimo representante.652 Já para Maria Cecília Spina Forjaz, O tenentismo é liberal democrata, mas manifesta tendências autoritárias; busca o apoio popular, mas é incapaz de organizar o povo; pretende ampliar a representatividade do Estado, mas mantém uma perspectiva elitista; representa os interesses imediatos das camadas médias urbanas, mas se vê como representante dos interesses gerais da nacionalidade brasileira. 653

Desta maneira, segundo Forjaz, os tenentes na primeira fase, não foram identificados como porta-vozes das reinvindicações de grupo social algum. Mas na revolução de 1924 em São Paulo, ocorre, segundo a autora, um amadurecimento político e ideológico dos tenentes, que passaram a falar em nome de interesses nacionais, pensando em representar uma consciência nacional.654 Ao analisarmos a historiografia da década de 1980 no Brasil, sobre tal temática, perceberemos que as ideias de Forjaz também são pensadas pelo estudioso José Augusto Drummond, com relação à representação do grupo social que o movimento tenentista poderia ser enquadrado. Drummond comenta: O tenentismo, nos valores e nas práticas de seus protagonistas – oficiais no Exército Brasileiro -, me parece um movimento singular cuja compreensão perde seus contornos se procurarmos enquadrá-lo como representativo desse ou daquele grupo social civil.655 Por fim, a década de 1990, apoiada pelo trabalho de Boris Fausto, também procura analisar o tenentismo, sem nenhum enquadramento de grupo social. Segundo Fausto, considerar o tenentismo como um movimento representativo de uma classe específica seria uma simplificação de sua natureza. Mesmo possuindo inegável prestígio entre a população urbana, a maioria dos integrantes do tenentismo eram 652 ROSA, Virgínio Santa. O sentido do tenentismo. 3ª Ed. São Paulo: Alfa Ômega, 1976, p. 63. 653 FORJAZ, Maria Cecília Spina. Tenentismo e política: tenentismo e camadas médias urbanas na crise da Primeira República. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 31 – 32. 654 Ibidem, p.52. 655 DRUMMOND, José Augusto. O movimento tenentista: intervenção militar e conflito hierárquico (1922-1935). Rio de Janeiro: Graal, 1986, p.286.

oriundos de ramos empobrecidos de famílias de elite do Nordeste. Além do mais, os tenentes eram integrantes do Exército e possuíam uma visão de mundo resultante de sua inserção nas Forças Armadas. 656 Neste sentido, percebe-se um debate ou até mesmo uma dificuldade entre os historiadores brasileiros de identificar o movimento tenentista a um segmento ideológico. Por isso, ressalvamos, neste Projeto, a importância de estudar um de seus participantes, que teve o nome destacado nacionalmente, tanto devido a sua participação no movimento tenentista, como em suas duas candidaturas à presidência do Brasil, para poder interpretar sua posição política. Justifica-se este trabalho, pois pouco ainda se conhece sobre a vida política de Gomes, o qual em pesquisas existentes até o presente momento, nenhum trabalho mais aprofundado condizente com sua vida política fora encontrado, mas sim, em sua maioria, apenas em formas biográficas. Ensejamos que a presente pesquisa auxilie na abertura de possibilidades analíticas no campo do discurso político. Sobre os trabalhos históricos de Gomes têm-se três obras importantes que foram produzidas sobre ele na década de 1940. O primeiro é de 1945 e trata-se de uma biografia denominada Brigadeiro Eduardo Gomes, cuja autoria é de Gastão Pereira da Silva. Esta obra sobre Gomes foi publicada sob a forma de livro para o povo no panorama político brasileiro de 1945, com eleições a serem disputadas. Silva, ao escrever o livro, destaca de antemão, que sua intenção seria apenas a de escrever um esboço da vida de Gomes, pois não estava ligado a corrente política partidária alguma.657 Assim, depois de muita pesquisa, por meio de leituras de jornais de época, colhendo dados e informações verbais de pessoas que tiveram contato com o Brigadeiro, é que o autor pôde reunir uma série de observações, que foram cruciais para traçar o retrato psicológico de Gomes. 658 Silva, em seu trabalho, procura contar detalhes sobre a vida de Gomes, desde seu nascimento, sua participação no movimento tenentista de 1922 e 1924, na Intentona Comunista de 1935 e na sua candidatura à presidência da República de 1945, como candidato pela UDN. O que se percebe na obra de Silva, é que o autor 656 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fundação de Desenvolvimento da Educação, 1995, p.314 – 315. 657 SILVA, Gastão Pereira da. Brigadeiro Eduardo Gomes. Rio de Janeiro: Editora Panamericana, 1945, p.9. 658 Ibidem, p.11.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

34 3

procura destacar Gomes como um homem que lutou pela liberdade de nossa nação, nos instantes em que mais precisávamos. Para Silva, o Brigadeiro fora um cidadão democrata, na melhor concepção da palavra, que viveu para o nosso país, respeitando os princípios de nossa democracia, que tentava se reconstruir no ano de 1945, com a volta das eleições. O segundo trabalho produzido na década de 1940 foi escrito por Paulo Pinheiro Chagas, também biográfico, denominado O Brigadeiro da Libertação. Chagas, em sua obra, procurou escrever inicialmente, sobre a família de Gomes, dando destaque ao pai do Brigadeiro, que se chamava Luís Gomes e que também fora um militar. Posteriormente, o autor retrata a história de Gomes, desde seu nascimento, em 1896, até sua candidatura à presidência da república em 1945 pela UDN, sempre com intensos detalhes da vida do biografado. O próprio autor engrandece Gomes ao comentar em seu livro, que com relação ao candidato escolhido para disputar a presidência da República em 1945, teria que ser um homem impoluto, de larga tradição democrática, sendo credenciado pela opinião civil, e nada melhor do que Gomes, que possuía as qualidades desejáveis. 659 Já o terceiro trabalho da década de 1940 que se encontra publicado, fora escrito pelo próprio Brigadeiro Eduardo Gomes e lançado em 1946, com o título Campanha de Libertação, sendo um precioso documento para pesquisa, pois contém todas as suas orações enquanto candidato à presidência da República pela UDN, no ano de 1945, transcritas em livro. Após a publicação destes trabalhos sobre Gomes, só no ano de 1984 teríamos outra pesquisa a seu respeito, escrita por Deoclécio Lima de Siqueira – que fora um aviador e escritor brasileiro, amigo de Gomes. Siqueira em 1984 escreveu um livro intitulado Caminhada com Eduardo Gomes, em que contextualizou a década de 1930 de nosso país; anos estes marcados pelo fim da República Velha, do pacto político entre o trinômio governo, cafeicultores e pecuaristas, mas também um novo conceito de Brasil, que, segundo o autor, começou a ser elaborado a partir de 1922. E fora nesta data que Gomes, para Siqueira, já começava a se transformar num dos maiores mitos de nossa história.

659 CHAGAS, Paulo Pinheiro. O Brigadeiro da Libertação. Rio de Janeiro: Editora Zélio Valverde, 1946, 209.

Dessa forma, focalizando principalmente nos anos 1930, o escritor ao longo de sua obra, dá grande destaque, principalmente, para a aviação brasileira, que fora muito importante neste período histórico. Concomitantemente, Siqueira a partir de relatos pessoais, busca falar de sua própria experiência com a aviação e sobre o seu contato e a vida de Gomes, abordando questões que vão desde a participação do Brigadeiro na insurreição de 1922 no Rio de Janeiro, até sua morte em 1981. Para Siqueira, a vida de Gomes “[...] fora um lutar permanente pelo justo, contra as injustiças da corrupção, da incapacidade, da mediocridade, das ambições desmedidas, das misérias não merecidas, da escravidão sem razão, das desigualdades antinaturais [...]”.660 Por fim, há um último trabalho lançado no ano de 2011, por Cosme Degenar Drumond661, intitulado O Brigadeiro. Eduardo Gomes, trajetória de um herói. Pode-se dizer que esta é a biografia mais completa que se tem até o momento sobre Gomes, o qual o autor trata da vida completa do biografado, até sua morte em 1985. Para sua elaboração, o autor se utiliza de entrevistas, depoimentos e pesquisas em jornais de épocas. O que se percebe ao ler estes trabalhos, exceto o livro Campanha de libertação662 (1946), escrito por Gomes, é que todos os autores exaltam o Brigadeiro, caracterizando-o como um verdadeiro democrata, revolucionário, homem que deu a vida pela nação brasileira e também, segundo Drumond, Gomes teria sido um herói. Não vemos nesses trabalhos uma crítica à pessoa de Gomes ou outra visão oposta a um homem impoluto. No entanto, acreditando-se que o movimento tenentista de 1922 e 1924, o qual contou com a participação de Gomes, possuía ideias políticas que se diziam contrárias ao modelo político vigente no Brasil naquele período e mesmo estando ligado às fileiras do Exército, tentou realizar uma mudança política sem sucesso e sem o apoio do próprio Exército, mas que fora importante e necessária para aquele momento político que o país vivia. É questionável e passível de análise, a posição política que Gomes exercia, já que nos dois movimentos tenentistas de 1922 e 1924, os grandes setores da classe média e parte da população em geral, os apoiaram. 660 SIQUEIRA, Deoclécio Lima de. Caminhada com Eduardo Gomes. Rio de Janeiro: Revista Aeronáutica Editora, 1984, p. 294. 661 DRUMOND, Cosme Degenar. O Brigadeiro. Eduardo Gomes, trajetória de um herói. São Paulo: Editora de Cultura, 2011. 662 GOMES, Eduardo. Campanha de Libertação. 2ª. Ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1946.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

34 5

Em seu livro, Hélio Silva comenta que os revolucionários, ao deixarem o Forte de Copacabana na tarde do dia 6 de julho de 1922, para iniciarem a sua marcha pela Avenida Atlântica e guerrearem contra as tropas legalistas, foram acompanhados de perto por populares que solidarizavam com o movimento, tendo estes, afastados do convívio e da sorte do movimento. 663 Do mesmo modo, se lermos o artigo do historiador Carlo Romani, veremos que, por exemplo, sobre a revolução de 1924 em São Paulo, a história oficial contada pelos paulistas não reconhece como sua a revolução, isto porque o governo estadual e a burguesia daquele período não o apoiaram. Ao mesmo tempo, Romani comprova em seu trabalho, que a revolta de 1924 contou com a adesão do proletariado, e até mesmo de certos imigrantes que pegaram em armas para ajudar na revolução.664 O que se pode notar, é que, de certa maneira, os movimentos de 1922 e 1924 contaram com uma participação popular em suas sublevações, independente da vontade dos militares com relação ao apoio popular e se o apoio ocorreu de forma direta ou indireta. Isso nos mostra que a presente pesquisa justifica-se, pois a vida política de Gomes, representada pelo recorte histórico que esse projeto pretende estudar, mostra-se um pouco contraditória, no que diz respeito a sua ideologia política. Deste modo, se averiguarmos, como já ressaltado anteriormente, os movimentos tenentistas de 1922 e 1924, perceberemos que contaram com uma parcela significativa da população ao seu lado, tendo um grande viés revolucionário de mudança social e política num período tão complicado de nossa história do Brasil. Depois, em suas candidaturas políticas pela União Democrática Nacional (UDN) em 1945 e 1950, isto muda, ou seja, Gomes entra para um partido que se torna após o início, um partido de direita, o que é totalmente contrário a seus princípios políticos, enquanto integrante e representante dos movimentos tenentistas da década de vinte no Brasil, por isso ressalvo a importância de estudar, analisar e interpretar seus discursos políticos nas eleições de 1945 e 1950 pela UDN, a fim de tentarmos interpretar sua posição política nestes momentos históricos.

663 SILVA, Hélio. 1922: sangue na areia de Copacabana. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964, p.171. 664 ROMANI, Carlo. Antecipando a era Vargas: a Revolução Paulista de 1924 e a efetivação das práticas de controle político e social. Topoi, Rio de Janeiro, v. 12, n.23, p. 163, jul./dez. 2011.

Sabe-se que a UDN fora criada em São Paulo, por um grupo de intelectuais de esquerda que não haviam aderido a Luis Carlos Prestes na época. Era um partido de oposição ao governo Vargas, estando inseridos no momento da fundação do partido, representantes das velhas oligarquias que perderam espaço no poder político, com a Revolução de Trinta; além de tenentes, ex-aliados de Getúlio, como era o caso do próprio Gomes e até mesmo grupos mais de esquerda, como a Esquerda Democrática. No entanto, após o início do partido, este passou a ser dividido entre a esquerda, que seriam seus fundadores e a direita, caracterizada como os invasores. Mas o grupo da esquerda era muito fraco, tendo muito de seus componentes aderido ao PCB, quando após a libertação de Prestes, o partido se torna legal. Concomitantemente, a maioria dos representantes da UDN, neste momento, passou a ser a burguesia ou elementos associados a ela, deixando o pouco dos elementos da esquerda que sobraram em minoria, que mais tarde fundaram dentro da UDN, a Esquerda Democrática.665 Desta forma, busca-se compreender o porquê Gomes se filiou a um partido que possuía integrantes que no passado ele mesmo ajudara a combater. Podemos citar o caso do próprio Artur Bernardes, ex-presidente do Brasil e pertencente à velha oligarquia. Além do mais, só após a saída da Esquerda Democrática da UDN, para fundar o PSB, em 1946, é que a UDN passou a adotar uma postura mais conservadora, ou seja, se transformando num partido de direita. Outra questão interessante, e que se torna relevante para este trabalho, é a associação de Gomes com a UDN, sendo correspondente de seus ideais, enquanto partido. Ora, na época da fundação do partido, como ressaltou a historiadora Maria Victoria de Mesquita Benevides666, o Brigadeiro em sua plataforma política, reivindicava o direito de greve, de liberdade sindical, de um modelo econômico que conciliasse a livre empresa, o capital estrangeiro e o papel do Estado, ou seja, propostas essas que agradavam tanto os interesses das esquerdas como dos conservadores. Desta forma, associar a posição política de Gomes aos interesses da elite que representava todo o contexto simbólico da UDN se torna vago demais, por isso a ideia é saber se Gomes realmente possuía uma posição política de direita ou se 665 BASBAUM, Leôncio. História Sincera da República: de 1930 a 1960. 4ª ed. São Paulo: Alfa Omega, 1976, p. 135. 666 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o Udenismo: Ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 46.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

34 7

ele também compartilhava, ou era adepto de outras correntes ou concepções politicas nos momentos históricos que pretendemos estudar. Assim, veremos como essencial quais eram os principais temas que eram discutidos na campanha política de Gomes em 1945 e 1950 e se esses temas estavam ligados também ao movimento tenentista que ele participara e 1922 e 1924, e qual sua posição política com relação a esses temas comparando com o programa de governo da UDN. Para a realização da pesquisa a que se propõe este projeto, nota-se que existem fontes disponíveis na própria Unesp-Assis, por meio do CEDAP e outras instituições públicas como a Unicamp ou a USP, além do Arquivo Público do Estado de São Paulo, o CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), que se encontram acessíveis. Entrementes, um trabalho desta natureza poderia contribuir para a historiografia brasileira, na medida em que traria à tona uma nova pesquisa a respeito de Gomes, diferente das obras que já se encontram publicadas, as quais são em maioria, trabalhos biográficos sobre o Brigadeiro. Além disso, a presente pesquisa seria uma forma de averiguar historicamente, como a posição política de Gomes, de acordo com os temas a serem analisados foi representada ao longo dos anos que este projeto visa estudar, isto é, nos dois momentos históricos de intervenção direta de Gomes, 1922 e 1924/ 1945e 1950.

Uma Questão de Sucessão: O Terceiro Reinado e a Família Imperial. Lucas Suzigan NACHTIGALL667 Mestrando em História/UNESP/Assis Resumo A comunicação, apresentada na XXXII Semana de História, teve como finalidade alguns resultados de minha pesquisa de Mestrado em História, intitulada como "Mas, e depois?": o Terceiro Reinado nos horizontes de expectativa do final do Império (1888-1893), cujo objetivo era o estudar os horizontes de expectativa, as leituras de presente e representações relativas à ideia de Terceiro Reinado nos últimos anos da monarquia no Brasil e da vida do imperador Dom Pedro II, bem como a persistência da mesma ideia nos momentos iniciais da Primeira República e do 667 Mestre em História pela UNESP/Assis. Excertos do texto de dissertação, financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

movimento monarquista. Na comunicação, esbocei os resultados do meu primeiro capítulo, tratando das expectativas acerca do Terceiro Reinado dentro da Família Imperial, os Braganças, no Brasil. O presente texto será constituído a partir de alguns excertos do primeiro capítulo da dissertação, abordando principalmente Dom Pedro II e sua descendência, bem como a construção de uma sucessão presuntiva ao trono imperial. Utilizei como fonte, principalmente, bibliografias a respeito das personagens abordadas, como Dom Pedro II, sua filha, a princesa Isabel, seus filhos, do ramo de Órleans e Bragança, e sobrinhos, os príncipes de Saxe-Coburgo e Bragança, para tentar compreender como esse Terceiro Reinado era visto e esperado pela realeza brasileira. Palavras-Chave : Terceiro Reinado, Família Imperial, Regime monárquico, casa de Bragança

APRESENTAÇÃO Certamente, o regime monárquico, em especial no século XIX, diferia do republicano em muitos aspectos, tanto em termos de forma quanto de conteúdo. A chefia do Estado monárquico, o rei, por sua vez, encarna em sua pessoa o centro de toda a tradição que legitima e sustenta o regime. Como apontado por Walter Bagehot668, o soberano exerce, de forma simultânea, dois papéis intimamente entrelaçados, porém distintos, no exercício de sua posição central na vida nacional. O primeiro papel é de servir como “símbolo da ordem social existente e como a personificação da identidade nacional” 669, atuando de maneira similar a um sacerdote da pátria que, em seus ritos e em sua existência, vela pela união de sua terra e de seu povo, enquanto a segunda função estava relacionada com a condução dos negócios públicos, tanto cerimonial quando efetivamente, em que o rei, como representante de seu povo e das tradições de sua cultura, desempenha papel ativo, mesmo que seus poderes políticos reais sejam limitados. Dessa forma, o monarca, especialmente nas monarquias constitucionais, servia ao mesmo tempo como soberano e representante do povo, do Estado e da Nação, mesmo que essas entidades muitas vezes fossem de difícil definição e distinção. 668 BARMAN, Roderick J. Imperador cidadão. Tradução Sonia Midori Yamamoto. São Paulo: Ed. Unesp, 2012, p.27-29. 669 BARMAN, Roderick J. Imperador cidadão. Tradução Sonia Midori Yamamoto. São Paulo: Ed. Unesp, 2012, p.29.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

34 9

Diferenciando-o de seus súditos, o monarca é envolto por uma aura mística quase divina no exercício de suas funções de Estado. Peter Burke, em seu “A fabricação do rei”, aponta que na época de Luís XIV era dito que o rei possuía um éclat (brilho, lampejo), uma aura de magnificência com uma função política, que imprimia respeito aos povos do mundo

670

. Essa aura já o cobre no momento de seu

nascimento, quando sua ascensão ao trono é “profetizada”, tornando sua vinda ao mundo circundada de auspícios pela conservação do Estado; e, por fim, os auspícios se confirmam em sua ascensão ao trono, quando o recém coroado nobre pode enfim realizar sua apoteose e, tomando a coroa, assumir as funções de monarca, ocupando seu lugar de direito. De toda a mística que envolve o trono, um momento de fundamental importância para se compreender suas estruturas é aquele do falecimento do monarca e sua subsequente substituição. Em uma monarquia, além de ser o centro de todo o poder político do regime, o monarca simboliza em sua pessoa a própria encarnação antropomórfica dessa mística em uma espécie de hierofania, e seu falecimento, consequentemente, representa um momento de profunda sacralidade para seus súditos, assim como o é quando se realiza a transferência da Coroa e se revolve a outro sujeito da mesma sacralidade que antes era destinada ao falecido monarca. Tal sacralidade pode ser observada em diversas expressões tradicionais relacionadas ao falecimento de um monarca e sua subsequente substituição, como o francês "Le roi est mort, vive le roi!", usada oficialmente para anunciar o falecimento do monarca francês e a imediata ascensão de seu sucessor. Em uma monarquia, a sequência daqueles que ocupam o cargo de Chefe de Estado é denominada de sucessão (ou ordem de sucessão). A sucessão monárquica apresenta inúmeras variações metodológicas que podem decorrer da região, cultura, período, mas geralmente estabelece determinadas condições ou regras que possibilitam a escolha da pessoa mais indicada para se ocupar o trono de dado monarca no caso da vacância do mesmo, instituindo restrições para essa seleção, de forma a limitá-la a um grupo muito pequeno de pessoas, sejam advindas de uma casta social específica ou da descendência de determinado monarca passado. E esse processo sucessório tem um papel central no imaginário da tradição que sustenta o 670 BURKE, Peter. A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luis XIV. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, p.17.

regime, geralmente ligado direta ou indiretamente aos mitos fundadores dessa tradição. Diferentes culturas e épocas estabeleceram diversas regras para organizar suas ordens de sucessão. Excluindo as monarquias eletivas, como o Sacro Império Romano Germânico e o Vaticano, onde a sucessão não está (ou não esteve) claramente estabelecida, bem como eventuais casos excepcionais, as demais monarquias tipicamente são (ou foram) hereditárias, ou seja, o direito ao Trono passa de uma pessoa à outra na forma de herança, instituindo o que se convencionou a denominar de dinastia, em que a coroa se mantém ligada a certa família (não necessariamente biológica), prática cristalizada no Ocidente a partir da Idade Média e profundamente sistematizada durante a Idade Moderna. Tal modelo sucessório enraizou-se de modo tão intenso no imaginário ocidental que acabou por se tornar um pressuposto para um monarca ser sucedido hereditariamente por seu filho mais velho em seu falecimento. A Idade Média trouxe consigo vários modelos sucessórios hereditários sistematizados, conhecidos também como leis de sucessão, e regiam (e ainda regem nos dias de hoje) o modo como as ordens de sucessão eram estabelecidas. Exemplos dessas leis de sucessão incluem a lei sálica (que exclui completamente da sucessão qualquer mulher, bem como ramos descendentes por ramos femininos), a semi-sálica (que exclui as mulheres de ocuparem a função de monarca, mas admitem descendentes masculinos de ramos femininos na ausência de ramos masculinos apropriados), primogenitura (que ordena a sucessão a partir dos filhos mais velhos do sexo masculino seguidos dos filhos do sexo feminino), primogenitura absoluta (que ordena a sucessão baseada na primogenitura, independente do gênero), entre diversas outras, praticadas nas diversas monarquias existentes. E essas leis de sucessão gradualmente se consolidaram no Ocidente (muito embora outras regiões, como Japão e Coréia, também tivessem leis de sucessão próprias), incorporando-se às tradições que fundamentavam a existência de suas monarquias. Com o advento do Estado Moderno, essas leis já estavam profundamente atreladas ao próprio arqué do regime monárquico, sendo de fundamental importância para a existência e manutenção desses regimes. Essas leis de sucessão, como apontado acima, tornaram-se, lentamente, uma das características básicas para um regime monárquico ser reconhecido como um Estado Moderno tal por seus pares. E no século XIX, essas leis de sucessão, já incorporadas nos fundamentos que regiam a existência das monarquias no Ocidente,

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

35 1

tornaram-se um elemento de civilidade de um Estado, que possibilitariam o Progresso da mesma. “Estados incivilizados, barbáricos”, como as repúblicas sul americanas do século XIX, onde golpes e ditaduras ocorriam com frequência, eram vistos como instáveis demais para que o país progredisse continuamente. Da mesma forma, muitas das pequenas monarquias localizadas fora do Ocidente, aos olhos os europeus, careciam de tradições consolidadas que sustentassem o regime e a estabilidade de suas instituições, essenciais para o desenvolvimento de uma civilização.

Família Imperial: Os Braganças no Brasil O Brasil, país abordado nesse estudo, tentou arduamente, durante o século XIX, desde sua emancipação política até a abolição de sua monarquia, caminhar nos passos de suas contrapartes europeias, e constituir um regime que pudesse ser considerado, aos olhos dos reis do Velho Mundo como igual, civilizado e moderno. E essa visão de civilidade e modernidade transpassava as instituições, e alcançava até mesmo a própria monarquia no Brasil, sempre buscando por legitimidade e respeito frente às demais monarquias. O Império do Brasil, instaurado no processo que emancipou e unificou as colônias portuguesas da América, divergiu das demais nações que se emancipavam no continente, formadas a partir das colônias espanholas e constituidoras de pequenas repúblicas. Sob a égide do Príncipe-Regente de Portugal, Dom Pedro I, foi proclamada uma monarquia que centralizaria praticamente metade da América do Sul em torno de sua sede no Rio de Janeiro e, pouco depois, iniciaria um processo singular de construção nacional, tentando combinar elementos diversos nativos da América em uma estrutura essencialmente européia de sistematização para as instituições monárquicas. Durante sua emancipação, o recém-nascido império herdou de Portugal tanto a base para a sua tradição monárquica, como costumes, ritos e tradições, quanto a própria casa reinante dos Bragança. Originalmente, a Casa Real de Bragança (cujo título oficial é “Sereníssima Casa de Bragança”) foi a dinastia que reinou sucessivamente em Portugal e todo seu império colonial ultramarino desde o fim do domínio espanhol em 1640, até a queda da monarquia portuguesa em 1910. Seus reis, descendentes das dinastias anteriores

(Avis e Borgonha), e até mesmo de dinastias célebres, como os Capetos franceses, reinaram em Portugal sob o absolutismo monárquico até princípios do século XIX, quando a Revolução do Porto, de cunho liberal, os forçou a aceitarem o regime monárquico constitucional. Em sua guerra contra o Imperador Napoleão Bonaparte, quando as tropas francesas ameaçaram invadir o território metropolitano de Portugal, a família imperial decide transferir a sede da capital do reino para a colônia do Brasil, instalando o aparato burocrático transferido de Lisboa para o Rio de Janeiro, que já contava com instituições implantadas durante as reformas executadas pelo Marques de Pombal. Como nos conta Ronaldo Vainfas

671

, as reformas infraestruturais de Pombal também

tinham como intuito possibilitar, em caso de necessidade, a transferência da Capital do Império de Lisboa para algum outro ponto do Império que fosse apropriado. Essa medida já estava sendo cogitada pelo chefe de governo Rodrigo de Sousa Coutinho, mas só tomou forma quando as forças de Napoleão iniciaram guerra contra os países próximos, e Portugal se viu na iminência de uma invasão francesa. Com isso, a saída encontrada foi empregar a transferência da Corte como uma manobra visando evitar a captura da família real pelos franceses, que resultaria na consequente derrota e rendição de Portugal na guerra, dando início ao que Maria Odila da S. Dias chamou de “interiorização da metrópole” 672. Essa transferência, longe de ter sido inócua, trouxe uma mudança sensível para o panorama político de Portugal. O Rio de Janeiro, antes sede de uma colônia, e que respondia diretamente à metrópole, agora se tornava sede da capital de todo o reino, enquanto Portugal, sob ocupação francesa, era relegada à uma situação marginal. Pouco depois, a elevação do Brasil à condição de “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves” em 16 de dezembro de 1815, pôs oficialmente termo à condição de subordinada que em que as colônias americanas de Portugal se encontravam, tornando nesse momento o Brasil parte integrante do reino e sede da capital do império ultramarino português, alcançando para as elites do Brasil relevância e influência nos assuntos do reino.

671 VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, v. Transmigração da Corte. 672 DIAS, Maria Odila da S. A interiorização da metrópole. In: C. G. Mota (org.). 1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972, pp. 160-84

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

35 3

A situação privilegiada do Brasil no Reino Unido permaneceu praticamente inalterada até a supracitada Revolução do Porto, quando os revolucionários lusitanos exigiram o retorno da família real, residente no Rio de Janeiro, para Lisboa, e a formulação de uma constituição para o reino. Com a partida da família real para Portugal em 1821, deixaram no Rio de Janeiro como Príncipe-Regente do Brasil o herdeiro do trono português, Dom Pedro de Alcântara, reinando em nome de seu pai, Dom João VI. E, nas cortes deu-se o inicio de um processo de cerceamento da autonomia política do Brasil enquanto parte integrante do reino, onde decretos e medidas foram tomados para limitar a influência que o Brasil tinha nos assuntos do reino. Isso resultou na resistência, por parte dos luso-brasileiros, às medidas tomadas pela capital, na tentativa de assegurar seu espaço político e os privilégios adquiridos com a elevação do Brasil em 1815. Resistência que se estendeu aos próprios portugueses, e um sentimento de antilusitanismo (ou seja, um sentimento de preconceito com os nativos de Portugal e os defensores das restrições impostas pelas cortes lusitanas ao Brasil) começou a ganhar forma no Brasil. Essa resistência das elites, ameaçadas de verem retrocedidas suas recentes conquistas políticas e econômicas, faz com que elas utilizem-se dos meios possíveis para tentar manter sua posição, como, por exemplo, tentando impedir o regresso do Príncipe-Regente à Portugal quando as cortes assim o exigiram, no episódio que ficou conhecido como “Dia do Fico”, tido pela historiografia tradicional como o ponto de partida para o movimento emancipacionista brasileiro

673

. Paralelamente à exigência

da volta do Príncipe-Regente à capital, os decretos tentaram estabelecer juntas governativas no Brasil, que respondessem diretamente à Lisboa, e não ao Rio de Janeiro (capital do Reino do Brasil), bem como dissolver parte do aparato judicial implantado no país com a transferência da corte portuguesa, transferindo a jurisprudência desses assuntos para Lisboa. O apego ao Príncipe-Regente e à sua permanência demonstra o grau de organização que detinham essas elites políticas e econômicas, tanto liberais quanto conservadoras, em oposição às medidas das cortes portuguesas. O retorno de Dom Pedro à Lisboa sob as ordens das cortes, para essas elites certamente resultaria em 673 VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, v. Dia do Fico.

uma perda substancial de autonomia, possibilitando Portugal retroceder com a liberdades concedidas ao Brasil, como os decretos assinados demonstravam. Esse movimento disseminou e intensificou nelas o anseio pela emancipação política do Brasil como uma vertente mais radical à manutenção da autonomia dentro do Reino Unido, que se estava cada dia mais difícil de efetivar-se. Esses anseios foram concretizados no dia 7 de setembro de 1822, sob a tutela do político José Bonifácio, advindo das elites agrárias da Província de São Paulo, quando o então Príncipe-Regente proclama a independência política das colônias lusitanas na América sob sua autoridade, emancipando politicamente o Reino do Brasil daquele de Portugal e sendo aclamado e coroado como Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil “pela graça dos povos e de Deus”

674

,e

sob o apoio das elites políticas e econômicas, muitas delas ligadas à maçonaria. A emancipação política como foi efetivada lançou as bases para um Estado brasileiro independente de Portugal, manteve o regime monárquico no país e, apesar do antilusitanismo das elites brasileiras, o trono sob o domínio da mesma dinastia que estava em Portugal naquele momento, a Casa de Bragança. Assim, transplantados para o novo Império, o modelo tradicional português pôde encontrar uma nova nação onde pudesse desenvolver-se. O novo Estado, com pretensões a ser uma nova nação, encontrava-se, nesse momento, ainda precariamente arquitetado. Apesar de ter recebido certa infraestrutura dos portugueses, ele ainda não era autossuficiente, tanto política, econômica quanto juridicamente. Seu aparato jurídico derivava das Ordenações Filipinas, instituídas ainda sob o domínio espanhol pré 1640. Suas relações exteriores eram precárias, com pouco reconhecimento internacional e praticamente nenhum tratado externo. Como uma monarquia, recebia pouca consideração dos regimes republicanos que se proclamavam na América, e a recíproca era verdadeira: temendo a massiva participação popular que alguns dos movimentos de independência na América apresentaram, bem como rebeliões escravos, tais como as rebeliões presentes no Haiti, as elites brasileiras optaram por uma saída menos revolucionária. Sem uma constituição, o novo Império ainda dependia das instituições deixadas pelos portugueses para a administração de uma colônia, alguns deles não totalmente adequados a um Estado soberano. Da mesma forma, a monarquia, apesar de teoricamente nacional, ainda carecia de uma 674 VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, v. Independência.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

35 5

caracterização nesse sentido. Os costumes relacionados ao monarca eram, em geral, advindos de Portugal. A Aclamação do monarca era uma tradição real portuguesa, iniciada na Guerra da Restauração pela Dinastia de Bragança; o beija-mão, as relações entre o nobre e seus cortesãos, o catolicismo como religião oficial do Estado, os graus de títulos de nobreza (barão, visconde, conde, marquês, duque), eram todos advindos de Portugal, e herdados pela monarquia brasileira com sua implantação no Brasil. As únicas exceções dignas de nota são os nomes dos títulos de nobreza brasileiros, geralmente inspirados em locais ou nomes brasileiros em invés de portugueses; assim como o próprio título monárquico de Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, inspirado no título de Imperador de Napoleão Bonaparte, o qual Dom Pedro I admirava (e que, ironicamente, guerreou contra sua família e os forçou a transferirem a capital de seu reino para o Rio de Janeiro). No restante, a monarquia brasileira era praticamente uma “versão tropical” da monarquia portuguesa e, como já dito, com pouco reconhecimento e prestígio internacional. E foi a partir desses elementos que o Império do Brasil começou a constituir seu Estado e, posteriormente, arquitetar sua ideia de nação de maneira mais concreta.

Dom Pedro II Dom Pedro II, nascido em 2 de dezembro de 1825 em terras brasileiras, foi o segundo e último monarca a reinar no Império do Brasil, e o único brasileiro nato a exercer tal cargo. Filho de Dom Pedro I e da Imperatriz Leopoldina, perdeu sua mãe com menos de um ano e idade, e foi abandonado pelo pai aos cinco. Reinou (nominalmente) da abdicação de seu pai em 1831 até a deposição da monarquia em 1889, sendo, como aponta Roderick Barman (2012), o chefe de Estado da América que permaneceu por mais tempo em sua função, junto de Fidel Castro de Cuba. Durante seu reinado, contribuiu para o florescimento das ciências, das letras e das artes, para a gradual abolição da escravidão em todo o território nacional, a para a consolidação das instituições imperiais, que se encontravam enfraquecidas devido ao período regencial, embora historiadores como Sérgio Buarque de Hollanda (2010) lhe fossem muito críticos, acusando-o de inação diante de vários problemas de ordem nacional, como a escravidão. Na vida pública era implacável, perfeccionista, exclusivista e teimoso, não aceitando dividir suas prerrogativas ou permitindo o crescimento de poderes que se

rivalizassem com sua autoridade. Barman e José Murilo de Carvalho apontam que o velho monarca era extremamente centrado para com seu dever com a pátria, e defendia o que acreditava serem os interesses da nação com profundo zelo e perícia, bem como habilidade com as sutilezas da burocracia e protocolos estatais. Ao mesmo tempo em que era um monarca assaz erudito, era notadamente um “rei cidadão”, como apontou Barman, comparando-o à figura do rei Luís Filipe de Órleans, monarca da França. Apesar de, em seus anos e juventude, estar cercado com a ritualística oficial, utilizando-se sempre dos trajes oficiais, conforme envelheceu, o imperador, pouco a pouco, os trocou por vestimentas mais simples, civis, reservando as reais apenas para solenidades, como as Falas do Trono. Apesar de exercer sua função com incansável e teimosa diligência, Dom Pedro II encontrava-se idoso e enfraquecido no momento da Proclamação da República, e com um estado de saúde bastante delicado devido à diabetes e à falta de cuidados com a alimentação durante sua vida (apesar de ser diabético, comia muitos doces, o que agravava o quadro). Seu médico pessoal, o doutor Cláudio Velho da Mota Maia (conde de Mota Maia), acompanhava o seu quadro, e o velho monarca já havia feito uma viagem à Europa com fins medicinais. Na partida, temia-se até mesmo que o imperador viesse a falecer no exterior e nunca retornasse 675. Com o fim do regime, os republicanos o exilam, e ele parte com sua família para Portugal, posteriormente se estabelecendo na França com a filha, e depois sozinho. Tem início uma rotina de viagens, visitas e estudos, perdendo a esposa pouco depois. Nessas viagens, visita pontos turísticos, museus, personalidades e amigos, enquanto defendia que uma restauração seria legítima apenas se fosse feita pacificamente. Contudo, apesar das intenções que o antigo monarca apresentava, a restauração de seu trono não era uma perspectiva tão próxima, especialmente devido ao seu estado de saúde. Idoso, doente e abatido, dificilmente resistiria no trono por muito tempo, o que inquietava aqueles que conspiravam pela restauração da monarquia. Sendo assim, quando Dom Pedro II viesse a falecer, os monarquistas no Brasil não perderiam apenas um pretendente ao trono ou monarca, perderiam também o eixo comum a todos os principais grupos monarquistas brasileiros, capaz de unir os interesses das diversas correntes restauracionistas. 675 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.428-431.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

35 7

Logo todas as preocupações seriam efetivadas com a morte de Dom Pedro II em 1891, de uma pneumonia aguda, agravada por seu sistema imunológico enfraquecido pela ação do diabetes. O clima frio do inverno francês não ajudou, e seu falecimento comoveu os familiares e amigos, bem como para muitos de seus admiradores e antigos súditos. Na França, o falecido monarca recebeu as honras fúnebres de um Chefe de Estado, com direito à cerimônia oficial pelo governo francês, em um rito que durou três dias, a despeito dos protestos feitos pelo governo republicano, sendo enterrado na terra natal de sua família. Na morte, a redenção: fora lembrado como o grande imperador de outrora, e não como o brasileiro exilado na França tal como encontrava. Com sua morte, o luto. Mas também foi levantada novamente a fatídica questão: Quem assumiria a Coroa caso a monarquia fosse restaurada? Quem se sentaria no trono que outrora pertencera a Dom Pedro II?

1.5 Sucessores As discussões acerca da sucessão ao trono imperial, como um assunto de Estado, já estava em pauta há tempos, antes do golpe republicano começar a ser conspirado, enquanto a monarquia ainda estava firme e forte e a crise estrutural do regime ainda não estava tão desenvolvida676. O monarca, apesar de querido e respeitado enquanto soberano da nação, já começara a apresentar sinais de fraqueza. Sua idade avançara, e o seu estado de saúde, ao contrário, se complicava. Embora diligente no cumprimento de suas funções, já estava claro que ele não conseguia acompanhar o passo do Estado. Os tempos eram outros, e o monarca começava a ficar para trás, não conseguindo acompanhar passo a passo a evolução tecnológica e política como fazia outrora. Estava claro que, em pouco tempo, o trono estaria vacante e, como é natural a uma monarquia, deveria ser ocupado. E a discussão sobre quem ocuparia o trono e, simultaneamente, incorporaria toda a mística relacionada a ele, sendo o novo soberano a zelar pela nação, já 676 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

preocupava os membros da elite política. Como foi demonstrado anteriormente, a tradição estabelecida pela Constituição de 1824 apontava que os direitos dinásticos à sucessão imperial caberia à filha de Dom Pedro II, a Princesa Isabel. Mas essa possibilidade não era consenso entre os apoiadores do regime monárquico. Várias opiniões diferentes se formavam, e grupos de monarquistas favoráveis a essa ou àquela proposta se articulavam, pública ou privadamente. Constitucionalmente, os direitos ao trono pertenciam à Princesa Isabel, mas isso não significaria uma transição unânime de poder entre pai e filha. Ela, por questões de gênero, posicionamento político e religiosidade, não contava com apoio unânime, ou mesmo inquestionável, entre a elite política. Sua religiosidade era notória, lhe valendo até mesmo a alcunha pejorativa de “beata” que recebera de seus opositores. O fato de ela ser mulher em uma sociedade deveras patriarcalista, que muitas vezes não considerava mulheres como capazes de governar

677

, agravado ainda

mais pela aversão que seu marido, Conde D’Eu, causava entre os políticos e militares brasileiros 678 679 por ser estrangeiro, ter forte sotaque e maneirismos e posicionamento fortemente abolicionista e liberal, e a possibilidade dele reinar por meio de sua esposa 680

. Sua militância na causa abolicionista piorava ainda mais a situação, fazendo com

que parte da elite composta pelos grandes proprietários rurais escravocratas rompesse seus laços com a princesa e se indispusesse com a monarquia. Outros propunham alternativas à princesa, baseadas muitas vezes no princípio de ignorar (ou “pular”) seus direitos na linha de sucessão, transferindo seus direitos ao seu filho Pedro de Alcântara ou mesmo ao seu sobrinho Pedro Augusto. Cada proposta tinha seus defensores, seus princípios, seus argumentos e motivações, e a questão era tratada de maneira mais ou menos formal até que o golpe republicano botasse um ponto final em todas as questões sucessórias ao derrubar o regime monárquico e exilar a família imperial do país. 677 BARMAN, Roderick J. Princesa Isabel do Brasil: Gênero e poder no século XIX. São Paulo: Ed. Unesp, 2005. 678 DEL PRIORE, Mary. O príncipe maldito – Pedro Augusto de Saxe e Coburgo: uma história de traição e loucura na família imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. 679 DEL PRIORE, Mary. O castelo de papel: uma história de Isabel de Bragança, princesa imperial do Brasil, e Gastão de Orléans, conde D’Eu. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. 680 JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986., p. 43.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

35 9

Porém, isso não significou o fim dessa questão sucessória. Como aponta Janotti, o movimento monarquista começa a se articular no exato momento em que o golpe republicano derruba o regime, compreendendo que a mudança era ainda reversível. E, nessa militância pela volta do regime caído, essa problemática tornavase central, pois ao tentar constituir (ou reconstituir, no caso) um regime monárquico, torna-se essencial para o movimento ter definida a figura a ser entronizada. Precisavam ter determinado quem assumiria a “mística do trono” na restauração 681. Apesar da possibilidade de entregar o trono a alguma outra casa real europeia ter sido discutida entre os monarquistas, segundo Janotti e Del Priore, a tradição estabelecida no Império mantinha os monarquistas reunidos em torno da dinastia de Bragança, fiéis a família imperial. Havia, ainda, alguns monarquistas que não mantinham um posicionamento definido quanto a essa questão sucessória, apoiando a restauração do regime como intento principal, independente de qual dinasta entronizado. Apesar das diversas discordâncias entre os restauracionistas, havia o consenso de que, na restauração monárquica idealizada por eles, a Casa de Bragança seria devolvida ao seu trono de direito.

1.6 Questão da sucessão: levantada, mas não resolvida. A questão da sucessão monárquica foi, durante os anos finais do Segundo Reinado, levantada, porém nunca devidamente resolvida. E, para um Império em profunda crise institucional, essa questão estar relacionada com um elemento tão fundamental a uma monarquia como a própria figura do soberano pode ter contribuído para agravar a própria crise, obstando as tentativas feitas para tentar impedir a queda do regime, como ocorreu ao final do ano de 1889. O regime imperial instituiu, durante sua emancipação e organização política primária e em sua constituição, uma lei de sucessão bastante clara, bem como diversas leis que regulamentavam a atuação política do monarca e davam disposições diversas acerca de suas funções e aspectos da vida pessoal (nascimento, maioridade, casamento, residência, incapacidade, etc.). Essas leis tiveram como objetivo primário fazer essa regulamentação propriamente dita, mas por outro lado também foram 681 JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986.

criadas com o intuito de estabelecer, para o Império, fundamentos para se pensar em uma tradição monárquica própria, que pudesse ser reconhecida pelos países do Velho Mundo. O Brasil, país de independência recente, carecia do reconhecimento dos demais países, e em especial das demais monarquias, para poder manter sua independência política, bem como para ser capaz de negociar com os demais países europeus e, principalmente, ser aceito por eles como uma nação civilizada. Por isso, a necessidade de se pensar e consolidar uma tradição monárquica. Porém, como o próprio nome indica (tradição vem do latim traditio, “passar adiante”), uma tradição não se consolida da noite para o dia: ela é o resultado da internalização da sucessiva repetição do ato, construído pelo contínuo passar adiante, através das gerações. Isso significa que o Império brasileiro não constituiu, necessariamente, uma tradição monárquica apenas pelo fato de se instituir uma série de regulamentos acerca da monarquia. Esses preceitos, todavia, foram estabelecidos para servir como uma base para essa tradição monárquica, transplantada de Portugal para o Brasil e, sucessivamente, miscigenada com diversas outras nações, como a espanhola, a francesa ou a inglesa, mas nunca consolidada por completo, pois não fora totalmente internalizada pelos dirigentes do Brasil desde o Primeiro Reinado até o fim do Segundo. Em total não observância aos preceitos constitucionais estabelecidos, o primeiro monarca fora pressionado a abdicar. A regência trina estabelecida foi logo destituída em prol de uma regência uma e o segundo monarca foi declarado, precocemente, maior, por meio de um golpe conservador. O Segundo Reinado, poderia ser compreendido, nesse sentido, pelas palavras de José Murilo de Carvalho: (...) A especificidade do sistema imperial em relação a outros sistemas e a outras monarquias provinha pela dubiedade das ideias e das instituições. Não só era teatro a política: era teatro de sombras. Os atores perdiam a noção exata do papel de cada um. Cada um projetava sobre o outro suas expectativas de poder, criava suas imagens, seus fantasmas. Os proprietários, embora dessem sustentação à monarquia, passavam a sentir-se marginalizados, excluídos, hostilizados pela Coroa. Os políticos não sabiam ao certo se representavam a população ou se respondiam ao Imperador. A elite passava a acreditar numa democracia que não estava na Constituição e a cobrar sua execução do Poder Moderador. O Rei, por sua vez, esforçava-se por seguir a ficção democrática na medida em que as falhas dos mecanismos da representação o permitiam. As distorções eram maiores quando se tratava do poder e do papel do Rei. Fruto inicial de pacto político, ele passava a ser o centro do sistema. Um

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

36 1

poder derivado, e que nunca o deixara de ser, tornava-se, para efeito da realidade política, incontrastado.682 A suposta tradição monárquica, dessa forma, tentava continuamente se consolidar nesse jogo entre realidade e encenação, perpetrado pelas elites dominantes durante todo o Segundo Reinado, quando ela começa a ganhar forma, modelada a partir da própria figura do monarca Dom Pedro II. Poder-se-ia dizer, até mesmo, que a tradição monárquica que tomava forma no Segundo Reinado era, justamente, à maneira do imperador, cuja figura, sempre onipresente, parecia transcender à sua função como monarca e se tornar parte integrante da própria instituição da monarquia. E, ao considerar a própria resistência do imperador em permitir a constituição de um poder concorrente ao seu dentro do próprio Estado, pode-se perceber que, ao final do Segundo Reinado, só poderíamos pensar na existência de um sucessor de jure, mas nunca na existência de um sucessor de facto. Tanto a Princesa Isabel que, constitucionalmente, seria por direito a herdeira do trono de seu pai, quanto Pedro Augusto que, por muito tempo, foi considerado como sucessor de Dom Pedro II, nunca conseguiram alcançar para si mesmos o reconhecimento inconteste de seus direitos garantidos por uma tradição que ainda não existia, por ainda não haver sido devidamente internalizada.Discutia-se a possibilidade de se ignorar os direitos á sucessão da princesa, o que seria inconstitucional. Mas, como Del Priore aponta (2007), não fora da mesma forma inconstitucional o Golpe da Maioridade? E, principalmente, como se pode pensar em uma tradição sem que ela tenha sido consolidada por uma sucessão de entregas às gerações posteriores? Dessa forma, pode-se pensar em uma tradição monárquica consolidada de forma inconteste no Brasil Império, especialmente no tocante à sucessão? E, ao pensar nos momentos que sucederam a Proclamação da República, esse quadro se torna ainda mais intrincado. Pois se não é, necessariamente, possível compreender a existência, no Brasil, de uma tradição monárquica consolidada no tocante à sucessão, conjecturar a respeito disso no pensamento do pequeno grupo dos descontentes com o novo regime que militavam e conspiravam pela subversão do sistema vigente e a restauração do regime anterior, torna-se, desse modo, um exercício com muitos novos elementos para a reflexão. 682 CARVALHO, José Murilo de. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988.

A falta de uma participação ativa da família imperial no movimento monarquista no período pós abolição também contribuiu para construir, nos monarquistas, um sentimento de orfandade com relação à família imperial. Com pouco contato e nenhuma ajuda financeira ou moral, os monarquistas tinham dificuldade em manter laços estáveis com os membros do Ramo de Órleans e Bragança, enquanto o ramo de Saxe-Coburgo-Gotha aos poucos se tornara praticamente desconhecido aos subversivos da república, que mantinham cada vez menos contato com eles. Com essa pouca participação, o movimento permaneceu atuando praticamente por conta própria, organizando-se de maneira bastante autônoma aos príncipes na França, embora o conde D’Eu ainda ajudasse na articulação entre os dois lados. Com o pouco interesse apresentado pelo príncipe Pedro D’Alcântara em participar da militância do movimento monarquista, o movimento continuou politicamente distante da família imperial. Essa distância apenas começou a diminuir após o segundo filho da Princesa Isabel, Dom Luís de Órleans e Bragança, assumir a chefia da casa imperial anos mais tarde com a renúncia do irmão em 1908, passando a se corresponder ativamente com o movimento monarquista e adotando uma posição de liderança no movimento. Ao assumir a posição de Chefe da Casa Imperial Brasileira, ele tem a árdua missão de tentar reconstruir e reanimar a militância monarquista, já enfraquecida pelas primeiras décadas do regime republicano, e reorganizar a precária militância do movimento.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

36 3

Docência, História, e Linguagens: Novas Abordagens no Processo de Ensino e Letramento de Crianças Luis Eduardo Bove de Azevedo Graduando em História / UNESP Franca/SP Resumo Preocupado com a licenciatura e o bacharelado dos estudantes de História,o presente trabalho propõe algumas das formas pelas quais a disciplina História pode ser transmitida e ensinada nas escolas, através de dois recursos predominantes: o literário e o multimídia, por intermédio de livros e filmes, respectivamente, para o desenvolvimento e formação do processo de letramento dos alunos, a fim de abordar e ampliar a sua inserção no espaço de criação. Através do estudo de teóricos da área da educação, busca-se compreender como o sujeito (indivíduo) pode participar ativamente dos campos social, educacional e familiar, de modo a compreender as relações interpessoais no processo de letramento. Palavras-chave: Ensino de História; Letramento; Espaço de Criação. 1. INTRODUÇÃO

O ensino de História para crianças que estão em níveis iniciais nas escolas encontra, atualmente, uma série de entraves que impedem a sua ampliação e prejudicam a assimilação de conteúdo por parte das mesmas, sendo necessária, neste caso, a busca por novas metodologias e práticas docentes que possam cativar a atenção dos alunos e, por conseguinte, transmitir o conhecimento adequado. Atento a isso, este trabalho mostra-se de suma importância para a inovação das práticas de ensino, uma vez que, alicerçado por grandes teóricos da área da educação, procura dar novas expectativas de ensino e práticas pedagógicas ao professor – pesquisador, que necessita estar atualizado às novas metodologias, a fim de alcançar e cativar o maior número de alunos e, finalmente, ampliar o espaço de criação dos mesmos. Os estudos acerca do letramento de crianças são importantes agentes para se entender, efetivamente, como é possível, através da interdisciplinaridade, apreender elementos que ampliem a inteligibilidade dos alunos nas diversas áreas do conhecimento. Por intermédio deste trabalho, será possível compreender, portanto, alguns dos principais pontos tangentes ao ensino de História e interligados a duas formas de transmissão de conhecimento: a literária (com o auxílio de literaturas nacionais e/ou internacionais) e a multimídia (através da exibição e debate de filmes). Com o apoio conceitual de Magda Soares, Leda Tfouni, Jean Biarnés, Erving Goffman, entre outros teóricos que debatem acerca dos conceitos de espaço de criação, alfabetização e letramento, será possível, através de estudos como este, que contribuem para a área da educação, desdobrar os referidos conceitos e inseri-los, pelos educadores, ao meio em que os educandos convivem e participam.

2. OS PROBLEMAS A educação no Brasil passa por uma série de problemas relacionados à leitura e à escrita, desde os anos iniciais de aprendizagem (a pré – escola e o ensino fundamental I), aos níveis mais elevados, como o médio e, de forma recorrente, o superior. Tais problemas são evidenciados na má qualidade do ensino, passando pela evasão escolar, pela falta da alfabetização dos alunos, o excesso de alunos por salas de

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

36 5

aula, mas também pela falta de professores qualificados e do domínio de uma série de metodologias por parte dos mesmos, além de alguns outros problemas.683 Um dos principais problemas abordados neste trabalho refere-se às novas possibilidades no ensino de História para crianças, que encontra muitas dificuldades atualmente devido aos problemas já mencionados, com atenção especial aos entraves no desenvolvimento do espaço de criação e no letramento dos alunos, sendo este último (letramento) definido por Magda Soares 684 como “[...] o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita.”685 Sendo um dos principais problemas ao professor, a falta do letramento precisa ser tratada com a devida cautela, pois, funcionando como uma “alavanca” ao desenvolvimento de várias habilidades, pode – se mostrar prejudicial aos alunos que não o desenvolveram. O letramento compreende, em linhas gerais, a capacidade do sujeito (no presente caso, a criança) em se utilizar das habilidades de leitura e de escrita (a alfabetização) para participar ativamente dos meios escolar, familiar, cultural e social (tal conceito será mais bem discutido adiante). Ou seja, compreende a participação efetiva da criança em ações do dia a dia, através de ideias, atividades, aprendizagens, ensinamentos e intercâmbio de conhecimento, cuja consequência será a ampliação do seu espaço de criação e a respectiva saída da condição resistente à aprendizagem (tal resistência é conhecida como imobilismo686). A superação da condição de iletrado (conceito diferente de analfabeto, deve-se ressaltar) permite à criança desenvolver sua inteligibilidade acerca dos fatos cognoscíveis e presentes em seu cotidiano. Através da análise das relações familiares 683Disponível em: . Acesso em: 11 out. 2015. 684 Magda Becker Soares é graduada em Letras, doutora e livre – docente em Educação. Atualmente, é pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita – Ceale – da Faculdade de Educação da UFMG. 685 SOARES, Magda. Letramento. Um tema em três gêneros. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 18. 686 Sobre imobilismo, ver: GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

das crianças, como Donald Winnicott687 ilustra em seu livro “A criança e o seu mundo”688, é possível depreender que a criança busca uma série de relações sociais ou, até mesmo, afetivas com pessoas de outros ambientes, influenciada pelas relações familiares positivas ou negativas. A ideia central presente no livro nos mostra que, no caso de crianças que possuem uma relação familiar conflituosa, elas irão buscar, no ambiente escolar, suprimir sua carência afetiva e laços de amizade, prejudicando, portanto, o processo de ensino – aprendizagem, necessário à sua faixa etária. Em famílias cujos relacionamentos são bons, por sua vez, as crianças possuem mais propensão a desenvolver suas habilidades cognitivas na escola, por não necessitarem “deslocar” a atenção do campo familiar para o escolar, objetivando compensar as faltas. Esta ação, então, não prejudicará o seu avanço em cada uma das etapas necessárias ao longo do processo de aprendizagem. Uma das possíveis causas identificadas com este estudo pauta-se, portanto, nas relações familiares das crianças, as quais funcionam como agente externo em seu aprendizado. Outro aspecto importante, que é possível ressaltar neste estudo, é o papel do letramento como fator decisivo para a eliminação do imobilismo e para proporcionar, às crianças, as condições necessárias para sua evolução. Tal tema será abordado a seguir. 3. LETRAMENTO: UM AGENTE SOCIAL Como já definido acima, o letramento é a condição que adquire um grupo ou indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita. Ademais, pode-se diferenciar tal processo – o de letramento – com o processo de alfabetização. Leda Tfouni689, por exemplo, caracteriza a alfabetização como “[...] um processo de aquisição individual de habilidades requeridas para a leitura e escrita, ou como um processo de representação de objetos diversos, de naturezas diferentes.”690 687 Donald Woods Winnicott foi um pediatra e psiquiatra inglês, que desenvolveu sua psicanálise com base nas relações familiares entre a criança e o ambiente no qual ela está inserida. 688 WINNICOTT, D. W. A criança e o seu mundo. Tradutor: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982. 689 Leda Verdiani Tfouni é linguista, licenciada em letras pela UNESP de Araraquara, doutora em Ciências pelo Instituto Estudos da Linguagem da UNICAMP e livre – docente pela USP. 690 TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1997. p. 14.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

36 7

De forma sucinta, a referida autora ainda estabelece as diferenças entre ambos os processos (letramento e alfabetização): “Enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos socio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade.”691 A partir dessas definições, pode-se entender o letramento como uma importante ferramenta de interação social e utilização histórica, a partir do momento em que as pessoas letradas (que dominam a escrita e a leitura e se utilizam disso para interagir social e culturalmente) podem participar efetivamente de uma série de ações, sejam elas sociais, culturais ou educacionais, não como meros “espectadores”, e sim como sujeitos ativos e participativos, auxiliando e realizando a tomada de importantes decisões e, portanto, construindo a sua história dentro do seu campo de atuação. Intrinsecamente associado à educação, o termo letramento apresenta algumas distinções com relação à educação, apesar de não serem totalmente dissociados ou desconexos. Muitos estudos começaram a ser feitos a partir do crescimento da utilização deste termo, sendo que ele passou a ganhar significativa importância nos trabalhos a partir da década de 1990. Tal termo (letramento), como nos aponta Maria Longo Mortatti692 [...] é bem menos conhecido do que ‘educação’, e, por isso, maior espaço acabou sendo inevitavelmente ocupado com considerações que permitissem compreender a introdução e as possíveis definições do termo ‘letramento’ em nosso país, a partir da década de 1980. 693

O termo surge, no Brasil, a partir da segunda metade da década de 1980, sendo que uma das suas primeiras utilizações está presente no livro de Mary Kato 694, “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística”695. 691 Ibid., p. 20. 692 Maria do Rosário Longo Mortatti é licenciada em Letras pela UNESP Araraquara, mestre e doutora em Educação pela UNICAMP. 693 MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e letramento. São Paulo: UNESP, 2004. p. 117. 694 Mary Aizawa Kato é graduada em Letras e mestre em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela USP, além de doutora em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC – SP. 695 KATO, Mary Aizawa. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. 3 ed. São Paulo: Ática, 1990.

Nota-se, portanto, a preocupação de estudiosos da área da educação em fomentar as discussões acerca do letramento, uma vez que tal tema ganha proporções sociais e culturais, refletindo, por vezes, os problemas ou o avanço de determinado indivíduo ou grupo social. Para estabelecer conexões entre o ensino de História e o letramento, foram utilizados alguns importantes materiais de apoio, como será observado no capítulo a seguir.

4. METODOLOGIA Para uma análise mais apurada e concreta acerca de tais aspectos da leitura, escrita e letramento, atrelados ao ensino contemporâneo de História para crianças, foi preciso analisar uma série de resultados referentes à avaliação de ensinoaprendizagem 2014, de Língua Portuguesa, de algumas escolas de ensino básico do município de Franca e região, cuja faixa etária do projeto enquadrou crianças entre 09 e 11 anos, correspondentes ao 4º e 5º ano do Ensino Fundamental I. (Ver ANEXOS 1 e 2 da EMEB Padre César Gardini, Pedregulho / SP.) Foram identificados, a partir de tal análise, os seguintes problemas: incompreensão de enunciados, percebida através da dificuldade em interpretá-los; dificuldade com a interpretação de gráficos e tabelas; impossibilidade de antecipar o assunto tratado nos textos; dificuldades em fazer comparações entre textos de um mesmo assunto; entre outros. A partir daí, foi possível planejar uma série de atividades para suprir tais carências educacionais das crianças, com atenção especial ao letramento, fator fundamental para um bom ensino e aprendizagem de História. Planejaram-se algumas atividades e debates através de materiais de apoio e recursos para a facilitação e compreensão do conteúdo, que agiram de forma eficaz em tais objetivos. Exemplos de materiais utilizados para o auxílio nas atividades em grupo foram livros, tradicionais ou em quadrinhos, cuja temática era a História (Dom Quixote, O Cortiço, O menino do pijama listrado, Batman, Watchmen, etc.), e a exibição de trechos de filmes, sendo que a associação entre a literatura, a multimídia e a História

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

36 9

proporcionou aos alunos uma melhor assimilação entre os conteúdos, além de favorecer o debate entre ambos. Pautando-se em grandes nomes da área da educação, como Jean Biarnés, Leda Tfouni, Paulo Freire e Magda Soares, foi possível formular, coletivamente, determinadas formas de organização dos encontros com os alunos, a saber: a organização das salas de aula em círculos, a realização de grupos de discussão entre os alunos, atividades e oficinas lúdicas para que eles sintam-se mais familiarizados com o conteúdo, além de outras atividades, as quais serviram como suporte metodológico.

5. RESULTADOS E DISCUSSÃO Com a análise dos relatórios da avaliação de ensino – aprendizagem foi possível estabelecer as atividades realizadas, voltadas para o letramento, ampliação do espaço de criação e, sobretudo, ensino de História. Muitos são os entraves colocados aos docentes, uma vez que estes têm que lidar, diariamente, com as defasagens advindas de anos anteriores, além dos vários problemas pessoais dos alunos que podem e precisam ser identificados pelos educadores ao longo do contato com as crianças. Os relatórios das avaliações realizadas com o terceiro e quarto ano do ensino fundamental indicaram um índice elevado de problemas de leitura e interpretação de textos, sendo que o primeiro é condição fundamental para a realização do segundo. É possível, então, notar que os problemas encontrados no 3º ano do ensino fundamental permanecem e, no presente caso, demonstram uma contínua defasagem e aumento no 4º ano, evidenciada pelos baixos índices alcançados na avaliação. É, portanto, aí que o professor deve agir: através da busca por novas formas de cativar o aluno, tornando a esfera da sala de aula mais interativa e participante, uma vez que muitos alunos não se sentem “atraídos” a ir à escola. Com a devida atenção a questões tangentes ao letramento, é possível que a interdisciplinaridade, tão objetivada e necessária nos estudos, seja finalmente alcançada e possa refletir, positivamente, no esforço do professor, dos alunos e dos familiares.

Ampliar o espaço de criação é, além de conceber as condições necessárias ao desenvolvimento escolar das crianças, atribuir também as melhores formas de relacionamento com a família e “com o seu mundo”, como nos evidencia Winnicott.

6. CONCLUSÃO Após uma série de buscas e pesquisas realizadas em livros e sites, com ênfase na área de educação e uma de suas subáreas, letramento, foi possível identificar o papel do professor enquanto agente direto para alterar a realidade negativa do ensino de História nas escolas de Franca e região. Nota-se o papel fundamental do docente e sua atualização aos novos meios de propagação de conhecimento, através de recursos literários e/ou multimídia. Contudo, ainda é necessário realizar debates e discussões acerca de determinados temas, uma vez que estes auxiliam os professores a conduzir a matéria e contribuem, substancialmente, no desenvolvimento das aptidões cognoscíveis das crianças. Com a análise dos processos referentes às fases de educação de crianças, é possível traçar um plano de ensino voltado a suprir as necessidades de cada um dos níveis trabalhados, sem prejudicar alunos que estejam com maiores problemas para apreender o conteúdo e desenvolver suas competências. Após toda essa análise, pode-se, por fim, destacar que este projeto busca contribuir aos estudos atuais e futuros na área da educação, com importante destaque para os níveis iniciais de aprendizagem, mas, ainda, trata de medidas a curto e longo prazo que podem ser estabelecidas pelos docentes. Arraigado por uma série de conceitos importantes e metodologias eficazes, contudo, não somente baseado em aportes teóricos, mas também em práticos, tal trabalho serve como uma importante forma de suplantar os hiatos educacionais, sociais e familiares, através da relação entre os múltiplos campos do saber, sejam eles pessoais ou coletivos, o letramento e o ensino de História contemporâneo. Tais estudos são importantes meios de se compreender e se implementar as novas abordagens possíveis no ensino de História, uma vez que, atentas ao âmbito não escolar, mas também social, buscam suprir as necessidades das crianças.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

ANEXO 1

37 1

Figura 1: Avaliação de ensino – aprendizagem 2014, 3º ano A (Língua Portuguesa) Fonte: Relatório da Avaliação de Ensino – Aprendizagem 2014 – EMEB Padre César Gardini

ANEXO 2

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

Figura 2: Avaliação de ensino – aprendizagem 2014, 4º ano A (Língua Portuguesa) Fonte: Relatório da Avaliação de Ensino – Aprendizagem 2014 – EMEB Padre César Gardini

37 3

Casa de Madeira em Londrina : O Comércio e a Utilização das Edificações em Madeira696 Matheus Henrique Marques Sussai graduando em História – UEL697 Resumo No presente trabalho visamos apresentar os resultados de uma pesquisa de Iniciação Científica que mapeou as casas de madeira de um pedaço da região central de Londrina/PR. O enfoque principal do trabalho é discutir a apropriação que o comércio fez das casas de madeira de um perímetro do centro de Londrina, através do acervo resultante da pesquisa. De março de 2013, a julho de 2014, investigamos e criamos um acervo digital com informações sobre a história das casas, e com as fotografias que realizávamos no momento do mapeamento. Foram mapeadas 138 casas de madeira no perímetro estabelecido, e este trabalho visa discutir as diversidades do morar presentes nessas casas. As várias histórias de Londrina, a partir das memórias dos moradores, também foi foco da pesquisa, e será discutido neste trabalho. Palavras-chave: História; Memória; Casa de madeira; Londrina; Comércio. Introdução O presente trabalho visa apresentar os resultados de uma pesquisa de Iniciação Científica (IC/UEL), realizado entre março de 2013 e julho de 2014, que objetivou mapear as casas de madeira de um pedaço do centro da cidade de Londrina. Ao fim do trabalho de campo, um acervo digital, composto por fotos e informações sobre as casas, foi criado e está sob custódia do Centro de Documentação e Pesquisa Histórica (CDPH) da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Um dos tópicos do texto se destina a apresentar a metodologia utilizada para a pesquisa (tanto a parte teórica, quanto a prática), mostrando os principais objetivos desse mapeamento. As discussões dos textos e o embasamento teórico para pensarmos e realizarmos a pesquisa, diz muito do caminhar de um aprendiz de historiador, que se arrisca a investigar a casa de madeira enquanto objeto de estudo da história. Claro que aqui, especificamente para o estudo da história da cidade de Londrina. 696 Financiamento realizado pela Fundação Araucária.

697 Sob a orientação da Profa. Dra. Zueleide Casagrande de Paula

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

37 5

Os resultados de campo aparecem posteriormente a partir do número de casas mapeadas, e algumas considerações acerca do grosso da pesquisa. A breve amostragem de algumas imagens das casas de madeira vem para discutir as suas diversidades, as suas histórias, tanto das casas, como as várias histórias da cidade de Londrina, que a partir de cada morador e a sua memória, ganha uma nova interpretação sobre o passado, ganha uma nova versão698. Por fim, depois de apresentada a pesquisa, os seus resultados (qualitativos e quantitativos), e a análise de algumas fotografias das casas de madeira, está exposta uma tabela de relação das casas de madeira. Essa tabela clareia o estudo estatístico de quantas casas encontradas eram usadas para moradia, comércio, e outros fins. A casa de madeira se mostrou, a partir das memórias dos moradores, um objeto de estudo importante para a história de Londrina. Investigar os seus modos de morar se torna relevante para a pretensão de um estudo histórico da cidade. Metodologia e objetivos Antes de falar diretamente das metodologias deste trabalho, é importante colocar que a pesquisa realizada aconteceu concomitantemente com outra chamada: “O Inventário das casas de madeira na região central da cidade de Londrina/PR”

699

.A

metodologia de pesquisa levou em consideração as estratégias e as táticas para a resistência dos moradores/proprietários/locadores/locatários das casas de madeira a partir de “A Operação Historiográfica”

700

. Os escritos de Michel de Certeau nos

orientaram também em suas considerações sobre o fazer historiográfico, nesse caso, nosso fazer historiográfico como pesquisadores iniciantes, a respeito de onde se inicia esse fazer como “Lugar social” do pesquisador, de onde este produz. Para de Certeau, o estudo histórico está muito associado ao seu local de realização, em suas próprias palavras: “É o produto de um lugar”

701

. Em seguida vem

a “Prática”, a pesquisa, onde acontece a transformação de coisas do mundo em 698 CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 699 Realizada pela graduanda Sonia de Oliveira Dantas, também orientada pela Profa. Dra. Zueleide Casagrande de Paula (História – UEL). 700 CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 65-119. 701 Idem. Ibidem, p. 73.

documentos históricos: “[...] consiste em produzir esses documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto.”

702

. Por fim, a operação historiográfica se concretiza (não

impossibilitando outras interpretações sobre o documento) com “Uma escrita”, onde nesta se encontram tanto o lugar social, quanto a prática do historiador. É essa última que com as palavras dá sentido historiográfico ao mundo, ou melhor, àquilo que foi pesquisado. O “documento histórico” é um conceito que esteve, e ainda está em discussão a todo o momento, mudando de significado ao longo de novas abordagens sobre sua “condição”. Durante grande parte da história enquanto disciplina acadêmica, o documento escrito obteve uma enorme atenção enquanto um documento histórico, muitas vezes visto como portador de uma verdade única e inefável. É só com a Escola dos Annales, incluindo a sua terceira geração, também conhecida como “Nova História”, que “novos objetos”, “novos problemas” e “novas abordagens” foram aderidos à disciplina da História 703. Assim, o historiador passou a construir o seu documento com o olhar de pesquisador: aquilo que via como documento (digno de uma pesquisa histórica, cabível nas metodologias empregadas pela Teoria da História), passava a ser tido como um objeto possível de pesquisas para a área da História. Isso não excluiu a importância dos textos escritos para a História, mas ampliou o campo de pesquisa para o historiador. O historiador Lucien Febvre, tido como um dos fundadores da Escola dos Annales, ao lado de Marc Bloch, diz: A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. [...] Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.704.

702 Idem. Ibidem, p. 81. 703 FUNARI, Pedro P.; SILVA, Glaydson. Teoria da história. São Paulo: Brasiliense, 2008. p. 70-79. 704 FEBVRE, Lucien. 1949, apud LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. p. 530.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

37 7

Ou seja, até a casa de madeira, como é o caso da nossa pesquisa, e que muitas pessoas podem deixar de notar a sua importância para a cidade, pode ser vista como um documento histórico relevante para história e memória de Londrina. Aqui, no caso, não faltaram os documentos escritos, como apontou Febvre, mas a relevância está em olhar para a casa de madeira como um documento da história, que tem muito a dizer sobre a cidade. Para aprofundar a discussão teórica, a partir de Jacques Le Goff, vemos a casa por uma perspectiva de “documento/monumento” para a ciência da história, onde o documento é a escolha e a criação do historiador, como já apontou De Certeau

705

,e

“[...] o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação [...]” 706. O centro da cidade é o lugar onde as transformações espaciais se mostram de maneira mais explícita. Essa constatação foi verificada ao lermos as pesquisas de historiadores e outros estudiosos locais que tratam da transformação urbana

707

. É

onde as construções, demolições e reconstruções aconteceram com maior frequência, devido à expansão do comércio e a formação da cidade. Pode-se imaginar, a partir disso, que em um local onde a demolição e a construção de novos edifícios são constantes, aquilo que resistiu e faz referência á história da cidade, é de importância vital para a História de Londrina. Sobre as transformações que ocorrem na cidade, a historiadora Zueleide Casagrande de Paula diz: “A cidade vive entre a expansão territorial com construções que fazem uso das mais modernas tecnologias e a demolição de edificações consideradas velhas, mas não históricas o suficiente para serem protegidas pela patrimonialização” 708. Esse processo de demolição levou-nos a concluir quão relevante era registrar o número de casas de madeira que ainda resistem ao tempo antes que muitas delas 705 CERTEAU, Michel de. Op. Cit., p. 81. 706 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., p. 526. 707 ARIAS NETO, José Miguel (2008); CASARIL, Carlos (2009); JANUZZI, Denise (2005); SILVA, William (2003); ZANI, Antonio Carlos (2011). 708 PAULA, Zueleide Casagrande de. A Cidade de Londrina e a Imagem do Patrimônio Edificado: a Estação/Museu e a Secretaria de Cultura/Casa da Criança. In: GAWRYSZEWSKI, Alberto (org.). Patrimônio histórico e cultural: cidade de Londrina-PR. Londrina: Universidade Estadual de Londrina/ LEDI, 2011, p. 09-42.

desaparecessem. Então, em discussões e reuniões do grupo, delimitamos um recorte espacial no centro da cidade de Londrina. Este apresentou o seguinte traçado: se iniciou com a Rua Benjamin Constant, até o seu encontro com a Rua Uruguai, e desta até a sua altura com a Avenida Juscelino Kubitschek, que em formato de “L”, se encontra com a Rua Benjamin Constant, fechando o perímetro.

Figura 1: Perímetro das ruas percorridas. Google Maps (Londrina-PR). Editado. Acessado em Março de 2013.

A partir da definição das ruas, um segundo trabalho foi realizado por mim. Localizar no Google Maps as ruas e fazer o mapa para saber onde iniciava e terminava cada rua dentro do limite, considerando as curvas e bifurcações que marcavam a mudança dos nomes dessas ruas. Somente a partir desse levantamento é que se iniciou o trabalho de campo propriamente, ou seja, as ruas passaram a ser percorridas por nós na busca de casas de madeira para o mapeamento destas. A cada casa localizada, marcava-se no mapa sua localização. Esse mapa “físico” possibilitou e depois exigiu um esforço mental da elaboração de um mapa de localização dessas ruas. A cidade ia se desenhando à medida que as casas passaram a ser localizadas. Quando uma casa era encontrada, buscávamos conversar com a pessoa que estava no

37 9

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

local, procurando informações a respeito da casa de madeira - principalmente sobre a sua história- esta parte da pesquisa ficou a cargo de Sonia Dantas, cabendo-me o trabalho de registro da edificação em um “arquivo” fotográfico que me cabia. Aí entra uma questão interessante: os múltiplos sujeitos e seus olhares para com a casa de madeira. Cabe aqui dizer que uma cidade não é uma construção ideal única e inefável, mas também um lugar de múltiplas interpretações diferentes: uma cidade contém as histórias das vidas de todos os habitantes, e cada um terá um discurso diferente referente a essa, que no caso, é Londrina. Italo Calvino mostra como uma cidade descrita por quem a conhece ou visita sofre as refrações da memória, ou seja, é ambígua e pode continuar duplicando a sua ambiguidade ao infinito. O autor mostra como uma cidade pode comportar outras dentro de seus traços, de seus muros: “[...] as velhas muralhas se dilatam levando consigo os bairros antigos, ampliados, mantendo as proporções sobre um horizonte mais largo nos confins da cidade; [...] uma nova cidade que abre espaço em meio à primeira cidade e impele-a para fora.” 709. Sobre essa construção das muitas cidades dentro da cidade, cabe a contribuição do historiador Jacques Le Goff quando argumenta sobre a importância da memória para a história de um grupo, de uma sociedade: “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva [...]”

710

. Essa

identidade é construída, a partir de memórias, e a “coleta” das memórias desses moradores das casas de madeira se faz essencial para que a história de Londrina não seja contada apenas pelos que possuem o poder político sobre a cidade, que muitas vezes ignoram a participação dos sujeitos históricos que vivenciam a cidade, entre eles, os moradores das casas de madeira. Como já dito, a fotografia, o registro da casa de madeira, foi um dos trabalhos realizados na pesquisa. Assim, é preciso destacar como esse registro fotográfico foi entendido por nós. Quando era encontrada uma casa de madeira e nós buscávamos recolher informações sobre esta, quando éramos autorizados pelo morador, fotografávamos a casa. Nesse sentido, o clássico livro “Fotografia e História” do

709 CALVINO, Italo. Op. Cit., p. 119. 710 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., p. 476.

historiador Boris Kossoy que trata sobre fotografia para iniciantes, foi uma contribuição. Para Kossoy: Toda fotografia tem sua origem a partir do desejo de um indivíduo que se viu motivado a congelar em imagem um aspecto dado do real, em determinado lugar e época. [...] O produto final, a fotografia, é portanto resultante da ação do homem, o fotógrafo, que em determinado espaço e tempo optou por um assunto em especial e que, para seu devido registro, empregou os recursos oferecidos pela tecnologia. 711. A partir dos apontamentos de Kossoy, busquei fotografar os perfis das casas de madeiras encontradas, mas também os seus detalhes: ornamentos, decorações, tipos de telhados, janelas, portas, entre outros. Essas fotografias, junto com os relatos de vida e informações sobre as casas que os moradores nos passavam, sobretudo à Sonia Dantas, compuseram um acervo digital de imagens e textos, que está sob custódia do Centro de Documentação e Pesquisa Histórica (CDPH) da UEL. Resultados: as casas de madeira e o comércio de Londrina Após toda a pesquisa de campo, foram catalogadas 138 casas de madeira encontradas no perímetro descrito nas “metodologias”. Dessas casas, estão inclusas as mistas em alvenaria, pois, de tantas reformas e transformações que essas casas passaram, foi muito difícil encontrar alguma que fosse inteira original. Por isso, resolvemos não delimitar as casas, e sim mapear tanto as “inteiras” em madeira, quanto às mistas em alvenaria. Foram percorridas, a pé, 41 ruas, incluindo avenidas, travessas e alamedas. A diversidade de sentimentos dos moradores/usuários das casas de madeira é enorme, como mostrou a pesquisa. Relações que permeiam do apego mais profundo à moradia, até o sentimento de repúdio mais forte. Foram relações como essas que encontramos nas falas dos moradores a respeito de suas casas de madeira. Dito isso, analisaremos três casas de madeiras mapeadas e fotografadas, que tinham o seu uso voltado para o comércio.

711 KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. p. 36-37.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

38 1

Figura 2: Imobiliária e escritório. Autoria: Matheus H. M. Sussai, maio de 2014.

Na Figura 2 vemos uma casa de madeira utilizada como escritório de advocacia e também uma imobiliária. O proprietário712 e dono da Imobiliária comprou a casa em 1986, numa época em que a sua esposa estudava o curso superior de Direito e ele trabalhava em outra imobiliária. A casa servia de moradia de outra pessoa, antes da compra, e por isso, o novo proprietário realizou algumas reformas na casa. Segundo o mesmo, foram as únicas reformas que a casa sofreu em sua posse, sendo elas: pintura e troca de telhado. O proprietário é londrinense e nasceu em uma casa de madeira, morando nela por 20 anos, e depois se mudou para uma de alvenaria. Que fique claro que a casa na Figura 2 é apenas utilizada como local de trabalho, ou seja, ele não mora nela. O proprietário ainda disse que não escuta sons vindos da casa (madeira), e gosta do fato de a casa ter sobrevivido. A casa, segundo o dono, é feita em madeira peroba rosa, como todas as casas encontradas na pesquisa. Sobre a década de 1940 e as construções de madeira em Londrina, Antonio Carolos Zani diz que: “A ocorrência de muita peroba rosa, uma árvore grande e com madeira de boa qualidade, favoreceu o seu uso sistemático na construção das casas [...]” 713.

712 Não informaremos os nomes dos moradores das casas de madeira, devido aos direitos de privacidade. 713 ZANI, Antonio Carlos. Casas de Madeira em Londrina. In: GAWRYSZEWSKI, Alberto (Org.). Patrimônio Histórico e Cultural: cidade de Londrina-PR. Londrina: Universidade Estadual de Londrina / LEDI, 2011, p. 45.

Figura 3: O contemporâneo e a casa de madeira. Autoria: Matheus H. M. Sussai, agosto de 2013.

A Figura 3 detalha um pedaço de vidro presente em cima de uma mureta de uma casa de madeira. Mesmo a imagem mostrando este detalhe, apontaremos informações sobre a casa em geral, sendo a imagem acima objetivada a mostrar as transformações históricas presentes nas casas de madeira, onde o antigo se adapta, se relaciona, e entra em contraste com o novo (pedaço de vidro). A casa, também voltada para o comércio, é uma fábrica de produtos de costura. É alugada, mas o locatário não quis dar muitas informações sobre o tempo que aluga a casa. Também não possuía informações sobre a história da casa. Pois bem, vemos aqui um exemplo que apareceu outras vezes na pesquisa como um todo: casas sem muitas informações, tanto históricas, quanto em relação ao inventário. Isso se dá por vários motivos: pessoas que não nos atenderam, casas abandonadas, e o motivo presente nesse exemplo, o de pessoas que alugam a casa por pouco tempo, não tendo muita coisa para nos contar sobre.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

38 3

Figura 4: Lavanderia em madeira. Autoria: Matheus H. M. Sussai, abril de 2014.

Na Figura 4 vemos uma casa de madeira utilizada como lavanderia. O locatário aluga a casa há aproximadamente 24 anos. Este nos disse que trabalhou por 23 anos em uma lavanderia no outro lado da rua, e depois, acabou comprando a sua e alugando a casa em questão para sua atividade profissional. Sobre o proprietário, disse que possui vários imóveis e é de Ibiporã. Recebe várias propostas pela casa, mas não aceita. Essa discussão esteve muito presente na pesquisa, onde as construtoras oferecem um valor pela casa de madeira, mas muitos, pelo apego à casa, ou por não achar o preço justo, não a vendem. O locatário veio para Londrina em 1952, e, sobre os barulhos, disse que a casa velha não estrala mais, mas quando é nova estrala muito, devido ao “tempo de vida” da madeira. O locatário disse que uma mulher apareceu várias vezes na casa dizendo se podia ficar ali um pouco, pois era a casa onde ela havia sido criada quando criança. E que isso acontece frequentemente. Informou que sabia que já haviam morado portugueses, e posteriormente um sargento. O proprietário comprou a casa pronta. O locatário terminou dizendo que se tivesse condições, construiria uma nova casa de madeira para morar. Após essa breve amostragem de casas, apresentamos aqui uma tabela de relação dessas casas, onde analisamos as informações que os moradores nos deram, e fizemos a contagem para saber quantas casas eram utilizadas como comércio, como moradia, ou se estão vazias ou em outra categoria (que incluía as casas em que não fomos atendidos).

RUA

COMÉRCIO

MORADIA

VAZIA

OUTROS

de

3

4

1

1

Juscelino

5

4

0

1

Kubitschek Av. Rio de Janeiro

1

0

1

0

Av. São Paulo

1

0

0

0

Rua Alagoas

2

5

1

1

Rua Belo Horizonte

0

3

0

0

Rua

2

1

0

0

Constant Rua Brasil

3

7

2

3

Rua Cambará

0

2

0

1

Rua Espírito Santo

2

11

0

0

Rua Goiás

4

6

1

1

Rua Maranhão

0

2

0

1

Rua Pará

2

1

1

0

Rua Paranaguá

0

2

0

1

Rua Pernambuco

1

1

0

0

Rua Piauí

1

0

0

0

Rua Pio XII

1

0

1

0

Rua Prefeito Hugo

0

0

1

0

Cabral Rua Prof.

João

2

3

0

0

Santa

1

0

0

0

Catarina Rua Santos

0

3

3

0

Rua Sergipe

0

5

0

1

Rua Tupi

0

2

0

0

Rua Uruguai

0

17

5

0

31

79

17

11

Av.

Duque

Caxias Av.

Benjamin

Cândido Rua

TOTAL

Como podemos observar na tabela acima, dentre as casas encontradas e mapeadas, 31 delas possuía um objetivo comercial, 79 utilizadas para moradia, 17

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

38 5

estavam vazias, e 11 se encaixaram na descrição “outras”, onde a maioria se definia por não ter presente alguém que conversasse conosco e nos passassem as informações necessárias. Somando, temos o número já apresentado de 138 casas de madeira mapeadas nesse pedaço da região central de Londrina. O número referente às moradias é nitidamente superior aos outros, mas as casas utilizadas como comércio não são poucas. Analisando a tabela, podemos ver algumas ruas que se destacaram com a presença de mais casas comerciais do que as usadas para moradia, como é o caso da Av. Juscelino Kubitschek, da Rua Benjamin Constant, e da Rua Pará. Outros casos, como a Rua Espírito Santo e Rua Uruguai, se distinguem das outras pelo alto número de residências. Considerações Finais O presente artigo objetivou relatar os resultados obtidos na pesquisa “Mapeamento da casa de madeira na região central da cidade de Londrina/PR”, realizada por mim, concomitantemente com a pesquisa “Inventário da casa de madeira na região central da cidade de Londrina/PR”, realizada por Sonia Dantas. As duas pesquisas juntas, produziram um acervo digitalizado de fotografias e informações (históricas e de cunho de inventário) sobre as casas de madeira do centro de Londrina, que está sob custódia do CDPH-UEL. Assim, pudemos ver como as casas de madeira contam várias histórias de Londrina, a partir dos seus moradores e suas memórias. Com o total de 138 casas mapeadas, vemos como o comércio também se apropriou da casa de madeira para seu usufruto, estando em 31 delas. Casas voltadas ao comércio se mostraram mais bem conservadas, mais reformadas, manifestando uma maior preocupação com a estética urbana comercial. Por outro lado, são também as casas que menos conseguimos informações, pois a maioria dos locatários está ali por pouco tempo, diferente de moradores que já estão na casa de madeira há mais de 20 anos. Para finalizar, cabe dizer que sempre foi objetivo desse trabalho (não só o texto, mas a pesquisa inteira), dar voz aos moradores das casas de madeira, que com as suas memórias, constroem uma história de Londrina não conhecida por muitos. Com o tempo e as transformações que este traz, é provável que casas de madeira sejam demolidas, e esse trabalho objetivou guardar e difundir as histórias que elas tinham para contar.

A escrita autobiográfica de Thomas Jefferson e as representações de si no século XIX Mayara Brandão Venturini714 Mestranda em História/UNESP Franca Resumo: O texto se propõe a analisar a autobiografia de Thomas Jefferson (17431826), escrita no ano de 1821, dentro da perspectiva historiográfica de análise da “Escrita auto referencial” ou “Escrita de Si”. Partindo dessa perspectiva, busca-se entender o processo histórico que compreende essa forma de escrita baseada na reconstrução de sua vida pessoal e, de maneira breve, qual imagem essa transcrição de si feita por Jefferson objetivou delegar à posterioridade. Para tanto, faz-se necessário, dentro do uso que se propõe fazer do documento autobiográfico, entender a metodologia de análise desse tipo de fonte, além de inserir ambos, Jefferson-autor e o documento autobiográfico, em seus contextos político-sociais correspondentes. Palavras-chave: Autobiografia; Thomas Jefferson; Escrita de si. 714 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História e Cultura Política, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Franca. Pesquisa realizada sob orientação do Prof. Dr. Marcos Sorrilha Pinheiro e financiada pela CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -. E-mail: [email protected].

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

38 7

Discussões acerca das Escritas de Si: As discussões acerca das “escritas de si” ou “escritas auto referenciais” vêm crescendo nas ultimas duas décadas e compreendem um campo de pesquisa que se preocupa em estudar cartas, diários, memórias, autobiografias e romances autobiográficos. Esse aprofundamento dos estudos sobre o processo histórico que compreende a relação dos homens com seus arquivos pessoais, e a forma de escrita que foca na reconstrução da própria vida e nas imagens e perfis que essa transcrição de si objetiva delegar a posterioridade, fez com que os historiadores mudassem sua perspectiva analítica acerca de fontes documentais que eram, até então, marginalizadas ou lidas apenas como auxiliares. Para tanto, é comum que as teses que se preocuparam em criar hipóteses sobre a origem da relação que acarretou na produção dessa forma de escrita retrocedam aos séculos XVII e XVIII. É dentro dessa perspectiva que se insere a análise da autobiografia de Thomas Jefferson. É importante, portanto, que sejam pontuadas as hipóteses que levam essa nova forma de relação entre o indivíduo e os documentos, configurada numa emergente preocupação com a acumulação de arquivos pessoais. Além disso, interessa-nos mapear o movimento que, de dentro do campo historiográfico, possibilitou essa nova perspectiva de analise. Cabe, portanto, fazer um breve retorno ao processo pelo qual a área da pesquisa histórica passava na década de 70, período de evidente consolidação e reconhecimento de uma significativa renovação da História Política. Em Por uma História Política715, René Remond disserta sobre quais movimentos, no campo da historiografia, levaram à reformulação das formas de escrita e análise da história por parte dos historiadores do político. Não é possível retomar de forma aprofunda todo o processo de transformação716 descrito por Remond, mas é essencial delinear a importância, ressaltada pelo autor, que esse movimento teve para que História política retornasse do ostracismo em que se encontrava desde o fortalecimento da Escola dos Annales, na década de 1930.

Esse ostracismo, obviamente, se deu devido às

715 REMOND, René. Por uma História Política. 2ª ed. Tradução: Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003. 716 REMOND, René. História do tempo presente. In: Por uma História Política. 2ª ed. Tradução: Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

características bastante objetivas da História Política que, antes da reformulação da segunda metade do século, [...] só tinha olhos para os acidentes e as circunstâncias mais superficiais: esgotando-se na análise das crises ministeriais e privilegiando as rupturas de continuidade, era a própria imagem e o exemplo perfeito da história dita factual, ou événementielle - sendo o termo aí evidentemente usado no mau sentido -, que fica na superfície das coisas e esquece de vincular os acontecimentos às suas causas profundas. (...) Ao privilegiar o particular, o nacional, a história política privava-se, ao mesmo tempo, da possibilidade de comparações no espaço e no tempo [...].717 Portanto, a Nova História Política, defendida por Remond, carrega em sua proposta de trabalho uma renovação não apenas das fontes, como também das possibilidades de interpelações e interpretações dadas a essas fontes, bem como uma ressignificação dos fenômenos políticos dentro da comunidade ou sociedade em que tais fatos estudados ocorreram. O indivíduo, nessa nova perspectiva, deixa de ser o ilustre personagem, aquele responsável pelos movimentos da história, e passa a ser aquele que, como os outros ‘anônimos’ de seu tempo, serve como objeto de estudos e de formulação de hipóteses sobre seu tempo, sem, todavia, assumir o papel de protagonista/responsável unanime pelo que aconteceu no período.718 É importante que, ao entender que a metodologia para o trato de documentos como a autobiografia é uma prática recente, nos atentemos ao fato de que embora tenha ganhado maior força na década de 1990, já existiam estudos anteriores a esse período. É o caso de Phillipe Lejeune 719 que, escrevendo em 1975, define a categoria “autobiografia” – obra da qual se falará mais adiante. É evidente que toda essa renovação de fontes e metodologias ganha força com a divulgação trazida após a terceira geração da Escola dos Annales, responsável por colocar em evidência as discussões metodológicas que vinham sido feitas desde a década de 1950/1960, e que incidem fatalmente na história que se faz dos intelectuais – categoria em que Thomas Jefferson se encaixa - nas décadas a posteriori. Assim, entendendo o sujeito narrado como uma projeção considera-se que o intelectual

717 Ibid., p.16. 718 REMOND, op. cit. p. 18. 719 LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. 2ª ed. Tradução: Jovita Maria Gerheim Noronha. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2014.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

38 9

estudado se inseria em um contexto e, na mesma medida em que poderia influenciálo (o contexto), era por ele influenciado 720. É nesse contexto historiográfico que o estudo da Autobiografia de Thomas Jefferson, proposto aqui, se insere. Ao buscar considerar, dentro de uma perspectiva mais ampla de análise e contexto, hipóteses que possam nos encaminhar ao entendimento da preocupação de Jefferson com o ‘arquivamento do eu’ recorremos a um tipo de fonte até então tida como secundária e bastante duvidosa, a autobiografia, e cabe, portanto, exemplificar brevemente quais caminhos são trilhados por aqueles que se dispõe a trabalhar com fontes semelhantes. Em meados da década de 1990, como já foi dito, observa-se o fortalecimento, lento, porém gradual, dos estudos historiográficos acerca do que se denomina “Escritas de Si” ou as “Escritas-autoreferenciais”, categorias que incorporam as fontes autobiográficas. Nessa linha, no que tange os estudos dessa relação entre os indivíduos e seus documentos, estudiosas como Ângela de Castro Gomes 721 e Priscila Fraiz722 se fazem essenciais por suas contribuições. Ângela de Castro Gomes, na introdução do livro Escritas de Si, Escritas da História723, traz à tona a discussão, já existente em Fraiz, acerca do fenômeno de ‘arquivamento do eu’ e liga-o, de maneira bastante consistente, a um complexo e demorado processo de emergência da figura de um homem Moderno. Esse movimento se deu graças ao declínio do das antigas definições de trabalho e vivência medieval, juntamente com o surgimento de novas relações de trabalho, ou mesmo graças aos recém-adquiridos direitos ‘civis’ (sec. XVII) e ‘políticos’ (sec. XVIII) que, combinados, acarretaram em um processo de descoberta de si, como ser individual e pensante e por isso auto-avaliativo e auto-valorativo 724. Portanto, Gomes, Fraiz e outros estudiosos da área, localizam no processo de mudança social originado pelo fim das configurações medievais da sociedade o

720 POCOCK, John Greville Agard. Introdução. In: Linguagens do ideário político. Tradução: Fabio Fernandez. São Paulo: Edusp, 2003. 721 GOMES, Angela de Castro (org). Escritas de Si, Escritas da História.1ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. 722 FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo Gustavo Capanema. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1998. 723 GOMES, Op. Cit. 724 FRAIZ, op. cit., p. 13.

fortalecimento da individualidade necessária para que esse ‘novo homem’ pudesse emergir. Dessa forma, segundo Gomes, o termo “auto referencial” se explica a partir da “(...) relação que se estabelece entre o indivíduo moderno e seus documentos” 725. Resume-se no seguinte trecho: [...] A ideia de indivíduo que aqui se deseja fixar vincula-se à longa transformação das sociedades ocidentais chamadas tradicionais por oposição às modernas. Um processo de mudança social pelo qual uma lógica coletiva, regida pela tradição, deixa de se sobrepor ao indivíduo, que se torna “moderno” justamente quando postula uma identidade singular para si no interior do todo social, afirmando-se como valor distinto e constitutivo desse mesmo todo. 726 Outras questões são consideradas quando se busca mapear no tempo essa pratica de se auto referenciar em documentos, tais como as trazidas por Foucault, em O que é um autor727; nesse texto o autor trata das práticas de escrita auto referencial presentes ainda na Antiguidade Clássica. Há, todavia, um consenso entre esses estudiosos da área que classifica as “Confissões” (1782), de Jean-Jacques Rousseau, como obra fundadora do gênero autobiográfico. Porém, mesmo essa obra, foi durante muito tempo questionada, no que se refere ao caráter filosófico que ela poderia conter, já que se apresentava de maneira até então não familiarizada para aqueles que a liam.728 As autobiografias como fonte – metodologia e limites: O estudo de autobiografias compreende um campo bastante cuidadoso. Isso porque, a multiplicidade dos documentos considerados auto-referenciais se caracteriza, justamente, por suas especificidades, tais como o autor, o espaço temporal que ocupa as motivações e destinações da escrita, entre outros. Assim, é bastante comum que se recorra a Phillipe Lejeune, autor d’ O pacto autobiográfico: de Rousseau à Interne, e sua definição de autobiografia. O autor se dedica, em sua obra, à análise e classificação de “autobiografia” e das tênues características que 725 GOMES, op. cit. p. 10. 726 GOMES, op. cit. p.12. 727 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 3ª ed. Tradução: António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Alpiarça: ed. Vega, 2000. 728MARQUES, José Oscar de Almeida. Rousseau e a possibilidade de uma autobiografia filosófica. In: MARQUES, José Oscar de Almeida (Org.). Reflexos de Rousseau. São Paulo: ed. Humanitas, 2007.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

39 1

diferenciam o gênero autobiográfico das outras formas de escritas de si, como as memórias, os diários ou mesmo o romance histórico. É importante que se diga que, originalmente, o autor faz essa classificação de maneira bastante rígida 729. No entanto, em publicações posteriores ele a revisita e flexibiliza, como se pode ver na última edição desse livro (cujo qual fazemos uso). Assim, algumas características, tidas pelo autor como impedimento de classificação de alguns documentos como autobiografias, são flexibilizadas nessas revisitações de sua teoria. É inevitável, no entanto, e pode-se perceber isso pela frequência com que Lejeune aparece nos trabalhos que se propõem a analisar essa categoria de documentos, que sua a definição não seja também, por nós, apropriada. Desta feita, a escrita de si seria: “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. 730 Desta forma, o autor classifica como “autobiografia” documentos em que o autor-narrador se apresenta como o próprio personagem de sua narrativa e com isso assume a responsabilidade de veracidade daquilo que será narrado. E nesse ponto que a ideia de pacto (autobiográfico) – trazida no título da obra de Lejeune – se explica; para o autor, quando o autobiógrafo assume o pacto, sua responsabilidade pela “verdade”, ele não está se comprometendo à uma narrativa literal ou factual dos acontecimentos, e sim com uma que retome a “verdade” que o autor busca retratar nos acontecimentos que retoma. Ou seja, é uma espécie de contrato entre o autor e o leitor, no qual a identidade – autor = personagem – conduz a postura do leitor na busca de semelhanças e lacunas, já que se assume, afinal, a responsabilidade pela narrativa de uma vida real, de uma pessoa real, que se insere num contexto real731. Para além de se definir “autobiografia”, é importante que se identifique as características que separam esse gênero dos outros, como diários, memórias ou cartas pessoais. Isso pode parecer mera formalidade, mas importa quando nos 729 A compilação de escritos de Philippe Lejeune que deram origem ao livro “O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet” origina-se num primeiro artigo do ano de 1973, denominado “O Pacto autobiográfico”, publicado pela revista Poétique, na França. Dois anos depois dessa publicação, em 1975, o artigo reaparece abrindo um livro denominado pelo mesmo nome. No ano de 1986 o autor retoma o projeto com “O Pacto autobiográfico ( bis)” e no ano de 2001 com “O Pacto autobiográfico 25 anos depois”. Em 2008, a professora Jovita Maria Gerheim Nonhora organizou cronologicamente os escritos que Lejeune publicou durante quase 40 anos. É essa ultima versão organizada que utilizamos. 730 LEJEUNE, op. cit., p. 16. 731 Ib. p. 30-33.

referimos a “Autobiografia” de Thomas Jefferson, já que o documento foi originalmente nomeado por ele de “memorias”. Assim, tal como a autobiografia, esses outros gêneros também passam pelo processo de ressignificação do sentido da sua escrita, mas se diferenciam essencialmente, com exceção das memórias, por não serem narrativas com uma visão retrospectiva de tais documentos. Cartas e diários são narrativas normalmente próximas ao momento de que se narra. Autobiografias e memórias, pelo contrário, se afastam temporalmente do ocorrido e por isso o uso que fazem da memória pode, e normalmente é, contaminado pelo lugar privilegiado do qual fala o autor-personagem. Portanto, cabe explicar mais profundamente a tênue diferenciação que existe entre memória e autobiografia: as memórias, apesar de se assemelharem a narrativa autobiográfica por partirem de uma visão retrospectiva, não narram necessariamente a vida pessoal do autor e podem referir-se a qualquer processo do qual o autor teve conhecimento ou presenciou, mas que não necessariamente fazem parte do seu espaço de vivência. Assim sendo, o pressuposto de uma narrativa retrospectiva em que uma pessoa real fala de sua própria experiência se perderia e, com ela, o pacto não seria efetivado. A escrita autobiográfica de Thomas Jefferson – uma analise singularidades: O documento autobiográfico de Thomas Jefferson, por ser bastante denso, carrega em si uma variedade de singularidades, das quais se tratará brevemente. Thomas Jefferson começou a escrita de sua narrativa autobiográfica na idade de 77 anos, em janeiro do ano de 1821, concluindo-a em julho deste mesmo ano. Aposentado da vida política desde 1809, quando finda seu segundo mandato como presidente dos EUA, Jefferson passou os anos que antecedem o processo de escrita envolvido com o processo de formação da Universidade da Virgínia. Assim, em 1821 Jefferson já estava há 12 anos afastado do meio político efetivo do país. Quando terminou sua narrativa, poucos meses após começa-la, a autobiografia não foi imediatamente publicada, o que só vem a acontecer alguns anos após seu falecimento em 1826. A primeira publicação foi no ano de 1829, por seus descendentes. O conteúdo da autobiografia de Jefferson acaba por ser estritamente político. Trata dos acontecimentos vivenciados entre os anos de 1743 a 1790. Essa é a primeira característica intrigante do documento, já que o autor opta por um recorte político, mas deixa de fora grande parte de sua vida política dos anos em que ocupou os cargos próximos ao poder executivo – como Secretario de estado ou vice-presidente - e de

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

39 3

Presidente do país - de 1801 a 1809-. O ano de 1790 é o marco final de sua narrativa, que retorna brevemente até seu ascendente paterno, seu avô. 1790, portanto, contém alguns acontecimentos pontuais na vida de Jefferson, tais como seu retorno aos EUA – Jefferson deixa a França e regressa aos EUA após ficar aproximadamente cinco anos no país como representante dos EUA – que é acarretado pela convocação ao cargo de Secretário de Estado de George Washington. Assim, além do retorno ao país natal, Jefferson assume pela primeira vez o cargo mais próximo ao poder executivo que havia ocupado até então. Após um breve relato sobre a sua vida pessoal, Jefferson direciona sua narrativa para seus percursos políticos. Nesse sentido o ano de 1769 nos é determinante. Com sua inserção em seu primeiro cargo político, a narrativa direcionase agora de maneira bastante impessoal já que, a partir desse ponto, Jefferson passa a nos contar apenas a esfera política de sua vida, descrevendo os mais diversos acontecimentos políticos em que esteve relacionado e deixando transparecer suas ideologias ou crenças apenas através deles.

Pode-se resumir em sete os temas

abordados por Jefferson na autobiografia. 1) O processo independentista estadunidense; 2) o Segundo Congresso continental da Filadelfia, de 1775; 3) A declaração da Independência – trecho no qual Jefferson anexa o texto original, escrito por ele, e o texto modificado para publicação – o que claramente mostra sua insatisfação com as modificações e sua preocupação em registrar as partes que foram retiradas na versão publicizada da carta; 4) Alguns artigos da Confederação (1771789); 5) as Reformas na governação da Virgínia; 6) o período que passou na França; 7) Seu retorno pros EUA, em 1789/90. Num primeiro momento nos parece estranho imaginar os motivos que levaram Jefferson a deixar de lado grande parte da sua vida, incluindo seus anos na presidência. Essa caraterística nos direciona a hipóteses acerca do recorte feito. Jefferson, enquanto presidente dos EUA, se posicionou diversas vezes, como no caso da Revolta dos escravos de San. Domingue, de maneira incoerente com aquilo que se vê defendido por ele em sua autobiografia ou em escritos anteriores ao cargo; é claro que podemos entender isso como consequência do pragmatismo político no qual ele, inevitavelmente, se via inserido. Dado isso, podemos nos questionar se sua retomada aos anos anteriores a 1790, não poderia ser entendida como uma resposta às incoerências que ele próprio enxergou (e que também foram apontadas por seus contemporâneos) em sua atuação política pós 1790. A sua autobiografia, dentro dessa

hipótese serviria, então, como uma fonte alternativa àquelas que explorariam sua imagem durante a presidência, cumprindo o papel de testemunho de si, quando ele não pudesse mais responder a essas críticas. O momento da narrativa em que Jefferson coloca as duas declarações de independência – a original e a publicada- é bastante sintomático. Jefferson traz, de maneira bastante simbólica, a Declaração que foi originalmente escrita por ele e logo em seguida o texto publicado, resultante das modificações feitas durantes as reuniões de junho de 1776, nas quais representantes das 13 colônias buscavam um acordo no conteúdo do documento. Esse trecho da autobiografia deixa clara a preocupação de Jefferson em registrar as ideias originalmente defendidas por ele, sem modificações. Aqui é possível fazer uma breve relação com um episódio em que Jefferson publicou, em forma independente, o texto original de sua Declaração sobre as Necessidades de se Pegar em armas, alguns anos antes em 1776, que havia sido rejeitada e substituída. A evidente importância que Jefferson dá a Declaração de Independência, faz com que, nesse primeiro momento de análise, pensemos ser o ponto que demanda a principal atenção na análise de sua autobiografia. O processo de escrita desse documento, e o resgate do texto como fora originalmente escrito, nos leva a crer que Jefferson queria deixar registrado que os trechos modificados não tinham sido escolha pessoal,

e

que

seus

ideais

contidos

nesses

trechos

foram

esquecidos

momentaneamente, apenas pelo bem geral da nação. Um dos mais importantes trechos retirados da carta delega a responsabilidade da escravidão à coroa Inglesa – trecho que precisou ser retirado devido à resistência de delegados de colônias do Sul. Jefferson reafirma com isso sua cresça na sentença original da carta, e se posiciona de maneira discreta, porém clara. Essas características pontuadas deixam clara a intenção de auto-preservação de Jefferson com suas lembranças e seus pontos de vista. A importância que Jefferson dava para seus feitos políticos fica clara, não apenas no foco que dá em sua autobiografia, como também se confirma no pedido, deixado em testamento, para que os seguintes dizeres fossem talhados em sua lápide: “Here was buried Thomas Jefferson autor of the Declaration of American Independence, of the Statude of Virginia for Religius Freedom and Father of the University of Virginia 732

732 A primeira lápide de Jefferson, originalmente desenhada por ele, foi roubada e foi posteriormente reposta preservando o pedido original na forma arquitetônica e na frase talhada. Ela se encontra em sua propriedade, em Monticello/EUA.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

39 5

Como citado anteriormente, a autobiografia trabalhada foi originalmente denominada de “memórias”. Por esse motivo importa pontuar que, logo na primeira frase do documento, Jefferson sela aquilo que Lejune chamou de O pacto, e que foi brevemente apresentado algumas paginas atrás. Nas primeiras linhas, Jefferson assinála a pretensão de sua narrativa, assume a autoria, e deixa explicito aquilo que pretende narrar: sua própria vida: “Na idade de 77, eu começo a fazer alguns memorandos e expor algumas lembranças de datas e fatos sobre mim mesmo, para minha própria referência mais pronta e para o conhecimento da minha família”.733 Outra questão bastante interessante deriva desse trecho. Se nos atentamos a frase a intencionalidade de Jefferson direciona-se ao privado, à sua família. A questão que se apresenta é a de que, embora Jefferson diga que trata-se de uma narrativa direcionada ao pessoal e ao familiar, ele dedica-se a descrever amplamente sobre sua vida política, e raramente apresenta aspectos pessoais que seriam inéditos ou inacessíveis ao publico, e que por isso poderiam fugir ao conhecimento geral. Apesar de se apresentar com esse intuito, a narrativa de Jefferson segue o caminho oposto. As hipóteses que podem ser levantadas sobre isso variam desde uma tentativa de posicionamento de humildade até uma busca por demonstrar despretensão na escrita, e com isso ser lido de maneira mais predisposta. Sobre a intenção, pode-se destacar o seguinte trecho da obra de Lejeune: Interrogar-se sobre o sentido, os meios e o alcance de seu gesto, eis o primeiro ato da autobiografia: frequentemente o texto começa, não pelo ato de nascimento do autor, mas por um tipo de ato de nascimento do discurso, o ‘pacto autobiográfico’. Nisso a autobiografia não inventa: as memórias começam ritualmente por um ato desse gênero: exposição da intenção, das circunstâncias nas quais se escreve, refutação de objetivos ou de críticas. […] Logo, a autobiografia interroga a si mesma; ela inventa a sua problemática e a propõe ao leitor. Esse “comportamento” manifesto, essa interrogação sobre o que se faz, não cessam uma vez o pacto autobiográfico terminado: ao longo da obra, a presença explícita (por vezes mesmo indiscreta) do narrador permanece. É aqui que se distingue a narração autobiográfica das outras formas de narração em primeira pessoa: uma relação constante é estabelecida entre o passado e o presente, e a escritura é colocada em cena”734

733 In. Thomas Jefferson, The Works of Thomas Jefferson, Federal Edition (New York and London, G.P. Putnam’s Sons, 1904-5). 12 vols. 734 LEJEUNE, op. cit. p. 16. Trecho traduzido por Ana Amélia Barros Coelho Pace, em Lendo e escrevendo sobre o pacto autobiográfico de Philippe Lejeune, 2012.

Assim, quando analisamos a escrita de Jefferson, podemos ver nitidamente as problemáticas que esse gênero confessional carrega quando se trata do ofício do historiador. O conceito de “Ilusão Biográfica”, cunhado por Pierre Bourdieu 735, em artigo do mesmo nome refere-se a tentativa, falha, de reconstruir seu passado, “tal como foi” por aqueles que se dedicam a relembrar a própria vida. Por isso, essa Ilusão é uma armadilha tanto para aquele que escreve como para aquele que lê, já que esse último corre o risco de interiorizar em sua interpretação o sentido de verdade contido na narrativa e toma-lo para si, desconsiderando as possibilidades traiçoeiras da memória e da intenção. Isso ocorre porque em uma narrativa, como a autobiográfica Jefferson, o texto se caracteriza num sentido de linearidade dos acontecimentos, buscando liga-los uns aos outros de maneira que eles se (res)signifiquem e tenham um coerência para o fim que se propõe, que é a imagem de si que se projeta. A imagem que Jefferson queria preservar. Como ele queria ser lembrado e referenciado. 736 É preciso, então, que se considere o uso e desuso que se faz da memória durante um processo de escrita. Ecléa Bosi, em Memória e Sociedade. Lembranças de velhos737, retoma a ideia de que o processo da memória envolve mais do que o arquivamento de informações propriamente dito. Trata-se de uma construção de um passado idealizado, numa seleção feita pelo autor, cuja a ordem dos acontecimentos dispõe-se no intuito de direcionar as impressões que serão apreendidas pelo leitor. Dessa forma, o passado recontado não é nada além de uma invenção que serve ao presente, e mostra mais sobre esse presente do autor, do que sobre aquilo que ele se propõe a narrar. Esta perspectiva nos serve ao que sustentamos sobre a autobiografia de Jefferson e sua função como justificativa aos conflitos que marcam seu momento na presidência. De qualquer maneira, uma análise sobre isso, deve levar em conta que, ainda que o autor tenha consciência desse ordenamento e os faça numa tentativa clara de revalidação, publica ou não, é preciso que se leve em consideração que as questões que envolvem a memória fogem também ao controle desse autor.

738

735 BOURDIEU, Pierre. A ilusão bibliográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaina (org.). Usos e abusos da História Oral. 2ª ed. Tradução: Luiz A. Monjardim, Maria Lúcia L. V. de Magalhães, Glória Rodriguez e Maria C. C. Gomes. Rio de Janeiro: FGV, 1996. 736 Op. Cit. 737 BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das. Letras, 1997.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

39 7

A recuperação do passado traz consigo, como dito, muito das percepções e reavaliações do presente do autor (de onde ele escreve). Segundo Jacy Seixas, entender isso é entender as implicações ou finalidades políticas que envolvem a seleção dos acontecimentos e explicam o intuito de se escrever sobre si, e entender também as múltiplas temporalidades contidas no ato de lembrar (e seu caráter espiral, que envolve o voluntário e involuntário desse ato)

739

. Isso quer dizer que,

ao escrever em 1821, Jefferson se encontrava numa posição privilegiada, pois tinha a possibilidade de conhecer os resultados e as consequências da maioria de suas ações passadas e podia seleciona-las de maneira coerente com o projeto que intencionava, mas, ainda assim, estava sujeito a deixar lacunas nesse Jefferson (re)montado. No escritório em sua residência em Monticello, sentado em uma cadeira confortável, Jefferson respondia às demandas de seu momento, angustiado pelo tempo que o faltava, devido à sua idade avançada, e pela História que se construiria já sem que ele pudesse conduzi-la pelas mãos. Dessa forma, quando se examina o escrito autobiográfico de Thomas Jefferson, é importante que se tenha claro os seus posicionamentos durante a vida e os que se apresentam em sua obra, a título de comparação. Não cabe aqui o julgamento de verdade ou mentira contido no texto, e sim mapeá-lo, partindo da premissa que o valor historiográfico do documento não se perde mesmo diante das subjetividades citadas.

738 GOMES, Angela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. Revista de Estudos Históricos: Rio de Janeiro, v. 11, n 21, 1998. 739 SEIXAS, 2001.

A IMIGRAÇÃO CHINESA PARA CUBA NO SÉCULO XIX Maysa Silva Oliveira Mestranda em História Universidade Estadual Paulista (UNESP) Campus ASSIS Resumo: Este artigo pretende demonstrar como aconteceu o processo de imigração chinesa para Cuba durante meados do século XIX. É válido ressaltar que tratamos do momento histórico onde o trabalho escravo é deixado para trás e ocorre a transição para o trabalho livre e para tanto, faremos um breve histórico do período a ser estudado, juntamente com recortes historiográficos pertinentes ao tema, bem como dados sobre a entrada dos imigrantes amarelos, permitindo que a produção do açúcar cubano continuasse sendo produzido com destaque após o fim do regime escravista. Desta forma, analisaremos brevemente, a inserção do chinês em solo cubano e a sua adaptação a ilha caribenha. Palavras Chave: Imigração. Chineses. Cuba. Quando falamos de escravidão, não podemos nos esquecer de que este sistema de trabalho era a base de desenvolvimento econômico, assim como pontua Marx e Engels: “a escravidão é uma categoria econômica” 740. Portanto, as áreas abrangidas neste projeto, seja brasileira ou cubana, enquadram-se nesta análise por serem sistemas escravagistas e que as plantations estariam condenadas sem ela. Fato que pode ser comprovado pela lentidão do processo de abolição, sendo estes as últimas regiões a receberem e a resistirem com a escravidão de africanos e seus descendentes. Além da pressão britânica, passou-se a creditar que o uso da mão de obra gratuita seria responsável pelo não desenvolvimento das regiões que empregavam esse tipo de trabalho, principalmente no campo tecnológico, seria obra de um passado e presente pautado no trabalho escravo. Portanto, teríamos uma relação viciosa entre a dependência colonial com a metrópole. Assim, a abolição do tráfico de escravos prejudicou o sistema escravista e aplicou o trabalho livre de diversas maneiras. Com a condenação do sistema escravista, o preço do negro subiu, impedindo maiores transações e pressionando a 740CARTA de Karl Marx a P.V. Annenkov, 28 de dezembro de 1846. Apud MINTZ, Sidney Wilfred. “O poder amargo do açúcar: produtores escravizados, consumidores proletarizados”. Editora Universitária, UFPE, 2010.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

39 9

entrada de imigrantes. Porém, a grande dúvida era como tratar o homem livre, já que estes não eram tão comuns no momento abordado. Diante deste problema, temos a possibilidade de estudar mais a fundo o uso da mão de obra chinesa, que será importante durante este período transitório entre o trabalho escravo e o livre. Há que se levar em consideração que o fim do tráfico negreiro impôs modificações nas relações econômicas e sociais numa sociedade que já estava acostumada com a figura do escravo, dentro do sistema colonial cubano, que respondia ao governo espanhol. Não existem muitos estudos cubanos sobre este período de transição com a introdução de imigrantes chineses741, sendo relevante que a temática venha a ser estimulada. De acordo com a historiadora Rebecca J. Scott

742

, a escravidão foi à base da

cultura da cana de açúcar nos últimos trintas anos do séc. XIX na ilha de Cuba e de acordo com Seymour Drescher, o número de escravos que trabalhavam na produção açucareira era de 36% em relação aos escravos que ocupavam outros setores, como exemplo escravos domésticos em 1846. Já em 1862, este percentual teria aumentado para 47%.743 De acordo com a obra de Manuel Moreno Fraginals744, o transporte de escravos e o custo de seus subornos (já que a proibição da entrada de negros escravizados estava vigorando) acabavam por elevar o preço do mesmo em pelo menos cinco vezes durante o período de 1810 a 1860. O preço do escravo subiu dentro do período em que a produção açucareira mundial estava em seu ápice entre 1835 e 1845, mas que, devido às transformações da economia escravista, esta sociedade deveria aceitar a troca para o trabalho livre, mesmo que algumas perdas acontecessem, para que, logo após um período de dez anos, ela retomasse de onde parou. 741 Para o aprofundamento do tema, temos a obra de Rebecca Scott, intitulada Emancipação escrava em Cuba: A transição para o trabalho livre–1860/1899 e a de Manuel Moreno Fraginals; El ingenio: complejo económico social cubano del azúcar, além da parceria com José Masó em Análisis comparativo de las principales corrientes inmigratorias españolas hacia Cuba: 1846-1898.

742SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba: A transição para o trabalho livre – 1860/1899. São Paulo: Paz e Terra, 1991. 743DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo. Tradução de Antonio Penalves Rocha. São Paulo: Editora Unesp, p.476, 2011. 744FRAGINALS, Manuel. El ingenio: complejo económico social cubano del azúcar. Havana: Editorial de Ciências Sociais, 1978.

Além disso, o autor frisa a importância da mão de obra chinesa dentro da perspectiva da transição do trabalho escravo para o livre, ainda que estes viessem a aceitar um regime muito semelhante ao da escravidão. Somente a título de curiosidade, se fizermos uma comparação com o Brasil, no mesmo período, teremos Podemos observar que entre 1862 e 1877, a população escrava cubana atingiu declínio de 77%, esta decaiu apenas 31%745. Não podemos esquecer que alguns movimentos originados no meio escravista também aconteceram, como a revolta de Demerara e a revolta de São Domingos, e que influenciaram movimentos de contestação da ordem vigente 746 na ilha cubana. Cuba, ainda colônia espanhola, durante a Guerra dos Dez anos (1868-1878) acabou por acelerar as alforrias seletivas747 – que incluíam exércitos de pardos e morenos, além de áreas rebeldes. Destaca-se que Cuba era, nesse contexto histórico, comandado por forças espanholas e, quando obteve sua independência da Espanha, sofria fortes influências dos Estados Unidos. Porém, não podemos conceber o processo abolicionista cubano sem considerar que a Espanha era contra a libertação, e em 1855, as Cortes Espanholas decidiram permanecer com a escravidão748. A libertação dos escravos seguiu vários estágios, começando com a implantação da Lei Moret em 1870, que dava liberdade aos filhos nascidos dos escravos a partir desta data e também a concedia aos escravos maiores de sessenta anos, além de dar a possibilidade de alforria àqueles que sofressem excesso de abuso749 e em 1886, encerrou as discussões, e o negro estava livre. Cuba decretou o fim da escravidão, mesmo que trabalhadores assalariados já ocupassem pequeno espaço na sociedade cubana e passou a cogitar a imigração

745 SCOTT, Rebecca J. Slave Emancipation in Cuba: The Transition to Free Labor, 1860-1899;[with a new Afterword]. University of Pittsburgh Pre, 2000. 746 DA COSTA, Emília Viotti. Coroas de glória, lágrimas de sangue. A rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; Emilio Cordero Michel. “La revolución haitiana y Santo Domingo”. Santo Domingo: Editora Nacional, 1968. 747 No caso, termo utilizado para designar a liberdade perante ingresso em exércitos. 748DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo. Tradução de Antônio Penalves Rocha. São Paulo: Editora Unesp, p.478, 2011.

749 TORRES-CUEVAS, Eduardo; FERNÁNDEZ, Eusébio Reyes. Esclavitud y Sociedad: notas e documentos para la historia de la esclavitud negra em Cuba. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, p.226-246, 1986.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

40 1

branca como forma de obter progresso econômico750. Esta imigração, entretanto, devia acontecer baseada no trabalho e sem outros fins. Porém, o quadro cubano é mostrado com receio, já que o país passara por uma guerra e uma brusca queda nas exportações, a Guerra dos Dez Anos (1868-1878), somando-se a isso a competição das exportações açucareiras com as Antilhas. Assim, as áreas rurais cubanas sofreram com o êxodo rural, a taxa de mortalidade crescente e a falta de produção. Todos esses quesitos estagnaram a economia e fizeram crescer a necessidade de trabalhadores nos campos, a fim de que a economia se recuperasse. Apesar do período complexo pelo qual a Ilha passava, a imigração ficou assegurada. Essa corrente migratória esteve ligada ao desenvolvimento das Centrais (Indústrias açucareiras cubanas), que, após a Emenda Platt, passaram a contar com capital norte-americano, estimulando a produção e a imigração de espanhóis e outros grupos751. Apesar da preferência pelo homem branco, a imigração permitiu todo e qualquer trabalhador, pois a economia, que sofrera uma queda como reflexo das leis contra a escravidão passou a ditar as regras e admitir todo e qualquer trabalhador. A entrada de imigrantes, porém, nem sempre resultava na ação esperada de trabalhar nas lavouras e engenhos canavieiros, pois muitas vezes os próprios imigrantes acabavam por encontrar melhores ofícios. Sendo assim, já não importava a cor daqueles que viessem, desde que fossem obedientes, trabalhadores e custassem pouco. Então, após o fim da escravidão, os trabalhadores cogitados passaram a ser os índios mexicanos, africanos e asiáticos. Entretanto, não contamos apenas com a entrada de brancos, mas também de familiares que possuíam cartas de recomendação dos mesmos, assim como a entrada de imigrantes das Ilhas Canárias, como demonstra o exemplo abaixo:

P.S. Tengo un Hermano en las Canárias del cual creo haberle hablado otras veces. No pudiendo el mismo encontrar una colocación en aquellas bárbaras y miserables Islas, tal vez se resuelva a ir a la Habana. Si así fuere, desde ahora se lo 750 SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba: A transição para o trabalho livre – 1860/1899. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p.52.

751 DE LA RIVA, Juan Pérez. Los recursos humanos en Cuba al comenzar el siglo. In: La República Neocolonial.Havana: Anuário de Estudos Cubanos, n º I, Editorial de Ciências Sociais, 1975, p.51.

recomiendo con toda mi alma. Mi Hermano no es literato, ni hombre de ciência, ni há hecho un curso completo de estúdios, pero ha cultivado mucho su espíritu, y en itália estudió un poco de todo. Conoce perfectamente la lengua italiana, bien la española y pasablemente la francesa. Pero lo más interesante es que mi hermano Mariano posee un corazón excelente, es un carácter leal, franco, aunque un poco extravagante, y una conciencia pura y delicada. Le recomiendo, pues, calidamente a mi querido hermano752. Dentre os vários grupos imigrantes, focaremos nossa análise na vinda dos chineses, também chamados de “chins”. Calcula-se que, entre os períodos 1847 a 1874, cerca de 125.000 chineses adentraram o país, e grande parte deles fixou-se nas grandes áreas produtoras de açúcar (Matanzas, Cardenas e Colon753). Esses grupos acabaram por chegar a Cuba em remessas diferentes, encontrando dificuldades ao estabelecerem-se em terras estrangeiras, sendo muitas vezes negociados a preços menores que os trabalhadores africanos e europeus. Somando-se a isso, também eram agrupados em barracões onde recebiam uma alimentação diferente da culinária chinesa, sendo obrigados a ingerir produtos de gênero americano e correndo o risco de sofrerem violência física por parte dos capatazes754, como podemos ver no trecho a seguir:

752 MONTE, Domingo del. Centón Epistolário. Havana: Academia de la Historia de Cuba , Tomo I, 1923, 24. 753 LAMOUNIER, Maria Lucia. Between slavery and free labour: experiments with free labour and patterns of slave emancipation in Brazil and Cuba c. 1830-1888, 1993, p.40. 754 SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba: A transição para o trabalho livre – 1860/1899. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p.44.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

40 3

Las declaraciones y solicitudes dejan ver que el 8/10 del total de los trabajadores chinos declararon que habían sido arrebatados por astucia o a la fuerza; que durante la travesía, la mortalidad resultante, bien fuese por heridas ocasionadas por golpes, bien sea por enfermedades o suicidios, llegaba a más del 10 %; que a la llegada a La Habana, donde se les vendía como esclavos, una pequeña proporción eran vendidos a las familias y las tiendas donde eran maltratados, mientras que la gran mayoría pasaba a ser propiedad de los hacendados azucareros y tenían que soportar las mayores crueldades; que el trabajo es demasiado penoso y la comida insuficiente; que las horas de trabajo eran demasiado prolongadas y que los azotes, el látigo, las cadenas, el cepo y otros castigos ocasionan toda clase de sufrimientos y heridas. Durante los años pasados, gran cantidad de chinos murieron por los golpes o heridas recibidas, o bien se ahorcaron, se degollaron, se envenenaron con opio o se tiraron en las calderas llenas de guarapo hirviente. Hemos podido ver personalmente gran número de chinos con los brazos o las piernas fracturadas, ciegos, con la cabeza cubierta de llagas, y otros que tenían los dientes partidos, las orejas mutiladas, la piel y la carne magulladas, pruebas evidentes de crueldad que todos podían ver. A la terminación de los contratos, los dueños, en la mayor parte de los casos, rehusan entregar los certificados de liberación, e insisten en que los chinos firmen nuevos compromisos por varios años, a veces por más de diez años, durante los cuales son maltratados como antes. Si no quieren aceptar estos nuevos contratos, los envían al depósito o los emplean en la reparación de las calles, encadenados y vigilados sin salario alguno, tratamiento que no se diferencia en nada del que se da a los criminales presos. A continuación se les obliga a entrar de nuevo al servicio de un amo y a firmar un nuevo contrato, a cuya terminación se les envía de nuevo al depósito. Se procede así con ellos cada vez que terminan sus contratos, de manera que no solamente jamás pueden regresar a China, sino que ni siquiera pueden ganarse la vida como personas libres755. Sobre o volume de imigrantes que adentraram, calcula-se que 927 mil chegaram às Américas como trabalhadores contratados, ou indentured servants.756 As 755 COMISIÓN CUBANA PARA LA EMIGRACIÓN CHINA. “Informe de la Comisión enviada para comprobar las condiciones de los culíes chinos en Cuba”. Shangai: Imperial MaritimePress, 1876. (Juan Pérez De La Riva. El barracón, 1978. Apêndice do livro de De La Riva), p.334-335.

756

Na versão mais próxima da língua portuguesa, seriam “trabalhadores sob contrato”. Cf. Maria Lúcia Lamounier na tradução do livro de SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba: A transição para o trabalho livre – 1860/1899. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

razões para essa emigração chinesa estava, em grande parte, ligada ao domínio inglês e francês na produção manufatureira, que acabou por invadir regiões coloniais e priorizar os produtos da metrópole em detrimento dos das colônias, culminando no fechamento e não desenvolvimento de indústrias para empregar essa mão de obra. Desta forma, sem ter de onde tirar sustento, acabavam procurando oportunidades no Novo Mundo. Além de diversas ocasiões onde estes eram enganados e/ou trazidos à força, já que para alguns autores, como Juan Pérez de La Riva, esta seria uma nova escravidão, como aponta o trecho a seguir: T'ang Chank-k-üei y ocho más dicen en su petición: "Los engañadores de culíes buscan todos los medios para engañar a las gentes. Bajo el pretexto de ofrecer trabajo a los obreros, les hacen caer en sus trampas y los convierten en sus víctimas"757. Então surgiram interessados nesta empreitada, realizada por armadores que capitaneavam com suas próprias embarcações, pois ela garantia sucesso aos que dela fizessem parte, e isso se explica pelo preço de aquisição e venda de cada colono chinês, que custava 50 dólares e era vendido por 500758. Em Cuba, o número de brancos diminuirá exponencialmente devido às condições oferecidas pelos fazendeiros, que recrutavam trabalhadores através da Junta de Fomento cubana. Então, o número de brancos diminuirá exponencialmente devido às condições oferecidas pelos fazendeiros, que recrutavam trabalhadores através da Junta de Fomento.

“The Council's Committee on White Population soon developed a programme to stimulate immigration for the plantations. Prizes were offered to planters who settled white

757COMISIÓN CUBANA PARA LA EMIGRACIÓN CHINA. “Informe de la Comisión enviada para comprobar las condiciones de los culíes chinos en Cuba”. Shangai: Imperial MaritimePress, 1876. (Juan Pérez De La Riva. El barracón, 1978. Apêndice do livro de De La Riva).

758“L‟arruolamento e trasporto dei Coolies”. La Borsa (1874). Apud Mario Enrico Ferrari. “Sullatratta dei coolies‟ cinesi a Macaonelsecolo XIX”. p. 329.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

40 5

families on their lands and to sugar mills employing exclusively white labour”759.

Ainda de acordo com Maria Lucia Lamounier, no ano de 1846, o número de brancos era de 1.673, ao passo que o de chineses chegava a 6.000 trabalhadores. Porém, uma decisão do “Committee on White Population”, acabou por dar preferência aos trabalhadores asiáticos, por estarem acostumados com o trabalho deles nas Filipinas, outra possessão espanhola760. Northrup aponta que 121.819 chineses chegaram à Cuba, entre 1847 e 1873 761. Apesar da suposta perversão dos asiáticos, também lhes foi associada a posição positiva do fiscal Olivares: Is it possible that the nature of the colono have changed so suddenly? Aren't hacendados illuded in the midst of an understandable desire to meet, at whatever cost, an urgent need? (...) how do they expect submission and humility from free men, who being better educated than the mayorales and workers placed in charge of them, live in temporary servitude mixed with savage Africans and subjected to the same regime as them?762

Um detalhe que nos chama a atenção é que alguns dos chineses que chegaram a Cuba, acabaram ficando sob a tutela do governo português, já que muitos deles embarcaram em Macau, região de domínio de Portugal. Porém, esta tutela acabou ficando muito limitada, pois os direitos dos trabalhadores chineses estavam sendo dizimados pela Junta de Colonização.

759 LAMOUNIER, Maria Lucia. Between slavery and free labour: experiments with free labour and patterns of slave emancipation in Brazil and Cuba c. 1830-1888. p.75, 1993. 760 Ibidem, p.91.

761 NORTHRUP, David. Indentured labor in the age of imperialism, 1834-1922.Nova York: Cambridge University Press, p.25, 1995.

762 Voto em separado, Escosura, March 4, 1852, AHN, Ultramar, leg. 85, n. 1, exp. 7. Apud LAMOUNIER, Maria Lucia. Between slavery and free labour: experiments with free labour and patterns of slave emancipation in Brazil and Cuba c. 1830-1888. 1993. Tese de Doutorado. London School of Economics and Political Science (LSE).

No relato de Eça de Queiroz, podemos observar que a Junta de Colonização acabava por bloquear o acesso dos imigrantes até mesmo a seus documentos que seriam de direito: La legislación cubana há dividido artificialmente la emigración asiática en dos tipos de colonos: los llegados a Cuba antes del 15 de febrero de 1861, y los que vinieron después de esta arbitraria fecha. Como los primeiros han concluido ya el plazo de ocho años, por el que se contrata a todos los colonos que salen de Macau, son libres en su trabajo y pueden requerir de este consulado la cédula de extranjero; a los otros, a los que han llegado después del 61 y a los que ahora llegan, se les obliga, una vez finalizados sus ocho años de contrato, a salir de la Isla en el plazo de dos meses, o a recontratarse de nuevo. Tal es, en resumen, la legislación. Pero con disgusto he de decir a V. E. que la práctica es extremadamente diferente, y autoriza la opinión europea de que la emigración china resulta una artera disimulación de la esclavitud. La ley permite a los asiáticos que llegaron antes del 61 que soliciten su cédula de extranjero, pero por todos los medios se impide que la obtengan. El método es manifiesto: en La Habana se ha constituido, sin estatutos y sin autorizacíon del Gobierno de Madrid, una comisión arbitraria que se denomina Comisíon Central de Colonización [Blanca]. Esta comisión pretende tener dominio de la emigración. Formada por los proprietarios más ricos, impone con toda naturalidad a las autoridades superiores de la Isla, y ha conseguido que se determinara que ningún asiático obtenga del consulado su cédula de extranjero sin que la Comisión Central informe sobre él y lo autorice a requerirla. Ahora bien, sucede que la Comisión Central, prolonga indefinidamente esta información para cada uno de los asiáticos, y durante ese tiempo el colono se halla en una situación anormal e inclasificable: no es colono porque ha terminado su contrato, y no es libre porque no tiene su cédula. Esta situación va en provecho de todos: de la policía, que a la más mínima infracción (encontrar, por ejemplo, a un chino fumando opio) le impone enormes multas; del Gobierno que lo aprovecha, sin salario, para las obras públicas; y de los hacendados, que acaban por contratarlo de nuevo. De suerte que el beneficio que la ley le concede resulta inútil en la práctica. En cuanto a los que llegaron después de 1861, una opresiva legislación les obliga, una vez acabado su contracto, a salir de la Isla en dos meses o a volver a contratarse; y como naturalmente los colonos no tienen medios para regresar a China, la policía los recoge en los depósitos y se ven obligados a servir ocho años más763. 763 QUEIROZ, 1872. p. 139-140 apud PERES, Victor Hugo Luna. “Os “Chins” nas sociedades tropicais de plantação: estudo das propostas de importação de trabalhadores chineses sob contrato e

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

40 7

Somada a péssima condição de trabalho, alguns chineses encontraram uma solução para o que encaravam em solo cubano: o suicídio. Segundo Juan Perez de La Riva, as taxas de suicídio eram tão grandes, que no século XIX, constava-se uma morte para cada 4.000 habitantes, sendo chineses, elevando Cuba a região de maiores índices de morte no gênero.764 Alguns romances cubanos também mostravam o preconceito com relação ao imigrante chinês e o imigrante “californiano”. Para definirmos aqui o que seria o conceito, temos que entender que a imigração chinesa alastrou-se pela América, incluindo países como Estados Unidos e Peru, portanto, “californiano” seria o termo usado para definir o chinês que havia migrado primeiramente para os Estados Unidos e depois, teria se estabelecido em Cuba. O perfil do imigrante, segundo Juan Perez de La Riva, era majoritariamente masculino, de regiões pobres como Guangdong e Fujian e sua expectativa de vida, em solo cubano, era de 18 a 20 anos. 765 Para termos uma breve noção de como o chin era visto dentro da sociedade cubana do século XIX, usaremos um trecho da obra Carmela, de Ramón Meza, do ano de 1887. Neste romance, uma mestiça de brancos e negros apaixona-se por um branco rico, mas este casa-se com outra, sobrando para a moça mestiça já grávida, o casamento com um chinês, que é definido pelas palavras do autor “[embora] fosse chinês em aparência, em todo o restante era uma pessoa decente”766. Portanto, vemos que havia uma relação em que a composição social era marcada no topo pelos brancos, sejam eles peninsulares ou criollos, chineses e negros. Ser chinês e seus descendentes, estava acima dos negros, porém ainda não eram considerados como iguais. Evelyn Hu-deHart 767, destaca que mesmo com vários suas experiências de trabalho e vida no Brasil (1814-1878)”, 2013, p. 44. 764 PÉREZ DE LA RIVA, Juan. Demografía de los Culíes Chinos en Cuba (1853-74). Anexo da Revista da Biblioteca Nacional, a. 57, n. 4, 1966. 765 Para detalhes demográficos sobre esta imigração chinesa, consultar PÉREZ DE LA RIVA, Juan. Demografía de los Culíes Chinos en Cuba (1853-74). La Habana: Biblioteca Nacional José Martí, 1966. 766 MEZA, Ramón: CARMELA, Ed. La Propaganda Literaria, La Habana, 1886, p. 167. 767 Para maiores consultas, ver HU-DEHART, Evelyn. .“Chinese Coolie Labor in Cuba in the Nineteenth Century: Free Labor of Neoslavery”.

empecilhos, péssimas condições de sobrevivência e pouca liberdade, alguns chins acabaram acumulando pequenas riquezas, ascendendendo socialmente, porém esta afirmação não descarta a conclusão de Juan Perez de La Riva, onde o imigrante amarelo seria um novo tipo de escravo.

O Horror Poético como ato de resistência ao Horror da Guerra Paula Tainar Souza768. Mestranda em História/UEL

768 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina (PPGHS/UEL). Bolsista CAPES.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

40 9

Resumo O cinema alcançou influência no decorrer do século XX. Devido sua capacidade de testemunho do real tornou-se fonte para o ofício do historiador 769. Muito explorado enquanto propagação de ideologias, crítica social e de acontecimentos políticos, é um instrumento que possibilita a continuação dos conflitos em tempos de guerra. Notamos que as produções do expressionismo alemão atualizam na tela do cinema a Primeira Guerra Mundial; utilizando seus acontecimentos enquanto inspiração para criação de um mundo fantástico. Com a presença do demoníaco nas obras fílmicas, surge uma nova imagem do pensamento, que cria a partir da ótica do horror poético. O objetivo desse artigo é realizar uma análise do horror da Primeira Guerra relacionando-a com o horror presente nos filmes; e como de que modo o expressionismo representa ato de resistência para seus criadores e toda a população alemã. Palavras-Chave: História, Cinema, Expressionismo alemão, Arte. INTRODUÇÃO Teria sido o expressionismo alemão um ato de resistência ao horror predominante no cotidiano durante o momento após Primeira Guerra Mundial na Europa? Para responder a esta questão far-se-á aqui uma análise desse gênero fílmico relacionando-a com o debate historiográfico a respeito da temática. Foi realizado um estudo acerca do conceito de horror, e o estabelecimento da relação entre o horror artístico dos filmes e o horror natural da guerra. Além disso, direcionamos o olhar para o cinema do expressionismo alemão enquanto uma obra demoníaca que testemunha o presente em que está inserido. O processo de reconhecimento do cinema como fonte história, embora seja tardio – em relação a outras fontes – é pertinente ao trabalho do historiador. Enquanto testemunho do real, evidencia inúmeros aspectos do período em que foi produzido, tornando possível a captura de vestígios silenciados. A produção de filmes é realizada coletivamente, nesse sentido, concordamos com Siegfried Kracauer quando ele afirma que a produção fílmica espelha a mentalidade de uma sociedade de forma mais direta. É arte influenciada por variadas pessoas tornando possível o diagnostico de predominâncias da sociedade770. Além disso, o cinema é produzido para o espectador, 769 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. 770 KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma historia psicológica del cine alemán. Traducción de Héctor Grossi. 2ª edición castellana revisada. Barcelona: Ediciones Paidós, 1985.

o que possibilita a observação da presença de aspectos e costumes e culturas relevantes na sociedade em geral. O cinema do gênero expressionismo alemão surge por volta de 1910 e tem o auge na década de 1920771, no contexto político da República de Weimar, em meio a todo o caos alemão. Essas produções fílmicas estão inseridas em um contexto de organização política e social frágil. Mesmo resultando dos destroços do conflito, obtém popularidade. Essas obras foram produzidas até a ascensão de Hitler em 1930. Como alguns críticos achavam que a guerra já produzia horror demais, filmes do gênero pararam de serem produzidos durante a Segunda Guerra772. O horror no cinema torna-se uma das perspectivas da realidade, que representam o mundo com narrativas de horror e singularidade de cada cineasta773. O expressionismo vigorou na Alemanha nos anos 1920 e 1930. Fortemente influenciado pela literatura e pelas artes plásticas, esse cinema contava histórias, mas, digamos, histórias fantásticas, e as imagens que mostrava tinham pouco a ver com a realidade cotidiana que nos cerca: os espaços, a arquitetura, os objetos lembravam, sem dúvida, ruas, casas, florestas, mas totalmente “deformadas”. O que se procurava era expressar uma realidade interior, era como o cineasta-poeta sentia a realidade. [...] aspectos estilísticos do expressionismo influenciaram outros cinemas, o americano em particular [...] os traços expressionistas foram absorvidos e como que neutralizados pela narrativa americana. (BERNARDET, 2012: 56, 57) Pela ótica do horror, os filmes expressionistas invocam na tela os acontecimentos da Primeira Guerra, criando narrativas e mundos fantásticos 774. Invoca o horror, grotesco, medo, insegurança, temas não explorados pelas narrativas tradicionais. Essas obras demoníacas, com muito a dizer da realidade criam uma nova imagem do pensamento, representando não só um rompimento com o padrão estabelecido até então no Antigo Regime na forma de se fazer arte, como também mudanças nas relações cotidianas. Realizaremos uma análise do expressionismo 771 BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema. 12ª edição. São Paulo: Brasiliense, 2012. 772 CONY, Carlos Heitor. O gabinete do Dr. Caligari. In: Folha conta 100 anos de Cinema. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1995, p. 13-17.

773 HUNTER, Russ. Terror gótico. In: KEMP, Philip (org). Tudo sobre cinema. Rio de Janeiro: Sextante, 2011, p. 88-91.

774 EISNER, Lotte H. A tela demoníaca: as influências do Max Reinhardt e do Expressionismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra: Instituto Goethe, 1985.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

41 1

alemão para diagnosticar o cinema do gênero expressionismo alemão enquanto arte, mas também essa arte enquanto resistência a sociedade de controle na qual está inserida, tanto para os que criam, como para os que assistem. O filme como Testemunho do Presente A utilização de filmes como fonte começa a ser especulada de forma mais intensa a partir da década de 1960. Marc Ferro propõe o estudo do cinema enquanto fonte documental para explicar acontecimentos e “fatos” da sociedade. O autor é um dos precursores na relação entre história e cinema, por exibir um ponto de vista a respeito da temática ainda pouco explorada no campo da História. A consciência de que o cinema é eficaz na propagação de ideologias, crítica, denúncia é que permite sua inserção como fonte historiográfica. É um instrumento com capacidade de atuação mais efetiva que outras artes em disputas, tornando possível a continuação de conflitos a partir de si. Marc Ferro propõe duas formas principais de análise do cinema como fonte; o filme como documento primário e como documento secundário775. Esse método permite ao historiador/pesquisador direcionar um olhar e analisar a fonte cinematográfica em sua “totalidade”. O filme como documento secundário seria a leitura histórica do filme, ou seja, a cinema presente na História. O olhar que o historiador direciona para o filme é como uma documentação histórica, que pode ser utilizado em conjunto com outras fontes com a intenção de identificar fragmentos do passado presente naquela produção. Quando analisamos o filme como documento secundário, o olhar direcionado para o mesmo é como uma representação do real. O filme como documento primário é a leitura cinematográfica da História, ou seja, a presença da História no cinema. Inversamente, os filmes cuja ação é contemporânea da filmagem não constituem somente um testemunho sobre o imaginário da época em que foram feitos; eles também comportam elementos que têm um maior alcance, trazendo até nós a imagem real do passado. [...] cada plano é um quadro que a crítica história poderia pacientemente analisar, mas que foi por longo tempo negligenciado. (FERRO, 2010: 60) 775 FERRO, Marc. Cinema e História. Tradução de Flávia Nascimento. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

Em ambas as alternativas, o filme pode ser analisado a partir da observação de aspectos importantes da realidade presentes na obra. É possível diagnosticar a propagação de orientações políticas, valores e costumes culturais, influência social e econômica. Essas ideologias são diferentes dependendo do interesse da equipe de produção. Além disso, do mesmo modo que toda História é contemporânea, já que os homens são filhos de seu tempo 776, toda produção fílmica é contemporânea por tratar sempre de temas atuais. Independente do que pretende representar, refere-se ao contexto que está inserida. O cinema não tem compromisso com a verdade, por isso os diretores exploram acontecimentos passados modificando-os conforme seus interesses. Para chamar atenção do espectador, muitos filmes cometem anacronismo – misturando valores atuais com os do passado –. Mesmo não tendo compromisso com a realidade as narrativas cinematográficas compõe parte da realidade. Alguns espectadores acabam não conseguindo distinguir a realidade da fantasia, gerando expectativas não correspondentes, pois, os meios de comunicação tem criado um “real mais real que o próprio real”777. Marc Ferro cita em uma das passagens de seu livro História e Cinema o filme A Greve que contém a alegoria do açougue – manipulação da carne e de animais. Dependendo o público para o qual é direcionado, esse filme tem um impacto causado pelo símbolo que é diferente em culturas distintas. As pessoas que moravam no campo não tiveram nenhuma reação por estarem acostumadas a lidar com isso, diferente dos moradores da cidade que ficaram muito impressionados. Desse modo, concordamos com o autor quando ele afirma, “o filme possui significações que não são somente cinematográficas, ele não vale somente por aquilo que testemunha, mas pela abordagem sócio histórica que autoriza” (FERRO, 2010: 32) Horror Cotidiano e o Horror na Tela Nas discussões do Cinema enquanto técnica o filósofo Walter Benjamin é o mais importante, ele realiza essas reflexões no contexto do nazi-fascismo e a arte estava sendo utilizando para propaganda política e legitimação dessas ideologias, o 776 BLOCH, Marc. Apologia da História ou ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

777 MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. 7ª edição. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

41 3

que ele chama de estetização da Arte. Em A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica ele questiona a técnica em relação com a obra de arte, e ainda estabelece relações com o surgimento da sociedade de massa. O que Benjamin chama de reprodutibilidade técnica é a inserção do processo industrial na produção artística, além disso, afirma que toda produção humana sempre foi facilmente reproduzida em toda a história da humanidade, mas a reprodução técnica representa um fenômeno novo. Devido à riqueza de detalhes dessa reprodução, a forma como é encarada é diferente da manual. Na era das reproduções temos duas perspectivas: reprodução manual considera-se falsificação, o que não ocorre com a reprodução técnica, que é a segunda, ela capta a obra por completo e permite a utilização da mesma de forma que a original não possibilita778. Ainda assim Walter Benjamin questiona a legitimidade do que é reproduzido tecnicamente, uma vez que ele afirma que na reprodução ocorre a perda da aura da obra, desvalorizando o aqui-e-agora.

A autenticidade de algo é a essência de tudo que é transmissível desde a origem da sua permanência física até seu testemunho histórico. Já que o testemunho histórico repousa na permanência, quando a reprodução técnica a elimina é o próprio testemunho que se esvai. Só se perde isso, mas isso é justamente a autoridade da coisa. (BENJAMIN, 1993: 13) É importante levar em consideração, que com o surgimento da reprodutibilidade técnica modifica consideravelmente o conceito de Arte. Mas aqui, eu coloco o cinema como arte, e o expressionismo alemão como causador de horror artístico. Quando se trata de gênero cinematográfico, o horror também causará afetos distintos de pessoa para pessoa, as sensações vão depender da experiência e julgamentos do espectador. Apesar de a sensação ser necessariamente decorrente da crença, mesmo com conhecimento de que a narrativa é uma ficção, sentimos determinados afetos. Isso é resultante da capacidade do filme de transportar, mesmo que ilusoriamente, o espectador para a tela. Inclusive pelo fato de existir a identificação deste com o personagem quando o cinema é narrativo.

778 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: CAPISTRANO, Abreu (org). Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

Quando compreendemos o horror enquanto categoria de linguagem ordinária, deixamos de lado a conexão com o sentido obscuro. Na presente pesquisa utilizaremos o conceito de horror a partir da perspectiva de Noel Carroll. Ele estabelece distinção entre o horror artístico e horror natural779. “Horror artístico”, por convenção, pretende referir-se ao produto de um gênero que se cristalizou, falando de modo bastante aproximado, [...] e que persistiu, não raro ciclicamente, através dos romances e peças do século XIX e da literatura, dos quadrinhos, das revistas e dos filmes do século XX. [...] Contudo, o gênero propriamente dito começa a tomar corpo entre a segunda metade do século XVIII e o primeiro quartel do século XIX, como uma variante da forma gótica na Inglaterra e de desenvolvimentos correlatos na Alemanha. (CARROLL, 1999: 28) O horror artístico está presente nas obras de arte em geral, no nosso caso o cinema. Mas é importante enfatizar, que nem toda obra de terror causa esse horror, pois, de um gênero derivou-se vários pontos de vista. Para estar entre as obras de horror artístico, é preciso existir a figura de um monstro que cause simultaneamente uma criatura repulsiva e perigosa.

Causando afetos no personagem e

consequentemente no espectador de nojo, e também medo devido o caráter ameaçador da criatura. A maioria dos filmes expressionistas tem a presença da figura do monstro. E quanto a isso Siegfried Kracauer afirma que foi justamente a presença desses monstros destituídos de bondade e isolados em egotrips de poder que influenciaram a procissão de tiranos780. Cada qual com sua singularidade, no geral são perigosos e repulsivos. Alguns exemplos são: Caligari com ênfase no psicológico tem sua loucura como ameaçadora e repulsiva; O Golem é paradoxal, simultaneamente salvação e ameaça aos judeus do gueto de Praga, seu descontrole o torna perigoso, e sua aparência estranha deixa a criatura repulsiva; Nosferatu é ameaçador devido sua busca incessante por sangue, e quando comparado a ratos nos mostra o quando e sujo, por isso repulsivo.

779 CARROLL, Noel. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas, SP: Papirus, 1999.

780 KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma historia psicológica del cine alemán. Traducción de Héctor Grossi. 2ª edición castellana revisada. Barcelona: Ediciones Paidós, 1985.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

41 5

Esse horror artístico é diferente de uma maneira de se expressar diante de acontecimentos reais. Por exemplo, o horror da guerra, esse horror natural é o mesmo que “dizer “estou horrorizado com a perspectiva de um desastre ecológico” ou “políticas do tudo ou nada na era nuclear são algo horrendo” ou “o que os nazistas fizeram foi horrível”” (CARROLL, 1999: 27). Os filmes produzidos na Alemanha nesse período trazem consigo uma carga pesada de representação, imaginário, crítica à sociedade, etc., que além de abranger o contexto da primeira guerra, se estendem até o período em que a Alemanha se sente humilhada pela imposição do Tratado de Versalhes, recebendo a culpa por todas as atrocidades ocorridas durante a guerra. Juntamente com a ascensão de Hitler ao poder, no ano de 1930 o filme gótico chega a América devido a Grande Diáspora que ocorre da Alemanha para outros países da Europa e América, mesmo período em que surge o “filme de terror”. Notamos que o gênero do expressionismo pode ser considerado uma representação da situação política e econômica da Alemanha. O país “pareceu afundar no caos político e econômico. Embora a transição politica propriamente dita de novembro de 1918 fosse extraordinariamente pacífica, [...] logo houve derramamento de sangue781” (BESSER, 2014:19). Diante da experiência do conflito e destroços do mesmo, notamos a déficit de produções do gênero de comédia, com foco no horror. De acordo com Niall Ferguson, a Primeira Guerra matou aproximadamente oito milhões de pessoas, além disso, destruiu economicamente boa parte da Europa782. A obra Demoníaca em dois atos: Criação e Resistência Boa parte das produções expressionistas realizadas em tempos de guerra é demoníaca. O significado do conceito de demoníaco propagado até a atualidade tem influência do cristianismo, resultando em uma interpretação deturpada do conceito e das obras do gênero de horror. Mas o sentido de demoníaco presente nas artes que buscamos é da maneira como compreendia Johann Wolfgang von Goethe. Demoníaco e diabólico são conceitos distintos embora o senso comum estabeleça relação entre 781 BESSEL, Richard. Nazismo e Guerra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. 782 FERGUSON, Niall. O horror da guerra: uma provocativa análise da primeira guerra mundial. São Paulo: Editora Planeta, 2014.

eles. Essas produções lidam com o que causa medo, repulsa, ansiedade e horror. Devido a presença desses aspectos são obras facilmente encaradas enquanto manipuladores de energias que invocam carga negativa de energia. Diferente das catástrofes da realidade, essas criações demoníacas tem o objetivo de causar horror artístico no leitor/espectador. É uma relação favorável com as causas e consequências que as composições possíveis com o horror e algumas criaturas representam. “Num conceito, há [...] componentes vindos de outros conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. [...] cada conceito opera num novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado 783.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992: 30). Notamos isso em demoníaco, remete a sinônimos, significações e relações, que vão sendo inseridos de forma aleatória, gerando uma série de aspectos, em muitos casos, que desfavorecem a obra. Demoníaco na perspectiva de Goethe refere-se à inspiração para criação e produção artística784. A singularidade de demoníaco está em seu caráter positivo, pois é relacionado com o ato de criação a partir do horror poético. Aquilo que foge do padrão, anormal, monstruoso, presente nas artes. De forma alguma relacionado a perspectiva religiosa da dualidade oposta de bem e mal. Bloch realça: existe também o demoníaco “favorável” ou positivo. São as grandes revoluções libertadoras (o mal, comenta Bloch, é que para cada mil guerras há somente dez revoluções que têm a ver com a liberdade). Demoníaco “favorável” é, igualmente, o gênio que dá à luz algo novo. Nesses casos, não domina a impetuosidade, mas o entusiasmo. E o entusiasmo é capaz de sacrifício e de comunicação. Possui consciência.” (FRAIJÓ, 1999: 21) Em Goethe notamos uma significação oportuna para o conceito de demoníaco785. Ele representa a ação e a criação para a produtividade, inspiração artística que se mantém em plena atividade. Exemplo disso é a grande admiração de Nietzsche pelo ‘esplendor da atividade’ – que em sua obra refere-se a isso em vários momentos – presente em Prometeu. Goethe enquanto poeta tem sua obra prima 783 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é Filosofia?. Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

784 MAGALHÃES; BRANDÃO; FERRAZ; LEOPOLDO (orgs). Demoníaco na literatura. Campina Grande – PB: Eduepb, 2012.

785 FRAIJÓ, Manuel. Satanás em baixa. São Paulo: Editora Loyola, 1999.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

41 7

Fausto como um pleno representante do demoníaco786. Na narrativa o protagonista do romance faz um pacto com Mefistófeles em busca de sabedoria plena. Mefistófeles é a representação mais perfeita desse demônio “favorável” que dá inspiração e sabedoria ao Fausto. É um aspecto presente em várias manifestações artísticas. Na Literatura, o Romantismo; na pintura, arquitetura, cinema, e dança, o expressionismo. Desse modo, essa energia materializa-se de inúmeras formas distintas, “o demônio de Goethe encarnou-se em seu Fausto; o de Beethoven, na Heroica; o de Dante, em A Divina Comédia” (FRAIJÓ, 1999: 21). O demoníaco criativo é resultado da tensão presente entre criação e destruição, positivo e negativo. Para o filósofo Gilles Deleuze a criação é decorrente do Caos, o conceito é criado pelas Caóides - filhas do Caos: Arte, Filosofia e Ciência 787. O demoníaco, criação poética a partir do horror, só surge no campo da Arte. Goethe resume o seu entendimento do conceito de demoníaco da seguinte forma: “O demoníaco aparece de modo ainda mais terrível quando se apresenta como o elemento preponderante num homem qualquer. Tais homens nem sempre são mais eminentes mediante o seu espírito ou talentos; raramente se reconhecem pela bondade do coração. Mas emana deles uma força incrível exercem um incrível poder sobre todas as criaturas e até sobre os elementos. Quem pode dizer até onde se poderá entender semelhante influência?” (GOETHE, 1999: 325) Quando encarado enquanto força que se apodera de um indivíduo, resultando em possessão, se torna algo concreto. Quando esse mal se materializa e então se torna um possível causador de dano, os indivíduos deixam levar-se por espíritos malignos, por isso são também malignos. A presença de características humanas e do que é possível causa ainda maior pavor, pois “o demoníaco tornou-se independente do demônio. O demoníaco é um nome que se dá ao que acontece conosco, às maldades que perpetramos. Nosso demônio não é mais a figura bíblica, mas nós mesmos” (FRAIJÓ, 1999: 8).

786 GOETHE, J. W. Memórias: Poesia e Verdade. Tradução de Leonel Vallandro. Brasília: UNB/Hucitec, 1999.

787 MOSTAFA, Solange Puntel; NOVA CRUZ, Denise Viuniski da (Orgs). Deleuze vai ao cinema. Campina, SP: Alínea, 2010.

A Arte, através da Criação, aprisiona o Acontecimento em blocos de espaço/tempo. É esse Acontecimento que servirá de inspiração para a Arte, que o conserva transformando-o em sensação788. O Acontecimento é um conceito criado pelo filósofo Gilles Deleuze, e nasce de seus estudos sobre o estoicismo, em oposição ao platonismo e aristotelismo. Os três são imagens do pensamento com valores distintos, que orientam e resultam na construção de práticas e modos de vida. O Platonismo é a imagem do pensamento dogmática que se manteve clássica, o corpo é visto como desnecessário, um empecilho para essa transcendência, busca na altura, tudo que é referente à Natureza é negado. O pensamento platônico soluciona o problema e a contradição na tentativa de apaziguamento da Vida. E no Aristotelismo ou présocráticos, tem a busca nas profundezas resposta tanto de questões metafísicas, como científicas, vão até a natureza última das coisas de forma plenamente racional. De um lado temos uma imagem do pensamento que busca a consolação, no outro extremo o homem do desespero. É a grande descoberta estóica, ao mesmo tempo contra os pré-socráticos e contra Platão, a autonomia da superfície independente da altura e da profundidade, contra a altura e a profundidade; a descoberta dos acontecimentos incorporais, sentidos ou efeitos, que são irredutíveis aos corpos profundos assim como às ideias altas. (DELEUZE, 136, 2000) Os estoicos viviam na superfície, onde corpo e pensamento são formados da mesma natureza, o pensamento e a vida são partes de uma só expressão vital. Para eles é na superfície que ocorrem os Acontecimentos, ou seja, a imanência onde a vida acontece e pode ser experienciada; não nas alturas, como afirmara os platônicos, e nem nas profundezas, como afirmara os pré-socráticos. Eles criaram uma nova orientação do pensamento, que tem plenamente a presença da Natureza e da Vida. Da relação entre Inteligível e Sensível, ou seja, do atrito entre Conceito e Intuição – estoicos – é que surge a prática da Filosofia da Diferença, que cria a partir do caos. Deleuze elege o Acontecimento como objeto de sua metafísica no lugar das ideias e das substâncias. É pertencente ao devir, está em um plano de imanência, e de tão singular não pode ser reproduzido. É tão desapegado que “o acontecimento não se preocupa com o lugar onde está, e não quer saber há quanto tempo existe” (DELEUZE; GUATTARI, 149, 1992). Aflora tanto a singularidade que, não há 788 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é Filosofia?. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

41 9

modelo, não há fórmula, cada um cria do caos sua experiência, que é única, nunca mais será possível reproduzi-la. Quando a Arte rompe com o modelo vigente e padronizado da informação, torna-se uma contra-informação, tornando-se assim um ato de resistência. CONCLUSÃO Através do olhar atento ao gênero de horror expressionista fica evidente que o cinema além de influenciar a sociedade, é capaz de testemunhar o real. Assim como a política, é um instrumento que possibilita a continuação dos conflitos - através de si – principalmente em tempos de guerra. Notamos uma distinção entre horror artístico e horror natural. Produções do expressionismo alemão atualizam o horror e desespero da Primeira Guerra Mundial na tela de forma artística. Além disso, utiliza-se desses acontecimentos enquanto inspiração para criação de um mundo novo e fantástico, que também sendo considerada Arte, permite vazar parte dessa tensão. Essas produções alemãs denunciam um momento de crise, ressentimento e desespero do pós-guerra, e simultaneamente tornam-se uma forma de escapar momentaneamente da realidade. O expressionismo alemão surge trazendo uma nova imagem do pensamento, que representa o real, assim como cria nova perspectiva a partir da ótica do horror poético. Nem todo ato de resistência é uma obra de arte, e não temos a intenção de supervalorizar a arte para a conquista de liberdade e resistência. Mas colocamos o expressionismo, respeitando todas suas peculiaridades enquanto ato de resistência – para seus criadores e toda a população alemã – contra o horror que estavam vivendo. Estou ciente de que as análises não se esgotam por aqui, esse trabalho é uma pequena parte de uma pesquisa ampla ainda em desenvolvimento.

Coronelismo e Cultura Política – Uma Aproximação Teórica.

Pedro Luis Zonta Junior789 – Mestrando em História - UNESP/Franca.

Resumo: O presente trabalho surge de uma pergunta bastante simples. O coronelismo pode ser considerado uma cultura política? O princípio da resposta esboça-se no texto a seguir, utilizando como base parte da historiografia acerca do coronelismo, comparada por sua vez, a textos sobre a cultura política. Autores como Victor Nunes Leal e Eul-Soo Pang são grandes referenciais para balizarmos as disputas nos conceitos. Destarte, indico como hipótese que a disparidade existente dentro dos próprios limites do que é um coronel e como se dão suas relações são bons referenciais para pensarmos querelas existentes entre aqueles que a historiografia representou como coronéis, dificultando tanto a possibilidade de se pensar em um grupo homogêneo de coronéis, quanto em na homogeneidade de suas ações. Palavras-chave: Coronelismo; Cultura Política; História Política.

Introdução. Embora a historiografia francesa, da qual muito herdamos, tenha se eximido de discussões de cunho político durante muito tempo, René Remond 790 lança em 1988 uma espécie de manifesto clamando “Por Uma História Política” renovada, que adote novos referenciais metodológicos e que incorpore métodos da sociologia, da antropologia, da filosofia, da psicologia. O desafio é aceito, e a então reclusa História Política volta a figurar nas discussões francesas. O próprio Remond cita, en passant, a possibilidade de se trabalhar com o conceito de Cultura Política, sem se ater muito ao seu significado. 789 Mestrando vinculado ao programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de

Ciências Humanas e Sociais de Franca (UNESP Franca). Pesquisa financiada pela CAPES.

790 REMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

42 1

Serge Berstein791 afirma que este teve seu período de glória em 1960, utilizado pela então chamada escola “desenvolvimentista”, sendo aplicado principalmente por cientistas sociais e politólogos norte-americanos, mas com uma carga de significados bastante diversa da que aplicamos hodiernamente. Cultura política exprimia então a ideia de se “encontrar uma regra de comparação entre sistemas políticos diferentes, mas considerados de valor desigual, com relação a critérios de desenvolvimento estabelecendo como modelo de modernidade as normas e os valores das democracias liberais do Ocidente” 792. Não obstante, o então conceito admitia que os países possuíssem uma só cultura política, haja vista o estudo comparativo entre as nações. É evidente que para ter ganho visibilidade dentro das teorias das ciências sociais, o conceito teve todo um peso de inovações. Alberto Aggio 793 aponta que a pedra fundamental da utilização do conceito na ciência política foi a obra The Civic Culture: Political Attitudes and Democracy in Five Nations, de G. Almond e S. Verba, publicados pela primeira vez em 1963. O estudo permitiu que a ciência política se desviasse de seus temas mais tradicionais para “Voltar-se para as dimensões que afetam o conjunto de atitudes, crenças, valores e normas, mais ou menos compartilhadas na vida política da sociedade794. Em decorrência das pesadas críticas, o conceito acabou sendo deixado de lado por um tempo. Na década de oitenta, com a democratização de uma série de países e também da possibilidade de democratização de várias esferas da vida, o conceito de cultura política tomou novos ares. Obviamente que para ser aplicado teve parte de suas teorias revisitadas e modificadas. O conceito em si, passou se relacionar com as opções disponíveis aos atores políticos, ou seja, estava ligada a uma condição histórica. Dessa maneira, acabava por englobar uma série de objetos que não 791 BERSTEIN, Serge. Culturas Políticas e historiografia. In AZEVEDO, Cecília, ROLLEMBERG, Denise (orgs.) Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 29 - 45. 792 Ibid., p. 32. 793 AGGIO, Alberto. Uma aproximação introdutória ao universo da cultura política. In: Uma

nova cultura política. Brasília: Fundação Astrogildo Pereira, 2008. Cap. 2, p. 45-51.

794 Ibid., p. 45.

comtemplava em sua formulação primeira. Como o historiador parte de dados empíricos para seus estudos, ele confronta diversos temas que podem ser coerentes entre si ou rivais, questionando-se sobre suas permanências ou mutações, e, além disso, qual o papel que os homens que ocupam dada sociedade desempenham em sua organização, ou o que motiva suas participações e seus comportamentos políticos. Dessa forma, “ela (a cultura política) varia em função dos lugares, das épocas, dos tipos de civilização”795. A cultura política é, portanto, algo extremamente mutável. Muda de forma conforme os lugares, as épocas e os tipos de civilização, embora seja possível determinarmos através dela uma série de permanências quando separamos um espaço e um tempo para sua execução.

[...] num dado momento da história, uma cultura política constitui um todo homogêneo cujos elementos são interdependentes e cuja apreensão permite perceber o sentido dos acontecimentos em sua complexidade, graças à visão de mundo das pessoas que compartilham essa cultura796.

Com base nestes primeiros referenciais, afaçamo-nos em um introito sobre os coronéis e o coronelismo. Coronelismo: Uma Aproximação Conceitual Quando são debatidos temas de contornos políticos no Brasil, tanto do ponto de vista leigo, quanto em discussões de cunho científico, a palavra coronelismo costuma ser recorrente. Do ponto de vista historiográfico e principalmente da historiografia da história política, o coronelismo é um dos assuntos com maior aporte teórico e dedicação de pesquisas, muito provavelmente por suas singularidades. Evidentemente, um assunto tão discutido não poderia ter como escopo teórico um conjunto uníssono. 795 BERSTEIN, Serge. Culturas Políticas e historiografia. In AZEVEDO, Cecília, ROLLEMBERG, Denise (orgs.) Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 32. 796 Ibid., p. 33.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

42 3

De modo geral, a historiografia marca as primeiras relações coronelísticas simultaneamente à proclamação da República, em 1889, e seu ocaso como o surgimento do Estado Novo, em 1930. José Murilo de Carvalho 797 aponta que havia a presença de coronéis em praticamente toda a política da Primeira República – em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, os mandatários da política se uniram aos partidos republicanos (PRs) de cada estado. Nos casos de Pernambuco e Bahia, uma miríade de coronéis hora em rivalidade, hora em consenso compunha os quadros políticos. Foi na Bahia que o fenômeno se deu com maior intensidade, e é sobre este estado que se dedica o maior número de trabalhos. Do ponto de vista historiográfico, é bem sabido que a obra de Victor Nunes Leal “Coronelismo, Enxada e Voto – O Município e o Regime Representativo no Brasil”, publicada originalmente em 1949, é o texto que insere o conceito “coronelismo” no círculo de discussões acadêmicas798. Em uma nota de rodapé, em verdade a transcrição de uma carta do historiador Basílio de Magalhães, que nos fala não só como historiador, como também testemunha ocular, Leal aponta não ser o cunhador do termo, embora não nos reste dúvidas que seria ele seu principal significante. Na nota de abertura do primeiro capítulo há um resumem sobre origem da palavra “coronelismo” e de certa maneira, seu entendimento até o momento da escrita da obra: Durante quase um século, em cada um dos nossos municípios existia um regimento da Guarda Nacional. O posto de “coronel” era geralmente concedido ao chefe político da comuna. Ele e os outros oficiais, uma vez inteirados das respectivas nomeações, tratavam logo de obter as patentes, pagando-lhes os emolumentos e averbações, para que pudessem elas produzir seus efeitos legais. (...). Eram, de ordinário, os mais opulentos fazendeiros ou comerciantes e industriais mais abastados, os que exerciam, em cada município, o comando-em-chefe da Guarda Nacional, ao mesmo tempo que a direção política, quase ditatorial, senão patriarcal, que 797 CARVALHO, José Murilo de. As Meamorfoses do Coronel. Jornal do Brasil, Rio de

Janeiro, p. 4, 6 mai. 2001 798 Cf. FAVETTI, Rafael Thomaz. Brevíssima Introdução aos Principais Conceitos

Utilizados em Coronelismo, Enxada e Voto, de Victor Nunes Leal. Instituto Victor Nunes Leal. Brasília, 2010. Disponível em: . Acessado em: 04 jan. 2015.

lhes confiava o governo provincial. Tal estado de coisas passou da Monarquia para a República. (...) Mas o sistema ficou arraigado de tal modo na mentalidade sertaneja, que até hoje recebem popularmente o tratamento de “coronéis” os que tem em mãos o bastão do comando da política edilícia ou os chefes de partidos de maior influência na comuna, isto é, os mandões dos corrilhos de campanários.799 Destaquemos aqui um elemento importante de longa duração da existência dos coronéis. A criação da Guarda Nacional, como nos informa Eul-Soo Pang 800, em 1831, é a base da formação destes potentados locais observados por Magalhães. Na criação, a função é de caráter militar. A significação política ocorreria com o passar dos anos. É também de Leal os primeiros contornos teóricos para se estabelecer o fenômeno “coronelista”. Embora bastante atrelado as realidades locais, alguns pontos pareciam sempre presentes ao se estabelecer o que foi o coronelismo na Bahia, no Mato Grosso, ou em qualquer lugar onde tenha se desenvolvido. “O coronelismo é acima de tudo, um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”801. Segundo este primeiro ponto e como reforça José Murilo de Carvalho802, o fenômeno toma forma ao final do segundo império, quando o simbólico presidente da província é substituído pelo governador da república. Para Serge Berstein, o entendimento do que é cultura política passa pelos referenciais que são utilizadas pelo historiador. Dessa maneira, entende-se pelo conceito “um grupo de representações, portadoras de normas e valores, que constituem a identidade das grandes famílias políticas”803 e que estão além da visão 799 MAGALHÂES, Basílio apud LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto – O

munícipio e o regime representativo no Brasil. 3ª Ed. São Paulo. Editora Alfa-Omega, 1978, p. 21. 800 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquias – 1889 – 1943. 1ª Ed. Rio de Janeiro. Ed.

Civilização Brasileira, 1979. 801 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto – O munícipio e o regime

representativo no Brasil. 3ª Ed. São Paulo. Editora Alfa-Omega, 1978, p. 20. 802 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão

Conceitual. Dados, Rio de Janeiro , v. 40, n. 2, 1997 . Disponível em: . acessado em 22 http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581997000200003. 803 BERSTEIN, op. cit, p. 31.

Dez.

2014.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

42 5

reduzida do partido político. Não haveria a necessidade de se pensar em partidos que alojassem os coronéis, muito embora a grande maioria estivesse disposta nos Partidos Republicanos. Destaco a necessidade da formação de um grupo, uma grande família política, que aparentemente, não encontra ecos no coronelismo. Do ponto de vista econômico, os senhores de terras se enfraquecem pelas mudanças econômicas e passam a depender das políticas do estado como garantia de sobrevida. Na medida que a presença estatal se expandia, diminuía o poder dos grandes senhores de terra, porém esta expansão se viabilizava pelo poder dos mesmos senhores, os chamados coronéis. Trata-se evidentemente de uma relação um tanto complicada, mas há de se notar sua lógica. Nos grotões da República instaurada, o estado só consegue se fazer presente através daqueles que já detinham o poder, da mesma maneira que aqueles que foram poderosos conseguem seus últimos suspiros de governança pelas mãos do Estado. Paul Cammack804 traça pesadas críticas em relação a esta forma de análise. Identificando a visão de Leal com certa concepção feudalista de propriedade defendida por Nestor Duarte805. Para Cammack, os interesses dos proprietários rurais seriam representados pela República, uma interpretação amplamente pautada na concepção de clientelismo806. Não haveria “compromisso de troca”, uma vez que a relação entre o Estado e os coronéis é direta. De um ponto de vista sociopolítico, além da viabilização do poder público, Leal nos alerta em relação à legitimidade garantida pelo sufrágio amplo. O voto é usado pelos coronéis como um instrumento de troca com a república. “(...) é o coronel CAMMACK, Paul. "O Coronelismo e o Compromisso Coronelista: Uma Crítica". Cadernos do Departamento de Ciência Política, nº 5, Belo Horizonte, 1979, p. 1-20. 804

805 DUARTE, Nestor. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional. São Paulo, Cia.

Editora Nacional, 1939. 806 Segundo Norberto Bobbio, pode-se definir clientelismo por “uma rede de fidelidades

pessoais que passa, quer pelo uso pessoal por parte da classe política, dos recursos estatais, quer, partindo destes, em termos mais mediatos, pela apropriação de recursos "civis" autônomos. (...)Por formas de estímulo individualista e corporativista que, não prevendo qualquer associação orgânica dos interesses num quadro político, realizam uma permuta, de típica clientela, entre o consenso eleitoral dos indivíduos ou dos grupos e os recursos que o Estado põe ao dispor do pessoal dos partidos.” Luiz H. Nunes Bahia destaca: “O clientelismo é um fenômeno basicamente relacionado ao acesso e à exclusão de bens e serviços quase sempre não-regulados diretamente pela ordem jurídica e pelos valores de mercado. Significa dizer acesso e exclusão à propriedade, do ponto de vista econômico, e ao poder e suas influências sob o ângulo da política.

que comanda discricionariamente um lote considerável de votos de cabresto. A força eleitoral empresta-lhe prestígio político, natural coroamento de sua privilegiada situação econômica e social de dono de terras807”. O coronel garante os votos para a República e em troca, lhe é garantido o uso de uma extensa rede de conhecidos que passam a compor os quadros do poder municipal “desde o delegado de polícia a professora primária”808. Reside, pois, nesta necessidade do voto, uma relação de troca entre o Estado, o Coronel e a própria população. Para Cammack, a importância do voto também é relativizada, sem necessariamente um esforço do autor para ampliar o debate neste ponto. Excetuado Cammack, que tenta opor-se em absoluto à tese de Leal, a questão do voto é algo que está na base das práticas coronelísticas. A falta de uma tradição, ou melhor, de um costume democrático, talvez, de uma “cultura política” da representatividade, é algo que aparece como uma das bases do que se chama de coronelismo. A prática, porém, não existe como um objetivo, um plano da política pretendida pelos coronéis, mas sim pela introdução do sufrágio em uma maneira bem moderna, a uma população que acabara de sair de uma situação de absolutismo (mesmo que constitucional). Sobre as redes do coronelismo, a organização municipal será a sede efetiva do poder do coronel. Eul-Soo Pang, o famoso brasilianista coreano que dedicou parte de sua vida acadêmica ao estudo das oligarquias na América do Sul, escreve: O município era o baluarte político administrativo de um coronel. Na maioria dos estados era a unidade administrativa e legislativa mais baixa da federação brasileira. Era dividido em um ou mais distritos, porém o chefe do executivo e o legislativo eram situados na sede do município. Era lá que o coronel lutava com seus rivais para manter o domínio político dos processos administrativos e legislativos. De modo geral, um coronel era o principal chefe de um município e de vez em quando chegava ao cargo de deputado ou senador (estadual ou federal), e governador de estado.809

807 LEAL, op. cit, p. 23. 808 CARVALHO, op. cit. 809 PANG, op. cit, p. 31.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

42 7

Embora do ponto de vista historiográfico suas concepções sobre coronelismo sejam diversas, no tocante ao município como base do poder de um coronel, Pang e Leal são consonantes. A principal divergência, apontada também por José Murilo de Carvalho810 está no fato de o coreano, assim como Francisco Campos 811 considerar o coronelismo como mais um momento do mandonismo, e não como um momento específico da historiografia, enquanto “(...) Victor Nunes insiste na especificidade de sua abordagem do coronelismo em relação à concepção dominante. Para ele, o coronelismo se apresenta como um sistema político, uma complexa rede de relações que permeia todos os níveis de atuação política, e não apenas como mandonismo local. (...) Com o sentido de mandonismo, o coronelismo torna-se algo muito vago, amplo e indeterminado no tempo”812. Na mesma linha de Eul-Soo Pang, Maria Isaura Pereira de Queiroz 813 não distingue o coronelismo do mandonismo, mas contribui para a discussão integrando os conceitos históricos com certa medida sociológica. Há para a autora uma grande importância no aspecto das redes sociais que o coronel estabelece, o que ela chama de “parentela”, ou seja, a família que se estende além do laço entre pai, mãe e filhos, alcançando compadres e outras parentelas através de matrimônios. Como grupo, apresentava pois a parentela três aspectos interligados – o político, o econômico e o do parentesco – mostrando que a sociedade na qual estava implantada ora de estrutura socioeconômica e política ainda pouco diferenciada em seus setores de atividade. O setor político, o setor econômico e o setor de parentesco reunidos, garantiam o funcionamento da sociedade e lhe davam uma característica própria.814

810 CARVALHO, José Murilo de. "Coronelismo", in Dicionário Histórico-Biográfico

Brasileiro, 1930-1983. Rio de Janeiro, Cpdoc/Fundação Getulio Vargas, Forense Universitária, p. 932-934. 811 CAMPOS, Francisco I. Coronelismo em Estado Periférico: Goiás na Primeira

República. Tese de Mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, 1975. 812 Ibid., p. 932. 813 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Coronelismo numa Interpretação Sociológica. In:

FAUSTO, Boris. (Org). História Geral da Civilização Brasileira – Tomo III – O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 1 vol. 814 Ibid., p. 167.

As observações de Victor Nunes Leal também caminham neste sentido, todavia o peso da relação econômica entre o coronel e aqueles que estão sob seu domínio é bastante diferente. Não se trata da riqueza real do senhor, mas sim de sua aparência de riqueza na maior parte dos casos. Como há a necessidade de dependência entre o coronel e o estado, Leal ressalta que “o roceiro vê sempre no coronel um homem rico, ainda que não o seja; rico em comparação com sua pobreza sem remédio”815. Por fim, não podemos nos esquecer das contribuições de Raymundo Faoro 816 para o tema. Em seu clássico “Os Donos do Poder”, o autor desenvolve o conceito de coronelismo ligado ao conceito que busca elucidar na obra, o chamado patrimonialismo. O coronelismo, o compadrazgo latino-americano, a "clientela" na Itália e na Sicília participam da estrutura patrimonial. Peças de uma ampla máquina, a visão do partido e do sistema estatal se perde no aproveitamento privado da coisa pública, privatização originada em poderes delegados e confundida pela incapacidade de apropriar o abstrato governo instrumental (Hobbes) das leis. O patrimonialismo pulveriza-se, num localismo isolado, que o retraimento do estamento secular acentua, de modo a converter o agente público num cliente, dentro de uma extensa rede clientelista. O coronel utiliza seus poderes públicos para fins particulares, mistura, não raro, a organização estatal e seu erário com os bens próprios.817 Esta interpretação entende a política que se desenvolve no Brasil como uma herdeira direta de Portugal. “O Brasil seguiu a evolução de Portugal que desde o século XIV se havia livrado dos fracos traços de feudalismo e implantado um capitalismo de Estado de natureza patrimonial. Aos poucos formou-se um estamento burocrático, instrumento de domínio do rei que se tornou independente do próprio rei”818. Na colônia, este estamento fez-se a camada de dirigentes, que 815 MATA MACHADO FILHO, Aires da apud LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e

Voto – O munícipio e o regime representativo no Brasil. 3ª Ed. São Paulo. Editora AlfaOmega, 1978, p. 24. 816 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. 9.

ed. São Paulo: Globo, 1991. 2 v. 817 FAORO, 1997, op. cit., p. 757. 818 CARVALHO, 2007, op. cit.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

42 9

circunstancialmente se desenvolve mais do que a figura do rei. É justamente esta camada que separaria, que barraria o acesso do povo à atuação política – No caso – Coronéis e a população a eles subordinada, tese central de sua obra magna. A cultura política é um fenômeno evolutivo. Assim como a natureza das coisas muda, se atualiza, se torna algo moderno por uma necessidade do tempo, o mesmo ocorre com a cultura política. Como reflete Berstein, se pensarmos que o fenômeno político surge em resposta a um problema de grande importância, ou mesmo por inconformidade com a política vigente, observamos que há sempre a necessidade do novo na cultura política. É evidente, como o próprio conceito de cultura sugere, que haverá permanências na cultura política que surge, mas ao passo que uma nova surge, as outras culturas políticas que coexistem devem se atualizar. Pode acontecer que dada cultura política seja marginalizada, mas ela nunca deixará de existir por completo. Embora seja de certa maneira tentador pensarmos em manutenções do coronelismo em nosso sistema democrático, é muito mais correto pensarmos em relação a dificuldades da tradição democrática, do que práticas de uma cultura política coronelista. Traços de uma cultura política oligárquica, porém, não deveriam ser descartados sem uma segunda avaliação. O afastamento da população dos sistemas representativos talvez tenha aí, boas bases históricas, caso reconheçamos o advento da República como marco fundador de uma política mais próxima à nossas realidades. No caso do Coronelismo, como tratado por autores clássicos, como Victor Nunes Leal, ou Eul-Soo Pang, e até mesmo Raymundo Faoro, podemos notar tanto aproximações, quanto distanciamentos em relação à teoria. Conclusão. Evidentemente, perpassamos uma série de conformidades no significado do conceito “coronel”, ou ainda “coronelismo”. A questão do voto, a rede de parentela, a apropriação do público pelas mãos do privado e até mesmo o imbricamento destas duas esferas pelas mãos dos coronéis. O uso da violência também aparece aqui e acolá, entre outras questões mais pontuais, mas é preciso que se reforce o caráter procedural, eventual dessas manifestações.

Não há um manifesto de ação política do coronel. Como muito bem demonstra Victor Nunes Leal, os coronéis, sem identificar os grupos no poder, são homens que se aproveitam da licenciosidade do Estado que se constitui, e da incapacidade da população, que na maioria das vezes é tão miserável que não compreende a possibilidade de mudança. Para além disso, as constantes disputas entre coronéis, tema central na análise de Eul-Soo Pang mostra-nos um grupo que só pode entender como grupo pela historiografia. Estes homens, donos de poderes locais, algumas vezes detentores das patentes de coronéis, outras vezes investidos pela ignorância da população desses atributos, não formulavam, em hipótese alguma, um grupo fechado, de propostas ou projetos políticos. Constituíram-se como grupo não ao seu tempo, mas pelas significações posteriores das posições oligárquicas que tiveram em seus tempos, independentemente do estado. Bem, é evidente, que de tempos em tempos, formavam alianças, mantinham padrinhos e apadrinhados nos Partidos Republicanos de cada Estado, mas pensar nos coronéis como um grupo coeso, e no coronelismo como um projeto político não é nem de longe ledo engano. Aproxima-se de um erro crasso. Dessa maneira, falar que o coronelismo é uma cultura política é também um erro. O que podemos fazer como proposta, é justamente contorna-la. Podemos falar de culturas políticas que compões as ações políticas dos coronéis. O patrimonialismo, de Raymundo Faoro, embora pertencente à lista de interpretações canônicas nacionais, traz em si algo que parece bastante familiar aos usos da cultura política – práticas de longa duração, que são constantemente atualizadas nas ações políticas dos grupos, mesmo desprovida de um plano ou sentido, mas fazer essa comparação de maneira mais aberta, parece-me uma espécie de ousadia que beira o sacrilégio. Como sugerido no início, a possibilidade de se pensar a prática democrática também se aproxima de certa maneira aos temas propostos pela cultura política, bem como talvez, pensar a cultura política da oligarquia brasileira durante a Primeira República. Por fim, a proposta de uso do instrumental da cultura política para o estudo do coronelismo parece um caminho com muitas possibilidades, principalmente para estudos de casos de indivíduos específicos – os próprios coronéis. Para o grande amálgama chamado de coronelismo, as disparidades nos impossibilitam de pensarmos nele como uma cultura política.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

43 1

Anatol no País do Futebol: Uma releitura sobre o racismo e ascensão social do negro no Brasil através do match (1900 – 1930).819

Phelipe Kauê Ferreira da Silva Graduando - FCL – UNESP de Assis

Muito mais do que um esporte, ou atividade que envolve apenas o desempenho físico dos atletas, o futebol é para Anatol Rosenfeld a porta de abertura para a cultura brasileira820. É pelo autor definido como um espetáculo dramático, pois retrata uma série de conflitos e sublimações de cunho social, cultural e também político de cada região destacada. Situações estas que envolvem não só os atores deste 819 Projeto financiado pela FAPESP desde Maio de 2015. 820 ROSENFELD, A. Negro, macumba e futebol. São Paulo, Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, Campinas, 1993.

espetáculo, mas também o seu público assíduo mesmo que à distância através do rádio, televisão e internet. Assim, por tratar-se de um esporte a nível nacional no Brasil, o entendimento do futebol se faz necessário para compreender diversos outros fatores culturais no que tange a afirmação do sujeito negro na sociedade, e deste modo, Rosenfeld traz em sua obra póstuma “Negro, Macumba e Futebol”(1993) não somente aspectos incisivos para a compreensão da sociedade de outrora através deste esporte, como também o caminho inverso é percorrido. Haja vista que os dados levantados pelo autor são capazes de ressaltar a importância substancial da inserção deste esporte em nossa sociedade ou mesmo o papel que este pôde desempenhar ao escancarar o preconceito racial, ainda hoje subjugado no país, através da descarga emocional que tal atmosfera propicia, ilustrando deste modo que culturalmente estas raízes vinculadas ao preconceito são tão profundas quanto intrínsecas. Rosenfeld nasceu em Berlim, no dia 28 de agosto de 1912. Estudou na Universidade Humboldt de Berlim (1930-1934) Filosofia, Teoria Literária e História (com especialização em Letras Alemãs), tendo sido aluno de Nicolai Hartmann e Eduard Spranger (Filosofia), Max Dessoir (Estética), Julius Petersen (Teoria da Literatura) entre outros. Interrompeu o preparo de sua tese de doutorado em 1935 por conta da perseguição nazista. Chega então ao Brasil em 1937, trabalhando inicialmente como colono de fazenda e caixeiro-viajante, sendo que somente em 1945 teria iniciando atividades de jornalista (tradutor, redator, repórter e articulista) 8212. Já em São Paulo, nos primeiros anos da década de 1950, passa a freqüentar reuniões das colônias judaica e alemã, através das quais se aproxima do mundo intelectual. Tornase jornalista e redator da Crônica Israelita, jornal quinzenal da Congregação Israelita 821 GUINSBURG, Jacó (Org.); MARTINS FILHO, Plínio (Org.). Sobre Anatol Rosenfeld. São Paulo: Com-Arte, 1995

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

43 3

Paulista, e correspondente de um jornal suíço de língua alemã. Dirige, para a editora Herder, a coleção “O Pensamento Estético”, vertendo dos originais alemães para a língua portuguesa importantes títulos especialmente ligados aos períodos clássico e romântico. Sobrevive por meio de aulas particulares e, tendo aprendido a exprimir-se com desenvoltura e elegância em português, embrenha-se pelos caminhos da cultura brasileira. Colabora também trabalhando para o jornal anuário do Instituto Hans Staden, escrevendo entre outras coisas, sobre a literatura brasileira. Em 1956, é indicado por Antônio Cândido, e passa a dirigir a seção Letras Alemãs do Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo8223, espaço onde divulgará autores germânicos de todas as épocas. No início dos anos 60 Rosenfeld passa a dar aulas na Escola de Arte Dramática - EAD, ocasião em que estreita vínculos com a atividade teatral, distinguindo-se pelos contatos com os artistas ligados aos espetáculos, antes ou depois das estreias, ocasiões em que o diálogo serve de suporte para suas longas e minuciosas análises. Assim, em 1964 inicia a publicação de críticas teatrais, como colaborador, em diversos órgãos de imprensa. Faleceu prematuramente aos 61 anos no dia 11 de dezembro de 1973, e teve sua obra a respeito do futebol traduzida por Modesto Carone no ano seguinte para uma matéria especial na revista Argumento, cuja qual era editor e escritor. De seu acervo existente fora possível projetar dez volumes segundo critérios temáticos específicos, três dos quais reservados a contos, poesias, crônicas etc., e outros sete, já concluídos, de caráter ensaístico. Estão enfeixados os escritos das sucessivas etapas que o autor percorreu ao longo dos quarenta anos de sua vida no Brasil. São estudos e reflexões sobre filosofia, política, antropologia, estética, literatura, teatro, imprensa, rádio, cinema, opinião pública e propaganda. Sua biblioteca e manuscritos de teatro 822 Idem.

foram doados à Biblioteca do Museu Lasar Segall e pesquisados, durante muito tempo, por Nanci Fernandes. O material coligido permite o lançamento, em 1993, de sete volumes, reunindo, por temas ou afinidades. A vasta obra legada por Rosenfeld é então posteriomente editada pela Editora Perspectiva e organizada pelo editor Jacó Guinsburg, muito graças a participação de Nanci Fernandes e também de Abílio Tavares8234. A proposta deste estudo porém tange somente a temática pertinente ao futebol, o negro (juntamente de seus cultos) e o impacto social causado na sociedade paulistana, com fins de identificar pontos fundamentais da projeção do esporte juntamente da imagem do negro a nível nacional. O ensaio de Rosenfeld sobre o futebol não se resolve apenas em testemunho de afeição, pois o olhar crítico e cultural está presente em toda a obra, embora que por vezes esteja repassada de compreensão e simpatia pelos figurantes anônimos ou consagrados do espetáculo brasileiro. Os dados que Rosenfeld apresenta são, evidentemente, datados (não se deve esquecer, também que se dirigia a leitores alemães que não têm a vivência brasileira do futebol), mas as interpretações penetrantes que lhes dá, bem como as relações que estabelece entre essa forma de diversão popular e outros fenômenos culturais canonizados pela erudição do Ocidente, sintetizam uma realidade obscura de preconceito racial, que em sua maioria são ofuscadas pelos holofotes do match e pouco repercutidos pela mídia. Desta forma, em sua obra póstuma “Negro, Macumba e Futebol”, que fora editada em um trabalho conjunto pela UNICAMP, USP e Editora Perspectiva - que ainda contou grande apoio profissional de Nanci Fernandes (que organizou o acervo do autor após sua morte em 1973) e Jacó Guinsburg (amigo e editor pessoal do autor) - em 1993, são apresentadas teorias de cunho social, economico, racial e esportiva no 823 Idem.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

43 5

que tange sempre a visão externa de um brasileiro por adoção. São três textos que foram originalmente escritos em alemão para o Anuário (Jahrbuch) do Instituto HansStaden de São Paulo (Staden-Jahrbuch 2, 1954 – Die Situation der Farbigen in Brasilien; Staden-Jahrbuch 3, 1955 – Macumba; e Staden-Jahrbuch 4, 1956 – Das Fussballspiel in Brasililen), e através destas obras o autor conta principalmente a trajetória sinuosa e desigual do negro neste cenário. Fato este que chama atenção se levarmos em consideração que Rosenfeld além de ser judeu - minoria bastante impactada com a 2ª guerra mundial - , traz em seus textos redigidos em alemão um verdadeiro histórico sobre estes temas para a comunidade germânica, e mesmo já tendo extrema habilidade para se articular em português acaba não redigindo nada a este respeito diretamente para o público brasileiro. Estes textos, que por sua vez foram enviados e publicados pelo mesmo instituto nos anos de 1954, 55 e 56 respectivamente, são distribuídos não só para a comunidade alemã na cidade de São Paulo e interior do estado como também para Frankfurt e Wolfenbuettel na Alemanha. Assim, direta ou indiretamente, a obra de Rosenfeld demonstra para toda esta comunidade como é findada a propriedade exclusiva da elite mayflower sobre o futebol brasileiro de modo geral, para a eminente insurgência de jogadores e torcedores negros. A ideologia das raças citada tanto pelo autor, como por Freyre 8245 age mascarando a verdadeira realidade (social) do futebol no Brasil, e essa mesma ideologia age por vezes como uma idealização, discurso ou ação que oculta no fim uma famigerada prática - o racismo – , mostrando que sua aparência externa acaba escondendo os principais problemas do esporte, bem como da sociedade. No capítulo

824 FREYRE, Gilberto, Sociologia, Rio de Janeiro, 1945, vol.2.

“Raça e religião” da obra Herdeiras do Axé de Reginaldo Prandi8256, é explicita na visão do autor que pesquisas e argumentos mostram que o Brasil está longe de ser de fato a imagem divulgada como uma democracia racial, e que muito se faz ainda hoje para omitir o que verdadeiramente se pensa sobre determinadas raças. A imensa diferença social também é um fator que aumenta o preconceito racial em que a cor branca, seja qual for sua classe, sempre tem privilégios maiores que os negros sobre a mesma perspectiva. As religiões como sendo centro de discussões sociais, não poderiam ficar de fora, uma vez que integrar a religião negra no mundo dos brancos não é tão fácil de aceitar, assim como a religião do branco no mundo dos negros. Observando de modo profundo são também visíveis inúmeras cicatrizes de identidade e auto-estima com o negro no Brasil, capacitando decerto um novo horizonte crítico, muito pertinente à questão de quão importante foi a presença da miscigenação e aceitação racial para a propagação deste esporte em nível nacional. Desta forma a figura do negro no Brasil se entrelaça numa teia de relações sociais e culturais profícuas no que tange o pertencimento a uma nova ideia de nação, construindo uma nova identidade perante a sociedade, e se enraizando fortemente junto de seus cultos e ritos afro-brasileiro; estes que doravante serão ainda mais inerentes ao meio “sobrenatural” do futebol brasileiro, principalmente entre os mais fervorosos jogadores, cartolas e torcedores. Grande parte deste entendimento se faz possível através da experiência do alemão de nascimento e brasileiro por adoção Anatol Rosenfeld, que torna possível uma análise externa e interna da problemática racial, cultural e social no período que tange

desde o amadorismo até a profissionalização do futebol brasileiro, como

também é através de seu discurso direcionado à comunidade alemã judaica no pós 2ª 825 PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do axé: Sociologia das religiões afro-brasileiras. São Paulo: Hucitec, 1996.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

43 7

Guerra Mundial que surgem relatos dos mais diversos e também aspectos certamente pitorescos que rondaram a chamada popularização do esporte, tungando das elites uma atividade lúdica até então exclusiva, o que por fim se torna até hoje uma das principais portas de acesso do sujeito negro ao reconhecimento (ainda que destorcido) de seus talentos e “mulatices” tupiniquins á nível nacional e depois, evidentemente, mundial. Utilizando-se de fontes, como jornais, revistas, entrevistas e conversas com pessoas diretamente envolvidas com o assunto, outro autor também consegue documentar estes acontecimentos, além de servir como principal fonte para o trabalho de Rosenfeld sobre o futebol brasileiro. Mario Filho conseguiu fazer de seu livro “O Negro no Futebol Brasileiro” (1964)8267 um verdadeiro marco para a história do negro com relação ao futebol brasileiro. Mário Rodrigues Filho nasce em Pernambuco, no ano de 1908. Mário foi uma das personalidades mais ativas e criativas da cena carioca da primeira metade do século. Porém, boa parte do público geral só o conhece como “o irmão de Nelson Rodrigues”, entretanto, Mário foi muito mais do que isso, como jornalista, agitador cultural, escritor, pesquisador e ativista. Mário Rodrigues Fiho cria o jornalismo esportivo no Brasil e dedica então páginas inteiras ao futebol, esporte recém-marginalizado, embora popular. Para se aproximar dos leitores que gostavam da modalidade (e conquistar outros, obviamente), ele transforma uma realidade imposta mudando a forma da escrita do jornalismo, descrevendo assim, os jogos com uma linguagem mais acessível. Foi também mentor de torneios importantíssimos, como por exemplo o Torneio Rio-São Paulo, reconhecido como campeonato mais importante da época. 826 FILHO, Mario. O Negro no Futebol Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira S.A., 1964.

Algumas questões maiores, que constantemente se cruzam na obra, permeiam a trajetória e o método escolhidos pelos dois autores: a problemática do racismo, que envolve a discriminação, a aceitabilidade e a ascensão do negro em nosso futebol, e o processo de profissionalização desse esporte, no caso de Rosenfeld há também a religião envolvida neste nicho. Deste modo, para concretizar seus objetivos, os autores dividem seus livros de modo até mesmo similar. Mario Filho divide a obra em quatro grandes partes: I - Raízes do saudosismo; II - O campo e a pelada; III - A revolta do preto; IV- A ascensão social do negro. Enquanto que Rosenfeld elabora sua obra em preceitos como: I – Situação de Pessoas de Cor no Brasil; II – Macumba; III O Futebol no Brasil. Além das questões diretamente referentes ao negro e à profissionalização do futebol, a obra de Mário Filho também é rica em curiosidades gerais, destacando-se histórias específicas, atitudes, comportamentos e boatos referentes aos nossos craques mais conhecidos. As curiosidades gerais e o registro de detalhes sutis na obra de Mário Filho estendem-se também aos acontecimentos referentes às disputas de vários campeonatos cariocas e aos embates ocorridos entre os times da elite e os times populares, pioneiros em aceitar negros em seus planteis. Como exemplo de casos isolados de jogadores mulatos que atuaram nos grandes clubes nessa época, destaca-se Artur Friedenreich. Este, apesar de ser "um meio mulato" de classe média e possuir olhos verdes, antes de entrar em campo ficava horas alisando seu cabelo farpo e duro para disfarçar seus traços de negritude. Outro jogador que também ficou conhecido por tentar esconder sua origem negra foi Carlos Alberto. Oriundo do segundo time do América, onde praticamente ninguém observava sua cor, ao chegar ao Fluminense, time da mais alta sociedade, Carlos Alberto logo sentiu que poderia ser discriminado pela sua cor mulata, assim enchia seu rosto de pó de arroz antes de entrar em campo.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

43 9

Esse ato pouco conseguiu ludibriar o público e logo Carlos Alberto passou a ser apelidado de pó de arroz. Mais tarde, "o pó de arroz acabou passando dele para o Fluminense" (FILHO, 1964, p.58). De certa forma, a presença de um ou outro negro junto aos grandes times não preocupava os dirigentes dos clubes da alta sociedade. A atuação dispersa do negro, apenas "tapando buraco", não se constituía em uma ameaça para a supremacia branca, já que "somente quando um branco que deveria jogar estava fora, doente ou coisa que o valha, então o preto podia jogar" (FILHO, 1964, p.69). A pouca participação dos negros não só não representava ameaça como foi utilizada politicamente pela classe alta para ilustrar uma certa supremacia do branco, culto e estudioso. Filho denuncia esse aparelhamento político-racial do futebol pelas elites brancas, quando destaca que: “Preto só entrava no scratch uma vez na vida e outra na morte....Cada lugar do scratch tinha um dono: branco de boa família. A superioridade de raça: da raça branca sobre a raça preta; a superioridade de classe: da classe alta sobre a classe média, da classe média sobre a classe baixa.” (FILHO, 1964, p.69). O ano de 1923 marca o início de uma nova era no futebol brasileiro. A partir desse momento, a supremacia branca não mais iria reinar absoluta. Essa mudança teve como indicador um fato: o Vasco da Gama, que acabara de sair da segunda divisão, surpreendentemente consagrou-se campeão carioca com um time composto basicamente por jogadores negros, mulatos e brancos semi-analfabetos. O título conquistado pela " boa mistura portuguesa", como ficou conhecido esse time, foi decisivo para as mudanças que iriam começar a aparecer no futebol. Após a conquista do campeonato pelo Vasco da Gama, Mario Filho comenta que "desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o branco, tinha de competir em igualdade de condições com o

pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto para ver quem jogava melhor" (FILHO, 1964, p.152). Após a conquista do Vasco da Gama, em 1923, o fantasma do negro e do pobre estava à solta. Preocupados, os grandes clubes da elite carioca uniram-se no ano seguinte, 1924, e fundaram uma nova associação, sem a participação do Vasco. O objetivo central dessa nova liga, a AMEA (Associação Metropolitana de Esportes Athléticos), era devolver ao futebol seus traços de origem: este deveria ser um esporte eminentemente amador e praticado majoritariamente por brancos, de famílias da classe média ou alta. Para conseguir seus objetivos, a nova liga fez uso de diversas estratégias visando conter a ascensão de negros e pobres, bem como o sucesso dos pequenos times populares. Para as decisões internas da liga, estipulou critérios de votação que, explicitamente, beneficiavam as grandes equipes. Um voto por cada modalidade de esporte que o clube possuísse, ou ainda o direito a cinco votos para os clubes fundadores da liga, eram critérios que reforçavam a desigualdade entre os clubes. O Fluminense, por exemplo, tinha direito a 10 votos, enquanto a outros pequenos times cabia apenas um voto. A preocupação em manter o controle político sobre os rumos do futebol não se restringiu apenas ao controle interno da liga. A vigilância estendeu-se para a esfera individual dos jogadores. Um dos princípios fundamentais defendidos pela AMEA era o amadorismo puro e absoluto; assim não era mais permitido existir nenhuma forma de recompensa financeira direta aos jogadores. Estes deveriam comprovar suas rendas, ser estudantes, filhos de famílias com posses materiais ou ter um emprego comprovado. Procurando ser mais rígida na fiscalização sobre o critério que não permitia que analfabetos jogassem, "a papelada de inscrição tornou-se quase um exame de primeiras letras. Uma porção de perguntas: nome por extenso, filiação,

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

44 1

nacionalidade, naturalidade, dia em que nasceu, onde trabalha, onde estuda, etc." (FILHO, 1964, p.158 ). A ascensão do profissionalismo é outro tema que recebe de ambos os autores um destaque especial. Com posturas mais ousadas, os negros e pobres começaram a não mais se contentar apenas em serem aceitos nos times. Tendo como referência os países da Europa, a proposta do profissionalismo explícito começou a ganhar adeptos, principalmente entre os jogadores pobres. Enquanto o profissionalismo não era assumido, muitos jogadores transferiam-se para o futebol europeu. A Espanha e a Itália estavam entre os países preferidos. Este último passou a ser chamada pelos jogadores do Brasil, Argentina e Uruguai de o "eldorado" do futebol. A saída de jogadores para a Europa, no início dos anos 30, começou a causar um medo generalizado nos clubes brasileiros. O perigo da evasão de craques para o exterior contribuiu para a adesão de alguns clubes à ideia do profissionalismo. O Fluminense, clube bastante elitista, que há 8 anos não ganhava nenhum título, foi um dos pioneiros em aceitar a tese da implantação de um profissionalismo escrachado. Essa hipótese parecia não ser tão ruim para os dirigentes do time pó de arroz, já que com ela se criava uma espécie de relação patrão-empregado envolvendo clube e atleta numa relação em que "o clube pagava, toma lá, dá cá. O jogador ficava no seu lugar" (FILHO, 1964, p.245). Aos poucos, a tese do profissionalismo foi se alastrando, e os clubes foram aderindo, alguns mais cedo, outros um pouco mais tarde. A implementação do profissionalismo não foi suficiente para acabar totalmente com a discriminação racial no futebol. O Fluminense, por exemplo, por um bom tempo, no momento de optar, continuou preferindo um branco a um mulato e um mulato a um negro. Apesar disso, Mário Filho não deixa dúvidas quanto à

contribuição da profissionalização como tentativa para diminuir a discriminação sócio-racial de nosso futebol, salientando:

"A paixão do povo tinha de ser como o povo, de todas as cores, de todas as condições sociais. O preto igual ao branco, o pobre igual ao rico. O rico paga mais, compra uma cadeira numerada, não precisa amanhecer no estádio, vai mais tarde, fica na sombra, não apanha sol na cabeça, mas não pode torcer mais do que o pobre, nem ser mais feliz na vitória, nem mais desgraçado na derrota" (FILHO, 1964, p.293). Situando o recorte então a partir da obra “Negro, Macumba e Futebol”, é possível com a ajuda de Mário Filho, fazer uma análise pertinente sobre tais temáticas: o negro, a religião e o futebol, ressalvando sempre a perspectiva inicialmente aceita por ambos, a da existência de uma democracia racial no Brasil, e através de um freyrismo popular como chamou Soares (2003)8278, é notória essa construção vinda principalmente da imprensa e dos veículos de mídia. A partir dessa perspectiva onde se necessita de um referencial, a obra de Norbert Elias8289 sobre o processo civilizador e suas análises produzidas sobre o esporte, em parceria com Eric Dunning, nos parece um bom ponto de partida. Elias e Dunning, rompem com a “tradição cientifica”, a qual desprezava anteriormente campos inscritos na marginalidade formal do econômico, do político e do social; e passam a utilizar o esporte como objeto para compreensão do processo social. A presente teoria é apresentada pelo sociólogo Norbert Elias na obra denominada “O Processo Civilizador” escrita em dois volumes. O primeiro deles denominado: “Uma história dos Costumes”; e o segundo: “A Formação do Estado e Civilização”. Elias 827 SOARES, Antonio Jorge. Futebol Brasileiro e Sociedade: A Interpretação Culturalista de Gilberto Freyre. In: ALABARCES, Pablo. Futbologías: Fútbol, Identidad y Violencia en América Latina. Buenos Aires: Clacso, 2003.

828 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., vol 1, 1994.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

44 3

trabalha em suas obras com o conceito de civilização como modelo da sociedade ocidental. Elias afirma que o processo de civilidade constitui uma mudança na conduta e até mesmo nos sentimentos humanos em direções especificas. Apesar disso, não foram pessoas isoladas que efetivaram e desenvolveram esse processo. Isto ocorre, de maneira geral, sem planejamento algum, mas nem por isso sem um tipo específico de ordem. Em sua obra Elias dedicou alguns momentos, em conjunto com seu orientando Eric Dunning, para discutir a questão do esporte moderno dentro do processo civilizador. No livro “A Busca da Excitação” (1992)82910, Elias e Dunning adotam os métodos e as teorias do processo civilizador e a dirigem para o esporte, em especial para o futebol.Conforme os autores, “o desporte pode seu utilizado como uma espécie de ‘laboratório natural’ para a exploração de propriedades das relações sociais”. (ELIAS, 1997, p.18). Norbert Elias, em sua bibliografia, mostrou como o esporte corresponde e é parte importante do processo civilizador, ao apaziguar emoções e internalizar marcas disciplinares. Desdobrando o seu argumento central, verificou com Eric Dunning e outros autores, como o futebol e outros esportes foram gerados na estrutura social e política inglesa. Essa compreensão torna-se possível, pois o é esporte inserido no contexto brasileiro no início do século XX, como uma nova prática. O Brasil então passava por uma tentativa de um esforço civilizador - termo utilizado por Lucena83011 para exemplificar a tentativa de introduzir hábitos europeus no Brasil neste período. Entendendo que o processo civilizador para Elias é algo que ocorre em longo prazo, a tentativa civilizatória brasileira pode ser compreendida 829 ELIAS, Norbert.. A Busca da Excitação. Rio de Janeiro: Difel, 1997. 830 LUCENA, R. O Esporte na Cidade: Aspectos de um Esforço Civilizador Brasileiro.Campinas:Autores Associados/CBCE, 2001.

como ‘esforço civilizador’ - na qual as cidades brasileiras neste período, em especial as metrópoles, sofriam um processo de domesticação do espaço público, acontecendo uma gradativa reestruturação, onde os cortiços foram “atacados”. Neste mesmo período chegava também a energia elétrica, as máquinas, a indústria, o automóvel, e o bonde. “Nesse ambiente, o esporte se caracteriza com uma ação ‘nova’ e própria de uma sociedade em transformação. É considerado, pelas elites, como prática ‘civilizada’, por isso educada e educativa, em contraposição aos jogos tradicionais vistos como parte de uma sociedade colonial e arcaica, fonte de emergência de atitudes rudes e primitivas”. (LUCENA 2001, p.43). A grande vantagem na utilização da teoria elisiana para os estudos está em que a mesma consegue alinhar um caráter sociológico e histórico simultâneo, trabalhando, desta forma, no que é denominado campo das fronteiras.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

44 5

Por uma eugenia mendeliana: as discussões e as (re)definições de eugenia no Correio da Manhã na década de 1930. Priscila Bermudes Peixoto Mestranda em História e Cultura Social Faculdade de Ciências Humanas e Sociais UNESP campus Franca Resumo: Os primeiros trabalhos sobre eugenia datam por volta da década de 1910 no Brasil. Nesse momento inicial, nota-se que a interpretação aqui feita desta ciência associouse às idéias neolamarckistas e higienistas. Apregoava-se que fatores externos como melhoramentos na saúde e na educação seriam capazes de influenciar na hereditariedade, trazendo consequentemente um aprimoramento racial à população. No entanto, em finais da década de 1920, alguns eugenistas brasileiros buscaram uma aproximação com teoria mendeliana, que por sua vez rejeitava a suposição de que o ambiente pudesse alterar geneticamente um indivíduo. Buscou-se realizar uma análise daquilo que vinha sendo pensado e definido como "eugenia" no Correio da Manhã na década de 1930, momento em que os eugenistas buscaram dissociar tal ciência de outras correntes como o higienismo e o sanitarismo. Palavras-chave: eugenia, neolarmarckismo, higienismo, mendelianismo.

1. Uma ciência em mutação: a trajetória e as transformações da eugenia no Brasil.

 Bolsista FAPESP, processo: 2015/08002-8. Email: [email protected]

No ano de 1869 era publicado o livro do inglês Francis Galton intitulado “Hereditary Genius” (Gênio Hereditário). Nesta obra Galton iria propor os fundamentos da eugenia. De origem grega, o próprio termo, cunhado pelo mesmo autor em 1885, já justificava sua principal motivação: eu (boa) genus (geração).831 Por meio dos fundamentos de seleção natural, ideias fundamentadas em Darwin – que curiosamente era primo de Galton – além de métodos estatísticos e noções de hereditariedade, Galton pretendia propor “uma seleção consciente para o progresso físico e moral”.832 A partir do estímulo aos nascimentos desejáveis, e do desencorajamento à reprodução de indivíduos considerados fracos, loucos, tarados ou degenerados, seria supostamente possível obter um aprimoramento racial humano. De acordo com a autora Nancy Stepan, Galton acreditava “que a aptidão humana seria função da hereditariedade, não da educação”.833 Deste modo, por meio de uniões entre indivíduos fortes e sadios seriam esperadas proles com as mesmas qualidades, a efetuação desta prática ao longo de gerações, supostamente garantiria, portanto, a formação de uma raça altamente dotada além do engrandecimento e progresso da nação. As ideias eugênicas seriam mais bem difundidas no continente europeu, sobretudo em finais do século XIX, período em que “o otimismo característico dos meados da era vitoriana começou a dar lugar a um generalizado pessimismo em relação à vida moderna e seus males”.834 Crescia o temor da decadência social que supostamente seria ocasionada pelas epidemias, doenças hereditárias, vícios e crimes. Além disso, os cenários urbanos caóticos diante do processo de industrialização, aumento populacional e a formação da classe operária marginalizada vivendo em precárias condições – pensada muitas vezes pelas elites como uma “classe perigosa”835 – também contribuíram para essa perspectiva pessimista em relação à sociedade

831 BOARINI, Maria Lucia. Higienismo, Eugenia e Naturalização do Social. In: BOARINI, M. L. (org). Higiene e Raça como projetos. Maringá: Eduem, 2003, p. 28. 832 Ibidem, p. 29. 833 STEPAN, Nancy Leys. A hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005, p. 31. 834 Ibidem, p. 31. 835 Ver mais em: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

44 7

moderna e ao seu futuro. Logo, perante este contexto, a palavra de ordem passava a ser a “degeneração”. No caso brasileiro as agitações e transformações foram expressivas na virada do século XIX para o XX, marcadamente pelo fim da escravidão, instauração do regime republicano, além da chegada da grande massa de imigrantes e o incipiente desenvolvimento industrial. Mesmo nos grandes centros do país, como no Rio de Janeiro, capital federal, faltava infraestrutura, saneamento, enquanto que crescia o número de cortiços, precárias moradias e locais insalubres. Diante desta situação irrompiam epidemias como febre amarela, varíola, cólera, etc. Os problemas de saúde pública passaram a ser cada vez mais debatidos entre intelectuais e políticos. Segundo Gilberto Hochman, é possível notar-se na Primeira República: “um desenvolvimento da consciência pública e da responsabilidade governamental para com as condições sanitárias do país e a saúde da população”.836 A corrente higienista ganharia força neste contexto no Brasil, sobretudo com a criação das primeiras cadeiras médicas de Higiene nas faculdades de medicina do país, além da criação do Instituto Oswaldo Cruz em 1901 no Rio de Janeiro. 837 De modo geral, o higienismo brasileiro foi fortemente influenciado pela: [...] teoria da transmutação do biólogo francês Jean-Baptiste Lamarck, que postulava a herança dos caracteres adquiridos. Na tradição neolamarckista, presumia-se que as influências externas ao longo da vida de um indivíduo poderiam alterar permanentemente o plasma germinativo.838 Em outras palavras, acreditava-se que mudanças externas, como por exemplo, supostos “melhoramentos” em aspectos culturais e educacionais, além da formação de novos hábitos e costumes, aprimorariam racialmente a população, logo, tais benefícios poderiam ser transmitidos às futuras gerações. Assim como maus comportamentos,

vícios,

condutas

consideradas

imorais,

também

poderiam

comprometer não só um determinado indivíduo como também sua descendência. Em contraste com aquilo que postulava racismo científico do século XIX, e suas projeções pessimistas sobre o Brasil devido sua avançada miscigenação, 836 HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: As bases da política de Saúde Pública no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 22. 837 LUZ, Madel. Medicina e ordem política brasileira. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 140-1. 838 STEPAN, op. cit., p. 32.

considerada nesta perspectiva como algo extremamente degenerativo, os higienistas brasileiros diagnosticavam um país doente e abandonado, de fato “um imenso hospital” de acordo com o médico Miguel Pereira (1916). Contudo, esta situação poderia ser revertida. Em geral, os higienistas postulavam que se o povo brasileiro era “atrasado”, seria, sobretudo devido às precárias condições sociais, de saúde e saneamento em que vivia. A eugenia chegaria ao Brasil por volta da primeira década do século XX, com a publicação de teses e artigos sobre o tema, em meio aos discursos de ordem higienista e sanitarista que estavam fortemente em voga, e possuíam vários adeptos como intelectuais, médicos, químicos, engenheiros, educadores, etc. Talvez em razão disto, nos primeiros anos em que foi debatida e estudada, a eugenia brasileira esteve fortemente associada a estas correntes: Como argumentava o médico e eugenista Olegário de Moura, saneamento é a mesma coisa que eugenia, “sanear é eugenizar”, e completava, “saneamentoeugenia é ordem e progresso”. Do mesmo modo, Belisário Penna, líder do movimento sanitarista, afirmava que o saneamento, a higiene e a medicina social constituíam os alicerces da eugenia, sem os quais ela não poderia ser praticada senão de modo deficiente em âmbito muito limitado.839 Em países como Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, no entanto, a eugenia se aproximaria da teoria mendeliana. Para Mendel o material genético de um indivíduo não poderia ser alterado ao longo de sua vida, ou seja, as influências ambientais ou externas, não teriam capacidade de realizar transformações genéticas e consequentemente não trariam nenhuma mudança ou benefício para as futuras gerações. Logo, o único modo, do ponto de vista mendeliano, para se aprimorar a raça seria impedindo a reprodução dos indivíduos considerados inferiores, muitas vezes, portanto, o caminho mais viável supostamente era a esterilização destes. Para Nancy Stepan deste modo, poder-se-ia considerar que os eugenistas de orientação mendeliana seriam mais radicais e pessimistas em relação ao melhoramento racial da população. Os eugenistas latino-americanos seguindo a corrente neolamarckista por sua vez, teriam posicionamentos mais brandos (ou soft como a autora nomeia) e também mais otimistas. Os eugenistas brasileiros de modo 839 SOUZA, Vanderlei Sebastião de. A eugenia no Brasil: ciência e pensamento social no movimento eugenista brasileiro do entre-guerras. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, Londrina. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – História: guerra e paz. Londrina: ANPUH, 2005, p. 2. Disponível em: Acesso em: 26 jun. 2015.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

44 9

geral pensaram até pelo menos a década de 1930 que a parte “degenerada” da população era passível de melhoramento racial. 840 Nesta ótica a degeneração não seria um fenômeno irreversível, a população ou a raça brasileira poderia evoluir uma vez que fossem tomadas as medidas necessárias, que incluíam desde melhorias na educação e na saúde pública, assim como impedimentos matrimoniais e controle da reprodução para aqueles indivíduos que realmente não pudessem ser regenerados (entre estes incluíam-se aqueles portadores de doenças incuráveis e hereditárias, por exemplo). Em 1931 K. E. Trounson, o editor britânico da Eugenics Review, afirmava aos seus leitores que os brasileiros teriam uma interpretação de eugenia “menos restritiva” que a noção inglesa do termo, ou seja, em sua visão os brasileiros incluiriam à eugenia noções de higiene, sexologia, além do fato de que segundo Trounson “a genética e a seleção natural e social são bastante negligenciadas; a visão é mais sociológica que biológica”.841 O autor Vanderlei Sebastião de Souza analisando a trajetória de Renato Kehl, um dos maiores propagandistas da eugenia no Brasil, afirma que este inicialmente, até por volta de finais da década de 1920, esteve em contato com as ideias sanitaristas e higienistas, no entanto o autor nota que Kehl a partir da década de 1930 “aumentaria sua aproximação em relação a um modelo de pensamento eugênico mais radical que começava a ser gestado na Europa e nos Estados Unidos”.842 A visita à Alemanha e também às instituições eugênicas daquele país em 1928, talvez possam ter contribuído para este novo posicionamento do eugenista brasileiro. Nesse momento Kehl voltaria maior atenção às questões relacionadas à genética, hereditariedade e biometria. O geneticista Octávio Domingues também pensaria a eugenia aos moldes da teoria de Mendel. Em sua obra “Eugenia. Seus propósitos, suas bases, seus meios (em

840 STEPAN, op. cit., p. 40. 841 K. E. Trounson. The Literature Riewed. Eugenics Review, 1931, p. 236 apud STEPAN, op. cit., p. 76. 842 SOUZA, Vanderlei Sebastião de. A política biológica como projeto: a “eugenia negativa” e a construção da nacionalidade na trajetória de Renato Kehl (1917-1932). Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz. Rio de Janeiro. 2006. p. 125. Disponível em: . Acesso em 20 out. 2015.

cinco lições)”, Domingues reconhece a importância de Galton por ter iniciado os estudos de eugenia, contudo: [...] só após a redescoberta das leis de Mendel, em 1900, foi que a Eugenia encontrou umas tantas leis biológicas, que justificam a sua existência, e podem garantir seu êxito. Isso porque as questões de heredologia humana, somente com as leis de Mendel, tiveram soluções mais claras donde o prestígio das regras e princípios, hoje formulados. Galton, com suas leis da “herança”, da “regressão” e do “desvio da média”, jamais poderia fozer (sic) além do que fez, porquanto o caminho que ele tomou não conduziria nunca à descoberta desse “mistério”, pelo qual as gerações, que se sucedem, a descoberta de Mendel, que trouxe elementos para uma melhor compreensão da Eugenia.843 Renato Kehl era médico, no entanto não tinha formação em genética, por isto buscou uma aproximação com os geneticistas Octávio Domingues e Toledo Piza a fim de obter um maior fundamento científico para melhor embasar sua atuação eugenista. Segundo Alessandra Rosa, em artigos ao periódico Boletim de Eugenia, é possível notar claramente a intensão de Kehl em desfazer a associação feita até os anos 1920 entre eugenia, sanitarismo e higienismo. Diferente do que se pensou anteriormente “sanear não era eugenizar”.844 2. A eugenia no Correio da Manhã nos anos 1930. Procuraremos analisar aquilo que estava sendo pensado ou definido como “eugenia” no Correio da Manhã845, importante periódico do século XX destinado à população geral, em contraste com aquilo que era publicado pelos próprios eugenistas – em seus livros, artigos ou em periódicos como o Boletim de Eugenia – sobretudo na década de 1930, momento em que conforme já apresentamos buscou-se uma aproximação da ciência de Galton aos preceitos mendelianos e à genética, o que significava, consequentemente, uma tentativa de dissociação em relação ao 843 DOMINGUES, Octavio. Eugenia: Seus propósitos, suas bases, seus meios (em cinco lições). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 19. 844 ROSA, Alessandra. Quando a Eugenia se distancia do Saneamento: as ideias de Renato Kehl e Octávio Domingues no Boletim de Eugenia (1929-1933). Dissertação (Mestrado em História das Ciências da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2005. p. 68. Disponível em: . Acesso em 8 dez. 2015. 845 O Correio da Manhã foi fundado em 1901 por Edmundo Bittencourt sendo publicado no Rio de Janeiro.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

45 1

neolamarckismo e ao higienismo. Nota-se que a temática da eugenia aparece inúmeras vezes no Correio da Manhã, o que demostra que diferentemente daquilo que se poderia supor, as discussões em torno desta ciência não ficaram restritas apenas ao meio acadêmico. No jornal em questão encontramos várias publicações de Renato Kehl, nelas o eugenista tratava de variados assuntos, no entanto as preocupações médicas e eugênicas, na grande maioria das vezes, estavam sempre colocadas. Em 30 de agosto de 1930, Kehl publicava um texto na coluna “Aparas Médicas” do Correio da Manhã no qual evidenciava suas novas concepções, agora mais próximas da teoria mendeliana em detrimento do neolamarckismo: “A educação exerce naturalmente, grande influência para remover arestas de caráter e de temperamento; nunca, porém, para atenuá-las e removê-las geneticamente isto é, em benefício real de efeito persistente para as gerações futuras”.846 Logo, fica claro que Kehl não pretende desprezar a importância da educação, no entanto acreditava que esta não seria capaz de trazer um melhoramento à descendência. Em outra publicação ao mesmo jornal, Kehl deixava ainda mais explícita sua definição de eugenia e em seguida lamentava significações errôneas que alguns estariam fazendo da referida ciência: [Galton] Criou, assim, a Eugenia, ciência do aperfeiçoamento moral e físico da humanidade, cujos desígnios não foram ainda, apesar de nossa propaganda de 15 anos, compreendidos por alguns patrícios que, a todo momento e a todo propósito, vem desvirtuando a sua verdadeira significação, misturando eugenia com esporte, com ginástica, com cosmética, com “banhos de sol”, com calipedia, com higiene e com medicina social.847 Kehl ainda afirmava que até mesmo muitas pessoas cultas acreditavam que a eugenia correspondia apenas à busca pelo melhoramento físico do indivíduo, com tom de indignação escrevia o eugenista: Pergunte-se a uma pessoa culta que é eugenia; seis em dez responderão “eu sei... eugenia é melhoramento “físico” do homem pela ginástica, pelos banhos de sol, etc.!”. Acrescentará, muito convencido que no Código de Manu se fazia referência aos cuidados para a boa escolha matrimonial.848 846 KEHL, Renato. A felicidade do ponto de vista medico e eugenico. Como garantir a felicidade de nossos filhos?. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, n. 10948, p. 2, 30 ago. 1930. 847 KEHL, Renato. Galton: Sabio Constructor. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, n. 10772, p. 2, 7 fev. 1930. 848 Idem.

De fato no próprio Correio da Manhã, periódico no qual Kehl publicou estas observações, encontramos, por exemplo, uma definição de eugenia pensada pelo Almirante Américo Silvado849 na qual o autor busca semelhanças de tal ciência às premissas de livros bramânicos, além de interpretar a eugenia como uma busca pelo aprimoramento físico da população: A Francis Galton coube despertar nos tempos modernos a atenção para esse detalhe, ligado com a especialidade à beleza física do tipo humano. Disso decorre a seguinte definição de eugenia: a prática de regras higiênicas visando desenvolverem-se as qualidades físicas de uma raça, com o fim de surgirem tipos da mais elevada perfeição orgânica. Semelhante norma que tem sido praticada rigorosamente no ocidente quanto à procriação dos animais domesticáveis, já era adotada na Índia pela teocracia bramânica, com relação à procriação humana como prova o 3° Livro da Legislação Manou (sic), tipo legendário, que passa por ser fundador da religião dos brâmanes.850

Além disso, é possível encontrar nas páginas do jornal diversos anúncios de aulas de ginásticas, danças, entre outros esportes em geral, nos quais alegavam um intuito supostamente eugênico destas atividades. No ano de 1930 noticiava-se no Correio da Manhã o “Bailado de Primavera” pelas alunas de ginástica rítmica da Escola de Pádua Soares, na Tijuca. Segundo o anúncio, a ginástica visava o “alto ideal eugênico (e patriótico para cada país de melhorar, aperfeiçoar a futura geração da família humana)”.851 Outro anúncio sobre aulas e jogos de tênis proclamava que tal atividade tinha por função colaborar com o aperfeiçoamento eugênico da mocidade: “A orientação do Tijuca Tennis Club, aliás tem sido essa, de desenvolver o mais possível a cultura física, como centro que é de aperfeiçoamento eugênico da mocidade, dispondo, mesmo, como se sabe, do esporte cientificamente organizado”.852 Observa-se ainda nas páginas do Correio da Manhã

849 Américo Silvado foi presidente da Comissão do Club Militar, além de ter sido “grande representante do Positivismo em nossa Marinha. Em 1893 tomou parte ativa ao lado de Floriano em defesa da República, e, em 1897, respondendo ao Visconde de Ouro Preto, publicou A Nova Marinha.” LINS, Ivan. História do positivismo no Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1964, p. 285. 850 SILVADO, Américo. A eugenia deante da sã politica. Correio da manhã, Rio de Janeiro, n. 10760. p. 2, 24 jan. 1930. 851 GYMNASTICA Feminina e Dansa. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, n. 10967. p. 6, 21 set. 1930. 852 TIJUCA Tennis Club: A sua grande actividade sportiva para este anno. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, n. 11.427, p. 7, 15 mar. 1932.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

45 3

que o atletismo e a esgrima também eram considerados como esportes com finalidades eugênicas. Em 1931 uma reportagem noticiava uma entrevista com o médico do exército Octávio Salema apresentando as vantagens da ginástica na primeira infância. O título da reportagem anunciava: “Como criar filhos belos e sadios. A ginástica pediátrica como processo eugênico incorporada à moderna higiene infantil. Novo e interessante método de um médico brasileiro.” Sabe-se da grande quantidade de discursos higienistas que defenderam a prática da educação física desde finais do século XIX. No entanto, pela própria manchete da reportagem e também pelo conteúdo da mesma, percebe-se que a ginástica ou as atividades físicas são pensadas como medidas importantes do “processo eugênico”, este por sua vez estaria ligado à Higiene. Assim dizia Salema: A educação física da primeira infância, já não constitui mais novidade para os brasileiros. Tem assim meu trabalho, apenas originalidade da vulgarização prática desse magnífico processo eugênico. Espero desse modo, que as minhas ideias tenham a melhor aceitação, visto como, visam resolver um problema que a todos interessa e muito especialmente aos pais esclarecendoas sobre o melhor processo a adotar, para conseguir a formação física, intelectual e moral, daqueles a quem tem a obrigação de orientar perante o conceito nem sempre benévolo do mundo social. Este desejo ou preocupação existe sempre no espírito de todos, e o que pretendo expor não só satisfaz plenamente essa aspiração, como vulgariza práticas do maior valor eugênico, que uma vez adotadas não só proporcionarão o desenvolvimento normal e perfeito à infância como contribuirão para o aperfeiçoamento físico, moral e intelectual das futuras gerações.853 Pode-se notar que o médico Octavio Salema acreditava que a ginástica ou a educação física não seriam apenas recursos higiênicos ou terapêuticos, além disso, seriam também instrumentos importantes para o aperfeiçoamento físico não só de um indivíduo, mas até mesmo das futuras gerações. Tal premissa levava o autor à conclusão do valor eugênico destas atividades. Podemos considerar que tais ideias coadunavam, portanto com as pretensas neolamarckistas. No entanto, para o eugenista e geneticista Octávio Domingues: “Dizer que fundar uma Escola de educação física é promover a eugenia da raça – francamente, só mesmo como imagem literária. E das ordinárias”.854 A prática de atividades físicas, 853 COMO criar filhos bellos e sadios. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, n. 11.344. p. 5, 6 dez. 1931. 854 DOMINGUES, op. cit., p. 25.

portanto, do ponto de vista de Domingues, poderia talvez prover algum benefício para a saúde do indivíduo, no entanto, não traria um melhoramento racial, uma vez que se incluiria como um fator externo, não sendo capaz de ser transmitido à descendência ou às futuras gerações.855 Ainda segundo Domingues interessaria à eugenia a “herança biológica” ou “genótipo” de cada ser, somente através deste (ou do aprimoramento deste) seria possível alcançar uma evolução racial. Malgrado esse posicionamento, o geneticista afirma que não devemos julgar o meio e educação como desprezíveis: Não devemos esquecer que más condições sociais e educação mal dirigida pioram indivíduos com boas disposições, anulando-as mesmo, ou concorrem para que elas não sejam aproveitadas. Más condições sociais e educação defeituosa colocam esses indivíduos em situações tão difíceis ou inferiores, que eles morrem prematuramente, ou não têm oportunidade de constituir família, perdendo-se desse modo as suas boas qualidades hereditárias, o que deve ser considerado uma perda para a nação.856 Nesta passagem o geneticista ressalta que as boas condições ambientais ou sociais, como as de saúde e educação, eram importantes para que um indivíduo dotado de “boas qualidades hereditárias” as conservasse ao longo de sua vida. De modo que se uma pessoa forte e saudável fosse acometida pela tuberculose ou pela sífilis, por exemplo – ou outras doenças consideradas hereditárias ou congênitas neste período – se tornaria então, do ponto de vista eugênico, portador de um estigma desfavorável ao aprimoramento racial, pois poderia comprometer sua futura prole e a sua descendência. Logo, de indivíduo considerado forte e sadio passaria a ser avaliado como impróprio à reprodução, uma vez que transmitiria supostamente uma má descendência. Por este motivo, provavelmente Renato Kehl demonstrava sua preocupação com o crescimento populacional no país e com as famílias numerosas. Segundo ele, quando um casal tinha muitos filhos acabava por não conseguir dar uma boa condição de saúde e educação a todos. Os pais deveriam zelar e prover os melhores cuidados possíveis aos seus filhos. Garantindo, portanto que as crianças que nasciam belas e sadias não fossem acometidas por doenças ou outros infortúnios que pudessem levá-las à morte ou que comprometessem estas “boas” características. De 855 Apesar desta citada obra de Octavio Domingues ter sido publicada na década de 1940, observamos pela análise de suas publicações no periódico Boletim de Eugenia, que o posicionamento do geneticista já na década de 1930 pautava-se na defesa de uma eugenia mendeliana. 856 DOMINGUES, op. cit., p. 230.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

45 5

modo que se não fossem tomados os devidos cuidados ocorreria uma situação similar àquela que explicitamos anteriormente: Os indivíduos mais cultos preocupam-se, naturalmente, de amparar os filhos que nascem, de resguardá-los da fome e da falta de educação, o que não se observa, via de regra, com os incultos, ignorantes, para os quais a natalidade representa apenas uma fatalidade. Não é por simples egoísmo, por egoísmo grosseiro, que os casais adiantados limitam a natalidade, adoptando os princípios da “maternidade consciente”. Devemos reconhecer, nesse particular, a preocupação elevada de dar nascimento a filhos fortes, sadios e na medida das possibilidades de bem alimentá-los, criá-los e educá-los, evitando que vão engrossar as fileiras dos infelizes, dos doentes, dos párias, em suma, que representam grande percentagem de massa humana sofredora.857 A conquista da “boa” hereditariedade e a conservação desta eram tão caras aos eugenistas, que segundo Kehl até mesmo a felicidade humana dependeria de uma descendência considerada favorável. De modo que, a infelicidade por sua vez seria resultante da preponderância da doença sobre a saúde, da degeneração sobre a normalidade: “A infelicidade, em última análise, resulta da desordem orgânica, psíquica e mental dos homens; é o reflexo da superioridade numérica dos maus sobre os bons”.858 No artigo intitulado: “Poderemos ser melhores?” Octávio Domingues também irá refletir sobre a felicidade. O autor se questiona se poderemos ser felizes, em seu monólogo Domingues responde: “Talvez, se formos bons. Disto deve ressaltar a ansiedade do homem em se fazer melhor, para ser feliz”. 859 Ora, ainda segundo o autor, nossa imperfeição resultaria da nossa herança biológica. Ou seja, de modo semelhante a Renato Kehl, Domingues acreditava que os descontentamentos humanos eram advindos, sobretudo de uma hereditariedade imperfeita. Concluía por fim que a humanidade para ser feliz ou para ser melhor, não precisaria de “super-homens”, a proposta eugênica seria, segundo ele, mais modesta e sensata, de modo que na verdade precisaria apenas de “homens normais, equilibrados física, intelectual e moralmente”.860 857 KEHL, Renato. O crescimento da população do globo. Os “infra-homens” augmentam, assustadoramente. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, n.. 11.100, p. 2, 25 fev. 1931. 858 KEHL, Renato. A felicidade do ponto de vista medico e eugenico. – Como garantir a felicidade de nossos filhos?. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, n. 10948, p. 2, 30 ago. 1930. 859 DOMINGUES, Octávio. Poderemos ser melhores?. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, ano III, n. 26, p. 1, fev. 1931. 860 Idem.

3. Considerações finais Diante do que foi exposto, parece evidente que, sobretudo a partir de finais da década de 1920 e ao longo da década de 1930, eugenistas como Renato Kehl e Octávio Domingues, por exemplo, se esforçaram para trazer as teorias mendelianas ao discurso eugenista brasileiro, até então influenciado pelo neolamarckismo. Estes buscaram trazer a compreensão de que os fatores externos não seriam capazes de alterar os genes ou a descendência. De modo que os benefícios de uma condição ambiental favorável atingiriam apenas os indivíduos incluídos naquele meio e naquele momento. Estes benefícios, contudo, não melhorariam racialmente a população, pois não eram capazes de alterar o plasma germinativo, logo não seriam transmitidos às gerações futuras. Apesar disto, notamos que o discurso eugenista não pretendeu, contudo desprezar a importância da saúde ou da educação para a nação, de modo que continuou defendendo medidas consideradas profiláticas, preventivas ou que garantissem que os indivíduos “bons”, “sadios”, “bem dotados” mantivessem tais características ao longo de sua vida, a fim de que constituíssem assim proles com as mesmas qualidades. Conforme buscamos apresentar, nota-se, entretanto que no Correio da Manhã grande parte daqueles que anunciavam ou escreviam algum tipo de reportagem ao jornal na década de 1930, continuavam a estabelecer uma aproximação entre eugenia e Higiene ou entre eugenia e estética, por exemplo. Apesar de Renato Kehl também ter sido colaborador deste mesmo periódico e ter se dedicado em suas publicações justamente a desfazer tal associação. O geneticista Octavio Domingues sugeria em um artigo ao Boletim de Eugenia que para tirar a população das crendices e dogmas da tradição oral era preciso que o estudo da genética estivesse presente na educação nacional, ou seja, a genética deveria ser objeto de estudo nas escolas secundárias, normais ou superiores. A defesa de Domingues pautava-se na ideia de que era impossível falar de eugenia e convencer um povo de suas vantagens e benefícios à raça “se o auditório onde se faz a propaganda, se esse povo desconhece as bases mesmas dessa ciência”. 861 Logo, na 861 DOMINGUES, Octavio. Os programmas de ensino e a Genetica. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, ano II, n. 13, p. 2, jan. 1930.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

45 7

visão do geneticista, para que a população em geral compreendesse o verdadeiro significado de eugenia era preciso que conhecesse suas bases, ou seja, sobretudo a genética. Aqui mais uma vez podemos subentender a relação estabelecida por Domingues entre eugenia e genética em detrimento do neolamarckismo, uma vez que se a população compreendesse os preceitos da genética e do mendelianismo, consequentemente deixariam de acreditar que fatores externos ou estéticos trariam algum benefício racial. Compreenderiam assim o verdadeiro sentido de eugenia. Procurou-se demonstrar aqui como o tema da eugenia esteve presente no Correio da Manhã da década 1930. De modo que foram selecionados apenas alguns artigos e anúncios que tocavam no assunto, não sendo possível dentro dos limites deste breve texto abordar grande parte destes, não se pretendeu, portanto esgotar aqui a análise da fonte. Considera-se o periódico importante para compreensão da eugenia no Brasil, uma vez sendo destinado ao público em geral, é possível estabelecer comparações entre a forma como tal ciência foi entendida por aqueles que não estavam de modo tão diretamente envolvidos com o tema ou até mesmo por aqueles que estavam e, no entanto possuíam uma percepção da eugenia ainda muito aproximada às premissas higiênicas ou sanitárias. Notou-se, portanto que ao longo a década de 1930 a eugenia ainda era associada por muitos como ciência apenas do aprimoramento físico, relacionando-se eugenia com estética e beleza, malgrado os esforços de Kehl e outros eugenistas que se bateram pela divulgação e propaganda de uma eugenia cada vez mais dissociada dos preceitos higiênicos e mais próxima da teoria mendeliana.

A memória subterrânea representada nas telas de cinema Rafaela Souza Maldonado Mestranda em Letras/ UNESP-Assis/ bolsista CNPq).862 Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar, a partir de teorias que visam à contribuição da arte para os estudos históricos, obras artísticas em benefício da memória subterrânea. Neste caso a arte em questão é o cinema. Consideramos que o cinema, assim como a literatura, carrega em sua história a função, além de seu valor artístico e estético, a de preservação, discussão e questionamento da história. E é por estes meios (cinema e literatura) que a memória tem sido preservada, inclusive a da Resistência italiana, pois ela tenta se encaixar no centro da história, porém alguns episódios são mantidos na memória subterrânea dos descendentes. Vamos utilizar como objeto de análise neste trabalho documentários que reconstroem as experiências da Resistência italiana, são eles: Giorni di Gloria de 1945 e La donna nella Resistenza de 1965.

862 Pesquisa de mestrado financiada pela CNPq e orientada pela profa. Dra. Gabriela Kvacek Betella

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

45 9

Palavras-Chave: cinema, documentário, Resistência italiana. 1. Este trabalho propõe analisar e discorrer sobre a memória subterrânea. No caso deste artigo trataremos das memórias da Resistência italiana que foram representadas em obras cinematográficas produzidas após os episódios da Segunda Guerra e a participação italiana que deixou o país desestabilizado. A memória subterrânea é aquela que, por algum motivo, não é reconhecida oficialmente ou passou por tentativas de apagamento, geralmente os motivos que levam a história ser considerada não oficial são questões políticas que se contrapõem com a ideologia da minoria em questão deixando em evidência apenas a parte que lhe interessa da história. A memória, segundo Michael Pollak863, é um fenômeno social. De certa forma ela define a identidade do grupo e é construída a partir de memórias individuais de bases comuns, ou seja que compartilham de imagens semelhantes. Porém ela também é seletiva e influenciada principalmente quando relações de poder estão envolvidas, neste caso pode haver o apagamento e sobreposição de uma memória sobre a outra. O caso das memórias dos partigiani, apesar de ser sempre comemorada e estar na memória do coletivo já foi alvo de tentativa de apagamento ou de subversão para não ser considerada uma luta legítima. A Resistência italiana, mencionada acima, aconteceu num momento conflituoso no país e em que era preciso tomar atitudes decisivas para conter os impactos da guerra sobre ele. A Itália sofria com a repressão interna do governo fascista e nos últimos anos da Segunda Guerra – especificamente de setembro 1943 a abril 1945 – as dificuldades são potencializadas com a invasão alemã no país. Para tentar minimizar os efeitos das decisões fascistas de permanecer na Guerra e ocupação nazista, surge o movimento partigiano encabeçado por civis intelectuais, estudantes e professores universitários, operários, enfim, gente de todas as escalas sociais dispostas a ajudar na libertação do país. A real situação da Itália não era simples: após a prisão do chefe fascista Benito Mussolini, que simpatizava com o nazismo, em julho de 1943, o então governante Pietro Badoglio assume o cargo e decide continuar na Guerra. Após quarenta e cinco 863 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989, p.3- 15.

dias no governo ele assina o acordo com os anglo-americanos, conhecido como armistício curto, para tentar diminuir os efeitos da guerra no país. Com essa mudança de lado a Alemanha invade e ocupa a Itália, principalmente o centro e o norte do país, liberta Mussolini e passam a comandar metade do país enquanto as tropas aliadas avançam pelo sul. Enquanto os aliados tentam romper as linhas do exército alemão, nos lugares em que eles ainda não chegaram é que começam a se formar o movimento partigiano. Mais adiante abordaremos com a ajuda dos documentários o exato momento da reviravolta da sociedade depois da invasão alemã. A ideia de memória subterrânea sobre a qual fundamentaremos nosso trabalho é a que propõe Michael Pollak. A proposta do estudo de Pollak é privilegiar a memória das minorias excluídas que não têm suas histórias propagadas levando ao apagamento delas, isso acontece por conta do caráter clandestino da memória. Também faremos apontamentos sobre o estudo de Monica Kornis sobre o uso do cinema como fonte histórica. A partir desta premissa, então, trataremos das memórias da Resistência italiana representada nos filmes que abordaram esse tema e conseguiram mostrar como foi a luta de quem se propôs a enfrentar o inimigo invasor pela liberação do país. Dos filmes que serão tratados, o primeiro foi produzido bem próximo a data da libertação da Itália, Giorni di gloria864, de 1945, outro um pouco mais tardio, na década de 1960, La donna nella Resistenza865; tratam com clareza e objetividade o que foi os dias de luta partigiana na Itália de 1943-1945, após o oito de setembro. O filme Giorni di gloria é uma parceria entre alguns importantes cineastas italianos: Luchino Visconti, Giuseppe de Santis, Marcelo Pagliero e Mario Serandrei. O grupo de cineastas retrata, até utilizando algumas imagens reais, a participação e a luta dos partigiani na Resistência italiana contra os exércitos de ocupação nazista. Na obra há um narrador in off que conta os acontecimentos da guerra e ações do movimento partigiano como troca de tiros, armações de ataques e os materiais usados

864 GIORNI di gloria. Direção: Luchino Visconti (70’). Itália: Titanus Film, 1945. Disponível em .

865 LA DONNA nella Resistenza. Direção: Liliana Cavani (47’). Itália: RAI, 1965.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

46 1

acompanhando com imagens que, segundo Mariarosaria Fabris866, as imagens foram feitas quase clandestinamente. Às cenas reais, filmadas quase clandestinamente, alternam-se cenas reconstituídas para documentar a ocupação nazi-fascista na Itália, desde setembro de 1943 até a libertação. Se o espírito que anima o filme é novo, o mesmo não se pode dizer de seu aspecto formal (FABRIS, 1996, p. 37)867. O aspecto formal ao qual se refere Fabris é provavelmente por conta da transição de estilos cinematográficos. Giorni di gloria aparece no momento de transição para o neorrealismo italiani, o documentário não tinha o estilo tão original quanto seu tema, que é a crônica dos partigiani. Ainda, observando o título do documentário, ele da ênfase à vitória de quem lutava contra o nazi-fascismo, principalmente a vitória dos partigiani sobre os opressores. Para se ter uma ideia é exibido o julgamento, sob as leis do fascismo, e execução de algumas autoridades fascistas, como forma de fazer uma pressão moral a esses tiranos que foram responsáveis por muitos atos contra a população italiana, tanto aquela que lutava pela liberação do país como também os civis que nada tinham a ver com a Resistência, mas que muitas vezes foram alvos principalmente por vinganças dos nazistas aos partigiani. O espaço de luta partigiana retratada no filme documentário é principalmente Roma. Na época a cidade teve a presença maciça dos aliados, mas também muitos cidadãos a fim de desmantelar as tropas alemãs instaladas na cidade. A cidade estava em poder dos fascistas e com grande número de tropas alemãs apesar de ter sido considerada cidade aberta, ou seja o acesso era livre para os aliados. Por esse motivo a veiculação da existência do movimento de Resistência entre a população de Roma era a pior, a imagem que os militantes tinham era de terroristas. A vertente ideológica dos partigini romanos era principalmente comunista. Portanto, os fatos mais marcantes que aconteceram em Roma e que são abordado em Giorni di gloria durante o período tratado aqui dizem respeito aos partigiani, mostrando o papel importante que desempenharam para a libertação e a perseguição que sofreram. Um dos acontecimentos mais importantes que o documentário menciona, por exemplo, é ao ataque a Via Rasella um dos mais 866 FABRIS, Mariarosaria. O neo-realismo cinematográfico italiano. São Paulo: Editora USP: FAPESP, 1996. 867 Idem 4.

importantes em Roma, que desestruturou uma banda do exército nazista e rendeu à população uma punição de grandes proporções na qual poderemos tratar abaixo. O documentário dá ênfase a essa história justamente por ela ter tido uma continuação desastrosa para os partigiani, mas que no final vai justificar o título do filme, vai ser a justiça do povo italiano. O ataque à via Rasella se deu no dia 23 de março de 1944 e foi organizado pelo grupo G.A.P. (Gruppi di Azione Patriottica)868 e teve a participação de uma importante heroína reconhecida no final da guerra Carla Capponi869. No filme podemos ver a imagem do carro de mão que supostamente foi usado para transportar a bomba utilizada no ataque bem como o local do ataque. Esse acontecimento vai impulsionar uma revolta dos exércitos de ocupação. Segundo a própria Carla Capponi a ordem era que “para cada alemão morto sejam fuzilados dez criminosos comunistas” (CAPPONI, 2009, p. 239)870. Essa ordem de represália terminou com o massacre Ardeatine, que foi a execução de 335 civis e militares com tiros de pistola na nuca. Quem dá os nomes de algumas pessoas para essa execução é o superintendente de Roma Pietro Caruso. Este personagem é representante do fascismo em Roma na época da ocupação e condenado à morte no fim da guerra pela Alta Corte de Justiça. No filme ele e outros apoiadores do fascismo aparecem nos momentos finais e conturbados para os fascistas: o julgamento segundo as leis do fascismo e execução. Sabemos que Caruso pertencia ao partido fascista e apoiava seus ideais e os alemães. Sua função de Superintendente de Roma fazia dele uma pessoa notável e influente no partido, uma de suas atribuições era de supervisionar a cidade para o partido fascista, era um fascista que vivia entre a sociedade civil observando o seu comportamento e manobras para depois delatar possíveis membros dos grupos. Ele devia identificar indivíduos suspeitos para delatar essas pessoas para serem punidas conforme as leis do fascismo. Por esses motivos adquiriu muitos inimigos e era alvo dos grupos partgiani, porém chegou a ser julgado e executado pela justiça fascista que 868 Os G.A.P. são formados pelas brigadas garibaldinas de ideologia comunista e tem maior grupo de atuação na região central. 869 Carla Capponi (1918-2000) recebeu medalha de ouro pelo seu valor militar no final da guerra. Durante o período da Resistência lutou bravamente entrando para o G.A.P. e se mantendo na clandestinidade até o final, ajudou no ataque a Via Rasella e na insurreição de Roma. Suas memórias deste período podem ser conferidas em sua autobiografia Con cuore di donna. 870 CAPPONI, Carla. Con cuore di donna. Il Ventennio, la Resistenza a Roma, via Rasella: i ricordi di una protagonista. Milano: Il Saggiatore, 2009.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

46 3

ele próprio apoiava, a esse julgamento e execução podemos assistir no documentário. Como já soubemos, Caruso foi o delator de uma lista com nome de várias pessoas que foram mortas no massacre. Após imagens chocantes de corpos mortos, jogados e irreconhecíveis referentes à chacina de Ardeatine e pessoas que tentam identifica-los na ocasião, os outros acusados, que também serão executados são apresentados: o delegado Scarpato e Pietro Koch, oficiais da polícia. O julgamento é conturbado e tem a presença dos parentes das vítimas, todos esperam a justiça, há até pessoas que tentam fazer justiça com as próprias mãos tentando burlar a segurança dos acusados no caminho para o tribunal. Por fim Caruso chega ao tribunal onde é julgado. As últimas cenas do documentário são as execuções. 2. Outro fato que os cineastas tratam em Gioni di Gloria, além do que já foi mostrado e que pode ser pinçado dos momentos memoráveis da Resistência é o 8 de setembro de 1943871. A data simboliza a mudança de lado da Itália apoiando os angloamericanos e dividindo o país em dois: com o governo instalado no Sul e os aliados avançando por essa área e o Centro-Norte com as tropas alemãs e o governo fascista. É nesse momento que as atenções se voltam para a Itália, e a questão não é mais a guerra como um todo, mas a própria sobrevivência e a situação dos outros civis italianos. A retomada desta data acontece no início do filme e é a partir dela que será recuperada a experiência de Roma na Resistência. Giorni di Gloria é uma espécie de homenagem a todos que lutaram na Resistência italiana e ajudaram na reconstrução da Itália. Essa homenagem se inicia sob a tomada de uma praia, o narrador começa contando o que representou o oito de setembro para os italianos e o despertar para a Resistência. Para ele que recompõe esses dias sob um olhar de fora, de quem lembra a data com reminiscência este dia é descrito como “dia de luto”, para muitas pessoas que estavam presente na ocasião, como os partigiani que começaram a se organizar no movimento de Resistência, este foi um dia de luta. 871 Data do armistício curto que na verdade foi assinado dia 03 de setembro, mas só foi divulgado cinco dias depois, pois se tratava da mudança de lado da Itália que, a partir do armistício, passa a apoiar os aliados angloamericanos.

Após as imagens da praia vazia, ainda no início alguns partigiani são mostrados timidamente, chegando pelo mar em um barco simples. Na próxima tomada outros aparecem, já em mais quantidade com armas e deitados no chão, próximo às montanhas para se proteger de tiros. Depois que contextualiza quem são esses partigiani um número grande deles aparece, se aproximando em fila, como soldados de um exército, ao som de um hino partigiano. A partir daí começam as histórias trágicas de famílias que foram destruídas, imagens da cidade devastada: imóveis e pontes no chão, retrato do país inteiro. A seguir começa a narração da ação partigiana mais polêmica que expomos acima. Chama atenção o fato do oito de setembro ser sempre lembrado quando o assunto é Resistência italiana, assim como na obra de Visconti e seus parceiros outras obras têm essa data como inspiração para iniciar sua narrativa, sejam elas cinematográficas ou literárias. Os exemplos de documentários expostos neste trabalho têm a data como marco, isso ocorre provavelmente por conta da mudança brusca na atitude do país e a mobilização popular. Podemos atribuir a recorrência da lembrança desse acontecimento nas obras à noção de acontecimento de Foucault cuja ideia a socióloga e psicanalista Irene de Arruda Ribeiro Cardoso sistematiza. Essa recorrência nos leva a noção de acontecimento, pois é um fato que, sem sombra de dúvidas, foi a reviravolta de um país em guerra, um marco, não agradável, na história da Itália e sua participação na Segunda Guerra. Portanto não há discussão que o oito de setembro é um ponto de partida para cada um contar sua história sobre a Resistência, assim Cardoso resgata Foucault que vai dizer que há fatos que devem ser sempre lembrados, problematizados a fim de encontrar resquícios que ainda não foram pensados, também evitar que caiam no esquecimento e se repitam causando o sofrimento novamente. Manter presente o acontecimento é impedi-lo de se dissipar na dispersão do tempo, no esquecimento, é guardá-lo no espírito como aquilo que deve ser pensado. É a manutenção de uma memória como o re-colher do já pensado – memória como pensamento sobre aquilo que foi pensado, no sentido ainda, de aguardar o não pensado que aí se esconde. (FOUCAULT apud CARDOSO, 1995, p. 58)872. Como vimos, a obra cinematográfica Giorni di gloria, além de lembrar o que motivou a união das frentes antifascistas, homenageia e reconstrói a memória dos 872 CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. Foucault e a noção de acontecimento. Tempo social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, p. 53-66, out. 1995.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

46 5

partigiani, principais figuras nacionais que lutaram na Resistência, a fim de não deixar que a história caia no esquecimento ou se torne uma memória subterrânea. Giorni di gloria recorda, ainda, a participação da mulher na Resistência, elas aparecem numa espécie de editora improvisada imprimindo e organizando edições dos jornais clandestinos da Resistência e o l’Unità873 é colocado em evidencia, além dessa função as mulheres também transportavam materiais, documentos ou outras coisas, pois não despertavam suspeitas, outras ainda eram ativas nas ações diretas como vimos acima no caso da Via Rasella em que uma das protagonistas foi Carla Capponi. E é sobre as mulheres e o papel que desempenharam na Resistência que a cineasta italiana Liliana Cavani trata em seu documentário. 3. O documentário de Liliana Cavani, La donna nella Resistenza, de 1965, trata especificamente das mulheres que participaram da luta armada, as declarações são sobre a motivação e o papel que desempenhavam as mulheres, ainda com olhar distanciado refletem sobre sua condição e a situação do país. O documentário versa sobre as depoentes que revelam o máximo de suas experiências. Gabriela Betella, em um trabalho em que faz uma análise deste documentário, resume sobre o que trataria o documentário. São histórias pessoais de empenho e coragem, sob o ponto de vista de cada depoente alçada a protagonista. Dessa forma, cada experiência passa a ser considerada como parte fundamental da história do verão de 1943 a abril de 1945 na Itália, compondo um capítulo importante sobre a adesão das mulheres à luta contra o nazi-fascismo. Em primeiro plano são colocados os rostos, sobretudo o relato em primeira pessoa de mulheres maduras a reconstruir a força daquilo que viveram na juventude, recordando fatos e outras figuras importantes daqueles eventos (BETELLA, 2013, p. 208)874. De início um narrador começa motivado pelo oito de setembro, como nas várias obras que tratam da Resistência italiana. Enquanto a voz situa o expectador sobre a condição das mulheres, na tela passam imagens de ilustrações com personagens desolados, tristes, ilustrando o sentimento daqueles dias. Na época, como 873 O jornal l’Unità existe desde antes da resistência, foi fundado em 1924 por Antonio Gramsci e na época das ocupações era produzido clandestinamente.

874 BETELLA, Gabriela Kvacek. Entre fragilidade, incerteza e coragem: a mulher na Resistência italiana através dos testemunhos. In: Anais da XXX semana de história “Memórias, Imagens e Narrativas”. Org. BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio & SILVA, Wilton Carlos Lima da. Assis: UNESP- Campus de Assis, 2013, p. 206-215.

conta o narrador, o sofrimento das mulheres era dobrado pois ficavam angustiadas com seus filhos e maridos que estavam fora lutando no front em casa tinham que racionar alimentos e passavam necessidades com os membros mais jovens da família. É a partir do armistício que elas decidem tomar uma posição, já que não viam outra solução, elas então, entraram para a Resistência. Após a apresentação do narrador da condição das mulheres o documentário segue com a leitura de cartas de mulheres que infelizmente não sobreviveram. Por meio de uma narradora em off, nessas cartas elas falam da situação de clandestinidade e é como se se declarassem para suas famílias, até pode parecer que é como se elas pedissem perdão às famílias por se dedicarem à luta, porém não podiam deixar a clandestinidade. No decorrer do documentário, quando realmente começa os depoimentos pessoais, há imagens das sobreviventes jovens enquanto militantes seguido de seus depoimentos e depois suas imagens mais velhas, contemporâneas ao documentário, algumas, no final, mostram suas condecorações de reconhecimento adquiridas no final da guerra, mostrando a vitória partigiana. É tocante a forma com que o tema é abordado desde a abertura, o teor dos depoimentos, que saem da atmosfera impessoal, de luta e entram na individualidade das depoentes e a trilha sonora, enfim os elementos que compõem o documentário ajudam a criar uma atmosfera que emociona, tanto que o documentário rendeu uma bela análise de Gabriela Betella (BETELLA, 2013)875 em que analisa o documentário tanto esteticamente quanto a importância do testemunho nos dias atuais principalmente o de mulheres que lutaram não só pelo seu país, mas também pela própria emancipação. Na análise de Betella ela aponta ainda o caráter da cineasta Liliana Cavani como “diretora do contra” (BETELLA, 2013, p. 206) 876 por sempre retratar assuntos polêmicos do passado como o nazismo e o fascismo apoiando sempre o oprimido como é o caso de La Donna nella Resistenza. Muitos documentários e filmes foram produzidos sobre o tema da Resistência ou com tema análogo à guerra logo que ela terminou mostrando como aconteceu tudo, como a população estava desestabilizada e falta de estrutura das cidades. Havia no país a vontade de não deixar a memória se apagar era preciso prevenir a história do apagamento, isso poderia ajudar na reconstrução do país e até na recuperação do 875

Idem 13.

876 Idem 13.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

46 7

trauma, fortalecendo a consciência histórica da Itália. Esses filmes e documentários, além de obras artísticas, nos chama atenção para a realidade, alguns apresentam personagens reais, como é o caso aqui. Portanto acreditamos, como é o objetivo deste trabalho, que estas obras tiram do subterrâneo histórias como as da Resistência tornando-as oficiais. 4. No fim do século XIX acreditava-se, como explica Monica Kornis877, que só os filmes considerados documentários como Giorni di gloria e La donna nella Resistenza é que teriam condições dar sua contribuição para a história, pois os registros das imagens têm caráter documental, assim teriam mais aproximação com a realidade. Hoje já sabemos que tem sido produzido muitos filmes com base histórica, em que é forte a referência que se faz aos acontecimentos priorizando a História e servindo, além de modelos de produções artísticas, como fonte documental, admitindo as resoluções de Kornis e Ferro (1992)878 de que “tanto o cinema documentário como o de ficção devem ser objeto de uma análise cultural e social, refutando a ideia de que o primeiro gênero seria mais objetivo e retrataria fielmente a realidade” (KORNIS, 1992, p. 241)879. Assim temos o filme Il partigiano Johny880, de 2000, que aqui será apenas citado como um exemplo de produção recente, já que até hoje se produz filmes sobre a Resistência. A obra cinematográfica é baseada no romance homônimo de Beppe Fenoglio de 1968, o filme não é um documentário e também não é produzido a partir de um livro de memórias, ele parte da ficção, mas trás consigo informações relevantes sobre a Resistência, ou seja pode não ter ocorrido exatamente daquela forma com que está sendo contada, mas de alguma forma aquela história existiu, pois era recorrente. O filme trata de um soldado que deserta após o anúncio do armistício curto no oito de setembro, o qual lemos acima, e entra para o grupo partigiano para lutar na Resistência. Essa atitude era muito comum entre os soldados já que se viram sozinhos 877 KORNIS, Mônica Almeida. História e Cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos vol. 5, nº10 , Rio de Janeiro, 1992, p. 237-250.

878 FERRO, Marc. Cinema e história. Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992. 879 KORNIS, Mônica Almeida. História e Cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos vol. 5, nº10 , Rio de Janeiro, 1992, p. 237-250.

880 IL PARTIGIANO Johny. Direção: Guido Chiesa (135’). Itália, 2000.

no campo de batalha sem ordens dos seus superiores por conta da confusão que o armistício gerou no país. Assim podemos observar o valor do filme como fonte para a história, pois mesmo não sendo ele montado sob a estética de um documentário percebemos elementos históricos em sua narrativa. Giovani Levi (2011)881 e Walter Benjamin (1994)882 também abrem essa discussão para a receptividade da história para novos materiais de olho na subjetividade da história, interessados em fazer uma história qualitativa. Benjamin já nos anos de 1940 atentava para um estudo da história em “capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior” (BENJAMIN, 1994, p. 232)883, assim podemos pensar num “fazer história” mais dinâmico que, amadurecido, junto com as ideias de Levi na micro-história que se atém ao “acesso ao conhecimento do passado de vários indícios, sinais e sintoma” (LEVI, 2011, p. 154)884. Para Levi, ainda esse procedimento mencionado toma como ponto de partida particular “e prossegue, identificando seu significado à luz do seu próprio contexto específico” (LEVI, 2011, p. 154)885. Observamos então em Levi e Benjamin que não basta saber como cada conteúdo aconteceu exatamente durante história e sim como elas se relacionam e principalmente como agem sobre nós que estamos no presente, por isso também a importância da memória. Há muitas correspondências entre a História e as histórias que foram contadas aqui a partir dos documentários. Porém algumas memórias mais particulares, principalmente as do documentário de Liliana Cavani, sempre ficam à margem, no subterrâneo, em relação a algumas histórias. Neste trabalho vimos algumas dessas correspondências para a partir delas observar fragmentos da história subterrânea, individual - como a das mulheres partigiane em La donna nella Resistenza, e a busca da justiça dos partigiani que termina com a glória em Giorni di gloria - e como essas 881LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda de Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

882 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: _____. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-232. 883 Idem 21.

884 LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda de Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 2011. 885 Idem 23.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

46 9

memórias podem emergir e atingir um público grande por meio de suas publicações ou representações no cinema e se tornarem memórias coletivas conforme a ideia de Pollak (1989)886.

A NOÇÃO DE LÓGICA HISTÓRICA EM E. P. THOMPSON Roberto Manoel Andreoni Adolfo, Doutorando em História , UNESP/Assis887 886 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989, p.3- 15. 887 Bolsista CAPES.

Resumo Edward Palmer Thompson, dentre outras referências, como Eric Hobsbawm, Perry Anderson, Christopher Hill e Raymond Willians, contribuiu para a renovação dos estudos marxistas na historiografia inglesa. Através de obras renomadas, como A formação da classe operária inglesa (1693), Thompson ficou conhecido por recuperar a importância da cultura na dinâmica das questões políticas e sociais, e por defender uma perspectiva que valorizava e empiria e denunciava a mecanicidade das teorias abstratas. O presente texto tem por objetivo central fazer algumas considerações gerais acerca dos principais elementos teóricos na obra de Thompson, como suas relações com o pensamento de Karl Marx, seus conceitos de experiência e de classe, assim como sua noção de lógica histórica. Palavras-Chave : Hobsbawn

Marxismo, Lógica Histórica, Edward P. Thompson, Eric

Introdução Inserido numa geração “responsável pelo entendimento do marxismo como abertura crítica”

888

onde encontravam-se autores como Maurice Dobb, Christopher

Hill, Raymond Williams, Eric Hobsbawm e Perry Anderson, entre outros, E. P. Thompson nasceu na Inglaterra em 1924; formou-se em História e foi fortemente influenciado pelas ideias de Karl Marx; também foi membro do partido comunista inglês e participou, em 1956, da fundação da revista Reasoner. Entretanto, devido ao seu conteúdo crítico, a revista acabou sendo proibida pelo partido, o que fez com que Thompson também se desligasse do mesmo. Logo em seguida, junto com Saville, o historiador inglês fundou a New Reasoner, onde já se podia ver a linha de pensamento que defenderia em seus estudos posteriores, ou seja, a crítica da dicotomia basesuperestrutura que levava a um modelo determinista, sem movimento e que negava a participação da ação humana consciente no processo histórico. Dois anos depois, em 1959, esta revista fundiu-se com outra, a Universities and Left Review, dando origem à New Left Review. Dela faziam parte autores como Raymond Willians e Stuart Hall, entre outros. Em 1963, sobre direção de Perry Anderson, a revista alterou sua linha 888 MATTOS, Marcelo Badaró. E. P. Thompson no Brasil. Rio de Janeiro, n.14, 2 semestre 2006. p. 83.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

47 1

editorial e privilegiou, dentre outros, os trabalhos estruturalistas do filósofo francês Louis Althusser, dando início a vários conflitos uma vez que a postura de Thompson divergia claramente da de Althusser e Perry Anderson. Neste mesmo ano Thompson publicou um de seus mais importantes estudos, A formação da classe operária inglesa (1963). Preocupado com o “fazer-se” da classe operária inglesa, e apreendendo esta como uma categoria histórica, Thompson foi diferenciado em suas fontes e em suas formas de abordar os objetos. Sendo assim, a pesquisa não somente se ateve em sindicatos, organizações socialistas, como também abrangeu em sua análise elementos como a política popular, as tradições religiosas, os rituais, os festivais, as danças, entre outros. Vale ressaltar ainda que para a realização deste estudo Thompson se utilizou de um conceito primordial e que pode ser considerado um dos pilares de sua teoria 889, o conceito de experiência. Posteriormente a publicação da Formação da classe operária inglesa (1963), em 1964, acirrando o debate com Perry Anderson, Thompson publicou As peculiaridades dos ingleses (196?), ensaio que mais tarde seria publicado junto com A miséria da Teoria e outros artigos (1978), com a intenção de combater a penetração do estruturalismo de Althusser na historiografia inglesa. Thompson e Marx Visto alguns aspectos da produção de Thompson, cabe a nós, neste momento, adentrarmos em apontamentos de ordem mais teórica. Para isto, como ponto de partida, observaremos como se dá a relação de Thompson com Marx. Segundo Sérgio Silva, Thompson rebate uma das principais teses de O Capital, pois o historiador inglês negaria o proletariado como resultado da industrialização. Esta posição “é certamente uma ideia central de seu pensamento, uma chave mestra para a compreensão das suas relações com o pensamento de Marx e de sua oposição radical às correntes dominantes do pensamento marxista”. 890 889 Para que não haja mal entendido, vale ressaltar que quando falamos em teoria, não estamos nos referindo a uma teoria fechada em si mesma, compreendida por conceitos estáticos e mecânicos. Pelo contrário, como veremos ao longo do texto, a teoria em Thompson é algo dinâmico e que se articula e se produz através de um constante diálogo com as evidências históricas. 890 SILVA, Sérgio. Thompson, Marx, os marxistas e os outros. In: THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses. São Paulo: Ed. Unicamp, 2001. p. 61.

A industrialização, para Marx, teria acontecido através do processo de transformação das forças produtivas. Para compreender melhor a relação entre a formação de uma classe e forças produtivas é importante entender como se dá o que Marx chama de modos de produção. Estes são compostos por dois elementos. De um lado, as forças produtivas, que são os aspectos técnicos da produção, por exemplo, os instrumentos de trabalho, matérias-primas e o próprio trabalho. Do outro lado, as relações sociais de produção, basicamente as relações entre capitalistas e trabalhadores. Em conjunto, portanto, forças produtivas e relações sociais de produção formam as relações do modo de produção. Tal conjunto – forças produtivas e relações sociais – se fundamenta sobre uma contradição, e é exatamente esta contradição que insere movimento ao real. Esta transformação caracteriza a realização do modo de produção, o que não significa, porém, o encerramento do movimento, pois o contínuo desenvolvimento das forças produtivas levaria, posteriormente, a um choque com as relações de produção. Para finalizar, o que Sérgio Silva destaca como de essencial importância para compreender a crítica de Thompson, é que no pensamento de Marx prevalece “a ideia de que forças produtivas e relações sociais representam uma unidade contraditória sob o domínio das relações sociais”, neste caso, uma relação social capitalista, ou seja, baseada na lógica do capital. 891 A crítica de Thompson, em relação às ideias de Marx vistas acima, se refere ao “fato de esta tentar explicar o movimento da relação como um movimento imanente à própria relação e que se esgota nela mesma, de tal forma que, no final das contas, esse movimento já se encontra inscrito (em germe) nas formas iniciais da relação”

892

.

Sendo assim, nesta concepção, a formação do proletariado seria o efeito da lógica do capital, o que não corresponderia, para Thompson, a uma explicação do processo histórico real. Isto não significa, no entanto, que o historiador inglês não acredite em uma lógica do processo histórico. As mudanças nas forças produtivas e nos modos de produção não seriam explicadas pela lógica do capital, e sim pelo desenvolvimento real, que, para ele, corresponde ao processo histórico das lutas de classes. Postas estas divergências entre Thompson e Marx em relação a leitura que fazem das classes sociais, sendo que para o primeiro estas são analisadas em seu papel 891 Ibidem., p. 61. 892 Ibidem.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

47 3

de agente histórico e para o segundo são vistas como efeitos de uma lógica capitalista, Sérgio Silva diz que “é possível arguir, em defesa de uma aproximação maior entre os dois autores, que Marx não completou O Capital, deixando de escrever o prometido livro sobre classes sociais”

893

. Complementando sobre a leitura de Marx por

Thompson, Silva diz: Talvez a leitura de Thompson possa também confirmar que, ao reivindicar uma certa tradição marxista, ele não estava apenas fazendo uma reverência àquele que permanece até hoje como o maior crítico do mundo moderno (uma reverência, por sinal, muito pouco conforme ao seu estilo). Talvez essa leitura permita resgatar e dar o devido destaque não ao “verdadeiro Marx”, mas a uma tradição diretamente vinculada às preocupações centrais que norteiam A ideologia alemã e que levaram a Para a crítica da economia política. 894

A lógica histórica Visto que Thompson não compartilha com Marx o papel determinante da lógica capitalista e que, no entanto, não nega que exista uma lógica histórica, cabe a nós, então, compreender como ele formula tal ideia. De acordo com Thompson, as formas de se escrever a história, a maneira como os historiadores abordam seus objetos, os métodos empregados, e, principalmente, as conclusões, são das mais variadas possíveis, o que torna difícil uma tentativa de coerência disciplinar. Não obstante, Thompson afirma que seria estranho se a História, empresa tão antiga, não tivesse sua própria disciplina. Deste modo, ele não só a afirma como também a identifica como sendo o próprio discurso de demonstração da história, o que chama de lógica histórica. Esta é uma “lógica característica, adequada ao material do historiador”, de modo que não se pode assimilá-la ao campo da física, ou da filosofia. Diferentemente da primeira, que oferece um laboratório de verificação experimental, a história “oferece evidências de causa necessárias” que são sempre insuficientes, de modo que as “leis” – as quais Thompson prefere chamar de lógica – 893 Ibidem., p. 67. 894 Ibidem., p. 69.

“do processo social e econômico estão sendo continuamente infringidas pelas contingências, de modo que invalidariam qualquer regra nas ciências experimentais”. 895

Quanto à diferença entre a lógica da história e a da filosofia, Thompson afirma que a primeira não pode ser submetida aos critérios analíticos da segunda. Pois, os filósofos devem “ocupar-se de termos sem ambiguidades e mantê-los equilibrados”, eles teriam uma propensão a analisar os fatos de forma isolada, a-temporal. Por outro lado, e diferentemente da lógica analítica da filosofia, a lógica histórica se atém “aos fenômenos que estão sempre em movimento.” 896 Como forma de abordar estes materiais históricos – fenômenos em movimento –, a lógica histórica se estabelece através de um diálogo entre conceito e evidência. Segundo Thompson: Por “lógica histórica” entendo um método lógico de investigação adequado a materiais históricos, destinado, na medida do possível, a testar hipóteses quanto à estrutura, causação etc., e a eliminar procedimentos autoconfirmadores (“instâncias”, “ilustrações”). O discurso histórico disciplinado da prova consiste num diálogo entre conceito e evidência, um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um lado, e a pesquisa empírica, do outro. 897

Após esta observação, Thompson chama a atenção para o papel da interrogação que o historiador elabora sobre a evidência. Quem a efetua, ou seja, o interrogador, é a lógica histórica; “o conteúdo da interrogação é uma hipótese”; e o interrogado seria a própria evidência. 898 Diante disso, Thompson enumerou oito proposições com a intenção de melhor definir os atributos da lógica histórica. A primeira, apresentada de forma bastante sintética, refere-se à afirmação da existência real dos fatos – objetos do conhecimento histórico –, mas que só se tornam cognoscíveis por intermédio dos métodos históricos. De acordo com a segunda proposição, o conhecimento histórico é “provisório e incompleto”, “seletivo”, e delimitado pelas interrogações feitas a evidência, de 895 THOMPSON, Edward Palmer. A Miséria da Teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p. 48.

896 Ibidem. 897 Ibidem., p.49. 898 Ibidem.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

47 5

modo que o conhecimento histórico só pode ser “verdadeiro dentro do campo assim definido”. 899 A terceira proposição afirma que a evidência possui propriedades determinadas, sendo falsas as teorias e hipóteses que não estiverem em acordo com “as determinações da evidência” 900. De acordo com as proposições anteriores, a quarta proposição estabelece um diálogo entre interrogação e evidência onde nenhuma das duas se apresenta como função uma da outra, ou seja, ambas são mutuamente determinantes. As quatro últimas proposições são apresentadas de forma mais demorada, entretanto, de acordo com a economia do presente de texto, cabe a nós sintetizá-las e buscar a ideia central de cada uma. A quinta proposição chama a atenção para a realidade do objeto do conhecimento histórico. De acordo com Thompson, acreditar que a transformação do presente em passado, “modifica seu status ontológico, é compreender mal tanto o passado quanto o presente” 901. Cada historiador, ou cada geração de historiador, pode inovar quanto às indagações históricas e trazer nova luz sobre as evidências, de modo que, analisada como investigação, a história modifica-se, o que, no entanto, não deve implicar na transformação dos acontecimentos, ou na indeterminação da evidência. A sexta proposição esta relacionada com a ideia de que a teoria não pertence apenas à esfera da abstração, pois sua constituição exige que haja um diálogo com as evidências. É certo que a investigação do processo histórico compreende noções de causação, de mediação e de contradição, entre outros, fazendo com que sejam elaboradas noções teóricas que se aprimoram dentro do próprio pensamento. Contudo, isto não que dizer que elas não precisem dialogar com as evidências. Este diálogo Thompson chama de dialética do conhecimento histórico: Na medida em que uma tese (conceito, ou hipótese) é posta em relação com suas antíteses (determinação objetiva não-teórica) e disso resulta uma síntese (conhecimento histórico), temos o que poderíamos chamar de dialética do conhecimento histórico. 902 899 Ibidem. 900 Ibidem., p. 50. 901 Ibidem., p. 51. 902 Ibidem., p. 54.

A sétima proposição diz respeito aos conceitos históricos marxistas, entre eles o materialismo histórico. De acordo com Thompson eles “se diferem de outros conceitos interpretativos na prática histórica, e se são tidos como mais ‘verdadeiros’, ou mais adequados à explicação dos outros”, isto se dá porque são mais condizentes com os atributos da lógica histórica, e não pelo motivo destes conceitos serem constituintes de uma grande teoria verdadeira, fora dos muros da disciplina histórica. 903

Por fim, a oitava e última proposição que Thompson aponta sobre a lógica histórica se faz por meio de uma restrição a certos estruturalismos que buscam “superar a disciplina histórica”

904

. A crítica refere-se a conceitos e categorias

históricas. Segundo Thompson, estes estruturalistas procuram desenvolver conceitos estáticos não respeitando as contradições que as evidências históricas apresentam, além do que não levam em consideração o próprio processo histórico. Para o historiador inglês, “certos conceitos e categorias históricas só podem ser compreendidos como categorias históricas”, de modo que tais conceitos se apresentam menos como “modelos” do que por “expectativas”. Não determinando uma regra sobre as evidências, são, antes, conceitos elásticos. O conceito de experiência Poderíamos ilustrar todos estes aspectos que envolvem a lógica histórica observando como Thompson trabalha e concebe uma categoria histórica: a classe social. Entretanto, antes disso, se faz necessário a compreensão de um termo não só importante para o entendimento da formação das classes, como também do pensamento de Thompson de uma forma geral, trata-se do conceito de experiência. Este termo aparece como um enfrentamento aos silenciamentos de Marx. Para exemplificar tal afirmativa, Thompson faz uma analogia entre Darwin e Marx: Assim como Darwin propôs e demonstrou um processo evolucionário que se desenvolveu por meio de uma transmutação hipotética das espécies –

903 Ibidem., p. 55. 904 Ibidem., p. 56.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

47 7

espécies que até então haviam sido consideradas como imutáveis e fixas – e ainda assim continuou totalmente no escuro quanto aos meios genéticos reais dessa transmissão e transmutação – assim também, de maneira análoga, o materialismo histórico, como uma hipótese, ficou sem sua “genética” própria. Se fosse possível propor uma correspondência – e, em parte, demonstra-la – entre um modo de produção e processo histórico, como, e de que maneira, isso se faria? 905

A esta indagação Thompson responde que a “genética” ausente na teoria de Darwin e de Marx foi “a tradição de Mendel e do materialismo histórico cultural”, respectivamente

906

. O termo que falta, então, na teoria de Marx, seria o da

“experiência humana”. Com sua utilização, resgata-se o papel de homens e mulheres como agentes históricos, ou seja, como indivíduos que vivenciam e experimentam situações determinadas através de necessidades, interesses, antagonismos, de modo que esta experiência adquirida é, em seguida, tratada no plano da consciência e da cultura “(as duas outras expressões excluídas pelas práticas teóricas)”

907

. Thompson afirma que

tais conceitos – responsáveis por evidenciar como a história é determinada por maneiras que colidem diante das intenções conscientes dos sujeitos históricos – aparecem como um ponto de junção entre “estrutura” e “processo”. Deste modo, perguntando-se sobre o que pôde encontrar com a descoberta do termo experiência, Thompson responde dizendo que não foi uma teoria melhor, mais bem acabada, e que veio para substituir um sistema por outro, muito menos que este termo representa um novo elemento determinante dentro de uma teoria. Pois “experiência”, antes de tudo, foi gerada na “vida material”. É com este termo que “encontramos algum conhecimento novo, desenvolvemos nossos próprios métodos e o discurso de nossa disciplina, e avançamos no sentido de um entendimento comum de todo processo histórico”. 908 As classes sociais 905 Ibidem., p. 182. 906 Ibidem. 907 Ibidem. 908 Ibidem., p. 188.

Visto de maneira breve em que consiste o conceito de “experiência”, e de que forma ele aparece e repercute na teoria de Thompson, podemos agora ver como ele se aplica na formação das classes sociais, e, como a concepção destas, está de acordo com sua noção de lógica histórica. No prefácio de A Formação da Classe Operária Inglesa (1963), Thompson apresenta de maneira sucinta o que entende por classe social: Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma “estrutura”, nem mesmo como uma “categoria”, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas. 909

Concebendo a classe desta maneira – como fenômeno histórico –, e considerando um lugar de destaque aos indivíduos reais em seu processo de formação, esta é descrita da seguinte forma: um grupo de homens, ao compartilharem experiências, sejam elas herdadas ou partilhadas, as sentem e se relacionam entre si ou em oposição a um outro grupo de homens com interesses que estão em desacordo com os seus. As experiências que estas classes experimentam é, em grande parte, determinada pelas relações de produção em que estes homens estão inseridos. Sendo assim, a maneira como estas experiências são concebidas dentro de uma determinada cultura é o que podemos chamar de consciência de classe. Thompson completa sua descrição chamando a atenção para o fato de que apesar da “experiência” aparecer de forma determinada nas vidas dos indivíduos, o mesmo não se dá com a consciência – sendo que é no plano desta que se “digere” a experiência e possibilita o esboço de uma reação – pois “podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei.” 910 Mais tarde, em As peculiaridades dos ingleses, Thompson também apresenta algumas observações acerca do que entende por “classe” e também a respeito de sua teorização. De acordo com sua descrição, a “classe deriva de processos sociais através 909 THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da classe operária inglesa: A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra SA, 1987. p. 9. 910 Ibidem., p.10.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015 do tempo”

47 9

911

. Para Thompson, o fato das pessoas se comportarem repetidamente de

modo classista é o que nos leva a conhecer as classes, de modo que: Este andamento histórico gera regularidade de resposta em situações análogas e, em certo nível [...], permite-nos observar o nascer de instituições e de uma cultura com traços de classe passíveis de uma comparação internacional. Somos, então levados a teorizar este fenômeno como uma teoria global de classes e de sua formação, esperando encontrar algumas regularidades, certos “estágios” de desenvolvimento etc. 912

Este tipo de compreensão acerca da classe, para Thompson, nos leva a concebê-la a partir de dois significados distintos. Primeiro, compreender a classe diretamente através das evidências históricas e de seus conteúdos históricos correspondentes. Quando pensa desta forma, Thompson está se referindo ao período da sociedade capitalista industrial, pois é neste período que se pode observar “instituições de classe, partidos de classe, culturas de classe”, de modo que “o conceito não só nos permite organizar e analisar a evidência, mas está também presente, com um novo sentido, na evidência mesma”. 913 Segundo, quando a correspondência da evidência histórica é menos direta, como no primeiro caso, concebe-se a categoria classe como heurística ou analítica. Neste caso, lança-se mão do conceito no estudo “das sociedades anteriores à Revolução Industrial”

914

. Neste tipo de análise deve-se ficar atento e evitar

anacronismos e se distanciar do uso de concepções posteriores de classe. Deixando de lado estas dificuldades em se trabalhar com o conceito de classe dentro deste significado, Thompson afirma que “o fato de se manter o uso da categoria heurística de classe [...] não deriva da perfeição do conceito, mas da carência de categorias alternativas adequadas à analise do processo histórico evidente e universal”. 915 Entendido esta forma com que Thompson trabalha teoricamente com o conceito de classe social, podemos perceber como ela condiz com o que ele entende 911 THOMPSON, 2001, p. 270. 912 Ibidem. 913 Ibidem., p. 273. 914 Ibidem. 915 Ibidem.

por lógica histórica. Como vimos acima, a classe social não é concebida como um conceito estático que se aplica sobre o conteúdo histórico, distorcendo e forçando este a caber naquele. Pelo contrário, aqui, as hipóteses – neste caso o conceito de classe – não são intransigentes, pois respeitam as determinações da evidência, dialoga-se com elas, reformula-se as interrogações e se estabelece um conhecimento histórico através de uma dialética entre teoria e evidência.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

48 1

“Um Antigamente que sempre volta”: Identidade Cultural pelos mais-velhos na obra AVÓDEZANOVE E O SEGREDO DO SOVIÉTICO, DE ONDJAKI. Rogerio Aparecido Lopes da Silva Angeli, Mestrando em Letras FCL – UNESP/ASSIS. RESUMO Ondjaki valoriza a oralidade em suas “estórias ficcionadas” e os “maisvelhos” têm um papel de destaque em seus contos e romances, como fontes propagadoras da cultura e da tradição. Como base, tem-se o livro AvóDezanove e o segredo do soviético (2008), corpus do trabalho, que revisita as histórias do passado de pós-guerra, através da perspectiva de uma criança. Rodeado por personagens “mais-velhos”, o narrador deixa permear seu discurso, de forma evidente e poética, pela velhice. Busca-se a caracterização e a análise desses “momentos de aqui” (as representações literárias no presente, de uma realidade do passado), que promovem na alteridade entre infância e velhice, o auge da obra de Ondjaki, observando a forma com que pluralizam a voz da narrativa, de maneira reflexiva, como meio de reprodução do discurso coletivo de um povo através da narrativa individual, baseada no caráter memorialista, na busca de resgatar a identidade cultural do povo angolano, em um “antigamente que sempre volta”. Palavras-Chave : Literatura Africana, Literatura Contemporânea, Identidade Cultural, Velhice, Ondjaki. O século XX é sinônimo de Modernidade, mas em muitos territórios esse padrão nomeado de Globalização, que atribui sentido de evolução ao mundo, com todos os territórios sendo reflexo de uma única forma de ser e pensar, despreza qualquer conceito de identidade cultural e tradição, pois o processo de Globalização traz em si uma retomada de práticas arcaicas de poder e dominação dos povos privilegiados sobre os menos favorecidos. A mesma impressão que Freud, em 1930 916, notou em seu texto, O mal-estar da civilização, quando diz que muitos são notados pela busca de poder e outros são ignorados nesse mesmo embate, pois são destituídos de um valor humano, por serem considerados inferiores, mesmo sendo sua luta legítima. 916 FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In S. Freud. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. vol. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Obra original publicada em 1930).

A coletividade não é mais sinônimo de unanimidade, principalmente quando o desejo dos que têm maior poder é imposto àqueles que são inferiores no seu etnocentrismo. O Ocidente construiu, de maneira concreta, durante a expansão marítima e comercial, um pensamento de alteridade que estabelecia essa situação de sujeição e inferioridade. Desde os séculos XV e XVI, os territórios africanos se viram como alvo fácil de uma prática de dominação, a colonização de exploração, que distribuía aleatoriamente o território entre suas metrópoles e desconsiderava, da mesma maneira como era feito na América e Ásia, os habitantes nativos e suas potenciais contribuições para a ordem mundial. Em especial na África, pois era fonte da mão-de-obra escrava que abastecia as senzalas do mundo, a divisão do território esqueceu a pluralidade dos povos que viviam nessas terras e conduzia a coletividade a uma mistura que atentava contra a diversidade, provocando a destruição de riquezas materiais e imateriais. Se o encurtamento das distâncias é um fator essencial para a modernização dos territórios, esse mesmo processo não facilita a colocação de diferenças e o que foge ao padrão dominante é destituído e sobrepujado. A Colonização era parte de uma incursão dos europeus em busca de novas rotas comerciais e de expansão de seus domínios, com vista ao enriquecimento e demonstração de seu poder mundial. A prática de Colonização já era recorrente em território africano, por parte dos nativos, quando tribos disputavam e às vencedoras cabia destituir o poder de uma tribo e implantar sua língua, hábitos e tradições aos dominados. Essa sensação de não-lugar a que os dominados eram conduzidos tem que dividir espaço com a destituição imposta por culturas estrangeiras, que não estabeleciam conexões diretas com o fazer e o pensar africanos. O etnocentrismo europeu, que era imposto, caracterizava a cultura africana como primitiva e desprovida de valor. A valorização do estrangeiro, na expansão do comércio, impedia que as tradições fossem repassadas entre gerações durante séculos, colocando em marginalidade e exclusão a identidade de um povo, que seguiu lutando em seus territórios, em busca de um resgate de seu lugar físico e cultural. A guerra civil e a exploração praticada pelas metrópoles deixaram um rastro de pobreza e morte na África, que é sentido até hoje, evidenciando a vontade de resgatar essas forças locais para conseguir revitalizar um continente que foi torturado por séculos de Colonização 917

.

917 HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à História contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

48 3

A literatura é prova material dessa busca, pois seus registros artísticos são providos dessa força da palavra e foi por ela que muitos homens conseguiram dar ao mundo a voz que a África havia perdido, pois se trata de uma expressão cultural registrada de um povo, uma cultura, um espaço e um momento; e a Literatura Africana do século XX e XXI é a expressão do sentimento de seu povo contra o colonialismo, que acabara de se romper. Conduzido pelo embate entre trauma e a realidade pós-traumática, o processo literário de representação de um mundo em transição social, econômica e identitária propaga uma narrativa que caminha em consonância com a memória e a pluralidade de vozes, que constituem a reformulação de uma ideia de coletividade, na constante busca do imaginário embasado na realidade, com fontes capazes de verter um molde cultural que consiga apresentar aos leitores um retrato dos integrantes de uma nação naquele momento histórico, textos em que se identifique a busca desse grupo por uma renovação de seu papel enquanto personagens de uma sociedade. Na obra AvóDezanove e o segredo do soviético (2008)918, Ondjaki transforma em personagens de ficção alguns personagens de sua infância, transcritos como sendo parte de uma memória capaz de representar um momento de que fez parte, mas que não é o presente. Esse tempo demonstrado pela narrativa tem como característica principal a utilização da voz infantil como narradora das ações, porém, não destitui o poder da elaboração nesse processo, sendo essa a grande armadilha da arte literária: “a criação de um lugar imaginário que se propõe como real, não o sendo”

919

. Tendo

em vista que o autor utiliza do tempo referente a um passado memorialístico, logo, todo texto é parte de uma alegoria desse passado, desenhado pelas lembranças de uma criança, que em muitos momentos dialoga com as vozes de personagens “maisvelhos” (característica e nome do grupo dados pelo próprio autor), que resgatam passagens, frases, “estórias” e rituais de uma geração que acabaram ofuscados e passa para a voz renovadora dessas crianças, símbolos dessa renovação da massa africana.

918 ONDJAKI. AvóDezanove e o segredo do soviético. São Paulo: Cia. Das Letras, 2010. (A obra teve sua primeira publicação em 2008 e a edição brasileira utilizada para a tessitura é de 2010).

919 BRANDÃO, R. S. Literatura e Psicanálise. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996, p. 34.

O grupo com maior foco na narrativa de Ondjaki é o infantil, fazendo parte dele alguns personagens com maior destaque, caso de Pi (ou 3,14), Charlita e o narrador – pelo tom memorialista, o próprio Ondjaki -, condutores das peripécias do romance. Na década de 1980, após a Independência Angolana, toda a população se vê em transição, buscando explicações para a situação nacional e rearranjando a vida pessoal em meio às marcas deixadas pela guerra civil. Um bairro na capital Luanda está sendo palco da construção de um mausoléu, que abrigará os restos mortais do Camarada Presidente Agostinho Neto, primeiro presidente da Angola independente (1975). Comandada pelos soviéticos, a obra do mausoléu é levada sem pressas, mas sua inauguração é que compõe um “mujimbo” (boato, segundo a origem banta da palavra) sobre a possível destruição do bairro litorâneo da PraiaDoBispo, espaço físico em que se desenrola a trama, para a criação de um novo bairro, com novas características e estrutura, um despovoamento que atormenta os pensamentos de seus moradores. Revoltados, muito mais que os mais-velhos da trama, as crianças veem a necessidade de tomar uma atitude drástica, sendo ela a atração visual da primeira parte do livro. Eis a narração sensorial feita do fato: “A explosão até acordou os pássaros adormecidos nas árvores e os peixes devagarosos do mar – aconteceram cores de um carnaval nunca visto, amarelo misturado com vermelho a fingir que é laranja num verde azulado, brilhos a imitar a força das estrelas deitadas no céu e barulho tipo guerra dos aviões Mig. Era afinal uma explosão bonita de ser demorada nos ruídos das cores lindas que os nossos olhos olharam para nunca mais esquecer” (ONDJAKI, 2010, p. 07)920 As crianças resolvem explodir o mausoléu e, mesmo que essa decisão só seja tomada perto do fim da narrativa, o clímax já é evidenciado no início da obra, dando apenas algumas referências sobre as personagens e o espaço em que o fato ocorre. As personagens fazem parte de classes e grupos sociais diferentes, mas convergem para a representação de um único povo, um grupo que tenta manter ativa a memória e as suas vivências pessoais em determinado espaço. O bairro é conhecido de todos e representa o apego de um povo à sua terra e suas origens, um refúgio aos que mantêm vivas as lembranças “para nunca mais esquecer” de sua identidade. O desenvolvimento do plano da explosão é o foco da ação narrativa, mas vêse que o título brinca com a posição visual desse foco. Para a criança-narradora, a 920 Ibid. ONDJAKI, 2010.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

48 5

referência à AvóDezanove é a caracterização de uma tradição simbolizada pela pessoa mais-velha que mais tem influência sobre o narrador infantil (representante da renovação), sendo responsável por ele e por toda a orientação dada à visão de mundo captada pela criança-narradora; o possível “segredo do soviético” é levado por toda trama em um processo confuso, um “mostra-esconde” de uma brincadeira de criança, pois o que parece importante aos olhos infantis, que seriam a troca de cartas e a relação entre a avó e o soviético Bilhardov, vê-se ao final que, na verdade, o grande “segredo” era o envolvimento do soviético na destruição do mausoléu, fato apresentado somente pela inserção de uma carta ao final da narrativa, a única carta que os leitores têm acesso, enviada pelo soldado à AvóAgnette. Nela, ele explica o motivo do sumiço, seu desacordo em destruir o bairro, que para Bilhardov representava um espaço de afeto e família; além de expor que toda a decisão de explodir o mausoléu e ajudar na ideia das crianças veio dele. O fato da explosão é parte da elaboração do autor e o personagem soviético é uma invenção resgatada de uma história real: o projeto arquitetônico do mausoléu existe e foi concluído, o desejo e a decisão de explodir pode até ter feito parte da história pessoal dos moradores de Luanda, mas o fato nunca se concretizou; quanto ao soldado, AvóDezanove, a personagem real da vida de Ondjaki, criou-o como chantagem emocional, dizendo que pela falta de amor dos netos iria para o “tãolonge” com um soviético, história evidenciada em uma carta (real) que o autor, desprovido do narrador, envia a uma amiga e utiliza dela como epílogo da obra, em que diz: “o soviético Botardov, que existiu por conta de a AvóAgnette o ter inventado [...]”921. Vê-se que parte dos mistérios continuam sendo mistérios da elaboração do angolano, mas que alguns personagens e fatos narrados são mesmo memórias transformadas em literatura. Logo, pode-se dizer que mesmo os textos que se dizem fiéis retratos da realidade, na verdade trabalham e usam da linguagem como forma de elaboração. Uma verdade nunca se faz completa na literatura, pois ela é cheia de excessos, de simbologias. O que se pode abordar acerca do que se expõe é o efeito, a reação a tudo que se apresenta na linguagem e isso só acontece quando o dizer (a linguagem) se adequa à “fantasia” descrita. Em que “o desejo do impossível se torna o possível do 921 Ibid. ONDJAKI, 2010, p. 183.

desejo” 922. E as figuras do desejo se formam no inconsciente, principal elaborador da linguagem, sendo capazes de trabalhar os fantasmas, medos e paixões do leitor, através da linguagem do autor – visão especular da literatura. Todo esse processo é capaz de tornar o discurso, presente na literatura, as vozes de um autor já sem sua identidade original, que passa então a ser narrador, desprovido de sua realidade e parte integrante de uma ficção (mesmo que baseada em relatos), os sujeitos da enunciação e o enunciado. Essas vozes nos remetem ao que Alfredo Bosi chama de polifonia, em Céu e Inferno923. Dentre as vozes apresentadas por Ondjaki em AvóDezanove, o que mais chama atenção é o revisitar das tradições e histórias ouvidas dos “mais-velhos”, apresentadas pelo autor como texto autobiográfico, com a utilização da primeira pessoa. A maneira com que ele se aproxima aos olhos do leitor pela voz terna e simples de uma criança, garante a linguagem poética e cheia de símbolos de uma literatura que tem que abordar as mazelas de um povo ferido pelas dores da perda, do exílio e da destruição da guerra civil. Ele transforma a fantasia do desejo de reconstrução em algo real, mimetiza através da linguagem um ideal acerca do que se pensa ou se quer resgatar, sendo que a imagem literária exposta pelas vozes infantis é uma tentativa de transferir a imagem psíquica do ideal moldado por aqueles que têm a vivência de um passado de esplendor cultural (os “mais-velhos”), em uma aliança subjetiva com as ideias de crianças em busca de explicações, culminando em uma renovação das forças populares, oriunda das ações empenhadas para rebater qualquer possibilidade de repetição da vida recente dos “mais-velhos”, no caso a guerra civil. Em um trecho da obra de Ondjaki, a personagem chamada de 3,14 (Pi, amigo do protagonista) diz ao narrador (que não é nomeado em nenhum momento): “ – Mas ainda não és mais-velho, não podes ter muita coisa para lembrar” 924, ao passo que o narrador em discurso direto responde que ri de coisas antigas, pois já contaram a ele “muitas coisas de antigamente”; nesse trecho já se vê evidências de que todo o trabalho de elaboração e sublimação da vida retratada se dá desde a infância, em que

922 Ibid. BRANDÃO, 1996, p. 35.

923 BOSI, A. Céu, inferno – ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2003. 924 Ibid. ONDJAKI, 2010, p. 131.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

48 7

as “estórias” contadas são a matéria-prima para a formação do ser e de todo processo literário da obra “ficcionada” pela lembrança. A representação feita pelo adulto, que fantasia e transporta o discurso para a voz de sua criança interna, simboliza essa renovação identitária, em um resgate que tem fundamentos na tradição, mas que não deixa de lado o mundo moderno a ser representado925. A velhice, como ciclo natural, é utilizada pelos jovens da modernidade como parâmetro de comparação, em que os atos negativos são evidenciados como exemplo de ações a não fazer, sempre afastando a ideia de um final de vida não desejado, uma velhice não quista como natural. Porém, na obra de Ondjaki, toda velhice é apresentada como fonte de inspiração, já que a faixa etária considerada como “mais-velha” é a responsável por manter a vida do país em ordem e de dar vazão às necessidades do povo, são heróis que encontram sua representação, não como exemplos negativos, mas como formadores de um enredo de vida que reestabelece uma identidade cultural a um povo esquecido, através de novos heróis em formação, as crianças 926. Ao adotar o ponto de vista infantil, ele se mostra desvinculado de qualquer preconceito, estereótipo ou marca ideológica, mas associá-lo à velhice e suas perspectivas

de

mundo

firma

a

necessidade

encontrada

pelas

crianças,

consequentemente pelo autor, de manter as tradições e mostrar as origens, como forma de evidenciar a fuga do povo de uma situação traumática, em constante reaquisição de uma identidade perdida, que ruiu entre as marcas deixadas pelas colônias e as guerras que se findaram. Um “exílio às avessas”, dentro do próprio território, mesmo que essa não seja a fonte inicial da obra e do pensamento de Ondjaki, que não utiliza da guerra como pano de fundo, mas a coloca como causa de muitas histórias abordadas em sua literatura; uma gaiola, tal qual os pássaros aprisionados no mausoléu, de onde se pode observar o mundo, mas não se vê condições de agir, a menos que alguém do lado de fora daquilo faça algo pelo prisioneiro. 925 Ibid. BRANDÃO, 1996.

926 TOPA, F. J. J. Ondjaki, uma escrita dentro dos momentos: roteiro de leitura. In: Nau Literária: crítica e teoria de literaturas. Vol. 07 N. 02. Porto Alegre: PPG-LET-UFRGS, jul/dez 2011. Disponível na internet: < http://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/20596/14070> ISSN 1981-4526. Acesso em 21 de ago. de 2015.

Aqui, esse processo de “colonização” de seu estado próprio, tenta resgatar culturalmente a vida e suas origens, através da disseminação de um registro de fatos e histórias centradas em seu passado e em gerações anteriores, que batalharam para manter sua cultura, sem deixar de usufruir das abordagens, mesmo que incisivas, de linguagens e tradições de outros povos (caso abordado pelo livro, quando coloca cubanos e soviéticos como estrangeiros que agem pela dicotomia do “bem e do mal” diante dos angolanos); além da mistura de termos e expressões africanas, quase sempre atadas à influência das línguas colonizadoras927. Influência, na maior parte das vezes, introduzida pelas falas de alguns “mais-velhos” da trama, como as cartas e as falas dos soviéticos; as inserções do médico Rafael TruzTruz, que habilita sua comunicação com o grupo angolano, mas não perde a sua raiz linguística do espanhol; expressões e representações de uma cultura irmã, a do Brasil, que aparece citada pela referência direta de novelas; além do cinema, que é parte viva da criação dos infantes, principalmente pelas referências visuais e de ações relacionadas à revolta, sempre associada ao western americano, alguns pontos que devem ser abordados com mais profundidade quanto à relação de identidade cultural. Deve-se tratar essas “vozes velhas” do texto literário como o meio de identificar as fontes reais ou imaginárias dessas histórias, como uma das formas de concretizar o plano do autor de expor a vida de seus personagens e fomentar a ideia de realidade, criando ao leitor a sensação mais vívida possível sobre o que se passava na infância retratada. Trata-se, aqui, de uma alegoria que carrega a possibilidade de vivenciar todas as paixões, ideais e fúrias do texto, que se configura como um item memorialista e utiliza de “estórias ficcionadas” para dar um tom de mistério a ser desvendado, em uma fábula da realidade, com as simbologias da formação de um povo em meio ao caos, tornando a obra capaz de representar não somente um homem em suas memórias pessoais, mas de criar um vínculo que possibilita a representação de toda uma nação. Na parte final do livro, dedicada à descrição da explosão do mausoléu e de todas as cores produzidas pelo fogo, vemos que o autor deixa claro não ter visto boa parte do que descreve, mas que muito lhe foi contado e a ele se dá o direito de utilizar dessas memórias dos “mais-velhos” como fonte de sua narrativa: 927 SOARES, F. A descolonização da palavra. Revista Crioula, São Paulo, n. 6, novembro de 2009.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

48 9

“Mas nós não vimos, nunca vimos mesmo, o que continuou a acontecer ali perto do lago, cada um de nós sabe contar cada momento daquela noite, cada conversa, porque foram muitos anos a juntar versões e a descobrir coisas que só o tempo traz e a magia afinal provoca encontro entre todas as pessoas que tinham inventado aquela explosão com cores angolanas na obra soviética” (ONDJAKI, 2010, p. 171) Como diz TOPA928, o aspecto narrativo relativo à velhice ainda não se viu celebrado pela crítica, pois, apesar de a visão infantil ser evidenciada pelos narradores, a sua associação com a velhice, principalmente pela figura da avó (personagem recorrente em romances e contos do autor), se coloca como um mistério a ser descoberto, decifrado, expandido e anunciado poeticamente pelo autor, que não se preocupa em delimitar sua obra, mas em torná-la universal através da representação de vínculos familiares que são tão comuns e padronizados; além da forma com que isso se mostra atrelado à realidade moderna, que busca por uma identidade cultural, mas não encontra meios de construí-la, a não ser pela utilização de uma história revisitada. Na carta já citada, enviada por Ondjaki à amiga Ana Paula, ele descreve qual a sua posição diante da realidade e da ficção: “como podes ler, convoco memórias distorcidas para inventar estórias, exerço o direito de atribuir falas aos sonhos – mesmo os que não tenham sido bem assim”

929

, nesse extratexto, vê-se que não há

uma escolha em só retratar a realidade ou só a imaginação (o sonho), há um entrelace que catalisa o desejo do autor e o traz como verdade a ser aceita pelo leitor. Estudar esses processos de elaboração das memórias e suas características autobiográficas propõe conhecer mais sobre a forma com que seus próprios personagens se apropriam de elementos culturais da tradição angolana, para combinar suas histórias e dar ao foco narrativo uma verossimilhança memorialista. Apesar da insistência de Ondjaki em quebrar o pacto autobiográfico proposto por Lejeune930, em fazer crer ao leitor, que tudo o que é narrado é verdade e que o narrador e o autor seriam a mesma pessoa, sua obra tem as imagens de uma memória 928 Ibid. TOPA, 2011. 929 Ibid. ONDJAKI, 2010, p. 184.

930 LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. De Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

infantil, moldada pelas palavras de um adulto, no caso ele com seus personagens e seus personagens com suas alteridades adultas, tende-se a encontrar aquilo que articula a representação do resgate de uma identidade cultural dentro da criação do autor, a fim de ver até que ponto os “mais-velhos” são responsáveis pela elaboração do narrador sobre suas memórias e o quanto suas vozes evidenciam a ruptura da realidade e da ficção, sendo possível identificar a alteridade da velhice como fonte dessa manipulação, em busca da sedução do leitor por uma ideologia capaz de dar suporte à reconstrução da história de um povo. Como diz Rita Chaves em seu livro A Formação do Romance Angolano: Entre Intenções e Gestos 931, “como em tantos outros lugares, as ‘estórias’ contadas pelos mais velhos [...] cumpriam o papel de transmitir a sabedoria e humanizar o reino das relações que os outros elementos completavam”. Todo o transcorrer da trama é levado muito mais como relato subsequente ao que se ouviu dos “mais-velhos”, tal como muitas “estórias” são citadas pelo seu narrador. Um jogo de verdades ouvidas e recriadas, que provoca a curiosidade e a indagação sobre os segredos do autor na representação dessa identidade, que deixa de ser individual e passa a ser coletiva, pois o leitor busca desvendar se a narrativa criada por Ondjaki se dá através da imaginação de uma criança, ou se a obra começa, a partir daí, a tomar os rumos do amadurecimento das crianças, que se põem a contar memórias elaboradas pela visão adulta 932. A sedução do leitor é caracterizada pelo poder de aproximação de quem lê do objeto lido, uma conquista, um afeto-leitor, capaz de fazer o texto dialogar com a sua imaginação, sendo que, de forma gradual, os grandes responsáveis por essa aproximação afetiva, nos textos de Ondjaki, são os “mais-velhos”, que conduzem o discurso poético e familiar da obra; um afeto que nos torna parte de uma massa que se identifica nessa relação com o outro da narrativa, evidenciando a criação de uma identidade cultural da qual poderíamos fazer parte, em um tom universalizante da obra. Como o escritor insiste em citar, suas “estórias ficcionadas” são incubações de um contexto, que provocam a dúvida no leitor sobre até que ponto os fatos são mesmo comandados pela realidade ou o quanto a realidade é mero jogo da ficção, logo, 931 CHAVES, R. A Formação do Romance Angolano: Entre Intenções e Gestos. Coleção Via Atlântica, n. 1, São Paulo, 1999.

932 SARLO, B. Tempo Passado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

49 1

desvendar os “segredos” da narrativa se torna parte da própria criação da ideia de realidade ao leitor, capaz de representar a força de uma massa em se tornar dona de sua identidade.

As Conferências do Cassino Lisbonense n’A Berlinda: Rafael Bordalo Pinheiro e os inícios da Geração de 70 portuguesa

Rosane Gazolla Alves FEITOSA Faculdade de Ciências e Letras-UNESP-Assis

Resumo: No reinado constitucionalista do rei de Portugal, D.Luís I (1838-1889), um grupo de jovens insatisfeitos e europeístas, vibrou o primeiro golpe num certo Portugal ao organizar as Conferências do Cassino. Este grupo de jovens de vinte a trinta anos, mais conhecido como a “geração de 70”, não forma um bloco ideológico, estética ou mesmo etariamente coeso É constituído por Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Teófilo Braga, Ramalho Ortigão, Manuel de Arriaga, Rafael Bordalo Pinheiro, Guerra Junqueiro e outros. Em julho/1871, Rafael B. Pinheiro publicou em A Berlinda (7ª página), uma “reportagem” caricatural constituída de trinta quadros, em que aborda a realidade sócio-política da época, constituindo-se em um texto-resumo dos inícios da Geração de 70/RealismoNaturalismo português. Palavras-chave: Rafael Bordalo Pinheiro; Conferências do Cassino; Inícios da Geração de 70; Realismo-Naturalismo português Apresentação Tomando-se o termo "geração literária" num sentido restrito, podemos entendê-la, concordando com João Medina933 como um momento na história da cultura de um povo, em que a criação de obras literárias relaciona-se diretamente com certas idéias filosóficas, políticas e propriamente literárias, predominantes num 933 Eça de Queiroz e a geração de 70. Lisboa: Moraes, 1980. p. 9-18

determinado grupo etário. Nesta altura do século XX, no entanto, o conceito da expressão "geração de 70" ainda está por ser feito. Sua "certidão de nascimento" foinos passada por um evento histórico preciso _ as Conferências Democráticas, no Cassino Lisbonense, em 1871, em Lisboa. Um grupo de jovens de vinte a trinta anos, mais conhecido como a "geração de 70" ou "setentistas", não forma um bloco ideológico, estética ou mesmo etariamente coeso. Tem entre seus componentes mais célebres: face ao pensamento, a figura proeminente de Antero de Quental; face à sociedade portuguesa, Eça de Queiroz; e face à historiografia, Oliveira Martins. O grupo é formado ainda por Teófilo Braga, quem mais influenciou o curso dos fatos políticos, Ramalho Ortigão, Manuel de Arriaga, Rafael Bordalo Pinheiro, Guerra Junqueiro e outros. A Geração de 70 é considerada, freqüentemente, como uma espécie de símbolo de certa atitude revolucionária, estritamente ideológica e dependente dos acontecimentos históricos imediatos, chegando a ser atacada por seu idealismo ou reformismo pequeno-burguês. Essa geração deve ser vista, sobretudo, como expressão duma importante revolução, propriamente cultural e literária, cujos efeitos chegam ainda pujantes até nossos dias. Seus organizadores eram idealistas, seu objetivo era transformar a realidade portuguesa, partindo da análise das "causas da decadência" e procurando remediar os erros, atrasos e defeitos de Portugal. A "primavera" da geração de 70 configurou-se na Questão Coimbrã, embutida numa explosão geral de descontentamento de jovens estudantes da Universidade de Coimbra, perante as instituições vigentes. Em 16 de Maio de 1871, o grupo organizador das Conferências anunciou ao país, através do jornal de Lisboa, Revolução de Setembro, um ciclo de dez palestras, das quais se realizaram apenas cinco. Seriam uma espécie de balanço da vida política, cultural e social do país e divulgação de novas ideias sócio-políticas. Iriam ser proferidas às segundas-feiras, no Cassino Lisbonense, antiga casa de espetáculos de can-can, no Largo da Abegoaria, hoje Largo Rafael Bordalo Pinheiro, no bairro do Chiado, centro de Lisboa No programa das Conferências, divulgada em 16 maio, encontramos um dos objetivos: "agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência Moderna; estudar as condições de transformação política, econômica e religiosa da

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

49 3

sociedade portuguesa”934. Foram realizadas cinco conferências: 1. O Espírito das Conferências- Antero de Quental – maio 22 2. Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos séculos três séculos- Antero de Quental – maio 27 3. A Literatura Portuguesa Contemporânea-Augusto Soromenho- junho 5 4. A Literatura Nova ou o Realismo como Nova Expressão de Arte- Eça de Queirós-junho 12 5. A Questão do Ensino, por Adolfo Coelho- junho 19 A sexta Conferência, que deveria ter sido realizada em 26 de junho pelo judeu, Salomão Sáragga _ “Os historiadores críticos de Jesus”, foi proibida pelo governo, sob a alegação de que todas elas “expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacavam a religião e as instituições políticas do Estado”.

2. A história do início da “Geração de 70” com o auxílio da "banda" desenhada Em julho de 1871, um mês depois do encerramento das Conferências (realizadas de 22 de Maio a 19 de Junho), Rafael Bordalo Pinheiro publicou a 7ª página de A Berlinda: reproduções d’um álbum humorístico ao correr do lápis_ As Conferências Democráticas _ reportagem gráfica, muito curiosa, com trinta quadros, de grande objetividade crítica e de perfeita veracidade histórica em que resumiu todas as cinco conferências ocorridas e a realidade portuguesa da época. Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) foi notável caricaturista, ilustrador e ceramista, criador da figura do Zé Povinho. Seus bonecos de barro, inspirados na tradição, costumes, flora e fauna portugueses, feitos na cerâmica da família na cidade de Caldas da Rainha, tornaram-se populares e famosos. Publicou suas caricaturas nas revistas Lanterna Mágica, Álbum das Glórias, António Maria, Pontos nos is, Paródia. Deixou-nos, através de seus desenhos críticos, um panorama muito completo da sociedade e da política do seu tempo A Berlinda : reproduções d'um album humorístico ao correr do lápis, primeiro jornal de caricatura crítica, constitui-se de 7 grandes folhas ou páginas, litografadas de 934 SALGADO JUNIOR, António. História das conferências do Casino. Lisboa: Tipografia Militar, 1930.

um só lado e sub-tituladas "reproduções d'um album humorístico ao correr do lápis", surgidas a 5 de Julho de 1870. Houve duas séries ou momentos: na primeira série foram publicadas três folhas com os seguintes títulos: 1ª) “Os fossadores de patriotismo” , esgotou-se rapidamente obrigando a uma nova tiragem e a uma nova folha sob o título – 2º) Ainda os fossadores de patriotismo. O número três “Do Mappa da Europa “ _ única folha colorida com o subtítulo de Carta Burlesca da Europa, fizeram-se três edições e foi traduzida em francês (Carte Satyrique de l'Europe pour 1870), prova de que o trabalho de Rafael era procurado no estrangeiro. (http://www.citi.pt/cultura/artes_plasticas/caricatura/bordalo_pinheiro/berlinda.html) Esta primeira série, após a 3ª folha, foi interrompida pelo Binóculo, a 29 de Outubro de 1870, primeiro semanário de caricaturas consagrado a espetáculos e literatura, que se vendia nos teatros. Só se publicaram 4 números (outubro a novembro/1870). A 7 de Janeiro de 1871, Rafael Bordalo Pinheiro retoma de novo A Berlinda, da qual publica mais 4 números: nº4 "Retalhos da companhia dos caminhos de ferro do Leste apanhados e cerzidos por uma victima para espelho dos frequentadores"; nº 5 _ "A hysopada"; nº 6 _ "A chiadinha"; 7º _ "Conferências democráticas" (ver reprodução a seguir).

As imagens de A Berlinda foram retiradas de COTRIM, João Paulo. Rafael Bordalo Pinheiro Fotobiografia. Lisboa: Assírio & Alvim; Museu Rafael Bordalo Pinheiro; El Corte Inglês, 2005. p. 47.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

Os quadrinhos a seguir tem um caráter explicativo e são uma adaptação da autora deste artigo. Foi feita uma reprodução em tamanho maior, os quadros numerados para dar sequência e as legendas foram digitadas.

49 5

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

49 7

3. As Conferências do Cassino em quadrinhos Como subsídio para o comentário dos quadros de Rafael Bordalo Pinheiro, recorremos ao artigo de João Medina, "Rafael Pinheiro, repórter das Conferências do Casino"935. Na seqüência, os quadros apresentam o seguinte: 1. Um senhor, provavelmente o apresentador das conferências, inicia o evento dizendo: "Senhores". Talvez seja o próprio autor, Rafael Bordalo Pinheiro, ainda jovem magro, pois seu retrato mais conhecido apresenta-o gordo, coloca-se como narrador e personagem desta narrativa. O apresentador aponta para uma figura, um retrato disforme e diz: "esta é a purulenta e burguesa fisionomia do pais". 3. "esta a sua católica e monárquica situação". Um trono-altar quase caindo, sustentado por um homem de coroa, com muletas e trajes pobres, simbolizando a monarquia em conluio com a Igreja. A monarquia, ao longo de todos esses quadros, é representada pelo Marquês de Ávila e Bolama, ministro de Reino e presidente do Conselho de Ministros. O Marquês é reconhecido pelo cachecol até o nariz e pelo "pince-nez", em todos os desenhos e, também, ao longo de todas as obras de Rafael B. 935 Eça de Queiroz e a geração de 70. Lisboa: Moraes, 1980. p. 155-162.

Pinheiro. 4. "Finanças". Um homem, provavelmente o ministro responsável pelas Finanças, pedindo esmola para o "povo"- quadro 5°. - dizendo "cera para o santo". Segura um porrete na mão, escondido atrás das costas. Junto dele está um guarda para assegurar que a "esmola", ou seja, o imposto, seja efetivamente recebido pelo governo. 5. "Povo. Percebe-se trajes humildes. Há crianças pequenas, uma mulher segurando um menino no colo, um velho, cantadores com viola: um conjunto de pessoas pobres _ eis o povo de Portugal! 6. "A nobreza". O nobre está com um pé descalço, portando uma viola, ao lado de um cavalo ilusório, imaginário e rodeado de cachorros. Acima lê-se - "Isto é uma sombra". Deduz-se que seja uma nobreza falida, sem dinheiro para ter calçado, cavalo e para dar de comer aos animais. Apresentam ainda um nobre fadista, um marialva, a viver cantando sem aparente preocupação. 7. "Clero". Um prelado gordo, de cara amarrada e ventre saliente, carregando uma cesta cheia de alimentos, de certa idade, provavelmente, pois apoia-se num bastão. Talvez represente o bispo de Viseu que se destacou na política e tinha ideias absolutistas. 8. "Moral". Representação da "moral" em cenas que, na época, não seriam totalmente públicas, já que eram consideradas cenas eróticas. Percebe-se um casal se beijando e uma mulher dançando com as pernas à mostra, observados por crianças e alguns adultos. Estes, provavelmente burgueses, identificados pela indumentária, porque usam cartola, bengala, "pince-nez" e casaca _ vestuário que os distinguia dos demais. 9. "Ensino". Representado por uma figura escura formada por um emaranhado de riscos, dando a entender que o ensino está um caos. 10. "O governo". Quatro figuras que dançam e cantam: o ministro Ávila e Bolama; um baixinho saltitando, provavelmente um político; um policial e uma figura do clero tocando viola. Todos se divertindo: o governo mais o poder do governo = monarquia + clero+ exército. 11. É uma conclusão tirada até aqui - "tudo está lazaro asino corruptíssimo" - em latim macarrônico, significa que a corrupção grassa no país inteiro_ “tudo está muito corrupto” Vê-se uma barrica representando Portugal prestes a rachar, a estourar. Todas as pessoas em volta estão com a mão tapando o nariz, provavelmente por causa do mau cheiro exalado pelo conteúdo da barrica, a qual representa Portugal, que está podre, decadente.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

49 9

12. “Nós". Dentro de um barrete frígio (barrete vermelho, símbolo da República, muito usado na França da Primeira República (1792-1864) estão os conferencistas do Casino. Da esquerda para a direita: Salomão Sáragga, judeu cuja conferência foi impedida pelo governo; Augusto Soromenho, arabista, professor do Curso Superior de Letras e o menos ligado à geração de 70; Jaime Batalha Reis, que não chegou a proferir sua conferência. Em sua casa, no célebre Cenáculo, reuniam-se alguns intelectuais para discutirem novas idéias literárias, políticas e filosóficas, oriundas principalmente da França, da Alemanha e da Inglaterra. No centro, Antero de Quental, o mestre e ideólogo da geração de 70 e o mentor das Conferências; Adolfo Coelho, que falou sobre o ensino em Portugal e Eça de Queirós. A esse grupo também pertencem, Teófilo Braga, Ramalho Ortigão, Manuel de Arriaga, Germano Meirelles, Oliveira Martins, Guilherme de Azevedo, Augusto Fuschini, João Machado de Faria e Maia, Lobo de Moura, José Fontana, Rafael Bordalo Pinheiro e outros. 13. "Tivemos uma visão redentora e de endereita". Vê-se o grupo de conferencistas, ou da Geração de 70, dormindo em berços, simbolizando a ingenuidade infantil, a pureza de ideais. Em cima de cada cabeça uma pequena chama religiosa. Acima deles uma nuvem onírica, onde paira uma figura envolta por vários olhos: é o famoso médico catalão oftalmologista da época, Dr. Aniceto Mascaró y Coz, residente em Portugal. Essa visão redentora e de endereita mostra o que a geração de 70 pretendia: abrir os olhos do país. 14. "Se nos permitir o engenho e arte". De um lado o governo: o ministro do reino, Ávila e Bolama, convertido às artes, com um lira, paleta e pincéis; do outro lado, uma multidão assistindo a um enforcamento. No alto da forca, um padre. Como o quadro 14 está entre parênteses, supõe-se que a idéia seja esta: se o governo se converter às artes, isto é, não perseguir a geração de 70, os conferencistas do Cassino ("nós" quadro 12) conseguirão fazer uma revolução cultural no país, a menos que sejam enforcados a mando do Governo. 15. "Seremos os Mascarós da civilização". No alto brilha o rosto de Mascaró, aquele que vai dar a visão aos cegos, isto é, ao país. Um grupo de homens corre para ele, enquanto o grupo dos conferencistas do Cassino está dependurado naquela figura grotesca do quadro 2, que representa o país, tentando refazer a sua cabeça, tal qual o médico quando realiza cirurgias. Eles vão fazer o país enxergar a civilização. Portugal está no escuro e o povo não consegue ver nada.

16. "A ordem ouviu e teve caimbras". A ordem, isto é, o Governo na figura do ministro do reino, marquês de Ávila e Bolama, começa a ficar preocupado com o manifesto das Conferências. 17. Resumo da 2ª conferência, de Antero de Quental, em 22 de maio de 1871: "Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos". Diz a legenda: "Provado está por fás e por nefás (como se hoje disséssemos _ “por a mais b") que os padres, os reis e as colônias são as cataratas, e o estrabismo do Portugal velho". Vêse a figura de Antero de Quental apontar para a mesa e indicar as causas da decadência dos povos peninsulares: a) os reis, representando o despotismo na política; b) o padre, suspenso pela mão esquerda mostra o catolicismo na religião e na cultura; c) as colônias, representando o espírito guerreiro que sobrepuja o espírito industrial e o dinheiro dos impostos levado para fora do país. 18. "A ordem tremulenta concebeu uma rolha". Percebem-se duas figuras: à esquerda, a reação, Martens Ferrão, Procurador Geral da Coroa; à direita, o pugilato, o rabino de Lisboa. 19. "é suposto que a literatura seja a ramela (não personalizemos) do mesmo sonolento país". 3a Conferência, em 6 de junho, “A Literatura Portuguesa”, de Augusto Somenho. O desenho mostra o conferencista cortando os barretes frígios. Sua conferência atacou violentamente a literatura portuguesa. 20. "A ordem sentiu avolumar-lhe a cabeça". O Marquês de Ávila e Bolama fica preocupado com o desenrolar dos assuntos das conferências. 21. "urge limpá-la por hipótese com o véu do realismo d'O Mistério da Estrada de Sintra e com As Farpas". (duas obras que Eça tinha publicado até então). 4ª Conferência, em 12 de junho, de Eça de Queirós: "A Literatura Nova ou o Realismo como Nova Expressão de Arte". Vê-se Eça de Queiroz, magro, bem curvado, o bolso cheio de farpas (setas), socando, num pilão , onde se lê Idealismo, a literatura romântica (os românticos estão sendo esmagados com o bastão do Realismo). Ao lado do pilão, encontram-se um grupo de pessoas, com destaque para uma figura usando cartola e fraque, representativa da sociedade burguesa constitucionalista, na focalização de Rafael Bordalo Pinheiro, observando a ação de Eça de Queirós, ou melhor, a sua conferência (4a.) no Cassino. 22."A rolha agitou-se na cabeça da Ordem". A figura da Ordem, o marquês de Ávila e Bolama, olha carrancudo para o quadro seguinte. O governo está cada vez mais preocupado com o desenrolar dos acontecimentos, isto é, das Conferências do

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

50 1

Cassino. 23. "É suposto também que o machado do Sr. Bispo de Viseu seja o instrumento cirúrgico próprio para operar o país". 5ª Conferência, em 19 de junho, por Adolfo Coelho: o Ensino. Adolfo Coelho criticou violentamente o ensino português. 24. "Nota do Editor. A Ordem teve ânsias e desejos". O desenho mostra a Ordem, de joelhos, ao lado de três comendas: na primeira lê-se Salvador; a segunda é um camelo; a terceira um elefante. No chão, a seu lado, várias listas que, no século XIX, muitas vezes tinham o significado dos votos obtidos nas eleições governistas. Percebe-se a preocupação eleitoreira do ministro com as próximas eleições para o Parlamento (9 de julho) e seu interesse em encerrar as conferências como concessão ao espírito conservador de seu eleitorado. Apesar de tudo, perdeu as eleições. 25. 6ª Conferência, marcada para 26 de junho, mas não realizada, de Salomão Sáragga: Os Historiadores Críticos de Jesus. No mesmo dia em que Sáragga iria proferi-la, o governo baixou uma portaria proibindo sua realização. O desenho mostra Salomão Sáragga arrastando-se em direção à cadeira de conferencista sob o peso de um grande sinal de exclamação e outro de interrogação. Tal assunto levanta tanta celeuma que ele avança sob o peso dessa paixão pública dizendo: "suposto ainda que os historiadores críticos de Je... ". Não pronuncia a última sílaba, porque o governo proibiu a conferência quase no momento da sua realização. Lê-se sob a figura: "Epílogo pelo Editor, já não pode dizer". 26. "ZUUUS - porque a Ordem dera a luz". As forças reacionárias unidas, isto é, o governo na figura de um bispo e de um rabino, conseguem arrancar da boca da Ordem um corpo nu, onde se lê portaria, a que proibiu as conferências. Todos estão sobre um tapete que representa a Carta Constitucional. Isto significa que tal portaria está sob o abrigo da lei para impedir as Conferências, consideradas ofensivas à moral e à religião do país, conforme afirmou em seu parecer, o Conselheiro Martens Ferrão. 27. ''porque no seu estado de debilidade incomodava o falatório...". Neste desenho vê-se o ato simbólico: uma figura vestida de paxá, que é o ministro Ávila e Bolama, fechando a porta do Cassino. Seu manto é segurado por um asno, um padre e um rabino. 28. "Abafou-se". Vê-se uma imensa panela prestes a ser tampada (uma mão segura a tampa) e, dentro dela, uma porção de pessoas: os Conferencistas do Cassino. 29. "Amordaçou". Todos os conferencistas estão ao redor de uma mesa, e todos eles

com uma rolha na boca. Provavelmente, estão redigindo o manifesto de protesto contra a portaria do Marquês de Ávila e Bolama, manifesto que foi assinado por eles e mais 49 pessoas, levado ainda no dia 26 de junho, à noite, a quatro jornais e, depois, publicado. 30. "Viva a liberdade!!!". Um conjunto de pessoas demonstrando alegria. No centro, o governo, marquês de Ávila, com um porrete na mão direita e o "pince-nez" na mão esquerda. Está rodeado por padres, burgueses e até um asno que relincha. Os quadros terminam com a assinatura de Rafael Bordalo Pinheiro e com a data, julho de 1871. O século XIX resulta como síntese de uma profunda fermentação dos séculos anteriores em que estão contidos os elementos contraditórios que, por sua vez, projetarão, até nossos dias, o redimensionamento dos problemas encontrados. Acompanhando essa linha de reflexão, Alberto Ferreira, estudioso português, salienta que "a noção de uma transformação operada em 1870 é tão insistente que o espírito público se habituou a considerar o nascimento do Portugal moderno, ou da modernidade da cultura atual portuguesa, no dia em que uns jovens revolucionários realizaram as Conferências do Casino”936 Notas explicativas referente a alguns nomes referidos nos quadrinhos: Aniceto Mascaró y Coz (Lladó-Gerona/Espanha-1842/ Lisboa-1906). Famoso médico oftalmologista, formado em Barcelona e especialista em cirurgia oftálmica. Clinicou em Sevilha, Valência, Canárias, Argel. Fixou-se em Lisboa, onde publicou uma importante revista para cegos. Inventou diversos instrumentos oftálmicos. Elaborou um sistema de leitura escrita para cegos que consiste em procurar definir a letra ou fonema por meio de pontos pintados. Esse sistema aplicava-se também à notação musical inventada por Braille. Bispo de Viseu - Antônio Alves Martins (1808-1882), filho de lavradores, caráter simples, coerente, impetuoso. Seguiu a carreira ec1esiástica professando na Ordem Terceira de S. Francisco. Passou a mocidade na agitação das lutas civis. Suas preferências políticas foram sempre de sentido liberal e democrático. Homem de cultura e de ação. Doutor em Teologia, professor, jornalista, deputado, ministro, par do Reino. Tomou-se Bispo de Viseu em 1862 e figura singular dentro da hierarquia católica. A modéstia, a caridade profunda, a franqueza agressiva fizeram-no popular. Era-lhe típico irritar os acomodatícios e os medrosos. Em política, situou-se abertamente à esquerda das correntes partidárias em que se dividia o País. Inimigo do Cabralismo, ligado depois aos Históricos, chefiou os Reformistas após a fusão de Reformistas e Históricos da qual se originou o Partido Progressista (1876) e aquietouse politicamente. Ordem - Governo de Portugal: 936 . FERREIRA, Alberto. Estudos de cultura portuguesa (século XIX). Lisboa:

Moraes, 1980. p. 128.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

50 3

Marquês de Ávila e Bolama (Antônio José de Ávila 1806-1881). Primeiro Presidente do Conselho de Ministros, o ministro do reino, Reinado de D. Luís I (1861). Martens Ferrão (João Batista da Silva Ferrão de Carvalho Martens, 18241845). Procurador Geral da Coroa e da Fazenda Gama Barros (Henrique de Gama Barros, 18331925), Secretário geral do governo civil de Lisboa (exercia interinamente essas funções em 1871, na época das Conferências do Cassino). Escreveu: História da Administração Pública em Portugal nos século XII e XV, obra de notável seriedade científica. Aires da Gouveia (Antonio Aires da Gouveia, 18281916), eleito Presidente da Câmara dos Deputados em 1871. Ernst Renan (1823-1892)-acadêmico, incomparável estilista, sábio, filólogo e historiador francês. Exegeta erudito, mas audacioso nas suas hipóteses, apaixonado por um ideal científico e racionalista. Autor de: Origens do Cristianismo, A vida de Jesus, História de Israel, O Futuro da Ciência, Recordações da Infância.

O professor, a greve, a mídia e a opinião pública – reflexões a respeito da greve dos servidores do Paraná

Tatiane Ananias Fernandes Freitas937 Rosa Cruz dos Santos Kruse938 Sirlei Maria Siofre939 Resumo: Nessa reflexão, buscamos compreender o contexto em que se deu a greve dos servidores públicos, que paralisou as aulas nas escolas e universidades estaduais do Paraná, no início do ano letivo de 2015, suas motivações e efeitos; com ênfase à desvalorização da figura do professor, ao papel da mídia e as implicações desta na opinião pública. E, para além disso, buscamos também pensar o ensino e a escola diante da lógica do capital que se lhe impõe. Nessa leitura, a greve não teria conseguido mobilizar adequadamente as camadas sociais a seu favor, pois não foi capaz de cumprir sua necessidade primeira, a saber, convencer a sociedade da essencialidade de que a educação seja pública. Palavras-chave: Educação pública, greve, lógica de mercado, desqualificação do professor.

Apresentação As afirmações acerca dos professores precisam ser compreendidas historicamente, tomando-se por base as contradições estabelecidas socialmente (p.158)940. Ecoamos essa afirmação de Juliana Bottos (2011), pois na frase a autora sintetiza aquilo que nos propomos a discutir. Este texto visa apresentar algumas considerações a respeito da greve dos servidores públicos do Paraná, no início do ano de 2015. Traçamos uma breve revisão das motivações e desdobramentos do episódio de greve empreendido pela categoria, apresentamos sua entidade sindical, e buscamos compreender a que ponto a desvalorização do professor e o peso da atuação da mídia, puderam contribuir para que a sociedade civil, em significativa proporção, delegasse aos professores a culpa pela greve que interrompeu o curso das aulas. 937 Graduanda em História pela Universidade Estadual de Maringá. 938 Graduanda em História pela Universidade Estadual de Maringá. 939 Professora da rede básica de ensino no Paraná. Licenciada em História.

940 BOTTOS, Juliana. A influência da mídia na desvalorização do professor da escola pública brasileira. Maringá: EDUEM, 2011.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

50 5

Em meio a tal discussão, acabamos por vislumbrar questões um tanto mais complexas, as quais, com certeza, mereceriam mais atenção do ponto de vista das pesquisas científicas. São tratadas aqui, talvez muito superficialmente, posto que perfaçam pontos aqui pensados, mas não essencialmente o objetivo básico desta reflexão. Referimo-nos à questão da escola pública e da necessidade de sua manutenção (entenda-se valorização) – que por si só faz-nos enveredar por caminhos que demandariam muito mais linhas para o texto – mas também o fato de pensarmos o ensino e a escola diante da lógica do capital em sua forma sociometabólica941. Alguma análise da greve dos professores paranaenses deve ser discutida de forma essencial e profunda, pensada na sua totalidade e segundo uma perspectiva que leve em consideração a trajetória histórica da categoria, com vistas a uma abordagem acadêmica, pois do contrário seríamos coniventes e perpetuadores da naturalização de que a responsabilidade é sempre (apenas) do professor, de modo que contribuiríamos para a privatização dessa responsabilidade, conforme vem impondo a sociedade, por meio do mercado (BOTTOS, p. 156, 2011). Por tal mirada, é preciso compreender, em primeiro lugar, o aparato com o qual os professores puderam contar para as articulações dos grevistas, sua defesa e representatividade legal, a saber, a APP- Sindicato. Em segundo lugar, se faz necessário compreender as motivações que levaram à deflagração da greve. Em terceiro lugar, o que está implícito a esses acontecimentos, e, por últimos, os seus efeitos. A APP – Sindicato e seu histórico de greves A primeira organização criada pelos professores do Colégio Estadual e do Instituto de Educação do Paraná, na cidade de Curitiba, em 26 de abril de 1947 – enfrentando a repressão à época da redemocratização e expansão do ensino público – e, após sofrer impedimento novamente pela ditadura militar, assumiu a condição de sindicato em 18 de março de 1989. A partir da compreensão de que funcionários de escolas também são educadores, a ideia de organizar os trabalhadores da Educação no

941MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital. Rumo a uma Teoria da Transição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

Paraná em uma só categoria, em abril de 1998 resultou denominar-se APP – Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná942. A APP hoje representa professores, pedagogos e funcionários da Pré-escola, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Especial, independentemente do regime jurídico nas redes públicas, estadual e municipal, do Paraná; além de, ainda, professores municipais onde não houver sindicatos próprios. A primeira manifestação pública articulada dos professores foi em 1951, quando professoras primárias realizaram uma passeata na cidade de Curitiba para reivindicar a criação de uma lei que regulamentasse a profissão. A primeira greve, conhecida como “Operação Tartaruga”, ocorreu em fevereiro de 1963, reivindicava (e conquistou!) o direito à gratificação de 20% para as professoras primárias sem habilitação e regentes, e 25% para as normalistas. A segunda greve ocorreu em 1968, denominou-se “Congresso do Magistério” para escapar da repressão política, as reivindicações envolviam a existência de um plano de carreira. A greve conseguiu do governo promessa nesse sentido, que não foi cumprida em função do recrudescimento da ditadura no país. Seguiu-se desta outras quatro greves, com maior ou menor grau de repercussão nacional, mas o episódio mais destacado nessa trajetória é de 30 de agosto de 1988. O conhecido episódio da greve de 1988 se deu em função do descumprimento do governo (Álvaro Dias/PSDB) para a promessa de um piso salarial de três salários mínimos, o que empurrou os professores novamente para a greve. A resposta do governo, à manifestação da categoria nas ruas foi repressão violenta pelas tropas da cavalaria da polícia militar. Apesar dos esforços que se seguiram para apagar essa memória da história, os professores não permitiram que tal fato caísse no completo esquecimento, até que no dia 29 de abril de 2015, eles não apenas lembraram-se como reviveram a experiência dantesca, de um momento de acirramento dos ânimos, terror, violência e truculência policiais, no Centro Cívico da capital Curitiba, autorizado pelo atual governador (Beto Richa/PSDB)943.

942 http://appsindicato.org.br/index.php/historico/ 943 http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/certas-palavras/confronto-repete-massacre-de-professoresde-1988/

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

50 7

A greve de 2015 Quando falamos na greve dos professores do Paraná, estamos tratando, na verdade, da paralisação dos trabalhos da maior categoria de servidores do estado, com cerca de 50 mil profissionais, que foi deflagrada, no primeiro momento, devido à manipulação, de maneira arbitrária pelo governo do estado, dos recursos destinados ao fundo previdenciário do funcionalismo público paranaense que vem sendo constituído há 30 anos. É evidente que, da forma como está composta a situação constitucional, sempre será o governo, o responsável pela aposentadoria dos seus funcionários, mas sem a constituição de um fundo previdenciário corre-se o grande risco de um governo qualquer tornar-se inviável pelo aumento das despesas correntes, com a paga do funcionalismo inativo. Tal consideração se dá por duplo viés. De um lado, a Lei de Responsabilidade Fiscal impõe amarras aos gastos correntes com funcionalismo e aí estão inclusos os aposentados. Isto significa dizer que, sob pretexto de cumprimento da LRF, é possível que o governo mantenha os salários do funcionalismo amarrado a uma camisa de força sem horizonte de rompimento. De outro lado, a dilapidação do fundo se dá por motivo vergonhoso, qual seja, a paga do enorme endividamento do governo estadual, tema de veemente negativa na campanha eleitoral. Imerso em crise financeira, o Paraná contava no início do ano com uma dívida milionária (vencida) a credores/fornecedores. Para sanear a economia do estado, o governo tomou medidas fiscais como elevar as taxas do IPVA e aumentar a alíquota do ICMS944. Outras medidas afetaram diretamente o funcionalismo público, como se valer do fundo previdenciário dos servidores, para tentar equilibrar o caixa do governo945. Os professores mobilizaram-se em greve contra essa decisão, mas não conseguiram impedir que a Assembleia votasse favoravelmente ao governo. Em seguida, o governo passou a acenar para a decisão de não conceder o reajuste integral na data-base da categoria de 8,1%, de acordo com o IPCA do mês de maio. A falta de diálogo por parte do governo culminou num significativo período de greve, que quase

944 http://www.cartacapital.com.br/politica/crise-no-parana-8749.html; 945 http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/gestao-richa-contingencia-r-11-bilhoes-e-anunciamedidas-amargas-ejl1t1r9fxbsnkms4wi0vr5fy

alcançou 50 dias e terminou sem que os professores conseguissem o reajuste integral e na data a que tinham direito. O resultado da greve em ambos os casos, portanto, foi praticamente nulo. O governo do estado do Paraná impôs a sua vontade, contra, e apesar, da mobilização dos professores. A greve, nesse sentido, não conseguiu mobilizar adequadamente as camadas sociais em favor dos professores, pois não foi capaz de cumprir sua necessidade primeira, a saber, convencer a sociedade da essencialidade de que a educação seja pública. O espetáculo dantesco ocorrido na capital Curitiba, no dia 29 de abril, data sinistra para a história do Paraná, foi como o Brasil conheceu a postura do governador (Beto Richa/PSDB), frente à articulação legal e democrática que empreendia a categoria em questão 946. Como isso é possível? O que tem por trás da greve e da educação pública Buscamos elucidar o modo como a partir da ditadura civil-militar brasileira, iniciou-se um processo de deterioração dos fundamentos da necessidade da escola pública, que foi implantado progressivamente. A educação no Brasil foi envolvida num processo de atendimento às demandas econômicas e à teoria do capital humano. Os caminhos pensados para a educação e as políticas educacionais pautaram-se pelas orientações da economia de mercado. Esse processo, na verdade, poderia encontrar raízes ainda mais profundas e antigas, nas pedagogias pensadas para a educação da classe operária, ainda nos séculos XVIII e XIX (BOTTOS, 2011), no entanto, para pensarmos a educação no Brasil, o recorte há de ser mais recente. A partir de 1964, intensificou-se, por exemplo, a demanda pelo ensino técnico. Não afirmamos com isso, que em períodos anteriores o ensino técnico não constituísse uma demanda importante no Brasil, pelo contrário. O trabalho técnico, sem dúvida, é útil para cumprir funções de manejo em indústria. E a industrialização tardia no Brasil, deu força à pedagogia tecnicista. Nesse sentido, a educação veio se pautando no desenvolvimento das habilidades necessárias para o trabalho do operariado. De outro lado, as disciplinas de matriz crítica, de desenvolvimento social e formação cidadã, passaram a ser progressivamente menos importantes, pois não atendiam nem atendem a quaisquer interesses do mercado 946 https://www.youtube.com/watch?v=nuI-38RDCLI;

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

50 9

produtivo. Assim, o mercado, auxiliado pelas pedagogias não diretivas do estado, tratou dessa divisão. Aqui, vale enfatizar que não foi a ditadura civil militar em si, mas os processos que adentraram, e aconteceram em meio a ela – não se trata de uma derivação Imediata da ditadura, mas Mediata, ela é circunstanciada e progressiva à medida que se adéqua convenientemente às questões do capital; e o fortalecimento da escola técnica permanece nas décadas subsequentes. Atualmente, vivemos um processo novo: o deslocamento da escola, do ensino público, para as mãos da iniciativa privada, em todos os níveis da formação, desde a pré-escola, até o ensino superior e a pós-graduação. Ou seja, a educação foi se tornando um negócio, foi se mercantilizando947. No Brasil, por exemplo, vemos a criação dos conglomerados educacionais. Redes gigantescas de ensino privado que se alastram por todas as regiões do país. Vê-se, com isso, delinear a oligopolização do ensino, a formação de franquias educacionais. Essa é uma nova indústria. As escolas, e a educação como um todo, dentro do processo sociometabólico do capital ao qual se refere Mészáros (2002), se tornaram um produto vendável e uma indústria nos moldes requeridos pelo mercado capitalista. A educação se torna, ela própria, mercadoria, produto vendável. O problema dos “sem educação” há de ser resolvido, nesta ótica, pelo mercado e não por qualquer política pública. As aprovações em vestibulares, por exemplo, tornam-se o fiel da balança, o instrumento de mensuração da política educacional privada. É o mercado, segundo a ideologia capitalista, quem diz o que é importante saber. Daí resulta que a educação segue determinadas imposições, sendo que alguns cursos, algumas formações, não cabem aos interesses impostos e se tornam irrelevantes. Neste fosso de irrelevância, que se amplia por sua própria condição existencial se encontram os ensinos da história, filosofia, sociologia entre muitos outros exemplos. A dança e o teatro somente terão algum valor se dançar e interpretar puderem ser mercantilizados. Por que é importante destacar que esse processo é progressivo? Justamente porque ele não ocorre rapidamente, a educação vai, na verdade, se alienando dentro das relações de mercado e acaba por se mercantilizar. É uma mercantilização que se processa nos termos da abertura política, lenta gradual e segura. Uma analogia 947 BERTOLIN, Julio César G. Avaliação da qualidade do sistema de educação superior brasileiro em tempos de mercantilização : período 1994-2003. Porto Alegre: Ufrgs, 2007.

bastante simples seria possível se pensássemos num sapo que é jogado na água fervendo. Instintivamente ele pularia, na tentativa de fugir ao cozimento. Se, por outro lado, for jogado na água fria e esta for aquecida devagar, o sapo, também instintivamente, vai se adaptando às novas condições, e quando finalmente seu organismo perceber que deve sair, é tarde demais. Ele já não consegue pular, nem reagir. Diversos autores já abordaram tal exemplo948. A essa altura, é importante destacar que esse é um processo e não um acontecimento. Um degringolar da educação que ocorre fora do sopetão. É a mercantilização quem acaba fazendo distinção entre as ciências; ou melhor, entre a educação que serve pra alguma coisa e a educação que serve para nada. E a história então, se enquadra na categoria de ‘serve para nada’, ou quase nada, dentro da lógica do mercado. Na verdade, por seu cociente de formação crítica, o saber histórico serve para menos que nada; o historiador fica em déficit com o mercado. Com isso, todas as ciências que, assim como a história, trabalham na percepção e estabelecimento da condição crítica de sua posição social, vão compreender por que essa educação deve ser essencialmente pública, e por que o mercado não vai se interessar por ela. Pois dela não advém retorno financeiro. Não há simplificações nas ciências humanas, não há tecnicismo. Não há (também) serventia para o acúmulo de capital. Se a temática histórica não fosse requerida nos cursos pré-vestibulares, logo seria lançada fora, como rebotalho. O ensino privado, por outro lado, se revela voltado ao interesse privado, interesse do mercado e o seu sucesso se deve precisamente a isso. A escola particular capacita o aluno para a competição no mercado de trabalho, não tem compromisso com formação de consciência cidadã. Por essa razão, as ciências de formação de massa crítica é que vão brigar, e devem mesmo brigar, pela educação pública, indo, com isso, na contramão da lógica de mercado. Também por isso é que o discurso não é compreendido. Fora dos ambientes próprios dessas ciências, pouco se compreende o porquê é necessário lutar e defender a escola pública como espaço privilegiado da conformação do espaço público em detrimento do espaço privatizado. Disso então se explica o porquê de certos sacerdócios assumirem, com o decorrer do tempo, a marca da mercantilização, a exemplo da medicina. Esta apareceu como verdadeiro sacerdócio, como a ciência humana em sua maior profundidade, mas 948 https://rubemalvesdois.wordpress.com/2011/07/29/a-sindrome-do-sapo-fervido/

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

51 1

acabou se tornando perfeitamente adequada à mercantilização. Isto porque o conceito difuso de saúde para o qual se direciona a medicina pode, sem grandes complicações, tornar-se produto vendável. Pensemos nos vestibulares e consideremos a concorrência para o ingresso num curso de medicina nas universidades públicas, que chega a contar com 400 participantes concorrendo à mesma vaga. Isso se deve à aceitação desse profissional no mercado, à serventia dele para o capital, mas também ao reconhecimento de tal carreira e sua elevada remuneração. Em contrapartida, as licenciaturas, contam com, às vezes 2 candidatos concorrendo a uma vaga, ou 2 vagas para cada candidato inscrito, por falta da demanda do mercado, que não vê funcionalidade nele. As instituições de ensino privadas compõem e se enquadram num cenário similar à especulação financeira e imobiliária, Tais instituições são melhor ou pior cotadas, de acordo com o tamanho de suas franquias. Quanto custa então uma escola? Quanto custa uma universidade? Essas são perguntas que o próprio mercado tende a responder. Consideramos, nesse sentido, que os interesses de mercado e a sua lógica própria, enxergam nos alunos, não mais que produtos com os quais é possível lucrar949. Mas qual é a relação de tudo isso com a greve no Paraná? Acreditamos que a supervalorização do ensino particular em detrimento do ensino público seja uma das causas maiores da desvalorização também do professor. E para explicar esse ponto de vista, recorremos, mais uma vez, à Bottos (2011). Admitimos dupla vertente de análise. De um lado, a profissão de professor está eivada da mesma irrelevância impressa pela lógica do mercado. Conforme apontamos, professor não gera lucro para o capital, exceto na medida em que puder servir de meio num esquema em que a educação se torna produto. O salário do professor para a gestão pública do Paraná, gera despesa. Se o caso dissesse respeito à educação privada, não há como se pensar em uma paralisação além de 30 dias. Porque nesse caso, a educação não é educação, é, na verdade, a interface mercantil do processo educacional. Então a primeira vertente destaca a condição de exercício da função sacerdotal do professor manchada e violentada pela lógica do mercado. 949 http://www.anhanguera.com/servicos/sala_imprensa/imprensa/uniban.php; http://www.cmconsultoria.com.br/arquivos/ResumoAquisicoesIES2014-08-13.pdf; http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/print.php?id=21736 ; http://naotecalaseducador.blogspot.com.br/2010/03/e-industria-educacional-nao-para-de.html

Como foi possível que uma greve com mais de 40 dias não tenha obtido resultados? A primeira hipótese é que o professor não tem significado dentro do sistema da lógica do mercado. É apenas instrumento. A segunda é que a defesa da educação pública não tem significado para a sociedade, o discurso adotado pelos professores não conseguiu permear a consciência coletiva da sociedade. Os pais dos alunos, enquanto representantes da sociedade civil, em que pese terem apoiado teoricamente a greve dos professores em seu início, compreendendo razoavelmente o que era reivindicado, ao final colocaram-se contra os professores. Restou da greve então, uma insatisfação popular sobre a classe, fomentada pela mídia. Em inícios do mês de maio, iniciou-se um processo de forte criminalização e partidarização dos grevistas, buscando simplificar seus objetivos e deturpar sua imagem, pelos meios de comunicação, como artimanha do governo no momento em que tentava inverter a situação a seu favor. Tomemos por exemplo um dos editoriais da Gazeta do Povo – braço da mídia impressa da Rede Globo no Estado do Paraná – do dia 10 de maio de 2015, que afirma “Ao ter cruzado os braços sem pauta definida, sindicato desafia a Justiça e coloca ambições políticas à frente do bom senso e do direito dos alunos”, buscando também simplificar a luta dos professores em termos de aumento salarial: Não se questiona aqui o direito dos professores a reivindicar melhores salários – embora seja preciso lembrar que eles foram contemplados com 60% de aumento nos últimos quatro anos, contra os 27% dados aos outros servidores estaduais no mesmo período. [...] Mas a forma como essa demanda foi introduzida na pauta de negociações entre governo e sindicato, [...] é um oportunismo que não condiz com a honradez excepcional que a sociedade espera de seus professores950. Não é objetivo desta discussão, atentar-se aos pormenores da análise de um texto jornalístico, mas apenas de apontá-lo como base para o entendimento de que a greve não surtiu efeito positivo sobre a opinião pública. No ideal de mobilização, no intuito de conseguir que a multidão passiva viesse a manifestar-se contra o governo, aí também a greve falhou. Notou-se uma ruptura funcional no seio da sociedade que

950 GAZETA DO POVO. Greve dos professores. Ao ter cruzado os braços sem pauta definida, sindicato desafia a Justiça e coloca ambições políticas à frente do bom senso e do direito dos alunos. Editorial Online, 10/05/2015.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

51 3

decorre fundamentalmente da incompreensão generalizada dos mecanismos de sobrevivência do capitalismo. De um lado os professores como integrantes do universo educacional público acabam sendo valorizados apenas dentro da lógica de mercado e, de outro, o apoio inicial da população se mostrou frágil, convertendo-se rapidamente em oposição. O interesse dos pais e dos alunos se mostrou mais forte do que o tema difuso da educação. Não seria o caso de se indagar se a educação em seu caráter público, sob tal ótica, tem algum significado? Infelizmente, o público, aquele sujeito para quem a educação deve ter algum significado, caminha por estradas que não lhe pertencem. No fundo, os muitos pais que se lamentam não terem tido recursos para transferir seus filhos da escola pública para a escola privada é o que restou na sociedade pós-greve. Conclui-se disso que os opositores da greve conseguiram transmitir com grande sucesso a ideia de que a Educação pública efetivamente não funciona. E, nesse sentido, a greve teve efeito deletério, negativo, no tecido social. Quando afirmamos haver incompreensão generalizada dos mecanismos capitalistas, é no sentido de que foi possível perceber que aqueles que bancam a educação pública, via pagamento de impostos, não conseguiram perceber que a defesa da escola pública corresponde aos seus mais profundos e legítimos anseios. A escola publica é a única que consegue restituir parte da justiça social perdida. Só que a greve não conseguiu refletir isso, não teve sucesso em convencer a sociedade daquilo que, por si mesmo, é evidente. Na nossa leitura, portanto, a greve não conseguiu se mostrar como elemento de consolidação dos anseios do povo, justamente porque a lógica de mercado, ainda que incompreendida e enviesada, permeia toda a sociedade. Daí é que questionamos se as greves são, de fato, a melhor forma de a escola pública lutar para ser o que quer ser. Ou seja, houve uma greve que não conseguiu resultados. Pelo contrário, acabou se tornando na sociedade um problema, para pais e alunos. E agora a sociedade não consegue entender em que medida a luta dos professores defende também os seus interesses e direitos. Foi aí então que as pessoas, do modo mais simplista possível, acostumaram-se a dizer que a escola pública não funciona. Mas a iniciativa privada sim, porque lá não há greve. Em que pese isto tudo, dentro do Estado que deve primar pelo espaço público, não cabe a lógica de mercado. No Estado não há a possibilidade de demitir 300

professores num dia e contratar outros em seguida, como seria possível, pelo menos teoricamente, na instituição privada. Agora, é preciso analisar se a greve é um meio para que a escola pública encontre seu caminho, se é realmente assim que a educação conseguirá ser aquilo que todo mundo sonha que ela deva ser. Ainda que definir esse “vir a ser” seja muito difícil, é preciso pensar naquilo que a escola pública não pode abrir mão. E não pode abrir mão do “vir a ser”, dos seus sonhos da educação pública, universal, gratuita. Por isso, a educação pública, em primeiro lugar, não pode vender-se à lógica mercantil, mas precisa se sustentar. A profissão do historiador, por exemplo, é no seu mais profundo termo, uma profissão publica, ou deveria ser. O historiador trabalha com um encargo de alta significância e relevância pública e política, na medida em que a reflexão histórica forma massa critica. É, portanto, elemento fundamental e coadjuvante essencial na formação da cidadania. E não apenas a historia, mas também a filosofia e todas as ciências sociais. No mercado não há espaço, nem para uma nem para outra, aliás para nenhuma ciência humana ou social. Em segundo lugar, o processo educacional tem de ser processo público em sua essência. Qualquer desvalorização do professor só pode dar-se dentro da indigesta lógica do mercado. Porque o ensino é mercantilizado, abrem-se, em torno da educação, lógicas antagônicas e irreconciliáveis. São trilhos que levam a lugares diferentes. A defesa da escola pública e da valorização do professor faz parte de uma lógica crítica, acadêmica. Faz parte de uma lógica sistêmica, não vendável e, portanto, pública. Educação em pauta O Paraná não foi o único estado a enfrentar greve na educação, isso reforça ainda mais a necessidade de se aprofundar a reflexão sobre o pouco ou nenhum resultado alcançado pelas greves, posto que se entende a greve como um ato essencialmente político, de organização da classe. Em que pese ser um ato de grande relevância política, que demonstra uma consciência de classe notável, aplaudível, que merece a maior consideração, a ausência de resultados precisa ser entendida como um indicativo para a necessidade de outras formas políticas de luta, capazes de forçar resultados positivos considerando os fins perseguidos. A primeira sugestão nesse sentido é que aqueles que acreditam na educação pública devem de se instrumentalizar politicamente. Uma coalizão política em torno

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

51 5

da defesa da educação pública é indispensável para a classe no momento. Aqueles que foram para a greve e voltaram com lágrimas nos olhos não podem omitir-se. Uma oportunidade, talvez o primeiro passo, é vislumbrado para 2016, ano em que teremos eleições municipais que estabelecem a base do sistema de poder de nossa federação. A categoria precisa impor a pauta da educação aos candidatos. Demonstrar à sociedade civil que tratasse de uma luta muito maior do que a luta salarial. É uma luta até mesmo maior do que a própria educação. Deve-se lutar contra o aprofundamento de uma lógica perversa, que vemos ganhando espaço, que é a privatização de todos os espaços públicos. E isso significa que a educação pública tem, necessariamente, que fazer/pensar política. Não basta que os meios de comunicação digam qual é o melhor candidato. É preciso buscar/encontrar comprometimento político com a educação pública. No Paraná, já foram dados os primeiros passos nesse sentido, quando os professores se posicionaram contra aqueles que apoiaram o massacre de 29 de abril, taxando-os de “inimigos da educação”, manifestando-se publicamente em oposição às suas posições, nos compromissos de suas agendas políticas. Vale enfatizar que, não se trata aqui de uma visão partidária, mas política. Trata-se de cobrar dos partidos e candidatos um compromisso com a educação publica, e buscar conferir visibilidade para tal cobrança. Em segundo lugar, é preciso delimitar o que significa esse compromisso com a educação publica. Os professores devem ter uma pauta concreta e definida de luta. A classe dos professores, imbuídos do verdadeiro espírito publico, vai ter de levar aos candidatos a sua pauta. Uma pauta fora da lógica de mercado. Porque não tem outro jeito de valorizar a classe, a não ser a própria classe buscar um código de compromisso pautado, com a qual os candidatos vão se comprometer ou não. Isso significa também que é preciso desenvolver mecanismos de pressão alternativos, mais efetivos do que as greves. Isso significa que não é mais possível acontecer, por exemplo, o que ocorreu no Estado, quando se reelegeu um governador, contra o qual não há oposição na Câmara dos Deputados. Mas também nos municípios, nas Câmaras de vereadores, a classe deve lutar pela articulação que mude a situação de governo autoritário e politicamente inerte à pressão grevista. O tempo de omissão por parte dos professores tem que parar. É preciso articulação política em favor dos interesses, anseios e sonhos da classe.

Em terceiro lugar, a educação pública, a escola pública, tem que sonhar. Ela acaba sendo varrida pela força dos ventos políticos, sem conseguir afirmar os direitos que quer alcançar. É preciso empreender um trabalho multiplicador, de coalizão e instrumentalização política, em torno do sonho da educação pública. Então, o que queremos? Queremos a educação em tempo integral? E como queremos a educação em tempo integral? Formalizemos uma pauta de reivindicação. Caminhemos, no sentido de um projeto de aspiração muito maior, conforme já apontamos anteriormente; para uma lógica de reconstrução e reconquista dos espaços públicos – que vêm sendo loteados pela lógica capitalista – a começar pela escola. Fora de uma lógica mercantil, é preciso humanizar as relações e politizar as ações em favor de uma educação pública de qualidade.

Considerações finais Reforçamos a necessidade de se fazer uma reflexão, um repensar profundo sobre a desvalorização da profissão do professor, posto que isso está dentro de um processo de progressivo e seguro desmonte da escola pública como um todo e deve ser compreendido, até mesmo para que algum entendimento dos resultados dessa greve se torne possível. Daí a importância dos estudos de Juliana Bottos (2011). Bottos (2011), ao discorrer sobre os resultados de sua investigação, demonstranos que nos textos jornalísticos e midiáticos, o professor é medido, por um lado sob percentuais estatísticos, em termos de domínio de conhecimento escolar, e por outro lado, de acordo com os resultados atingidos pelos alunos do ensino público em testes e exames nacionais, para em seguida, comparar ambos resultados com aqueles conseguidos pelas escolas particulares. Ao analisar uma grande quantidade de textos publicados pela Revista Veja e pelo Jornal Folha de São Paulo, a autora conclui que a lógica construída pelos jornalistas é a da comparação entre escola pública e escola particular, como ponto de partida para pensar educação no país. Para nós, essa lógica é enviesada. Para Bottos (2011), tal avaliação conforma um parâmetro segundo o qual a capacidade profissional do docente da rede pública é desmerecida. De modo que, a esse professor, de maneira recorrente e indireta, é delegada a condição de

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

51 7

incompetente. Incompetente do ponto de vista de sua prática e incompetente segundo os resultados que ela apresenta. O que lhes resta então? Concordamos com Bottos (p. 156, 2011) e não podemos negar que há problemas sérios na formação dos alunos, na prática pedagógica dos professores, mas é preciso romper com a visão relativista, parcializada e fragmentada dos dados apresentados pela mídia, que sabemos tendenciosa. É preciso pensar a função social da escola e do papel do professor, levando em consideração a trajetória histórica da educação no país, as orientações gestoras das políticas públicas em educação e as relações sociais ao entorno desse processo, posto que esse não se produziu sozinho, mas socialmente. Mais do que isso, é preciso pensar estratégias de luta em defesa da educação e da escola públicas de qualidade. É preciso que os professores, enquanto categoria, façam da educação sua pauta e se comprometam politicamente com ela. Isto para que se faça possível uma coalizão em torno da imposição social e coletiva de tal demanda gestada politicamente. Lembremo-nos aqui do número que representam os professores: são a maior categoria de servidores do estado do Paraná e o significado disso é relevante. São, pelo menos, cinquenta mil pessoas que com alguma facilidade encontram simpatizantes no próprio meio de convivência. Que então usem isso a seu favor! E façam dessa demanda, a necessidade de maior urgência para a política do Estado.

A Primeira República Portuguesa e a colônia de Moçambique: considerações iniciais

Thiago Henrique Sampaio951 Mestrando em História FCL/ASSIS – UNESP

Resumo: O presente texto visa investigar a dinâmica da política colonial portuguesa em relação à colônia de Moçambique nas últimas décadas de Oitocentos e da Primeira República. Leva-se em conta que, possivelmente, os últimos anos da Monarquia e a Primeira República (1910-1926) mantiveram-se com a mesma perspectiva colonial em relação as suas colônias africanas, ou seja, a ruptura de regime político não implicou mudanças significativas na sua forma de colonização em África. No caso de Moçambique, provavelmente, ocorreram mais continuidades do que rupturas nessa nova atuação colonialista. Palavras-Chave : Primeira República Portuguesa, colônia de Moçambique, ultimatum

Introdução Com a independência do Brasil, Portugal começou a perceber na África uma nova fonte de renda econômica. Até então, a função dos territórios portugueses no continente era essencialmente o fornecimento de mão de obra escrava ao Brasil952. Sá da Bandeira, presidente do Conselho Ultramarino, apresentou, em 1834, projeto para o desenvolvimento dos territórios africanos. Um dos pontos defendia a abolição do tráfico negreiro, decretado em 10 de dezembro de 1836, para que se pudessem aproveitar os habitantes na produção agrícola local. Mas, isso seria possível apenas com investimento de capital. A implantação do seu plano falhou, devido às resistências encontradas principalmente em Angola e Moçambique por falta de um maior controle metropolitano e oposição dos traficantes de escravos no litoral. Não podemos esquecer que a ocupação portuguesa em África pouco evoluiu ao longo dos séculos XVI até a primeira metade do século XIX. Em Moçambique, a ocupação era precária e dava largo espaço para o desenvolvimento de comunidades africanas953. 951 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História (UNESP/Assis) 952 TELO, António José. Lourenço Marques na política externa portuguesa (1875-1900). Lisboa: Cosmos, 1991, p. 19 953 BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti. História da Expansão Portuguesa: Do Brasil para África (1808-1930). Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, p. 163.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

51 9

A partir da década de 1850, período de relativa estabilidade política, Sá da Bandeira relançou seu projeto colonial. Os objetivos eram os seguintes: expansão territorial, maiores relações entre a metrópole e as colônias e o início de uma economia agrícola. A exploração colonial obteve poucos resultados até a década de 1880. Em Angola, a tentativa de ocupação do litoral norte rumo à foz do Congo iniciou-se por Ambriz (tomada em 1855), face ao duplo obstáculo representado pela resistência das populações da zona e pela pressão britânica; no interior, constitui-se de fluxos e refluxos em escala limitada, sem avanços significativos. Em Moçambique, a luta conduzida contra os senhores dos “prazos”954 da Zambézia saldou-se por um fracasso, culminando na derrota da expedição enviada de Portugal em 1869. No campo mercantil, houve um efetivo aumento das relações entre metrópole e ultramar955. No último quartel do século XIX, os objetivos portugueses na África se igualaram ao processo de expansão colonial de outras nações europeias, devido à ampliação da industrialização a outros lugares do globo. Os países que começaram a se industrializar entraram na fase do capitalismo concorrencial, quando se determinou a urgência da expansão das fronteiras coloniais, o controle das fontes de matériasprimas, a transferência para lugares periféricos da produção de alimentos e a busca de mão de obra a baixo custo956. A Conferência de Berlim957 foi inaugurada no dia 15 de novembro de 1884, surgiu com o propósito de definir as ocupações militares, administrativas, econômicas

954 Os prazos foi uma política administrativa iniciada no século XVIII, através de acordos de fixação entre portugueses e chefes locais através do casamento. A concessão aconteceria por “prazos”, tempo em duas ou três gerações para o fim do consentimento, sendo transmitido à filha mais velha. Com o final do acordo, os territórios voltavam para as mãos da administração portuguesa, mas poderiam ser prorrogadas a outorga para os antigos senhores de prazos caso o governo local concordasse que a região tinha sido bem governada. 955 ALEXANDRE, Valentim. “Portugal em África (1825-1974) - Uma perspectiva global”. Penélope: fazer e desfazer a história. Lisboa, n. 11, 1993. 956 CABAÇO, José Luis. Moçambique: Identidade, colonialismo e libertação. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 29. 957 As potências participantes da Conferência de Berlim foram: Alemanha, Império Austro-Húngaro, Bélgica, Dinamarca, Estados Unidos, França, Espanha, Inglaterra, Itália, Países Baixos, Portugal, Império Otomano e Reino da Suécia e Noruega.

e a delimitação de fronteiras de territórios controlados pelas potências coloniais, para impedir eventuais conflitos armados entre as diversas potências signatárias. Até 1885 não havia uma política colonial em relação à África, cada potência tinha suas ambições territoriais no continente. Inglaterra, Alemanha e França disputavam e procuravam estender as suas influências sobre os territórios considerados mais vantajosos e lucrativos958. A Conferência de Berlim impôs a substituição do direito histórico pela ocupação efetiva de territórios. José Luís Cabaço afirma que tal fato marcou a urgência do capital industrial e financeiro europeu em se apropriar diretamente das matérias-primas, do controle da produção e dos meios de produção dos territórios ultramarinos959. Portugal foi forçado a enviar tropas para as zonas que reivindicara. O processo de ocupação de diversas partes do globo pelas potências colonizadoras ficou conhecido como Imperialismo e durou até o final da Primeira Guerra Mundial. Portugal conservou os territórios que hoje correspondem a Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Eric Hobsbawm assinalou que a ininterrupção dos principais territórios portugueses na África deveu-se basicamente à incapacidade de seus rivais modernos, Inglaterra e Alemanha, chegarem a um acordo quanto à maneira de reparti-los 960. Restava ao reino ibérico, portanto, afirmar-se em África em meio a essa conjuntura. O ultimatum e a questão colonial O projeto de colonização em finais de XIX e início do XX inseriu-se nas transformações sofridas pela sociedade europeia e no desenvolvimento do capitalismo em Portugal. Apesar de ser uma sociedade capitalista dependente de outras regiões, seus ideais coloniais tiveram forte teor nacionalista961.

958 MARQUES, A H. de Oliveira. História de Portugal: das revoluções liberais aos nossos dias. v. II. Lisboa: Palar Editores, 1998, p. 166. 959 CABAÇO, José Luis. op. cit., p. 34.

960 HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios: 1875 -1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 89. 961 PEREIRA, Miriam Halpern. Das Revoluções Liberais ao Estado Novo. Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 157.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

52 1

Portugal era essencialmente agrícola, sobretudo quando comparado a outras potências que já haviam passado pelo processo de industrialização; suas poucas indústrias tinham grande dependência econômica inglesa962. A dominação portuguesa no território moçambicano, até a última década do século XIX, limitou-se à costa litorânea e a pontos isolados no interior, ou seja, a ocupação era praticamente a mesma do início do século XVII 963. Em Angola, o processo apresentava algumas diferenças, contava com melhor organização administrativa e maior presença de população portuguesa. Os objetivos portugueses nas províncias ultramarinas eram distintos até meados de Oitocentos: Angola servia como fornecedora de escravos e Moçambique como um porto estratégico para o fornecimento de matérias-primas à Índia Portuguesa, Macau e Timor. A partir das expedições para o interior da África, a Sociedade de Geografia de Lisboa elaborou um plano de ocupação das zonas intermediárias (região que atualmente corresponde a Zâmbia, Zimbábue e Malawi) entre Angola e Moçambique. O projeto de dominação dos territórios, denominado por “mapa cor-de-rosa”, objetivava relançar os direitos históricos portugueses sobre uma vasta área964. As medidas proposta pela Sociedade de Geografia de Lisboa e adotadas pelo governo português para a concretização do mapa cor de rosa foram: I. organizar expedições que assegurassem o controle dos territórios para o domínio luso; II. delimitação de suas fronteiras colônias com as demais potências vizinhas (França e Alemanha); e III completar a construção do caminho de ferro de Lourenço Marques a Pretória para consolidar sua aliança com o Transvaal. A reivindicação portuguesa dos territórios chegou a ser reconhecida por outras nações. Em 1886, o governo português assinou com a França e a Alemanha dois acordos que definiram os limites fronteiriços de suas colônias. Portugal perdeu vários territórios na bacia do Casamansa, compensados em parte pelo fato de a França reconhecer a fronteira norte de Cabinda. Pelo tratado com a Alemanha, a fronteira 962 PEREIRA, Miriam Halpern. Livre-câmbio e desenvolvimento econômico: Portugal na segunda metade do século XIX. Lisboa: Edições Cosmos, 1971, p. 20.

963 ANDERSON, Perry. Portugal e o ultracolonialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 27. 964 CABAÇO, José Luis. op. cit., p. 62; GUIMARÃES, Ângela. Uma corrente do colonialismo português: a Sociedade de Geografia de Lisboa (1875-1895). Porto: Livros Horizonte, 1984.

meridional de Angola era fixada no rio Cunene e a de Moçambique no curso do rio Rovuma. Ambas estas linhas de fronteira sacrificavam os interesses e as pretensões tradicionais de Portugal, a costa angolana até o Cabo, pelo apoio de Bismarck à política do mapa cor-de-rosa965. O amparo desses países a Portugal era importantíssimo no período, principalmente da Alemanha que se industrializou rapidamente após a unificação. No final de 1889, Portugal iniciou uma campanha militar no interior da área reivindicada contra o povo mokololo. A Inglaterra não reconheceu os acordos e estrategicamente declarou proteção à etnia, para justificar seus interesses na região. No dia 5 de janeiro de 1890, foi entregue pelo embaixador britânico em Lisboa um despacho ao ministro Barros Gomes que continha informações do que estava acontecendo nas expedições portuguesas. No comunicado exigiu-se que Portugal declarasse categoricamente que não tentaria resolver pela força as questões pendentes, nem exercer jurisdição nos países dos mokololos ou dos machonas, sem prévio acordo entre os dois países. Acrescentou ao despacho que se essa declaração não fosse feita até a tarde do dia 8, o governo britânico tomaria as providências que julgasse necessárias à sua segurança e conveniência.966

Uma arbitragem internacional sobre o território foi requisitada pelo governo português. Evocou-se o artigo 12° da Ata Geral da Conferência de Berlim 967 que especificava a mediação de outra potência no caso de disputas graves em territórios da zona de livre comércio entre os países signatários. Em 10 de janeiro de 1890, o governo de Lisboa recebeu um telegrama em que não se fazia nenhuma referência ao pedido de arbitragem. Foi exigida a imediata retirada das tropas militares estabelecidas na área968.

965 MARQUES, A. H de Oliveira. Idem, p. 172. 966 MARTINS, F. A. Oliveira. O Ultimatum visto por Antônio Enes (com um estudo biográfico). Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 1946, p. 195. 967 Artigo 12°. Caso um desentendimento sério, nascido do assunto ou dos limites dos territórios mencionados no artigo 1° e colocador sob o regime da liberdade comercial, vier a surgir entre as Potências signatárias da presente Ata ou Potências que, a seguir, a ela aderirem, essas Potências se comprometem, antes do apelo às armas, a recorrer à mediação de uma ou de várias Potências amigas. No mesmo caso, as mesmas Potências se reservam o recurso facultativo ao procedimento da arbitragem. ATA GERAL DA CONFERÊNCIA DE BERLIM apud Kátia M. de Queiróz Mattoso. Textos de documentos para o estudo da História Contemporânea (1789-1963). São Paulo: Hucitec, 1982. pp. 117-121. 968 MARTINS, F. A. Oliveira. op. cit, p. 195.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

52 3

Em 11 de janeiro de 1890, o governo britânico apresentou o ultimatum969, intimando Portugal a imediata retirada de suas tropas sob ameaça de quebra das relações diplomáticas e com possível retaliação militar. O significado de tal atitude corresponderia ao corte das relações diplomáticas e o desenrolar da disputa não aconteceria de forma “burocrática”. Caso ocorresse uma guerra em decorrência dos territórios perdidos, Portugal não teria capacidade bélica, nem recursos econômicos e humanos suficientes para enfrentar uma intervenção inglesa. Portugal, frente à ameaça do ultimatum, em um primeiro momento, mandou evacuar os territórios dentro do prazo estipulado. Durante os meses que se seguiram, o governo de Lisboa tentou conseguir da Inglaterra algum recurso. Nuno Severiano Teixeira observa que a historiografia portuguesa tem abordado o ultimatum de duas perspectivas distintas e quase sempre independentes: o da política externa, evidenciando o conflito diplomático e as negociações bilaterais; e o da política interna, analisando o levante patriótico, a luta anti-inglesa e antimonárquica em prol do movimento republicano970. Meses de manifestações e protestos se seguiram no território português em decorrência do ultimatum. Visto como uma afronta a soberania portuguesa em África e uma vergonha nacional, houveram críticas severas ao governo perante a atitude de ceder as pretensões inglesas seguiram. O governo progressista renunciou justificando a sua demissão “a resistência em relação a uma nação poderosa como a Inglaterra poderia dar lugar à ocupação, 969 Delegação Britânica, 11 de Janeiro de 1890. Neste período o governo britânico era chefiado pelo primeiro-ministro Lord Salisbury e o ultimatum foi entregue na forma de um memorando. Segundo o ultimatum: “O Governo de Sua Majestade Britânica não pode aceitar, como satisfatórias ou suficientes, a seguranças dadas pelo Governo Português, tais como as interpreta. O Cônsul interino de Sua Majestade em Moçambique telegrafou, citando o próprio major Serpa Pinto, que a expedição estava ainda ocupando o Chire, e que Katunga e outros lugares mais no território dos Makololos iam ser fortificados e receberiam guarnições. O que o Governo de Sua Majestade deseja e em que mais insiste é no seguinte: Que se enviem ao governador de Moçambique instruções telegráficas imediatas para que todas e quaisquer forças militares portuguesas actualmente no Chire e nos países dos Makololos e Mashonas se retirem. O Governo de Sua Majestade entende que, sem isto, as seguranças dadas pelo Governo Português são ilusórias. Mr. Petre ver-se-á obrigado, à vista das suas instruções, a deixar imediatamente Lisboa, com todos os membros da sua legação, se uma resposta satisfatória à precedente intimação não for por ele recebida esta tarde; e o navio de Sua Majestade, Enchantress, está em Vigo esperando as suas ordens”. 970 TEIXEIRA, Nuno Severiano. “Política externa e política interna no Portugal de 1890: o Ultimatum inglês”. Análise Social. Lisboa: v. 23, n. 98, 1987, p. 687.

como represália, de mais territórios coloniais portugueses e a sua perda irremediável” 971

. Em 14 de janeiro é nomeado um novo ministério presidido por Antônio Serpa

Pimentel que apresenta seu programa de governo no Parlamento em 15 de janeiro. Um debate sobre a histórica política anglo-portuguesa entra no Parlamento, deputados e pares começam a ver uma substituição alternativa a esta aliança buscando países próximos de Portugal: Se a Inglaterra [...] é a nossa inimiga em África, é preciso encontrar na Europa os inimigos naturais dos ingleses: ora estes inimigos de raça, de história e de interesses políticos e econômicos são a França e a Espanha972.

Como afirmou António José Telo973, durante o episódio do ultimatum, a Alemanha não apoiou Portugal, inclusive defendeu que uma possível derrocada da monarquia pouca importância teria. Bismarck acreditava que poderia contribuir para uma maior solidariedade das demais monarquias europeias e isolar a República Francesa. O fracasso das tentativas de arbitragem internacional obrigou à negociação com a Inglaterra. Em 18 de janeiro de 1890, o ministro dos Negócios Estrangeiros Hintze Ribeiro entra em contato com o embaixador inglês em Lisboa confirmando a aceitação do ultimatum e invocando a histórica Aliança inglesa para possíveis negociações. Moçambique: antes e depois do ultimatum Na segunda metade de XIX, foi elaborada uma proposta de construção de um caminho de ferro que ligaria Pretória, na época pertencente à República do Transvaal, ao porto de Lourenço Marques, Moçambique. Em 1869, o governo do transvaalino negociou com Portugal outra saída para o mar, assim, foi realizado um acordo conhecido como Paz, Amizade e Comércio, no qual o primeiro reconhecia a concessão

971 TEIXEIRA, Nuno Severiano. “Política externa e política interna no Portugal de 1890: o Ultimatum inglês”. Análise Social. Lisboa: v. 23, n. 98, 1987, p. 698.

972 Diário da Câmara dos Senhores Deputados, sessão de 17 de janeiro de 1890, p. 71. 973 TELO, António José. Lourenço Marques na política externa portuguesa (1875-1900). Lisboa: Cosmos, 1991, p. 105.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

52 5

portuguesa da Baía de Lourenço Marques, enquanto estivesse ausente de barreiras alfandegárias na região974. Em 1875, foi assinado entre Portugal e o Transvaal, um tratado que tinha como princípios gerais a liberdade de comércio e livre trânsito, e fazia referência à possibilidade de estabelecer a construção de um caminho de ferro para escoamento de suas mercadorias para Lourenço Marques. Com a anexação do Transvaal pelos ingleses em 1877, todo o processo de construção paralisou a Inglaterra não iria apoiar o avanço da construção de uma ferrovia sem terem a certeza de manter anexado o território para o escoamento de seus produtos pelo porto de Lourenço Marques. Em 1879, ocorreu um acordo entre Portugal e a Inglaterra, para possivelmente ser construído um caminho de ferro que ligaria as colônias inglesas no sul de Moçambique ao porto de Lourenço Marques. O acordo tinha como objetivo fomentar e alargar as relações comerciais existente nos domínios de ambas as nações em África, e “promover a completa extinção do tráfico d’escravos e auxiliar-se mutuamente a fim de cooperar na obra de civilização da África” 975. Este convênio foi muito celebrado pelo parlamento português, pois, em janeiro de 1879 se anunciava a possível aliança inglesa e portuguesa para a construção do referido caminho de ferro em terras moçambicanas. O tratado de 30 de maio de 1879 invocava às antigas alianças existentes entre Portugal e a Inglaterra que agora deveriam ser usadas para a exploração e civilização do continente africano976. O tratado estabelecia uma comissão mista que estudaria o trajeto de um caminho de ferro do Transvaal ao porto de Lourenço Marques, fixava os meios para a sua execução e criava postos aduaneiros mistos. O acordo era duramente criticado por conceder “a isenção de direitos e encargos de qualquer natureza sobre as mercadorias em trânsito do porto de Lourenço Marques para a fronteira britânica e vice-versa”977. 974 THOMAZ, Fernanda do Nascimento. Os “Filhos da Terra”: discurso e resistência nas relações coloniais no sul de Moçambique (1890 – 1930). Dissertação de Mestrado no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, 2008, p. 31. 975 TESTA, Carlos. A influência europeia na África perante a civilização e as relações internacionais – considerações acerca do tratado de 30 de maio de 1879. Lisboa: Typographia Universal, 1880, p. 42. 976 TESTA, Carlos. Op. cit., p. 03. 977 TESTA, Carlos. Op. cit., p. 29.

Em 1881, devido à política partidária existente em Portugal em finais de oitocentos, o tratado precisou ser revisto e renovado. O Partido Republicano aproveitou-se da situação para invocação do sentimento nacional contra a convenção, considerando-o como traição e venda da pátria978. Além disso, o Transvaal reconquistou sua independência em 1881, saindo da esfera britânica, e voltou ao tema da edificação da linha férrea com o governo português, que nessa época estava disposto a fazer estudos e avaliar a obra do caminho. A partir de então, a Sociedade de Geografia de Lisboa criou uma comissão africana para estudar o trajeto do caminho de ferro, cujo resultado foi publicado sob o título O Caminho de Ferro de Lourenço Marques parecer da Comissão Africana e Informação (1882). Nesta época, intensificava-se a exploração mineira nas colônias na África Austral. Em 1886, encontrou-se ouro na região que futuramente seria Johannesburg, comparando as distâncias dos demais portos da região com o porto de Lourenço Marques e as milhas percorridas para se chegar nele, percebeu-se que Portugal possuía certa superioridade de seu porto sobre os portos britânicos, pois estes estavam bem distantes desta região mineradora e com a construção do caminho de ferro em Lourenço Marques facilitou-se muito o escoamento de produtos desta região. O caminho de ferro foi concluído em 1887 e posto em operação a partir da metade de 1889. A construção da obra em Lourenço Marques possibilitou uma evolução das receitas deste distrito nos anos seguintes, fora que ajudou na entrada de capitais para o melhoramento de seu porto. Em finais do século XIX, uma das principais fontes de receita para a administração colonial e um dos mais produtivos fatores de riqueza para a província de Moçambique era a via férrea e seu porto979. Na última década de Oitocentos, a população portuguesa em Moçambique não chegava a mil habitantes. Após o ultimatum houve um aumento do fluxo migratório da metrópole para a colônia. Por outro lado, a partir de 1891, constituíram-se Companhias para ocupação, exploração econômica e pacificação do território moçambicano, que fizeram parte do esforço de consolidação do domínio português naquelas possessões.

978 TESTA, Carlos. A política intercolonial e internacional e o tratado de Lourenço Marques. Lisboa: Typographia Universal, 1881, p. 12. 979 ALBUQUERQUE, Mousinho. Moçambique (1896 – 1898). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1934, p. 431.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

52 7

Nas décadas finais dos Oitocentos, com a indústria portuguesa em desenvolvimento, os mercados consumidores em Angola e Moçambique foram vistos como oportunidades para impulsionar a economia da nação980. Portugal não era um país com grande potencial econômico, a maior parte de sua renda devia-se ao capital estrangeiro, principalmente inglês. Na segunda metade do século XIX, a Inglaterra respondia por 50% das exportações portuguesas e as mercadorias inglesas variavam de 37% a 59% das importações de Portugal 981. Em finais de XIX, era ínfimo para o mercado inglês manter relações comerciais com os portugueses, mas era de fundamental importância para Portugal manter relações comerciais com a ilha. O Tratado assinado com a Inglaterra em 11 de junho de 1891 fez com que Portugal abandonasse suas pretensões anteriores no continente africano. O acordo definiu as fronteiras atuais de Angola e Moçambique e estimulou o governo português a explorar o interior dos territórios que lhes couberam982. O Tratado não era o fim dos problemas coloniais para Portugal, o principal era como se daria a ocupação efetiva e o desenvolvimento das localidades. Grandes porções dos territórios de Angola e Moçambique não se encontravam ocupadas, a metrópole portuguesa precisou interferir, pacificando e desenvolvendo as áreas. Tarefa árdua devido às dificuldades econômicas enfrentadas. Moçambique, até então considerado território de pouco interesse pela política colonial, estava sobre domínio de vários reinos africanos. Segundo Cabaço, devido às dificuldades para desenvolver a colônia, em diferentes momentos nos finais do século XIX e princípio do século XX, setores do governo português defendiam a venda do território moçambicano para que Portugal se dedicasse ao desenvolvimento de Angola983. Como o governo não tinha capacidade econômica nem militar para explorar a colônia, a solução encontrada era a criação de concessões para Companhias 980 REIS, Jaime. “A industrialização num país de desenvolvimento lento e tardio: Portugal, 1870 – 1913”. Análise Social. Lisboa: v. 23, n. 96, 2004, p. 220. 981 PEREIRA, Miriam Halpern. op. cit, p. 297. 982 MARQUES, A. H. Oliveira. op. cit., p. 124. 983 CABAÇO, José Luis. op. cit., p. 62.

Majestáticas e Arrendatários que seriam responsáveis pelo desenvolvimento e manutenção da pacificação das áreas sob seus domínios. As Companhias Majestáticas eram empresas fundadas com capital privado que tinham o consentimento régio para certas vantagens comerciais e administrariam as colônias por concessões de 35 a 50 anos. A metrópole dividiu Moçambique entre as companhias da seguinte forma: toda a parte setentrional, norte do rio Lúrio, dada à Companhia do Niassa; entre o rio Ligonha e uma faixa sul do rio Zambeze, adquirido em sua maioria pela Companhia de Moçambique e pela Companhia da Zambézia; no centro da colônia, entre o limite meridional dos prazos e o paralelo 22, o sul do rio Save foi entregues à Companhia de Moçambique e administração direta do governo português restringiu sua administração apenas ao Distrito de Moçambique, a uma pequena parte na zona de Tete e ao território sul do paralelo 22. A maior parte de Moçambique ficou ocupada por essas companhias. Em 1900, a área era superior a dois terços da superfície total do país984. A Companhia de Moçambique, fundada em 1891, com capital proveniente de financiadores estrangeiros (Alemanha, Inglaterra, África do Sul), tornou-se a mais próspera das companhias instaladas na região985. Sua sede administrativa localizava em Beira, onde estabeleceu as estruturas para governar a localidade, o controle e pacificação da população, a manutenção de infraestruturas para medidas sanitárias e educativas, a coleta de impostos e a emissão de moedas986. Durante sua existência, a companhia recrutou pessoas para trabalhar em suas plantações e ajudou no fornecimento de mão de obra moçambicana para as minas na África do Sul. Na primeira década do século XX ocorreram constantes rebeliões contra o regime de trabalho forçado que abalaram a confiança da coroa portuguesa na empresa987. Em 1890, fundou-se por alvará régio a Companhia de Niassa, a associação portuguesa que a inaugurou não tinha condições financeiras para sua manutenção. Em 1892, um consórcio com capitais da França e da Inglaterra comprou a concessão da 984 FRELIMO. História de Moçambique. Maputo: 1971, p. 78. 985 CABAÇO, José Luis. op. cit., p. 72. 986 PÉLISSIER, René. História de Moçambique. Formação e oposição: 1854-1918. Lisboa: Estampa, 1997. V.1, p. 173-174. 987 PÉLISSIER, René. op. cit. p. 174.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

52 9

empresa. Em 1894, iniciou-se a ocupação efetiva da sua área no território moçambicano com a ajuda de militares do Estado Português 988. Em 1897, a Companhia tentou a pacificação da região do Niassa, propondo a captura de chefes tribais daquela localidade, mas suspeitando de uma grande resistência desistiu da empreitada. A companhia baseava-se no sistema “chibalo”989 de trabalho, que obrigava os moçambicanos a trabalhar em campos de algodão, plantações e obras públicas. Esse sistema de trabalho impedia a população de crescer economicamente e desenvolver sua própria produção para comercialização990. O governo português exigia a participação nos lucros das companhias e a garantia da recuperação do território após a expiração do prazo do contrato. Os benefícios que cabiam às Companhias eram os seguintes: direito de coletar impostos; construção de pontes e vias de comunicação; poder para emitir moedas e selos oficiais; monopólio da atividade bancária e de comunicação; direito de transferência de terras e o monopólio do comércio colonial para a sua localidade. No mesmo período das Companhias Majestáticas, coexistiram as Companhias Arrendatárias de Prazos, que eram submetidas às primeiras. As mais importantes foram a Companhia da Zambézia (1898), a Companhia do Borror (1904), a Companhia do Luabo (1904) e a Societé Du Madal (1906). A Companhia da Zambézia possuía o estatuto de semi-majestática, sua origem remonta da concessão feita pelo governo a Paiva de Andrada, que compreendia as minas de ouro da Zambézia, posses até então inexploradas pelo Estado 991. Em 1879, em Paris, constituiu-se a Sociedade dos fundadores da Companhia da Zambézia, 988 PÉLISSIER, René. op. cit. p. 175. 989 “Chibalo” era o sistema de trabalho forçado nas províncias ultramarinas portuguesas na África e na Ásia, sobretudo em Angola e Moçambique. Portugal aboliu a escravidão oficialmente em 1869, mas o sistema foi usado para construir as infraestruturas públicas das províncias africanas, manutenção de plantações das companhias que tinham poder régio para exercer a exploração nos territórios e exploração de minas. Durante o período do Estado Novo, este sistema foi usado em Moçambique para o crescimento da produção algodoeira. Homens com a idade adequada tinham que trabalhar nos campos de algodão e possuíam sua cota de produção. Estes campos, após o cultivo de algodão, tornaram-se inúteis para a produção alimentícia e causou fome para a população. Com a Revolução dos Cravos em 1974, o sistema “chibalo” foi encerrado e no ano seguinte houve a independência das províncias ultramarinas de Portugal. 990 PÉLISSIER, René. op. cit. p. 379. 991 PÉLISSIER, René. História de Moçambique. Formação e oposição: 1854-1918. Lisboa: Estampa, 1997. V. 2, p. 80.

devido a um decreto que declarava que sua concessão só seria efetivada quando ela tivesse o mínimo de capital suficiente para a exploração integral da sua localidade. Inicialmente impossibilitada de capital, foi forçada a ceder parte da sua área à Companhia de Moçambique. Em 1892, com o investimento de capital inglês, oficialmente surgiu a Companhia da Zambézia. Seus principais setores de atuação eram a indústria mineral, a agricultura e o desenvolvimento da navegação no rio Zambeze992. Segundo Oliveira Marques, algumas companhias fracassaram, mas as que prosperaram contribuíram para o rápido crescimento da economia da colônia 993. A Companhia de Niassa mostrou-se pouco comprometida pela administração em sua área. A Companhia de Moçambique instalou-se efetivamente no território que lhe cabia e se tornou a mais poderosa Companhia Majestática. As companhias construíram estradas e portos para importação e exportação de produtos no mercado colonial moçambicano. Foram responsáveis pela criação da ferrovia que ligava o porto de Beira a Rodésia, atual Zimbábue, inaugurada em 1899. Desenvolveram políticas que beneficiavam a colonização branca portuguesa e davam pouca atenção à integração da população negra. Suas medidas administrativas prejudicaram a produção da agricultura familiar local e forçaram grande contingente populacional a se mudar para o Transvaal em busca de trabalho na mineração de ouro994. Nesse período Moçambique desenvolveu-se. Oliveira Marques afirma que as exportações moçambicanas superavam as de Angola nas vésperas da proclamação da República995. No início do século XX as receitas moçambicanas foram responsáveis por pagar as próprias dívidas e ainda contribuir para descontar os déficits da colônia de Angola996. O porto de Lourenço Marques foi um dos grandes responsáveis por este desenvolvimento. O tráfego comercial subiu de 1.020 contos, em 1888, para 27.000, 992 PÉLISSIER, René. op. cit. p. 174. 993 MARQUES, A. H de Oliveira. op. cit., p. 161. 994 PÉLISSIER, René. op. cit., p. 379. 995 MARQUES, A. H. Oliveira. op. cit., p. 160. 996 MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS DA MARINHA E DO ULTRAMAR. Projeto de Reorganização Administrativa da Província de Moçambique. Lisboa: Imprensa Nacional, 1905, p. 5

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

53 1

em 1908, e por volta de 1910, 57% do comércio externo transvaliano utilizava porto de Lourenço Marques, contra 32% para Durban e 2% para a Cidade do Cabo997. O porto e o caminho de ferro de Lourenço Marques tiveram um papel central no desenvolvimento regional de Moçambique até a unificação das repúblicas bôeres, pois a partir da formação da União Sul-Africana o porto começou a perder importância no cenário regional, mas continuou a ser valorizado pela administração portuguesa. Ao mesmo tempo, o caminho e porto de Beira começaram a serem vistos como localidade regional estratégica ao ser um ponto de escoamento da produção de colônias da região da África Central. Os portos e caminhos de ferro não devem ser encarados apenas como estruturas de desenvolvimento e urbanização, não podemos esquecer seu caráter colonial como peças estratégicas de ocupação e dominação de áreas até então inertes à administração portuguesa. Além das Companhias Majestáticas, a colônia conviveu no mesmo período com as Campanhas de Pacificação998. Moçambique, segundo René Pélissier 999, foi a mais difícil das colônias portuguesas para se subjugar, pelo menos era a que as operações militares alcançaram maiores âmbitos e onde nasceu as figuras dos “heróis coloniais” que exibiram feitos ousados. Entre 1890 até fins da Primeira Guerra Mundial foi caracterizado pelas Campanhas de Ocupação ou Campanhas de Pacificação. No norte, os povos africanos islamizados ofereciam resistência à autoridade colonial, revoltando-se onde quer que os portugueses tentassem um povoamento permanente, atacando com frequência as aldeias e cidades costeiras. Um exemplo foi o sultanato de Angoche1000, Portugal fez inúmeras tentativas de submissão até 1910. 997 MARQUES, A. H. Oliveira. op. cit., p. 161.

998 As Campanhas de Pacificação consistiam em guerras empregadas os povos que não eram submetidos a administração portuguesa no território moçambicano. Adotamos esse termo se baseando nas obras: PÉLISSIER, René. História de Moçambique. Formação e oposição: 1854-1918. Lisboa: Estampa, 1997. 2v; PÉLISSIER, René. As Campanhas Coloniais de Portugal (1844 – 1941). Lisboa: Editorial Estampa, 2006; MARQUES, A. H. de Oliveira. Nova História da Expansão Portuguesa (volume XI) O Império Africano (1890 – 1930). Lisboa: Editorial Estampa, 2001. Outros autores utilizam o termo Campanhas Coloniais, como é o caso de SANTOS, Gabriela Aparecida dos. Reino de Gaza: o desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821- 1897). São Paulo: Alameda, 2010. 999 PÉLISSIER, René. História de Moçambique. Formação e oposição: 1854-1918. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 188. 1000 MARQUES, A. H. de Oliveira. Nova História da Expansão Portuguesa (volume XI) O Império Africano (1890 – 1930). Lisboa: Editorial Estampa, 2001, p. 478.

Em finais da década de 1890, houve uma intensificação nas conquistas da colônia de Moçambique, grande partes destas anexações foram durante a administração de Mousinho de Albuquerque1001.

A Primeira República e o Ultramar Em 5 de outubro de 1910, instaura-se a Primeira República e, com ela, o dever de proteger e administrar um império ultramarino herdado dos séculos anteriores de administração monárquica. Segundo Maria Emilia Madeira Santos, para os republicanos, herdeiros da tradição liberal, não existia uma condenação para a manutenção das colônias. Eles acreditavam que o império herdado seria de fundamental importância para o ressurgimento nacional que desejavam realizar. Com a ascensão da I República, o porto e o caminho de ferro de Beira constituíam uma base fundamental para a integração econômica entre diversas regiões da África Austral, na medida em que o porto servia para ligar seus mercados regionais ao mercado mundial. A posição geográfica de sua localização que através de seu porto e as suas linhas férreas que as comunicavam ao interior do continente, constituíram a melhor via de penetração para o escoamento das mercadorias do interior dessas regiões. Para Antônio Gomes Frois, o porto da Beira foi um dos melhores e mais importantes portos de toda a costa oriental da África e o segundo do Império Colônia Português1002. Com a proclamação da República ocorreu à criação do Ministério das Colônias. Foi apresentada na Câmara dos Deputados, em 1913, uma lei que previa mudanças na administração ultramarina que deveria assentar-se numa gestão descentralizadora que privilegiasse a autonomia financeira dos territórios do Império. Em 1917, ocorreu a promulgação das Cartas Orgânicas Coloniais, documentos que explicitavam melhorias na administração colonial e defendiam a administração 1001 Governador-geral e Comissário-Régio da Província de Moçambique de 1896-1898. 1002 FRÓIS, António Gomes. O porto da Beira. Moçambique Documentário trimestral. Lourenço Marques: n. 31, Imprensa Nacional, 1942, p. 19.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

53 3

indireta nos territórios ultramarinos. Em Moçambique, a aprovação desta lei só aconteceu em 1920. Segundo José Luís Lima Garcia 1003, com os decretos nºs 1805 e 1022 de 7 e 20 de agosto de 1920, criou-se uma nova entidade governativa mandatária do poder da República, os Altos-Comissários, um para Angola e outro para Moçambique, nos quais com a ajuda de um Conselho Superior local eram atribuídos amplos poderes num período de cincos anos que passaria a ter as seguintes responsabilidades: tomar as medidas legislativas que julgassem convenientes para o desenvolvimento da colônia; obrigações com as administrações locais e criar relações diplomáticas com as possessões vizinhas. O cargo de Alto Comissário era similar ao de Comissário Régio no período Monárquico. Os primeiros altos-comissários nomeados foram Norton de Matos para Angola e Brito Camacho para Moçambique. Brito Camacho, que administrou Moçambique de 1921 a 1923, era membro do Partido Unionista. Membro do Partido Republicano Português, desde 1890, tornou-se figura importante dentro do partido, se afastou da militância apenas quando recebeu o cargo de Alto-Comissário da República. Anteriormente ocupou as pastas de ministro de Fomento de Portugal (1910-1911) e ministro das Colônias (1921). Segundo ele, era necessário evitar as intrigas políticas existentes entre Lisboa e o Ultramar, deixando de tratar os governadores como se fossem secretários dos ministros 1004. Defendeu a descentralização administrativa, prática já advogada anteriormente por governadores coloniais durante o regime monárquico, entre a metrópole e as províncias ultramarinas para o bom desenvolvimento da colônia, na qual era importante uma maior autonomia das administrações locais mediante o governo de Lisboa. Considerações Finais O presente trabalho visou mostrar como a política colonial portuguesa se modelou nos últimos anos da monarquia. Desta forma, uma colônia até então esquecida dentro de um antigo projeto colonial começou a ser pensada e ocupada territorialmente, no caso, Moçambique. 1003 GARCIA, José Luís Lima. Ideologia e propaganda colonial no Estado Novo: da Agência Geral das Colónias à Agência Geral do Ultramar 1924-1974. Tese. Universidade de Coimbra: Faculdade de Letras, 2011, p. 91. 1004 CAMACHO, Brito. Política Colonial. IN. Cadernos Coloniais. N. 26. Lisboa: Editorial Cosmos, 1936, p. 34.

A Primeira República buscou dar continuidades nos processos de ocupação e desenvolvimento colonial de Moçambique, a partir das estruturas deixadas pelo regime anterior, a Monarquia. Referências ALBUQUERQUE, Mousinho. Moçambique (1896 – 1898). Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1934. ALEXANDRE, Valentim. “Portugal em África (1825-1974) - Uma perspectiva global”. Penélope: fazer e desfazer a história. Lisboa, n. 11, 1993. ANDERSON, Perry. Portugal e o ultracolonialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti. História da Expansão Portuguesa: Do Brasil para África (1808-1930). Lisboa: Círculo de Leitores, 1998. CABAÇO, José Luis. Moçambique: Identidade, colonialismo e libertação. São Paulo: Editora Unesp, 2009. CAMACHO, Brito. Política Colonial. IN. Cadernos Coloniais. N. 26. Lisboa: Editorial Cosmos, 1936. FRELIMO. História de Moçambique. Maputo: 1971. FRÓIS, António Gomes. O porto da Beira. Moçambique Documentário trimestral. Lourenço Marques: n. 31, Imprensa Nacional, 1942. GARCIA, José Luís Lima. Ideologia e propaganda colonial no Estado Novo: da Agência Geral das Colónias à Agência Geral do Ultramar 1924-1974. Tese. Universidade de Coimbra: Faculdade de Letras, 2011. GUIMARÃES, Ângela. Uma corrente do colonialismo português: a Sociedade de Geografia de Lisboa (1875-1895). Porto: Livros Horizonte, 1984. HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios: 1875 -1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. MARQUES, A H. de Oliveira. História de Portugal: das revoluções liberais aos nossos dias. v. II. Lisboa: Palar Editores, 1998. MARQUES, A. H. de Oliveira. Nova História da Expansão Portuguesa (volume XI) O Império Africano (1890 – 1930). Lisboa: Editorial Estampa, 2001. MARTINS, F. A. Oliveira. O Ultimatum visto por Antônio Enes (com um estudo biográfico). Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 1946. MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS DA MARINHA E DO ULTRAMAR. Projeto de Reorganização Administrativa da Província de Moçambique. Lisboa: Imprensa Nacional, 1905. PÉLISSIER, René. História de Moçambique. Formação e oposição: 1854-1918. Lisboa: Estampa, 1997. PEREIRA, Miriam Halpern. Das Revoluções Liberais ao Estado Novo. Lisboa: Editorial Presença, 1994. PEREIRA, Miriam Halpern. Livre-câmbio e desenvolvimento econômico: Portugal na segunda metade do século XIX. Lisboa: Edições Cosmos, 1971. REIS, Jaime. “A industrialização num país de desenvolvimento lento e tardio: Portugal, 1870 – 1913”. Análise Social. Lisboa: v. 23, n. 96, 2004. TEIXEIRA, Nuno Severiano. “Política externa e política interna no Portugal de 1890: o Ultimatum inglês”. Análise Social. Lisboa: v. 23, n. 98, 1987. TELO, António José. Lourenço Marques na política externa portuguesa (1875-1900). Lisboa: Cosmos, 1991.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

53 5

TESTA, Carlos. A influência europeia na África perante a civilização e as relações internacionais – considerações acerca do tratado de 30 de maio de 1879. Lisboa: Typographia Universal, 1880. TESTA, Carlos. A política intercolonial e internacional e o tratado de Lourenço Marques. Lisboa: Typographia Universal, 1881. THOMAZ, Fernanda do Nascimento. Os “Filhos da Terra”: discurso e resistência nas relações coloniais no sul de Moçambique (1890 – 1930). Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, 2008

O samba paulista tem samba no pé: Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini na coleção História da Música Popular Brasileira. Vanessa Pironato Milani Mestra em História (UNESP/Assis).1005 Resumo O presente trabalho é resultado da pesquisa de mestrado, o qual teve como objeto de pesquisa a Coleção História da Música Popular Brasileira, em duas de suas versões – a primeira (1970/72) e a terceira (1982/84). Produzida e lançada pela Abril Cultural, um ramo da Editora Abril, composta por fascículos contendo parte editorial, com textos críticos e biográficos, e fonográfica, com disco de canções do focalizado, com os intérpretes mais expressivos, e muitas vezes com gravações feitas especialmente para a Coleção. Contou com o assessoramento de críticos musicais, músicos, jornalistas e pesquisadores da música popular brasileira, os quais expuseram seus ideais artísticos nos textos assinados da terceira versão da Coleção. Assim, buscaremos demonstrar as representações do samba paulista que foram apresentadas pela Coleção, por meio dos fascículos de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. Palavras-Chave: Samba Paulista, Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini, História da Musica popular brasileira, sambistas

Introdução A primeira versão da coleção História da Música Popular Brasileira, lançada no início da década de 1970 era composta por 48 fascículos, os quais traziam um disco com 8 canções dos artistas focalizados, além de contar com o assessoramento tanto de críticos musicais quanto de músicos, como Almirante, Aracy de Almeida e 1005 A pesquisa de mestrado, cuja dissertação foi defendida em agosto de 2015, contou com financiamento do CNPq e foi orientada pelo profº Áureo Busetto.

Paulinho da Viola. Quatro anos após o lançamento do último fascículo da primeira versão, em 1972, a Abril Cultural reorganizava sua Coleção, passando de 48 para 75 fascículos lançados, contemplando compositores e/ou intérpretes que não figuraram no primeiro lançamento. Como novidade, apresentava, além do aumento no número de fascículos, capas coloridas, as quais anteriormente eram apenas pretas. Já na década de 1980, a terceira e última versão da Coleção é disponibilizada nas bancas de jornal de todo o país. Esta versão contou com 52 1006 fascículos acompanhados por um disco de 12 canções, incorporando nomes de compositores que não constavam na primeira, além de contemplar alguns fascículos dedicados a gêneros, como o do Samba, Choro e a Música Sertaneja. E além de contar com assessoramento de críticos musicais e historiadores do universo do cancioneiro popular brasileiro, como Tárik de Souza – crítico musical ligado à MPB; Júlio Medaglia – grande arranjador do Tropicalismo; e José R. Tinhorão – jornalistas e pesquisador da MPB, os textos dos fascículos passaram a serem assinados por um seleto e diversificado corpo de profissionais de setores midiáticos, de professores universitários, músicos e/ou amigos do focalizado. Exemplos de tais profissionais são: Maurício Kubrusly, J. Jota de Moraes, Luiz Carlos Maciel, Matinas Suzuki Jr, Chico de Assis, Maria Adelaide Amaral, Marilena Chauí, Walnice Nogueira Galvão, Joel Rufino dos Santos, José Miguel Wisnik, Tom Zé, Jorge Amado, entre outros. O samba na Coleção Com o objetivo de trazer a lume a história da música popular brasileira, o lançamento, por meio de seus assessores e da Abril Cultural, deu amplo espaço ao samba, visto que o gênero, sobremaneira o urbano, há muito ganhara destaque no cenário cultural. Desde os anos de 1930, era tido como “um denominador comum da propalada identidade cultural brasileira”.1007 Assim, o samba foi abordado em suas várias temporalidades e vertentes. E ainda que se apresente majoritariamente sambistas que pertenciam e/ou deslancharam artisticamente no Rio de Janeiro, o 1006 A quantidade de fascículos da terceira versão não foi possível precisar, visto não encontrar uma listagem completa de todos os lançamentos. A quantidade apresentada foi levantada via pesquisa em diferentes meios e refere-se à quantidade que tivemos acesso ao longo da pesquisa. 1007PARANHOS, Adalberto. A invenção do Brasil como terra do samba: os sambistas e sua afirmação social. História, Franca, v.22, n.1, 2003, p. 81.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

53 7

samba feito em terras paulistas foi apresentado aos leitores/ouvintes por meio de dois nomes consagrados neste samba. Trata-se de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. Desta maneira, por meio da análise dos fascículos de ambas as versões da Coleção, especialmente dos textos escritos por Zuza Homem de Mello – produtor, crítico musical e pesquisador da MPB – e por Flávio Aguiar – jornalista, escritor, poeta e professor universitário, presentes na terceira versão, buscaremos demonstrar as representações do samba paulista que foram apresentadas pela Coleção. O sambista Adoniran Barbosa destacou-se como cronista das mazelas, alegrias e peculiaridades da vida paulistana. Seus sambas ficaram conhecidos por apresentarem letras com expressões coloquiais e caipiras, gramaticalmente incorretas, tais como “nóis nem pode se alembrá”, “peguemos”, “cada táuba que caía”, entre outros, mas que davam o tom burlesco e característico de suas composições. Além de inserir o sotaque e gírias italianas em muitos de seus sambas, posto ser descendente de pais italianos. Exemplo de tal influência é sua composição denominada “Samba Italiano”, o qual traz a letra toda neste idioma. No disco presente em seu fascículo da primeira versão da Coleção, Adoniran figurou como o mais assíduo intérprete, com quatro sambas gravados. Na terceira versão, além de suas gravações solo, ele também cantou suas composições com Elis Regina e Gal Costa. Contrapondo-se à simples e coloquial forma de compor de Adoniran, está Paulo Vanzolini. Formado em zoologia, conciliou a vida de professor com a de músico boêmio, retratando na maioria de seus sambas as minúcias do dia-a-dia paulistano, sendo “Ronda” e “Volta Por Cima” os grandes destaques de suas composições. Como intérprete, Vanzolini teve apenas uma gravação escolhida para figurar no disco de seu fascículo. Trata-se de “Samba Erudito” (1980). Os textos presentes em ambas as versões da Coleção, além de apresentarem biografia de cada sambista focalizado, também destacavam a paulistaneidade de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini, afirmando que suas composições, em sua grande maioria, destacavam o cotidiano e as tradições de São Paulo. Na primeira versão afirma-se, após breve apresentação poética da cidade de São Paulo, que ambos os sambistas irão “mostrar a poesia que existe por trás do manto de poluição da dura São Paulo”.1008 No texto de Zuza Homem de Mello, da terceira versão, ele afirma que não 1008 BARBOSA, Adoniran; VANZOLINI, Paulo. História da Música Popular Brasileira. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p.1.

é possível se pensar em samba paulista sem mencionar a atuação destes dois bambas, embora haja outros nomes que contribuíram para a divulgação desse gênero musical, pelo fato de que “seus sambas têm o som da cidade”. 1009 O texto escrito por Flávio Aguiar segue a mesma linha analítica do texto de Zuza Homem de Mello e daquele da primeira versão, pois enfatiza o fato de ambos os sambistas terem retratado, com frequência, os diálogos da cidade de São Paulo.1010 Portanto, percebe-se que nos fascículos de ambas as versões da Coleção, foram utilizados elementos de representação que aproximavam ambos os compositores da cena paulista e reafirmava-os como retratistas do cotidiano da capital paulista. Com isso, a Coleção buscava reforçar seu caráter plural e heterogêneo. Elementos que sustentavam o objetivo de seu projeto editorial de lançar uma coleção intitulada História da Música Popular Brasileira, ou seja, uma coleção que deveria trazer a lume a história do cancioneiro nacional em suas diversas expressões musicais. No entanto, apesar de focalizar Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini como sendo representantes do samba paulista, as composições de ambos se aproximaram estilisticamente do chamado paradigma do Estácio, ou seja, se aproximavam do samba que era feito nos morros cariocas. A influência do samba carioca nas composições de Adoniran Barbosa se explicita no início de sua trajetória artística quando, “com influência confessa das canções em voga no Rio de Janeiro”, o sambista sai do anonimato e ganha o concurso de melhor marcha do ano, em 1935.1011 Dez anos depois, Adoniran volta a fazer parte do cenário carioca e protagoniza um filme, fazendo valer sua veia artística, visto ter atuado como ator nas rádios de São Paulo antes e/ou juntamente com sua carreira de cantor/compositor. Ainda na década de 1940, ele compõe quatro canções em parceira, as quais, segundo Dmitri C. Fernandes, são de “estilo carioca de Ismael Silva”. Ademais, o autor também afirma que a crítica musical da época, após o grupo Demônios da Garoa ter relançado com sucesso duas composições de Adoniran que 1009 MELLO, Zuza H. de. O som de São Paulo em ritmo de samba. História da Música Popular Brasileira. Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. Grandes Compositores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.2. 1010 AGUIAR, Flávio. Fiapos de conversa evocam o passado que não volta mais. História da Música Popular Brasileira. Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. Grandes Compositores. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.7. 1011FERNANDES, Dmitri C. Adoniran Barbosa e as metamorfoses do samba de São Paulo. ArtCultura, Uberlândia, v. 11, n. 18, p. 207-226, jan-jun., 2009, p. 210.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

53 9

não se destacaram quando lançadas, quais sejam, “Saudosa Maloca” e “Samba do Arnesto”, reconheceu o bamba paulista como um ‘legítimo’ artista, que compõe com um “típico sabor de morro”1012. Em uma matéria do jornal Diário da Noite, escrita por J. Pereira, a qual é apresentada por Dmitri C. Fernandes, o jornalista assim expõe sua análise a respeito dos sambas de Adoniran Barbosa que tinham sido reinterpretados pelo grupo supracitado: O sucesso dessa composição de Adoniran Barbosa é merecido. É número de sabor nitidamente caboclo, no colorido, nos versos. (...) O curioso é que na gravação dos Demônios da Garoa a interpretação do samba tira dele muito daquele sabor típico de morro. No entanto, foi a gravação que pegou, isto é, que alcançou sucesso. A gravação de Adoniran, na Continental, realizada há muito tempo, passou despercebida. E, paradoxalmente, é a que mais fielmente retrata o tema explorado pelo autor, pois ele soube, através do linguajar do malandro colored das malocas, dos morros, transmitir precisamente aquela poesia bárbara, porém muito humana do samba. (...) A gravação de Adoniran é mais sincera. O samba é mais samba. (...) o gosto do público é caprichoso. Uma gravação editada anteriormente, com a mesma música, de sabor e coloridos mais autênticos, não despertou a atenção de ninguém. Gravada posteriormente alcança sucesso inesperado. Os que apreciam o nosso samba autêntico, puro, sem os artifícios modernos, que sem dúvida o embelezam mas lhe tiram a autenticidade, não devem deixar de ouvir o disco de Adoniran, quer pela face de Saudosa Maloca, quer pelo lado de Samba do Arnesto.1013

No pequeno excerto destacado anteriormente, explicita-se o viés ideológicointerpretativo que pautou a grande parte da crítica musical, especialmente a carioca, qual seja, a de que o samba “puro”, de “raiz”, o nacionalizado, era aquele feito em terras cariocas, de preferência nos morros. Assim sendo, o sambista consegue reconhecimento da crítica quando se aproxima do samba “autêntico” dos morros. E para reforçar a ideia de que as composições de Adoniran estavam intimamente ligadas 1012 Ibid., p. 214. 1013 Ibid., p. 214.

com o que se produzia musicalmente na antiga capital do país, o bamba irá selar parceria em uma composição com Vinicius de Moraes, destacado nome da boemia e música cariocas. Além de, no ano de 1965, “Trem das Onze” ter sido premiada como o melhor samba do carnaval no IV centenário do Rio de Janeiro. No entanto, a estreita ligação de Adoniran com o samba do morro carioca não deve ser vista como uma anulação artística do sambista em detrimento de seu reconhecimento perante os críticos musicais, pelo contrário, ao longo de sua carreira o bamba conseguiu que seus sambas fossem reconhecidos como sendo paulistas, tendo, portanto, características próprias. E se Adoniran Barbosa foi sendo, ao longo de sua carreira, identificado especialmente com o samba do Estácio, até conquistar sua autonomia artística e ser reconhecido pela crítica, Paulo Vanzolini foi aproximado do samba carioca nos textos das duas versões da Coleção, tanto de forma direta quanto indiretamente, nos títulos e intertítulos, assim como nas linhas textuais. Na primeira versão um dos intertítulos denomina-se: “O samba do crioulo branco: com vocês, Dr. Paulo Vanzolini” e as linhas subsequentes destacam a própria fala do sambista afirmando que ele “gostava mesmo era de samba de crioulo”, por isso fez “muito samba de raiz, samba de crioulo”.1014 A junção dos termos ‘crioulo’ e ‘branco’ em um dos intertítulos do texto do fascículo, representa a ideia que esteve presente ao longo das linhas textuais, qual seja, a de que, mesmo sendo de São Paulo, vindo da classe média e sendo branco, Paulo Vanzolini se aproximava do samba feito nos morros cariocas, pelos negros, especialmente por aqueles sambistas do Estácio. Posteriormente, a própria fala de Vanzolini, transcrita no texto, reforça a imagem do sambista próximo ao paradigma do Estácio. Além disso, em um box escrito por Fernando Pessoa Ferreira, ele afirma que Vanzolini foi “um dos compositores que mais influenciaram Chico Buarque”. Exageros à parte, a frase pode ser mais um ilustrativo do esforço em aproximar o sambista paulista do cenário musical carioca. E na terceira versão da Coleção, o título “Samba de crioulo na boca de branco, temperando a malandragem paulistana”, presente na parte ‘MPB Pesquisa’ mais uma vez deixa claro os nortes estético-ideológicos seguidos pelo lançamento da Abril Cultural. A definição do título é destinada a Paulo Vanzolini que, para a Coleção e 1014 BARBOSA, Adoniran; VANZOLINI, Paulo. História da Música Popular Brasileira. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 8.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

54 1

seus ideólogos – visto serem os responsáveis pela sessão ‘MPB Pesquisa’ do fascículo – apresenta estreita relação artística com os ‘crioulos’, os quais seriam os sambistas dos morros cariocas e compositores de sambas ‘nacionalizados’, pautados pelo chamado Paradigma do Estácio.1015 Desta maneira, a Coleção explicita o norte ideológico que foi dado ao seu lançamento, pois mesmo aqueles sambistas focalizados que não eram cariocas, de uma forma ou de outra, se aproximaram do samba feito nesta região. Ademais, focalizá-los era, talvez, uma forma de reforçar a ideia de que tratava-se de um lançamento musicalmente plural, buscando assim levar o leitor/ouvinte a assimilar e compactuar com tal ideia a respeito do lançamento da Abril Cultural. Portanto, por meio da análise de ambos os fascículos podemos perceber que a Coleção, por meio de seus assessores e/ou autores dos textos dos fascículos, fez uso de elementos de representação que aproximavam ambos os bambas da cena paulista, mas também buscou aproximá-los do samba do Estácio, feito nos morros cariocas e, em sua maioria por negros. Estratégia de representação que se mostrava compatível com a ideia de samba “tradicional”, “de raiz” que pautou os lançamentos dos fascículos, assim como a escolha dos sambistas que fariam parte do lançamento da Abril Cultural. Conclusão Portanto, apesar de focalizar sambistas de terras paulistas, eles foram a minoria, sendo uma exceção à regra. A regra, ou seja, o foco central da Coleção era o samba feito em terras cariocas, era aquele que havia se nacionalizado, que recebeu a alcunha de “tradicional”, “puro”, “de raiz” e que seguia o paradigma do Estácio. E, segundo este paradigma, os sambas de outras regiões brasileiras continuavam a receber denominações locais, como samba paulista, baiano etc., de modo que somente àquele feito em terras cariocas foi dada a denominação de nacional. Ademais, de acordo com essa concepção, destacam-se nomes que foram vistos como representantes do “samba nacionalizado”, sendo a maioria deles moradores dos 1015 O conceito de Paradigma do Estácio foi trabalhado por Carlos Sandroni em seu livro Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed: Ed. UFRJ, 2001.

morros cariocas, negros e/ou ligados às escolas de samba, como Cartola, Ismael Silva, Zé Kéti, Monsueto, Ataulfo Alves, Assis Valente, Nélson Cavaquinho, entre outros. Portanto, a ideia de que o samba “nacionalizado” e “autêntico” era aquele “do morro” esteve presente em diversos textos dos fascículos da Coleção, além da ênfase que se dá aos sambistas que pertenciam a esta região geográfica, assim como àqueles ligados às Escolas de Samba surgidas nos morros cariocas, inclusive com um fascículo exclusivo às composições de samba-enredo. Mostrando assim, a visão de samba que esteve presente nos fascículos lançados pela Abril Cultural. No entanto, a publicação contemplou também aqueles sambistas que não se encaixavam nessa característica, os quais haviam se destacado na cidade carioca e pertenciam à classe média, como Noel Rosa, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Herivelto Martins, Dolores Duran e Tito Madi. Tal fato pode ser justificado por dois motivos principais: primeiro, pela importância que tais sambistas tiveram para o desenvolvimento da música popular brasileira, contribuindo para que o samba fosse difundido e/ou porque se destacaram em uma de suas vertentes, como no sambacanção. E, segundo, pelo caráter heterogêneo da Coleção. Apesar de contar com profissionais que acreditavam e defendiam que a “pureza”, a “autenticidade” e a “tradição” do samba vinham dos morros cariocas, havia também aqueles que acreditavam que a roupagem mais moderna do gênero, caracterizado pelo samba urbano carioca, não diminuía a qualidade artística das composições. Portanto, a visão de que o samba carioca era o símbolo nacional esteve presente em ambas as definições deste gênero musical, o que justifica que os sambas cariocas tenham predominado na Coleção, em detrimento da pouca ênfase e pouca visibilidade que foi dado aos sambas compostos por sambistas de outras regiões. A predominância dos sambas cariocas pôde ser percebida, além do amplo espaço dado na Coleção aos sambistas que fizeram carreira artística na antiga capital do país, pela abordagem dada ao samba nos dois fascículos exclusivos ao gênero lançados na terceira versão da Coleção. Um deles denominava-se apenas Samba e contava com texto assinado por José R. Tinhorão, intitulado “Uma tradição em contínuo processo de refinamento”. No entanto, ao tratar do samba como uma ‘tradição’ a qual está refinando-se ao longo do tempo, o texto do fascículo não faz menção ao samba feito pelos paulistas, como os próprios focalizados, Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini, nem a outros que também se destacavam no cenário musical paulista, como Germano Mathias, Eduardo Gudin, Henricão, entre outros. O

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

54 3

primeiro gravou seu disco de estreia no ano de 1956 e no ano seguinte lançou seu LP intitulado “Germano Matias, o sambista diferente”, recebendo os prêmios "Roquette Pinto" e "Guarany". Nos anos seguintes lançou diversos LPs (1959, “Hoje tem batucada”; 1962, “Ginga no asfalto”; 1970, “Sambas pra seu governo” (c/ Demônios da Garoa); 1968, “O Catedrático do Samba”; 1965, “Samba de branco”; 1973 “O Catedrático do samba 2”; 1971, “Samba é comigo mesmo”, além de diversos compactos simples e CDs, estes lançados posteriormente à Coleção.1016 O compositor Eduardo Gudin iniciou sua carreira nos anos 1960, mas lançou seu primeiro LP “Eduardo Gudin”, em 1973. Dois anos depois estava lançando seu segundo disco, intitulado “O importante é que a nossa emoção sobreviva”, que seria o mesmo título daquele lançado em 1976, com o acréscimo dos algarismos ‘II’. A partir de então, a cada dois ou três anos, Gudin gravou um LP, marcando seu nome na história da música popular brasileira, tendo inclusive, idealizado o I Festival Universitário da TV Cultura, em 1979. Neste Festival foram revelados diversos artistas da vanguarda paulista como Arrigo Barnabé, entre outros. 1017 No que se refere ao sambista Henricão, destaca-se que sua trajetória artística se iniciou no final dos anos 1930. Nesta década lançou diversos discos 78rpm, mas aumentou o número de seus lançamentos na década seguinte, com seis discos no total, diminuindo para três na década seguinte. Seu primeiro LP, intitulado “Henricão Recomeço” só foi produzido na década de 1980, porém sem muita repercussão na mídia. Apesar dos altos e baixos em sua carreira artística, o sambista firmou parceria com diversos compositores, dentre eles Nélson Cavaquinho, com quem fez o samba “Não faço vontade a ela”, ao lado Rubens Campos, além de ter descoberto e feito parceria (entre o final dos anos 1930 e início dos anos 1940) com a cantora Carmen Costa, uma das mais assíduas intérpretes das composições de Henricão.1018 Ademais, o disco do fascículo Samba não apresenta nenhuma samba feito por compositores fora do cenário carioca. Assim, os sambas presentes no disco são: “Pelo Telefone” (Donga e Mauro de Almeida); “Ai, Ioiô” (Henrique Vogeler e Luis 1016 Informações disponíveis em: . Acesso em 31 out 2015. 1017 Informações disponíveis em: . Acesso em 31 out 2015. 1018Informações disponíveis em: . Acesso em 01 nov 2015.

Peixoto); “Jura” (Sinhô); “Se Você Jurar” (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves); “Rapaz de Bem” (Johnny Alf); “Chega de Saudade” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes); “Influência do Jazz” (Carlos Lyra); “Piedade” (domínio público) e “Cotidiano” (Chico Buarque). Além de não tratar de sambistas de São Paulo no fascículo exclusivo ao samba nem apresentar composição desta região no disco do referido fascículo, naquele que tratou das escolas de samba e sambas de terreiro também não foi versado sobre as escolas de samba paulistas e nem sobre suas produções. O disco foi composto pelas seguintes composições: “Natureza Bela” (Henrique Mesquita e Felisberto Martins) para o carnaval de 1936, com a Unidos da Tijuca; “Brasil, Fonte das Artes” (Djalma Costa, Éden Silva e Nilo Moreira), de 1957, para Acadêmicos do Salgueiro; “Garças Pardas” (Zé da Zilda e Cartola); “Meu Drama (Senhora Tentação)”, da Império Serrano para o carnaval de 1955; “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato” (Batista da Mangueira, Darci e Luís) samba que deu o título de campeã para a Estação Primeira de Mangueira, no ano de 1967; “Quantas Lágrimas” (Manacéia); “Exaltação a Tiradentes” (Mano Décio, Estanislau e Penteado), samba que sagrou a Império Serrano campeã do carnaval de 1949; “Sou Imperial” (Avarese); “O Vale do São Francisco” (Cartola e Carlos Cachaça), a qual deu mais um título à Mangueira, em 1948; “Exaltação à Bahia” (Glória e Graças à Bahia) (Silas de Oliveira e Joacir Santana), samba-enredo da Império Serrano, em 1966; “Tudo Menos Amor” (Monarco e Walter Rosa); “Ouro, Desça do Seu Trono” (Paulo da Portela) e “Milréis” (Candeia e Noca). Portanto, foram selecionadas apenas composições que fizeram parte do carnaval carioca e sambas compostos por sambistas ligados intimamente ao meio carnavalesco do Rio de Janeiro. No entanto, o carnaval paulista há muito era representado por um dos mais destacados nome do carnaval, qual seja, Geraldo Filme. Este desde o início de sua trajetória artística esteve ligado ao universo carnavalesco, alçando a escola de samba Vai-Vai ao posto de campeão, com o samba-enredo "Solano, vento forte africano", o qual homenageava o poeta Solano Trindade. Ademais, posteriormente fundou a Escola de Samba Unidos do Peruche, para a qual compôs o samba-enredo "Samba de bumbo de Pirapora". Fora do meio carnavalesco Geraldo Filme participou do LP produzido pelo dramaturgo Plínio Marcos, intitulado “Nas Quebradas do Mundaréu”, de 1974 e seis anos depois gravou seu próprio disco “Geraldo Filme”. E em 1982, em

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

54 5

parceria com Tia Doca e Clementina de Jesus, gravou o LP "Canto dos escravos".1019 Portanto, antes e mesmo no período de lançamento da Coleção, sambistas de São Paulo estavam produzindo seus discos e divulgando seus trabalhos. Fato que refutaria a ideia de que não receberam amplo destaque assim como os sambistas cariocas pelo fato destes já terem estabelecido sua arte no gosto social e no mercado fonográfico, visto que os paulistas também estavam em atividade. A escolha de sambistas em detrimento de outros esteve muito mais ligado ao projeto estético-ideológico da Coleção do que com a divulgação ou não do compositor. A própria definição do termo ‘coleção’ explica que o lançamento da Abril Cultural foi pautado por escolhas, neste caso, da Abril Cultural – responsável pelo lançamento –, dos assessores e colaboradores envolvidos em sua produção, além de fatores externos que fogem ao alcance deste trabalho, como problemas com direito autorais, com a censura, entre outros. Assim, o termo ‘coleção’ remete ao Latim legere, o qual era relacionado com a agricultura, significando ‘colher’, ‘escolher’ e, posteriormente teve seu correlato atual originando da semelhança de função, visto que formar uma coleção também requer capacidade de escolha, daí o termo coligere, resultando no que conhecemos hoje como coleção. Esse termo está relacionado com a ideia de reunir, sejam objetos, documentos, livros, animais, plantas, pedras, entre outros. No entanto, deve-se distingui-lo da ideia de acumulação, a qual não há um objetivo, um propósito definido em acumular determinados objetos e afins, tal como há no ato de colecionar. Não se inicia uma coleção sem algum propósito, assim como não se lançam coleções no mercado sem que hajam diversos interesses investidos, incluso o da ordem comercial.1020 Fica claro, portanto, que o lançamento da Abril Cultural – apesar de se autodenominar como sendo a história mais completa e documentada da música popular brasileira e de contar com extenso e diversificado quadro de profissionais envolvidos em sua produção – tinha um norte ideológico e cultural a seguir, e, talvez por este seu viés ideológico deixou de focalizar sambistas de outras regiões do país, 1019 Informações disponíveis em: . Acesso em 31 out 2015.

1020 MILANI, Vanessa P. Samba em fascículos – vertentes do gênero na coleção História da Música Popular Brasileira em tempos de consolidação da indústria cultural brasileira. 2015. Dissertação. (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista, Assis, SP, 2015.

que se destacaram e mereciam um lugar na história da música nacional, tais como os sambistas paulistas citados e analisados anteriormente. No entanto, vale destacar que não focalizar e/ou dedicar amplo espaço ao cenário musical paulista foi uma escolha da Abril Cultural, bem como dos responsáveis pela elaboração e produção da Coleção, por motivos expostos anteriormente. Fato que não significa que a cena musical paulista deva ser relegada do universo do samba, pois ela também protagonizou o surgimento de sambistas ao longo do tempo, os quais contribuíram para que este gênero musical fosse difundido na sociedade brasileira. Além de também contar, assim como o Rio de Janeiro, com escolas de samba que foram responsáveis pela difusão do chamado samba-enredo. Portanto, muitos dos sambistas e/ou sambas paulistas, para além de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini, poderiam fazer parte de uma coleção que tinha como escopo trazer a lume a história da música popular brasileira.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

54 7

O PAÍS DAS MARAVILHAS AMERICANO As terras brasileiras de acordo com os guias para emigrantes Victor Gustavo de Souza Graduando em História Universidade Estadual Paulista (UNESP) campus de Assis Resumo O século XIX representou um grande momento político-social para a nação brasileira. Leis como a Eusébio de Queirós e do Ventre Livre apontavam para o fim da escravidão. Com a iminência desse fato, o país necessitava superar o trabalho compulsório e, para isso, recorreu à mão de obra imigratória. Nesse cenário de transformações encontram-se os guias para emigrantes, aparatos da política imigratória brasileira que visavam apresentar as características e vantagens de determinados locais do território para, assim, atrair o estrangeiro. Deste modo, o presente trabalho se propõe a analisar a campanha publicitária empreendida pelo Brasil na Europa através de tais guias. Palavras-chave: Imigração. Propaganda. Guias para emigrantes.

Introdução No Brasil, o trabalho escravo havia se firmado o principal logo nas primeiras décadas como colônia e ao longo de mais de trezentos anos os braços negros sustentariam a economia brasileira. Com o início do Oitocentos, discussões sobre a manutenção da escravidão começaram a ocorrer entre a elite nacional, sem, no entanto, causar grandes preocupações. Somente na segunda metade do mesmo século que os debates sobre a continuidade do sistema escravista se intensificaram, agitando diversos setores da sociedade. A partir de então o Brasil presenciou grandes mudanças, podemos destacar as gradativas medidas abolicionistas: a proibição do tráfico negreiro, em 1850; a Lei

do Ventre Livre, em 1871; a Lei do Sexagenário, em 1885; e, finalmente, a abolição total da escravatura em 1888. Quanto ao âmbito econômico, o café, com seu cultivo tendo se iniciado pelo Vale do Paraíba fluminense e, posteriormente, atingido a província de São Paulo, mostrava-se como potencial produto para substituir o açúcar na balança comercial. A união desses dois fatores, fim da escravidão e expansão cafeeira, serão, certamente, dois propulsores para o grande número de imigrantes que adentrariam nossas fronteiras, durante o último quartel do século XIX, episódio conhecido como a Grande Imigração. Diversas foram as tentativas de introduzir o trabalhador livre na economia brasileira, fato que viria a concretizar-se apenas com o surgimento de agremiações que se empenharam em desenvolver, de fato, uma política imigratória. Destacamos aqui a atuação da Sociedade Central de Imigração (RJ) e da Sociedade Promotora de Imigração (SP), as responsáveis pelas publicações dos guias selecionados. Essas instituições que, apesar de apresentarem divergências no que se refere ao direcionamento do estrangeiro, viram a propaganda como uma importante ferramenta para concretizar seus objetivos, alocar o imigrante em terras brasileiras. Através de uma intensa campanha publicitária que envolvia, além da publicação dos guias, jornais, folhetos e imagens, buscaram construir a imagem de um Brasil ideal para se viver e, principalmente, trabalhar. Transições O primeiro sinal que apontou para o fim da escravidão ocorreu com a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz (1850), que decretava a extinção do tráfico negreiro. Tal medida foi fruto de pressões britânicas, que desde as décadas iniciais de 1800 a Inglaterra defendia a emancipação do trabalho pelo mundo. Seus interesses, no entanto, não se moviam por razões humanitárias, mas, sim interesses econômicos. Diante da falta de empenho do Brasil em extinguir tal atividade e da ineficácia das medidas punitivas aos traficantes, os ingleses empreenderam uma caça marítima contra os navios negreiros brasileiros, tornando as relações entre os dois países mais espinhosas. A situação passaria para um novo nível a partir do dia 8 de agosto de 1845, quando a nação britânica torna o projeto Bill Aberdeen lei. Com essa medida, de acordo com Beiguelman, o governo britânico poderia empreender uma caça a

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

54 9

quaisquer navios brasileiros que ele considerasse suspeito de tráfico negreiro e submetê-lo a julgamento1021. Considerando que a imposição britânica não cessaria até o Brasil tomar uma medida definitiva em relação ao tráfico; e a soberania nacional já havia sido atirada ao lixo, a única solução foi ceder aos interesses ingleses. No plano político-econômico a lei foi alvo de protestos dos proprietários e dos traficantes de escravos. Independente das motivações, a cessação do tráfico negreiro foi o primeiro grande passo em direção ao trabalho livre. Outra lei promulgada no mesmo ano foi a Lei de Terras que, de maneira geral, promovia uma ordenação jurídica sobre as terras devolutas, transformando a terra no elemento principal da propriedade privada, relegando o escravo ao segundo plano. Assim como a Eusébio Queiroz, a Lei de Terras proporcionou condições para a superação do trabalho compulsório, enquanto a primeira vetava a entrada de cativos, a segunda favoreceu o ingresso de trabalhadores livres estrangeiros no território. Contudo, ela dificultou a possibilidade de obtenção de propriedade pelas classes menos abastadas, a fim de forçar o trabalhador a empregar sua mão de obra nas fazendas dos grandes senhores. Podemos sintetizar, portanto, as modificações que a Lei n° 601 trouxe para a sociedade brasileira no seguinte pensamento: “A renda capitalizada no escravo transformava-se em renda territorial capitalizada: num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa” 1022. Além da transição do escravismo para o trabalho livre, outra grande mudança ocorria no império: o café, em franca expansão, começava a substituir o açúcar como principal produto de exportação. O cultivo deste produto tropical iniciou-se pelo Vale do Paraíba fluminense, tendo se firmado na região por volta de 1830; alastrou-se pelo sudeste brasileiro até atingir as terras roxas do oeste paulista nas décadas finais do século XIX1023. 1021 BEIGUELMAN, Paula. A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos políticos. São Paulo: Pioneira, 1968, p. 26. 1022 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, p. 32. 1023 GONÇALVES, Paulo Cesar. Mercadores de Braços, Riqueza e Acumulação na Organização da Emigração Europeia para o Novo Mundo. São Paulo: Alameda, 2012, p. 127.

Sem a possibilidade de conseguir novos cativos vindos do outro lado do Atlântico a elite cafeeira temia pela falta de força trabalhadora. Essa preocupação refletiu-se na

intensificação

do deslocamento

interprovincial

de

escravos,

principalmente dos centros urbanos para as zonas rurais. Vale ressaltarmos que vinte e oito anos haviam se passado desde a Independência (1822), no entanto, às vésperas da terceira década de desligamento político com a metrópole Portugal, a mentalidade da sociedade brasileira ainda era colonial e não concebia o trabalho livre como solução viável para a crise. Assim como o aumento do tráfico interprovincial, o preço do cativo também se elevou e o trabalho livre tornava-se cada vez mais necessário, diante disso, as experiências com os imigrantes multiplicaram-se. Nessa busca por mão de obra destaca-se a figura do Senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro e seu sistema de parceria. As bases do sistema de parceria fundamentavam-se da seguinte maneira: cada família colona seria responsável pela cultivação de uma determinada área de pés café e o pagamento seria variável, ou seja, o imigrante receberia uma porcentagem do lucro líquido correspondente à venda do produto no mercado1024. O sistema representou, inicialmente, uma boa saída para os fazendeiros e não tardou para o senador expandi-lo com a criação da firma Vergueiro & CIA., sociedade pioneira que na introdução de estrangeiros. O sucesso da empreitada instigou mais proprietários da província de São Paulo a adotar o estrangeiro livre em suas terras (conjuntamente com o braço escravo, ainda a principal força de trabalho). Conseguiu, também, o apoio do governo provincial para suas atividades, a partir de então, com sua importância cada vez maior, a empresa de Vergueiro modificou significativamente os termos dos contratos, fato que resultaria em grandes desvantagens para os colonos. O furor inicial começou a ser substituído por conflitos nas fazendas parceiras e muitos eram os motivos: os fazendeiros reclamavam da falta de empenho dos estrangeiros; estes, por sua vez, declaravam-se vítimas da tirania de seus contratantes. Porém, a questão financeira tornou-se o principal foco de embates entre colonos e fazendeiros. Além do valor recebido pelos colonos variar conforme a venda no mercado, os colonos questionavam a honestidade dos fazendeiros, devido às nebulosas burocracias 1024 MENDES, José Sacchetta Ramos. Desígnios da Lei de Terras: imigração, escravismo e propriedade fundiária no Brasil Império. Salvador, 2009, p. 174.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

55 1

que sempre diminuíam o retorno dos trabalhadores. Outro agravante para os conflitos era o fato de que os estrangeiros já chegavam ao Brasil endividados. Primeiramente, o fazendeiro parceiro era o responsável pelo pagamento das passagens e outras despesas possíveis; em um segundo momento, enquanto o trabalho dos colonos não rendia lucros o suficiente para eles se manterem era o agricultor, igualmente, quem fornecia o suporte financeiro. Taxas cambiais e juros faziam a dívida aumentar e, finalmente, até os produtos de subsistência eram adquiridos nos armazéns dos fazendeiros com preços excessivos, deixando as famílias estrangeiras totalmente à mercê do patrão1025. A crise instalou-se nas fazendas parceiras e as revoltas tornaram-se constantes, a mais famosa ocorreu na principal fazenda de Vergueiro, Ibicaba, em 1857, liderada pelo suíço Thomas Davatz. O próprio Davatz, ao retornar para a sua terra natal, escreverá suas memórias relatando os ocorridos aqui no Brasil durante o período de sua “escravidão”, como ele mesmo declara Os colonos que emigram, recebendo dinheiro adiantado, tornam-se, pois, desde o começo, uma simples propriedade da Vergueiro & Cia. E em virtude do espírito de ganância [...] que anima numerosos senhores de escravos, e também da ausência de direitos em que costumam viver esses colonos na província de São Paulo, só lhes resta conformarem-se com a ideia de que são tratados como simples mercadorias, ou como escravos1026.

De fato, os cafeicultores — ao menos a maioria deles — viam os estrangeiros como escravos e não como parceiros. A mentalidade escravagista vigente na sociedade tornava difícil para o fazendeiro compreender que ele não detinha a pessoa do trabalhador, mas, sim, sua mão de obra. Dessa forma, com o descontentamento dos fazendeiros, juntamente com a repercussão das notícias sobre os maus tratos pela Europa, o sistema de Vergueiro viria a findar-se. Apesar de suas falhas merece destaque, pois foi pioneiro na introdução de imigrantes, além de pleitear recursos no governo, como o pagamento de metade das passagens dos estrangeiros. Com seu malogro, entretanto, o escravo firmava-se aos olhos dos fazendeiros, uma vez mais, como a única solução para seus problemas. 1025 MARTINS, op. cit., p. 63.

1026 DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil (1850). Tradução, prefácio e notas Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Martins: EDUSP, 1941, p. 72.

Durante os finais da década de 1870, debates acerca do tráfico interprovincial ganharam maior intensidade nas câmaras; ocorreu a elevação de impostos sobre os traficados, além do pagamento de multas por parte dos compradores1027. Alinhada à carência da força de trabalho, os produtores viam suas colheitas prejudicadas pelas precárias vias de comunicação, o escoamento da produção estava condicionado ao frete e os meios de transportes prejudicavam toda a vida econômica1028. O surto ferroviário demoraria até os anos 1870 para ocorrer, a partir de então modificaria fundamentalmente as condições de transportes do café e a própria economia. Pouco antes, por volta de 1860, iniciou-se, lentamente, a adoção de novos métodos de beneficiamento da produção cafeeira na região centro-oeste paulista, por outro lado, o Vale do Paraíba, já não produzia como antes e muitos eram avessos às novas tecnologias. A decadência que atingiu a região provocou uma crise financeira nos fazendeiros, enquanto a maquinaria se popularizava na década de 1870 e a mão de obra se tornava mais problemática, os produtores do Vale eram deixados para trás. O oeste paulista, a partir de 1870, passou a ser a mais importante região econômica do país, nesse momento o café era o principal produto da balança comercial brasileira, correspondia a mais da metade das exportações. Nos fins do Oitocentos a produção paulista superou a carioca e tornou o Brasil o maior exportador do mundo1029.

Sociedade Central de Imigração Como pudemos perceber a introdução do trabalhador livre em terras brasileiras não se mostrou das tarefas mais fáceis, além da preocupação dos cafeicultores do sudeste com a carência de mão de obra, o vazio demográfico que o Brasil enfrentava também era alvo de debates. Enquanto a manutenção do sistema escravista mostravase cada vez mais incerta, o elemento humano tornava-se cada vez mais necessário. Diante de tais fatores, surge uma das mais importantes instituições brasileira no quesito política imigratória, denominada Sociedade Central de Imigração (SCI). Formada em 14 de outubro de 1883 e inaugurada em 17 de novembro de 1883, 1027 SILVA, Ana R. C. da. Tráfico interprovincial de escravos e seus impactos na concentração da população na Província de São Paulo: Século XIX. São Paulo: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1992, p. 358. 1028 COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 206. 1029 GONÇALVES, op. cit., p. 128-129.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

55 3

constituía uma agremiação sem fins lucrativos que visava solucionar as problemáticas concernentes ao processo de imigração1030. Dentre seus principais membros destacam-se André Rebouças, André d’Escragnolle Taunay e Henrique B. Rohan, membros proeminentes do Império que se alinhavam aos ideais abolicionistas e republicanos. A SCI, no entanto, não simpatizava com a introdução de “qualquer” estrangeiro, os orientais, por exemplo, eram vistos como uma raça inferior ao europeu. Para Monteiro Mesquita, a formação da nacionalidade brasileira é o “grande tema do discurso” da SCI, segundo ele, a formação do sentimento nacional pairava sob um conflito entre o “velho’” e o “novo”; e seria apenas com a evolução da sociedade que este conflito se resolveria1031. Além da introdução do “imigrante ideal”, a SCI também buscava reformar as estruturas vigentes no país através da proposta de André Rebouças, chamada democracia rural, ou seja, esse grupo havia declarado guerra ao latifúndio e defendia o encorajamento da pequena propriedade. Para Rebouças o latifúndio era a marca de um tempo de “barbaria e de obscurantismo, um fato monstruoso, quer sob o ponto de vista econômico, quer sob o ponto de vista social”1032. De imediato pode-se concluir que tal projeto colocava em xeque os interesses da elite cafeeira paulista, uma vez que esta camada social via os imigrantes apenas como solução para a falta de mão de obra na lavoura. Para atingir seus objetivos a sociedade empreendeu uma campanha publicitária que visava tanto o exterior, “destinado ao imigrante e aos governos envolvidos”, quanto às estruturas nacionais, “visando convencer a sociedade brasileira das vantagens do imigrante para solução dos problemas nacionais” 1033. Dando início aos seus trabalhos, uma das primeiras iniciativas da SCI foi a criação de Sociedades Filiais (SFs). Estas sociedades seguiam as diretrizes gerais da 1030 VASSILIEFF, Irina. A sociedade Central nos fins do século XIX e a “Democracia Rural”. Tese de Doutorado apresentado a Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (USP). 1987, p. 28. 1031 MESQUITA, Sergio L. Monteiro. A Sociedade Central de Imigração e a política imigratória brasileira (1883-1910). Dissertação de Mestrado apresentado a Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 2000, p. 113-114. 1032 REBOUÇAS, André. A agricultura nacional, 1883, apud HALL, Michael M. Reformadores de classe média no Império Brasileiro: A Sociedade Central de Imigração. Rev. História (USP), São Paulo, n° 105, p. 153, 1976. 1033 VASSILIEFF, op. cit., p. 11.

Central, mas também possuíam autonomia e esquemas próprios que se adequavam às diferentes realidades regionais. Esse contexto regional empreendia às SFs uma maior aproximação com o estrangeiro, elas deviam ajudá-los a entender as leis, as instituições e os costumes locais, entre outras funções. Os atrativos naturais que o Brasil oferecia também foram explorados pelas propagandas da SCI. Como demonstra Monteiro Mesquita1034, logo nas primeiras expedições, o Brasil havia sido retratado como um local edênico, de terras férteis, com cascatas paradisíacas e inúmeros recursos naturais. Nem a propaganda nem a atuação constante dos membros da Central foram suficientes para concluir o projeto da democracia rural, excetuamos apenas as províncias sulistas, nessa região a SCI conseguiu maior difusão de seus ideais e constituiu importantes núcleos coloniais, como o de Blumenau, por exemplo. Diversos foram os empecilhos que barraram suas propostas, o principal, certamente, foi a força dos cafeicultores do sudeste. Com o surgimento da Sociedade Promotora, a SCI se tornaria, cada vez mais, um grupo isolado de uma elite que tinha bastante poder comunicativo, mas, na prática, era ineficaz; um grupo com boa retórica e bons membros, mas sem meios para executar suas propostas1035. Sociedade Promotora de Imigração Como já demonstrado, a proposta geral da Central de fim do sistema da grande lavoura diferia-se, significativamente, dos interesses dos cafeicultores paulistas e estes não se curvariam aos interesses de ninguém, eles empreenderiam sua própria política imigratória. A onda verde continuava a crescer, logo, também sua força. Através de membros da Sociedade de Imigração de São Paulo (filial paulista da SCI) surge uma nova instituição na busca por estrangeiros, a Sociedade Promotora de Imigração (SPI). Formada no dia 2 de julho de 1886 por importantes cafeicultores paulistas, a Promotora não possuía vínculos com a Central e adotou uma política de “braços para 1034 MESQUITA, op. cit., p. 118-120.

1035 Hall, op. cit., p. 164-165.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

55 5

a lavoura”1036. Alguns dos membros de maior destaque são Martinho da Silva Prado Junior; Nicoláu de Souza Queiroz; Antonio Queiroz Telles, o Visconde de Parnaíba; Rafael de Aguiar Paes de Barros. Esse grupo dominava não apenas o cenário econômico, mas, também, o político. Na época em que ocorreu a fundação da instituição o presidente da província era o senhor Antônio de Queiroz Telles, Barão da Parnaíba, e seu vice Francisco Antônio de Souza Queiroz Filho, ambos membros proeminentes da SPI. Temos, ainda, a figura de Antônio da Silva Prado, irmão de Martinho Prado Júnior, atuando como ministro da Agricultura. Juridicamente uma instituição privada e sem fins lucrativos, seus diretores não recebiam remuneração, contudo, todo o capital de financiamento provinha dos cofres públicos. Independente disso, o Estado não interferia nas atividades da Promotora, sua única função era liberar o capital para o financiamento das passagens, essa configuração agilizava o processo imigratório, pois não dependia da máquina burocrática estatal1037. Ao longo de seus nove anos de atuação (1886-1895), a SPI tornou-se o órgão mais importante na introdução de imigrantes no Brasil, através de sua inovadora política de subvenção de passagens foi a responsável por fixar o maior número de estrangeiros no Império: a quantia de 266.732 imigrantes1038. Além das passagens gratuitas, benefícios como a concessão de lotes de terra com diferentes maneiras para serem quitados e abrigo nas hospedarias também estiveram presentes durante a atuação da Promotora. Entretanto, essa concessão de benefícios seguia uma rígida política administrativa da Sociedade, que optou por trazer famílias completas para trabalhar nas fazendas de café, inclusive idosos ou incapazes para o trabalho1039. 1036 PETRI, Katia C. “Mandem vir seus parentes”: A sociedade promotora de imigração em São Paulo (1886-1896). Tese de Mestrado apresentado a PUC- SP, 2010, p. 49. 1037 SANTOS, Ivison P. A Sociedade Promotora de Imigração como forma de compensação pela libertação dos cativos (1886 - 1895). Revista De Economia Política e História Econômica. Ano 07. Número 21. Junho de 2010, p.34. 1038 BIANCO, Maria Eliana Basile. A Sociedade Promotora de Imigração (1886 – 1895). Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História, São Paulo, 1982 apud Santos, op. cit., p. 37. 1039 SANTOS, 2010 op. cit., p. 45.

Essa opção é explicada mais por razões subjetivas do que objetivas. Martinho Prado acreditava que ao atrair famílias inteiras, elas encontrariam locais para se assentarem mais rapidamente e trabalhariam de maneira mais empenhada, considerando que seus familiares estariam felizes por estarem juntos e poderiam ter uma renda maior. A real intenção da Promotora, na verdade, segundo Santos, era evitar o menor índice de reimigração, pois esperavam que as famílias se apegassem à terra1040. A massiva campanha publicitária, fora e dentro do país, contribuiu para o aliciamento dos trabalhadores: manuais, folhetos, mapas, iconografias, periódicos, entre outros meios, foram utilizados na atração do imigrante. Destacamos aqui que em 14 de setembro de 1886 foram liberados 12 contos de réis que deveriam auxiliar a impressão de 60 mil exemplares de material de divulgação da província de São Paulo e que deveriam ser traduzidos para o alemão e italiano1041. Com todo esse aparato dando suporte às ações da Promotora, é notável a importância que esta havia adquirido. Sua influência não ficou restrita apenas à região paulista, passando a agir como um grupo de pressão à atuação da Central, um novo momento surge para a Promotora quando o Barão de Parnaíba propõe que a sociedade fosse a única instituição de recrutamento de imigrantes, eclipsando, assim, a sociedade de Taunay1042. Por fim, consolidando sua preponderância na introdução de trabalhadores, outra grande vitória para os latifundiários do café ocorreu com o contrato estabelecido com o governo provincial em 29 de fevereiro de 1888, a partir desse momento a SPI tornou-se responsável pela Hospedaria de Imigrantes, elevando-a ao status de agência oficial de imigração1043. Considerações Finais

1040 Ibid., p. 46. 1041 PETRI, op. cit., p. 57. 1042 VASSILIEFF, op. cit., p. 84. 1043 SANTOS, op. cit., p. 40-41.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

55 7

Durante o século XIX o Brasil presenciou grandes mudanças nos setores social e econômico, podemos destacar fatores como: a proibição do tráfico negreiro, em 1850; a abolição da escravatura, em 1888; o café tornando-se o principal produto da balança comercial; e o grande fluxo de imigrantes que adentraram nossas fronteiras. Nesse cenário de transformações os guias para emigrantes surgem como aparatos da política de imigração brasileira dos séculos XIX e XX, tendo como objetivos apresentar as características e vantagens de determinados locais para, assim, atrair o estrangeiro. A propaganda utilizada nesse período por diversas regiões do Brasil revela que o país buscava diferentes maneiras para se adequar ao fim da escravidão e suprir a falta da mão de obra, fosse uma mudança com objetivos à longo prazo ou algo mais imediato. E a grande diferença entre as duas sociedades aqui mencionadas fundamentava-se no papel conferido aos imigrantes europeus. Enquanto a Sociedade Central tinha uma visão eurocêntrica e buscava imigrantes para formar núcleos coloniais e modernizar a sociedade brasileira; a Promotora, por sua vez, interessava-se em mão de obra familiar para o cultivo do café em grandes latifúndios. Essas associações foram as maiores responsáveis pelo fluxo contínuo de imigrantes, fruto da intensa propaganda aliada aos diversos fatores pelos quais a Europa passava. Instrumentos dessa publicidade, os guias foram traduzidos para línguas como francês, italiano e alemão, serviram de vitrine para o Brasil, dotados de discursos grandiloquentes, exaltavam as possibilidades que o imigrante teria caso se fixasse no Brasil. Ainda não é possível chegar a conclusões mais aprofundadas, no entanto, podemos afirmar que os guias para emigrantes são ricas fontes para compreender a Grande Imigração, mas essas ainda encontram-se pouco exploradas.

A História Oral como Método de Pesquisa das Práticas e cultura Escolar Wansley F. de Freitas (UEMS/Paranaíba) Renata Lourenço (UEMS/Paranaíba) Resumo O objetivo deste trabalho é demostrar os mecanismos e técnicas da História Oral, apoiados em autores como: Fiorucci (2010), François (2006), Freitas (2006), na pesquisa historiográfica das práticas e da cultura escolar em uma pequena cidade do Sudeste Goiano. Contamos ainda com os referenciais da etnografia apontados por Oliveira (2000), que tem como caminho metodológico a arte de ouvir, olhar e escrever, que aponta para possibilidades de observação mais acuradas de modo a “dar” vozes aos sujeitos, considerados até o surgimento da Nova História Cultural (NHC), “dominados” (mulheres, proletários, marginais etc.), que no caso da pesquisa em andamento são os alunos e professores, da Educação de Jovens e Adultos (EJA). A conclusão é no sentido de definir a história oral, dentro dos paradigmas da nova história e dos meios de pesquisa como sendo uma das metodologias mais adequadas a serem utilizadas no campo historiográfico. Palavras-chave: Práticas e Cultura escolar. História Oral. Educação de Jovens e Adultos. INTRODUÇÃO Esse trabalho é parte integrante da pesquisa, em curso, de mestrado em Educação na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) – Unidade de Paranaíba – intitulada “A historia oral como mecanismo de Pesquisa das Práticas e da Cultura Escolar de Uma Instituição de Ensino”. A história Oral tem um papel de suma importância na pesquisa historiográfica, pois a mesma estabelece uma relação dentro do campo das práticas e da cultura escolar, possibilitando assim, analisar como os alunos e professores se movimentam dentro da instituição pesquisada, se há a

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

55 9

prática do diálogo entre ambos e se há por parte do professor a preocupação do ouvir os alunos na construção de uma relação interpessoal. No que se refere à cultura escolar recorreremos aos documentos escolares, que passam por despercebidos, mas revelam e muito sobre a característica da instituição como: Projeto Político Pedagógico (PPP), livro de Atas, diários de classe, Matrículas, Leis e Decretos, que servirão de fontes de análise como intermédio dos fatos narrados com o que é transcrito no papel. O que se pretende comprovar, por meio do método da História Oral, que as práticas dos professores e instituição escolar, dentro do que está sendo chamado aqui de “cultura escolar”, podem contribuir para a construção de sujeitos emancipados. Para esta análise recorremos a bibliografias como: Fiorucci (2010), François (2006), Freitas (2006), Bosi (1994), Certeau (2013), Dominique Juliá (2001) e Paulo Freire (1970, 1992, 1997). A pesquisa está, pois delimitada, dentro do campo relacional que procura realizar os dados empíricos coletados (fontes escritas) e os elementos teóricos capazes de explicá-los, à priori, e nos clareando progressivamente o objeto da pesquisa. O sentido dado a esta pesquisa é abordado um método de pesquisa que se apropria de um artifício diferenciado que ultrapassa a pesquisa em documentos, mas produzindo fontes com base na história oral através de entrevistas no campo das narrativas, da coleta de dados de ordens diversas, como por exemplo, a apropriação de novos recursos como meios eletrônicos, entre outros. Não se pode ver esta metodologia de pesquisa simplesmente como mais um método que o campo da pesquisa historiográfica nos proporciona, mas pretende ir além, a de estabelecer um paralelo com a história cultural apoiado Burke (1992, 2011) e Le Goff (2012), por meio da observação e análise de dados pesquisados, com o forte suporte teóricometodológico aludido. Participar da história de vida dos pesquisados, bem como no seu viés temático, sobre suas experiencias escolares, proporciona a reflexão do pesquisador ao escrever sobre sua pesquisa, expondo suas ideias de acordo com que é narrado e observando dentro do campo pesquisado. É refletir sobre como os alunos da Educação de Jovens e Adultos participam de uma cultura escolar cotidiana com o intuito de desvelar como educadores e educandos se dialogam na construção de suas aprendizagens. Mais uma

vez enfatizamos o viés da cultura escolar que ultrapassa a relação estreita de educadores e educandos. Enfim, a História Oral se faz presente na perspectiva de acoplar os relatos dos sujeitos ao artifício social, cultural e histórico aos processos transmitidos e identificados por meio das práticas cotidianas e por meio da cultura escolar. Todo esse processo vislumbra a descobertas vivenciadas por todos os momentos que por motivo de rotina passam despercebidos pelos professores e alunos.

1.

A HISTORIA ORAL COMO MÉTODO DE PESQUISA A partir dos anos 70, começou a surgir, mesmo como uma via alternativa na

corrente historiográfica, mas como meio de preocupação e interrogação, levando grandes pesquisadores a se dedicarem a um novo método das fontes orais. Esse movimento não se formou de uma única escola histórica, mas de várias correntes preocupadas com a questão da memória. As mudanças de paradigmas ocorridos na sociedade advindas da globalização e com o avanço das novas percepções historiográficas nas décadas de 1960-1970, fugindo da história tradicional, fez emergir a Nova História, popularizada por Jacques Le Goff, mas já mencionada por outros históriadores pertencentes a Revista dos Annales de acordo com Burke (1992). História Nova A expressão foi popularizada pelo livro La nouvelle histoire (1978), editado por Jacques le Goff e outros, mas já havia sido reivindicada, anteriormente, para os Annales. Braudel havia falado de uma História Nova em sua aula inaugural no Collège de France (1950). Febvre, por outro lado, usara frases como ‘uma outra história’ para descrever o que o grupo dos Annales tentava fazer.(BURKE, 1992, p. 93)1044. Com o rompimento do tradicionalismo a história, passou a fecundar a “história vista por baixo”, que se vangloria dos feitos dos chamados homens comuns, das classes populares, havendo uma preocupação na arte de ouvir quem antes eram considerados esquecidos e que passavam despercebidos pelos historiadores 1044 BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989. Tradução Nilo Odália. 2 edição. São Paulo. Unesp, 1992.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

56 1

tradicionais. Diante do movimento voltado para a arte de valorizar a cultura popular, a história oral foi criando forças dentro do campo da pesquisa histórica. O movimento da história vista de baixo também reflete uma nova determinação para considerar mais seriamente as opiniões das pessoas comuns sobre seu próprio passado do que costumavam fazer os historiadores profissionais. O mesmo acontece com algumas formas de história oral. (BURKE, 2011, p. 17)1045. A história oral delimitada por Fiorucci (2010), como nova linha de estudos culturais, liga-se a uma nova modalidade de pesquisa que se afastava puramente dos esboços quantitativos levando em conta novos objetos, como metodologias e fontes se alinhando [...] à nova linha de estudos culturais que se afastava dos estudos puramente estruturais e quantitativos, levando em conta novos objetos, metodologias e fontes. Philippe Joutard explica que a história oral apareceu com três inspirações iniciais, que seriam: 1) ouvir a voz dos excluídos; 2) trazer à tona as realidades indescritíveis; 3) testemunhar as situações de extremo abandono. Nesse sentido, dava força àqueles que não a tinham e possibilitava revelar o que não se encontrava nos documentos escritos.(FIORUCCI, 2010, p. 7)1046. Diante das três inspirações de Philippe Joutard, citado acima por Fiorucci (2010), passou a denominar novos conceitos como a Micro-história. A história deixou de ficar presa aos grandes heróis e documentos, e se passou a ouvir os participantes que anteriormente nem apareciam em livros, e tão pouco nos feitos históricos. De acordo com Fiorucci (2010, p. 12) “A história oral é hoje uma dimensão da história, sendo um objeto recorrente. Deixou de ser apenas fonte, como era nos anos 1970, passando à metodologia da história”. A história oral é uma das fontes mais utilizadas em pesquisas de campo, ou pesquisa social, etnográfica, pois não é o simples fato de ouvir ou gravar o entrevistado, mas perfaz todo um caminho e preparo para que se consiga exito em desvelar outras possibilidades de se enxergar o “real”, em outras diversas dimensões. O pesquisador ao participar da sociedade observada, assume o papel de interação e aceitação dos sujeitos, isto é, passa a ser parte integrante do grupo 1045 BURKE, Peter. A escrita da História: Novas Perspectivas. Tradução Magda Lopes.1 edição. São Paulo. Unesp, 2011. 1046 FIORUCCI, Rodolfo. História oral, memória, história. Revista História em Reflexão. Dourados: UFGD. Vol. 4, n. 8, 2010, p. 01-17.

estudado, naturalmente poderá recorrer às suas anotações em seu diário de campo, todos os movimentos dialógicos ou não. Para Oliveira (2000) este movimento iniciase nos termos do olhar e do ouvir, como parte integrante da primeira etapa, sendo a de escrever como a segunda etapa do trabalho etnográfico, parte significativa dos métodos previstos pela História Oral: [...] Nestes termos, olhar e o ouvir seriam partes da primeira etapa, enquanto o escrever seria parte da segunda. Devemos entender, assim, por escrever, o ato exercitado por excelência no gabinete, cujas características o singularizam de forma marcante, sobretudo quando o comparamos com o que se escreve no campo, seja ao fazermos nosso diário, seja nas anotações que rabiscamos em nossas cardenetas.(OLIVEIRA1047, 2000, p. 25) De fato uma pesquisa é parte integrante do pesquisador, e por isto, é preciso que haja uma compreensão entre pesquisador e pesquisado. Para Bosi 1048 (1994, p.38), “a observação mais completa dos fenômenos é a do observador participante. Uma pesquisa é um compromisso afetivo, um trabalho de ombro a ombro com o sujeito da pesquisa”. Mas afinal o que é a história oral? Seria apenas uma técnica ou um método para obtenção de fontes de pesquisa? A história oral não é um simples ato de entrevista e nem técnica, vai além da arte de perguntar e anotar. Tem todo um caminho a seguir que a torna um método que se utiliza de técnicas de entrevistas ou outros procedimentos articulados entre si, que tem como sua maior fonte o sujeito e suas narrativas, como nos define Freitas 1049 (2006, p. 5) “História Oral é um método de pesquisa que utiliza a técnica da entrevista e outros procedimentos articulados entre si, no registro de narrativas da experiência humana”. A

história

oral

é

apontada

pela

micro-história

e

outras

vertenteshistoriográficas, pelo fato da mesma ser sugestiva em ouvir o outro, inovadora que defende uma outra alternativa de história traçada em novos objetivos, podendo ser individual ou coletiva, mas “vista de baixo”- François 1050 (2006, p.5) afirma que “A história oral seria inovadora primeiramente por seus objetos, pois dá 1047 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do Antropólogo. 2 ed. São Paulo: Unesp, 2000. 1048 BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

1049 FREITAS, Sônia Maria. História Oral: Procedimentos e Possibilidades. São Paulo. Editora Humanitas, 2006.

1050 FRANÇOIS, Etienne. A fecundidade da história oral. In AMADO, Janaina e FERREIRA, Marieta de Moraes (org). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: 8 ed. Ed. FGV, 2006.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

56 3

atenção especial aos dominados, aos silenciosos e aos excluidos da história (mulheres, proletários, marginais, etc). a história do cotidiano da vida privada”. 2. AS CONTRIBUIÇÕES DA HISTÓRIA ORAL PARA O CAMPO DA CULTURA ESCOLAR A história oral, vem de encontro como um importante método sobre o estudo da cultura escolar, auxiliando na busca de entendimento dos sujeitos e como eles se movimentam, contribuindo com a formação de uma cultura cotidiana, própria de uma escola ou várias. Para Aragão1051 (2013, p. 30) “ A partir da esculta do outro, de sua história de vida, é possivel investigar a história das disciplinas escolares, a cultura material escolar, as práticas e representações, enfim, a história da educação”. O que se pretende demostrar é que por trás dos muros de uma escola não existe somente documentos burocráticos como forma de um fazer histórico, mas existem outros autores, agentes de história de vida, donos de um cotidiano patente de observação e pesquisa. Mais a frente Aragão (2013) atrela a história oral aos processos culturais, sociais e históricos, problematizadas pelo diálogo e experiências dos sujeitos, deixando o campo de pesquisa de ser um lugar de portões fechados para serem atributos da arte de ouvir o outro, compreendendo como os mesmos sujeitos são repetidores ou inovadores de uma cultura enraizada dentro da instituição entendendo que é. [...]sobre a cultura escolar, entendendo que abrir os portões de uma escola é um convite a entrar em um universo complexo, imerso numa rede de relações e significações envolvendo sujeitos, artefatos, tempos, espaços. Nesse ínterim, professores, funcionários, família, gestores e alunos ganham visibilidade, compreendendo que eles, também, trazem as marcas da cultura. Neste contexto, a metodologia da História Oral é vista como uma das possibilidades para recuperar os registros do passado, através da subjetividade dos sujeitos de hoje. A História Oral está atrelada a processos culturais, sociais e históricos, que são problematizados por meio do diálogo

1051 ARAGÃO, Milena. A história oral e suas contribuições para o estudo das culturas escolares. Revista Conjectura: Filos. Educ., Caxias do Sul, Vol. 18, n. 2, 2013, p. 28-41.

com as experiências dos sujeitos, narrativas estas impregnadas de significações apropriadas ao longo da vida. (ARAGÃO, 2013, p. 30). Dentro das instiuições escolares a fala dos sujeitos constitui-se como uma fonte de pesquisa, não sendo a única, mas a que auxiliará o pesquisador na seleção e classificação dos demais documentos, visto que Dominique Juliá (2001), já uniformiza a importância dos arquivos escolares na busca de fontes de pesquisa ao postular que: Sem dúvida, não devemos exagerar o silêncio dos arquivos escolares. O historiador sabe fazer flechas com qualquer madeira: quanto ao século XIX , por pouco que procure e que se esforce em reuni-los, os cadernos de notas tomadas pelos alunos (mesmo sendo grande o risco de se verem conservados apenas os mais bonitos deles) e os cadernos de preparações dos educadores, não são escassos e, na falta destes, pode-se tentar reconstituir, indiretamente, as práticas escolares a partir das normas ditadas nos programas oficiais ou nos artigos das revistas pedagógicas. Mas estamos menos equipados para perceber as diferenças – diversas segundo as classes sociais de origem que separam as culturas familiares ou profissionais da cultura escolar. (JULIA 1052, 2001, p. 17). O que por vezes pode parecer nocivo e ir parar em armários empoeirados ou até mesmo nos lixos escolares, pode ser uma grande fonte de informação que reproduz todo um período de costumes de uma instituição escolar. Os prórpios matériais didáticos representam já este espaço escolar servindo de documentos como sustenta Aragão (2013, p. 34) ao afirmar que A mudança epsitemológica de Clio culminou em um profundo alargamento das fontes, influenciando sobremaneira o olhar para a História da Educação. Materiais didáticos, cadernos, fotos, manuais, cartas, arquitetura, palmatória, tudo passou a ser fonte de pesquisa. As legislações foram interrogadas e os estudos sobre os sistemas educacionais abriram espaço para o estudo das culturas escolares. O históriador é um agente histórico, um pesquisador que passo a passo, constroi suas fontes por meio de pesquisas, artefatos, de consentimento legal ou não, mas que de alguma forma passou a pertencer as suas fontes de acordo com seu olhar de pesquisador. Os documentos para a pesquisa está atribuído como fonte que estará sendo subsidiado pelo próprio pesquisador, documento estes equecidos em um bau, ou armário acabou se tranformando em um monumento do próprio tempo, pois é [...] A intervenção do historiador que escolhe o documento, extraindo do conjunto dos dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo – lhe um valor de testemunho que, pelo menos em parte, depende da sua própria 1052 JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista brasileira de história da educação. Maringá, v. 1, n. 1, 2001, p. 5-43.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

56 5

posição na sociedade da sua época e da sua organização mental, insere-se numa situação inicial que é ainda menos ‘neutra’ do que a sua intervenção. O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. (LE GOFF1053, 2012, p. 521). Por meio dos documentos pode-se associar as narrativas dos sujeitos consolidando acontecimentos aos processos culturais, para a história do tempo presente. A arte de ouvir faz parte da reconstrução histórica e o artifício da observação participante como mecanismo de entendimento. Os documentos como: Projeto Político Pedagógico (PPP), Atas, Livros de ponto, matrículas e registros, são grandes fontes documentais. Visto que a pesquisa subsidiada é a da Educação de Jovens e Adultos (EJA), os livros de Paulo Freire serão outra grande fonte documental, no sentido que dara apoio no entendimento de compreendermos de que forma o autor defende a ideia de um diálogo entre educador e educando. Paulo Freire foi um dos pioneiros em utilizar as fontes orais e a observação participante para se apropriar de suas pesquisas. O autor em seu livro Pedagogia da Automia (1970) e em outros escritos dá a ideia de que ensinar exige disponibilidade para o diálogo, a arte de participar da vida de seu educandos, pois por intermedio do diálogo, o educador acaba desafiando seus educandos ou grupos a pensar, assim Freire1054 (1997, p.49) define que “O diálogo em que se vai desafiando o grupo popular a pensar sua história social como a experiência igualmente social de seus membros, vai revelando a necessidade de superar certos saberes que, desnudados, vão mostrando sua incompetência para explicar os fatos”. De fato as fontes dialógicas e documentais tem que aos poucos irem se encaixando, pois o material guardado pode até ser perdido, mas o diálogo, ou melhor, as fontes orais estão presentes dentro da memória do sujeito, cabendo ao entrevistador selecionar, separar e reunir.

1053 LE GOFF, Jacques, História e Memória. 6 ed. Campinas: Editora da Unicamp. 2012. 1054 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à pratica docente. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1997.

Participar e dialogar é produzir cultura, comunicar entre si, movimentar e socializar faz parte da cultura dos agentes históricos. O historiador pode se beneficiar destes artifícios, encontrado dentro das inspirações antropológicas as movimentações dos sitemas educativos reprodutores de cultura, indo na direção de: Recolocar a noção de discurso no centro da história cultural é considerar que a própria linguagem e as práticas discursivas que constituem a substância da vida social embasam uma noção mais ampla de cultura. Comunicar é produzir cultura, e, de saída, isso já implica na duplicidade reconhecida entre cultura oral e cultura escrita sem falar que o ser humano também se comunica através de gestos, do corpo, e da sua maneira de estar no mundo social, isto, é, do seu modo de vida.(BARROS1055, 2011, p.41). O históriador se alia ao espaço de pesquisa criando flechas que desvenda os comportamentos e transformações, cabendo ao pesquisador analisar, separar e transformar os documentos como fontes para sua pesquisa. De acordo com Certeau 1056 : Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Este gesto consiste em isolar um corpo, como se faz em física, e em desfigurar as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori. (CERTEAU, 2013, p.69) Tudo que faz parte da instituição constitui como corpo da cultura escolar. Os documentos, as disciplinas, os sujeitos da pesquisa, as práticas pedagógicas de professores e a sua dialogicidade com alunos constitui como parte da pesquisa e da cultura. A escola é um lugar onde se passa conflitos, dúvidas, saberes, e mudanças de paradigmas que fazem parte da cultura social, pois seus individuos fazem parte de uma sociedade organizada. Para Freire1057 (1992, p.44) “O respeito, então, ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto cultural. A localidade dos educandos é o ponto 1055 BARROS, José D`Assunção. A história cultural - considerações sobre o seu universo conceitual e seus diálogos com outros campos históricos. Cadernos de História. Belo Horizonte. Vol.12, n. 16, 2011, p. 38-63.

1056 CERTEAU, Michel. A Escrita da História. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. 1057 FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

56 7

de partida para o conhecimento que eles vão criando do mundo”. Conhecer os educandos e sua cultura faz parte do trabalho do pesquisador, formular questionamentos sobre o assunto, problematizar hipóteses faz com que a pesquisa histórica se desburocratize dando mais flexibilidade ao métodos utilizados como o da história oral e da observação participante. O conhecer é de grande valia para o pesquisador, viver, participar e observar o campo de pesquisa, dará condições e apontará ao pesquisador as direções a serem redigidas em seus registros. Paulo Freire foi um dos pioneiros da observação participante no Brasil, quando se utilizou deste procedimento ao formar os círculos de Cultura. Para o autor era preciso visitar os campos de trabalhos, conhecer suas linguagens as relações entre homens, mulheres e crianças. As visitas feitas deveriam ser redigidas em um pequeno relatório que os auxiliariam em todo o trabalho. A propósito de cada uma destas visitas de observação compreensiva devem os investigadores redigir um pequeno relatório, cujo conteúdo é discutido pela equipe, em seminário, no qual se vão avaliando os achados, quer dos investigadores profissionais, quer dos auxiliares da investigação, representantes do povo, nestas primeiras observações que realizaram. Dai que este seminário de avaliação deva realizar-se, se possível a Arca de trabalho, para que possam estes participar dele. (FREIRE1058, 1970, p. 60). É evidente que a pesquisa não sairá somente no observar e que as falas dos sujeitos, a arquitetura do lugar e seus documentos estarão interligados dando vida à pesquisa, mas sem dúvida, o método da história Oral é um dos métodos mais utilizados quando a pesquisa é de campo, e está voltada para a cultura escolar. 3. A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: A JUSTIFICATIVA DA PESQUISA. A escolha pela Educação de Jovens e Adultos, como área de pesquisa, foi pelo simples fato de vivenciar como professor nesta modalidade a mais de seis anos, junto à Escola Municipal Irai Ferreira de Souza – lugar, onde será desenvolvida a pesquisa, porém, foi Junto aos professores que acarretou a experiência de dialogar com os mesmos sobre as aulas e os alunos, emergindo o interesse em pesquisar essa dinâmica após ouvir os alunos e professores sobre suas historias de vida, suas experiências e 1058 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: PAZ e TERRA, 1970.

vivências no EJA, bem como os motivos de estarem ministrando aulas, ou no caso dos alunos/as, estarem frequentando essa modalidade de ensino. O professor é um dos agentes de extrema importância para o trabalho com o EJA, pois está nele a figura de ligar o conhecimento de mundo dos alunos aos conteúdos da escola. Para Freire (1997, p. 11) “A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo”. Não adianta estar presente como uma figura de educador sem ao menos exercer seu papel de forma diferenciada, promovendo o diálogo entre o que se sabe e o que será apreendido. Os relatos e histórias dos alunos, suas vivências, necessitam serem feitas nas reflexões de seus professores, pois todos os alunos, inclusive seus professores, possuem suas histórias de mundo, fazem e já fizeram parte de grupos sociais e históricos que produzem conhecimento em relatos por eles contados. O que confere o conhecimento existente emancipado dentro da instituição escolar, conhecimento este produzido por educadores e educandos, por meio de suas práticas culturais, visto que, O professor que pensar certo, deixa transparecer aos educandos que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é a capacidade de intervindo no mundo, conhecer o mundo. Mas, histórico como nós, o nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro antes que foi novo e se fez velho e se ‘dispõe’ a ser ultrapassado por outro amanhã. (FREIRE, 1997, p. 15). Os sujeitos pesquisados estão em busca de um sonho passado através de gerações, desde quando se fazem entender no mundo, e a partir do entendimento de que não há melhorias nas condições de vida se não for pela educação. Estão em busca de novos horizontes, na expectativa de traçar novos rumos nas suas histórias de vida. A educação é o caminho de mudanças para os alunos da EJA, seus professores promovem por meio das suas práticas educativas despertando o desejo de vivenciar o novo e uma nova maneira de ver e de reescrever uma nova história de vida, pois [...] Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma conotação da forma histórico-social de estar sendo de mulheres e homens. Faz parte da natureza humana que, dentro da história, se acha em permanente processo de tornar-se. Fazendo-se e refazendo-se no processo de fazer a história, como sujeitos e objetos, mulheres e homens, virando seres da

Anais Eletrônicos da XXXII Semana de História – FCL/ASSIS – UNESP - 2015

56 9

inserção no mundo e não da pura adaptação ao mundo, terminaram por ter no sonho também um motor da história. Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança. (FREIRE, 1992, p.47). O caminho da Educação de Jovens e Adultos, a ser percorrido é bem gratificante, não pelo fato da pesquisa em andamento, mas para quem se propõe a pesquisar sobre o tema. Ouvir e dar vozes aos sujeitos da pesquisa proporcionará conhecer suas histórias de vidas e como esses sujeitos (professores e alunos) dialogam sobre suas práticas em sala de aula. Respeitar suas vivências e aproveitá-las em sala de aula fará com que as adaptações propostas no PPP da escola para a modalidade para a EJA estarão sendo cumpridas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS. O objetivo proposto no presente trabalho foi demostrar a pesquisa historiográfica, os processos e mecanismos da História Oral nos estudos das práticas e da cultura escolar. Visto que com o surgimento da Nova História Cultural e o fortalecimento do ouvir o outro, aproximou a história oral como novo método de pesquisa a partir da década de 70. O caminho sugerido da observação participante e a prática dialógica culmina com ato de compreender outros sujeitos, mormente, excluidos da História, diante dos mecanismos da comunicação. Por trás dos muros das instituições há uma cultura, vivenciada e praticada por seus sujeitos. A arte de ouvir, olhar e escrever, possibilita dar voz a quem antes nem eram ouvidos. O pesquisador tem outras fontes de referência participantes da cultura escolar. No caso das instituições escolares, os documentos revelam muito os movimentos ocorridos por anos de professores, gestores e alunos. O projeto político pedagógico, atas entres outros proporciona novas possibilidades do conhecer. A conclusão deste é no sentido de definir a historia oral, dentro dos paradigmas da nova história e dos meios de pesquisa como sendo uma das mais utilizadas no campo historiográfico, já que aborda um método de pesquisa que se apropria de um artifício diferenciado que ultrapassa a pesquisa em documentos, indo além de entrevistas no campo das narrativas, da coleta de dados se apropriando de novos recursos como meios eletrônicos e transcrição de entrevistas, não sendo vista

simplismente como mais um método de pesquisa que o campo da pesquisa historiográfica nos proporciona, estabelece um paralelo com a história cultural, por meio da observação e análise de dados pesquisados. Enfim a história oral da voz aos sujeitos, proporciona a arte de ouvir e o artifício do diálogo observado pelo pesquisador.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.