Por uma história simbólica da Idade Média: importância, objeto e dificuldades ― ensaio temático

May 30, 2017 | Autor: Juliano Bruni | Categoria: Medieval History, Symbolism
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS | DEP. DE HISTÓRIA HUM 03107 – SEMINÁRIO DE BACHARELADO – TURMA A PROF. CLÁUDIA MAUCH | 2014/2

Por uma história simbólica da Idade Média: importância, objeto e dificuldades ― ensaio temático ―

Juliano Bruni

26 de novembro de 2014

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INTRODUÇÃO Recentemente, logo após o segundo turno das eleições para presidente da República brasileira, um conhecido comentarista da internet relatou em texto em seu blog uma das inúmeras ofensas que sofrera por, segundo seus críticos, se identificar com a candidata vencedora. Parte do “diálogo” travado entre o jornalista e seu agressor ― de acordo com o primeiro ―, ocorreu nos seguintes termos:

― Vermelho é a cor dos comunistas do PT! ― Mas eu votei no Aécio! ― Comunista assassino! Defensor de ideologia genocida! ― Meu amigo, nem eu sou do PT, nem vermelho é monopólio de comunista, nem sou comunista, nem o PT é comunista. Aliás, nem o PT é de esquerda mais. ― Vermelho é comunista! ― Claro, Papai Noel veste vermelho por conta de uma marca de refrigerantes que está tramando a revolução. [ ... ] ― Meu amigo, acho que você não está bem. Você está ficando vermelho... ― Cala a boca! Vermelho é cor de comunista!1

O episódio revela um grau de utilização de simbologia através do significado da cor que pode nos parecer exacerbado. Evidentemente, vinculado à ideologia política ― e a outras

formas de ideologia ―, os símbolos (cores, bandeiras, emblemas, imagens e tantas outras formas) adquirem valor de representação otimizado. No entanto, é ponto pacífico pensar que a representação que fazemos do mundo passa fundamentalmente pela representação simbólica: desde as três cores do semáforo até estudos apurados de cognição para a utilização de “atalhos” semióticos pela indústria da publicidade e propaganda. A própria ideologia de determinado grupo social pode ser expressa por uma cor (conforme ilustra o exemplo citado), a reprodução imagética de um animal, objeto, um gesto ou uma única palavra, etc.

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Sakamoto, L. Seu comunista! – ou a arte de argumentar com quem fala por clichês. Disponível em: . Acesso em: 21/11/2014. As posições políticas de Sakamoto fizeram com que se tornasse corrente uma suposta identidade “esquerdista” do autor, e daí a associação com a representação simbólica do comunismo pela cor vermelha.

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Ampliando a consideração da importância da simbologia para a comunicação e o imaginário humano, ao pensarmos o papel que a representação alegórica teve e tem para a sociedade, podemos identificar na Idade Média ocidental o período por excelência da linguagem simbólica. Profundamente religiosa (onde abundam formulações codificadas por símbolos) e condicionada pelas estruturas mentais, sociais, econômicas, culturais e tecnológicas da época, a sociedade do ocidente medieval mantém uma relação tão estreita com as formas simbólicas de representação que seus intelectuais, segundo Pastoureau (2009, p. 3) “não sentem a menor necessidade de informar aos seus leitores as suas [dos símbolos] intenções semânticas ou didáticas, nem de definirem pontualmente os termos que usarão”. Nesse contexto, a procura pela compreensão da simbologia medieval ― tanto a utilizada pela sociedade da época, quanto a legada pela Idade Média ― permite entender melhor as atitudes e ideais dos homens e mulheres desse passado específico. Vem daí a importância dos estudos de simbologia medieval: a conexão que estabelecem com todas as outras áreas da vida humana para além do imaginário (individual e, sobretudo, coletivo).

Michel Pastoureau chama a atenção para o fato de que uma sociedade codificada a tal ponto quanto a medieval só pode ser compreendida através da compreensão de seus signos. Segundo o historiador francês, dois grandes problemas se interpõem entre o pesquisador e o conhecimento da complexa representação simbólica que os medievais fazem da existência (real e imaginada). O primeiro é uma espécie de “vulgarização esotérica” que a matéria sofreu ao longo do tempo. Esse desvio de foco e de objeto coloca em risco a própria pertinência dos estudos em simbologia medieval. A atribuição puramente hermética dos símbolos medievais alterou a percepção sobre seus significados e objetivos reais, aferíveis através da pesquisa

séria, criteriosa e comprometida com os fatos. O segundo grande obstáculo se deve ao fato de que essa é “uma história por construir”: ainda está em formação uma metodologia apurada que consiga inserir a “história simbólica” da Idade Média ao lado da história social, política, econômica, religiosa, artística e literária através de uma definição precisa de fontes, métodos e problemáticas. Procuramos debater neste ensaio questões acerca da justificação e da formulação de problemas em simbolismo medieval marcada pelos limites da produção historiográfica

escassa e da inquietante vulgarização do tema. As reflexões a seguir tomam impulso a partir do trabalho do historiador francês Michel Pastoureau, estudioso preocupado com a compreensão da sociedade medieval a partir de sua dimensão simbólica. Como será abordado aqui, não se trata de tomar a produção de Pastoureau como único parâmetro para uma

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abordagem dos símbolos medievais, mas sim de utilizar suas propostas para a definição de objetos e metodologias de trabalho.

A DEFINIÇÃO DO CAMPO DA SIMBOLOGIA MEDIEVAL A simples categoria de símbolo isoladamente abre horizontes para muitos aspectos

cruciais do passado: o que pensavam os medievais e quais suas estruturas mentais; como formularam sua base de códigos com a qual representavam o mundo; qual a eficácia da comunicação estabelecida dentro dessa codificação; que reflexos a estruturação simbólica medieval projetou nos demais campos da vida (econômica, social, filosófica, cultural, artística, etc.). Pastoureau responde a algumas dessas indagações numa série de obras 2 que contemplam principalmente os elementos visuais da simbologia da época: a utilização das cores, da representação gráfica de ideias através de fórmulas convencionadas (como os emblemas), da comunicabilidade por trás de imagens e elementos (como a constituição dos

materiais) e sua “leitura” intrínseca. Mas é o próprio medievalista francês quem argumenta pela necessidade de novas e mais amplas pesquisas e, sobretudo, de trabalhos que levem a uma consolidação da “história simbólica” da Idade Média ao lado de outros ramos de estudo do período. Desde já, devemos tornar claro o conceito utilizado de “símbolo”. No léxico medieval, a compreensão de “símbolo” ecoa a noção herdada de Santo Agostinho: “Existem coisas que são apenas coisas e outras que são também signos. [...] Entre esses signos, alguns são apenas sinais, outros são contrassinais ou atributos, outros ainda são símbolos”3. Parece lícito pensar que a intenção do autor fosse a de sugerir que algumas “coisas” remetem a outras, no sentido de que, enquanto algumas apenas são em si, outras funcionam como acesso a uma coisa ulterior. Figurando no final da equação de Agostinho, o símbolo representa o oposto à simplicidade de coisas que são apenas coisas, já que está diametralmente contrário à representação direta das coisas. É a sua capacidade de acesso a “outras coisas” que torna o símbolo tão importante na Idade Média4. Para a leitura medieval da existência (e mesmo, ou 2

Sobretudo Une histoire symbolique du moyen age occidental, as obras sobre a interpretação das cores ao longo da história (Bleu - Histoire d'une couleur, Noir - Histoire d'une couleur e Vert - Histoire d'une couleur), L' etoffe du diable (sobre as listras e os tecidos listrados), L'Ours. Histoire d'un roi déchu (sobre a simbologia que cerca o urso) e L'Art héraldique au Moyen Âge. 3 Apud PASTOUREAU, M. Medioevo simbolico. Roma-Bari: Laterza, 2009 (3ªed), epígrafe. 4 Interpretado puramente enquanto linguagem, o símbolo medieval poderia ser pensado em uma função mais ou menos similar com a forma contemporânea de como interpretamos um símbolo. No entanto, há no símbolo

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sobretudo, da não existência “real”), nada deve ser interpretado como acaso, em tudo há um sentido intrínseco. Esse acesso pode ser efetuado de diversas maneiras. O que queremos destacar é que a transferência de sentidos a que se remetem os símbolos não ocorre somente através de figuras visivas (essa interpretação talvez decorra de nossa disponibilidade moderna de recursos visuais abundantes). Para Pastoureau, é a palavra, no contexto medieval, o principal veículo

de carga simbólica: “é provavelmente através das palavras que o símbolo medieval se deixa mais facilmente definir e caracterizar”.

“Aquilo que os linguistas modernos, depois de Sausurre, chamam de ‘arbitrariedade do signo’, é estranho à cultura medieval. Tudo é motivado, às vezes às custas do que parecem ser frágeis jogos verbais. O historiador não deve de forma alguma ironizar essas “falsas” etimologias. Pelo contrário, deve considerá-las como documentos de história cultural a pleno título... [...]”5

A palavra é, portanto, o símbolo básico medieval e constitui, conforme explica Pastoureau, o conceito primordial de representação naquele contexto sociocultural. Daí se sucedem outras formas de codificação/decodificação. É no sentido do que considerar símbolo no marco medieval que procuramos defini-lo. A identificação do símbolo é passo crucial para o estabelecimento de um objeto a ser investigado. Ao abordar o símbolo medieval, não devemos entendê-lo conforme a simbologia resultante de nossa sensibilidade moderna, a fim de evitar um anacronismo que resultaria em desconsiderar um amplo repertório, um espectro

de objetos em potencial que deve ser discernido na sua relevância no contexto da Idade Média como portadores de significado. Nesse sentido, o célebre episódio narrado por Marco Polo serve como ilustração para a formulação de problemas vinculados à simbologia medieval. Conforme analisado por Umberto Eco6, Marco Polo, ao chegar a terras distantes, nomeia o animal que vê como unicórnio baseado nas informações precedentes de que dispunha, mesmo que para isso precise redefinir essas mesmas informações. O viajante veneziano jamais viu um unicórnio e, quando medieval uma profundidade transcendente estranha à modernidade, onde um retângulo vermelho de letras brancas pode ser decodificado como “ausência” de algo além do que está ali escrito, enquanto no sistema medieval a própria existência de um retângulo vermelho em sua composição com letras brancas deveria ser justificada com base na forma, cor, dimensão, contexto, etc. 5 PASTOUREAU, Michel. Medioevo simbolico. Roma-Bari: Laterza, 2009 (3ªed), p.6-7. Tradução minha. 6 ECO, Umberto. Kant e l’ornitorinco. Milano: Bompiani, 2008 (V ed.), p.43-44. Tradução minha.

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na realidade encontra um rinoceronte, utiliza-se da noção que a sua cultura lhe fornece, identificando o chifre sobre o focinho. O unicórnio vive como símbolo na medida em que não existe realmente ― apesar da crença em sua existência. Mesmo sendo uma figura legendária herdada da Antiguidade, ele passa a encarnar a alegoria religiosa do Ocidente medieval: sua própria figura é associada a Jesus; seu único chifre representa a unidade de Deus e do Cristo; sua própria natureza selvagem (passível apenas de ser domada por uma virgem) simboliza a incapacidade das forças do mal de deter Cristo; seu pequeno porte exprime a humildade de Jesus, filho de Deus, ao se fazer humano. Marco Polo jamais viu um unicórnio, mas “identifica-o” no rinoceronte por dispor de códigos simbólicos que lhe permite, inclusive, “atualizar” a definição do próprio unicórnio: ao contrário do animal maravilhoso que simboliza o Cristo, o unicórnio revela-se “uma besta muito feia de se ver”. Temos assim, uma ressignificação potencial: baseado na análise “empírica”, o “unicórnio” deixa de representar o Cristo por suas características inassimiláveis com as propriedades “divinas”? O que acontece com o mito do unicórnio após essa leitura de Marco Polo? Antes disso, que estruturação simbólica ocorreu desde que a herança antiga da figura do animal de chifre único passou a ser lida pelo cristianismo ascendente? O unicórnio encontra grande repercussão no simbolismo a partir da metade da Idade Média (de fato, passa a figurar inclusive na Arca de Noé7). Qual é, então, a representação que o imaginário medieval busca no unicórnio? Por que chega a Marco Polo a figura (descrita em textos?; reproduzidas em imagens?) do animal de chifre único? Por que o viajante não cogita a existência de outro animal (no caso, o que sabemos ser um rinoceronte), forçando o enquadramento do pouco gracioso rinoceronte na categoria fantástica do unicórnio ― ou, dito de outra forma, o enquadramento do nobre unicórnio na materialidade “reprovável” do rinoceronte real? O caso do unicórnio de Marco Polo exemplifica problemas na formulação do simbolismo, bem como na sua disseminação e receptividade, comunhão da linguagem simbólica, decodificação e redefinição. Colocados no amplo campo do ocidente medieval, esses problemas se ramificam. Assim, é possível questionar se a simbologia de uma determinada região coincide com (ou reproduz) a de outra; se há de fato o que se poderia chamar de linguagem simbólica “universal”; se a diferença de significados não produziu “ruídos” de comunicação.

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Cf. PASTOUREAU, 2009, ibid., p. 51.

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O símbolo medieval como objeto de pesquisa não pode, então, ser pensado como o entenderíamos hoje. A figura de uma árvore, por exemplo, contemporaneamente só adquire estatuto de símbolo sob certas condições. Na Idade Média, é a própria qualidade (no sentido de características atribuídas) do material madeira e seus diferentes tipos que se transforma em símbolo. Assim, a madeira, em contraposição às demais “matérias” (como a pedra e o ferro) é considerada um símbolo em si, e ainda segue uma redistribuição hierárquica interna entre madeira “benéfica” e “má” (o carvalho é exemplo do primeiro tipo, enquanto a nogueira serve ao segundo). O trabalho de Pastoureau aponta várias categorias ― os elementos, as cores, os animais, os jogos, os emblemas (armas, brasões, bandeiras), entre outros ―, propondo uma história simbólica através de diferentes “mídias”. Novas categorias são ainda passíveis de análise, como as atitudes gestuais das quais falava Jacques Le Goff8. Outras formas de simbolização estão abertas à descoberta e interpretação dos historiadores. Mesmo atendo-se aos já conhecidos discursos simbólicos da Idade Média, um novo horizonte surge quando

passa-se a questionar o modo como esses símbolos são produzidos materialmente e depois reproduzidos. Não basta que o símbolo seja criado, com sua carga ideológica e comunicativa, em termos formais: ele precisa ser tecnicamente desenvolvido, aperfeiçoado e reproduzido para ser incorporado à rede comunicativa. Nesse sentido, se abre ao pesquisador as perspectivas de pesquisa em relação à técnica do símbolo. Pastoureau demonstra como integrar à história simbólica medieval, para além do discurso simbólico, o contexto de produção de “ferramentas” que tornam possível a existência do símbolo. Dessa forma, o historiador francês aborda, por exemplo, não apenas o significado da cor azul para a

sociedade medieval9, mas também as condições materiais de incorporação desse símbolo ao imaginário e práticas cotidianas: a insuficiência e deficiência do antigo tingimento pelo guado (isatis tinctoria), planta de florescimento bienal, no momento (séculos XII-XIII) em que ocorre a valorização do culto mariano ao qual está associado o azul como símbolo, leva à busca de novas tecnologias de tingimento através de novos materiais (como a pedra lápislazúli, proveniente do oriente), solventes e processos. A valorização do símbolo não ocorre somente através ou no plano abstrato, como categoria de pensamento, mas se traduz em atividades econômicas, relações sociais, políticas e culturais.

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LE GOFF, J. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011 (3ªed.). PASTOUREAU, M. Blu. Storia di um colore. Milano: Ponte alle Grazie, 2008.

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Essa relação do símbolo com a sociedade que o cria é de fundamental importância para a compreensão de ambos. Procuramos, ao colocar a obra de Pastoureau em relevo, destacar a importância de uma história simbólica medieval por se construir através da observância científica das fontes e dos métodos. Essa obrigação em relação aos critérios de pesquisa é reforçada em face do empobrecimento a que o símbolo vem sendo submetido. Nesse sentido, o símbolo medieval tem servido como um dos principais veículos para uma leitura desvirtuada da carga semântica e cultural da comunicação simbólica e sua relevância social, além de jogar no descrédito a necessidade de compreensão dos meios materiais e ideológicos que levam à formulação simbólica.

O EMPOBRECIMENTO DO SÍMBOLO Uma das grandes dificuldades no estudo da simbologia medieval passa pela minimização de importância que a matéria sofre através do que se atribui ser uma atenção

indevida a detalhes, sutilezas supérfluas, ou discursos vagos sobre criações artísticas ― quando não completamente casuais ― sem explicação objetiva. De fato, trata-se aqui de lembrar que uma das muitas faces dessa questão é que muitos dos potenciais objetos de estudo em simbologia da Idade Média foram apropriados em épocas posteriores como “chancelas” de origens, resquícios de um passado “tradicional”, normalmente apartados do todo a que pertencem e despojados de significância contextual e explicativa da sociedade que os produziram. O elemento integrante (e, portanto, explicativo) do conjunto aparece aqui convertido em particular inócuo. Tomemos o exemplo da heráldica, a arte/ciência da

composição e formulação de brasões. Desconectada de seu ambiente e motivações originais (a necessidade de identificação em contexto de guerra e torneios, a estrutura hierarquizada da sociedade, etc.), a heráldica passou a prestar contas somente a si mesma, passando a funcionar como elemento imprescindível da cultura nobiliárquica moderna. Em sua gênese, porém, prestava-se a outro sistema de representação, necessidade de comunicação e alcance social ― Pastoureau nos fala de simples servos que conquistaram o direito de portar emblemas. Voltada para dentro, a heráldica muitas vezes ignora o propósito de seu surgimento na militarizada e hierarquizada sociedade medieval e evita relações com o universo cultural e material no qual surgiu. A relação dos historiadores com a heráldica corre o risco de ser caracterizada (com razão ou não) como flerte com o status quo, de tácita aquiescência com uma visão social a partir “de cima”. Contudo, o mínimo que podemos argumentar em defesa

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da importância dos sistemas de representação visual (dos quais a heráldica, enquanto disciplina, faz parte) é que a lógica que opera na formulação de brasões medievais se mantém até nossos dias. O conjunto de normas que rege os critérios visuais modernos para sinalização de trânsito, marcas comerciais e o discutível conceito de “bom-gosto” é filho legítimo da heráldica medieval. Relegar o estudo da simbologia a segundo plano sob o argumento de se tratar de algo supérfluo ou demasiadamente específico é ignorar as relações, as conexões e também as continuidades. Ao perigo de considerar a simbologia muito específica ou igualmente muito genérica, levando ao seu descrédito, soma-se o processo de “vulgarização esotérica” do simbolismo medieval através das obras de divulgação e sua utilização pela indústria cultural de massa como um todo. Trata-se, segundo nos parece, de um fenômeno bastante visível e identificável. O sucesso comercial experimentado por publicações que não respeitam a vigilância criteriosa do estudo dos símbolos medievais impõe ulteriores dificuldades ao trabalho dos historiadores responsáveis e diligentemente atentos às normas da disciplina. Essa deturpação na

compreensão da simbologia original e verídica medieval pode ser atribuída à necessidade da sociedade industrial contemporânea de buscar “explicações” ocultas, envoltas no completo mistério em relação às suas motivações. Quando, porém, trata-se exatamente do contrário: descortinar os sentidos atribuídos aos símbolos através da pesquisa e da argumentação factual. Assim, o presumido elemento “místico” da história dos cavaleiros templários, por exemplo, excita a imaginação moderna, que passa a “ler” na simbologia medieval ligada a essa ordem religioso-militar aspectos herméticos que, para dizer o mínimo, mereceriam maior e/ou melhor comprovação. O peso nocivo da falta de critério em História (ou mesmo da prosaica exploração comercial do conhecimento) recai, assim, com força sobre os estudos do simbolismo medieval.

CONCLUSÃO A compreensão da simbologia e sua importância para a sociedade, bem como os mecanismos ideológicos e técnico-materiais que envolvem sua formulação, oferecem terreno fértil ao historiador. Projetados no período medieval, onde a carga semântica dos símbolos era multiplicada pela dimensão religiosa e transcendente da interpretação da realidade, os estudos em simbologia encontram amplas perspectivas de análise. Utilizando como inspiração e

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modelo o trabalho do historiador Michel Pastoureau, procuramos traçar algumas linhas gerais no sentido de possibilidades de abordagem do símbolo medieval. Primeiramente, ao tentar captar o sentido de representação simbólica para a sociedade do ocidente medieval ― seguramente diverso de nossa atribuição moderna de símbolo. Como segundo passo, ao atentar para os perigos de uma vulgarização do tema levada a cabo pela exploração comercial da matéria, pela falta de seriedade em muitos estudos e pela minimização promovida pela desassociação do símbolo da temática mais ampla da sociedade ― essa última atitude parte de uma descontextualização do sistema de representação para chegar a uma utilização isolada e hermética do símbolo, privando-o de seu significado original, tolhendo-lhe a explicação de sua própria existência. Através da definição do que é o símbolo dentro do universo de representação medieval, tentamos empreender a formulação de categorias analíticas. Assim, conforme já abordado por Pastoureau, compõem o espectro de representação simbólica do ocidente medieval suportes de difusão material como as cores, os animais, os elementos da matéria, os

emblemas, mas também ações humanas como os jogos e os gestos. Outros aspectos da vida material e ideológica podem vir a se tornar passíveis de interpretação dos historiadores através do viés simbológico. Os cuidados na abordagem da simbologia medieval constituíram uma forte preocupação. A vigilância científica da matéria parece-nos imprescindível para que uma história simbólica seja possível. O desvirtuamento do tema por interpretações ― ou mesmo falsas asserções ― tornam mais difícil o trabalho do historiador na medida em que povoam o discurso de informações errôneas e lançam o tema em descrédito junto a pesquisadores sérios. Resta apenas reforçar a proposição de que uma análise séria da simbologia medieval não só é possível quanto indispensável para uma compreensão dos homens e mulheres da Idade Média. Na lógica interna do período, com todas suas motivações e forças motrizes de ordem ideológica, social e econômica, desprezar a leitura do simbólico é rejeitar a forma de expressão e de leitura básica da sociedade medieval. Conduzida com critério, responsabilidade e metodologia apropriada, a história simbólica projetada por Pastoureau nos permite não apenas captar a realidade concreta daquele passado, mas também a sua dimensão subjetiva. Afinal, como abstração e materialidade, o símbolo projeta-se tanto para o exterior quanto para o interior.

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BIBLIOGRAFIA

ECO, Umberto. Kant e l’ornitorinco. 5ª ed. Milano: Bompiani, 2008. ELIADE, Mircea. Le sacré et le profane. Paris: Gallimard, 2012. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. 2º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. LE GOFF, J. Uma história do corpo na Idade Média. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. PASTOUREAU, Michel. Medioevo simbolico. 3ª ed. Roma-Bari: Laterza, 2009. ________. Blu. Storia di um colore. Milano: Ponte alle Grazie, 2008. ________. La Stoffa del Diavolo. Una storia delle righe e dei tessuti rigati. Milano: Ponte alle Grazie, 1993. ________. Preto. História de uma cor. Lisboa: Antígona, 2014. SCHMITT. Jean-Claude. Medioevo “Superstizioso”. 3ª ed., Roma-Bari: Laterza, 2007.

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