POR UMA OUTRA PSICOLOGIA NO CÁRCERE: Presos Provisórios, Processos de Criminalização e Produção de Subjetividade

May 27, 2017 | Autor: Pedro Paulo Bicalho | Categoria: Social Psychology, Human Rights, Critical Criminology, Prisons
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ROSSOTTI, B. G. P., BICALHO, P. P. G. Por uma Outra Psicologia no Cárcere: Presos Provisórios, Processos de Criminalização e Produção de Subjetividade In: Reflexões e Experiências em Psicologia Jurídica: no contexto criminal/ penal.1 ed.São Paulo : Vetor, 2012, v.1, p. 81-108. ISBN: 9788575856

POR UMA OUTRA PSICOLOGIA NO CÁRCERE: Presos Provisórios, Processos de Criminalização e Produção de Subjetividade Bruno Giovanni de Paula Pereira Rossotti, Universidade Federal do Rio de Janeiro [email protected] Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, Universidade Federal do Rio de Janeiro [email protected] ______________________________________________________________ “Acredito que seja impossível entrar fisicamente numa prisão sem que ela entre simbolicamente em você.” Nádia Martins Fagundes As discussões trazidas neste capítulo são resultantes da construção de uma experiência de intervenção psicológica em grupo, fomento do Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC), programa de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em parceria com a 52ª Delegacia de Polícia de Nova Iguaçu. A equipe de Psicologia encontra neste espaço a possibilidade de instalar um dispositivo grupal, com vista a ‘dar voz’ aos presos provisórios ali encarcerados, capaz de colocar em funcionamento os modos de expressão da subjetividade e não perdendo de vista que esta se compromete profundamente com os processos coletivos produzidos historicamente. Configura-se como proposta deste capítulo apontar novas possibilidades de fazer Psicologia, no cárcere, divergindo fundamentalmente das políticas públicas nas quais o papel do psicólogo se remete à perícia psicológica que se propõe a investigar o suposto grau de periculosidade dos apenados, concepção marcada pela abordagem positivista que reduz o trabalho do psicólogo à participação nas Comissões Técnicas de Classificação e na aplicação do então chamado exame criminológico, funções instituídas pela Lei de Execução Penal (LEP), de 1984. A criminologia positivista procura entender as causas do fenômenos criminosos, através da inferência de relações de causalidade, matematizações e medições sem, no entanto, colocar em questão a suposta natureza e a construção da ideia de crime e de criminoso. Como analisador de nossas discussões emerge a situação dos

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presos provisórios, encarcerados em delegacias da polícia civil (DP); modelo que vem, desde 1999, atravessando uma modificação significativa. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (2008), em junho de 2008 o Rio de Janeiro possuía uma população de presos provisórios igual a 6910, aguardando a decisão judicial em condições de abandono muito semelhantes às encontradas na 52ª DP. Este valor equivale a uma proporção de 30,6% dos presos do estado. O volume da massa encarcerada aguardando decisão judicial já se enunciaria como uma questão importante das políticas públicas, tendo a dimensão da questão relativa à sua situação maximizada pelas precárias condições nas quais a espera pelas definições dos órgãos de justiça se dá. É mister problematizar as dinâmicas institucionais, relações de forças e saberes encontrados e produzidos - para esses espaços que contém presos provisórios, e seus reflexos sobre a produção de subjetividade. Uma denúncia movida por diversas instituições à Organização dos Estados Americanos, relatando as precárias condições das carceragens para presos provisórios, mobilizou a pressão internacional no sentido de exigir sua extinção do Rio de Janeiro, produzindo a inauguração de 11 casas de custódia – embora grande parte delas nunca tenha sido construída. Obras foram realizadas para afastar os distritos policiais da prerrogativa de ‘guardarem’ presos provisórios e torná-los de fato locais para o atendimento ao ‘cidadão’. Teoricamente, todos os presos provisórios deveriam ser remanejados para uma das onze casas de custódia, onde aguardariam a decisão judicial de liberdade ou seu sentenciamento – caso no qual seriam prontamente dirigidos ao sistema penitenciário. De fato, mais de dois mil presos foram transferidos. No entanto, ainda há no Rio de Janeiro uma série de delegacias de polícia que ainda administram carceragens para presos provisórios. Curiosamente, todas se localizam afastadas das áreas turísticas da cidade. Uma delas é a 52ª DP de Nova Iguaçu, responsável pelo contingente de mais de quatrocentos presos. Em teoria, as carceragens da Polícia Civil deveriam abrigar apenas presos provisórios - encarcerados que ainda não receberam qualquer tipo de condenação - mas para os quais algumas condições prevêem a recomendação de aprisionamento. Dentre elas figuram a ausência de residência fixa e imprescindibilidade da tutela pelo Estado para o bom curso do inquérito policial, de acordo com a Lei 7.960/89, que dispõe sobre a prisão

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temporária. A participação em alguns gêneros de infração penal permite, também, acautelar pessoas, descritas na peça legal 8.930/94, a qual versa sobre os crimes hediondos. Contudo, toda sorte de presos pode ser encontrada transitando através das transferências de uma delegacia à outra, inclusive os já sentenciados. Esse fato contraria de maneira direta a Lei de Execuções Penais, embora, toda a lógica das carceragens vigentes no Rio de Janeiro seja uma afronta à concordância com tal dispositivo legal. As péssimas condições e o despreparo institucional fazem com que os presos provisórios careçam da maioria de seus ‘direitos’ básicos1. O sistema penitenciário, apesar dos déficits costumeiros em sua estrutura de pessoal, conta minimamente com profissionais necessários ao cumprimento, mesmo que ainda não satisfatório, dos direitos dispostos em lei. As cadeias públicas da Polícia Civil, por outro lado, não contemplam em seus quadros funcionais médicos, assistentes sociais, pedagogos, psicólogos ou quaisquer outros profissionais incumbidos da promoção e cumprimento destes direitos. Salvo raras exceções, as redes que poderiam ser formadas com outras organizações para a garantia e promoção destes direitos também são precárias, tornando seu acesso complicado e demorado. Tratando do mérito específico da assistência jurídica, a falta de acesso aos defensores públicos - e ao aparato judiciário de maneira geral - posterga demasiadamente a estadia dos presos provisórios. Segundo o Código de Processo Penal, o prazo máximo para a conclusão da acusação e representação judicial é de noventa dias, contados a partir da prisão. A realidade se apresenta fúnebre e caminhando para se tornar ainda pior. Na 52ª DP, a maioria dos presos já extrapolou esse limite de tempo e faz-se possível encontrar até mesmo enclausurados com cinco anos de reclusão sem qualquer visita aos estabelecimentos do judiciário. Além disso, muitos outros presos já apenados aguardam sua transferência para o sistema prisional; também privados dos direitos em que, lá, poderiam ter acesso. As cadeias públicas da Polícia Civil apresentam-se como o limbo de dois sistemas incapazes de dialogar de forma satisfatória. Até recentemente, a polícia tinha por prerrogativa alocar os presos em grandes celas, nas quais residiam os encarcerados de facções criminosas, por questões de espaço e 1

O último de nossos objetivos é entender ‘direitos’ enquanto uma entidade transcendental, dotada de natureza ou caracterizada em si mesma. É pensá-los enquanto se dando em um plano de imanência, como sugere Bicalho (2005).

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salubridade. Contudo, alguns cativos eram recebidos pelos ‘comandos’ com violência. Era o caso daqueles que cometeram crimes inaceitáveis no entendimento das facções – estupradores, parricidas, ladrões de ônibus e tantos outros, bem como o caso de policiais presos, membros de facções rivais ou aqueles que quebraram as regras estabelecidas pelos ‘comandos’ dentro da cadeia. Estes, criminalizados pelos criminalizados, sofrem violência de cunho físico e psicológico, até serem retirados para as outras celas e denominados ‘seguros’. O que une tantos presos diferentes é a condição de absoluto descaso estatal e estrutural. Em relação à Psicologia, o problema se intensifica. Além de não haver profissionais envolvidos com a saúde dos presos provisórios, o único contato destes costuma ter acontecido, em alguma prisão anterior, por ocasião da realização do exame criminológico. Muitos dos operadores da lei colocariam em questão as possibilidades de trabalho da Psicologia, para além de tal exame. Mesmo entre os psicólogos, sua função no interior de uma instituição como a carceragem poderia ser alvo de algumas problematizações. Qual deve ser o trabalho? Existe a possibilidade de clínica em um estabelecimento como este? O interesse aqui se dá em acompanhar os processos gerados através da entrada de uma equipe de Psicologia em uma delegacia da Polícia Civil, colocando em análise o próprio movimento da criação de tal intervenção no cárcere. Antes, todavia, o questionamento primordial é: por que motivo a Psicologia deve se posicionar frente a tais modelos de delegacia? No que concerne ao entendimento social da Psicologia, as políticas públicas do sistema prisional, como um todo, estão fundamentadas e voltadas primariamente para a atuação nas Comissões Técnicas de Classificação via papel de elaboração de programas individualizadores de pena. É preciso notar que a validação de tais políticas representam o direcionamento do psicólogo para um papel de investigação e enquadramento, além de privá-lo do tempo necessário ao desenvolvimento de ações direcionadas à promoção de saúde dos aprisionados. Torna-se, portanto, imprescindível delinear novos lugares para o posicionamento ético-político do psicólogo nessas instituições totais. Haja vista as preocupações mencionadas anteriormente, o escopo principal deste documento se propõe a avaliar e problematizar brevemente o papel da Psicologia no cárcere, tomando dois analisadores: o Exame Criminológico e a inserção de uma equipe de Psicologia no espaço de uma carceragem da Polícia Civil.

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Em um primeiro momento, o analisador Exame Criminológico será utilizado para contextualizar as atuais práticas do sistema prisional brasileiro. O objetivo é traçar um pequeno contorno das técnicas hegemônicas da Psicologia quando submetida aos desígnios do saber judiciário. Posteriormente, por outro lado, se pretende realizar a cartografia do movimento de entrada da Psicologia na 52ª DP, colocando em análise os movimentos vividos pela equipe de Psicologia e esperando conseguir apontar novos possíveis: linhas de fuga para a atuação do psicólogo em instituições totais, para além dos lugares préconcebidos de exame e enquadramento. Exame Criminológico: política de enquadre Reduzir a intervenção psicológica no cárcere à produção de previsibilidade de reincidências criminais - a partir de pressupostos positivistas - constitui-se na utilização do saber-poder científico à produção e manutenção de certos jogos de produção de verdade: ferramentas de produzir máquinas que sirvam a políticas de controle. A LEP instituiu o Exame Criminológico como ferramenta obrigatória à avaliação da progressão de regime, livramento condicional, indulto e comutação de pena aos presos do sistema. Este exame, realizado por uma equipe multidisciplinar composta por psicólogo, assistente social e psiquiatra, tem como objetivo responder sobre a possibilidade real de reincidência criminal. Após forte movimentação de alguns atores da área manifestando-se contra a elaboração desse exame, o congresso altera a LEP e sanciona a Lei 10.792. Nela, psicólogos atuantes na luta pelo fim do exame veem uma vitória, em que o mesmo torna-se não mais uma obrigatoriedade para obtenção dos ‘benefícios’ – o modo como hegemonicamente se entendem os direitos dos apenados. Apesar dessa lei, muitos profissionais ainda se veem obrigados a realizar o exame graças a ameaças de juízes das Varas de Execução Penais (VEP), sob pena de prisão por contrariar razões administrativas e hierárquicas – denominadas por eles de procrastinação. Atualmente tramita no Congresso um projeto de lei que tem por objetivo revisar a peça jurídica 10.792, trazendo o exame criminológico oficial e legalmente de volta ao exercício. Os reivindicantes defendem que o diretor da instituição prisional não possui as habilidades e perícia dos técnicos especializados, o que torna sua avaliação superficial.

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Se aprovarmos o fim do exame criminológico, colocaremos dezesseis mil marginais imediatamente na rua, despreparados para conviver com a sociedade civil, sem emprego, sem mercado de trabalho. [...] Assim, não podemos, de 2 maneira nenhuma, abrir mão do exame criminológico. (grifos nossos)

Sabe-se que a figura do técnico e do especialista há muito ocupa um papel central no sistema penal. Partindo do contexto das leis citadas acima e do confronto entre os saberes jurídicos e psicológicos podemos pensar onde e como entra a figura do técnico no cenário prisional. Ao longo do século XIX, o positivismo europeu ganha projeção em larga escala e influencia diretamente a cultura ocidental. Despontam as teorias criminológicas apoiadas em uma natureza humana, numa essência criminosa. Cientistas como Lombroso, precursor da Antropologia Criminal, teoria na qual o indivíduo criminoso possuía características biopsíquicas que o diferenciavam do indivíduo normal, ou Ferri, defensor da idéia de que o crime possuía causas sócio-ambientais, eram as referências da época (Rauter, 2003). Juntamente com outros teóricos defensores do determinismo biológico apresentam suas contribuições para o criminoso tornar-se objeto do crime e, dessa forma, tornar a pena um instrumento de punição e correção, além de defender a sociedade dos entendidos como ‘degenerados’. Foucault (2003) nos chama a atenção para quais momentos históricos tornam possíveis a emergência de determinados discursos que possibilitam estas práticas. O autor assinala o momento do internamento nas instituições de seqüestro como um acontecimento indispensável à formação de uma rede de vigilância, controle e correção que isolam o tempo, o corpo, o saber e a vida das pessoas, tornando imprescindível a figura do especialista. A privação de liberdade passa a se apoiar em arcabouço técnico e teórico que torna possível, mesmo que idealmente, a idéia de transformação dos apenados. O aparelho carcerário constrói três esquemas como demonstra Foucault: “A cela, a oficina e o hospital. A margem pela qual a prisão excede a detenção é preenchida de fato por técnicas de tipo disciplinar” (2003, p.208). E no âmago das novas tecnologias de ‘vigiar e punir’, determinados saberes se tornam fundamentais: Criminologia, Psicologia, Psiquiatria, Pedagogia, Sociologia, Assistência Social, Estatística. Não é acidentalmente que esses 2

Pronunciamento proferido pelo senador Magno Malta (PL-ES) em 28 de maio de 2003 no Senado Federal. Retirado de http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Pronunciamento/detTexto.asp?t=334965 em 24 maio 2010.

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saberes utilizam como ferramenta principal o Exame, seja através de laudos e entrevistas, seja através de pareceres e avaliações. Nesses instrumentos o poder está na palavra do especialista que diz quem é normal ou anormal, delimita os perigosos e quem deve ficar detido em uma instituição ou está apto ‘retornar’ à sociedade. A prisão não é apenas o espaço desenhado para punir e corrigir, não é apenas o lugar de execução da pena, mas sim um local de observação dos indivíduos que ali se encontram. E o objetivo dos que observam não é apenas vigiar, e sim conhecer e identificar os comportamentos dos sentenciados, estabelecendo prevenções e destacando progressivas ‘melhoras’. A instituição-prisão se torna, então, lugar de formação de saber sobre os detentos e neste lugar a figura do especialista psi se tornou imprescindível. Apoiados na palavra do psicólogo - que emite os laudos provenientes do Exame Criminológico - que o Ministério Público e a Defensoria Pública dizem sustentar suas decisões. Parte dos seus juízes, promotores e defensores consideram esta ferramenta absolutamente necessária e vantajosa, pois garante uma cientificidade apoiada na técnica, a qual só o referido especialista está capacitado. A função delegada ao psicólogo, nestes casos, é de pormenorizar a vida do preso, através de perguntas que investigam seu passado e seu cotidiano na prisão, além de inquiri-lo com minúcia a fim de fundamentar a sua recuperação, demonstrando que o indivíduo avaliado não voltará a reincidir. O olhar está voltado para o indivíduo e suas virtualidades, para o seu suposto grau de periculosidade. Quando se acredita apto a olhar para o sujeito e desvelar o que nele existe, ou quando se pensa ser capaz de promover a cura, alia-se a uma Psicologia do Esquadrinhamento/Enquadramento. A todo o momento os técnicos do sistema prisional são convocados a decidir sobre a vida do preso, desde em qual cela deve permanecer até qual trabalho lhe cabe dentro do estabelecimento prisional, instituindo e reproduzindo práticas normatizadoras, coercitivas e despotencializadoras. No entanto, deseja-se o lugar de agentes do controle social, legitimados pelos pareceres técnicos dentro dos presídios, capazes de fazer alterações e previsões de comportamentos? Baseados no Código de Ética Profissional do Psicólogo (Conselho Federal de Psicologia, 2005) pode-se questionar as noções precedentes. O psicólogo que acata ao exame pode praticar violação da conduta ética. Afirma-se apoiado, sobretudo, nos Princípios Fundamentais - artigos 1º e 2º - que, resumidamente, relatam que o psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade do ser humano e contribuirá

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para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão. E no item “Das Responsabilidades do Psicólogo” (Conselho Federal de Psicologia, 2005, p.8) ressalta-se ser vedado ao psicólogo emitir documentos sem fundamentação e qualidade técnico-científica. Tomando para si a prática do exame, psicólogos são capturados pela engrenagem da máquina carcerária e reproduzem modelos que aprisionam e mortificam subjetividades. Não se pode ignorar que esses profissionais são convocados a fazer parte dessa máquina que concede autorização a intervenções clínicas reprodutoras de práticas coercitivas e isso ocorre quando eles são capturados pelos dispositivos de controle que muitas vezes são legitimados pelas próprias práticas e discursos psi. Negar-se a ocupar este lugar significa construir estratégias de resistência a estes dispositivos de controle, as quais abram caminhos para processos de singularização. Recusando-se a ocupar os lugares tradicionalmente oferecidos no sistema prisional - não apenas os psicólogos, mas também os demais profissionais de saúde, os carcereiros, os administradores e os presos – torna-se possível a experimentação do diferente, da criação de outros sentidos, novos territórios. Do contrário, reproduz-se dispositivos de captura e de controle. Acredita-se, assim, na potência da coletivização da criação e na invenção de outras práticas que engendrem e potencializem novas subjetividades, fazendo emergir discursos e práticas diversos, mais potentes no sentido de desafiar e colocar em análise o controle social contemporâneo. Aposta-se em outros caminhos possíveis para a Psicologia no sistema prisional e a tese expressa nesse texto é um esforço constante pela não subordinação aos modelos que estão dados; rompimento com as práticas de esquadrinhar e enquadrar, buscando afirmar a vida em um lugar onde parece impossível. Crê-se na possibilidade de fazer Psicologia mesmo em uma carceragem, construindo uma Psicologia vinculada à resistência que auxilie os sujeitos a compreenderem os processos de criminalização que os atravessam. Entender a Psicologia, não como sendo do cárcere, mas estando nele, habitando-o, parte-se para um território completamente diferente. Existe lugar para a Psicologia no cárcere, para além das previsões. Práticas diferentes, partindo de pressupostos discursivos e epistemológicos diversos. Objeto de poder, ou poder como objeto?

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As sociedades de soberania morreram ou simplesmente alcançaram um descanso intervalado? Este ideal de extrair do suplício do corpo o poder do soberano, demonstrando o poder que emana da coroa (Foucault, 2003) está falido ou apenas repousa aguardando seus momentos de irrupção disfarçada? Caminhando

no

aspecto

jurídico

da

questão,

Foucault

(2003)

ampara

intelectualmente a transição de um Direito Penal preocupado em ser uma expressão de poder sobre o corpo – como vingança a um delito dirigido contra uma divindade – para um cálculo das penas e perigos orquestrado em prol da defesa social. Os movimentos imanentes às estratégias de expressão do poder fascinavam o autor, e continuam nos enredando, a ponto de tentarmos desencavá-las em outras fontes. Deleuze e Foucault se completam – em suas obras – mesmo quando nenhum dos dois deixa lacunas. A dança dos dois nos diz sobre um moto-contínuo3 de miséria e exclusão, no qual a música é o diagrama de forças compilador da atual expressão do poder. Voltamos, então, a Deleuze (2008) para soar um alerta. Esse poder não é um objeto essencial, transcendente; tanto quanto não é localizável no Estado ou totalizável em – ou posse de – uma estrutura. E acima de tudo, não é lei repressora, ou fundamento natural jurídico. Foucault – nas palavras de Deleuze – trata de um poder dialógico, conflitivo; “[...] é a própria guerra e a estratégia dessa guerra em ato” (Deleuze, 2008: 40). É positivo antes de tudo, produz verdades, domestica corpos, molda subjetividades, sem a necessidade do uso da força. É exercido, em lugar de dominado – enquanto posse. É extremamente difusa, antes mesmo de ser regional. Entender o poder desta maneira nos obriga a uma expedição micropolítica. Estar atento aos diagramas delimitados em cada uma das intervenções, quaisquer que sejam os campos nos quais nos colocamos. É tomar, como atitude ética, o posicionamento de organizar uma vigília aos diagramas, enquanto “[...] exposição das relações de forças que constituem o poder.” (Deleuze, 2008: 46). Entender que essa cruzada constante é o que permite afastar ao máximo da posição de quem exerce o poder para produzir sujeição. Note-se que é impossível deixar de exercer o poder. Dito isso, o que se encontra no mundo, o que nele está dado e instituído é resultado da afirmação de práticas sociais. 3

Moto-contínuo seria uma máquina de funcionamento eterno, a qual funcionaria a base de uma energia produzida no interior de si mesma.

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Então, fazer pesquisa, assim como desenvolver uma prática clínica, é um exercício de poder. Deleuze (2005)alertava para a dimensão política da análise, quando toca na matéria dos diagramas de poder foucaultianos. “Ele [o diagrama] nunca age para representar um mundo preexistente, ele produz um novo tipo de realidade, um novo modelo de verdade. Não é sujeito da história nem a supera. Faz a história desfazendo as realidades e significações anteriores, formando um número equivalente de pontos de emergência e criatividade [...] (p. 45). E o ponto fundamental acerca do poder se mostra como uma pequena advertência sobre o papel que se ocupa no cárcere. Experienciar, habitando o local, no entanto, de forma atenta, procurando ‘tomar ciência’ e estabelecer um mapa de como os poderes se agenciavam no dado espaço. Construir uma cartografia. Bergson (2005) debruça-se sobre as diferenças entre o pensamento científico e o filosófico na primeira parte de seu “O pensamento e o movente”; iniciando com uma frase bastante impactante, a saber: “O que mais tem faltado à filosofia é a precisão.” (p. 149). Navigare necesse; vivere non est necesse. É na dubiedade da assertiva que se pretende ancorar. Navegar é preciso, viver não é preciso. Técnicas de navegação sempre demandaram por exatas ciências, amparadas por um arcabouço teórico-tecno-científico. Exata, precisa, previsível, neutra, apolítica... necessária. Técnicas que permitam aos juízes navegarem em direção à precisão de suas sentenças. Ao deparar-se com a absoluta sensação de descaso provocada pelas imagens dos cárceres brasileiros, produz-se a sensação de que a vida continua não sendo necessária; precisa. A raiz é a mesma, a palavra conta com o significado contrário. A vida capitalística é em si prescindível. Traz o fardo de ser dispensável a uma densa parcela da população, em sua maioria negros, pobres, moradores de áreas esquecidas pelo poder público, jovens, com baixa instrução. Em um cruel processo de criminalização, no qual endereço, quantidade de melanina na pele, e graus de pertencimento à escola-instituição ainda são entradas chaves para definir o modo como uns homens valem mais que outros. Faz-se o convite, então a pensar um outro possível da expressão “vivere non est necesse”. A vida imprecisa, aleatória. Vida grau de desejo, vida potência. O principal produto do entendimento da vida como processo impreciso é problematizar o próprio conceito científico de causalidade. É entender que a vida se dá pela diferençadiferenciação. Por composições entre diferentes, em lugar de determinações naturais.

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Agenciamentos em lugar de essências. Tem potência para resistir, mesmo quando encurralada em um banheiro onde se dorme com mais três pessoas. É podada quando se lhe obriga a cravar os olhos no chão enquanto anda com as mãos para trás, algemadas. Enquanto isso o pensamento cresce em outra direção. A todo o momento, contudo, correndo o risco de captura por limites identitários. A ciência se ocupa disso, precisamente. De capturar os efeitos dos mais diversos modos de vida e enquadrá-los em categorias para extrair deles seu saber. E se alguém sabe, ou tem certeza de algo, tem poder; emanado do conhecimento e da previsibilidade que esta postura política provoca. A micropolítica autoriza a não tomar a vida como um bonsai, a ser disciplinado, educado ou curado. Permite-nos reafirmar sua existência-rizoma. Em lugar de mostrar-lhe o caminho, dar força a essa vida que pede passagem. Seguirá ela imprevisível como o curso de um rio. Viver não é preciso, e nisso há uma beleza que cega os olhos. Mas que método captura essa vida corrente, pelo meio, enquanto a toma como processo, em lugar de uma entidade cristalizada? Objetivando o subjetivo Pensando nos impactos das intensidades subjetivas, tão repudiadas pelos postulados da ciência hegemônica moderna - e seus reflexos na constituição de um pensar acerca de algo -, algumas questões emergem. Que tipo intervenção permite a ousadia de deixar o cientista aparecer? Qual ‘método’ nega a neutralidade do observador e o insere na complexa rede de práticas de poder produtoras de um objeto? Barros (2007) joga dardos, esperando e experimentando tocar a questão. Sob nosso olhar, acerta em cheio quando tipifica o discurso atual acerca de duas modalidades de pesquisa: pesquisa-ação e pesquisa-intervenção. Falando sobre a primeira, afirma que: [...] rompia com os ditames conservadores que regiam as ciências sociais da época – quando mostrava que o pesquisador era colhido em seu campo de investigação -, mas ainda permanecia em uma visão funcionalista e dicotomizante no que se refere à relação teoria-prática e à relação sujeito-objeto. (BARROS, 2007, p. 230)

A grande ruptura epistemológica realizada por Lewin ao propor o modelo de pesquisa-ação é, justamente, abandonar a idéia de neutralidade do observador. A mera relação do pesquisador com o campo modifica-o, alterando o objeto a ser analisado. A

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ruptura com a assepsia científica reinante é um marco importante dessa perspectiva. Entretanto, o entendimento de teoria e prática, bem como de sujeito e objeto, enquanto representações, fatos a-históricos dados a priori, aniquilava a dimensão política da análise científica. Prática e teoria continuavam sendo instâncias concorrentes, bem como sujeito e objeto se mantinham como entidades separadas, as quais pouco se afetavam. Ansiosos por recontextualizar as quatro instituições supracitadas, aparentemente dicotômicas, o movimento da Análise Institucional francesa invoca o conceito de instituição, como: “(...) certas formas de relações sociais, tomadas como gerais, que se instrumentam nas organizações e nas técnicas, sendo nelas produzidas, re-produzidas, transformadas e/ou subvertidas.” (Rodrigues & Souza, 1987, p. 32). Importante notar que, nesse caso, as instituições são entendidas como a cristalização de modos de subjetivação, tornados naturalizados pela mecânica das práticas sociais. Desse modo, os eixos sujeitoobjeto e teoria-prática, seriam, somente, outras normatizações da maneira de acessar a natureza conhecida por pesquisa. Uma política científica de abordagem ao mundo. A compreensão da dimensão política das análises que são orquestradas atinge o analista institucional. Obrigam-no a sugerir – contrapondo a mecânica das práticas sociais – uma dinâmica das instituições, as quais opõem forças para se pronunciar, em lugar de existirem por efeitos transcendentais. O que se encontra no mundo é fruto de uma construção sócio-histórica, é “(...) processo de produção constante de modos de legitimação das práticas sociais.” (Passos & Barros, 2009, p. 107). Em sendo praticar a ciência algo muito parecido com o manejo do tear; feitura de pontos de interseção, desmanche de outros pontos para a produção de novos, construção de linhas que interagem e/ou divergem; o próprio manejo de quem tricota é importante peça da produção. A rendeira escolhe os pontos a serem observados, desfeitos para dar lugar a outros, bem como sustenta a manutenção de tantos outros que pensa ser adequada ao bom andamento da obra. Ela está implicada politicamente, mantendo ações que conservam ou transformam. Uma implicação, enquanto conceito, bastante semelhante à da Análise Institucional, entendida como “(...) um processo político, econômico, social, etnológico etc., heterogêneo e que deve ser examinado em todas as suas dimensões.” (Baremblitt, 1996, p. 153).

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Ou seja, a noção de implicação abarca todos os elementos contidos na produção de uma intervenção. E justamente pela necessidade de ser colocada em análise a todo o momento, a implicação é indissociável do instrumento análise das implicações. Lançar mão desta ferramenta é, continuamente, estar consciente de que cada ponderação, colocação, pesquisa, constrói mundos, produz sujeitos, formas de estar e ser no mundo. Por essa razão mesma, como interventores dos espaços subjetivos, devemos colocar em análise as produções de nossos discursos. A questão deixa de ser a veiculada na pesquisa-ação, ‘Como afeto meu objeto pela minha presença?’, para se tornar ‘Que mundos engendro, em mim e no outro, quando entro em contato com esse outro? Na construção de um processo que não existia antes, que mundos enquadro, aprisiono? Como capturo o outro antecipadamente com o meu ‘olhar’? E como esse conjunto de coisas afeta meus posicionamentos, minha forma de existir, a qual também é atravessada por uma série de outras questões de variadas ordens?’ Há uma ruptura epistemológica de outra ordem. A marca da pesquisa-intervenção é justamente se apropriar da análise das implicações como elemento fundamental a qualquer observação.

O processo de pesquisa passa a ser o próprio questionamento do papel

exercido pelo analista. Com a palavra, o próprio Lourau: A análise das implicações é o cerne do trabalho socioanalítico, e não consiste somente em analisar os outros, mas em analisar a si mesmo a todo o momento, inclusive no momento da própria intervenção. As implicações em jogo podem ser claramente libidinais, [...] Podem ocorrer também variadas seduções visando o exercício de uma certa hegemonia de poderes, tanto dentro do grupo de interventores como na relação deste com os demais grupos da intervenção. As implicações ideológicas e políticas estão, é claro, presentes a todo momento. (1993, p. 36)

A pesquisa-ação produz uma grande ruptura na atividade de análise do campo quando oblitera a neutralidade do sujeito na intervenção. Todavia, ela precisa da compreensão do objeto a ser pesquisado como uma unidade da qual se pode extrair saber para sobre ele exercer algum poder. É necessário um sujeito homogêneo e unificado em vistas

a

poder

fazer

emergir

suas

características

e

produzir

mudanças

comportamentais/sociais, através de técnicas de cunho educativo ou terapêutico. A pesquisa-intervenção coloca o ato da investigação científica enquanto processo. Processo de produção de objetos, de sujeitos, de fundamentos teóricos e exercícios práticos. Porém, ainda assim processos. Cada uma dessas representações é construída pelo próprio exercício da experiência de intervenção.

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A encomenda de entrada da Psicologia no espaço carcerário, realizada pela Polícia Civil, foi tomada como a possibilidade de construir um espaço de pesquisa-intervenção na qual contemplar objetos não faria o menor sentido. Enquanto o pedido das autoridades se caracterizava por ‘recuperar’ os presos que causavam maior número de conflitos, apropriamo-nos como uma oportunidade única de estudar processos de criminalização em uma instituição fechada, disciplinadora e rígida. Como nomear as estratégias empregadas na pesquisa, quando elas não se enquadram bem no modelo da ciência moderna, que recomenda métodos de representação de objetos preexistentes? (Passos e Barros, 2009) Como abandonar a paixão pela representação de objetos, em nome do acompanhamento de processos de subjetivação e de linhas de força? Uma aposta... Com um nome tão simples quanto estranho para uma ciência humana. Cartografia. Construção de mapas, enquanto eles se (re)configuram e alteram quem com eles se envolve. Implicação com o movimento que engendra processos. No caso, processos de criminalização. Estabelecer uma cartografia no cárcere caracteriza-se por assumir um métodoatitude que se ocupa da produção/análise dos diagramas de força. É exercer ensaios, tentando aproximar do campo, e evidenciar as linhas envolvidas no andamento de um dado percurso. Nossa intervenção se pretendia a cartografar quais movimentos de força se compunham entre as instituições polícia, preso, carcereiro, estudantes de psicologia, parentes dos aprisionados... Pesquisa e intervenção, nesse caso, são apenas dois nomes para separar algo que está plenamente fundido. O primado da cartografia é retirar de um caminho delineado a priori a condição para a produção do conhecimento. Transformar a realidade, nela intervindo, apresenta-se como um mecanismo desviante para estabelecer um saber capaz de fugir da simples experimentação de uma hipótese já construída em momento anterior pelo pesquisador. Nesse sentido, não há, a rigor, uma atividade de pesquisa separada de uma clínica-política. Toda clínica é política, pois coloca em questão o que está instituído no diagrama de forças. Produz novas concepções de mundo. Produzir uma clínica no cárcere é, antes de curar o preso, colocar em xeque as próprias forças que o compõem. Abalá-las, produzir torções em um espaço fechado na tentativa de afirmar a possibilidade de outras existências, para além daquela entregue no

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momento do preenchimento do boletim de ocorrência. Pesquisar é exercício de criação de novos mundos. Permitir ser afetado pelo território, à medida que o afetamos. Compreender que não há um espaço-essência, já dado, mas compreender que o próprio espaço de trabalho e a maneira como nos inserimos nele é produção, processo. A prática cartográfica supõe essa receptividade ao campo, uma abertura à aventura ético-estético-política de se permitir navegar pela experiência e ampliar seus territórios para além do que se supunha graças ao ativismo do ‘objeto de pesquisa’. Pesquisar é cavalgar outros territórios, mergulhando em singularidades. Pesquisar requer dispositivos, máquinas de ‘fazer ver e de fazer falar’. Instrumentos para colocar em evidência uma estranheza que os olhos se acostumaram a ignorar. Dispositivos são como mãos. Mãos para tatear incessantemente, para fazer ver o que está à frente, e ainda assim fora de um nível de percepção cognoscível. Os que não enxergam apalpam o mundo com mãos, bengalas, são guiados por cães. A esperança é de caminhar, habitar o mundo e dele extrair informações passíveis de análise. Não se procura algo específico – talvez evitar obstáculos, mas se caminha com a expectativa do encontro com algo diferente de todo o restante. Procura-se o evento desencadeador de uma nova percepção do mundo. Nós, também, tateamos. Tateamos com grupos-dispositivo. Barros (2007) introduz a proposta de acompanhar o mundo deixando de lado o que a visão fluida capitalística propõe. A autora entende o grupo como uma aposta com duplo efeito: ele é intervenção e produção de conhecimento. É máquina, dispositivo para a produção de analisadores. Permite a problematização do modo-de-ser-indivíduo ao produzir a desindividualização. Questiona os determinismos sociais fundados em biografias problemáticas, histórias de desarranjos familiares e subculturas. O grupo sugere entender a emergência histórica e o entrelaçamento das vidas. Seduz à formação de um plano coletivo, no qual surgem situações propícias à intervenção. Convida a uma intervenção, apontando, em nosso caso, que o crime diz mais respeito a uma construção social, que a um desvio dos sujeitos. Colocar os presos em grupo não se constituiu como um recurso econômico, com o qual poderíamos atender mais presos em nosso escasso tempo na delegacia. Menos ainda era uma estratégia para gerar problemas de segurança, como diziam os guardas. Escolher o grupo como dispositivo tateante era acreditar que o coletivo era mais que a soma das

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individualidades da sala, era uma grande potência de análise das maneiras de ver, estar e viver esse mundo. Estar em grupo era uma tática para a produção de acontecimentos, para a visibilização de rupturas nos discursos cristalizados, estranhamentos do que está dado. Estar em grupo era, além disso, uma aposta que a clínica era mais que ouvir, mais que redimir. É clínica-política. Entendimento que toda intervenção produz mundos, agencia afetos, abala concepções já moldadas. Os grupos, quando entendidos a partir desse paradigma, tornam-se “máquina de decomposição de verdades” (Barros, 2007: 325). Grupos políticos pois se implicam na construção de novas subjetividades, em uma luta micropolítica pela tentativa de instauração de (novas) realidades no encontro com o outro. Difícil definir os grupos afastando-se dessa frase. Políticos pois dizem de uma luta, estéticos já que convidam à criação, éticos pois se produzem em uma construção coletiva de afetos. Eis a entrada grupal que o paradigma ético-estético-político nos abre: a de uma subjetividade que experimente, se arrisque em outros modos de composição; a de uma subjetividade que se produza heterogênea, sendo ao mesmo tempo heterogenética; a de uma subjetividade que esteja comprometida com os processos coletivos que a produzem (Barros, 2007: 325)

Tem-se, ainda, muito a aprender. Segue-se procurando as pequenas rupturas da subjetividade e os agenciamentos que elas permitem construir. Tateia-se sulcos no asfalto, analisadores dos processos de criminalização - com os presos. Estranho prazer nessa dor do exercício cartográfico. Ser um cego apalpando uma parede chapiscada, não procurando nada, até que algo lhe encontra e captura. Subjetivando o objetivo Somos estudantes, e professores, e filhos, e amigos, e fascistas, e libertários, e anarquistas... em um eterno agenciamento das pluralidades – e por que não dizer abundâncias – que nos constituem enquanto “sujeitos”. Somos uma dobra de articulação das múltiplas maneiras de ser, estar, viver e sentir o mundo. Portanto, nem um interior inexpugnável, menos ainda um reflexo do ambiente. Mas dobra, agenciamento de coletivos para os quais nem mesmo atentamos. Multiplicidades que se expressam através de identidades apenas aparentes, como no conceito de devir. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: e que não são nem imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-

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preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto mais singularizados numa população. (Deleuze, 1993: 12)

Operar pelo devir é se permitir transitar por territórios não hegemônicos e ‘beber’ da possibilidade de não sujeição a um modelo prévio de existir, embora se manifestem através de micro-identidades instantâneas. Movimento de estar criança, preso, paciente, psicólogo. Usar das identidades dispersas na subjetividade para produzir o novo, sem a elas se ater em um modo de sujeição. Atuar tendo o devir como subjetivação é abrir a possibilidade para uma política de existência que comporte linhas de fuga adutoras de outros agenciamentos possíveis. Tomando a atividade de pesquisa como um analisador, seria reunir em um esforço não totalizante, não perder de vista a dimensão política do moto-contínuo ‘afetar sendo afetado’. O labor ‘técnico’ pode se mostrar como um favorecedor de uma política de existência estética, enquanto ‘depositário’ e ‘denunciante’ de um discurso a favor da vida como potência de criação. Sobrepor as dobras é sugerir novos agenciamentos, possibilitar outros atravessamentos, multiplicar territórios; dilatar o que as concepções intimista e social chamaram de sujeito. E esse movimento se constitui em uma dupla entrada. Realizar uma intervenção se configura, pois, como criar condições de possibilidade para a formação de novos mundos. Maneiras originais de ‘estar’ objeto-processo, desestabilização do ‘ser’ psicólogo e, quiçá, reformulação dos paradigmas da própria ciência, através desse deixar-se passar por uma subjetividade-alteridade. Aqui entendemos “[...] o Outro, pois, como diferença, quer dizer, como aquilo que faz diferir, que produz novidade.” (Domènech, Tirado & Gomez, 2001, p. 133). Ambos se modificam ao se tocarem, de uma maneira imprevisível. Alteram dobras e bordas, produzindo novidade, possibilitando a construção de novas maneiras de ser, estar e perceber o mundo, maximizando a potência de criação de novas linhas. Em um ano de experimentação, de grupos e encontros, muita riqueza nos alterou, constituiu conosco. Por tudo isso somos gratos, somos novas dobras. Dobras com uma esperança, a de uma outra Psicologia possível, implicada na fuga do atual papel de ‘futurologista científico’ (Rauter, 2003), estimando a periculosidade de criminosos e concedendo ‘benefícios’ a presos bem adaptados. A despeito das pressões institucionais por um trabalho de terapia contra uma possível ‘tendência sociopática’ ou de correção de um

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desvio de caráter, ativemo-nos à discussão, com os próprios presos, dos mecanismos de criminalização. Colocar em análise os mecanismos de criminalização: o efeito da intervenção. Com isto os presos, ao não se entenderem como essência, puderam falar de uma vida que não se resumia a um código penal violado. Pôde-se discutir as dificuldades de viver em grupo, dos apelidos que eram colocados (e o porquê de suas escolhas), das rotinas institucionais que circulavam naquele espaço. Criaram-se grupos e, com isso, vidas. Vidas diferentes daquelas que são comumente entendidas como perigosas. E, porque diferentes, potentes. A cada encontro, a notícia de uma saída encontrada para um conflito, ou a notícia de criação de mais conflitos. Potência de criação. Sem notar as modificações que foram se dando em nós, propúnhamos uma alteração radical da Psicologia possível no cárcere. Lutamos por uma Psicologia ireverente. Não apenas por que adotava uma postura de irreverência, afastamento da mortificação que o cárcere era capaz de produzir. Mas acima de tudo, pois não prestou reverência aos modelos acomodados pelas e nas engrenagens do sistema penitenciário. Desejamos uma Psicologia da composição com o outro, com os presos. Uma nova ‘teoria’, entendida como sistema regional de luta (Foucault, 2007). Pensada não como uma cadeia de raciocínio desenvolvida e para esclarecer um fenômeno, reeducar um jovem, reabilitar um preso ou curar um louco. Psicologia como análise local de processos em andamento. Psicologia como um compromisso ético-estético-político com a vida, seja lá onde ela esteja encarcerada, ou seja lá quem a ameace.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alvarez, J.; Passos, E. (2009). Cartografar é habitar um território existencial. Em: Passos, E.; Kastrup, V.; Escóssia, L. (Orgs.) Pistas do método da cartografia. Porto Alegre: Sulina. Baremblitt, G. F. (1996). Compêndio de Análise Institucional e outras correntes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. Barros, R.D.B.(2007). Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina. Bergson, H. (2005) O pensamento e o movente. São Paulo: Nova Cultural.

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