Por uma sociologia do oprimido

May 26, 2017 | Autor: Liana Biar | Categoria: Boaventura De Sousa Santos
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Liana Biar Professora de Língua Portuguesa do CEFET/RJ,doutoranda da PUC-Rio/CAPES

Do capítulo 1, A Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências: para uma ecologia de saberes, originam-se os mais referenciados motes da obra recente de Boaventura. Nele, denuncia-se o abismo que se impõe entre as peculiaridades do mundo contemporâneo globalizado, suas novas práticas sociais, e o tipo de conhecimento que se produz sobre ele, ainda embasado em paradigmas etnocentrados e obstinados por valores cientificistas de neutralidade e objetividade. O autor, então, transforma em proposição epistemológica o rompimento definitivo com tais valores, que estão entre as questões insistentes e não superadas das ciências sociais contemporâneas. E isso se dá pela seguinte via: sendo a produção científica um produto cultural como outro qualquer, é preciso que se reconheça o fazer hegemônico como manifestação de uma compreensão ocidental sobre o mundo, uma versão parcial da realidade, localizada e historicizada, ilusoriamente naturalizada e tratada como consenso.

Por uma Sociologia do Oprimido Em 1978, Paulo Freire, em um exercício profundo de revisão de seu próprio papel formulador, sugere que uma pedagogia efetivamente libertadora é aquela que emerge não dos que detêm os meios para atuar prescritiva e messianicamente sobre as minorias, alegadamente condenadas à dependência material e intelectual das elites, mas dos próprios oprimidos que, descobertos por si mesmos, podem elaborar a cartilha de sua emancipação. Após trinta anos, a festejada mas pouco praticada reflexão de Freire aparece atualizada, agora no âmbito das ciências sociais, pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, em uma de suas mais relevantes obras – Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social. Os pontos de contato entre os dois pensadores não terminam por aí. Autor de bibliografia vasta que inclui Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (Cortez, 1995) e, mais recentemente, A gramática do tempo: para uma nova cultura política (Cortez, 2006), bastante lidos no Brasil, especialmente na área da educação, Boaventura desenvolve a obra aqui resenhada em três capítulos breves e fluidos, derivados de seminários realizados na UBA, Argentina, por ocasião de uma das frequentes incursões do sociólogo aos problemas e estudos sobre/da América Latina. De modo geral, tais seminários traduzem bases epistemológicas, teóricas e políticas, tomadas como dimensões sobrepostas, necessárias à concretização de um projeto anunciado no título e no prólogo da compilação: é preciso reinventar os modos de se atender às promessas da modernidade para uma vida social mais justa e solidária.

Mais que mero equívoco, tomar a "parte" como o "todo" é, para Boaventura, uma postura indolente, que opta por antolhos ao prescindir da riqueza epistemológica distante do "núcleo intelectual" conhecido: os saberes que vêm do oriente, do sul – coordenadas geográficas que, bem ao estilo do autor, compreendem metonimicamente os povos colonizados, excluídos, secularmente invisibilizados e condenados ao esquecimento. Segundo os argumentos da obra, e de maneira análoga ao que se postula nas teorias pós-modernas críticas, como aquelas que se dedicam às questões de gênero (queer e feministas), às teorias antirracistas e pós-coloniais, uma compreensão justa e democrática do mundo só é possível a partir da diversidade caleidoscópica de perspectivas lançadas sobre ele.

95 Revista Tecnologia & Cultura - Rio de Janeiro - ano 12 - nº 16 - pp. 95/96 - jan./junz. 2010

Resenha

Boaventura de Sousa Santos Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Tradução de Mouzar Benedito Boitempo, SãoPaulo, 2007 128pp

O capítulo 2, Uma nova cultura política emancipatória, discute a grande teoria crítica de que dispomos mais frequententemente nos ambientes acadêmicos. Sem se esquivar das discussões polêmicas – de que tomamos conhecimento, aliás, ao fim de cada capítulo, pela transcrição do diálogo com uma plateia crítica e engajada –, Boaventura põe à prova o Marxismo, em suas configurações clássicas e renovadas, e nos convida a uma reflexão franca e consistente sobre seus limites. Seu argumento central é que, mesmo ao negar o modo de produção hegemônico, o materialismo histórico é, ele mesmo, monocultural, o que se deixa entrever pela maneira como seus divulgadores identificam a ideia de futuro com a de progresso (um valor etnocentrado, segundo o autor), além do tratamento naturalizado dado ao colonialismo, entre outras questões

sociais. A "objetividade engajada", convocada nessa proposta, resume-se no seguinte: se nossos instrumentos teóricos ainda são os hegemônicos, a tarefa que nos cabe é canibalizá-los, manejando-os em estilo contra-hegemônico. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social, não à toa prefaciado por Gaudêncio Frigotto, parece traduzir, recontextualizando – ou melhor, atualizando em um mundo globalizado –, a distinção entre opressores e oprimidos já conhecida e sublinhada por nossos educadores freireanos. Bem-vinda para qualquer pesquisador das Humanidades, a obra é uma exposição apaixonada, que reacende a preocupação com a práxis transformadora, declarando que é dever das ciências sociais cultivar as possibilidades de transformação das relações efetivas ou simbólicas de exclusão; que o fazer científico a-político, mais que omisso, pode trazer consequências sociais devastadoras, uma vez que silencia e condena ao esquecimento, ou a soluções pouco efetivas, porque ilegítimas, as culturas periféricas dos grandes centros hegemônicos – e nós, do Sul, sabemos bem o que é isso.

No terceiro e último capítulo, Para uma democracia de alta intensidade, com o já anunciado e instigante apelo político, o leitor vê provocados os modelos correntes de democracia, amplamente expostos em suas definições sempre perspectivadas pelas sociedades liberais, que, embora os construam com base em ideais de participação, quase nunca garantem as condições de sua concretização. Com esse exemplo emblemático, o autor nos lembra que o compromisso de um pesquisador engajado é duplo: devemos conhecer tanto as versões consensualizadas sobre os conceitos que importam à emancipação social, quanto as versões rebeldes destes, que nos fazem avançar nas lutas em favor das transformações

Nessa abordagem, a faceta de pesquisador não se dissocia da de cidadão, e a pesquisa não está livre de preocupações éticas e direções morais. Tendo isso em vista, a leitura densa e necessariamente esperançosa do livro de Boaventura perfaz o caminho introspectivo de cada pesquisador que, após muitas formulações, acomodadas ou rebeldes, sobre contextos estranhos ou familiares, se pergunta: E agora? O que fazer com isso?

96 Revista Tecnologia & Cultura - Rio de Janeiro - ano 12 - nº 16 - pp. 95/96 - jan./junz. 2010

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