Pornografia, espetacularização do cotidiano e representações da realidade (2015)

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Pornografia, espetacularização do cotidiano e representações da realidade André Henrique dos Santos Francisco PPGA/UFF Falar de pornografia é entender que, embora este conceito tenha surgido no século XIX como herança direta da Renascença, ela está tão intimamente ligada ao nosso comportamento social que suas representações acompanham toda a experiência humana desde os tempos mais primitivos até a atualidade. Ainda hoje, (re)produzimos práticas e comportamentos que remontam a épocas longínquas. Entre essas práticas que nos acompanham, o ato de registrar os eventos e acontecimentos – comuns ou não, cotidianos ou extraordinários – faz parte da nossa experiência. Ao longo do tempo e do espaço, é comum observar que as diferentes sociedades humanas registram sua rotina, suas experiências, seu aprendizado. O comportamento sexual faz parte da experiência humana desde tempos remotos. Logo, por também ser o sexo uma atividade cotidiana, encontramos sua representação pictórica desde a pré-história. Esse tipo de produção trata-se de uma legítima expressão da cultura. Tal expressão se apresenta de maneira ampla nos elementos da cultura material e imaterial: esculturas, pinturas, gravuras, livros, textos, filmes, fotos, músicas, danças, entre outros elementos da arte erótica. Ela se manifesta de diversas formas na nossa sociedade, suas representações se encontram presentes no nosso cotidiano, mesmo que de uma maneira muito subjetiva, subliminar e mesmo ‘disfarçada’. A presença dos elementos pornográficos e eróticos no nosso dia a dia é muito maior que imaginamos. Desde leves insinuações eróticas em anúncios de produtos que usamos cotidianamente até produtos de sex shop1, sua presença se faz sentir com cada vez mais força. Alusões ao sexo e seus temas estão presentes em nossa vida cotidiana, podendo ser encontradas praticamente em qualquer lugar:

Sex shops são lojas – físicas ou virtuais - que comercializam produtos com finalidades sexuais, tais como vibradores, bonecas insufláveis, acessórios de sadomasoquismo, lingerie erótica, fantasias, filmes pornográficos, preservativos, cremes, calcinhas comestíveis, entre outros produtos. As lojas físicas podem estar equipadas com cabines para exibição de vídeos (onde podem ocorrer encontros sexuais, inclusive). Algumas sex shops dispõem de estruturas mais elaboradas, de acesso pago, próprias para promover o intercurso sexual entre seus clientes/frequentadores. 1

“discretas, quase escondidas, invariavelmente embaladas em saquinhos plásticos transparentes, algumas portando uma tarja preta ou vermelha com a inscrição ‘proibida para menores de 18 anos’, lá estão elas, inevitavelmente em todas as bancas, com menor destaque que as familiares revistas femininas e os sisudos jornais, mas suficientemente à mostra para seu fiel e também disfarçado público: as revistas pornográficas” (MORAES & LAPEIZ, 1985, p. 68).

Em qualquer direção que se olhe, podemos encontrar representações relativas ao sexo: em bancas de jornais e revistas, em outdoors, na vizinha que faz topless se sentindo protegida pelas paredes mas traída pelas janelas de sua casa, em anúncios de jornal, em clubes, numa bundinha que aparece despretensiosamente na novela, na pichação no muro da esquina, nos versinhos eróticos na parede do banheiro, em letras de música e/ou passos de dança com (forte) teor sexual, nos adesivos com propagandas de garotas de programa colados em telefones públicos etc. Falar de pornografia é compreender que ela é uma expressão cultural, um discurso sobre o sexo que se forma na fricção entre o livre pensamento e a proibição, entre livre expressão e censura. Ao falarmos de liberdade e interdição, cabe apontar que a pornografia tem um caráter libertário porque floresce justamente do embate com a censura. O conceito de pornografia surge no século XIX com trabalhos textuais ou iconográficos os mais diversos, empenhados em se opor à moralidade dominante, em transgredir a ordem vigente (HUNT, 1999). Essas produções desafiam aos padrões socialmente aceitos e, com isso, suscitam repressão, interdição e, é claro, novas formas de regulamentação (MORAES, 2003). A sociedade, de maneira geral, arbitra sobre os limites entre liberdade de expressão e interdição e a pornografia não escapa de sua área de ação. A pornografia assume um caráter subversivo por promover um discurso acerca da sexualidade que é diferente daquele admitido que se quer transmitir. Na tentativa de evitar a difusão dessas ideias transgressoras e subversivas, foram criados diversos órgãos públicos e sociedades beneméritas que se responsabilizavam pela fiscalização e/ou apreensão de material danoso à manutenção do status quo vigente. Há uma questão de legalidade, estabelecida a partir de valores morais, em torno da produção e circulação da pornografia. A distinção entre o que é ou não aceitável e, portanto, legalizado ou não, perpassa pela distinção entre dois lados de uma mesma

moeda: erotismo e pornografia. O erotismo pode ser entendido como o conjunto de expressões culturais e artísticas humanas referentes ao sexo. É algo que está ligado a Eros, o deus grego do amor, da paixão, do desejo intenso. Pelo entendimento comum, “o erótico está associado à sexualidade ‘limpa’, legal e organizada, já aceita por grupos socialmente reconhecidos e com poder de fazer valer seus ideais e sentenças” (LEITE JR., 2008, p. 48). Já a pornografia é vista como algo que se relaciona à devassidão sexual, obscenidade, licenciosidade e indecência: uma representação do sexo ilegítimo e desestruturador dos valores estabelecidos. Assim, a diferença entre o pornográfico e o erótico está nos conteúdos e formas mostrados. O âmbito do erótico é demarcado pela expressão da sensualidade, enquanto o pornográfico é tudo aquilo que é explícito e obsceno (PICAZIO, 1998). A pornografia seria algo mais cru, mais explícito, mais despido de emoção, mais vulgar. Já o erotismo, estaria mais ligado ao âmbito da emoção, da afetividade. Se formos traçar um paralelo, a pornografia liga-se mais ao tesão e ao desejo, da mesma forma que o erotismo liga-se à sensualidade. Essa separação entre um e outro é, na verdade, uma divisão entre aquilo que é aceito e aquilo que é proibido dentro de uma realidade social ou numa cultura específica. A pornografia e o mercado a ela associado se alimentam exatamente da ‘indefinição’. Em termos de moralidade, a noção do que é ou não é moralmente aceitável é algo que se modifica através de tempo e também entre as diferentes culturas. Cada sociedade, em determinada época, compreende diversas obras – produzidas dentro desta mesma cultura ou não - como algo que ameaça seus costumes, sua moral. A própria noção do que pode ou não ser considerado material pornográfico é algo variável. O que é considerado como pornográfico na atualidade pode não sê-lo dentro de algumas décadas, anos ou mesmo dentro de meses. O que é entendido como obsceno dentro da cultura ocidental é diferente da concepção de obscenidade dentro da cultural oriental. Inclusive, essas diferentes concepções podem ocorrer dentro de uma mesma cultura, de uma mesma região e até mesmo dentro de unidades familiares. Um exemplo disso é a questão da exposição do (próprio) corpo. Em diversos países da Europa, a prática do topless na praia é comum. No Brasil, embora tal prática seja socialmente tolerada por muitos grupos, ainda pode ser considerada um ‘ato obsceno’ (criminalizado, passível de penalidade). Que se dirá, então, das culturas muçulmanas atuais, que solicitam às mulheres que usem pesadas burcas cobrindo seu corpo quase

inteiramente – tornando obsceno, impróprio ou pornográfico tudo aquilo que fica coberto: braços, tornozelos, joelhos... Essa mudança na percepção do que é pornográfico ou não pode ser observada também dentro de uma mesma sociedade, em momentos diferentes. Se hoje, por exemplo, podemos ver beijos ardentes nas novelas sem sentirmos o mínimo de pudor, na década de 1950 o primeiro beijo televisionado causou furor e protesto, sendo taxado por muitos como obsceno (MORAES & LAPEIZ, 1985). Além disso, “vale dizer que a dança do maxixe, o teatro de revista, as peças de Nelson Rodrigues (1912-1980), o chamado ‘funk carioca’ e mesmo a obra de William Shakespeare (1564-1616), em algum momento, já foram chamados de ‘pornográficos’” (LEITE JR., 2008, p. 50). Definir o que é pornografia perpassa pela oposição circunstancial entre o aceito e o proibido. Perpassa, então, pela trajetória, através de séculos de história da experiência humana, de construção daquilo que pode ou não ser mostrado, falado, comentado. “Definir pornografia é, portanto, falar sobre transgressão. Mas significa também falar de sua maior contraparte ao longo de sua história: a censura” (FRANCISCO, 2012). Desse modo, a pornografia se define em função dos esforços de proibi-la, controlá-la ou mesmo de regulamentá-la. Então, além de se definir em contraposição à ordem vigente e à censura, a pornografia é categorizada pelo seu caráter questionador. Ela emerge como um mecanismo de crítica social e política, de questionamento de costumes e padrões (HUNT, 1999). A pornografia surge tanto para chocar e como para gozar e divertir. Por se tratar de um produto cultural, nas sociedades ‘ocidentais’, a produção pornográfica está intimamente ligada a uma lógica de mercado que, atualmente, é regida por uma crescente demanda interessada em representações da realidade. Essa lógica de mercado pode ser observada em vários setores da sociedade: um bom exemplo disso é o boom de reality shows, isto é, programas de televisão que mostram (um)a realidade de algum grupo social. Através do mercado é que as representações da pornografia, especialmente as menos evidentes, se difundem no nosso cotidiano. Encontram-se disfarçadas ou escamoteadas de modo a ‘caber’ nos padrões de moralidade socialmente aceitáveis. Há uma grande variedade de produtos que podem ser considerados pornográficos: filmes, revistas, livros, músicas, esculturas, objetos utilitários, roupas, programas de TV (aberta, a cabo ou pay-per-view), empresas de disk-sexo, sites, salas de bate-papo e até mesmo

locais físicos como saunas, termas, casas de massagem. Ao se desenvolver como indústria e construir um mercado legal, a pornografia ramificou-se de forma rápida alcançando, atualmente, através dos milhares de páginas da internet consideradas pornôs, uma quantidade inimaginável de gêneros e categorias. Se o avanço tecnológico permitiu o crescimento e popularização da pornografia, encontramos também mudanças de mentalidade que permitiram que se falasse mais abertamente sobre sexualidade – discursos, antes ‘indizíveis’ - sobre a intimidade e a privacidade, sobre a experiência pessoal do sexo. A grande questão da pornografia é que ela desvela toda uma gama de práticas e comportamentos íntimos, privados e, que de certa forma, são considerados moralmente vexatórios ou indecentes. O cerne é a obscenidade: “obsceno então é aquilo que mostra o que deveria esconder, explicita o implícito, apresenta o oculto, revela segredos proibidos” (LEITE JR., 2008, p. 51), arguindo a ordem prescrita. O discurso pornográfico é, portanto, obsceno porque traz à luz aquilo que se deve deixar no escuro. A partir do momento em que se torna um assunto cada vez mais recorrente, a função da pornografia seria a de desvelar aquilo que se quer esconder ou, ainda, de revelar aquilo que intencionalmente esconde os mercados da fantasia. Não podemos esquecer o sigilo, o mistério e a proibição provocam a fantasia: há uma relação também de circularidade do secreto, do íntimo, do indecente com o fetiche, com o desejo, com a busca do prazer (BATAILLE, 2003). Dessa forma, a pornografia é uma fantasia de desvelamento da intimidade dos comportamentos sexuais, do cotidiano do sexo. A produção dos filmes pornográficos segue a tendência de espetacularização dos produtos culturais da sociedade atual. Vivemos, na contemporaneidade, uma experiência de sociedade organizada em função da produção e consumo de espetáculos, expressos através de imagens, mercadorias e eventos culturais (DEBORD, 1997). De acordo com Kellner (2003, p. 05), espetáculos seriam fenômenos da cultura da mídia “que representam os valores básicos da sociedade contemporânea, determinam o comportamento dos indivíduos e dramatizam suas controvérsias e lutas, tanto quanto seus modelos para a solução de conflitos”. Toda a nossa vivência - até mesmo as coisas mais simples e básicas do cotidiano - está sujeita a tornar-se espetáculo e, portanto, produto para o consumo, notadamente de massa. A visualidade assume uma centralidade na produção de espetáculos, já que a televisão – considerada um dos maiores meios de comunicação de massa na atualidade -

está em praticamente todos os lares, transmitindo os espetáculos especificamente desenhados2. Desse modo, podemos entender que a pornografia também pode apresentar e impor padrões de comportamento. Nesse ponto, a mídia – especialmente por seu amplo alcance - é fundamental para cristalizar e reforçar opiniões (ENZENSBERGER, 1983). Dentro de nossa sociedade e cultura baseadas no poder da informação, a mídia possui um peso muito grande: “recebemos indiretamente uma carga de valores e normas enviesados (...). A mídia tem o poder de reforçar algumas atitudes e emitir julgamentos sobre o que é mais ou menos adequado” (PICAZIO, 1998, p. 109). A mídia é um dos grandes exponentes no recente processo de transformação que temos experimentado. Conforme aponta Castells (1999), esta transformação nos levou à atual Sociedade da Informação, um modelo de organização das sociedades baseado no poder e no valor da informação, vista como o meio de criação de conhecimento e, assim, de produção de riquezas. É importante, então, que a informação seja difundida, ganhe maior alcance, tenha seu acesso massificado. A mídia, pelo seu papel de centralidade nesse processo de conservação e de transformação da sociedade, está fortemente ligada aos contextos de produção de ‘bens’ e ‘mercadorias’ da Indústria Cultural3. Novos padrões de produção e de consumo se desenharam em nossa sociedade capitalista. Dessa forma, a produção massificada da Indústria Cultural contribui para ‘moldar’ o comportamento humano, por estratégias de

O apelo pela exibição do ‘real’ tornou-se uma marca da contemporaneidade no Ocidente. É importante ressaltar que essa espetacularização construída da realidade pode seguir caminhos distintos. Ao promover uma comparação entre o documentário “Edifício Master” e o reality show “Big Brother Brasil” – modelos de produção diferentes, mas com a mesma finalidade: ocupar-se do real - Andacht (2005, p. 95) considera “uma tendência central na atual cultura das mídias, qual seja: o desenvolvimento tecnológico e artístico de uma ilusória intimidade à distância, como forma de refletir sobre a identidade. O funcionamento do reality show procura exorbitar a normalidade dos participantes num lugar anômalo; o documentário, entretanto, tenta oferecer uma visão circunspecta e moral do mundo cotidiano lá onde a vida acontece”. Assim, a produção da pornografia, com seus vídeos amadores e caseiros, não poderia estar respondendo a essa necessidade quase mercadológica de (super) valorização de uma realidade? 2

O conceito de Indústria Cultural trata da conversão da cultura em mercadoria (ADORNO, 2010). Tal conceito não se refere especificamente aos veículos de comunicação em si, tais como televisão, jornais, rádio. Trata, entretanto, do uso dessas tecnologias por parte da classe dominante, para a disseminação de ideias e a massificação de comportamentos. A produção cultural e intelectual passa a ser guiada pela possibilidade de consumo mercadológico. Surge uma legítima indústria midiática de fabricação de produtos (sobretudo culturais), informações e discursos que são consumidos como mercadoria pela população. Os indivíduos são transformados em massa, um grupo homogêneo de consumidores (GOLDESTEIN, 1987). A Indústria Cultural idealiza produtos adaptados ao consumo das massas, assim como também pode determinar esse consumo trabalhando sobre o estado de consciência e inconsciência das pessoas. Ela pode, ainda, ter função no processo de reprodução ideológica de um sistema, na reorientação de massas e no desenho e imposição de comportamento. 3

incucação: o conteúdo é fornecido de maneira calculadamente impositiva, estreitando as margens de manipulação do receptor. A pornografia, enquanto discurso do sexo e manifestação cultural, também não escapa dessa tendência à espetacularização. Afinal, de forma contínua, “a difusão passa a incluir nos programas televisivos e nas peças publicitárias conteúdos referidos à sexualidade” (CARVALHO, 2010, p. 218). O entretenimento é o principal produto fornecido pela mídia, “que espetaculariza o cotidiano de modo a seduzir suas audiências e levá-las a identificar-se com as representações sociais e ideológicas nela presentes” (ROCHA & CASTRO, 2009, p. 50). São difundidos discursos e imagens muito específicos acerca do prazer: “O erotismo transmitido pela televisão, pela publicidade ou pelo cinema carregado de apelos sexuais, atua de forma impositiva. A sexualidade aí não é um ato em que existe a troca, a comunicação, o atuar e participar junto. Os meios de comunicação, ao contrário, apresentam um modo já ritualizado e codificado de prazer. Trata-se da utilização, nos gestos eróticos, de movimentos e ações sígnicas, que buscam substituir ‘por pretender ser sua síntese’ a verdadeira atividade sexual” (MARCONDES FILHO apud CARVALHO, 2010, p. 220).

Ao transformar o cotidiano em espetáculo, a televisão - assim como quaisquer outros meios de comunicação de massa - produz novos significados (ou ressignifica os antigos), de acordo com uma lógica de mercado (MAKSUD, 2008). O sexo e suas representações se deslocam para um eixo mercadológico. Novamente, a pornografia é encarada para além das questões morais que suscita: regida pela lógica de mercado, se transforma em produto, algo fabricado e pronto para consumo. De fato, a pornografia torna-se um produto industrializado, com tendências à homogeneização da sexualidade. Porém, diferente de outros bens comuns e ordinários, é um produto que estabelece uma relação diferente com seu consumidor. Como ela mexe com a imaginação e com a fantasia de cada um, é de se supor que cada consumidor se relacione com a pornografia de modo único, singular (MORAES & LAPEIZ, 1985).

No que tange à pornografia alternativa, especialmente a caseira: “a performance amadora on-line vale-se da encenação compactuada do próprio corpo e da nudez para brincar incessantemente com as fronteiras da intimidade; com as fronteiras entre a persona pública e privada; entre o exibidor e a audiência; entre a fantasia da representação ‘anônima’ e fisicamente distante e a factualidade da imagem simultânea de corpos expostos de variadas formas, de rostos emoldurados por decorações de um quarto de solteiro, de um escritório num posto de trabalho, por piercings, maquiagens e às vezes mesmo por máscaras que lembrariam determinadas etapas de jogos presentes em rituais tribais” (KLEINSORGEN, 2014, p. 17).

A partir desta perspectiva da produção de pornografias alternativas, podemos então notar o surgimento e a popularização daquilo que se chama sex tape. Este anglicismo refere-se à fita ou ao vídeo de sexo tipicamente caseiro. É considerado também um tipo de vídeo amador, no sentido de não ser algo ‘profissional’ ou mesmo de, inicialmente, não fazer parte da produção mais tradicional da pornografia. Tais gravações de vídeo podem envolver duas ou mais pessoas engajadas em algum tipo de interação sexual, bem como podem conter apenas imagens de uma única pessoa exibindo partes do seu corpo, nudez completa e/ou atividade masturbatória. Num âmbito mais pessoal, as sex tapes (sejam de famosos, sejam de anônimos) representam um modo dos indivíduos expressarem sua sexualidade e seus fetiches. Podem ser encaradas como uma representação da realidade. Afinal, assim como no filme pornô tradicional e/ou mainstream4, no ato sexual das sex tapes também há corpos, identidades e performances. Como são gravações caseiras de sexo, envolvem baixo custo de produção, cenas rápidas que lhe dão mais dinamismo, pouca importância a uma história ou enredo, privilegiando a ação a ser exibida na tela, pouca preocupação com a qualidade técnica do material produzido e contando com ampla circulação. Como tratam-se de produtos caseiros, sua linguagem parece ser bem menos elaborada e preocupada com cânones e padrões estéticos do que os filmes pornográficos tradicionais, produzidos em escala industrial. Numa analogia pobre, porém eficaz, as sex tapes podem ser entendidas como a linguagem coloquial, do ‘povão’, enquanto

Termo inglês usado nas artes para designar um pensamento ou gosto corrente da maioria da população. Refere-se a algo comum, usual, familiar às massas, que está disponível ao público geral e/ou que tem laços comerciais. Assim, o mainstream inclui tudo o que diz respeito à cultura popular, de maneira especial referese a tudo aquilo que é disseminado principalmente pelos meios de comunicação de massa. 4

pornografia mais tradicional – qualificada como mainstream- representaria a ‘norma culta da língua’, o repertório qualificado diante do mercado. Assim sendo, a ideia mais comum que se pode ter sobre uma sex tape é de que ela é a representação mais próxima do sexo real, justamente por ser produzida por um espectador que transpôs as barreiras que o separam do papel de ator/agente do intercurso sexual (a ser) registrado. Por ser produto cultural do próprio consumidor da pornografia, às sex tapes é creditada uma maior verossimilhança no que tange ao registro do ato sexual comum, do cotidiano sexual que se pretende tornar espetáculo. A questão do realismo - e mesmo de hiper-realismo - é importante: enquanto a pornografia mainstream, embora bastante variada no que tange aos temas que abrange, se volta para uma estética muito bem desenhada e definida que envolve padrões de corpos e masculinidades bem delimitados e bastante idealizados, o filme caseiro segue essa tendência de espetacularizar o rotineiro e mostra aquilo que se considera como o ‘real’. A fita de sexo caseira é feita pelos próprios agentes e isso lhe confere esse status de realismo. Falar de (maior) realismo talvez seja falar da construção de uma ficção que se apresenta a partir do hiperreal, mas de um hiperreal que se constrói como caseiro/doméstico como ruptura de um padrão e que igualmente constrói e está ali propondo um novo modo de apresentar o ato sexual e a intimidade. Na busca por essa experiência de produção de um ‘realismo’, as sex tapes apresentam o sexo de outras formas, diferentes daquelas apresentadas pela pornografia mainstream? Ou seja, dentro das nossas sociedades cria-se e difunde-se essa demanda, ocasionando num público consumidor cada vez mais ávido por encontrar produtos que simulem, emulem ou mesmo representem uma realidade nua e crua, que estejam mais próximos das experiências reais. Há, então, uma espécie de espetacularização do cotidiano. Assim, aquilo que é banal, que é comum, ordinário, corriqueiro, que faz parte do nosso dia a dia, ganha uma importância, um destaque. E, por conta dessa demanda por produtos que representem a realidade, o cotidiano se torna espetáculo. Dessa forma, essa influência se faz sentir na produção pornográfica e no consumo de produtos que reproduzam essa ideia de realidade/realismo proposta pela espetacularização do cotidiano: o surgimento e a difusão de sex tapes ganha terreno, justamente pela ideia de que são fitas caseiras de sexo, envolvendo pessoas comuns e experiências reais, em contraposição à plástica e à estética do filme pornô produzido industrialmente no circuito mainstream.

Cabe, então, analisarmos essa produção pornográfica para tentarmos responder a duas perguntas importantes: a produção de sex tapes é mesmo mais representativa da experiência de realidade do ato sexual? Até que ponto as sex tapes estão realmente desvinculadas (e opostas) da produção mainstream de pornografia? Ao transformar o cotidiano ou o exótico em espetáculo, são produzidos novos significados (ou se ressignificam os antigos), de acordo com uma lógica de mercado. O sexo e suas representações se deslocam para um eixo mercadológico. De fato, a pornografia torna-se um produto industrializado, com tendências à homogeneização da sexualidade. O exercício da sexualidade marca o movimento identitário. E é nesse ponto que se faz sentir a influência da pornografia: a criação de ideias e padrões de comportamentos apresentados pelos filmes pornográficos tem uma agência intensa sobre a construção de identidades. O ato sexual é transposto do privado para o público e, transformado em espetáculo, converte-se o prazer em elemento de protagonismo do show que apresenta. Este prazer torna-se uma meta, um elemento obrigatório que o ator e o espectador devem buscar. Esse objetivo deve ser alcançado incansavelmente, destacando e colocando em concorrência corporalidades e performances sexuais superlativas. Vinculado ao corpo – um corpo mecânico, no sentido físico do termo - e ao desempenho, o prazer dissocia-se de afetos, vínculos, emoções. O público consumidor da pornografia mainstream recebe os modelos apresentados como padrão de comportamento e os reprocessa por comparação em sua vida cotidiana. É possível acreditar que essas imagens ficam cristalizadas no inconsciente coletivo dos espectadores e tornam-se os elementos de referências para a construção - e para a frustração – de identidades e de comportamentos sexuais. Se os filmes pornográficos da indústria mainstream apresentam performances sexuais atléticas, o imaginário coletivo se povoa do ideário de um ‘super-sexo’. Em certa medida, tal ideário acaba por fomentar expectativas, desejos, anseios, fantasias. Logo, essa é a performance sexual que se espera reproduzir. Porém, cabe notar que a pornografia, diferentemente de outros bens comuns e ordinários, é um produto que estabelece uma relação diferente com seu consumidor. Como ela mexe com a imaginação e com a fantasia de cada um, é de se supor que cada consumidor se relacione com a pornografia de modo único, que cada experiência seja singular. Se cada pessoa tem uma relação própria com a pornografia, apropriando-se cada

um à sua maneira dos padrões que ela oferece, podemos crer que as sex tapes expressam com mais acuidade esse processo de aprendizado, de reprocessamento dos elementos identitários. Como entendemos que essas fitas caseiras de sexo são produção de uma pornografia íntima, é justo compreendermos que são um reflexo desse processo individual de aprendizado e construção de corpos, performances e masculinidades. A pornografia, tal como entendemos atualmente, além de se definir em contraposição à ordem vigente e à censura, é categorizada pelo seu caráter questionador. Num sentido amplo, este caráter questionador se deve aos desvelamentos que ela provoca. Ao trazer todos esses elementos do comportamento sexual do âmbito do privado para uma esfera pública, a pornografia emerge como um mecanismo de crítica social e política, de questionamento de costumes e padrões estabilizados. E esta, na verdade, é a contradição da pornografia: ao mesmo tempo que permite que se questione e se transforme a vida sexual e social, ela se torna um instrumento midiático de cristalização de padrões. Nesse aspecto, se a pornografia possui mesmo esse caráter libertário e transformador, é através do vídeo caseiro que essas características se fazem sentir com mais força. Afinal, se toda pornografia mostra padrões de comportamentos, tais padrões se constroem com base num eixo norteador correspondente aos valores da sociedade em que esta mesma pornografia se produz. Porém, nem toda pornografia se prende a esses padrões estabelecidos: o caráter libertário e transformador se faz sentir mais fortemente na produção de imagens de corpos e práticas sexuais – e comportamentais, num sentido mais amplo – que diferem daqueles padrões socialmente aceitos – e mais facilmente incorporados. São as produções caseiras que, essencialmente, surgem como novas formas de representar a realidade: a sex tape é, por excelência, o espaço de representação dos corpos e das práticas que diferem – e mesmo divergem – dos padrões apresentados, difundidos e naturalizados pela pornografia mainstream. Mas essa mesma produção caseira não está totalmente livre dos padrões estabelecidos pelo circuito mainstream da pornografia. Mesmo com total liberdade de criação de material, há uma preocupação – consciente ou não – em reproduzir padrões, imagens e estéticas relativamente comuns da pornografia tradicional como garantia de produção da excitação. Basta apontar que, ao lançarmos um olhar sobre a produção de sex tapes , é bem perceptível uma apropriação da linguagem de gravação do pornô tradicional, tanto em

enquadramentos (como nos closes na área genital durante o intercurso) quanto na roteirização da ação sexual (como na variedade de posições sexuais representadas numa única gravação), por exemplo. Com a pornografia mainstream, são estabelecidos padrões de práticas, ações e comportamentos de cunho sexual que tornam-se cada vez mais difíceis de ser acompanhados e reproduzidos. Tendo esse ideário de um ‘super-sexo’ como base, cria-se uma expectativa de performance e desempenho sexuais que são irreais – ou, talvez, pouco conectadas com a realidade fisiológica e emocional – e que possuem poucas chances de serem fielmente reproduzidas tendo em vista nossas próprias limitações. Essa preocupação com a reprodução de uma estética corporal e performativa pode ser percebida nas sex tapes. Como são vídeos caseiros produzidos pelo espectador transformado em agente/produtor de pornografia, refletem sua construção pessoal do ato sexual e de tudo aquilo que ele envolve: corpos, coreografias, práticas, entre outros elementos. Desse modo, pode-se inferir que, quanto mais longe da realidade do sujeito se encontra tal lógica e tal estética, maior é o grau de frustração – sexual, social, pessoal do indivíduo, por sentir-se incapaz de reproduzir fielmente – ou apenas parcialmente estes padrões estabelecidos pela indústria pornô. Com base no que se vê e se aprende com os filmes pornôs, gera-se uma cadeia de expectativas de comportamentos, práticas e performances. Então, é compreensível que essas pessoas queiram reproduzir tais padrões de comportamento, ou seja, assumir uma postura de masculinidade bastante semelhante àquela que é percebida no filme pornô. Esse tipo de reprodução de padrões de comportamento e ideias de masculinidade é notável também na produção de sex tapes. Embora pareçam ser mais livres dos padrões que norteiam a produção da pornografia mainstream, é desta fonte que se inspiram as ações sexuais, práticas e performances apresentadas na fita caseira de sexo. A produção caseira de pornografia é uma expressão mais comprometida com o ‘realismo’, porém não está totalmente desvinculada dos ideais e padrões estabilizados, representados na pornografia mainstream. Se a angústia do indivíduo é não conseguir desempenhar aquele sexo performático que ele vê no filme pornográfico, talvez este seja o momento de começar a entender que tais práticas e performances não têm uma correspondência direta com as práticas recorrentes na vida cotidiana - e nem precisam ter. Se essa ideia de que a pornografia busca tornar espetáculo um sexo normal/cotidiano é um atrativo de cunho mercadológico, talvez seja o momento de buscar

também um entendimento de que, da fato, o que se apresenta de maneira geral na pornografia – especialmente no caso do circuito mainstream – são imagens, roteiros e corpos muito específicos. E de (re)pensarmos: que realidade é essa que se pretende apresentar? Que imagens de realidade o público quer ver – as que ele quer reproduzir ou as que ele já (re)produz? O quanto esse realismo apresentado é representativo? Para além dessas questões levantadas, talvez caiba na espetacularização do cotidiano promovida com a pornografia uma reflexão que leve à produção de vídeos que registrem aquele sexo espetacular menos afetado por concepções, ideias, padrões e imagens e realmente mais próximo da performance que o ser humano é capaz de desempenhar, com seu corpo, seu desejo e seu afeto.

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