Porque dá tanto gozo contar as histórias caricatas em torno da chamada arte contemporânea?

July 14, 2017 | Autor: Renato Roque | Categoria: Arte Contemporanea, Arte contemporáneo
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Porque dá tanto gozo contar as histórias caricatas em torno da chamada arte contemporânea?

Recentemente partilhei no FB o link de uma noticia que recebera acerca de um prémio concedido a um artista argentino que, por distracção, se teria esquecido de anexar à candidatura o ficheiro com o seu trabalho. De acordo com essa notícia, esse esquecimento teria sido interpretado pelo júri como uma atitude artística contemporânea de contestação às directivas do concurso e por isso ter-lhe-ia atribuído o prémio. Afinal a notícia era falsa. Desse facto já pedi desculpa no FB. Recebi entretanto comentários de quem pensa que estas histórias falsas seriam o resultado de um movimento organizado de conservadores contra a arte contemporânea. Não me parece. Porque aparecem estas notícias e porque razão gozam de tal popularidade? A chamada arte contemporânea – digo “chamada” apenas porque é uma designação que me parece ambígua e que muitas vezes é usada de forma contraditória – deveria ser um terreno propicio para discussão e polémica, sendo ela pretensamente uma arte de ruptura e de transgressão dos cânones. Mas isso não acontece. Pelo contrário, a chamada arte contemporânea institucionalizou-se, transformou-se na arte do regime. Não vemos acontecer uma discussão aberta, transparente, pública do que nos é “oferecido” por museus e outras instituições que lhe dedicam o seu espaço. Projectos interessantes ou projectos que nos parecem mero bluff, tanto faz, se curadores ou instituição “prestigiadas” lhes derem cobertura. Ninguém ousa discutir publicamente a chamada arte contemporânea. E se o fazem, fazem-no no limiar da má-língua e às escondidas… O que seria natural acontecer, como aconteceu no passado, seria os contemporâneos - e "contemporâneo" aqui tem o sentido que lhe é dado por Agamben, ou seja os que rompem com o presente - terem de se afirmar na luta contra os que estão instalados no presente. O que seria natural era esses contemporâneos não gozarem do apoio de regimes e de instituições e serem objecto da tal critica severa dos tais conservadores. Este silêncio imposto (?) faz com que de cada vez que surge uma história caricata em torno da chamada arte contemporânea, como a que eu contribuí involuntariamente para difundir, toda a gente rejubile e a conte com satisfação por todo o lado. Seja a história verdadeira ou falsa, verosímil ou inverosímil. Também é esta realidade que em minha opinião explica por um lado o impacto e o sucesso comercial de Joana Vasconcelos, que se tem transformado na artista do regime em Portugal, mas por outro lado gera um quase-consenso nacional, em certos meios artísticos, em torno da crítica fácil ao seu trabalho, uma crítica que não assenta em princípios gerais artísticos e estéticos, mas apenas na pessoa em questão e no seu sucesso.

Por isso, afirmo que a chamada arte contemporânea não é um terreno de democracia, de debate, de polémica! Se tomarmos por exemplo Serralves – e falo de Serralves apenas, porque sendo do Porto é um espaço que visito muitas vezes – e se virmos o que tem por lá sido mostrado em fotografia – refiro a fotografia porque é aquilo de que realmente penso saber alguma coisa – vemos trabalhos com muita qualidade mas também coisas muito más. No entanto, nunca vi em nenhum jornal ou revista alguém a assumir publicamente posições críticas, uma discussão, uma pequena polémica. As vozes que falam, falam em surdina, em sussurros envergonhados, como que com medo de serem ouvidas. A minha espécie de blog, onde tenho manifestado publicamente e seriamente as minhas questões, não chega muito longe…Nem pode… Portanto o que me aflige não são os conservadores pretensamente organizados contra a chamada arte contemporânea mas o ambiente que ela tem sido capaz de criar, calando quase todas as vozes, as dos tais “inimigos”, mas também aquelas que pretendem discutir seriamente o que se anda para aí a fazer em nome da chamada contemporaneidade. No fundo, criando um ambiente também junto dos artistas, que está a permitir tudo o que está a acontecer, como se não houvesse alternativas. A democracia de que nos falam resumia-se afinal no essencial a uma democracia de algum consumo e mesmo essa se está a esboroar e, na ausência de espírito crítico, acreditamos no que nos contam e deixamos que tal aconteça.

© Renato Roque, 2014

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