Porque Eu Sonho Eu Não o Sou

June 19, 2017 | Autor: M. Albuquerque | Categoria: Psychoanalysis
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"Porque eu sonho eu não o sou..."

Autor

Marco Aurélio Crespo Albuquerque Médico Psiquiatra, Supervisor da Residência de Psiquiatria e Professor do Curso de Psicoterapia da Fundação Universitária Mário Martins; Psiquiatra da Divisão de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição; Membro Candidato do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.

Sinopse O autor, utilizando-se da rica história de um filme sobre um pré-adolescente que luta contra o adoecer mental numa família psicótica, retoma o clássico artigo de Melanie Klein de 1946, onde ela estabelece o conceito seminal de identificação projetiva e discute o papel das ansiedades primitivas sobre o desenvolvimento psicológico e suas conseqüências para a saúde e a doença mental. Ressalta esses conceitos como uma evolução da teoria e da técnica psicanalítica clássica, e não um rompimento com ela, permitindo a abordagem de pacientes até então considerados não analisáveis, assim como a análise de crianças com uma técnica psicanalítica próxima da que se emprega com adultos, sem a necessidade de recorrer a medidas não analíticas. Assinala também os desenvolvimentos permitidos por esses conceitos para o campo analítico, em termos de um novo entendimento da contratransferência, da intersubjetividade e do papel do par analítico, entre outros.

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Abstract The author, through a film about a pre-adolescent who fights against mental illness in a psychotic family, studies the classical report of Melanie Klein, 1946, where she sets in the seminal concept of projective identification and discusses the role of primitive anxieties on psychological development and its consequences on mental health and illness. He states this concepts as an evolution in theory and technic, not a rupture with the classical one, permiting the approach to patients until then considered without possibilities of psychoanalysis, and treatment of children with a classical technic, without extra-analytical measures, and shows how this concepts allow a new light and understanding to the analytical field, in terms of a new compreehension of countertransference, intersubjectivity and the role of analytical pair, among others developments.

Palavras-chave Ansiedades primitivas; psicose; psicanálise infantil

Keywords Primitive anxieties; psychosis; children psychoanalysis

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"Porque eu sonho eu não o sou..."

Introdução

A psicanálise de crianças foi uma possibilidade intuída, mas deixada inexplorada por Freud, cujos insights criativos e originais sobre esse período foram fruto principalmente de inferências sobre a infância a partir da análise de adultos e de sua auto-análise. Mesmo o pequeno Hans não foi tratado diretamente por Freud, que supervisionava seu pai à distância, daí extraindo informações valiosas para a formulação de hipóteses sobre a sexualidade infantil, a partir dos sintomas do menino (Freud, 1909). Com a evolução da teoria e da técnica psicanalítica esse vasto campo foi também se desenvolvendo, tendo como pioneira Melanie Klein, que tratou crianças dentro da técnica analítica freudiana1, com o auxílio do brincar como forma de obter da criança comunicações e compreensão sobre seus conflitos, mesmo em idades bem precoces, onde havia o predomínio da comunicação não-verbal, ou extra verbal como se poderia chamar. Anna Freud também dedicou-se a esse campo, porém com uma concepção teórica muito diferente de Klein, propondo um processo que se poderia chamar de mais educativo do que analítico, motivo de grandes e conhecidas controvérsias entre elas e suas diferentes abordagens. A partir do que observava no tratamento analítico de crianças, Klein (Melanie Klein, 1946), formulou algumas hipóteses sobre as ansiedades e mecanismos mais arcaicos da mente humana, presentes em estágios muito iniciais do desenvolvimento, desde os primeiros meses de vida do bebê. Para ela estas ansiedades primitivas têm características encontradas nas psicoses (daí a origem da expressão “ansiedades psicóticas”), e a presença delas força o ego a desenvolver defesas para lidar com elas, e processá-las. M. Klein descreve estas defesas mais típicas do ego primitivo,

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como a cisão (de impulsos e de objetos), a idealização, a negação da realidade (interna e externa), a onipotência e o abafamento de sentimentos. Essa constelação defensiva pertencia ao que Klein chamou de posição esquizo-paranóide, um estado mental onde predominavam – além das defesas citadas acima – os sentimentos paranóides, oriundos de uma ansiedade e de uma culpa com características basicamente persecutórias. Tentando, nessa época, ser fiel à idéia de Freud a respeito dos pontos de fixação da libido, ela situou nesta fase inicial da vida humana os pontos de fixação das doenças mentais mais graves. Sabemos que essas, por sua vez, tem se tornado cada vez mais uma demanda significativa nos consultórios psiquiátricos e psicanalíticos, o que reforça a importância de atentarmos para estas ansiedades e defesas mais primitivas no atendimento de nossos pacientes, sob pena de, sem sua compreensão e abordagem adequada, não tocarmos em aspectos decisivos para o tratamento. Neste trabalho ela também lançou o conceito fundamental de identificação projetiva, verdadeira revolução na teoria e na técnica, conceito que levou a psicanálise onde Freud tinha dúvidas que ela pudesse chegar, especialmente na compreensão e tratamento do psicótico – tido até então como não analisável – bem como, nos dias atuais, dos elementos psicóticos presentes nos pacientes neuróticos, especialmente nos mais graves. Da riqueza desse conceito decorrem desenvolvimentos posteriores, tais como a compreensão renovada e ampliada que se tem da transferência e contratransferência, esta última agora entendida como ferramenta de manejo essencial na análise (Hacker, 1948; Heinmann, 1950) até idéias mais atuais sobre o papel da intersubjetividade no encontro analítico (Ogden, 1994), entre outras novas visões do processo analítico que privilegiam o papel do par analítico, e não apenas de um de seus pólos. A idéia sobre os aspectos comunicativos da identificação projetiva permitiram a Bion uma expansão considerável do conceito e a formulação de um novo modo de se entender a relação do

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Com o estabelecimento de um setting analítico, com o uso de interpretações, com atenção flutuante do analista às produções das crianças na forma de brincadeiras, equivalentes à associação livre de Freud.

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bebê com a mãe, bem como a importância dele para o desenvolvimento da vida mental e para a formação do pensamento. (Greenberg, 1991) No entanto, a despeito da importância incontestável das idéias de Klein para a psicanálise, a resistência a elas continua forte e ativa no meio psicanalítico. As razões para isso são muitas e algumas conhecidas e compreensíveis, porém examiná-las aqui não é o objetivo deste trabalho. Cumpre apenas destacar que – com ou sem oposição – essas idéias estão incorporadas ao patrimônio do saber psicanalítico, e como tal devem ser respeitadas, estudadas e reavaliadas de tempos em tempos. Com essa premissa em mente achei oportuno reestudar e aprender um pouco mais com este trabalho, um clássico da Psicanálise, moderno e útil após mais de 50 anos de sua publicação. Para fazê-lo, lancei mão – à maneira de um caso clínico – de uma história que muito me impressionou, roteiro de um filme chamado Léolo, que contém elementos autobiográficos do autor do livro no qual o roteiro se baseia. A história retratada no filme se presta excepcionalmente bem ao estudo das ansiedades primitivas, as defesas contra elas e o desenvolvimento infantil que daí pode decorrer quando elas predominam, de tal forma que o resultado final acaba sendo a doença mental.

Uma história (in)comum

Num subúrbio de Montreal, Canadá, em alguma época do final dos anos 80, um menino nos conta sua história: "Todos acham que sou franco-canadense... porque eu sonho eu não o sou... as pessoas que só acreditam na sua própria verdade me chamam de Léo Louzeau." Apresenta seu pai, trabalhando pesado numa fundição, feio, sujo e suado. "Dizem que este é o meu pai, mas eu sei que eu não sou seu filho, porque este homem é louco, e eu não sou... Porque eu sonho eu não o sou... Como ele sempre se escondia, eu nunca conheci o rosto do meu verdadeiro pai."

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Ele tem 12 anos e se diz italiano, já que sua mãe teria ficado grávida dele através do sêmen de um italiano que se masturbara e ejaculara sobre tomates, na Sicília. Mais tarde, sua mãe, no Canadá, caiu sobre os tomates importados da Itália, e um dos tomates cobertos com o sêmen do agricultor entrou na sua vagina, fecundando-a, e assim ela engravidou. "Desde que tive este sonho exijo que me chamem de Léolo Lozone". Sonho e realidade se misturam e se fundem na gênese de sua peculiar história transgeracional. "Entre a Sicília e a minha casa tem 6.800 km, entre o meu quarto e o de Bianca tem 5,80 m, mas no entanto ela está muito mais longe". Assim ele introduz na narrativa o objeto idealizado de seu desejo, uma italianinha que mora na casa em frente a sua, e por quem ele está apaixonado perdidamente. Em sua casa, simples e rústica, havia um único livro, sintomaticamente intitulado: "A Devorada dos Devorados". Ele o lê escondido várias horas todas as noites, sentado na frente da geladeira com a porta aberta, com a luz desta iluminando-o por detrás. Diz que nunca viu ninguém em casa lendo ou escrevendo, e nem sabe como este livro foi parar lá, mas está todo sublinhado e estes trechos marcados por alguém são os que ele lê primeiro. Um dos trechos diz: "Minhas únicas alegrias estão na solidão, minha solidão é o meu palácio, é nela que tenho minha cadeira, minha mesa e minha cama, meu vinho e meu sol. Quando estou sentado fora da minha solidão estou sentado em exílio, estou sentado em terras impostoras." A depressão se insinua em sua história tal qual um arrepio nas costas, uma geladeira com a porta aberta num abraço frio e mortal. Na história de Léolo há um outro personagem importante, um homem já idoso, de cabelos brancos, óculos, de aspecto afetivo e compreensivo. Ele é um contraponto a esta família de analfabetos, ele é "o domador dos versos", aquele que junta nas latas de lixo cartas e fotos de pessoas, e através delas procura imaginar, reconstituir e compreender a vida daqueles que aparecem nelas. É nas latas de lixo do bairro que ele encontra as folhas escritas e logo jogadas fora por Léolo. Em certo momento ele diz carinhosamente a Léolo: "É preciso sonhar". Léolo gosta muito dele e

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o sente como um protetor, como se fosse a reencarnação de Dom Quixote, que o ajuda a lutar contra os moinhos do isolamento depressivo, "me proteger do precipício que é a minha família". Este homem, tal qual um terapeuta, é uma figura ao mesmo tempo da realidade e da fantasia, transita nestas duas realidades interessado nas palavras, nos sonhos e nos afetos. Léolo tem um irmão mais velho, chamado Fernand. Numa viela em que trabalham juntando jornais, um marginal bate neste seu irmão, e este fato tem uma conseqüência que será muito importante para ambos daí em diante: "O medo tornou-se uma razão de ser para meu irmão". Este começa a praticar fisiculturismo, e Léolo diz, projetivamente, que quando o irmão ficar uma montanha de músculos ele também não terá mais medos, e irá para as ruas do mundo dizer para os desgraçados da terra o que acha deles, e todos terão que baixar a cabeça quando eles passarem. O irmão, magicamente, aumenta de idade e de tamanho enquanto ele continua um menino, assustado por inimigos interiores poderosos, que tenta vencer com sua onipotência. Num hospital psiquiátrico estão internadas suas irmãs, Nanette e Rita, seu irmão Fernand e o pai, junto com o avô. "Como se a herança de meu avô tivesse atingido toda a família, e a pequena célula a mais tivesse se alojado no cérebro de todo mundo". Em dado momento a psiquiatra pergunta a eles quem da família vai falar primeiro, todos levantam a mão menos ele, “porque eu me chamo Léolo Lozone, e não me venham falar de pessoas que eu não conheço.” Em outros momentos a negação protetora diminui e ele, triste com a percepção da realidade da sua família, diz: “Minha família parecia uma família de verdade. Meu pai era um homem como muitos outros, um pobre coitado que morde em sua vida de cão... ... Às vezes chegavam ao mesmo nível de delírio, e era fácil visitá-los aos domingos na grande sala.” Mas às vezes eles internavam em quartos separados e era difícil caminhar pelos corredores do hospital para vê-los todos. “Eram os belos domingos de inverno!”, diz ele com ironia e raiva, encobrindo sua tristeza. “Estranha, angustiante, malcheirosa, sem amigos, sem luz, escondida nas profundezas da terra, minha irmã, a Rainha Rita”. No porão da casa, cercada de velas acesas por todo lado, Rita

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guardava a coleção de insetos de Léolo, em vidros. Ficava lá embaixo, acompanhada por cobras, aranhas, baratas, se olhando no espelho e se penteando autisticamente, completamente alheia à realidade. Quando o pai descobre isso, tranca a entrada do porão, e como Rita não podia mais buscar refúgio em seu reino, surta violenta e definitivamente. Léolo constata melancolicamente: “A Rainha Rita se abandonou à deriva.” Apenas a mãe cuida dela, carinhosamente, no hospital. Enquanto isso Léolo espia Bianca pela fechadura do banheiro. “Meu único amor, minha Itália.” O que ele vê pela fechadura, no entanto, é Bianca nua no banheiro, com seu avô, que paga a ela. “Uma noite entendi de onde vinha esta luz, era Bianca que cantava para mim, no fundo do armário, há muito tempo.” Enciumado e com raiva, ele sonha com Bianca e segue indo à escola, onde acha que aprende coisas inúteis, mas onde ninguém lhe fala “deste rabo que incha entre as minhas pernas”, ninguém o ajuda a entender o despertar adolescente de suas pulsões sexuais. “Eu não vejo mais tudo rosa, um rosa sujo, um rosa morto, não sinto mais a minha carne, não estou mais aqui.” A conseqüência deste aumento progressivo da ansiedade e da raiva é que ele se isola mais, pára de prestar atenção às aulas e fica obcecado por sexo. “Até onde me lembro, minha primeira ereção foi causada por Bianca.”

Curioso com a cena sexual vista antes,

novamente ele vai espiar, por uma abertura no teto do banheiro e vê Bianca com o avô, que lhe paga para cortar as unhas dos seus pés com os dentes. Ele fica muito excitado e confuso com a visão desta cena, tem vontade de se masturbar, matar o avô ou vomitar. Opta por se masturbar mas com ódio crescente prepara um plano para enforcar o avô. Antes de pôr seu plano em prática, ele vai com o irmão a um rio, onde este o usa para mergulhar e resgatar anzóis dos pescadores, presos no lixo do fundo. Ele mergulha em meio a dezenas de objetos afundados, estragados, enferrujados que jazem no fundo do rio e que sua fantasia transforma em um baú de tesouros preciosos. Na outra margem há um cachorro morto, em estado de putrefação. A raiva de Léolo o mergulha em águas podres e mortas.

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Na volta para casa encontram o marginal que havia batido em Fernand, aquele que o motivou a fazer musculação e ficar forte. Fernand o enfrenta apenas mostrando-lhe seus enormes músculos, como se isso fosse suficiente, porém não tem nenhuma coragem e apanha novamente, e fica encolhido no chão, em posição fetal, chorando como um bebê. Léolo fica entre surpreso e frustrado com a incapacidade e a fraqueza do irmão. Percebe que de nada adiantou o irmão ficar forte externamente. “Nesse dia entendi que o medo vivia dentro de nós. E que uma montanha de músculos ou milhares de soldados não mudariam nada”. Leva então a cabo seu plano, e tenta matar o avô enforcando-o no banheiro, mas não tem sucesso na tentativa, e ainda fica seriamente ferido ao cair de uma altura considerável. Vai para o hospital, muito machucado, e é visto pela psiquiatra que atende a família, que lhe diz ter estranhado sua atitude, já que ele nunca foi violento, e lhe pergunta se ele sabe o que é uma tentativa de assassinato. Mas ele não fala com ela, apenas a olha. “Você nunca foi violento, vai se destruir se continuar a achar que seu avô é o responsável por tudo que acontece em sua família. Sua mãe é forte, muito forte, é uma força da natureza, ela nunca perdeu a razão apesar de todas as dificuldades que ela atravessou. Léo, você é muito parecido com ela. Conheço seu medo mas não posso fazer nada, se não quiser falar comigo.” Mas ele continua mudo, sua raiva não o deixa receber a ajuda oferecida. Léolo escreve: “Um vendedor ambulante grita no vazio: ainda há bastante sangue esta manhã para manchar 100 páginas, ainda há gente o bastante que compra para saciar sua raiva. Tiro minha pistola e atiro nos carros. Miro em meu fuzil e aponto para meu pai, tenho vontade de meter uma bomba no seu traseiro...”. Sentado na mesa da cozinha, sozinho, ele escreve: “Talvez seja a hora de meter um cano na minha narina e espalhar meu pensamento por todo o lado. Desgraçados ! Eles teriam um susto de me ver estourado antes de receber a minha pensão.” Neste momento a porta da cozinha se abre e uma luz intensa entra, tudo fica de um

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branco ofuscante e ele não vê mais nada, só cegueira e nada mais. Ódio parricida, homicídio, suicídio: o instinto de morte brilha intensamente e o cega. Em seguida, cada vez mais só, vai ao hospital psiquiátrico, visitar Rita. “Mesmo se o instinto me conduz diretamente até lá, no quarto dela, perguntei o número de seu quarto, eu me senti estranho ao dar o sobrenome dela, pois afinal era o meu também.” A irmã está amarrada ao leito, contida, fortemente sedada, ele afasta sua roupa e faz um tímido carinho nas costas dela. “Foi a única vez que ousei fazer carinho em minha irmã. Neste momento só pude pensar numa bela seqüência de um filme, e como sempre eu me via representando a vida.” Ele leva para ela, como um melancólico presente de despedida, o seu vidro de insetos vivos. Porém a mãe descobre e depois, em casa, mata com água fervente todos os insetos e briga com ele por tê-los levado para o hospital. Ele fica triste e leva os insetos mortos para seu quarto e chora por eles. Pega o livro que sempre lê e, surpreendentemente, acha dentro dele o triângulo que faltava num disco quebrado que havia juntado do lixo há uns tempos, quando catava jornais com seu irmão. Ele cola o disco cuidadosamente, como se assim ele pudesse ser tocado novamente. Infelizmente essa colagem das partes quebradas não funciona, o disco não toca de novo a mesma música de sua infância. Já em processo de desintegração psicótica passa noites em claro, lendo ou escrevendo, sem ver Bianca. Acha que ela se tornou muito exigente e o está castigando porque sabe que ele a engana com Regina, uma putinha do bairro. Delirando, ele se vê numa cidade da Sicília, chamando desesperadamente por Bianca, mas já é um chamado sem resposta. É encontrado por seu irmão no chão de seu quarto, todo vomitado. A mãe, logo que o vê percebe o pior e lhe diz, chorando: “Não faça isso comigo, você não, você é forte, não vá embora, não faça isso comigo !”. Sua invocação protetora não mais o protege, “Porque eu sonho eu não o sou, porque eu sonho, eu sonho, porque de noite me entrego a meus sonhos, antes de acolher o dia, porque eu não amo, porque eu tive medo de amar eu não sonho mais... eu não sonho mais.”

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Por fim ele vai parar no hospital psiquiátrico, em estado catatônico, nu e deitado numa banheira cheia de cubos de gelo, atendido pela psiquiatra que cuidava de sua família. Ela o examina, entristecida e impotente, e pede que aumentem a medicação antipsicótica. “Amanhã o levem para junto dos outros membros de sua família.” O sentimento é de fracasso total, de um mergulho definitivo no gelo e no isolamento da psicose familiar. As luzes do hospital se apagam e começa uma noite densa e interminável, porque Léolo já não sonha mais. Nesta mesma noite, em sua casa, o domador dos versos lê, à luz de um candelabro, o que Léolo havia escrito por último, seu epitáfio: “A você minha dama e audaciosa melancolia, que com um grito solitário me rasgou a pele, que oferece ao desgosto, a você que assombra minhas noites quando não sei mais que rumo seguir, eu paguei cem vezes o que lhe devia... Das brasas dos sonhos só me restam as cinzas, da sombra da mentira que você mesmo repetira para ouvir, e a plenitude branca não era como um velho interlúdio e sim uma morena de canelas finas e malignas, que me picou com o bico de pena de seu seio, em quem acreditei e só me deixou remorso, de ver o dia nascer sobre minha solidão,” Ele desce então com o candelabro na mão a um porão cheio de objetos de arte, e pega numa estante o livro que Léolo tanto lia, A Devorada dos Devorados. Antes de ser devorado Léolo havia escrito na primeira página: “Irei descansar com a cabeça entre duas palavras no vale dos devorados.”

Ele guarda definitivamente os escritos de Léolo junto com o livro num nicho na

estante enquanto repete tristemente: “Léolo, Léolo.” A história de Léolo fica para sempre guardada junto às outras histórias no porão do domador dos versos. Enquanto isso Léolo corre, descalço e sorrindo, por um ensolarado vale italiano, finalmente livre das amarras da sua dolorosa realidade.

Ansiedades psicóticas, mecanismos defensivos primitivos e identificação projetiva

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O que procurei traduzir em palavras acima fica, infelizmente, bastante longe da beleza plástica e da força das imagens do filme, difíceis de serem transcritas sem perda considerável da fruição estética, e principalmente do impacto emocional profundo, que o filme produz no espectador. Que esta limitação possa ser transformada em incentivo a que se assista ao filme é o máximo que posso propor. Na triste história de Léolo podemos ver com transparência as ansiedades mais primitivas assim como os mecanismos defensivos empregados para dar conta delas, e por fim a história de seu fracasso, que resultou na perda do contato com a realidade da psicose. Estas ansiedades no entanto não são exclusivas de pacientes psicóticos, e podem ser encontradas em fases normais do desenvolvimento das crianças, e na vida adulta podemos experimentá-las eventualmente em certas situações. Por outro lado, nos pacientes neuróticos mais graves ou psicóticos, elas são rotineiras, ou melhor dizendo, uma forma rotineira de funcionamento mental. O que vai fazer a diferença em cada caso é a natureza, a intensidade e a freqüência do uso de tais defesas, sua adequação ou não à situação ou ao contexto, e as limitações trazidas por elas. Em Léolo predominavam intensas ansiedades psicóticas, contra as quais lutava empregando defesas primitivas, como a cisão de impulsos e objetos, e a projeção, na forma como utilizava a família para representar as suas partes psicóticas, postas no avô, no pai, na irmã, suas partes frágeis e incapazes no irmão Fernand e suas partes idealizadas, novamente no Fernand forte e musculoso, na mãe e em Bianca. Quando ele negava ser filho de seu pai porque ele era louco, ou quando dizia ser filho do pai-tomate italiano, havia uma forte negação da realidade usada como defesa contra uma

desintegração temida

ou já adivinhada.

Defesas obsessivo-compulsivas



ler

compulsivamente, escrever compulsivamente, colecionar insetos – eram outras manobras defensivas importantes, através das quais tentava controlar sua raiva e organizar, reunir em palavras ou em insetos, os fragmentos de seu self que estavam sendo perdidos pelo uso excessivo da cisão e da identificação projetiva.

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Léolo intimamente sabia que convivia com a psicose, que colocava como algo fora de si, mas ao mesmo tempo se sentia impotente diante do que lhe estava fadado. Inconscientemente já sabia que a psicose não estava apenas na família, mas dentro dele também, no mais profundo de seu ser, exigindo mais e mais defesas contra ela. Para M. Klein a importância das ansiedades primitivas está no impacto que tais ansiedades e defesas vão ter sobre o desenvolvimento emocional futuro, a partir do desenvolvimento do ego, do superego e das relações de objeto. Para ela o seio bom introjetado constitui uma parte fundamental do ego, um ponto focal em torno do qual o ego se desenvolve e se organiza, e assim contribui para o processo de desenvolvimento deste bem como para as relações objetais.

No entanto, ódio,

frustração e ansiedade excessivas podem abalar a confiança no seio bom introjetado, que pode ser sentido como se despedaçando. Um ponto importante da teoria kleiniana é que a ansiedade se origina da atuação da pulsão de morte, sob a forma do medo de aniquilamento. Este impulso destrutivo é parcialmente defletido mas uma parte dele fica no indivíduo, fazendo com que a ansiedade de ser destruído a partir de dentro persista, produzindo importantes sintomas hipocondríacos. Daí talvez a necessidade de Léolo repetir insistentemente a invocação “Porque eu sonho eu não o sou...”, como uma reza protetora contra o instinto de morte que o ameaçava desde dentro. A projeção é um importante mecanismo para a deflexão do instinto de morte para fora do sujeito, ajudando o ego a lidar com a ansiedade e livrando-o do perigo e de coisas más. Também a introjeção é uma defesa contra a ansiedade (que diminui quando um objeto bom é introjetado). Ele usava maciçamente a projeção, especialmente a identificação projetiva, todavia a introjeção de bons objetos não estava ao seu alcance, pois se sentia tão cercado e invadido por objetos destruídos ou mortos que seus raros objetos bons (a mãe, a psiquiatra, o velho leitor), eram impotentes para ajudálo, pois não podiam ser adequadamente introjetados.

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“...Conheço seu medo mas não posso fazer nada, se não quiser falar comigo.”, diz a psiquiatra. Talvez o que ela não tenha percebido é que a ele faltavam palavras para descrever ansiedades tão aterradoras, vivenciadas antes mesmo das aquisições verbais. Ele estava falando, ao seu modo, mas esta outra forma de linguagem ela não conseguiu ou não pôde escutar. Idéias de homicídio (especialmente contra o pai e o avô) e de suicídio estavam constantemente presentes, numa tentativa desesperada de fugir da psicose através da destruição violenta dos objetos portadores das partes psicóticas de seu self, projetados ou introjetados. Na verdade seu pensamento já estava espalhado por todo o lado, via cisão e projeção maciças. Cada membro da família portava, por assim dizer, uma parte do self de Léolo, e era por ele sentido de acordo com o elemento predominante dessa projeção, dependendo do momento. Outros mecanismos se ligam a estes citados acima, notadamente a idealização e a negação, que se ligam à cisão. A idealização está intimamente ligada à cisão do objeto, para manter a salvo os bons objetos, tornando-se assim o corolário do medo persecutório. Assim Léolo cindia e idealizava Bianca, ignorando a prostituição dela com seu avô, e na parte idealizada dela colocava a salvo suas partes amorosas e sexuais, mas por fim imaginava (de forma persecutória) que ela o estava abandonando propositadamente, por ter sabido da traição dele, e a idealização transformouse em perseguição, o objeto idealizado também tornou-se o objeto perseguidor e, com a perda deste último refúgio, seu frágil ego se desintegrou definitivamente. Após a cisão uma parte do objeto é negada, assim como são negados a dor e a frustração. Esta negação se dá através da onipotência, uma característica da forma arcaica da organização da mente. Isto empobrece o ego pois toda uma parte sua, da qual emanam sentimentos pelo objeto, é negada. Neste processo Léolo perdeu, por exemplo, o contato amoroso com o pai, pois tentava negar a dor e a frustração de amar aquele pai, atacado e desvalorizado por ele, no qual colocava apenas seus sentimentos mais destrutivos. Onipotentemente triunfava sobre o pai, ao não se considerar louco como ele, cortava as ligações com ele para se proteger mas assim também o pai

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perdia qualquer valor identificatório, capaz de fornecer a Léolo a possibilidade da percepção e introjeção dos aspectos amorosos do pai. Através do uso excessivo deste mecanismos o ego fica debilitado, porque o componente agressivo perdido também está ligado ao poder, potência, força, aquisição de conhecimentos. Isto ocorre porque também são perdidas partes boas do self neste processo (quando a expulsão é excessiva). A projeção e a identificação com estas partes boas projetadas do self é útil ao bebê para ajudá-lo a desenvolver boas relações de objeto e para integrar o ego, mas quando o processo é excessivo as partes boas são sentidas como perdidas e a mãe se torna o ideal do ego, aquela que detém tudo que há de bom. Ocorre então uma identificação narcisista com estas partes projetadas, e o resultado disto leva a uma dependência exagerada dos outros, que são tidos como os que contém estas partes boas de si próprio. A capacidade de amar parece estar perdida pois o objeto amado é predominantemente amado por ser um representante do self, e não pelo seu valor intrínseco. Por isso Léolo, mais do que amar, necessitava de Bianca vitalmente próxima a si. Um outro traço característico da relação mais primitiva com o objeto bom é a tendência a idealizá-lo e a mantê-lo separado do objeto frustrante. Assim Léolo não tolerava, por exemplo, a proximidade de Bianca com seu avô, que considerava o causador da desgraça familiar, e tentava matá-lo, evidenciando assim que ele tinha em si os mesmos impulsos assassinos do avô. Estas várias formas de cisão do ego e dos objetos tem por resultado o sentimento de que o ego está despedaçado, num estado de desintegração.

A projeção de um mundo interno hostil leva à

introjeção de um mundo externo hostil e vice-versa. Neste processo não só o corpo, mas também a mente pode ser controlada por outras pessoas de forma hostil, com uma conseqüente retirada acentuada para o mundo interno (como se vê nos traços do caráter esquizóide) e uma necessidade muito grande de controle do objeto (como se vê nos pacientes com fortes traços fóbicos e obsessivos). Um exemplo dessa retirada é a descrição que Léolo faz de sua solidão: “...minha

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solidão é o meu palácio... Quando estou sentado fora da minha solidão estou sentado em exílio, estou sentado em terras impostoras.” O objeto interno também é sentido como correndo o mesmo perigo de destruição do objeto externo, e assim o resultado é um enfraquecimento do ego, com a sensação de que não há nada que o sustente, e um correspondente sentimento de profunda solidão. A capacidade de reparação foi perdida também mas, num esforço desesperado e patético, ele tenta ainda uma tosca forma de reparação dos objetos assim quebrados ao colar o fragmento do disco que encontrou, mas é tarde demais, nenhuma música será ouvida daí em diante. As várias formas de cisão do ego e dos objetos têm por resultado o sentimento de que o ego está despedaçado, sentimento que corresponde a um estado maior ou menor de desintegração (predomínio das partes psicóticas), o estado em que Léolo fica no final, deitado numa banheira cheia de cubos de gelo, estes representando, plasticamente, os inúmeros fragmentos de seu self, congelados ao seu redor.

Conclusão

A tentativa de entendimento que procurei fazer do material acima, utilizando para isso as idéias de Klein sobre aspectos do desenvolvimento emocional primitivo, obviamente não esgota a riqueza de conteúdos e de detalhes da história de vida de uma pessoa, nem dos diversos modelos teóricos que podemos lançar mão em nosso trabalho para melhor compreender nossos pacientes. Procurei apenas renovar a atenção para a existência de ansiedades e defesas mais primitivas contra elas, e aspectos do que Bion chamou de a parte psicótica da personalidade (Bion, 1957), que estão presentes em todos os nossos pacientes, mesmo os que, pelo menos à primeira vista, não sejam tão graves quanto Léolo.

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Hoje em dia não pensamos mais apenas em termos de seguir e desvendar a rota dos impulsos instintuais reprimidos, de fixação da libido ou de regressão da libido a estes pontos de fixação, mas também em termos de conflitos intrapsíquicos entre diferentes instâncias mentais ou diferentes partes do self, de problemas originados de falhas na maternagem e da não progressão para etapas mais amadurecidas de funcionamento mental, bem como de um desenvolvimento deficitário do pensamento, da subjetividade e da intersubjetividade, o que exige um outro tipo de escuta e de técnica mais sofisticados. Sem uma acurada percepção e uma cuidadosa abordagem destes aspectos no processo terapêutico, nosso trabalho corre o risco de ficar paralisado, sem rumo ou se perder na superficialidade de uma tradução simplista dos efeitos dos instintos em sua busca por descarga. Apesar das críticas em contrário, Melanie Klein sempre se considerou seguidora de Freud, mesmo quando ampliava, discordava ou oferecia novos ângulos de visão para criações dele (Édipo precoce, formação do superego, etc.). Como ela, devemos seguir a Freud também nisso, lembrando que ele não se deteve na primeira tópica quando descobriu, na prática clínica, que novos problemas exigiam novas soluções e ousou ir adiante, repensando constantemente sua criação. Para concluir, penso que precisamos ser, como terapeutas, também nós um pouco “domadores de versos”, aqueles que buscam e juntam palavras, imagens e sonhos com os sentimentos, e através disto procurar reconstituir e compreender a vida daqueles que estão diante de nós, pedindo ajuda. Precisamos ter também em nós um pouco de Dom Quixote, ajudando nossos pacientes a lutar contra o isolamento e o precipício da doença mental, e dizer aos nossos pacientes, mesmo aos mais graves que: “É preciso sonhar...”.

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Bibliografia

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Endereço do Autor: Rua Tobias da Silva, 85/506; Porto Alegre, RS; CEP: 90570-020 Fone/fax: (51)3346-1480 e-mail: [email protected]

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