Porta – palavra – uma reflexão à margem do filme \"Caverna dos sonhos esquecidos\" de Werner Herzog

October 7, 2017 | Autor: Piotr Kilanowski | Categoria: Werner Herzog, Mitologia, FILOSOFIA DA LINGUAGEM, Linguagem
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Porta - palavra – uma reflexão à margem do filme Caverna dos sonhos esquecidos de Werner Herzog

Piotr Kilanowski

Impossível de se determinar se é a experiência que engendra a linguagem, ou se é a linguagem que engendra a experiência. De uma maneira ou de outra todos os dois não passam de metáforas da realidade que foge a qualquer tentativa de apreensão…

Nas paredes da caverna de Chauvet, fechada para turistas, só acessível aos cientistas e a nós que temos o privilégio de observá-la (junto com os cientistas) pela lente de Herzog, vemos a experiência tornada linguagem, que em eterno processo de mimesis vai se transformando em linguagens e experiências. 32 mil anos, pois esta é a idade da arte da caverna, talvez o mais antigo sítio arqueológico do mundo, é o tempo do qual os sonhos esquecidos falam para nós. Ou melhor: nos fazem sonhar outros sonhos. Sonhos dos cientistas, sonhos dos artistas, sonhos sobre quem somos, de onde viemos e para onde vamos...

Junto com Herzog, do ponto de vista de um crocodilo albino observamos por sobre os milênios e tentamos entender as cavernas de onde vieram os nossos antepassados – tão próximos quanto distantes. Estes antepassados, poetas da antiguidade, que há um século ainda nem eram considerados humanos, partindo do ponto de vista do chauvinismo pós-aristotélico, que permitiu extermínios e escravidão.

A caverna é protegida por uma porta, que tem como objetivo impedir o acesso dos que não tem direito de entrar na caverna. Limiar entre duas realidades – a porta pode ser vista não apenas como um impedimento físico. O seu valor simbólico abre o espaço para várias leituras. A porta entre os dois mundos é fechada e intransponível como o portão da lei de Kafka. Se não tivermos chave própria, nunca conseguiremos adentrar os recintos de uma outra realidade. A chave tem que ser apropriada não apenas para caber na fechadura da experiência encerrada em imagens nas paredes da caverna. Ela precisa descerrar, nas nossas mentes, as sensibilidades e aberturas para experienciar, trancadas em celas de conceitos.

Se por um lado o nosso olhar serve de espelho para as pinturas rupestres, por outro nos refletimos neste mesmo espelho… O nosso reflexo de humanos, animais, cientistas, sonhadores, artistas, criadores de perfumes ou de realidades artificiais, que pretendem espelhar a realidade…Somos afinal feitos de uma grande percentagem de água, que por natureza reflete tudo…

Da mesma forma como Herzog filmando o mundo ao seu redor cria histórias, os anônimos de 30 mil anos atrás criavam a sua versão da realidade nas paredes da caverna. Da mesma forma que cientistas criam as suas versões da realidade, os xamãs tinham criado as suas maneiras de encantá-la de formas poéticas… Os mitos de seres híbridos, humanos e animais, ao mesmo tempo que são uma forma primitiva de surrealismo, são profundamente realistas e falam poeticamente da condição humana, apesar de tudo, sempre basicamente animal, embora a nossa estranha animalidade ande doentia, pois não há outros animais que planejem destruição da sua própria espécie em massa, ou cometam suicídio por meio de uma bomba, levando consigo outros espécimes quaisquer que estejam passando perto…

O crocodilo albino – tão diferente de tudo? Ou um qualquer, diferente e igual? O espelho do olhar é único, idiossincrático. O imaginário criado por conceitos plantados e enraizados dentro de nós, tanto quanto os baobás do Pequeno Príncipe, ainda tem o espaço para a propriedade? O eco das vozes divinas ecoa de dentro da caverna. As vozes dos criadores, que, imitando, constroem universos, dos quais se tornam prisioneiros. Crocodilos albinos ou os deuses presos dentro da sua criação, a procura do Aberto rilkeano que cuidadosamente encantaram dentro das palavras e imagens, trancaram nas cavernas, nos arquivos, nos entulhos, esquecendo que só a chave da Palavra que cria, de nosso deus, o Verbo, pode libertá-los, abrindo a porta para o outro lado da experiência?

Herzog cria os seus mitos, a ciência, os seus; e o mito, surrealismo primevo, conta a história dos nossos antepassados, a uma distância de milênios... Tentemos contar um mito, um motivo da parede da caverna, uma história que criamos e que nos cria...



Teseu, como cientista, entra na caverna para descobrir o Minotauro, meio homem, meio touro, como a mulher da pilastra, para assassinar este seu familiar monstruoso, se libertar dele, casar com duas das suas irmãs, Ariadne e Fedra, e se proclamar o vencedor e detentor da verdade…esquece que tanto o Minotauro quanto o labirinto foram obra de Dédalo, poeta-artesão-engenheiro, que, depois de criar uma vaca para atender os desejos de Pasifae pelo touro divino, criou a prisão para o Minotauro, fruto destes amores. E no final fugiu alado e inapreensível da ilha do labirinto.

A narrativa, a história, frutos das imagens que vem do ser humano, do seu imaginário, de seus sonhos, fadados a serem esquecidos, da sua experiência, da sua linguagem, da sua cabeça: porta – palavras.




Filme: Caverna dos sonhos esquecidos.Título original: Cave of Forgotten Dreams. Direção: Werner Herzog. Gênero: Documentário (França-EUA-Reino Unido, Alemanha, 2010, 90 min. )
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.
Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando em literatura na UFSC.

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