Portugal e a formação do Brasil na argumentação de Joaquim Nabuco (1880-1900)

July 29, 2017 | Autor: I. Andrade Marson | Categoria: Historia Política y Social Siglos XVIII-XIX
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Portugal e a formação do Brasil na argumentação de Joaquim Nabuco (18801900).* Izabel Andrade Marson Depto. de História – IFCH-UNICAMP Pesquisadora CNPq Resumo:

Esta reflexão analisa o percurso das percepções sobre o desempenho de Portugal na formação do Brasil criadas por Joaquim Nabuco, especialmente em O Abolicionismo (1883), A intervenção estrangeira durante a Revolta da Armada (1896), O dever dos monarquistas (1896) e Um Estadista do Império (1896-1898). Pretende demonstrar como as imagens ambivalentes da ex-metrópole por ele divulgadas acompanharam a atuação política do escritor e suas convicções liberais aristocráticas – em especial a preservação da ordem pública e da monarquia - pelo que defendeu a abolição do cativeiro de africanos e condenou as “revoluções jacobinas”. Palavras-chave: Joaquim Nabuco; Portugal-Brasil; história.

Desde o século XIX, o desempenho de Portugal na formação do Brasil foi referência imprescindível na argumentação de muitos intelectuais importantes, dentre eles o político, jornalista, historiador e diplomata Joaquim Nabuco1. Esta reflexão tem por objetivo explicitar as diferentes percepções da ex-metrópole externadas por ele em seus escritos e pronunciamentos, particularmente no período em que escreveu para a imprensa, e reconhecer eventuais nexos entre elas e suas escolhas políticas. Em outros termos, demonstrar como o exercício do trabalho intelectual – sobretudo como historiador e articulista – foi para Joaquim Nabuco um refinado recurso de atuação em defesa de objetivos liberais aristocráticos, tais como a preservação da ordem pública e da monarquia, pelo que se empenhou na abolição do cativeiro de africanos e na condenação das “revoluções jacobinas” no Brasil.2

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Pesquisa financiada pelo CNPq. Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araujo (1849-1910) descendia de famílias importantes relacionadas à política e burocracia do império (por parte do pai) e aos senhores de engenho da província de Pernambuco (por parte da mãe). Advogado pela Faculdade de Direito do Recife (1870) teve uma carreira movimentada: foi funcionário da legação brasileira nos Estados Unidos e em Londres (18761878), deputado pelo partido liberal (1878-1881;1888); jornalista abolicionista (1883-1888) e escritor, adepto da restauração monárquica (1890-1900). A partir de 1899 tornou-se diplomata, atuando especialmente na embaixada brasileira em Wahington em favor de uma política pan-americanista.Cf. NABUCO, Carolina. A vida de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958;VIANA FILHO, Luís. A vida de Joaquim Nabuco. S. Paulo: Martins/Brasília/INL, 1973. 2 A abordagem desse estreito vínculo entre política, história e conhecimento se referencia em estudiosos que, com diferentes preocupações e perspectivas o privilegiaram, dentre os quais destaco: MARX, Karl. 1

2 Dessa maneira, ao justificar a necessidade de reformas no regime e na sociedade do império visando superar resíduos de uma problemática herança colonial – em especial a escravidão africana -, na década de 1880, Nabuco divulgaria duas configurações contrastantes das realizações portuguesas no Brasil. Na conferência Camões,3 proferida em junho de 1880 no Real Gabinete Português de Leitura, celebraria os vínculos históricos, culturais e genéticos entre os dois países e a grandiosidade das navegações portuguesas imortalizadas nos versos de Os Lusíadas. No entanto, no livro O Abolicionismo (1883)4, responsabilizaria Portugal pela prática da escravidão e lucros do tráfico, por ele considerados a origem das dificuldades que inviabilizavam, no presente, a constituição da nação brasileira modelar. Essa percepção ambivalente se modificaria a partir da queda da monarquia e, sobretudo, da Revolta da Armada (1893-4) contra o governo do marechal Floriano Peixoto, quando insurgentes monarquistas derrotados, sob comando do almirante Saldanha da Gama, receberam asilo em corvetas portuguesas ancoradas no porto do Rio de Janeiro. Em maio de 1895, Nabuco escreveu artigos - depois organizados no livro A intervenção estrangeira durante a Revolta,5 nos quais, dentre outras colocações, fez uma defesa pública do comandante português Augusto de Castilho, responsabilizado pelo grave desdobramento político do acontecimento: o rompimento diplomático, em abril de 1894, entre a república florianista e o governo monárquico de Portugal. Nesta circunstância, e nos anos seguintes, o escritor debateria os significados do desempenho dos portugueses no passado e no presente com adversários importantes como os “jacobinos‟ florianistas e ex-monarquistas que aderiram ao novo regime. Embora continuassem a reiterar as decorrências nefastas do cativeiro africano para a sociedade brasileira, desde então, as imagens da colonização portuguesa e da dinastia que legou ao Brasil assumiriam tons cada vez mais positivos nos trabalhos do escritor, conforme se pode perceber no opúsculo O dever dos monarquistas e em Um Estadista

Le 18 brumaire de Louis Bonaparte. Paris: Éditions Sociales, 1969; LEFORT, Claude. Les formes de l’Histoire: essais d’anthropologie politique. Paris:Gallimard, 1978; Essais sur le politique – XIXe. e XXe. siécles. Paris:Éditions du Seuil, 1986; CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’Histoire. Paris:Gallimard, 1975; HARTOG, François. Le miroir d’Hérodote: essai sur la représentation de l’autre. Paris:Gallimard, 1980; POCOCK, John G.A. The Machiavellian Moment. Princeton:Princeton University Press, 1975; SKINNER, Qüentin. Liberty before liberalism. Cambridge: Cambridge University Press 1998. 3 NABUCO, Joaquim. Camões. Rio de Janeiro:Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, Depto. Nacional do Livro. s/d. 4 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Londres: Typ. de Abraham Kingdon, 1883. 5 NABUCO, Joaquim. A intervenção estrangeira durante a Revolta da Armada. Rio de .Janeiro: Typ. Leuzinger, l896.

3 do Império (1897-1899)6 – esta última sua obra mais importante. Acompanhemos o percurso dessas contrastantes imagens sobre a ex-metrópole na argumentação do político-historiador assim como suas possíveis motivações.

1. Salvar a monarquia abolindo a escravidão: perfis contrastantes da colonização portuguesa Na década de 1880, Nabuco atuou no Parlamento como deputado do Partido Liberal (1878-1880; 1888) pela província de Pernambuco, na imprensa e em campanhas eleitorais defendendo a monarquia frente as cobranças republicanas, destacando a tese de que os problemas do país não advinham do regime em si, mas da escravidão e de suas decorrências: a presença de uma sociedade imatura e desordenada e de uma elite despreparada para o exercício de um “verdadeiro” liberalismo. Embora admitindo limitações nos preceitos que orientavam a política imperial, insistiu na necessidade de mudanças sugerindo um programa de reformas políticas e econômicas, principalmente a substituição dos escravos por trabalhadores livres, fossem eles nacionais ou imigrantes europeus. Em virtude de sua origem, formação e compromissos político-partidários, no início dos anos 1880, Nabuco propunha encaminhamentos moderados para o “problema servil”, ou seja, o apressamento da abolição gradual respeitando-se o direito de propriedade e as prescrições da Lei de 28 de setembro de 18717. O empenho em proteger o regime dos ataques adversários e promover aguerrida crítica à escravidão, demandou recorrer a configurações contrastantes das realizações portuguesas no Brasil. A primeira delas, muito positiva, apareceu na conferência Camões, proferida em 10 de junho de 1880 no Real Gabinete Português de Leitura, como parte das comemorações do tricentenário da morte do poeta e dia do lançamento, pelo imperador Pedro II, da pedra fundamental do edifício daquela instituição. Em discurso para seleta platéia onde estavam presentes o soberano e sua família, acentuaria a grandiosidade da obra a um só tempo universal e nacional de Camões, tanto por sua genialidade enquanto 6

NABUCO, J. NABUCO, J. O Dever dos Monarquistas. Carta ao almirante Jaceguay.Rio de Janeiro:Typ. Leuzinger, 1895; Um Estadista do Império. Nabuco de Araujo, sua vida suas opiniões, sua época. R.. de Janeiro./Paris: H. Garnier livreiro e editor, l897-99. 3 vols. 7 A lei no. 2040 de 28 de setembro de 1871 (posteriormente conhecida como Lei do Ventre Livre) previa, dentre outras decisões, uma gradativa finalização do cativeiro através da concessão da liberdade aos filhos de escravas nascidos a partir de então, e o direito dos cativos à constituição de um pecúlio visando a aquisição da alforria com consentimento ou à revelia do senhor. NABUCO, J. A Escravidão. Compilação de José Antonio Gonçalves de Mello; apresentação de Leonardo Dantas Silva; prefácio de Manuel Correia de Andrade. Recife:Fundaj/Ed. Massangana, 1988 (2ª. ed. comemorativa).

4 criação literária quanto porque os versos de Os Lusíadas imortalizaram os descobrimentos, o grande feito da nação portuguesa para a civilização. Mas, considerou que aquelas comemorações resguardavam, além do sentido de uma festa “nacional”, a possibilidade de uma celebração maior, “familiar”, extensiva aos brasileiros, já que historicamente existiam estreitos laços naturais, ainda vigentes, entre Portugal e o Império. Nabuco então mencionou os vínculos históricos, culturais e genéticos que permitiam conceber uma extensa “família” portuguesa. Referindo-se a Portugal como “a pequena, mas robusta Nação que fundou o Brasil, e que foi tanto tempo a Mãe-Pátria”apontou a continuidade daqueles laços, quer pelo partilhamento de uma mesma língua e compromisso na preservação do território; quer

pelo desmembramento político

“natural” entre a colônia e sua metrópole, ainda ligadas pelo elo dinástico; quer pelo fato do Brasil ter se tornado “uma segunda pátria para os portugueses”, quer ainda pelos resultados da operosidade exemplar dos trabalhadores lusos que “acresciam” tanto a riqueza brasileira quanto - pelas remessas de dinheiro - a de seu país natal. Não por acaso, lembrou o quanto todos aqueles vínculos tornavam o país familiar aos “imigrantes” lusos que, aqui, não se sentiam “estrangeiros”: Se o dia de hoje é o dia de Portugal, não é melhor para ele que a sua festa nacional seja considerada entre nós uma festa de família? Se é o dia da língua Portuguesa, não é esta também a que falam dez milhões de brasileiros? Não foi o Brasil descoberto, colonizado, povoado por Portugueses? Não foi uma colônia Portuguesa durante três séculos, que se manteve portuguesa pela força das suas armas, combatendo a Holanda, até que pela lei da desagregação dos Estados, e pela formação da consciência Brasileira e Americana no seu seio, assumiu naturalmente a sua independência e coroou seu Imperador ao próprio herdeiro da Monarquia? Depois desse fato, apesar dos preconceitos hoje extintos, não tem sido o Brasil a segunda pátria dos portugueses? Não vivem eles conosco sempre na mais completa comunhão de bens, num entrelaçamento de família, que tornaria a separação dos interesses quase impossível?‟ (...) O emigrante português chega ao Brasil sem fortuna, mas também sem vícios, e pelo seu trabalho cria capitais; vem só, e funda uma família; seus filhos são Brasileiros; falando a nossa língua, e da nossa raça, essa imigração nem parece de estrangeiros; todos os anos, à força de privações corajosamente suportadas, ela põe de lado uma soma considerável, que não acresce tanto à riqueza de Portugal como à nossa. Todos estes benefícios merecem o mais solene reconhecimento da parte de quem, como eu, votou a sua vida política toda à causa do trabalho livre. (...) Não preciso dizer, como aliás o podia fazer sem deixar de ser sincero, que nesta noite sou português; basta-me dizer que acho-me animado para com a pequena, mas robusta Nação que fundou o Brasil, e que foi tanto tempo a Mãe-Pátria, de um sentimento que, se não se confunde com o patriotismo, não deixa de confundir-se entretanto com o próprio orgulho nacional.8

Neste pronunciamento, o então deputado liberal reiterou opinião sobre os significados da obra do grande poeta português já divulgada em 1872, no livro Camões e os Os Lusíadas,9 texto preparado para as comemorações dos 300 anos da publicação 8 9

NABUCO, J. Camões. p. 2- 4. NABUCO, J. Camões e os Lusíadas. R. de Janeiro:Typographia do Imperial Instituto Artístico, 1872.

5 daquele clássico. Contudo, além do intuito celebrativo, o livro do futuro abolicionista viera a lume também para intervir no debate político-cultural em curso na década de 1870, que tematizava a existência, ou não, de uma literatura brasileira. Nele, Nabuco contrapontuava teses de importantes literatos a exemplo de José de Alencar.10 A argumentação de Camões e os Os Lusíadas expôs de forma mais circunstanciada outras referências do escritor sobre as aproximações entre os membros da “grande nação portuguesa”, o que nos permite aprofundar a compreensão do discurso de 1880. Considerou que “Os Lusíadas eram a obra prima da literatura portuguesa, que é a nossa”, porque apesar do esforço de vários autores “no intuito de dar-nos uma literatura própria” – inspirando-se na “vida dos nossos indígenas” ou no “estado atual da nossa sociedade” - essa literatura “ ainda não existia”. Nesse sentido, esclareceu seu entendimento sobre aquela pretensa “literatura nacional” e sobre a sociedade brasileira nas quais, segundo ele, reverberavam intensamente os efeitos do cativeiro, verdadeiro impedimento tanto à conformação do país quanto de sua cultura. Então advertiu: “no Brazil não há por ora originalidade alguma, nem de artes, nem de construção, nem de costumes, nem de vida” porque “a cor local não constitui a originalidade de uma literatura”: Vários ensaios, e alguns de grande merecimento, fizeram-se entre nós com o intuito de dar-nos uma literatura própria, mas ela ainda não existe. De duas sortes foram os trabalhos, que se conhecem, feitos com essa intenção. De uns o assumpto era a vida de nossos indígenas, de outros o estado atual de nossa sociedade. Uma literatura, inspirada na vida errante das tribos primitivas, que se servisse amplamente de seu rude vocabulário, que não nos descrevesse senão os seus costumes, seria bem uma literatura tupy ou guarany, mas não a brasileira (...) A cor local não constitue a originalidade de uma literatura. Há alguma cousa mais que realizar para uma literatura ser nacional, é expressar o estado da sociedade, que ne‟ella se reflete. (...)Mas os pintores de nossa sociedade foram tão infelizes como os da nossa vida selvagem. No Brazil não há por ora originalidade alguma, nem de artes, nem de construção, nem de costumes, nem de vida.11

Por quais razões os traços lembrados pelos escritores para demonstrar a “originalidade” nacional – a inspiração “na vida errante das tribos primitivas” e o estado da sociedade, identificada pela escravidão - não se sustentavam? Porque constituindo 10

O contraponto com Alencar se tornaria, em 1875, uma expressiva polêmica na imprensa. “Sente-se à distância na polêmica mais uma manifestação da fermentação que agitava os críticos e pensadores literários (...) no sentido da nacionalização e autonomia da literatura brasileira. O século é atravessado por uma corrente ideológica (...) em favor da valorização brasileira. Por uma natural consequência da educação europeia e aristocrática, inclinava-se Joaquim Nabuco mais a superestimar a herança europeia, enquanto José de Alencar era possuído de uma visão criada de uma perspectiva brasileira da sociedade que se estava construindo de dentro para fora, de baixo para cima, como uma nova sociedade de cunho mestiço, diversa da que representava a classe branca dominante” . COUTINHO, Afrânio. Introdução. In: NABUCO, JOAQUIM. A Polêmica Alencar/Nabuco. 2ª ed. R. de Janeiro/Tempo Brasileiro- Brasília/ Ed. UNB, 1978.p. 11; sobre a existência de uma literatura nacional. Cf. DRUMMOND, Adriano Lima. Literatura Portuguesa nas plagas brasileiras oitocentistas: o culto bocageano de Álvares Azevedo e o missionarismo camoniano de Joaquim Nabuco. 11 NABUCO, J. Camões e os Lusíadas. p. 11-12

6 referências “que fazem parecer tudo isso novo e original”, representavam apenas uma “época de transição condenada a desaparecer”, e “sem relação alguma com a raça, as tradições e a história do paiz”. Uma “literatura pátria abundante” e genuína derivaria de duas conquistas projetadas para o futuro: “que a alma beba amplamente inspirações na nossa natureza e, depois, que a sociedade chegue pela liberdade a tomar sua forma definitiva”: Há duas cousas, porém, que fazem parecer tudo isso novo e original: a primeira digamo-lo em nossa conta é a natureza; a segunda, digamo-lo para nossa vergonha, é a escravidão. (...) É isso que forma a originalidade brasileira. Este systema que não pecca por falta de relação com a sociedade brasileira, pecca por falta de ideal (...) É ele, na verdade, a exacta pintura da sociedade de hoje, mas por isso mesmo é destinado a perecer com esta. O presente do Brazil é uma épocha de transição. (...) Assim os diversos ensaios feitos com o intuito de dar-nos uma literatura pátria, foram todos estéreis: uns, porque produziram uma literatura, que sem ter relação alguma com a raça, as tradições e a história do paiz, não podia ser a literatura brasileira; outros porque traçaram as raias da nossa nacionalidade moral com a escravidão, condenada a desaparecer (..) Não duvido que venhamos a ter uma abundante literatura pátria, mas para isso é preciso, primeiro, que a alma beba amplamente inspirações na nossa natureza e, depois, que a sociedade chegue pela liberdade a tomar sua forma definitiva. Enquanto taes resultados não se produzirem, os Lusiadas, como obra prima de nossa língua, serão a obra prima da nossa literatura.12

Entretanto, a partir de 1883, pela aproximação com a British and Foreign AntiSlavery Society,13comprometimento com o movimento abolicionista internacional e determinação em dar passo importante visando superar aquela “época de transição”, a crítica de Nabuco à escravidão se acentuaria a tal ponto que não pouparia, nem a imagem de Portugal, nem mesmo a figura de Pedro II14. Nesse período, propôs um programa mais incisivo de supressão do cativeiro a curto prazo e sem indenização para a propriedade escrava considerada ilegal, ou seja, dos africanos chegados ao Império 12

Ibid. p. 12-14. A British and Foreign Anti-Slavery Society (1839) sucedeu duas associações anti-escravistas inglesas o African Institution ( 1807) e a Anti-Slavery Society (Society for the Mitigation and Gradual Abolition of Slavery) de 1823. Caracterizou-se pela atuação internacional junto a abolicionistas norte americanos, franceses, espanhóis e mais tardiamente, brasileiros. Seu traço recorrente foi o encaminhamento da questão escrava pelas vias parlamentares aproveitando outras mobilizações e canalizando o apoio de correntes abolicionistas diversas. TEMPERLEY, Howard. British Antislavery, 1833-1870. Columbia, Un. South Carolina Press, 1972.; BLACKBURN, Robin. The Overthtrow of colonial slavery 1776-1848. Londres,Verso, 1988; ROCHA, Antonio P. Abolicionistas brasileiros e ingleses. A coligação entre Joaquim Nabuco e a British and Foreign Anti-Slavery Society (1880-1902). S. Paulo:Ed. da UNESP, 2009. 14 Em 1886, Nabuco publicou dois opúsculos em 1886 nos quais recriminou duramente as tendências conservadoras de Pedro II e sua “ indiferença” pela sorte dos escravos: “Eu mesmo tenho feito justiça (...) dos pálidos e intervalados esforços do Imperador, tanto para a supressão do tráfico como para a libertação dos nascituros. O que se tem feito por lei é devido principalmente a ele, mas o que ele tem feito é muito pouco, é realmente nada, quando vemos que esse é o resultado de quarenta e seis anos de reinado (...)A história há de dificilmente conciliar a inteligência esclarecida, a vasta ciência do homem com a indiferença moral do Chefe de Estado pela condição dos escravos no seu país”. NABUCO, J. O erro do Imperador . R. de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1886, p.13-14; e O eclypse do abolicionismo. R. de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1886. 13

7 depois de promulgada a lei de 7 de novembro 1831, que abolira o tráfico atlântico de cativos. No livro O Abolicionismo, preparado em Londres para as eleições brasileiras de 188415, associou argumentos jurídicos, políticos e morais apropriados a várias historicidades e fontes para tecer uma imagem nefasta e universal da escravidão a quem atribuiu todas as dificuldades enfrentadas pelo Império. Representado especialmente pelos mercadores de escravos e outras figuras envolvidas no processo de colonização, Portugal foi então responsabilizado pela implantação do cativeiro e usufruto dos lucros do tráfico de africanos no passado e no presente. Sustentando uma antiga reivindicação da diplomacia britânica e de abolicionistas europeus, americanos e brasileiros, alegou que o comércio atlântico de cativos, praticado a partir de 1831, constituía um “crime” de “pirataria”, um “contrabando de sangue”, um atentado contra o direito das sociedades civilizadas e uma afronta ao direito internacional, à legislação brasileira, à ética e às práticas econômicas liberais que Portugal e o Brasil (solitário na prática escravista após sua abolição nos Estados Unidos e em Cuba) desrespeitavam: Grande parte do mesmo capital realizado foi empregada na edificação do Rio de Janeiro e da Bahia, mas o restante foi exportado para Portugal, que tirou assim do Tráfico, como tem tirado da escravidão no Brasil não menores lucros do que a Espanha tirou dessas mesmas fontes em Cuba. Mas a história dessa lei (de 1831) é uma página triste do nosso passado e do nosso presente. Os africanos, que o pirata negreiro, navegando sob a bandeira brasileira – a maior parte dos traficantes, e os mais célebres dentre eles, os que têm a seu crédito nos Livros Azuis ingleses maior número de vítimas, eram estrangeiros e, para vergonha de Portugal e nossa também, portugueses – ia buscar aos depósitos da África e desembarcava nos da costa do Brasil, não acharam quem os pusesse em liberdade, como a lei o exigia. 16

Analisando retrospectivamente as motivações da recorrência à escravidão no território brasileiro, retomou um histórico negativo da colonização sugerindo outra leitura para os feitos da “pequena, mas robusta Nação que fundou o Brasil, e que foi tanto tempo a Mãe-Pátria”, ou seja, “por não ter corpo, nem forças, para possuir mais do que nominalmente o imenso império” que congregou, salvo uma “pequena minoria destemida que se arriscou a atravessar o Oceano a vela e a ir estabelecer-se nos territórios incultos do Brasil”, a pequena metrópole “descarregara no nosso território os seus criminosos, as suas mulheres erradas, as suas fezes sociais todas”; delegara o 15

De acordo com o prefácio da 1ª. edição, o livro foi realizado como o primeiro de uma série de publicações denominada “Reformas Nacionaes”, que não se concretizou. Os volumes seguintes deveriam abordar “a reforma econômica e financeira, a instrução pública, a descentralização administrativa, a igualdade religiosa, as relações exteriores, a representação política, e a imigração européia”. Cf. MARSON, Izabel A. e TASINAFO, Célio R.- “Considerações sobre a história do livro e de seus argumentos” In: NABUCO, J. O Abolicionismo. Prefácio . Brasília, Ed. UnB, 2003. p. 9-10. 16 NABUCO, J. O Abolicionismo. Intr. Marco A. Nogueira. 5ª ed. Petrópolis:Vozes, 1988.p. 81, 85.

8 encargo de colonizar para os donatários, “sem meios, nem capitais, nem recursos de ordem alguma” e aos jesuítas, e o fundara sobre a escravidão africana. Esta última iniciativa, tão problemática como a anterior, acabou por estabelecer uma ponte condenável entre a África e o Brasil “pela qual passaram milhões de africanos, estendendo o habitat da raça negra das margens do Congo e do Zambezi às do São Francisco e do Paraíba do sul”: No princípio da nossa colonização, Portugal descarregava no nosso território os seus criminosos, as suas mulheres erradas, as suas fezes sociais todas, no meio das quais excepcionalmente vinham imigrantes de outra posição e, por felicidade, grande número de judeus. O Brasil se apresentava então como até ontem o Congo. No século XVI ou XVII o espírito de emigração não estava bastante desenvolvido em Portugal para mover o povo, como desde o fim do século passado até hoje, a procurar na América portuguesa o bem estar e a fortuna que não achava na Península. Os poucos portugueses, que se arriscavam a atravessar o Oceano a vela e a ir estabelecer-se nos territórios incultos do Brasil, representavam a minoria dos espíritos aventureiros, absolutamente destemidos, indiferentes aos piores transes na luta pela vida, minoria que em Portugal, hoje mesmo, não é grande e não podia se-lo, há dois ou três séculos. Apesar de se haver estendido pelo mundo todo o domínio português, á América do sul, à África ocidental, austral e oriental, à Índia e à China, Portugal não tinha corpo, nem forças, para possuir mais do que nominalmente esse imenso império. Por isso, o território do Brasil foi distribuído entre donatários sem meios, nem capitais, nem recursos de ordem alguma, para colonizar as suas capitanias, isto é, de fato entregue aos Jesuítas. (...) Estando a África nas mãos de Portugal, começou então o povoamento da América por negros; lançou-se por assim dizer uma ponte entre a África e o Brasil, pela qual passaram milhões de africanos, e estendeu-se o habitat da raça negra das margens do Congo e do Zambezi às do São Francisco e do Paraíba do sul.(...)17

Nessa perspectiva, sobretudo pelo fato “do espírito de emigração não estar bastante desenvolvido em Portugal para mover o povo, como desde o fim do século passado até hoje, a procurar na América portuguesa o bem estar e a fortuna que não achava na Península”, o recurso ao cativeiro de africanos teria sido a origem da grande “fatalidade nacional”. Assim, as regiões nas quais predominara podiam ser reconhecidas pelos resquícios negativos daquela instituição, sintomáticos no presente do “ definhamento gradual que precede a morte”, ou seja, sem “prenúncio de futuro”.18 17

Ibid. 105-106. Na abordagem dos significados da obra colonial portuguesa na América para a expansão da Europa e para civilização, Nabuco acompanhou de perto as teses de Oliveira Martins em O Brasil e as colônias portuguesas (1880). Mas discordou veementemente da avaliação dos resultados por ele apontados para a prática da escravidão para o Brasil: “ Pretende um dos mais eminentes espíritos de Portugal que „a escravidão dos negros foi o duro preço da colonização da América, porque, sem ela o Brasil não se teria tornado no que vemos‟ . Isso é exato (...) mas esse preço quem o pagou, e está pagando, não foi Portugal, fomos nós; e esse preço a todos os respeitos é duro demais, e caro demais, para o desenvolvimento inorgânico, artificial, e extenuante que tivemos. A africanização do Brasil pela escravidão é uma nódoa que a mãe pátria imprimiu na sua própria face, na sua língua e na única obra nacional verdadeiramente duradoura que conseguiu fundar”. Ibid. p.105-106. Sobre a presença das teses de Oliveira Martins em O Abolicionismo, cf. ALONSO, Angela. Idéias em movimento. A geração de 1870 na crise do BrasilImpério. S. Paulo:Paz e Terra, 2002, p. 196 e ss; sobre as leituras do Brasil em Oliveira Martins: CARDOSO, Patrícia da Silva. Imagens do Brasil na obra de Oliveira Martins. In: MARÇALO, Maria João; LIMA-HERNANDES, Maria Célia et.all (Eds.). Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas. Universidade de Évora. http://www.simelp2009.uevora.pt/pdf/slt56/13.pdf 18

9 Apesar disso, na opinião do escritor “ os descendentes ou da raça que escreveu essa triste página da humanidade ou da raça com cujo sangue ela foi escrita, ou da fusão de uma e outra” não deveriam “perder tempo a envergonhar-nos desse longo passado que não podemos lavar”. Pelo contrário, era preciso “convergir esforços” no sentido de supera-lo através da gradativa “eliminação da escravidão de nosso organismo” assim como sua herança através da imigração de colonos brancos, da educação, do desenvolvimento de novas práticas econômicas e de uma opinião pública: No ponto a que chegamos, olhando para o passado, nós, brasileiros, descendentes ou da raça que escreveu essa triste página da humanidade ou da raça com cujo sangue ela foi escrita, ou da fusão de uma e outra, não devemos perder tempo a envergonhar-nos desse longo passado que não podemos lavar, dessa hereditariedade que não há como repelir. Devemos fazer convergir todos os nossos esforços para o fim de eliminar a escravidão do nosso organismo, de forma que essa fatalidade nacional diminua em nós e se transmita às gerações futuras, já mais apagada, rudimentar atrofiada. A verdade é que as vastas regiões exploradas pela escravidão colonial tem um aspecto único de tristeza e abandono; não há nelas o consorcio do homem com a terra, as feições da habitação permanente, os sinais de crescimento natural. O passado está aí visível, não há porem prenúncio de futuro: o presente é o definhamento gradual que precede a morte.19

O confronto entre adeptos e críticos da abolição incondicional no Parlamento brasileiro, e fora dele, foi intenso e atravessou toda a década de 1880. Apesar das dificuldades colocadas pelo considerável número de adversários, o objetivo imediato dos abolicionistas se concretizou com a Lei Áurea que, assinada em 13 maio de 1888 pela regente do trono – a princesa Isabel -, suprimiu de forma inédita a escravidão, ou seja, sem contrapartidas para a maior parte dos proprietários20. Contudo, esta decisão não salvou a monarquia. Pelo contrário, somada a outros descontentamentos, contribuiu significativamente para a queda do regime, substituído, em 15 de novembro de 1889, por uma república liderada por militares - os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto - e, sobretudo, dominada em seus primeiros anos por republicanos positivistas e jacobinos, resultado inesperado e profundamente decepcionante para Nabuco. Tais acontecimentos sinalizaram outros projetos políticos para o escritor na década de 1890: restaurar a monarquia, pugnando na imprensa e em trabalhos historiográficos, contra aquela tão indesejada revolução republicana. Nessa nova

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NABUCO, J. O Abolicionismo. Intr. Marco A. Nogueira. 5ª ed. Petrópolis:Vozes, 1988.108,112. A recusa a qualquer indenização significava efetivamente um confisco da propriedade privada, procedimento inédito na resolução da questão servil, pois a Inglaterra, a França e mesmo Cuba haviam encontrado formas de compensar os proprietários. Apenas nos Estados Unidos, em virtude da guerra civil, não fora providenciado nenhum expediente para cobrir os custos da emancipação. A propósito dessa discussão cf. MARSON, I.A. Política, história e método em Joaquim Nabuco: tessituras da revolução e da escravidão. Uberlândia:EDUFU, 2008. p.122. 20

10 missão, Nabuco gradativamente se isolaria frente aos correligionários locais e se aproximaria dos monarquistas portugueses. Ao escrever Balmaceda, A intervenção estrangeira durante a revolta da Armada e, especialmente Um Estadista do Império21, acentuaria, por um lado, seu desencanto em relação à sociedade brasileira como um todo e por outro, valorizaria afinidades e vínculos de origem entre o país e sua metrópole e os traços positivos da colonização e herança portuguesas no Brasil.

2. Oposição à república jacobina: sintonia(s) no passado e no presente Os partidários da restauração monárquica no Brasil tinham opiniões divergentes sobre como realizar a oposição ao novo regime: se apenas homenageando o Império e denunciando os descalabros da política republicana; ou se realizando uma agitação sistemática, conspirando e promovendo uma guerra civil.22 Defensor de princípios evolucionistas e muito reticente em relação a soluções “revolucionárias”, Nabuco integrou o contingente daqueles que militaram nos jornais e na pesquisa histórica demonstrando a excelência do regime monárquico para o Brasil, visíveis nas realizações de toda ordem ocorridas durante o Império. Entre janeiro e agosto de 1892 – início da gestão do segundo presidente militar, o marechal Floriano Peixoto – embora residindo em Londres onde, tangido pelo receio de ser preso tentava se fixar23, continuou a escrever para folhas brasileiras de matiz monarquista. Retornou ao país em setembro do mesmo ano para, juntamente com o trabalho na imprensa, retomar um projeto antigo – escrever a “Vida” de seu pai, o conselheiro e senador do império José Thomaz Nabuco de Araujo – projeto agora (re)significado por novas questões políticas: o engajamento na defesa da causa monárquica; as dissidências entre os restauradores e a denúncia das

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NABUCO, J. Balmaceda. R. de .Janeiro: Typ. Leuzinger, l895; A intervenção estrangeira durante a Revolta da Armada. R. de .Janeiro: Typ. Leuzinger, l896; Um Estadista do Império. Nabuco de Araujo, sua vida suas opiniões, sua época. R.. de Janeiro./Paris: H. Garnier livreiro e editor, l897-99. 3 vols 22 Havia também conflitos pessoais entre suas lideranças (João Alfredo Correia de Oliveira, Afonso Celso, o coronel Gentil de Castro, Andrade Figueira, Eduardo Prado, João Mendes de Almeida, dentre outros) - decorrentes de convicções díspares sobre a experiência monárquica e a sociedade brasileira. Sobre o assunto, cf. JANOTTI, M. de Lourdes. Os subversivos da república. S.Paulo:Brasiliense, 1986; e MARSON, Izabel Andrade. “Política, imaginação e memória na argumentação de Joaquim Nabuco: um diagnóstico crítico sobre as nações latino-americanas. In: FERREIRA, Marieta de M. (org.) Anais eletrônicos do XXVI Simpósio Nacional da ANPUH. São Paulo, julho de 2011. 23 Antes, cidade europeia de sua preferência, Nabuco se estabelecera em Londres por duas vezes: entre 1876 e 1878, como funcionário da Legação brasileira naquele país; e entre 1882 e 1883, como correspondente do Jornal do Commércio e advogado de empresas inglesas sediadas no Brasil. Cf. Nabuco, Joaquim. Cartas a Amigos. São Paulo:IPÊ,1949, v. 1;MARSON, I.A. Política, história e método em Joaquim Nabuco, p. 183 e ss.

11 mazelas do militarismo e do “terror” jacobinos, temas que orientariam todos seus escritos a partir daquele momento. Nesta circunstância, a oposição monarquista encontrava-se retraída em virtude do recrudescimento da repressão que levou à prisão e ao exílio muitos de seus membros. Mas, também, atenta à resistência dos republicanos federalistas do Rio Grande do Sul24, que não viam com bons olhos o domínio do militarismo jacobino sobre a jovem república, e ao sucesso da revolução restauradora da Armada chilena (ao longo de 1891) contra o presidente José Manuel Balmaceda25. Decididos a intervir mais diretamente contra Floriano, já no início de 1892, significativo contingente desta oposição se envolveu com a revolta do sul, nele incluído um cunhado de Nabuco, o dr. Hilário Gouveia, e seu sobrinho Juca Gouveia. Um pouco mais tarde, outros se engajaram na Revolta da Armada (setembro de 1893 - março de 1894), movimento de chefias da marinha comandado inicialmente pelo almirante Custódio de Mello mas reforçado, nos últimos meses de 1893, pelos navios do oficial monarquista Saldanha da Gama, que atuou especialmente no cerco da cidade do Rio de Janeiro26. Após a derrota dos insurgentes, já no início do governo civil de Prudente de Morais (1895-1899) - momento em que a ambiência política tornara-se mais favorável aos monarquistas -, simpatizantes daquele movimento retomaram as denúncias dos abusos da administração anterior abordando, especialmente, a intervenção da frota estrangeira contra a Revolta, responsabilizando-a, e às grandes potências, pela 24

Os governos militares do Marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891) e de Floriano Peixoto (18911894), enfrentaram resistências tanto de dissidentes militares quanto de civis, razão maior da renúncia de Deodoro em novembro de 1891, substituído por Floriano, então vice-presidente. Elas foram mais expressivas no Rio Grande do Sul, onde se instaurou uma guerra civil prolongada e itermitente, entre duas facções republicanas – os „castilhistas”, partidários de Floriano e de um pacto republicano presidencialista, ali conduzidos por Júlio de Castilhos; e os “federalistas”, adeptos de uma república parlamentar, liderados por Gaspar Silveira Martins e o almirante Custódio de Mello. Os últimos episódios desse conflito constituíram a Revolução Federalista (conduzida por Silveira Martins) e a Revolta da Armada (liderada por Custódio de Mello), cujos combatentes juntaram forças em 1893-1894.Cf. QUEIROZ, Suely Robles Reis de - Os radicais da República. S. P. Brasiliense, 1986. 25 Eleito presidente em 1886, José Manuel Balmaceda rompeu com o Congresso no final de 1890 quando este vetou orçamentos apresentados pelo governo, o que resultou no seu fechamento e substituição por outra representação parlamentar, ato considerado um “golpe anticonstitucional” que, segundo Nabuco, teria transformado o governo em uma “ditadura”. Balmaceda, então, passou a enfrentar uma guerra civil, sendo vencido pela resistência das antigas chefias parlamentares, no geral conservadoras, apoiadas na Armada e na “oligarquia” chilena, composta por grandes proprietários de terras, minas e empresários. Cf. NABUCO, J. Balmaceda. S. Paulo:Cosac Naif, 2008. 26 As forças do almirante Saldanha da Gama concentraram-se no cerco ao Rio de Janeiro para controle das ilhas da baía de Guanabara. Por sua vez, os navios de Custódio de Mello deslocaram-se em direção ao sul onde lograram ocupar, por algum tempo juntamente com os combatentes federalistas de Silveira Martins, a cidade de Desterro, capital do estado de S. Catarina. NABUCO, Joaquim. Diários. (18891910) Prefácios e notas de Evaldo Cabral de Mello. R. de Janeiro::Bem te Vi Produções Literárias;Recife::Ed. Massangana,-Fundaj, 2005. v. 2, p. 82-93.; e A intervenção estrangeira durante a revolta da Armada.

12 sustentação da “ditadura militar” florianista. Apesar dos receios quanto aos métodos revolucionários, a esperança trazida pela resistência dos almirantes visando a deposição de Floriano, haviam sido registradas também no Diário de Nabuco27. A princípio entendida apenas como “proteção aos cidadãos estrangeiros – ingleses, franceses, portugueses e alemães -28, para aquele escritor aquela intervenção tornara-se lesiva aos interesses do país após a decisiva interferência da frota americana a favor do governo. 29 Em artigos de 1895 para o Jornal do Comércio, Nabuco faria um histórico dessa intervenção demonstrativo de como fora vital para a sobrevivência de Floriano e desleal para com os chefes rebeldes. Ou seja, interpretou-a como “um golpe da esquadra estrangeira” que “paralisou” a frota insurgente impedindo-a de bombardear a cidade, mediante um “acordo ilusório” realizado em “5 de outubro” de 1893, (a Entente du 5 de octobre) selado entre os comandantes da frota estrangeira sediada no porto do Rio de Janeiro e a chefia rebelde, no qual a esquadra “se deixou enlear”. O governo a teria dizimado não fosse o justo acolhimento dos vencidos pelas corvetas portuguesas D. Afonso de Albuquerque e Mindello, então sob comando do capitão de fragata Augusto Vidal de Castilho Barreto e Noronha: A intervenção tinha produzido o seu efeito: por um lado, tinha gastado, dia a dia, os elementos ativos e destruído a moral da esquadra; por outro, tinha deixado completar-se, por trás dos sacos de areia e das notas diplomáticas a fortificação da cidade e dado tempo ao Governo para organizar uma esquadrilha, ainda que improvisada, suficiente para dar combate aos navios desmantelados de que a revolta dispunha no porto. Nessas condições o Governo resolveu dar o golpe final. Em 11 de março os representantes das potências estrangeiras receberam todos comunicação oficial de que findas quarenta e oito horas começariam as operações da cidade contra os insurgentes”. Deu-se então o desenlace inesperado. Não podendo aceitar um combate tão desigual a que o forçaria, sem a mais remota possibilidade de êxito, a ligar o seu nome, e ainda pior a tradição da nossa Marinha de Guerra, a uma recordação perpetuamente odiosa, como seria o bombardeamento Saldanha da Gama pediu asilo para si e a sua gente ao comandante português Augusto de Castilho. 30 27

“Em seu Diário, o escritor é ainda mais expressivo nas expectativas em relação aos acontecimentos.”[estou] muito desanimado vendo a esquadra apertada cada vez mais entre os fogos de terra que o Floriano multiplica, ao passo que ela vai perdendo os seus poucos recursos – Javari, Mocanguê, Armação, Ilha do Governador. À noite trazem a notícia de que o Aquidabã sairá sem falta hoje à noite ou pela madrugada de amanhã. Assim seja; será um grande alívio para mim ver o Aquidabã senhor da costa toda, em vez de ser reduzido a uma simples fortaleza do Rio.‟ NABUCO, Joaquim. Diários (29/11/1893, p. 87). 28 A 1º. De outubro de 1893, Nabuco registrou em seu Diário: “na anarquia é uma obra de misericórdia das potências salvarem seus nacionais da pilhagem, e nunca nenhuma nação levou a mal o auxílio estrangeiro à ordem pública e à civilização ameaçada. Pobre América Latina! Que situação a sua”. Ibid. p. 61. 29 “Temeroso das possibilidades de restauração monárquica, o presidente dos Estados Unidos Grover Cleveland, resolve intervir no conflito, demitindo o comandante Newark por haver salvado a armada de Custódio, e enviando ao Rio o almirante Benham, cujas forças cooperaram com Floriano”. Ibid. 29/10/1893, p. 79.”A esquadra americana assume atitude de assustadora conivência com Floriano. Os jornais republicanos elogiam o ela ter atirado contra os revoltosos”. (Ibid., 30/1/1894, p. 93) 30 NABUCO, Joaquim. A intervenção estrangeira durante a revolta da Armada de 1893. In: SILVA, Leonardo Dantas da.(org.) Nabuco e a República. Textos de Joaquim Nabuco com organização e

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Além dessa denúncia, o texto também faz a defesa daquele oficial frente as acusações de abandono da neutralidade pressuposta na intervenção, conivência com a Revolta e traição ao governo brasileiro pelo gesto de conceder asilo político a Saldanha da Gama e seus comandados. Acompanhando as explicações do próprio Castilho31, interpretou a iniciativa como demonstração de fidelidade ao espírito do Acordo de 5 de outubro, uma vez que Floriano desrespeitara o que fora estabelecido (conservar à cidade do Rio o caráter de cidade aberta desde que também fosse mantida a não beligerância do governo) “quando mais não precisava da sua proteção”. Indo além, Nabuco reiterou a justificativa apresentada pelo acusado, valorizando sua integridade, justiça e espírito de humanidade para com os exilados políticos, assegurado no direito internacional: Augusto de Castilho tinha sido um dos comandantes superiores que tomaram parte nas primeiras deliberações do Aréthuse; avaliava devidamente a importância da intervenção; sabia que se não fosse ela a esquadra revoltada nunca teria sido forçada a lhe vir pedir refúgio; concorrera para o acordo feito entre os dois combatentes, de se conservar à cidade do Rio o caráter de cidade aberta, e, como todos os seus colegas, reconhecia que esse acordo fora rompido pelo marechal Floriano Peixoto quando mais não precisava da sua proteção. 32

No entanto, as acusações que atingiam o comandante português sustentavam-se também pelos desdobramentos, tão nebulosos quanto problemáticos, daquele ato, graves do ponto de vista das relações políticas e diplomáticas entre os dois países. Isto porque, em manobra considerada polêmica e arriscada, dada a precariedade das corvetas sob seu comando, além dos 80 oficiais inicialmente previstos, levara quase 500 insurgentes para o sul, à região do rio da Prata. E ali chegando, permanecera nas proximidades de Montevidéu e de Buenos Aires por quase 2 meses, segundo informações oficiais por orientação superior, tanto para socorro dos doentes e higienização dos barcos, quanto, e principalmente, à espera de transporte mais adequado dos rebeldes. Isto porque, em decorrência da repercussão negativa daquelas operações no Brasil e em Portugal, eles passaram a ser considerados “prisioneiros” do governo luso, e deveriam ser conduzidos para um “depósito militar” em alguma praça africana ou mesmo em território do país no continente europeu.

introdução de Leonardo Dantas da Silva. Recife:FUNDAJ, Editora Massangana, 1990. p. 109. 31 CASTILHO, Augusto. Portugal e Brasil. Conflito Diplomático.Lisboa:M. Gomes,1894.3 v. 32 NABUCO, Joaquim. A intervenção estrangeira, p. 117.

14 Mas, em virtude da demora na chegada da embarcação para o translado, da incerteza dos prisioneiros quanto ao seu futuro, do apoio de argentinos e uruguaios favoráveis à revolta federalista contra o governo brasileiro ou, ainda, da própria conivência de Castilho, o certo é que mais da metade dos aprisionados se evadiu e se engajou na revolta em curso no Rio Grande do Sul, levando Floriano a romper as relações diplomáticas com Portugal em 13 de maio de 1894.33 Da avaliação realizada pelo governo português sobre todos esses acontecimentos resultou um processo no Conselho de Guerra da Marinha contra Castilho - do qual foi absolvido – e uma polêmica internacional sobre o direito dos prisioneiros políticos.34 O rompimento entre os dois países teve grande ressonância também por estimular embates entre monarquistas e republicanos dos dois lados do Atlântico. Em Portugal, acirraram as críticas, mesmo de setores monarquistas progressistas, à política do gabinete conduzido pelo partido regenerador presidido por Hintze Ribeiro.35 No Brasil provocaram, além das retaliações aos imigrantes lusos ( por exemplo dificultar a efetivação de negócios ou o envio de remessas de dinheiro ao país de origem), o recrudescimento do tradicional sentimento de lusofobia latente ou externado abertamente desde o início do século XIX, agora revigorado e (re)interpretado pelos republicanos jacobinos que responsabilizaram os colonizadores portugueses pelo “atraso do país” e a dinastia de Bragança por te-lo desviado de sua vocação americana, ou seja, inviabilizado a implantação da República no momento da independência. Por estes 33

Além dos escritos de época, muitos autores relataram estes episódios. Cf. ABRANCHES, Dunshee. “A revolta da armada e a revolução rio-grandense”. In: Correspondência entre Saldanha da Gama e Silveira Martins. Rio:M. Abranches Editor, 1914; COSTA, Sérgio Correa da. A diplomacia do marechal. Intervenção estrangeira na revolta da Armada. Rio de Janeiro:Livaria e Editora Zélio Valverde, 1945; GOYCOCHEA, Castilhos. Dois ensaios: as relações diplomáticas entre Brasil e Portugal. Rio de Janeiro:Departamento da Imprensa Nacional,1949; ARIAS NETO, José Miguel. Intervenção Estrangeira na revolta da Armada. Revista Eletrônica de História do Brasil. Juiz de Fora:Clio Edições Eletrônicas, v. 4, n. 1, p.4-13 jan/jun.2000.www.clionet.ufjf.br/rehb;ALVES, Francisco das Neves. A ruptura diplomática Brasil-Portugal ao final do século XIX na visão da imprensa governista rio-grandense-dosul. Rio Grande:Fundação Universidade Federal do Rio Grande, 2005; HEINSFELD, Adelar. A ruptura diplomática Brasil-Portugal: um aspecto do americanismo do início da república brasileira. XXIV Simpósio Nacional de História – 2007. Associação Nacional de História – ANPUH – 2007. 34 CASTILHO, Augusto. Ob.cit; COSTA, Sérgio Correia da. Ob.cit. cap. 3. 35 De fato, o episódio veio somar-se ao desencanto da opinião pública com a decisão do rei D. Carlos I de aceitar o Ultimatum inglês de 1890, que obrigou Portugal a abrir mão de território africano intermediário entre as colônias de Angola e Moçambique. Para os portugueses, a decisão significou obedecer novos critérios impostos pelas grandes potências europeias na corrida colonialista na África (o direito por descoberta foi substituído pelo direito por ocupação) e, mais problemático, abrir mão do “sonho de um novo Brasil na África”, projeto que parecia vir solucionar a crise financeira e de empreendimentos vigente no país desde anos 1870. HOMEM, Amadeu Carvalho. Jacobinos, liberais e democratas na edificação do Portugal contemporâneo” In: TENGARRINHA, José. (org.) História de Portugal. 2ª. ed. revista e ampliada. Bauru,SP:EDUSC; S. Paulo,SP:UNESP; Portugal,PT:Instituto Camões, 2001. p. 346356.

15 motivos, e pela permanência da monarquia em Portugal, acusavam-na, seus representantes diplomáticos e os imigrantes portugueses de apoiar os revoltosos, o que estimulou o ódio e a violência presentes em muitas manifestações urbanas nas quais aconteceram espancamentos e depredações.36 Por outro lado, havia a polêmica presença de monarquistas brasileiros exilados naquele país, de onde mantinham intensa correspondência com correligionários que permaneciam no Brasil, organizavam publicações e, principalmente, contando com o apoio de intelectuais (a exemplo de Oliveira Martins – escrevendo artigos a favor da monarquia brasileira n‟O Tempo de Lisboa, depois transcritos no Journal des Débats - , Eça de Queiroz e, mesmo, Ramalho Ortigão) divulgavam críticas aos governos aqui estabelecidos veiculando, no exterior, uma visão “detratora” da realidade nacional”.37 Os artigos (1895) e o livro (1896) de Nabuco emergiram justamente nessa intensa polêmica, revigorada quando Prudente de Morais negociava o reatamento das relações entre os dois países (finalizado em maio de 1895) e a anistia para os rebeldes do Rio Grande do Sul. Respondendo as acusações dos partidários de Floriano, Nabuco construiu verdadeiro libelo público em defesa de Castilho, a quem o texto foi dedicado com termos muito significativos das afinidades entre os monarquistas brasileiros e o comandante português: Ao comandante da Mindello Augusto de Castilho. Que pela sua resolução pronta, sua firmeza inquebrantável, seu desassombro e sua incomparável humanidade impediu no dia 13 de março de 1894 de ficar para sempre nefasto no Brasil como o profetizado dies irae nacional, é este livro dedicado em testemunho da mais alta admiração.38 36

Esta percepção ganhou vigor, por exemplo, pelo fato de muitos negociantes portugueses terem demonstrado pesar quando do falecimento do imperador Pedro II, em dezembro de 1891. Por outro lado, as expectativas do representante português no Brasil no período da revolta, o conde Paço d‟Arcos, assim como da maior parte das nações europeias naquele momento, e dos monarquistas brasileiros, era de que a república não se sustentaria. Sobre as manifestações de lusofobia neste contexto e no período ver: RIBEIRO, Gladys Sabina. ”Cabras e pés-de chumbo”: os rolos do tempo. O antilusitanismo na cidade do Rio de Janeiro – 1890-1900. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro:UFF, 1987; da mesma autora, abordando as origens daquele sentimento: A liberdade em construção. R. de Janeiro:RelumeDumará/FAPERJ, 2002. Ver também, QUEIROZ, Suely Robles R. Os radicais da república. S. Paulo:Brasiliense, 1986. 37 JANOTTI, M. de Lourdes. Ob. cit. p. 35. Haviam sido publicados na Europa: CELSO, Afonso Celso de Assis Figueiredo (visc. de O. Preto) . Advento da Ditadura Militar no Brasil. Paris: E. Pichon, 1891; PRADO, E.(pseud. Frederico de S.) Fastos da Ditadura Militar no Brasil.s.l.p; s.c.e., 1890; “Destinos Políticos do Brasil”; “Os acontecimentos no Brasil”; Práticas e teorias da ditadura no Brasil”; “A ditadura no Brasil: tratados diplomáticos e crédito financeiro; as finanças e a administração da ditadura brasileira”; “A República Brasileira”. Revista de Portugal . vols. I-II, 1889-1890. 38 NABUCO, Joaquim. A intervenção estrangeira durante a revolta. Rio de Janeiro:Typ. Leuzinger, 1896. A importância da argumentação de Nabuco para o desfecho positivo do conflito diplomático e esclarecimento dos procedimentos de Castilho nos eventos foi ressaltada por aquele personagem em carta, de 18 de junho de 1895, que o autor do livro incorpora no Prefácio da obra:“É com o mais sincero júbilo que d‟aqui tenho acompanhado a modificação gradual que na opinião pública brasileira se tem ido operando depois de meu julgamento. A princípio, enquanto o pensamento não podia manifestar-se, e

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Tais afinidades se explicitariam mais claramente na resposta dada pelo escritor à pergunta: “Por que, Saldanha da Gama teria escolhido aquela bandeira” [a portuguesa]? Apesar de mencionar o fator “surpresa” que caracterizou o ultimatum do governo Floriano aos insurgentes (estabelecia 48 horas para o ataque) e o pequeno número de embarcações ainda disponíveis no porto – além dos barcos portugueses, “a pequena canhoneira inglesa Beagle”, e um navio dos Estados Unidos com “ os portalós fechados, incomunicável, quiçá inimigo” – fundamentando-se nos depoimentos de Castilho e de seu defensor, Eduardo Alves de Sá39, Nabuco valorizou os vínculos históricos e afetivos. Ou seja, Saldanha da Gama preferira “o asilo dos navios de um povo amigo, irmão, não inteiramente estrangeiro e que não se impunha naquelas circunstâncias pela força, do que a proteção concedida por qualquer nação poderosa, mas perfeitamente estranha ao Brasil”, como era o caso da Inglaterra: A sua escolha era entre a Inglaterra e Portugal. O serviço, porém, que ele ia pedir era da ordem desses que quase não se pede a estranhos. As noções todas pelas quais se regula o proceder público e privado da comunhão são tão diversas da Inglaterra para o Brasil que excluem qualquer aproximação; não há nada em comum no sentir dos dois países; pertencem, pode-se dizer, a mundos diversos. (...) Por último, a Inglaterra, era o estrangeiro, na frase de Saldanha, perfeitamente estranho ao Brasil, o estrangeiro sem interesse pelas nossas lutas, frio, indiferente aos vencidos; o grande amor próprio dos brasileiros impedia-os de levar para o tombadilho de um navio inglês o quadro de infortúnio, de miséria, de desalento, que tanto impressionou o próprio comandante português. Era um pudor natural e de não querer dar a verdadeiros estrangeiros tal espetáculo, assim como era um nobre orgulho não querer dever a proteção à força, mas só a um direito que a civilização reconhece aos mais fracos: o direito de asilo. (...) Em seus dois pequenos navios destituídos de todas as comodidades e recursos, faltando tudo, em más condições de navegabilidade, desfalcado de oficialidade e de tripulação, o comandante português recolheu toda a gente que se quis refugiar. Ele havia prometido asilo a umas 70 pessoas, vieram mais de quinhentas. (...) Só portugueses teriam, talvez, dado essa hospitalidade aos revoltosos. 40

Dessa forma, a argumentação deste livro tinha alvos bem demarcados: em primeiro plano os florianistas jacobinos, críticos do acerto diplomático de Prudente de Morais com Portugal e detratores da colonização. Não por acaso, contrapontuando as opiniões

enquanto a verdade toda não era conhecida, vociferavam contra mim os meus infatigáveis inimigos, achando pronto eco em uma parte da população que detesta os estrangeiros. (...) Neste concerto de entusiásticas saudações, amigáveis e conciliadoras, não podia faltar a voz eloquente, respeitada e prestigiosa de V.Exa., apresentando com superior e imparcial critério, à luz de irrefutáveis documentos, a análise serena e inteligente da dificuldade que um momento toldou as relações diplomáticas entre os dois países.” Ibid. p. IX-X. 39 SÁ, Eduardo Alves de. Portugal e Brasil – Conflicto diplomático.O processo no Conselho de Guerra da Marinha do Cap. de fragata Augusto de Castilho. Biblioteca da Revista Portuguesa de Direito. Lisboa:M. Gomes Editor, 1894. 40 Ibidem, p. 110- 115. Ao que tudo indica, a questão parece ter sido mais complexa: por um lado, o comandante inglês não aceitaria a solicitação; por outro, teriam acontecido negociações de apoio mútuo entre Saldanha e Castilho desde que o almirante brasileiro se decidira pela adesão à Revolta, em setembro de 1893. Cf. CASTILHO, Augusto . Ob. Cit.p.8-12.

17 daqueles interlocutores, o escritor não só suspenderia definitivamente suas ressalvas à obra lusa no Brasil, como passaria destacar sua adequação às circunstâncias específicas do país. Mas, visava também monarquistas que, desenganados quanto ao retorno da monarquia, passaram a apoiar o governo civil combativo do jacobinismo, dentre eles um antigo amigo da família Nabuco, o almirante Arthur Silveira da Mota, barão de Jaceguai.

3. Isolamento político e valorização da tradição monárquica portuguesa O reatamento das relações diplomáticas com Portugal, a concessão da anistia aos rebeldes federalistas e monarquistas e o consequente afrouxamento da repressão a este ultimo grupo, assinalaram um novo momento no percurso dos monarquistas brasileiros, também demarcado pelos falecimentos de Floriano e de Saldanha da Gama ocorridos em junho de 1895. Admitindo a força do republicanismo no país, eles passaram a planejar um partido monárquico que agisse legalmente no jogo partidário reestabelecido, e uma aguerrida propaganda na imprensa visando conquistar a opinião pública.41 Mas o consenso terminava aí, uma vez que divergiam em vários outros pontos, dentre eles a definição dos temas e linguagem desta propaganda e dos métodos de atuação do partido. Foram desentendimentos deste teor que excluíram Nabuco do Manifesto monarquista preparado no Rio de Janeiro, o levaram a recusar uma participação no jornal Liberdade, dirigido por Carlos de Laet, seu desafeto, e a desistir da chefia da redação do Jornal do Commércio de S. Paulo. Além de exigir autonomia no gerenciamento das publicações, não aceitava o princípio do “quanto pior melhor” e a previsão de uma queda próxima da república, convicções que o fizeram resistir à proposta de uma agitação enérgica fundada em ataques pessoais aos adversários. Respondendo ao convite do amigo Eduardo Prado para assumir a chefia da redação do periódico a ser publicado em S. Paulo, explicou que não poderia fazer um jornal de agitação ou panfletário pois compreendia que o papel da imprensa naquele momento deveria ser “o de um médico em um hospício de alienados”.42 Nesse sentido, concebia uma campanha de longo prazo visando a preparação da sociedade para um pacto político liberal efetivo. Na origem de tantos cuidados havia 41 42

JANOTTI, M. de Lourdes. Ob.cit. NABUCO, J. Cartas a Amigos, v. 1, p. 264-265.

18 várias razões. As mais evidentes eram a incerteza sobre a superação do militarismo no Brasil e na América Latina e a convicção da inviabilidade de uma república estável de cunho parlamentarista como a que acreditava existir no Chile. Elas se baseavam em ocorrências políticas recentes: na vitória arrasadora de Floriano na guerra civil brasileira, sobretudo pelo apoio estrangeiro (em destaque o norte-americano) e das lideranças dos Partidos Republicanos dos estados, dentre elas o próprio Prudente de Morais, que se uniram na sustentação da república recém-instaurada. Também, nos equívocos e fragilidade da resistência monarquista e, no inverso, a constatação do vigor e organização dos grupos jacobinos florianistas.43 Na impossibilidade de um retorno ao regime monárquico, Nabuco imaginava, de imediato, a tutela das repúblicas latino-americanas por um conselho supra-nacional integrado por intelectuais de vários países. Seria uma “Liga Liberal do continente” composta por uma elite europeizada à qual seria atribuído um Poder Moderador, capaz de resolver “revoluções mal curadas” e contornar guerras civis exercendo “a função arbitral entre os partidos intransigentes e ali implantar a consciência do direito, da Liberdade e da Lei que neles não existem”, ideia externada no livro Balmaceda publicado em 189544. Mas, havia ainda outros motivos pessoais mais significativos para sugerir tal proposta: a forma como o escritor sempre concebeu a sociedade brasileira – segundo seus olhos, incapaz, caracterizada pela inércia, barbárie e despreparo para a vida republicana exemplar –, e suas dúvidas quanto à possibilidade de (re)conduzí-la ao regime monárquico, em seu entender, apesar de tudo, ainda o mais adequado às circunstâncias nacionais45.

Assim, tinha poucas expectativas quanto à sintonia e

envolvimento da população, tanto com os objetivos florianistas (os partidários de um “despotismo bestial ou de um republicanismo imbecil do paraguaio”), quanto com as expectativas dos monarquistas. Indiferente, desinteressada e despreparada para as

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Embora mais confortável do que nos anos anteriores, a situação dos oposicionistas ainda era delicada. Ora explosivo, ora encoberto, o “terror jacobino” de cunho florianista (representado no governo pelo vice presidente Manoel Vitorino) continuava atuante e, principalmente, ameaçador em relação aos restauradores e mesmo ao presidente civil, conforme testemunham os ataques a jornais monarquistas (que resultaram na morte do coronel Gentil de Castro, proprietário de uma dessas folhas em janeiro de 1897); e uma tentativa frustrada de assassinato do presidente ocorrida em novembro daquele ano, que vitimou o ministro da guerra Marechal Machado Bittencourt. QUEIROZ, Suely R. Os radicais da República, p.72 e ss. 44 NABUCO, J. Balmaceda, p.222. 45 Esta convicção foi registrada em vários textos do escritor, e explicitamente sistematizada nos opúsculos: NABUCO, Joaquim. Por que continuo a ser monarquista. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1890; e O dever dos monarquistas. Ob. cit.

19 questões políticas, “escravos que ele gostaria de resgatar”, tornava-se presa fácil das revoluções irrefletidas e inconsequentes – traços comuns aos países da América Latina.46 Além disso, também não tinha confiança nos políticos republicanos e monarquistas para o exercício da “democracia”, certeza advinda do estudo que realizava sobre a biografia de seu pai, sobre a história política do Império e da recente guerra civil chilena. Ao comparar a formação do Brasil com a daquele país, recorreu a imagens fortes - “científicas” e literárias – para acentuar o distanciamento político e social entre eles e apontar os motivos essenciais da queda da monarquia e dos empecilhos à sua restauração: tratava-se de um quadro de imaturidade da aristocracia nacional e de seu povo, decorrentes dos condicionamentos físicos e geográficos, da vivência da escravidão e da proteção proporcionada por um Imperador “sábio e bom”. Assim, a nação se constituíra em ambiente inóspito e degradante pela miscigenação de raças bárbaras; e fora “criada na paz e na moleza da escravidão doméstica e da liberdade monárquica”, protegida “por uma ausência total de perigo em mais de cincoenta anos”. Insegura por ter sido poupada dos conflitos, sua aristocracia fora tomada de “pânico” diante da força do golpe militar de 15 de novembro, pois não tinha recursos, sequer emocionais, para fazer frente ao militarismo (uma “hipertrofia do poder”) repetindo, dessa forma, a experiência antiga quando “nos últimos tempos do Império a velha sociedade romana abandonava os seus palácios dourados das cidades e as vilas de mármore, (...) para aparecer como escravos suplicantes diante dos chefes bárbaros”. Conclui: “Desde que o despotismo se manifestasse entre nós, eu sabia que ele levaria tudo de rojo, pela completa falta de resistência”. 47 Tais opiniões, bastante singulares frente a seus correligionários, acabaram por isolá-lo politicamente pois, embora não partilhasse das expectativas da maioria monarquista quanto à restauração do Império, também discordava do engajamento na causa republicana. Esquivando-se de qualquer compromisso imediato, explicitava: era “dever dos monarquistas” resistir ao assédio adversário porque “tudo que for destruir, diminuir a acumulação material e moral deixada pela monarquia é favorecer a República”. O desencanto com as repúblicas americanas aconselhava o escritor a “morrer politicamente com a monarquia”, ou seja, nem aderir ao novo regime, como muitos haviam feito, nem lutar contra a república, a exemplo dos monarquistas de S. 46 47

NABUCO, J. Diários. p. 93 Ibid. p. 216

20 Paulo e do Rio de Janeiro48. Noutra direção, naquele momento, Nabuco preferia exercer uma atuação intelectual: estudar e divulgar as realizações monárquicas e compreender as razões de sua queda; conhecer os regimes

implantados na América e suas

probabilidades de evolução; ainda, integrar seletos clubes de intelectuais – o IHGB e a Academia Brasileira de Letras. Não por acaso, foi interpelado por um ex-correligionário em carta intitulada O Dever do Momento, publicada no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Nela, o almirante Jaceguai contestou os argumentos de Nabuco contra o novo regime e o incitou a contribuir na resolução das necessidades imediatas da nação, em particular o fortalecimento do governo civil. A resposta do escritor originou longa polêmica, sistematizada no opúsculo O dever dos monarquistas (1895) 49 e em vários textos de 1896, posteriormente reunidos no livro autobiográfico Minha Formação. 50 Jaceguai atacou a certeza de Nabuco sobre a adequação da monarquia ao “novo mundo”, e os pretendidos vínculos entre ela e o sentimentos de igualdade e liberdade, lembrando que se tratava de um regime reiterativo de privilégios, da hierarquia social e fundado na escravidão. Também contestou a alegada dedicação do imperador Pedro II a seus súditos: O novo mundo é torrão impróprio para a monarquia (...) A prova de que o meio americano era contrário à monarquia é que ela degenerou nele (...), [pois] o sentimento dominante na raça mestiça americana é o da igualdade. Como conciliar com esse sentimento a afeição à monarquia que é o privilégio por excelência?‟(...)A verdade é que a semente da monarquia trazida ao Brasil nas asas do ciclone da Revolução Francesa (...) germinou numa planta que só pode medrar artificialmente enquanto teve para vivificá-la o estrume da escravidão (..). D. Pedro II, no último período de seu reinado, foi objeto de assombro de todo mundo civilizado pela despreocupação com que empreendeu as suas longas viagens, unicamente para satisfação de seus gostos de turista.51

Rebatendo, Nabuco destacou o quanto a realeza se esforçara para não discriminar e “por diminuir o sentimento de superioridade de raça”, o que poderia ser reconhecido exemplarmente no testemunho do “velho Rebouças”, deputado mestiço com intensa atuação no Parlamento do Império nas décadas de 1830-1840. Por outro lado, lembrou: era justamente nos Estados Unidos, uma “espécie” aperfeiçoada de república, que se poderia presenciar a mais intensa segregação aos negros, atitude que a Europa

48

JANOTTI , M. de Lourdes. Ob.cit. p.95-103 NABUCO, J.oaquim. O dever dos monarquistas. Carta ao almirante Jaceguay. R. de Janeiro, Typ. Leuzinger, 1895, p. 7-16. Reuniu cartas publicadas no Jornal do Commércio entre 3/1 e 17/3 de 1895. 50 NABUCO, Joaquim. Diários, v. 2, p 112-113; foram publicados entre 17/4 e 5/7 1896. NABUCO, Joaquim. Minha Formação. Rio de Janeiro/Paris, H. Garnier, 1900. 51 Ibid. p. 40. 49

21 monárquica não havia praticado. Nesse sentido, “nunca o sentimento de desigualdade das cores foi tão forte com em uma república – os Estados Unidos”.52 Quanto à idéia de que “o meio americano era contrário à monarquia” tanto que “ela degenerou nele”, considerou: não havíamos recebido uma corte modelar como a de Versalhes, mas sim a corte de Lisboa, conhecida por seu “ estilo e etiqueta tênues”. Se o meio por ela aqui encontrado fosse naturalmente republicano, como afirmava Jaceguai,

a corte portuguesa “não podia degenerar”, mas “lucrar”. No entanto, a

monarquia “transplantada” foi menos “degenerada” do que as repúblicas que se aqui se estabeleceram, porque “ em um meio onde não existe pressão social”, no caso a maior parte do território sul americano, “é impossível que a forma de governo conserve perfeitos os seus característicos, seja ela a monarquia, seja muito menos a república”. Nesse sentido, destacou “a função benéfica da monarquia no Brasil” arrolando integradamente as realizações dos períodos colonial e imperial, para concluir: “pretender que uma instituição que teve esse papel em nossa história não tinha raízes no país é pretender que o criador não tem raízes na criatura; não são as instituições que não têm raízes; é o solo que não tem consistência e cujas areias o menor vento revolve”: Tenho por certo que a função benéfica da monarquia no Brasil foi esta: descobrimento, conquista, povoamento, cristianização, edificação, plantio, organização, defesa do litoral, expulsão do estrangeiro, unificação e conservação do todo territorial; administração, estabilidade, ordem perfeita no interior; Independência, unidade política, sistema parlamentar, sentimento de liberdade, altivez do caráter brasileiro, inviolabilidade da imprensa, força das oposições, direito das minorias, tirocínio, aptidão, moralidade administrativa, vocação política desinteressada, crédito, reputação, prestígio no exterior, brandura e suavidade nos costumes políticos, igualdade civil das raças, extinção da prática da escravidão, glória militar, renúncia do direito de conquista, arbitramento internacional, cultura literária e científica a mais forte da América Latina; e, por último, - como o ideal realizado da democracia antiga, o governo do melhor homem – um reinado Pericleiano de meio século. (...) 53

4. Conciliação com a República: homenagem à obra da monarquia, dos seus estadistas e da dinastia dos Braganças Esta imagem da tradição monárquica e da herança portuguesa se completaria plenamente em Um Estadista do Império, obra em que Nabuco homenageou os feitos e a memória dos estadistas imperiais (especialmente de seu pai) e dos Braganças para demonstrar a superioridade das orientações monárquicas sobre as republicanas e sua adequação às condições históricas e sociais do país, à feitura e progresso da nação e ao exercício do autêntico liberalismo.

52 53

NABUCO, J. O dever dos monarquistas, p. 7-9. Ibid. p. 10-11, 14-16.

22 Nesse aspecto, contrapôs as vicissitudes da independência e, principalmente, do interregno regencial (1831-1840)– momento de uma primeira experiência republicana – com a tranqüilidade propiciada pelos cinqüenta anos do segundo reinado. Para ele, a república de inspiração “girondina ou jacobina”, sinônimo de anarquia, despotismo e risco à integridade do país constituía o avesso da obra monárquica e já tivera, sem sucesso, sua chance histórica pois, a revolução de 7 de abril de 1831, ardentemente preconizada, se transfigurara em tirania e despotismo.54 Também assinalou o contraste entre a segurança do primeiro reinado – onde se gozou da “proteção de um monarca domador de ambições” – e a situação de risco implantada por aquela revolução, um grande engano para toda a sociedade, e que resultou na abdicação do imperador Pedro I . Para tanto, comparou o comportamento irrefletido e despótico dos revolucionários55 – “ignorantes do sistema constitucional” – com a “magnanimidade” do Imperador no respeito à Constituição e no contorno da guerra civil. Nessa perspectiva, a nação aparece imatura para o exercício da política, por exemplo, no equívoco de confundir “a nossa situação à da França” e de identificar Pedro I - um soberano constitucional - com um déspota, sucedâneo nacional de Carlos X. Observou que se a situação tivesse sido conduzida por verdadeiros estadistas – homens de saber, experiência e bom senso, cujo exemplo maior era o do próprio monarca –, e não tivesse imperado a impaciência dos exaltados, poder-se-ia ter evitado a forma tumultuada do desfecho a que se chegou, até porque “a revolução do 7 de abril conseguiu apenas impor subitamente a Pedro I uma solução que já estava aceita por ele”. Fora um “desquite amigável”, uma medida serena e racionalmente cogitada que lhe assegurou o trono português, seu dever paternal e “seu papel histórico de herói de dois mundos”.56 O desejo de imitar, hábil para germinar no coração do homem a virtude, porém capaz de engendrar o vício, fez crer que as nossas circunstâncias eram as mesmas da França. Desta sorte iludiram os jacobinos muita gente que devera ser grata à monarquia (..) Abdicou D. Pedro I, e abdicou sustentando a Constituição que dera, não quis demitir os ministros que nomeara, porque bem conheceu que dessa 54

“No começo das revoluções liberais, esposá-las é o impulso natural da mocidade; não assim abafar mais tarde as suas indignações e nas suas afinidades todas para se subjugar inteiramente ao partido vencedor. O entusiasmo do primeiro momento é uma expansão, e nada custa; custa, porém, muito, a solidariedade dos dias subseqüentes, quando a revolução, às primeiras dificuldades que só ela opõe a si mesma, arroga-se o direito de salvar o seu princípio político arrasando a sociedade, si tanto for preciso.” Ibid., p. 15. 55 “A fatalidade das revoluções é que sem os exaltados não é possível faze-las e com eles é impossível governar. Cada revolução subentende uma luta posterior e aliança de um dos aliados, quase sempre os exaltados, com os vencidos. A irritação dos Exaltados trará a agitação federalista extrema, o perigo separatista, que durante a Regência ameaça o país de norte a sul, a anarquização das províncias”. Ibid., p. 21. 56 Ibid., p. 18-19.

23 maneira despia-se de um direito que lhe pertencia e concorria para a degradação da monarquia. Generosa e voluntariamente, destituindo-se do trono de seus maiores, ele não quis trair a sua magnanimidade para 57 conservar à custa de sangue o trono que restava(...) mostrou-se avesso à guerra civil

Contudo, acontecimentos do ano de 1898, momento em que Nabuco finalizava Um Estadista do Império, o levariam a repensar a decisão de “isolamento ” assim como suas relações com os republicanos. Invertendo o quadro político vigente desde o início da década, confirmou-se a superação do militarismo, o controle das facções jacobinas e a instauração de um clima de “ordem” no país, situação mais afinada com as expectativas do escritor58.

Além disso, nas eleições presidenciais daquele ano foi

consensualmente escolhido o nome de Campos Sales, político moderado da aristocracia cafeeira paulista, sensível aos valores e à política inglesa, tão caros a Nabuco. Ainda em 1898, quando organizava seu governo, Campos Sales convidou o historiador para uma missão diplomática - a negociação de pendências na questão de limites com a Guiana inglesa. E, pouco mais tarde, em 1900, para assumir interinamente a legação brasileira em Londres, em virtude do falecimento repentino do representante do Brasil, Arthur de Souza Correia, grande amigo de Nabuco59. De acordo com registros de seu Diário, a oferta daquele posto vinha atender necessidades e expectativas pessoais e políticas do escritor. Resolvia a questão do sustento da família já numerosa (esposa e 4 filhos); permitia a realização do velho sonho de residir na Europa e oferecer condições ideais para a educação dos filhos; e especialmente, abria as portas da diplomacia justamente no lugar predileto – a legação brasileira em Londres - uma antiga expectativa que lhe possibilitava exercitar, como um “monarquista platônico”, uma modalidade superior da Política: distanciada da disputa corriqueira dos partidos, mas “a serviço da nação”, regalia permitida pela república aristocrática gerenciada pelos cafeicultores paulistas. A aceitação da oferta republicana ofendeu profundamente os correligionários que estavam no Brasil, transformando o “isolamento” do escritor, agora diplomata, em rompimento. Uma possível e discreta justificativa para aquela “conciliação” com a república apareceria no último capítulo de Minha Formação .- obra autobiográfica

57

Ibid, p. 15-16. Na esteira da repressão aos idealizadores e executores da tentativa de assassinato de Prudente de Morais, o governo conseguiu coibir a atuação do vice Manoel Vitorino assim como de seus seguidores: foram dominadas e punidas as manifestações do Clube Militar, dos grupos jacobinos e, trocadas as chefias militares, logrou-se o debelamento da revolta dos sertanejos de Canudos, no sertão da Bahia. QUEIROZ, Suely R. Ob.cit. p.72 ) 59 NABUCO,J. Diários. p.128-193) 58

24 publicada em 1900, - que reuniu e reorganizou, dentre outros artigos, Cartas escritas para a imprensa em 1897, ainda no contexto da polêmica com Jaceguai. Nelas Nabuco argumentara exaustivamente a opção pela monarquia; historiara o abolicionismo, negara o vínculo entre a abolição e a queda do regime. A contribuição dos Braganças para a formação do país seria sistematizada de forma exemplar nesse livro quando o autor comentou uma questão espinhosa: o comprometimento do l3 de maio (ou da abolição da escravidão), na queda da dinastia e da monarquia. Menciona o despreparo moral da sociedade e as culpas do clero para concluir que a abolição aconteceu no Brasil da única forma possível - sob a “influência do espírito revolucionário” - embora, empenhados apenas na supressão do cativeiro, os abolicionistas não tivessem se preocupado com os “acidentes políticos e até revoluções“. Contudo, dos participantes desse evento, apenas a raça negra teria desistido de sua liberdade para poupar o trono, dada a sua “generosidade natural” longamente testemunhada na escravidão e sua incapacidade em perceber os rumos necessários da história. Nem os abolicionistas e monarquistas nem a própria princesa recuariam diante dessa missão histórica e causa da humanidade. Dessa forma, os Braganças haviam cumprido seu brilhante papel de construir a “identidade“ da nação: a primeira geração fizera a independência, a segunda consolidara o Império e a terceira concretizara a abolição da escravatura. Assim, os Braganças cumpriram sua missão histórica remindo a implantação do cativeiro de africanos, pecado de origem da colonização: A impressão quando se olha da altura da posteridade, da história, é que o papel nacional da dinastia tinha sido belo demais para durar ininterruptamente...Não há tão extensos espaços de felicidade nas coisas humanas; o surto prolongando-se traria a queda desastrosa. Essa dinastia só teve tres nomes. O fundador fêz a independência... seu filho funda a unidade nacional...Por último, sua filha renuncia virtualmente o trono para apressar a libertação dos últimos escravos...Cada reinado, contando a última regência da Princesa como um embrião de reinado, é uma nova coroação nacional; o primeiro, a do Estado; o segundo, a da nação; o terceiro, a do povo.. A tendência do meu espírito é colocar-se no ponto de vista definitivo...Deste o l5 de Novembro não é uma queda, é uma assunção...Decerto o exílio do Imperador foi triste, mas também foi o que deu à sua figura a majestade que hoje a reveste. 60

*** “Na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva humana (...)A nossa imaginação não pode deixar de ser européia, isto é, de ser 60

Nabuco, J. Minha Formação. Introdução de Gilberto Freyre. 5ª ed. Brasília, Ed. da UNB, 1963.p. 2l22l3.

25 humana ;(...) O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação européia”. (NABUCO, 1963:39-40)

Num balanço final das avaliações do escritor para o percurso e problemas do país, percebe-se que, embora com nuances, a figura da escravidão61 se perpetuou negativamente na argumentação porque era traço essencial na composição de uma “paisagem” física e social “americana” para a sociedade brasileira, ou seja, desprovida do “fundo histórico” remetido à civilização, à cultura, enfim, à “humanidade”. Mas, a ambivalência em relação a Portugal se circunscreveu a este tema – a escravidão e a sociedade “desordenada” que ela engendrou – e, principalmente, ao perfil a ele atribuído em circunstâncias políticas particularizadas, mais especialmente ao período da campanha abolicionista (1883-188). E não poderia ser de outro modo porque, segundo suas concepções, Portugal representa o imprescindível vínculo do país com a Europa, com a civilização, com a história, com uma cultura comum na qual se projeta a obra de Camões, por exemplo – imagens reiteradas nas conferências proferidas sobre a obra do poeta em universidades norte-americanas em 1908 e 1909 - condição primeira para a constituição, no futuro, de um novo país e de cultura original, a serem construídos tanto pela elite de intelectuais e homens empreendedores remanescente do passado, na qual ele se inclui, quanto pela incorporação dos imigrantes portugueses, trabalhadores livres e operosos, no presente. Nesse sentido, Nabuco partilha com Oliveira Martins o significado atribuído a Portugal e suas colônias

Fontes e Bibliografia 61

O tema assume figurações diversas ao longo do tempo na argumentação do escritor. Em 1870, no texto A Escravidão reconheceu diferentes exemplos da condição escrava – um expressivamente negativo (o romano), e outros mais aceitáveis (o grego e o germânico) - para defender gradativa finalização do cativeiro por intermédio de uma lei que concedesse a liberdade ao ventre escravo, o direito ao pecúlio e ao resgate forçado. Já em 1883, no texto de O Abolicionismo, reiterou experiências da escravidão antiga (a romana especialmente) e da servidão do Antigo Regime para projetar valorações exclusivamente negativas da relação servil. No entanto, em Minha Formação, retomaria figurações nuançadas da condição escrava, uma, a do “jugo cruel” observada “nas novas e ricas fazendas do sul onde o escravo, desconhecido do proprietário, era somente um instrumento de colheita”. E outra, a do “jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do escravo”, assistida em antigas propriedades do norte “pobres explorações industriais, onde os escravos existiam apenas para a conservação do estado de senhor, e administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade por uma aristocracia de maneiras”. Cf. MARSON, Izabel A. Política e história: figurações da escravidão e da revolução nas obras de Joaquim Nabuco. Revista do IHGB. (no prelo)

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