Português como Língua Estrangeira: Abordagens sobre ensino, aprendizagem e pesquisa. In: Estruturalismo, Pós-Estruturalismos & Outras Discussões.

Share Embed


Descrição do Produto

100

100

95

95

A Semana Acadêmica de Letras da

Atilio Butturi Junior

75

25

5

0

possui mestrado e doutorado em Linguística pela Universidade e pós-doutorado em Linguística pelo IEL/UNICAMP, sob supervisão do professor Kanavillil Rajagopalan (2015). Atualmente, é professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina e atua, como docente permanente, em dois programas de Pós-Graduação: Linguística (UFSC) e Interdisciplinar em Ciências Humanas (UFFS). É editor-chefe da revista Fórum Linguístico e desenvolve pesquisas na áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Teorias de Gênero e Sexualidade, pautadas nas discussões pós-estruturalistas.

Este livro é resultado das discussões da X Semana Acadêmica de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina, que aconteceu entre 6 e 10 de junho de 2016, em Florianópolis. O tema da décima edição, Cem Anos

75

UFSC é um evento anual, produzido por docentes e discentes da área de

do Curso de Linguística Geral: estruturalismos e pós-estruturalismo,

Letras. Em sua décima edição, de

engendrou uma série de reflexões, materializadas na forma de

2016, cuja temática foi Cem Anos do

Conferências, Palestras, Simpósios Temáticos, Minicursos, Oficinas, Curso de Linguística Geral: estrutura-

Banners e Atividades Culturais.

25

5

0

lismos e pós-estruturalismos, contou

Donesca Cristina Puntel Xhafaj é Mestre e Doutora em Letras/Inglês e Literatura Correspondente na Universidade Federal de Santa Catarina, universidade onde atua como prtofessora Adjunta. Pertence ao Grupo de Pesquisa AQUILES: Aquisição de Inglês como Língua Estrangeira: Questões teóricas, pedagógicas e de metodologia de pesquisa e, no momento, seus interesses principais de pesquisa são consciência metalinguística, aprendizagem colaborativa, produção oral em segunda língua, a abordagem de ensino baseada em tarefas, e diferenças individuais de aprendizes de uma segunda língua.

O escrito traduz parte dos esforços empreendidos na Semana. Trata-se nos trinta e quatro Simpósios Temáticos que tiveram espaço no evento e que observaram a multiplicidade de objetos, pontos de vista e abordagens do vasto campo de estudo das Letras. Além dos textos resultantes das

Noêmia Guimarães Soares

dores de trabalhos, ministrantes e ouvintes. Este livro contempla, na

conferências e às palestras, cuja relação com a temática da Semana é

forma de coletânea, parte das

mais evidente.

instigantes reflexões apresentadas durante o evento e materializadas na

A publicação pretende contribuir com a produção autoral de discentes de graduação e de pós-graduação, bem como asseverar o amplo contato entre discentes e docentes levado a termo na Semana Acadêmica de Letras, o que se reflete em textos voltados ao ensino, à pesquisa e à extensão. É, ainda, parte do projeto aprovado pelo Edital PAEP/CAPES

é Mestre e Doutora em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); é professora adjunta da UFSC junto ao Departamento de Língua e Literatura Estrangeira (DLLE). Suas pesquisas estão nas áreas de Ensino de Francês (LE) e na interface entre Psicolinguística e Tradução e, mais recentemente, entre Tradução e Ensino de LE e Tradução e Crítica Genética.

duzentas pessoas, entre apresenta-

Comunicações, o volume traz, ainda, capítulos referentes às

Leandra Cristina de Oliveira

é professora do Departamento de Língua e Literatura Estrangeira (DLLE/UFSC) e do Programa de Pós-graduação em Linguística (PPGLing/UFSC), com mestrado e doutorado nesse Programa. Atua no ensino de Espanhol (LE) e de Linguística, e em pesquisas de Espanhol e Português como LE/L2.

com a participação de mais de mil e

da compilação de trabalhos apresentados na forma de Comunicação Oral

forma de capítulos. O esforço é o de efetivar a participação de discentes e docentes dos variados campos das

2016, cujos recursos permitem, mais uma vez, o fomento a iniciativas

Letras na produção de conhecimentos

sempre salutares de produção e de circulação de conhecimentos e

e saberes, a partir de um debate

saberes oriundos da Universidade. acadêmico sempre profícuo.

Rosângela Pedralli

100

95

75

25

é Mestre e Doutora em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, docente colaboradora no Programa de Pós-graduação em Linguística da UFSC, docente permanente no PROFLETRAS/UFSC e coordenadora adjunta de Linguagem do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Tem interesse por ensino e aprendizagem de língua materna em diferentes níveis de escolarização e cultura escrita em processos de escolarização, filiando-se à base histórico-cultural.

100

95

ISBN: 978-85-444-1204-6 75

25

5

5

0

0

-

Atilio Butturi Junior Donesca Cristina Puntel Xhafaj Leandra Cristina de Oliveira Noêmia Soares Guimarães Rosângela Pedralli (Organizadores)

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

EDITORA CRV Curitiba - Brasil 2016

Copyright © da Editora CRV Ltda. Editor-chefe: Railson Moura Diagramação e Capa: Editora CRV Capa: Pedro Paulo Venzon Revisão: Os Autores Conselho Editorial: Profª. Drª. Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR) Prof. Dr. Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Prof. Dr. Carlos Alberto Vilar Estêvâo- (Universidade do Minho, UMINHO, Portugal) Prof. Dr. Carlos Federico Dominguez Avila (UNIEURO - DF) Profª. Drª. Carmen Tereza Velanga (UNIR) Prof. Dr. Celso Conti (UFSCar) Prof. Dr. Cesar Gerónimo Tello- (Universidad Nacional de Três de Febrero - Argentina) Profª. Drª. Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) Prof. Dr. Élsio José Corá (Universidade Federal da Fronteira Sul, UFFS) Profª. Drª. Gloria Fariñas León (Universidade de La Havana – Cuba) Prof. Dr. Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Prof. Dr. Guillermo Arias Beatón (Universidade de La Havana – Cuba)

Prof. Dr. João Adalberto Campato Junior (FAP - SP) Prof. Dr. Jailson Alves dos Santos (UFRJ) Prof. Dr. Leonel Severo Rocha (UNISINOS) Profª. Drª. Lourdes Helena da Silva (UFV) Profª. Drª. Josania Portela (UFPI) Profª. Drª. Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNICAMP) Profª. Drª. Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA) Prof. Dr. Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL - MG) Prof. Dr. Rodrigo Pratte-Santos (UFES) Profª. Drª. Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar) Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus (IFRO) Profª. Drª. Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA) Profª. Drª. Sydione Santos (UEPG PR) Prof. Dr. Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA) Profª. Drª. Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Esta obra foi aprovada pelo conselho editoral. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Catalogação na fonte E79 Estruturalismos, pós-estruturalismos e outras discussões: a X semana acadêmica de letras da UFSC. / Atilio Butturi Junior, Donesca Cristina Puntel Xhafaj, Leandra Cristina de Oliveira, Noêmia Soares Guimaraes, Rosangela Pedralli (organizadores). – Curitiba: CRV, 2016. 272 p. Bibliografia ISBN 978-85-444-1204-6 1. Educação 2. Letras 3. Linguística - literatura I. Butturi Junior, Atilio, org. II. Xhafaj, Donesca C. P., org. III. Oliveira, Leandra C. de, org. IV. Guimaraes, Noêmia Soares, org. V. Pedralli, Rosangela, org. VI. Título VII. Série. CDD 806.3

Índice para catálogo sistemático 1. Educação 370 2016 Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004 Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV Tel.: (41) 3039-6418 www.editoracrv.com.br E-mail: [email protected]

APRESENTAÇÃO As coletâneas que vem a lume têm várias funções. Podem ser um esforço de problematização de um campo do saber ou do conhecimento, uma reunião de textos que tematizem o mesmo objeto, um apanhado de discussões cujos pressupostos teóricos sejam compartilhados. No caso deste trabalho, que ora é lançado, a empreitada tem duas funções, complementares em sua complexidade. A primeira função – porque, afinal, lemos por motivos vários – é a de marcar um êxito, qual seja, o da Semana Acadêmica de Letras da Universidade de Santa Catarina, que em 2016 chegou à sua décima edição. O evento, criado em 2006 no esforço de socializar e fomentar o ensino, a pesquisa e a extensão nos cursos de Letras da UFSC, ganhou, com o passar dos anos e devido à experiência acumulada por docentes e discentes, cada vez mais apoio da comunidade acadêmica e se solidificou como espaço efetivo de diálogo e apropriação de saberes e conhecimentos – a partir das mais variadas abordagens da linguística, da literatura e da tradução. Além da ventura, outra função que esta coletânea assume é a de oferecer um panorama – sempre limitado, mas ainda profícuo – das discussões da X Semana Acadêmica de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina, que aconteceu entre 6 e 10 de junho de 2016, em Florianópolis. O tema dessa simbólica X SdeL (nosso modo carinhoso de nos referirmos ao evento) é também uma espécie de marco: o centenário da primeira edição das aulas de Ferdinand de Saussure, o iterado e reiterado Curso de Linguística Geral. Assim, sob a égide da temática Cem Anos do Curso de Linguística Geral: estruturalismos e pós-estruturalismos, a X SdeL foi um espaço para uma série de reflexões, materializadas na forma de Conferências, Palestras, Simpósios Temáticos, Minicursos, Oficinas, Banners e Atividades Culturais. Este escrito traduz parte dos esforços empreendidos na Semana, numa compilação dividida em três partes, quais sejam: na primeira parte, reunimos textos referentes às conferências e às palestras (dos professores Kanavillil Rajagopalan e Valdir do Nascimento Flores), cuja relação com a temática da Semana é mais evidente – o estruturalismo, o pós-estruturalismo e seus avatares; na segunda parte, trazemos os textos resultantes das apresentações nos diversos Simpósios Temáticos do evento, que observaram a multiplicidade de objetos, pontos de vista e abordagens do vasto campo de estudo das Letras; além desse textos, na terceira parte, damos espaço a textos que, de uma perspectiva mais pessoal, observam a edição de 2016 e os dez anos de história da SdeL. A publicação pretende, assim, contribuir com a produção autoral de discentes de graduação e de pós-graduação, bem como asseverar o amplo contato entre discentes e docentes levado a termo na Semana Acadêmica de Letras, o que se reflete em textos voltados ao ensino, à pesquisa e à extensão. É, ainda, parte do projeto aprovado pelo Edital PAEP/CAPES 2016, cujos recursos permitem, mais uma vez, o fomento a iniciativas sempre salutares de produção e de circulação de conhecimentos e saberes oriundos da Universidade.

Por fim, depois de apresentado o livro, cabe um agradecimento – ou vários deles. Primeiro, aos mais de mil participantes da Semana Acadêmica de 2016, seja pelo olhar atento, seja pela excelência dos debates que proporcionaram. Depois – e não menos importante – à Comissão Organizadora da X SdeL, composta de discentes e docentes, que produziu um evento efetivamente coletivo e democrático, dando voz à multiplicidade de sujeitos e de posições teóricas (e pessoais) que, justamente nos dias de hoje, são um sinal de resistência e de luta pela liberdade intelectual na universidade. Atilio Butturi Junior Donesca Cristina Puntel Xhafaj Leandra Cristina de Oliveira Noêmia Soares Guimarães Rosângela Pedralli (Organizadores)

SUMÁRIO PRIMEIRA PARTE OS SUSSURROS DE SAUSSURE.................................................................. 15 Kanavillil Rajagopalan

SAUSSURE É MESMO ESTRUTURALISTA? ATUALIDADES DO PENSAMENTO DE FERDINAND DE SAUSSURE.......................................... 21 Valdir do Nascimento Flores

SEGUNDA PARTE A DISCURSIVIZAÇÃO DE PROPOSTAS DE RESPOSTA EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA: um estudo dos manuais do professor....................................................................................... 31 Rodrigo Acosta Pereira Luana de Araujo Huff Amanda Maria de Oliveira

A IDEIA DE ORIGEM EM LENTA BIOGRAFÍA DE SERGIO CHEJFEC.......... 39 Mariana Martinez Stasi

A LITERATURA NA ESCOLA........................................................................... 49 Celdon Fritzen Isabela Roque Loureiro Leandro De Bona Dias Gladir da Silva Cabral

A POESIA, A CRÍTICA E A FICÇÃO DE W. G. SEBALD.................................. 57 Maria Aparecida Barbosa

AS MUITAS IDEIAS PARA UMA MEDEIA: releituras e reescrituras do mito... 63 Zilma Gesser Nunes Sarah Fernandes Thaís Fernandes

ASPECTOS DA PRODUÇÃO DE LEGENDAS FUNCIONAIS......................... 71 Markus Johannes Weininger Sandro Rogério Silva de Carvalho

ENTRE O NORMAL E O PATOLÓGICO: contribuições da neurolinguística enunciativo-discursiva............................................................ 79 Ana Paula Santana Karoline Pimentel dos Santos Daniel De Martino Ucedo Larissa Picinato Mazuchelli Aline Olin Goulart Darde

ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL E NA ALEMANHA...................................................................................................... 87 Rosvitha Friesen Blume Eliane Kraemer Pinheiro Jéssica Carmem Toebe Marcos Oliveira Júnior Jhenyfer Vicente

FORMAÇÃO E ATUAÇÃO DE PROFESSORES NA ÁREA DA LINGUAGEM PARA A/NA EDUCAÇÃO BÁSICA ...................................... 95 Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti Anderson Jair Goulart Amanda Machado Chraim Carla Christina de Barros Rosa Denise Souza Gonçalves Eloara Tomazoni Gabriel Eigenmann de Carvalho Hellen Melo Pereira Josa Coelho da Silva Irigoite Liliane Vanilde de Souza Natássia D’Agostin Alano Suziane da Silva Mossmann Tathiana Peter Tavares

GRAMÁTICA EM FOCO................................................................................. 105 Núbia Ferreira Rech Sandra Quarezemin Damaris Silveira Giuseppe Varaschin Rafaela Miliorini

INTERMEDIAÇÕES ENTRE LITERATURA E TEATRO................................ 113 Cynthia Valente Anderson da Costa José Carlos Mariano do Carmo José Ricardo Goulart Luiz Gustavo Bieberbach Engroff

INTRA-AÇÕES HUMANAS E NÃO HUMANAS NA LITERATURA: representações pós-antropocênicas.............................................................. 121 Cláudia de Lima Costa Ana Luiza Bazzo da Rosa Fernanda Korovsky Moura Gisele Krama Melina Pereira Savi

LETRAMENTO, DIVERSIDADE CULTURAL E INCLUSÃO.......................... 129 Ana Paula Santana Elisabeth da Silva Eliassen Lais Oliva Donida Letícia Alves de Souza Sandra Pottmeier

LITERATURA CHAMISSO: Yoko Tawada e Saša Stanišić............................ 137 Werner Heidermann Carla Miranda Tsunematsu Julia Stella Mastrocola

LUGARES DA MEMÓRIA............................................................................... 147 Risolete Maria Hellmann Tânia Regina Oliveira Ramos Bianca Rosa Mattia Gisele Krama Marina Siqueira Drey Thalita da Silva Coelho

O ENSINO DA LÍNGUA ESPANHOLA: o aluno como sujeito ativo e construtor de seu conhecimento................................................................. 155 Juliana Cristina Faggion Bergmann Mirella Nunes Giracca Bianca dos Santos Bezerra Gabriela Marçal Nunes Lílian Reis dos Santos Ana Paula da Costa Silva

O PENSAMENTO LINGUÍSTICO DE DANTE ALIGHIERI E O DE VULGARI ELOQUENTIA...................................................................... 163 Silvana de Gaspari

OS DESAFIOS DA FORMAÇÃO HUMANA INTEGRAL EM TEMPOS DE APAGAMENTO DOS CONTEÚDOS ESCOLARES: ma breve reflexão........ 171 Rosângela Pedralli Josa Coelho Irigoite Amanda Machado Chraim Cíntia Franz Laiana Abdala Martins Maíra de Sousa Emerick de Maria

PESQUISAS LINGUÍSTICAS COM BASE NA AMOSTRA FÍLMICA RIO: olhares para a dublagem em português e em três variedades do espanhol................................................................. 179 Leandra Cristina de Oliveira Alison Felipe Gesser Beatrice Távora Carine Santos Albano Diare Brandelero Hernán Camilo Urón Santiago

(PLURI) SEXUALIDADES E DISCURSO: olhares foucaultianos da genealogia às estéticas de si.............................................. 189 Atilio Butturi Junior Sandro Braga Denise Ayres d’Avila Lisiane Panasink Saldanha Arthur Vinicius Anorozo Nunes

POLÍTICAS LINGUÍSTICAS E LÍNGUA PORTUGUESA: por uma abordagem crítica............................................................................. 197 Cristine Gorski Severo Alexandre Cohn da Silveira Charlott Eloize Heloísa Tramontim de Oliveira Cristian Edevaldo Goulart Ana Cláudia Vicente Demétrio

PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA: abordagens sobre ensino, aprendizagem e pesquisa........................................................ 207 André Luiz Ramalho Aguiar Gisele Tyba Mayrink Redondo Orgado

REPENSAR A PALAVRA................................................................................ 215 Andrea Santurbano

SUJEITOS EM TRÂNSITO, SABERES DESLOCADOS, IDENTIDADES EM MOVIMENTO.................................................................. 223 Jair Zandoná Simone Pereira Schmidt Ana Carolina A. P. Cavagnoli Charles Vitor Berndt Fabrício Henrique Meneghelli Cassilhas Fernanda Friedrich Gabrielle Vívian Bittelbrun Jéssica Uhlig

TESTANDO OS LIMITES DAS DIVISÕES: análises e questionamentos dos gêneros literários......................................................... 233 Alinne B. P. Fernandes Maria Rita Drumond Viana Frandor Marc Machado Jair Paulo Siqueira Luiz Filipi Schveitzer

TRADUÇÃO LITERÁRIA COMENTADA E/OU ANOTADA: teoria, história e prática.................................................................................. 241 Andréa Cesco Gilles Jean Abes Clarissa Prado Marini Esteban Francisco Campanela Miñoz Francisca Ysabelle M. R. Silveira Jaqueline Sinderski Bigaton Marina Bento Veshagem

VIVÊNCIAS DE DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA................................. 249 Isabel de Oliveira e Silva Monguilhott Maria Izabel de Bortoli Hentz Ana Carolina de Souza Ostetto Érica Marciano de Oliveira Zibetti Graciela Massironi Carus Maíra Sevegnani Morgana Ferreira Samara Hinkel Corrêa Thalisson Machado Tiago Carturani Vanessa Custódio Inácio

TERCEIRA PARTE CONHECENDO A SEMANA DE LETRAS 2016 DA UFSC............................ 259 Allana Kretzer

O BIOBALANÇO DE UMA TRAJETÓRIA ACADÊMICA................................ 265 Silvana de Gaspari

SOBRE OS ORGANIZADORES.................................................................... 271

PRIMEIRA PARTE

OS SUSSURROS DE SAUSSURE1 Kanavillil Rajagopalan2

1 Para o começo da conversa Cem anos já se passaram desde o passamento de Ferdinand de Saussure, tido por aclamação como o pai da Linguística Moderna e de diversas disciplinas afins. O momento foi lembrado com muita saudade no mundo inteiro e este sentimento foi amplamente evidenciado por uma verdadeira enxurrada de estudos com novas interpretações e novos insights sobre seus ensinamentos (ver por ex., JOSEPH, 2012; GASPAROV, 2012; STAWARSKA, 2015, entre tantos outros, só para mencionar alguns dos títulos mais recentes). Todos eles se destacam como novas e cada vez mais ousadas tentativas inéditas de compreender, enfim, o que é que o mestre genebrino de fato quis dizer aos seus discípulos e futuras gerações de admiradores e seguidores. Essa pergunta insiste em levantar sua cabeça o tempo todo. De certa forma, segue o típico caminho de todos os grandes pensadores que inauguram novas formas de pensar sobre velhos temas, promovem mudanças significativas de paradigmas. No caso de Saussure, a situação se torna ainda mais complicada porque, sua principal obra, aquela que deu origem a todo o vendaval, não passa de um compêndio póstumo, escrito a várias mãos por um grupo de discípulos. “Não fosse uma publicação póstuma”, Eisuke Komatsu e Roy Harris (1993, p. 8), “Saussure seria apenas um linguista entre vários outros, lembrado tão somente por Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes.” Com certeza, eles têm toda razão. Mas o que estes interpretes têm a dizer logo após a passagem que acabamos de citar é, embora, novamente incontestável, algo que ascende uma luz vermelha, ou, no mínimo, amarela, em nossa caminhada nesta estrada pavimentada de platitudes. Eis as suas palavras: “Mas suas [as de Saussure] foram eventualmente repassadas à posteridade só através de um complexo processo de reescrita e modificação por outras pessoas” (KOMATSU; HARRIS, 1993, p. 8).

1 2

Este texto foi escrito com base nas anotações que foram utilizadas durante a conferência de abertura da X Semana de Letras da Universidade Federal da Santa Catarina, proferida sob o mesmo título, no dia 6 de junho de 2016. Sou grato ao CNPq pela concessão de bolsa de produtividade nº 302981/2014-4 (nível: 1 A). Professor Titular aposentado na área de Semântica e Pragmática das Línguas Naturais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Tem diploma em Linguística Aplicada na Universidade de Edimburgo, Escócia. É doutor em Linguística Aplicada (PUC-SP) e Pós-Doutor em Filosofia da Linguagem (Universidade da Califórnia, Berkeley, EUA). Já publicou 5 livros e mais de 500 textos acadêmicos. Atualmente, é pesquisador do CNPq – A1.

16

2 A Herança de Saussure Platitudes não faltam também no imaginário popular (e até no pensamento acadêmico) no que diz respeito à herança de Saussure. Segundo um vasto consenso que se formou em torno do mito saussureano, o mestre teria inaugurado a era de Estruturalismo que varreu a academia, esmagando de vez o predomínio de “historicismo” que teria reinado até então. Nas palavras de Campos (1996, p. 49). A imagem que ainda hoje perdura para a generalidade dos estudantes que passaram por Saussure é a do precursor do estruturalismo europeu, daquele que, nas palavras de Françoise Gadet em Saussure, une science de Ia langue “arrancou a reflexão sobre a linguagem às evidências empíricas” (1987:7) dominantes na investigação histórica de então. Com Saussure o objecto de análise seria definido como um objecto abstracto, construído pela teoria, um sistema governado por princípios exteriores ao indivíduo e à realidade física’.

Entretanto, convém ressaltar que essa visão, embora amplamente aceita, nunca foi absolutamente consensual entre os estudiosos, alguns dos quais, a exemplo de própria Campos, levantaram suspeitas em relação à opinião reinante. O próprio título do seu trabalho revela de maneira inequívoca sua desconfiança em relação a essa questão ao levantar a possibilidade do mestre genebrino não ter se oposto, segundo ela sustenta, à vertente enunciativa do pensamento vigente com tanta certeza e firmeza como se crê.

3 O contexto enunciativo de Saussure Diante de tantas dúvidas que ainda pairam sobre como Saussure se posicionou a respeito de algumas questões cruciais em relação à língua(gem), uma saída que devemos, de início, descartar é procurar encontrar as respostas no texto de Curso de Linguística Geral (SAUSSURE, 2006). Isso porque o texto daquela obra foi sabidamente fruto de intervenções decisivas efetuadas, logo após sua morte, pelos organizadores, no afã de dar-lhe um arredondamento a que talvez as reflexões do mestre ainda não se prestassem, posto que seu pensamento estava na fase de franca evolução e sua imaginação fértil era palco de um turbilhão de ideias, muitas das quais, quem diria, em conflito entre si. Daí a necessidade de recorrer ao contexto do pensamento vigente à época, tendo como pano de fundo as principais correntes filosóficas que incendiavam o imaginário dos intelectuais. Da mesma maneira, as principais inovações tecnológicas também incandesceram o imaginário em esferas que, à primeira vista, nada teriam a ver com a inovação em si. É o caso, por exemplo, da cinematografia, inventada pelos irmãos Lumière. Em seu livro Talk and Social Theory, Erickson (2004) chega a sugerir que talvez houvesse alguma relação não trivial entre o princípio por trás da cinematografia (a chamada ‘persistência de visão’) e a ideia genial – a sugestão de Saussure – que o

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

17

estudo científico da linguagem fosse viável somente por intermédio da adoção da ficção de sincronia de algo em constante evolução (diacronia). Ou seja, para um público que acabou de ser exposta a incrível proeza de criar a sensação de movimento a partir de uma série de quadrinhos estáticos, era relativamente fácil aceitar a ideia da diacronia como sendo nada mais que uma série de estados estáticos (sincrônicos) enfileirados rigorosamente e passados em rápida sucessão.

4 O quadro de referências vigente à época Já há vasto consenso entre os estudiosos que o estruturalismo que começara erguer sua cabeça encontrava-se em um inevitável embate como o espírito da fenomenologia que reinou no mundo intelectual por um bom período. Há quem aposta que o próprio estruturalismo veio em resposta à fenomenologia. Na área de estudos da linguagem, notadamente no campo da linguística, o estruturalismo elegeu como seu principal alvo a linguística histórica (principalmente), na forma em que ela foi sintetizada na consagrada tradição de procurar as raízes das línguas românicas, bem como todas as suas peculiaridades morfossintáticas – na estrutura de sua ancestral, o latim. A fenomenologia, tal qual foi defendida por Husserl, contou com o apoio entusiasmado de notáveis figuras como Sartre, que enxergou nos ensinamentos de Husserl fortes argumentos em prol de sua própria versão de existencialismo. Não é difícil perceber por que as duas correntes, a Fenomenologia e o Estruturalismo, estavam destinadas a se opor frontalmente. Enquanto aquela apostava na possibilidade de desvendar o logos através de sucessivos esforços de ‘pôr entre parênteses’ tudo o que o ofuscavam, este simplesmente não deixava nenhum lugar para que houvesse um tal de “logos” que servisse como centro nevrálgico de tudo.

5 Saussure entre a fenomenologia e o estruturalismo As primeiras leituras de Saussure que forçaram a interpretação segundo a qual o mestre genebrino teria terminantemente rechaçado a fenomenologia em prol da estruturalismo estão cada vez mais sendo postas em dúvida ultimamente. O livro Saussure’s Philosophy of Language as Phenomenology, da autoria de Beata Stawarska (2015), é, até onde vai meu conhecimento sobre o tema, o mais contundente esforço neste sentido. Nele, a autora sustenta que, ao contrário do que prega o senso comum, bem como a opinion reçue que se formou entre os estudiosos, o viés fenomenológico está presente no pensamento de Saussure. Em suas próprias palavras, O projeto saussureano dentro da linguística geral pode ser comparado à fenomenologia de Hegel na medida em que ambos abraçam a noção da ‘ciência total’, uma ciência não restrita somente ao estudo dos objetos, mas incluindo o sujeito e busca de conhecimento também. A distinção saussureana de dois pontos de vista básicos sobre a linguagem: o sincrônico e o diacrônico atingem duas facetas, distintas porém inter-relacionadas, do ‘fenômeno total’ (STAWARSKA, 2015, p. 155).

18

Contudo, tal afirmação genérica se revela tão somente um aperitivo. Ao longo do livro, Stawarska vai nos mostrar que o ímpeto fenomenológico jamais deixou de acompanhar a forma de pensar do mestre genebrino. Ela alega que a ‘historia editorial’ do Curso evidencia como “[...]influência pessoal, prestígio, e, às vezes, intimidação e silenciamento dos dissidentes atuam como fator preponderante na condução das ideias” (STAWARSKA, 2015, p. 194). Logo após as palavras citadas, a autora alega: Que Bally e Sechehaye foram capazes de publicar o livro em nome de Saussure demonstra uma proeza institucional bastante elaborada: conseguir acesso exclusivo às anotações feitas pelos alunos das palestras sobre linguística geral (que nenhum dos dois assistiram); minar os esforços de outros estudiosos e dos próprios alunos de publicar as anotações em sua completude, desqualificando-as como testemunhas não confiáveis dos ensinamentos de Saussure; usurpar o papel de discípulos diretos de Saussure e redigir um livro como se fosse de próprio punho do mestre (ghostwrite); reivindicar o direito de ler as ideias e as intenções de Saussure após sua morte (como se estivesse em comunicação direta com seu fantasma (STAWARSKA, 2015, p. 194-195).

6 Saussure, o fenomenólogo As leituras recentes de Saussure nos levam a concluir que sempre esteve presente no pensamento do mestre genebrino um certo apego à fenomenologia. Isso se evidencia por sua recusa em abrir mão da importância do sujeito-falante como fonte do significado, ao contrário que prega a cartilha do estruturalismo. Sempre houve e sempre haverá vozes que posicionaram(rão) a favor de uma re-leitura de Saussure como intuito de resgatar um pensador profundamente incomodado com a perspectiva de apagamento derradeiro deste sujeito. Não é de se estranhar o fato de os pensadores da corrente que se convencionou chamar de ‘pós-estruturalismo’ terem insistentemente chamado atenção para justamente o incômodo mal-resolvido na visão derradeiramente estruturalista oriunda de ensinamentos de Saussure. A ideia de que a famigerada “clôture” de um sistema, condição sine qua non para que os seus elementos componentes funcionem puramente por força de negatividade (isto é, sem nenhum traço de positividade – tal qual preconizou Saussure), só seria possível se, em contrapartida, seu centro fosse um verdadeiro “buraco negro” que faz desaparecer tudo o que ali colocado acena para o nó ao qual acabamos de nos referir. O centro, na famosa e enigmática frase de Derrida, “não é o centro.” (DERRIDA, 1971, p. 230). Jamais pode sê-lo, sob ameaça de privar o sistema da dinamicidade que lhe deve ser creditada como inerente e inalienável.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

19

7 Saussure, a história e o lugar do sujeito Acredita-se que Saussure se revoltou contra a tradição de pensar linguístico que privilegiava a evolução das línguas a partir de sua suposta ancestral. No lugar, ele teria pleiteado a importância, em nome de ciência, de privilegiar um estado de stasis, um artifício imaginário – sincronia no lugar de diacronia. Mas a história insiste em perseguir suas investidas sobre a natureza da língua(gem) e se manifesta na forma do sujeito-falante, que faz questão de marcar sua presença.

8 À guisa de conclusão O simples fato de o texto póstumo de Saussure despertar tantas leituras e tantas interpretações diversas e divergentes é testemunho claro das reflexões de Saussure acerca do fenômeno da linguagem. Ao mesmo tempo, não resta dúvida de que as primeiras leituras – e por que não dizer, a leitura que ganhou o status de “leitura oficial” – foram um tanto apressadas e, ao que parece, interesseiras. Passado todo este século, o momento atual nos permite o distanciamento suficiente para que empenhemo-nos por uma nova leitura, desamarrados das fortes influências das idées recues que se formaram acerca do aclamado legado de Saussure.

20

REFERÊNCIAS CAMPOS, Maria Henriqueta Costa. De Saussure às teorias enunciativas: ruptura ou continuidade?. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas 9.  Identidade, tradição e memória (Actas do 1º Colóquio Interdisciplinar da FCSH, Outubro 1995). Lisboa, Colibri. p. 49-59, 1996. DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In:______. A escritura e a diferença.  São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 229-249. ERICKSON, Frederick. Talk and social theory. Cambridge: Polity, 2004. GASPAROV, Boris. Beyond pure reason: Ferdinand de Saussure’s philosophy of language and its early romantic antecedents. New York: Columbia University Press. JOSEPH, John. Saussure. Oxford University Press, 2012. KOMATSU, Eisuke; HARRIS, Roy (Org.). In: FOREWORD. Saussure’s Thrird Course of Lectures on General Linguistics (1910-1911). Oxford: Pergamon Press, 1993. p. 7-12. STAWARSKA, Beata. Saussure’s philosophy of language as phenomenology. Undoing the doctrine of the Course in General Linguistics. Oxford: Oxford University Press, 2015. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

SAUSSURE É MESMO ESTRUTURALISTA? ATUALIDADES DO PENSAMENTO DE FERDINAND DE SAUSSURE1 Valdir do Nascimento Flores2

A linguística trabalha incessantemente com conceitos forjados pelos gramáticos, e sem saber se eles correspondem realmente a fatores constitutivos do sistema linguístico. Mas como sabê-lo? E se forem fantasmas, que realidade opor-lhes? (Ferdinand de Saussure)

As recentes publicações de3 e sobre4 Ferdinand de Saussure parecem instaurar um cenário propício à recolocação da pergunta que serve de título ao presente texto. Por quê? Porque há certo consenso em atribuir ao linguista suíço o lugar de fundador não apenas do que se convencionou chamar de a linguística estrutural, mas do estruturalismo em geral5. Tais rótulos ainda encontram termos de sustentação hoje em dia? Em outras palavras: a grande massa de manuscritos ditos “de Saussure”, tornada pública nos últimos anos, a verticalidade da pesquisa em torno da filologia saussuriana e a consequente suspensão das certezas atribuídas ao Curso de linguística geral são suficientes para recolocar a questão acerca do estruturalismo em Saussure? Ou isso não é suficiente? Ou mesmo essa discussão não seria mais necessária, hoje em dia? Ora, se, no contexto francês, berço do estruturalismo, esse assunto já tem sido sobejamente abordado6, no Brasil, facilmente, percebe-se que muito há ainda para ser debatido, e isso, ao menos, por um motivo: a bibliografia linguística brasileira, em especial a ligada à divulgação massiva, inclusive em âmbito acadêmico, ainda persiste na atribuição da pecha estruturalista a Saussure. 1 2 3 4 5 6

Este texto foi escrito com base nas anotações que foram utilizadas durante a ­conferência de abertura da X Semana de Letras da Universidade Federal da Santa Catarina, proferida sob o mesmo título, no dia 6 de junho de 2016. Sou grato ao CNPq pela concessão de bolsa de produtividade nº 302981/2014-4 (nível: 1 A). Professor Titular em Língua Portuguesa do Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisador (PQ) do CNPq. Cf. Saussure (2004). Para uma análise do material manuscrito de Saussure, ver: Bouquet (2000). Para uma análise histórica do movimento estruturalista, ver: Dosse (1993, 1994). Para uma análise do estruturalismo em geral, ver: Pavel (1990). Para uma análise do pensamento de Saussure tal como ele comparece em autores como Andrè Martinet, Louis Hjelmslev, Émile Benveniste e Roman Jakobson, ver: Toutain (2012). Para uma análise do material manuscrito de Saussure, ver: Bouquet (2000).

22

Os argumentos são muitos e de diferentes naturezas. O da tradição – não adianta querer mudar a história, afinal, Saussure foi lido como um estruturalista; a quem beneficiaria mudar isso? – e o da inércia – o Curso e a leitura que se fez dele é o que fundou a linguística; isso não pode ser mudado – são apenas os argumentos mais recorrentes. Sobre isso, cabe se deter um pouco mais. O estruturalismo é um movimento intelectual que conheceu inúmeras configurações7. Em todas, parece que o nome de Ferdinand de Saussure figura como o criador, se não da utilização da palavra estrutura,8 ao menos da formulação da ideia que viria a sustentá-la durante parte do século XX. No entanto, com relação especificamente a Saussure – sem estender minhas observações, portanto, ao conjunto do movimento intelectual e de seus integrantes célebres (Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes, Algirdeas Greimas, entre outros) – chama a atenção o fato de que há uma insistente recolocação da pergunta em torno de seu “pioneirismo” estruturalista. Uma prova, mesmo que incipiente, do que estou dizendo é que este meu texto sintetiza parte da Conferência de encerramento que proferi junto à Universidade Federal de Santa Catarina por ocasião da X Semana Acadêmica de Letras, em que o tema foi alvo de discussão. Ora, que efeito espera-se das possíveis respostas à indagação acerca do papel de Saussure na fundação do estruturalismo? Em que uma resposta positiva ou uma resposta negativa sobre a possibilidade de Saussure ser, ou não, um estruturalista mudaria a história do pensamento em torno da linguagem? Para entender o que implica optar, ou não, por um enquadramento estruturalista de Saussure, é preciso retomar, ao menos amplamente, os termos pelos quais se constrói o argumento favorável à manutenção do mestre sob a égide estrutural. E ele é basicamente o seguinte: Saussure é estruturalista porque sua visão sistêmica de língua serviu de modelo teórico-metodológico a várias ciências humanas e sociais. A propalada “ciência piloto” do século XX deve sua glória à ideia, iminentemente de Saussure, de que, sendo a língua um sistema de signos, caberia à linguística estudar as relações que integram esse sistema, logo, a sua estrutura. Os leitores de Saussure – muito especialmente da obra póstuma de autoria atribuída, o Curso de linguística geral – viram na noção de sistema o germe da de estrutura. Contra essa interpretação, nada se pode fazer. Sim, essa é uma possibilidade, legítima, de entendimento da história das ideias no século XX. No entanto, ainda cabe recolocar a questão em outros termos: o que autorizaria voltar a Saussure hoje de maneira a perceber em seu pensamento algo ainda não obviamente visto?

7 8

Cf. Dosse (1993). Conforme Dosse (1993, p. 15), “[...] o estruturalismo nasce nos psicólogos para opor-se à psicologia funcional no começo do século, mas o verdadeiro ponto de partida do método em sua acepção moderna, na escala de todas as ciências humanas, provém da evolução da linguística. Se Saussure emprega apenas três vezes o termo ‘estrutura’ no Curso de linguística geral, é sobretudo na Escola de Praga (Troubetzkoy e Jakobson) que vai difundir o uso dos termos estrutura e estruturalismo”. Tudo indica, então, que Saussure não fez uso corrente da palavra estrutura, e o Curso parece ser fiel a isso. Seu termo era sistema.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

23

Creio que a resposta a tal questão é estritamente dependente de uma avaliação detida do recente êxito que tem conhecido a pesquisa dedicada a estudar os manuscritos de Ferdinand de Saussure. A publicação, em 2000 na França e em 2004 no Brasil, dos Escritos de linguística geral é responsável por uma verdadeira revolução nos estudos saussurianos. O livro, como se sabe, reúne, além de antigos documentos já conhecidos há mais de três décadas9, um conjunto de documentos encontrados em 1996 que versam sobre a natureza “dupla” da linguagem. Apesar das lacunas que têm – decorrentes da natureza inacabada de um manuscrito –, esses novos documentos permitem revistar Saussure de um ponto de vista que, talvez, possa recolocar a questão em torno do estruturalismo. Eu diria que, no contexto atual, os Escritos de linguística geral colocam em xeque qualquer visão apriorística a respeito de Saussure. Como tudo o que disse até agora decorre de uma interpretação que toma por base os Escritos de linguística geral, uma conclusão errônea poderia se esboçar: o Saussure dos Escritos de linguística geral realmente introduz na ordem do dia questões estranhas à epistemologia estrutural, no entanto, o Saussure do Curso de linguística geral é, sem dúvida, estruturalista, e é dele que decorre o movimento que dominou o século XX nas ciências humanas e sociais. Essa conclusão sofisma em dois aspectos: de um lado, supõe uma dicotomia estanque entre um Saussure do Curso e um Saussure dos Escritos, o que não sobreviveria a uma leitura apurada das duas fontes, já que há, em ambas, evidentes recorrências conceituais; de outro lado, credita ao Curso uma responsabilidade, ao mesmo tempo em que exime os leitores que instituíram a leitura estruturalista a partir do Curso. Sobre esse segundo aspecto, eu gostaria de me deter um pouco mais. De início, eu gostaria de apresentar meu posicionamento aqui: nem mesmo no Curso de linguística geral podemos ancorar uma perspectiva estruturalista de abordagem da língua. Tomemos como exemplo as inúmeras análises linguísticas presentes no Curso. Em qual delas se poderia enraizar, solidamente, uma tomada estruturalista da língua? Em nenhuma! Ora, Saussure – e o Curso deixa isto muito evidente – elabora, durante seus cursos na Universidade de Genebra, a descrição/explicação de fenômenos linguísticos que têm uma circunscrição fenomenológica stricto sensu e um alcance epistemológico notável, o que delineia uma espécie de teoria programática do sentido da língua em sua totalidade. É isso que afirma, em minha opinião, Claudine Normand, em um belo texto publicado em 1990, Le CLG: une thèorie de la signification?10. Segundo ela, a teoria do valor desenvolvida por Saussure e presente no Curso é o programa de uma teoria do sentido, de uma espécie de semântica linguística, o único horizonte possível para a teoria da linguagem, condicionada que é pela visão de língua instituída por Saussure.

9 10

Cf. Godel (1969), Saussure (1989) e Saussure (1990). Ver: Normand (1990).

24

Saussure, ao estudar determinados mecanismos linguísticos – analogia, aglutinação, etimologia popular, entre outros –, lidou com o mecanismo vivo da língua, com as potencialidades da língua a serviço da criação. Nesses mecanismos vemos operar de maneira não dicotômica as grandes noções saussurianas: a língua e a fala, a sincronia e a diacronia, o associativo e o sintagmático, entre outras. O mecanismo da língua – não por acaso um dos capítulos mais complexos do Curso de linguística geral – atesta que Saussure não estabeleceu apenas uma linguística de fenômenos isolados, mas sua linguística supõe que todos os fenômenos são relação entre relações.11 Isso está muito distante do propalado estruturalismo saussuriano. Então, vale indagar: se Saussure não é estruturalista, por que, considerando-se meus sumários argumentos, há uma interpretação tão difundida que afirma o contrário? A pergunta possivelmente não será respondida em termos de sim ou não. Talvez tenhamos que lapidar uma resposta que oscila entre as ideias efetivamente atribuíveis a Saussure e as ideias derivadas de Saussure. O estruturalismo poderia ser lido nas linhas do Curso de linguística geral? Sem dúvida que sim! Isso, porém, é diferente de imputar a Saussure o rótulo estruturalista. Na verdade, se o leitor bem compreendeu o que estou propondo, acredito que Saussure pode continuar a figurar entre os fundadores do pensamento estruturalista sem ter seu pensamento reduzido ao estruturalismo. Para tanto, basta que se reconheça que a ideia estruturalista deriva de uma leitura, e a responsabilidade da leitura é dos leitores! Saussure foi a fonte de inspiração para boa parte do que se produziu nas ciências da linguagem no século XX: a glossemática de Hjelmslev, a fonologia de Praga, a semiótica de Greimas, a linguística de Benveniste e a semântica de Ducrot, entre inúmeros outros exemplos. O alcance de seu pensamento desconhece fronteiras: a psicanálise de Jacques Lacan, a antropologia de Lévi-Strauss, a semiologia de Roland Barthes etc. E o que fez Saussure? Apenas apresentou o primado do sistema, do conjunto sobre a unidade, enfim, de uma teoria, chamada teoria do valor, cuja formulação é encontrada já no Curso de linguística geral. O conceito de valor, no Curso, está articulado à problemática da delimitação das unidades concretas imediatamente reconhecíveis na língua, as entidades linguísticas: “[...] a língua tem o caráter de um sistema baseado completamente na oposição de suas unidades concretas [...], no entanto, sua delimitação é um problema tão delicado que nos perguntamos se elas, as unidades, existem de fato”. (SAUSSURE, 1975, p. 124) E, mais adiante: “[...] as entidades concretas da língua não se apresentam por si mesma à nossa observação”(SAUSSURE, 1975, p. 127). A unidade, para Saussure, por sua vez, nada mais é que a união do significante com o significado e se estabelece graças à noção de valor. Registra o Curso: “[...] a noção de valor recobre as de unidade, de entidade concreta e de realidade” (SAUSSURE, 1975, p. 128).

11

Essa afirmação se encontra na página 275 da edição crítica de Rudolf Engler, nas anotações de F. Bouchardy e de E. Constantin.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

25

O conceito de valor sustenta todos os conceitos da teoria saussuriana e seu alcance metodológico ultrapassa o campo do linguístico. Eis a justificativa da glória estrutural atribuível a Saussure. O valor se estabelece no ponto em que o eixo sintagmático e o eixo associativo se articulam. Diz Saussure: “[...] os valores [...] são sempre construídos por uma coisa dessemelhante, suscetível de ser trocada por outra cujo valor resta determinar e por coisas semelhantes que se podem comparar com aquela cujo valor está em causa”. E segue: “[...] esses dois fatores são necessários para a existência de um valor” (SAUSSURE, 1975, p. 134). Ao que parece, Saussure tratou das relações associativas e das relações sintagmáticas em interseção, e isso é de um alcance obviamente amplo! O valor envolve o significante e o significado; constitui a significação, mas é maior que ela. O Curso registra: “O valor, tomado em seu aspecto conceitual, constitui, sem dúvida, um elemento da significação, e é dificílimo saber como esta se distingue dele” (SAUSSURE, 1975, p. 133). Esse conceito envolve a distintividade e a diferença. O Curso exemplifica essa noção com o jogo de xadrez: “Tomemos um cavalo; [...] fora de sua casa e das outras condições do jogo, não representa nada para o jogador e não se torna elemento real e concreto senão quando revestido de seu valor”. E segue: “[...] uma figura desprovida de qualquer parecença com ele (o cavalo) será declarada idêntica, contanto que se lhe atribua o mesmo valor” (SAUSSURE, 1975, p. 128). E mais adiante: “A diferença é o que faz a característica, como faz o valor e a unidade” (SAUSSURE, 1975, p. 141). Ao discutir a noção de valor, Saussure inaugura uma reflexão sobre pensamento e som. Segundo o Saussure, “[...] o papel da língua é [...] servir de intermediária entre o pensamento e o som, em condições tais que uma união conduza necessariamente a delimitações recíprocas de unidades” (SAUSSURE, 1975, p. 131). A língua, assim, constituiria suas unidades a partir de duas massas amorfas. Bem ao gosto de Saussure, uma das metáforas registradas no Curso é a da folha de papel, em que o pensamento seria o anverso e o som seria o verso; “[...] não se pode cortar um sem cortar o outro ao mesmo tempo; assim tampouco na língua se poderia isolar o som do pensamento ou o pensamento do som” (SAUSSURE, 1975, p. 131). A discussão do conceito de valor parece constituir, enfim, uma espécie de síntese para todas as questões levantadas ao longo das reflexões registradas no Curso, isso porque a noção de valor congrega faces diferentes, como o sintagmático e o associativo, o significante e o significado, em um todo, cuja distintividade (e identidade) se estabelece através da oposição. Seria excessivo dizer que foi por isso que os pós-saussurianos leram na noção de valor o embrião da ideia de estrutura? Não há dúvidas: o estruturalismo encontrou abrigo numa análise que conjuga o princípio segundo o qual “os valores [...] são puramente diferenciais, definidos não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com os outros termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros não são” (SAUSSURE, 1975, p. 136).

26

No entanto, a dita teoria do valor presente em Saussure é muito mais do que o estruturalismo fez com ela. Émile Benveniste foi um dos primeiros a reconhecer isso (cf. FLORES, 2013). Benveniste não confunde sistema com estrutura. Aliás, no conjunto de sua obra, há textos que criticam essa confusão, corrente à época. Exemplo disso é o capítulo “‘Estrutura’ em linguística”, de 1962. Nele, Benveniste reitera, de um lado, que “Saussure jamais empregou, em qualquer sentido, a palavra estrutura. Aos seus olhos a noção essencial é a de sistema” (BENVENISTE, 1988, p. 97), de outro lado, que a ideia de estrutura “encontra sua primeira expressão nas proposições redigidas em francês que três linguistas russos, R. Jakobson, S. Karcevsky, N. Trubetzkoy, enviavam em 1928 ao 1º Congresso Internacional de linguistas em Haia com vistas a estudar os sistemas de fonemas” (BENVENISTE, 1988, p. 100). Assim, a noção de estrutura somente pode ser vista como uma formulação pós-saussuriana12 e “está intimamente ligada à de ‘relação’ no interior do sistema” (BENVENISTE, 1988, p. 100). É tempo de concluir e, para tanto, talvez seja bom voltar à epígrafe deste trabalho. Nela, Saussure explicita a falta de terreno sólido sobre o qual caminha o linguista. Seu ensinamento buscou problematizar o fazer do linguista13 em todos os seus complexos aspectos. Essa preocupação do genebrino encontra-se, também, em uma nota manuscrita: “Nós estamos [...] profundamente convencidos de que qualquer um que ponha o pé no terreno da língua está, pode-se dizer, abandonado por todas as analogias do céu e da terra” (SAUSSURE, 2004, p. 189, grifos no original). Ora, não seria demasiado imputar a um pensador que tinha tantas reticências com o seu próprio fazer a fundação de um dogma? É tempo de reler Saussure, sem dúvida.

12 13

François Dosse (1993, p. 66) confirma quantitativamente: “Saussure só fizera uso do termo sistema, múltiplas vezes citado, 138 vezes nas 300 páginas do CLG”. Esse, para mim, é mais um argumento que leva a indagar: será que Saussure foi um estruturalista? Ou seria mais correto dizer que se fez uma leitura estruturalista de Saussure? A famosa carta de Saussure a Antoine Meillet, datada de 4 de janeiro de 1894, já explicitava isso: “Vejo, cada vez mais, a imensidade do trabalho que seria necessário para mostrar ao linguista o que ele faz” (SAUSSURE, 1964, p. 95) [destaque meu].

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

27

REFERÊNCIAS BENVENISTE, Émile. ‘Estrutura’ em linguística. In: ______. Problemas de linguística geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luiza Neri. Campinas, São Paulo: Pontes, 1988, p. 97-104. BOUQUET, Simon. Introdução à leitura de Saussure. Tradução de Carlos Augusto Leuba Salum e Ana Lúcia Franco. São Paulo: Cultrix, 2000. DOSSE, François. História do estruturalismo: O campo do signo, 1945/1966. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Ensaio, Editora da UNICAMP, 1994. ______. História do estruturalismo: O canto do cisne, de 1967 a nossos dias. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Ensaio, Editora da UNICAMP, 1993. FLORES, Valdir do Nascimento. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste. São Paulo: Parábola, 2013. GODEL, Robert. Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale de Ferdinand de Saussure. Genebra: Libraire Droz, 1969. NORMAND, Claudine. Le CLG: une théorie de la signification?. In: ______. La quadrature du sens. Paris: Presses Universitaires de France, 1990, p. 23-40. PAVEL, Thomas. A miragem linguística: ensaio sobre a modernização intelectual. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi, Pedro de Souza e Selene Guimarães. Campinas, SP: Pontes, 1990. SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale. Edição crítica de Rudolf Engler, Wiesbaden: Otto Harrassowitz. Tomo 1, 1989. ______. Cours de linguistique générale. Edição crítica de Rudolf Engler, Wiesbaden: Otto Harrassowitz. Tomo 2, 1990. ______. Escritos de linguística geral. Tradução de Carlos Augusto Leuba Salum e Ana Lúcia Franco São Paulo: Cultrix, 2004. ______. Curso de linguística geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1975. ______. Lettres de Ferdinand de Saussure à Antoine Meillet. In: BENVENISTE, Émile (Org.). Cahiers Ferdinad de Saussure. Vol. 21. Genève : Droz S.A, 1964, p. 92-135.

28

TOUTAIN, Anne-Gaëlle. Montrer au linguiste ce qu’il fait: une analyse épistémologique du structuralisme européen (Hjelmslev, Jakobson, Martinet, Benveniste) dans sa filiation saussurienne. Thèse Doctorat, Paris-Sorbonne, 2012.

SEGUNDA PARTE

A DISCURSIVIZAÇÃO DE PROPOSTAS DE RESPOSTA EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA: um estudo dos manuais do professor Rodrigo Acosta Pereira1 Luana de Araujo Huff2 Amanda Maria de Oliveira3

1 Introdução A reforma do Ensino Médio, anunciada ainda na década de 1990, com a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996)4, buscava a atualização da educação brasileira, que se pautava nas transformações econômicas e sociais em curso desde os anos de 1980, com a chamada “revolução tecnológica” ou “terceira revolução industrial” a partir de uma mudança geral de paradigmas (BRASIL, 2000a). Nesse novo cenário, não há mais espaço para uma formação específica, nem para um ensino tradicional de transposição de conhecimentos. O componente curricular de Língua Portuguesa, integrante da área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, a partir da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 2000b), envolvido também pelo contexto histórico da reforma mais geral da educação, buscou construir uma disciplina de língua materna mais voltada para as necessidades comunicativas dos sujeitos em formação, propondo o trabalho com a língua em uso, considerada na sua dimensão sócio-histórica e cultural. Segundo os PCN (BRASIL, 2000a, p. 18), O trabalho do professor centra-se no objetivo de desenvolvimento e sistematização da linguagem interiorizada pelo aluno, incentivando a verbalização da mesma e o domínio de outras utilizadas em diferentes esferas sociais. [...] O estudo da gramática passa a ser uma estratégia para compreensão/interpretação/produção de textos e a literatura integra-se à área de leitura.

1 2 3 4

Professor Adjunto da UFSC (DLLV); orientador da pesquisa e coordenador do simpósio temático “As práticas de linguagem na aula de Língua Portuguesa: ressignificações”. Contato: [email protected]. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC; Técnica Administrativa em Educação no IFC. Contato: [email protected]. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC (Bolsista CNPq). Contato: [email protected]. No presente trabalho, discutiremos apenas as diretrizes que constam no documento voltado para o Ensino Médio, dados os objetivos deste artigo.

32

Essas proposições estão em muito ancoradas nas reflexões de João Wanderley Geraldi sobre o ensino de língua materna. Ao serem reenunciadas pelos PCN, tais questões chegaram às escolas e à academia, gerando ressignificações e uma série de novas questões principalmente sobre o que Geraldi (2011[1984]) denominou como o tripé da sua proposta pedagógica: prática de leitura, prática de escrita e prática de análise linguística (BEZERRA; REINALDO, 2013). Considerando o exposto, o artigo em tela tem como objetivo geral verificar como as possibilidades de respostas propostas no manual do professor respondem5 aos já-ditos no que se refere às reflexões acerca do ensino de Língua Portuguesa na Educação Básica. Para tanto, analisamos, sob a perspectiva dialógica do discurso, as atividades e suas antecipações de respostas constantes do manual do professor nos livros didáticos distribuídos na rede pública de ensino pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

2 Análise linguística no contexto do ensino operacional e reflexivo Apresentamos, neste trabalho, a análise linguística ancorada na proposta de Geraldi (2011 [1984]), a qual foi posteriormente denominada por Britto (1997) como parte de uma proposta de ensino operacional e reflexivo, por meio da qual o aluno pode ampliar conhecimentos acerca do uso da língua, de modo a lhe ser facultada a possibilidade de interagir nas mais diferentes esferas6. Segundo Britto (1997), Franchi e Geraldi tomam uma concepção de língua que se centra no sujeito e na historicidade, isto é, entende que eles ressignificam a compreensão da situação de interação entre aluno e professor de forma ampla e a partir de uma perspectiva sócio-histórico-cultural. Em face disso, os lugares ocupados pelo professor e aluno deixam de ser funções pertinentes apenas ao ambiente escolar e passam a ser compreendidas como condições plenas de interlocutores. Em adição, Franchi (2006 [1991]) propõe que a historicidade da língua envolve a negociação dos sentidos a partir da interação com o outro, ou seja, que os sentidos não estão dados, mas que se constroem na discursividade e se renovam a cada enunciação, pois têm a linguagem como atividade constitutiva. Bezerra e Reinaldo (2013) retomam a discussão de Franchi (2006 [1991]) e explicam que, no trabalho dos sujeitos, sempre mediado pela linguagem, há três ações que se entrecruzam materialmente nos recursos expressivos: (i) ações com a linguagem; (ii) ações sobre a linguagem e (iii) ações da linguagem. Geraldi (2013[1991]) volta-se para a noção de trabalho linguístico, compreendido na constituição da linguagem marcada pela história. Nessa perspectiva, toma como eixos para esse trabalho as práticas de leitura, de escuta e de produção de

5 6

Para o Círculo de Bakhtin, a resposta aos discursos já-ditos é uma atitude compreensiva e ativamente responsiva, que está presente em nossos discursos direta ou indiretamente. Aqui, o ensino de gramática de caráter metalinguístico e as sistematizações não são excluídas, conforme largamente discutido. Em vez disso, são discutidas de modo significativo e construídas com a participação do aluno.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

33

textos, mediados pela prática de análise linguística7 e distingue diferentes tipos de atividades8 em níveis de reflexão linguística, isto é, as atividades metalinguísticas e epilinguísticas9, sendo que o foco incide sobre as atividades epilinguísticas, sem descurar da metalinguagem. Ainda sobre a prática de análise linguística, Geraldi (2011[1984]) oferece encaminhamentos para que as atividades sejam realizadas em sala de aula. O preparo para a prática de análise linguística deve partir da leitura e, com base na questão discutida, propõe-se a reescrita dos textos produzidos pelos alunos, pois podem, a partir de suas próprias produções, refletir sobre o agenciamento de recursos linguísticos, sobre os usos que fazem e, portanto, caminhar para o domínio da variedade linguística de prestígio, orientação com a qual concordamos, mas à qual acrescentaríamos o trabalho com textos outros, a fim de ampliar o repertório linguístico do aluno.

3 Metodologia Para proceder à análise dos dados, optamos pelo referencial teórico-metodológico da Análise Dialógica do Discurso (ADD). Além disso, cientes da amplitude das possibilidades de análise de livros didáticos, definimos os seguintes fatores de seleção: 1) livros didáticos de LP distribuídos pelo PNLD; 2) Nível de Ensino Médio; 3) triênio de distribuição 2015-2017; 4) ampla abrangência nas escolas estaduais de Santa Catarina (SC). A partir desses fatores e com base em um levantamento feito na base de dados do FNDE10, os livros didáticos selecionados foram Português: Linguagens (CEREJA; MAGALHÃES, 2013); Novas Palavras (AMARAL et al., 2013); Língua Portuguesa: linguagem e interação (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2013). Cada coleção selecionada está dividida em três volumes, que correspondem a cada uma das séries do Ensino Médio. Após o mapeamento da organização da coleção, fizemos um levantamento dos conteúdos indicados como pertencentes ao grupo de análise e reflexão sobre a língua e constatamos que o assunto que se repete no primeiro volume (1º ano do Ensino Médio) das três coleções é Introdução à semântica, com os tópicos antonímia, sinonímia e homonímia em comum. Optamos por esse recorte dada a impossibilidade de analisarmos todos os livros e/ou todos os conteúdos no presente trabalho e a necessidade de operarmos a partir de um objeto de análise comum às três coleções. Considerando as diretrizes e encaminhamentos discutidos na presente seção, apresentamos, a seguir, um estudo analítico de base discursiva das atividades presentes nos manuais do professor de Língua Portuguesa, especificamente no que tange às propostas de análise linguística. 7

8 9 10

Embora cada eixo de trabalho com a língua necessite de amplas discussões para uma compreensão acurada das implicações teórico-metodológicas dessa perspectiva, direcionamos nosso estudo para a prática de análise linguística por ser o tema do presente artigo. Para mais discussões sobre a leitura e a produção de textos mediadas pela análise linguística, conferir Geraldi (2013[1991]). Geraldi (2013[1991]) apresenta também as atividades linguísticas, que são reflexões que não demandam a interrupção do assunto que se trata para voltar-se aos recursos linguísticos agenciados. As atividades epilinguísticas alçam os recursos expressivos a assunto da discussão, sendo esta suspensa temporariamente. As atividades metalinguísticas consistem em reflexões analíticas acerca dos recursos expressivos, que permite a nomeação e categorização dos elementos linguísticos. Fonte: .

34

4 Projeções de sentido discursivizadas nas propostas de resposta: uma perspectiva dialógica11 No objetivo de desvelarmos o(s) discurso(s) que se engendra(m) nas respostas textualizadas nas atividades dos livros didáticos, compreendemos que o livro didático não é uma ferramenta neutra, pois, enquanto discurso, já está atravessado valorativo e ideologicamente por discursos outros, pelos já-ditos e pré-figurados que se entretecem no discurso do professor, que, por sua vez, refletem e refratam sua prática didático-pedagógica. Bakhtin (2014[1975], p. 86, grifos do autor) explica que [...] entre o discurso e o objeto, entre ele e a personalidade do falante interpõe-se um meio flexível, frequentemente difícil de ser penetrado de discursos de outrem, de discursos ‘alheios’ sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo tema. E é particularmente no processo da mútua interação existente com este meio específico que o discurso pode individualizar-se e elaborar-se estilisticamente.

Assim, o próprio modo como as coleções se organizam responde (semântico-axiológico-ideologicamente) aos discursos já-ditos em torno das propostas de ressignificação do ensino de Língua Portuguesa. Compartilhamos com Volochínov (2013 [1930]) a compreensão de que, nesses momentos de mudança, é comum a ressonância de vozes contraditórias sobre um mesmo objeto, o que nos parece pertinente para o objeto de discurso em análise neste trabalho – as atividades didático-pedagógicas no livro didático, o que já pode ser visto tanto na organização do livro, quanto na escolha dos textos relacionados ao objeto de discurso12 no qual ora o discurso da mudança, ora o discurso da manutenção se sobressai, como podemos observar na terceira unidade do livro Língua Portuguesa: linguagem e interação (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2013), que se intitula “Viagens”, especificamente o capítulo 7 - Relato de viagem, seções “Língua, análise e reflexão” e “Prática de linguagem”. Nem todos os textos das seções “Língua - análise e reflexão” e “Prática de linguagem” deste capítulo estão relacionados ao tema central da unidade e/ou do capítulo, prática comum no ensino tradicional do uso do texto como pretexto (GERALDI, 2011 [1984]). Na página 208, o texto utilizado para tratar sobre rede de hipônimos e de hiperônimos é uma reportagem e, portanto, não está ligado ao tema “Viagens”, nem ao gênero relatos de viagem, que será trabalhado na produção escrita, contrariando a própria proposta didática da coleção, que afirma: “Estando a análise e a reflexão linguísticas fortemente articuladas com a produção de textos, sempre que necessário, procurou-se trabalhar, do ponto de vista gramatical, aspectos como a coesão e a coerências textuais [...]” (FARACO; MOURA; MARUXO JR., 2013, p. 390). 11 12

Nesta seção, propomos-nos a apresentar as conclusões às quais chegamos a partir da análise de todo o capítulo relativo a sinonímia, antonímia e homonímia em cada uma das coleções. Devido ao limite de espaço, não podemos apresentar a análise na íntegra, de modo que utilizaremos algumas das análises realizadas à títulos de ilustração. Conforme seção de metodologia, analisamos os conteúdos sinonímia, antonímia e hipônimos.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

35

Mesmo aqueles textos que de fato tratam do tema, como na página 206, na qual há a retomada do texto 3 – Capítulo IV do livro Viagem à roda do meu quarto –, em nosso entendimento, servem de pretexto para exemplificação do conteúdo. A abordagem da “sinonímia” se distancia do que Geraldi (2011[1984]; 2013[1991]) propõe como ensino de língua de natureza operacional e reflexivo, já que o retorno ao texto serve apenas para a retirada de uma frase e sua posterior análise e não reflete acerca da mobilização de recursos linguísticos, subvertendo o que Geraldi (2013[1991]) propõe que seja a análise linguística. Essa proposição de uma organização inovadora aparece também no livro Português: Linguagens (CEREJA; MAGALHÃES, 2013), no qual, apesar de as unidades se organizarem por períodos literários e os capítulos por eixos de ensino, não apresenta no capítulo analisado textos relativos à temática proposta na unidade (Classicismo), o que novamente sugere um distanciamento da prática de análise da língua em relação às práticas de leitura e escrita. Para além da organização e escolha dos textos, de um modo geral, ao tratar do objeto de discurso aqui considerado, notamos em todas as coleções a atuação dos já-ditos que percorrem a área de ensino de língua materna e que, embora na teoria sejam, por vezes, divergentes, contraditórios, na prática do livro didático se apresentam como complementares, formando um único material pedagógico. Por exemplo, enquanto o discurso de renovação da educação sugere práticas de linguagem ancoradas no texto-enunciado e o ensino de gramática funcionando como ferramenta para melhor compreensão e produção textual, o ensino tradicional costuma apresentar a gramática como um objeto de estudo válido por si mesmo. De tal modo que, no livro Português: Linguagens (CEREJA; MAGALHÃES, 2013), podemos ver a atuação de forças centrífugas na discursivização do conceito de sinonímia (alertando para o fato de que não existem sinônimos perfeitos e que essa relação depende sempre do contexto em que é utilizado); ao mesmo tempo em que observamos a atuação de forças centrípetas na discursivização dos exercícios sobre este mesmo conceito, quando no exercício 2, da página 191, propõe: “Cite as palavras de linguagem popular que você conhece usadas com o significado de dinheiro”. Tal questão, além de permanecer no nível da palavra, não contribui para ampliação do repertório linguístico do aluno, nem reflete sobre a valoração dos diferentes usos dos sinônimos levantados pelos alunos, como, por exemplo, adequação de uso à situação de interação, as hierarquias sociais, aos usos mais ou menos prestigiados etc. Isso fica claro pela própria possibilidade de resposta oferecida pelo manual do professor, que diz que as respostas são pessoais. Apesar da flagrante contradição entre tais discursos, essas duas correntes discursivizadas no livro didático funcionam concomitantemente formando um único material. Implicam, ainda, a construção do discurso, os pré-figurados, ou seja, as antecipações das compreensões ativo-responsivas dos leitores em potencial aos quais o livro se dirige, que influenciam o discurso nas suas camadas mais profundas do pensamento e do estilo (BAKHTIN, 2014 [1975]). Assim, os autores têm que lidar com as possíveis reações-resposta impregnadas das concepções/crenças/

36

expectativas do Ministério da Educação (MEC), enquanto órgão avaliador; dos professores, que irão escolher os livros que serão utilizados na escola; dos alunos, que deveriam ser o público-alvo dessas coleções; dos pais etc. Apontamos aqui as explicações ao longo do capítulo analisado no livro Novas Palavras (AMARAL et al., 2013), que, por vezes, é tão minuciosa que não permite aos alunos pensarem e chegarem às suas próprias conclusões. Ao analisarmos esse fato por uma perspectiva dialógica, ele pode estar relacionado com a possível concepção de aluno que se projeta no discurso do livro; isto é, ao discursivizar minuciosamente cada exemplo, o livro parece presumir um auditório13 com pouco ou nenhum conhecimento sobre a temática. Entendemos que os já-ditos acerca do sujeito-aluno de escola pública como um sujeito iletrado parece reverberar/atravessar o discurso do livro didático na medida em que tolhe a compreensão responsivamente ativa do aluno na construção do conhecimento. Por outro lado, a formação dos professores na universalização do ensino (BRITTO, 1997), período no qual houve aumento da demanda e necessidade de formação rápida de professores, também pode valorar o discurso do livro didático no que se refere ao(s) silenciamento(s) discutido(s). Se os professores passam a ter uma formação superficial e rápida, os livros funcionariam como “solução” para essa lacuna. Relativamente às respostas propostas para o professor, consideramos que, em sua maioria, elas discursivizam as concepções do ensino tradicional, uma vez que preveem uma única possibilidade de resposta. Quando há o entendimento de que respostas diferentes podem ser dadas, o manual aponta como resposta pessoal, permitindo uma ampla possibilidade de respostas também sem nenhuma discussão para além do exercício proposto. A título de exemplificação, apresentamos a análise realizada de uma das atividades do livro Novas Palavras (AMARAL et al., 2013, p. 301), que consiste em uma questão de múltipla escolha e apresenta uma única possibilidade de resposta. Se analisarmos as outras afirmativas, é possível antecipar que o aluno opte por outras possibilidades. Por exemplo, a afirmativa “b” coloca o seguinte: “deletar pode intercambiar-se com bloquear sem que haja alteração de sentido”. Se o aluno considerasse a finalidade de bloquear ou deletar alguém em uma rede social como forma de romper relações no meio virtual, então ele poderia concluir que não haveria alteração de sentido neste caso. Em síntese, ainda que as atividades variem entre questões i) no nível da palavra ou da frase, ii) de texto como pretexto e iii) de reflexão epilinguísticas e metalinguísticas para a compreensão do texto (que são a minoria), as respostas se configuram como “a resposta correta”.

13

Segundo Bakhtin (2011 [1979], p. 333), “Todo enunciado tem sempre um destinatário (de índole variada, graus variados de proximidade, de concretude, de compreensibilidade etc.), cuja compreensão responsiva o autor da obra de discurso procura e antecipa [...]”.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

37

5 Considerações finais Com este estudo, percebemos que há um afastamento das propostas de análise linguística nos livros, em relação ao que retomamos no referencial teórico. Embora a prática de leitura de textos esteja presente em algumas atividades, o que percebemos é que a construção de sentidos e a reflexão sobre os recursos empregados, importantes para a ampliação do repertório linguístico, encontram pouco ou nenhum espaço, e o trabalho com o texto fica geralmente circunscrito ao trabalho com a gramática. Além disso, a leitura de textos se restringe ao que o livro traz e, consequentemente, os alunos não escrevem, nem reescrevem ou refletem sobre suas produções textuais, movimento esse que criaria condições para a prática da análise linguística, conforme discutido anteriormente. Em face disso, percebemos que há forte atuação tanto do discurso tradicional, quanto de renovação. Apesar desse embate, o professor, como mediador da construção do conhecimento, pode atuar como fortalecedor do discurso de renovação, ampliar e problematizar as discussões em sala de aula, sem ficar exclusivamente no que os manuais propõem, compreendendo-os como guias, e não como voz de autoridade incontestável. Por fim, ressaltamos que esse estudo não tem como finalidade esgotar as leituras possíveis do tema aqui discutido porque, segundo Bakhtin (2011 [1979], p. 410), Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascido no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo.

38

REFERÊNCIAS AMARAL, E.et al. Novas palavras (manual do professor). 2. ed. v. 1. São Paulo: FTD, 2013.

BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernadini. et al. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014 [1975]. ______. (Volochínov). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução do francês por Michel Lahud e Yara F. Vieira. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2009 [1929]. BEZERRA, M. A.; REINALDO, M. A. Análise linguística: afinal, a que se refere? São Paulo: Cortez, 2013. BRASIL. MEC/SEMTEC. Parâmetros curriculares nacionais: bases legais. Brasília, 2000a. ______. MEC/SEMTEC. Parâmetros curriculares nacionais: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, 2000b. ______. Senado Federal. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: nº 9.394/96. Brasília, 1996. BRITTO, L. P. L. A sombra do caos: ensino de língua x tradição gramatical. Campinas/SP: Mercado das Letras, 1997. CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Português: linguagens (manual do professor). 9. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2013. FARACO, C. E.; MOURA F. M.; MARUXO JR. J. H. Língua Portuguesa: linguagem e interação (manual do professor). 2. ed. v. 1. São Paulo: Ática, 2013a. FRANCHI, C. Mas o que é mesmo “gramática”? São Paulo: Parábola Editorial, 2006 [1991]. GERALDI, J. W. Portos de passagem. 5. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013 [1991]. ______. (Org.). O texto na sala de aula. 5. ed. São Paulo: Ática, 2011 [1984]. VOLOCHÍNOV, N. V. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013 [1930].

A IDEIA DE ORIGEM EM LENTA BIOGRAFÍA DE SERGIO CHEJFEC Mariana Martinez Stasi1

Palabras, pensamientos que son palabras; no otra cosa es lo que nos imaginamos, y sin embargo no hay nada más real que eso. (Sergio Chejfec)

1 Introdução Sergio Chejfec nasce em Buenos Aires em 1956 e entra na cena literária argentina juntamente com o grupo da revista Babel, uma revista de livros independente que publicou 22 edições entre abril de 1988 e março 19922. Atualmente, Chejfec é autor de uma ampla obra que inclui romances, contos, ensaios e poemas; e, paralelamente, atua como professor de escritura criativa na universidade de Nova York, onde reside. De toda a obra de Chejfec, este artigo concentrará sua atenção em seu primeiro romance: Lenta biografía. Cabe mencionar que no momento de sua primeira publicação, em 1990, o escritor argentino já havia emigrado para a Venezuela, onde viveu entre 1990 e 2005. Ou seja, o escritor publicou seu primeiro romance na Argentina quando ele já não residia mais lá. Esta distância geográfica, segundo o autor, foi produtiva para a sua posterior produção literária. Este texto se propõe a, por um lado, problematizar a maneira como o conceito de origem aparece e é trabalhado no citado romance e, por outro, deixar pistas que permitam evidenciar que a impossibilidade do pai do narrador de falar do seu passado funciona como condição de possibilidade de existência do relato. Ou seja, tentará rastrear certas condições (em lugar de causas) que fazem possível a emergência da escrita de Lenta biografía. Considerando a origem como irrupção, como emergência (no duplo sentido de algo que emerge e que é urgente), sugerimos que a narração de Lenta biografía emerge, dentre outras coisas, das palavras que não podem ser ditas, da potência indizível dos afetos, dos vestígios que algumas experiências deixam, do caput mortuum3 (o que não se liquefaz). 1 2 3

Bolsista CNPq, mestranda do Programa de Pós-graduação em Literatura da UFSC; membro do Núcleo Onetti de Estudos Literários Latino-americanos. E-mail: [email protected]. Quase todas as pessoas envolvidas nesta publicação tiveram posteriormente um papel de destaque na cena cultural portenha. Podemos mencionar, entre elas, alguns escritores como Martín Caparros, Daniel Guebel, Sergio Bizzio, Luis Chitarroni, Alan Pauls, Carlos Feiling e o próprio Chejfec. Caput mortuum, literalmente, é a cabeça dos mortos ou cabeça morta. A expressão é usada pelos alquimistas para designar o resíduo não líquido de suas análises. É o bagaço; figurativamente, uma cabeça esvaziada do espírito ou da vida. Lacan utiliza também esta expressão “o caput mortuum do significante”, o resíduo do significante, o que não pode aparecer e que levaria o sujeito à repetição.

40

2 A noção de origem e a origem da escrita em Lenta biografía Em Lenta biografía o narrador se propõe a escrever uma autobiografia, porém, assim que a decisão é tomada, segue-se uma observação casual de seu pai: […] como si masticara palabras mi padre me dijo que él quería escribir la historia de su vida; e incluso que él podía escribirla, por supuesto, en idisch y yo traducirla u ocuparme que lo hicieran.[…]Enseguida abandonó su idea: me dijo con otras palabras, que para comenzar como correspondería por su nacimiento e infancia debía remitirse a sus padres, y también a sus abuelos – a las vidas de todos ellos–[…] (CHEJFEC, 2007, p.10).4

Este comentário em iídiche (“como si masticara palavras”5) leva o narrador a perceber que, para falar de si mesmo, terá que recompor o passado europeu de seu pai. Um passado doloroso que seu pai insiste em silenciar. Um passado do qual o narrador não tem dados precisos nem dispõe de referências concretas. Deste silêncio paterno e desta imprecisão, emerge o relato de Lenta biografía. Sobre estas impossibilidades trabalha o narrador de Chejfec. Ele narra uma biografia desde o início destinada ao fracasso porque não dispõe das informações necessárias sobre os eventos do passado e porque não tem como recuperar essas informações, pois, entre outras coisas, seu pai, única testemunha sobrevivente da família, não fala sobre esse passado; sonha com ele, mas não fala. Aliás, nesse tipo de situação, o testemunho é possível? No livro O que resta de Auschwitz, Giorgio Agamben (2008) se detém a refletir sobre os testemunhos dos campos de concentração. Apoia-se, o intelectual italiano, em diversos fragmentos de livros de Primo Levi para problematizar o conceito de “testemunha”. Logo no início Agamben expõe a etimologia latina da palavra “testemunha” e se vale disto para explicitar, de algum modo, o lugar de enunciação de Levi: Em latim, há dois termos para representar a testemunha. O primeiro, testis, de que deriva o nosso termo testemunha, significa etimologicamente aquele que se põe como terceiro (*terstis) em um processo ou em um litígio entre dois contendores. O segundo, superstes, indica aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho disso. É evidente que Levi não é um terceiro; ele é, em todos os sentidos, um supérstite. Mas isso também significa que o seu testemunho não tem a ver com o estabelecimento dos fatos tendo em vista um processo (ele não é suficientemente neutro para tal, não é um testis). Em última análise, não é o julgamento que lhe importa –menos ainda o perdão. [...]. Aliás, parece que lhe interessa apenas o que torna impossível o julgamento, 4

5

“[…] como se mastigasse palavras meu pai me disse que ele gostaria de escrever a história de sua vida; e inclusive que ele poderia escrevê-la, claro que, em iídiche e eu traduzi-la ou ocupar-me de que alguém o fizesse. […] Logo abandonou sua ideia: disse-me com outras palavras que para começar como corresponderia pelo seu nascimento e sua infância, ele deveria se remeter a seus pais, e também a seus avos – às vidas de todos eles – […]” (CHEJFEC, 2007, p. 10, tradução nossa). O narrador comenta, em diversas oportunidades, que o ídiche é uma língua que sai como se as palavras fossem mastigadas. Por isso, toda vez que aparece esta expressão no romance, sabemos que a personagem mencionada está falando em iídiche. É este um detalhe interessante, pois cabe ao filho, além da tarefa de reconstrução, também a tarefa de tradução de uma língua que ele mesmo não fala (que entende no contexto, mas que não domina).

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

41

a zona cinzenta em que as vítimas se tornam carrascos, e os carrascos, vítimas (AGAMBEN, 2008, p. 27).

Assim como Levi, é por essa zona cinzenta que Agamben se interessa: “Tratase de uma alquimia cinzenta, incessante, na qual o bem e o mal e, com eles, todos os metais da ética tradicional alcançam o seu ponto de fusão” (AGAMBEN, 2008, p. 30). Porém, o autor alerta que é necessário não confundir categorias éticas com categorias jurídicas. Os que cometeram os crimes devem ser julgados e condenados, mas com isso não se esgota a questão. Na verdade, o que aconteceu em Auschwitz coloca em xeque o que se entende tradicionalmente por direito e inclusive por ética. Também não é possível esgotar o assunto dizendo que o que aconteceu é indizível ou incompreensível, pois seria um modo de adorá-lo em silêncio. Deve-se “manter fixo o olhar no inenarrável” (AGAMBEN, 2008, p. 42). Levi faz isto, ele não desvia o olhar e relata, por isso é considerado por Agamben “uma testemunha perfeita” porque “[...] quando volta para casa, entre os homens, conta sem parar a todos o que lhe coube viver” (AGAMBEN, 2008, p. 26). Assim, Primo Levi não consegue deixar de prestar atenção, de “manter o olhar” no balbucio de Hurbineck, sobre o qual escreverá posteriormente em seu livro A trégua (1958). Neste, quando conta sobre as experiências dos primeiros dias após a libertação dos russos no Campo Maior de Auschwitz, escreve: “[...] raramente conseguia evitar a presença obsessiva, a força mortal de afirmação do menor e do mais inerme entre nós, do mais inocente, de um menino, de Hurbinek” (LEVI, 2010, p. 19). Hurbinek era um menino de três anos, aproximadamente, que não conseguia falar, que não tinha uma voz articulada, mas seus olhos “[...]dardejavam terrivelmente vivos cheios de busca de asserção, de vontade de romper a tumba do mutismo” (LEVI, 2010, p. 19). Henek, vizinho de cama de Levi, no Campo Maior, falava em húngaro para Hurbinek e um dia anunciou que o menino falava uma palavra não húngara: [...] alguma coisa como mass-klo, mastiklo. De noite ficávamos de ouvidos bem abertos: era verdade, do canto de Hurbinek vinha de quando em quando um som, uma palavra. Não sempre exatamente a mesma, para dizer a verdade, mas era certamente uma palavra articulada; ou melhor, palavras articuladas ligeiramente diversas, variações experimentais sobre um tema, uma raiz, sobre um nome talvez. Hurbinek continuou, enquanto viveu, as suas experiências obstinadas [...]a palavra de Hurbinek permaneceu secreta. [...] Hurbinek morreu nos primeiros dias de março de 1945, liberto mas não redimido. Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras (LEVI, 2010, p. 20-21).

Consideremos que quando começa a fala, quando qualquer sujeito começa a falar, se reprimem uma infinidade de sons presentes no balbucio. Embora Primo Levi testemunhe por Hurbinek, o balbucio de Hurbinek é pura potência, é inesgotável e

42

é também incognoscível. As palavras de Primo Levi sobre Hurbinek são o testemunho do incognoscível. Veremos que, do mesmo modo, os sonhos e o silêncio do pai do narrador de Lenta biografia são pura potência, inesgotáveis e incognoscíveis; e as palavras do filho são o testemunho desse incognoscível. O testemunho, diz Agamben (2008), traz uma lacuna. No testemunho há uma impossibilidade de testemunhar. Para desenvolver este paradoxo, o autor retoma um comentário de S. Felman (apud AGAMBEN, 2008) sobre o filme-documentário de Claude Lanzmann intitulado “Shoá”, no qual é desenvolvida a noção de shoá como “acontecimento sem testemunho”. A shoá é um acontecimento sem testemunhas no duplo sentido, de que sobre ela é impossível testemunhar tanto a partir de dentro – pois não se pode testemunhar de dentro da morte, não há voz para a extinção da voz – quanto a partir de fora –, pois o outsider é excluído do acontecimento por definição (AGAMBEN, 2008, p. 44).

Mais adiante, Agamben escreve: “[...] dar testemunho significa entrar em um movimento vertiginoso, em que algo vai a pique, se dessubjetiviza integralmente e emudece, e algo se subjetiviza e fala, sem ter – propriamente – nada a dizer.” (AGAMBEN, 2008, p. 124). Há uma separação irremediável entre as sensações e vivências (saber) e a instância do discurso (dizer). Quando um sujeito desponta pela primeira vez na forma de uma consciência, isso acontece assinalando uma desconexão entre saber e dizer, ou seja, como experiência, em quem sabe, de uma dolorosa impossibilidade de dizer, e em quem fala, de uma não menos amarga impossibilidade de saber (AGAMBEN, 2008, p. 127).

Em Auschwitz, quem sabe é o muçulmano, a última substância biopolítica isolável no continuum biológico; e quem fala é o sobrevivente. Em Lenta biografia quem sabe é o pai do narrador e quem fala é o filho. O pai do narrador não fala sobre esse passado, sonha com ele, mas não fala. El siempre tuvo respuestas escuetas para referirse a su familia desaparecida: cuántos eran hombres, cuántas mujeres, qué lugar ocupaba él en la escala cronológica, la diferencia de edad entre sus padres, y cosas por el estilo. [...] Sin embargo, si ese alejamiento existía realmente, de noche desaparecía: nosotros sabíamos que soñaba de una manera cotidiana con sus hermanos y padres, era esto lo que nos desconcertaba (CHEJFEC, 2007, p. 12-13)6.

6

“Ele sempre teve respostas sucintas para se referir a sua família desaparecida: quantos eram homens, quantas mulheres, que lugar ele ocupava na escala cronológica, a diferença de idade entre seus pais, e coisas desse tipo. [...] Entretanto, se essa distância existia realmente, de noite desaparecia: nós sabíamos que ele sonhava cotidianamente com seus irmãos e pais, era isto o que nos desconcertava” (CHEJFEC, 2007, p. 12-13, tradução nossa).

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

43

Algumas características do sonho são a incoerência, a precipitação de imagens sem governo e os finais abruptos. No sonho não há discurso, porém há precipitação de imagens sem relação de causalidade ou finalidade entre elas (sem governo). Para poder ver uma imagem é necessária certa distância, um vazio. Segundo esta lógica, o poder está na distância, é um vazio. O poder é invisível. Do vazio podem emergir imagens. Da imagem pode emergir o discurso. A imagem prefigura o que o relato dirá. O pai sonha, não pode estabelecer uma distância com as experiências a partir das quais emergem essas imagens. O filho é quem vai escrever, quem vai dar testemunho pelo pai (como o sobrevivente dá testemunho pelo muçulmano e como Levi testemunha por Hurbinek). A escritura surge, então, de um mutismo, de uma Voz suprimida. No fragmento do ensaio Espacio de Especies, que transcrevemos a seguir, Raúl Antelo recupera e comenta o seminário de Agamben, A linguagem e a morte, no qual o autor desenvolve a ideia da origem duplamente negativa da escritura. […] la enunciación (aquello que la ontología siempre denominó el ser) dependía, en última instancia, de una Voz cuya existencia misma descansa en doble negatividad. Es una voz suprimida, pero esa supresión es el hecho originario, de allí que a la Voz no se la pueda decir, sino sólo mostrar. Muerte y Voz tienen ambas la misma consistencia negativa y son metafísicamente inseparables (ANTELO, 2013, s/p).7

Em Lenta biografia, poderíamos dizer que o filho vai dar voz à experiência silenciosa do pai, numa narração que nasce de um mutismo angustiante. Este silêncio é uma voz suprimida, a voz de alguém que se dessubjetivizou e emudece (emudece por ser consciente de ter sido ultrajado). A enunciação do filho tem origem (emergência) na voz suprimida do pai. Mas esta origem só é possível de ser estabelecida a posteriori, a partir do relato. Da voz suprimida emerge um relato que inventa para frente e para trás. A partir e contra a experiência do pai, da voz suprimida angustiante, emerge o relato. Porém a experiência do pai está para sempre perdida. Não há testemunha integral. Há um lugar de enunciação. O lugar de enunciação do narrador de Lenta biografía é a imaginação: No hay nada más real que lo que nos imaginamos. [...] – yo tenía esta idea, sin duda pueril, cuando no inútil, de que la imaginación – en este caso mía – otorgaba de por sí una contundencia concreta – real –, irreemplazable e imprescindible a lo imaginario. Sin embargo, esto lo pienso ahora. Aquello, si es que es verdad que yo me preguntara – y me dijera – que “no hay nada más 7

“[…] a enunciação (aquilo que a ontologia sempre denominou o ser) dependia, em última instância, de uma Voz cuja existência mesma descansa em dupla negatividade. É uma voz suprimida, mas essa supressão é o fato originário, daí que a Voz não possa ser dita, mas apenas mostrada. Morte e Voz têm ambas a mesma consistência negativa y são metafisicamente inseparáveis” (ANTELO, 2013, s/p., tradução nossa).

44

real que lo que nos imaginamos”, si es verdad que yo conjeturase esto, supongo que no era otra cosa que un sutil y tímido consuelo: en los recovecos de la imaginación – en los cuales recurrentemente nos ubicábamos – era donde yo podía pensar y tratar de resolver los interrogantes que mi padre – adrede o no – me transmitía acerca de su pasado; y al no tener – en absoluto – ningún tipo de confirmación explícita [...] de una manera inevitable me obligaban a suponer que el producto de mi imaginación – que, supongo hoy, quizá deje en la mente una mancha semejante a la que queda, desleída y borrosa, como rastro y marca de los recuerdos – era un reflejo de la realidad, en este caso un reflejo de lo que en realidad constituía el pasado de mi padre, que no necesitaba ningún tipo de verificación y es más: que su verificación residía en el hecho de haber sido imaginado (CHEJFEC, 2007, p. 68)8.

Observemos, agora, de que modo se inicia esta “lenta biografia”. O livro começa com comentários e reflexões do narrador sobre o começo desta narração. A primeira frase diz: Con el matiz secreto que saben aparentar las decisiones íntimas – guarecidas hasta de uno mismo - resolví hace unos meses comenzar a escribir, o intentar escribir, lo que se llama, por lo general, “mi vida” (CHEJFEC, 2007, p. 9, grifo nosso)9.

A frase principal é “resolví hace unos meses comenzar a escribir” associada a esta frase principal há uma desconfiança do que se chama geralmente “mi vida”. Notamos aqui uma desconfiança geral da linguagem, ao mesmo tempo em que as aspas nos indicam, também, uma problematização do conceito de “vida” em particular, e do pronome possessivo da primeira pessoa associado a este termo. Já na oração principal observamos uma ideia de decisão associada à ideia de começo “resolvi comenzar a escribir, o intentar escribir” e também uma desconfiança do que seria escrever, que em todo caso, para o narrador, seria tentar escrever. Mais adiante, mas sempre na primeira página do livro: Después – y con demasiado retraso- comprendí [...] que más que al final de procesos o “maduraciones”, aquella espera acabaría en el momento común y 8

9

Não há nada mais real do que aquilo que imaginamos. [...] – eu tinha esta ideia, sem dúvida pueril, quando não inútil, de que a imaginação – neste caso a minha – outorgava por si mesma uma contundência concreta – real –, insubstituível e imprescindível ao imaginário. Entretanto, isso eu penso agora. Aquilo, se é que é verdade que eu me perguntara – e me dissera – que “não há nada mais real do que aquilo que imaginamos”, se é verdade que eu conjecturara isto, suponho que não era outra coisa que um sutil e tímido consolo: nos subterfúgios da imaginação – nos que recorrentemente nos colocamos – era onde eu podia pensar e tentar resolver os interrogantes que meu pai – intencionalmente ou não – me transmitia sobre seu passado; e por não ter – em absoluto – nenhum tipo de confirmação explícita [...]de uma maneira inevitável me obrigavam a supor que o produto de minha imaginação – que, suponho hoje, talvez deixe na mente uma mancha semelhante à que fica, atenuada e confusa, como rastros e marcas das recordações – era um reflexo da realidade, nesse caso um reflexo do que na realidade constituía o passado do meu pai, que não necessitava nenhum tipo de verificação, e além disso: que sua verificação residia no fato de haver sido imaginado (CHEJFE,2007, p. 68, Tradução nossa). Com o matiz secreto que costumam aparentar as decisões íntimas – amparadas até de si mesmo – resolvi há alguns meses começar a escrever, ou tentar escrever, o que se chama, em geral, “minha vida” (CHEJFEC, 2007, p. 9, tradução nossa)

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

45

material en el que yo me decidiera a comenzar mis palabras escritas – que, por otra parte, alguna vez quizá ya dichas fueron (CHEJFEC, 2007, p. 9)10.

Mais uma vez aparece a decisão associada ao começo da escritura “me decidiera a comenzar” (na primeira citação era resolvi comenzar), mas antes disto há uma espera, uma distância. O final da espera está marcado por uma decisão íntima secreta. Está explicita também nessas poucas linhas a negação do início como ponto culminante de um processo: “comprendí [...] que más que al final de procesos o “maduraciones”11, aquella espera acabaría en el momento común y material en el que yo me decidiera a comenzar mi palabras escritas”.Começar é escolher um ponto e exercer um corte, portanto não há nenhuma relação de causalidade. Por outro lado, observamos nestas linhas a explicitação da ausência de uma pretensão de originalidade “palabras escritas – que, por outra parte, alguna vez quizá ya dichas fueron”. Esta ausência de pretensão de originalidade refere-se tanto à qualidade do que é original como inusitado e criativo; como à qualidade do que é original caracterizada por determinada origem ou procedência. Se estas palavras alguma vez já foram ditas quer dizer que puderam proceder de outro lugar e que não tem nada de inusitadas. Se já foram ditas podem ser, também, portanto, copiadas; e se foram copiadas não são autênticas, verdadeiras. Quer dizer que a narração abdica de se postular como primeira, como verdadeira, como única, como inédita e como autêntica; e o narrador abdica do seu lugar de autor. Ou seja, há um começo dado por condições prévias associadas a uma espera e a uma decisão e não uma origem entendida como causa ou princípio primeiro. Esse começo é arbitrário; é o início de algo que sempre existiu. Entendemos que é possível aproximar a noção de origem que se desprende de Lenta biografía das palavras usadas por Raul Antelo no seu artigo O absoluto (2012). A tarefa aqui, se não é a de se aproximar da definição do conceito de origem, é a de se distanciar de uma concepção historicamente concebida e assentada: A origem, longe de ser plenitude está associada ao que dela emerge, mas não no sentido linear de uma causa e um efeito, mas de uma ruptura ou hiato, isto é, de um vazio. A origem não é um fundamento: é uma fundação construída, de jure e não de facto, funcionando mesmo como o negativo daquilo de que ela é mesmo origem (ANTELO, 2012, p. 168).

Podemos perceber, então, que o conceito de “origem” presente em Lenta biografia difere daquela noção de origem como fundamento, como causa primeira. A origem em Lenta biografía é inventada no texto a partir da imaginação. Só aparece no momento que o texto está terminado. É o que o narrador de Lenta biografía consegue elaborar a posteriori sobre o passado do seu pai. Este a posteriori seria após a narração. Ou seja, a origem do narrador não é o passado europeu ou judeu de seu 10 11

Depois – e com demasiado atraso – compreendi [...] que mais do que ao final de processos ou “maturações”, aquela espera acabaria no momento comum e material em que eu me decidisse a começar minhas palavras escritas – que, por outra parte, alguma vez talvez já foram ditas (CHEJFEC, 2007, p. 9, tradução nossa). O final do processo de maturação seria a putrefação. A putrefação é parte do processo de maturação. E onde termina a maturação e começa a putrefação?

46

pai, mas o que ele (o narrador) elabora desse passado nessa narração. Narração que é ficção. Foucault em Distância, Aspecto, Origem escreve: “E se me pedissem para definir o fictício eu diria, sem firulas: a nervura verbal do que não existe, tal como ele é. [...] A linguagem da ficção se insere numa linguagem já dita, em um murmúrio que nunca começou” (FOUCAULT, 2001, p. 69-70). O silenciamento da história familiar funciona para o narrador como a negação de uma origem como centro; e desta ausência de centro se abre uma trama de significados. [...] na ausência de centro ou de origem, tudo se torna discurso – com a condição de nos entendermos sobre esta palavra – isto é, sistema no qual o significado central, originário ou transcendental nunca está absolutamente presente fora de um sistema de diferenças. A ausência de significado transcendental amplia indefinidamente o campo e o jogo da significação (DERRIDA, 2011, p. 409-410).

Esse momento anterior ou exterior ao discurso jamais poderá ser alcançado. Esta ideia permeia todo o primeiro romance de Chejfec, pois, além da tentativa de reconstrução da história do pai do narrador, os discursos dos amigos do pai nas reuniões dominicais giram em torno da tentativa de reconstrução dos últimos dias do “perseguido” 12. O destino que teve o “perseguido”, assim como o passado europeu do pai do narrador, em Lenta biografia, estão para sempre perdidos, são incognoscíveis; porém, ambos são relatados no romance. E é claro que os discursos divergem, não chegam a um ponto em comum. Não há um ponto ao qual chegar, há vários pontos que podem ser, e são, infinitamente rastreados, (re)organizados e relatados.

12

O “perseguido” era certa pessoa, conhecida por todos que havia tido um final desconhecido, embora, segundo eles, previsível e imaginável.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

47

REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Traduçãode Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. ANTELO, Raul. Espacios de Especies. e-MISFéRICA, Bio/Zoo, v. 10, n.1, inverno 2013. Disponível em: . Acesso em: 13 mai. 2016. ________. O absoluto In: BARBOSA M.; PETERLE P.; MARSAL. M. (Org.) Literatura de vanguarda e política – O século revisitado. Rio de Janeiro: Comunità, 2012. CATALIN, Mariana. Babel. Revista de libros: formular el propio presente entre los finales y el fin. Castilla Revista Estudios de Literatura, n.4, p. 556-580, 2013. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2016. CHEJFEC, Sergio. Lenta biografía. Buenos Aires: Alfaguara, 2007. DERRIDA. Jacques. A escritura e a diferença. 4. ed. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2011. FOUCAULT, Foucault. Distância, aspecto, origem. In:________. Ditos e escritos III: estética: literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção de texto Manoel Barros da Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 68-69. LEVI, Primo. A trégua. Tradução de Marcos Lucchesi. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.

A LITERATURA NA ESCOLA Celdon Fritzen1 Isabela Roque Loureiro Leandro De Bona Dias Gladir da Silva Cabral

1 Introdução O objetivo deste Simpósio foi problematizar a presença da literatura na escola, como sua designação se empenha em esclarecer. Partindo da constatação de que e por muitos séculos a literatura foi o texto por excelência na aprendizagem da Língua, nas últimas décadas ela foi perdendo hegemonia em prol da presença de outros tipos de texto na escola, seu objetivo era compreender essas transições e ao mesmo tempo reavaliar a potencialidade do uso do texto literário na formação a partir de novas proposições metodológicas. Os trabalhos que aqui se apresentam abordaram essa relação entre literatura e escola de maneira distinta. A primeira comunicação, de Loureiro, aborda a produtividade do texto literário no processo de aprendizagem de uma língua estrangeira pelo componente cultural que pode proporcionar. Para além de sua dimensão linguística formal, o texto literário situa os aprendizes em relação aos significados culturais que o uso literário da língua implica. A segunda, de Dias e Cabral, investiga a representação literária da escola a partir de uma obra de Ziraldo. Seu afã é problematizar as tensões em torno do riso no espaço tradicionalmente solene da escola que Uma Professora muito maluquinha aciona.

2 A literatura no ensino de língua espanhola para turismo A presente comunicação aborda reflexões que pretendem estimular os docentes de ELE que atuam na área do Turismo a considerar, em suas atividades profissionais, as inúmeras especificidades dos textos literários (TL) de autores espanhóis e hispano-americanos e suas reais contribuições para a formação dos aprendizes, futuros mediadores interculturais (MORENO GARCÍA; TUTS, 2004), a fim de que eles também descubram o mundo hispânico e sua esplêndida diversidade cultural através deles. 1

Professor do Depto de Letras da UFSC. E-mail: [email protected]; Professora do curso superior de tecnologia em Gestão em Turismo e do curso de Pós-gradução em Turismo sustentável do CEFET-RJ, Uned. Nova Friburgo. E-mail: [email protected]; Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESC. E-mail: [email protected]; Professor da Universidade do Extremo Sul Catarinense no curso de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Educação. E-mail: [email protected].

As diversas transformações sociais, econômicas, educacionais e políticas, provenientes da transição do século XX para as primeiras décadas do XXI, contribuíram significativamente para o surgimento do que Blanca Aguirre Beltrán (2004) define como “Sociedad de la información y del conocimiento”. Esse novo modelo de sociedade, ávido pelo acesso a novos conteúdos e saberes, em particular àqueles que viabilizam o desenvolvimento científico e tecnológico, fundamentais para o progresso econômico, atribui um papel fundamental às línguas estrangeiras, que muito facilitam a comunicação nas esferas acadêmicas e, em especial, profissionais. Para Blanca Aguirre (2004), as demandas apresentadas por essa sociedade sugerem uma maior conexão entre a formação em idiomas e as necessidades do mercado de trabalho e de seus profissionais, e coincidem com os avanços das ciências da linguagem. Essas reivindicações, segundo a autora, não só contribuíram como também aceleraram as mudanças produzidas no ensino de línguas estrangeiras, criando condições favoráveis para o surgimento de novos métodos comunicativos e para o ensino-aprendizagem de idiomas com fins específicos, cuja proposta principal é atender as necessidades de comunicação de determinados grupos de estudantes, como é o caso daqueles que se dedicam aos cursos de graduação, tecnológico e técnico em Turismo. Segundo Concha Moreno García e Martina Tuts (2004), no texto “La enseñanza del español del Turismo”, os docentes de espanhol com fins específicos em Turismo devem considerar, sobretudo, os aspectos socioculturais e as características dos interlocutores, a partir de princípios metodológicos que considerem a língua como um instrumento essencialmente para comunicação. Acreditam que, no ensino de espanhol com fins específicos para os profissionais de Turismo, o enfoque comunicativo é o mais eficaz, já que concebe a língua e a cultura como dois elementos indissociáveis no ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira, e, por isso, atribui um expressivo papel às práticas pedagógicas que consideram os aspectos interculturais na formação da competência comunicativa dos estudantes. Nesse contexto, o uso de textos literários (TL) de autores hispânicos nas aulas de espanhol para Turismo é fundamental, uma vez que funcionam como uma importante fonte de conhecimento e de reconhecimento da cultura ensinada. Eles facilitam a inclusão dos futuros profissionais da área no universo social, cultural e linguístico que nós, educadores, desejamos ensinar e que os alunos, principalmente por questões acadêmicas, profissionais, devem devidamente conhecer. Não obstante, apesar de sua importância, o trabalho com textos literários, muitas vezes, não valoriza o caráter estético e formal do texto. Ainda hoje, muitos são os docentes da educação básica que não consideram as especificidades do texto literário, nem tampouco suas reais contribuições à formação dos aprendizes. No ensino superior, a realidade não difere. Segundo Roberto Retamoso (1997), o discurso universitário dispõe de métodos e técnicas sofisticados e atuais, gerados pelas modernas disciplinas que estudam a linguagem desde pontos de vista diversos, mas os efeitos que geram esse tipo de tratamento são “idénticos a los que produce el discurso escolar, ya que el universitario, sumiso en muchos casos a una filosofía

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

51

cientificista, potencia un rompimiento radical que la escuela establece entre los lenguajes poéticos y pedagógicos” (RETAMOSO, 1997, p. 50). Dentre os diversos e possíveis efeitos dessa prática, um é devastador: a banalização do texto literário, ainda apresentado, em muitas aulas de LE, como “muestrario de estructuras gramaticales, fonemas y frases lexicales”, tal como nos evidencia Elena Palmero González e Aimée González Bolaños (2004, p. 225), prática que definitivamente desconsidera a importância e o valor do literário. A utilização dos TL apenas como pretexto para o estudo de aspectos gramaticais, lexicais ou simplesmente para a realização de aulas de conversação, desconsidera profundamente não só a diversidade e a riqueza destes materiais autênticos, mas também a significativa função social da literatura de promover um entendimento entre as diversas culturas no mundo. Isso faz com que as experiências da literatura, da leitura e do prazer de ler sejam reduzidas e silenciadas. O resultado dessas práticas é desastroso, especialmente porque esse silenciamento promove uma falsa ideia de que “estudiar literatura no es algo que aporte ventajas al aprendizaje de un idioma extranjero” (RETAMOSO, 1997, p. 49).

Esses nefastos procedimentos, que contribuem para a manutenção de uma visão distorcida do que é a literatura, não consideram a relevância dela como fonte de conhecimento e de reconhecimento da língua e da cultura estrangeira. Igualmente, não admitem a enorme possibilidade que o TL pode oferecer na compreensão da realidade social e cultural de uma determinada sociedade, de forma a desconstruir os estereótipos criados por falta de informação sobre os distintos povos e culturas (INEZ GAIAS, 2000, p. 75). É missão dos professores de LE combater o esvaziamento do texto literário, condição advinda de um sistema educativo tradicional que, além de precário e memorista, “no había sabido mostrar las bellezas y excelencias de las obras literarias y no había acostumbrado a leer a los jóvenes, imponiendo la lectura como una obligación y no fomentando una afición espontánea y placentera” (PÉREZ ROIG, 1993, p. 66). Assim como a língua, a literatura é um domínio fundamental na aprendizagem de uma LE, e cabe, portanto, ao docente a tarefa de seduzir, de conquistar o aluno, ensinando-lhe que ler é uma atividade altamente contagiosa, tal como nos evidencia Magnolia Brasil (2007), no texto “Superar as diferenças para encontrar-se no outro: a literatura espanhola na sala de aula brasileira”. Segundo a hispanista: “[...] um professor que seja também um leitor terá maior oportunidade no desenvolvimento do processo de sedução/contágio, essencial para resgatar, no aluno, sua identidade leitora, para despertar-lhe a fome do texto” (BRASIL, 2007, p. 17). Em um mundo cada vez mais intercultural, não podemos ignorar a função social da literatura de contribuir para com o entendimento entre as diferentes culturas. As aulas de língua estrangeira são ideias para promover essa compreensão e, sobretudo, a convivência pacífica entre os diferentes povos e etnias, e o ensino da literatura vem ao encontro dessa aprendizagem intercultural, essencial para

52

compreender as diferenças e pluralidades do mundo. Os alunos de Turismo devem vê-la, portanto, como “uno de los más enriquecedores quehaceres del espíritu, una actividad irremplazable para la formación del ciudadano”, tal como afirma o escritor peruano Mario Vargas Llosa (2002, p. 386). O texto literário estimula a construção do saber, conhecimento, a partir das diversas interpretações que formularão seus leitores devido à sua natureza ambígua, polissêmica e autorreflexiva (BOLAÑOS; GONZÁLEZ, 2004, p. 226), daí a necessidade de analisá-lo sob uma visão interativa, na qual o aluno, além de realizar a leitura, deve interagir com ele para construir sentidos e significados, atuando, desta forma, como coconstrutor deste processo de interação inerente do ato de ler. O resultado será o nascimento de leitores competentes que atuam não só como sujeitos críticos, mas principalmente como transformadores da realidade.

Sendo assim, acreditamos que apresentar aos alunos de Turismo os mais diferentes pontos de vista e opiniões, as diferentes culturas, costumes, identidades e realidades, através do texto literário, é fundamental para que eles possam amadurecer e melhor desenvolver uma consciência crítica sobre a diversidade do mundo que os rodeia.

3 Uma professora muito maluquinha: escola, sacralidade e profanação Num contexto em que a educação é convocada a lidar com mudanças sociais que trazem novos paradigmas para o conhecimento (HERNÁNDEZ, 1998), a escola ainda se caracteriza como uma instituição dotada de tons sagrados, preservando a supremacia de seus rituais e “sacerdotes”, os professores. Diante disso, este trabalho propõe uma reflexão acerca da possibilidade de rompimento da sacralidade do espaço escolar, tendo como objetivo, a partir da análise do livro Uma professora muito maluquinha, de Ziraldo, discutir três elementos: a racionalidade, o controle do riso e os rituais sagrados do ambiente escolar. Dentre os diversos elementos constitutivos da narrativa de ficção, a pesquisa focará o papel da personagem principal a fim de responder qual concepção de educação está representada nesta obra de Ziraldo. A partir de uma investigação de cunho bibliográfico, analisar-se-á a personagem central da obra de Ziraldo, escolhida por ser um clássico da nossa literatura, investigando como, em sua prática docente retratada no livro, ela põe em xeque elementos que caracterizam a escola como um espaço sagrado. O trabalho, tendo como ponto de ancoragem a análise de cenas do livro Uma professora muito maluquinha, propõe uma discussão acerca destes três elementos: (1) a crítica à racionalidade autoritária que caracteriza a aura de sabedoria sacerdotal da identidade docente e da escola como templo de culto ao saber, com base em Hall (2014), Bauman (2005) e Subirats (1986); (2) o riso ambivalente e o riso controlado, trazendo autores como Bakhtin (2013) e Larrosa (2015) para discutir os momentos em que o riso é permitido ou excluído da sala de aula; e (3) a profanação dos rituais sagrados, tais como

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

53

a chamada e os exames finais, que assinalam a escola como espaço sagrado e de controle, discussão feita a partir de Agambem (2007). Após colocar em questão tais elementos, checando de que modo eles atuam no contexto da história de Ziraldo, pretende-se cumprir os objetivos propostos e responder à questão central do estudo. A análise feita revela que a personagem de Ziraldo profana a escola porque coloca em xeque três características que garantem a sua sacralidade: a racionalidade, o riso controlado e os seus rituais sagrados. Sobre a racionalidade, Subirats (1986) aponta que o abuso da razão ganha proporções destrutivas ao se converter em uma espécie de religião para a qual todos devem pagar tributo. Para atender a essa racionalidade, a escola deve formar estudantes capazes de aceitar a superioridade de seus mestres e da verdade científica. Dentro de um contexto social em que a identidade docente, construída socialmente (HALL, 2014), ainda está ligada à ideia de controle e de sabedoria, a professora maluquinha põe em risco a posição hierárquica e racional da escola e dela própria ao correr o risco de sair derrotada dos jogos que propõe aos seus alunos e dos quais participa, participando com seus alunos dos jogos que propõe, e ao não responder a um questionamento dos estudantes, preferindo consultar um colega de outra área sobre a resposta. Quanto ao riso, Bakhtin (2013) destaca que, ao contrário daquele que se caracteriza por ser ambivalente, elemento de comunhão no qual o sujeito ri de si mesmo e permite sentir-se inacabado, à mercê da falha, da incerteza, o riso controlado resultado da regulação imposta pelas instituições da cultura oficial, mais precisamente a Igreja Oficial, que percebe a potencialidade do riso e o organiza, estabelecendo para ele espaços específicos. Ainda sobre o riso, Larrosa (2015) nos alerta para o fato de que ele não tem lugar na escola, local em que rir é pecar, pois a figura do professor se assemelha à do sacerdote. Nesse sentido, a professora maluquinha ameaça a sacralidade da escola ao permitir que se ria e que se possa sentir-se alegre durante suas aulas. Agindo assim, a personagem faz com que os alunos desistam de sair da sala e frequentar o recreio, o que perturba a organização da escola, responsável por expulsar o riso para os espaços de exceção. Por fim, a professora maluquinha irá profanar os exames finais, um dos rituais sagrados da escola. Enquanto o sagrado atua separando as coisas da esfera do que é humano, a profanação, segundo Agambem (2007) restitui essas coisas ao seu uso comum. Por isso, só é possível profanar por meio do riso aquilo que ainda possui algum resquício de sacralidade. Desse modo, o distanciamento entre professor e aluno é uma prova da cisão que atribui ao mestre o caráter sacerdotal apontado por Larrosa (2015). Permitindo que se leiam gibis e quadrinhos, gêneros proibidos na escola, e revelando à diretora que seus alunos não precisarão realizar as provas finais, a professora realiza sua profanação final, exatamente porque não compreende a sacralidade do exame de final de ano, ritual já previsto no itinerário escolar e no qual reside um caráter de controle e ameaça frutos de uma educação que predetermina seus resultados (LARROSA, 2015). Dispensar os exames finais resulta na expulsão da personagem, afinal de contas, a escola não pode mais lidar com a ameaça em que a professora maluquinha se constituíra graças à sua prática profana.

54

A análise realizada revela que a obra Uma professora muito maluquinha retrata uma concepção profanadora de educação, pois a personagem principal age de modo a dessacralizar o espaço da sala de aula. Em sua prática, a professora maluquinha questiona a identidade docente ligada à disciplina e à rigidez, imagem construída socialmente e que é tão prezada pela escola, visto que corrobora o contexto de controle em que se dão as práticas educacionais. A partir da análise feita, este trabalho demonstra que profanar a sala de aula significa oferecer a possibilidade de um novo olhar sobre o processo de formação e de relação entre alunos e professores, mostrando a esses que estar disposto ao fracasso, ao não saber, é condição para que se possa se reinventar e modificar as identidades que lhe são conferidas. A escola que aprisiona a formação humana e pressupõe a educação como uma mera técnica em que se colherão os resultados esperados se mostra profanável justamente porque se constitui como ambiente sagrado, e toda existência de sacralidade pressupõe a profanação.

4 Considerações finais Realizados a partir de perspectivas distintas – o primeiro, a partir da discussão da escola e o lugar nela para a literatura na aprendizagem de uma língua estrangeira; o segundo, a partir de um olhar da literatura para a escola, mensurando nela o lugar do riso –, os trabalhos aqui reunidos demonstram a fecundidade do literário nas reflexões sobre a formação humana. Mesmo que numa versão reduzida, atendendo aos limites desta edição, esperamos que o alcance das reflexões suscitadas pelo debate no Simpósio a partir deles tenha sido possível aos leitores.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

55

REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução e apresentação de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. AGUIRRE BELTRÁN, Blanca. La enseñanza del español con fines profesionales. In: SÁNCHEZ LOBATO, Jesús; SANTOS GARGALLO, Isabel (Org.). Vademécum para la formación de profesores. Madrid: SGEL, 2004. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 8. ed. São Paulo: Hucitec Editora, 2013. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BRASIL, Magnólia. Superar as diferenças para encontrar-se no outro: a literatura espanhola na sala de aula brasileira. Anuário brasileiro de estudos hispânicos, p. 16-21, 2007. Disponível em: . Acesso em: jan. 2015. GAIAS, Inez. Estereótipos culturais nos estágios iniciais de aquisição do espanhol como língua estrangeira: uma tomada de consciência. Curitiba, 2005. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. GONZÁLEZ BOLAÑOS, Aimée; PALMERO GONZÁLEZ, Elena. Glosas didácticas: revista electrónica internacional de didáctica de las lengua y sus culturas, n. 11, p. 221-229, 2004. Disponível em: . Acesso: fev. 2015. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014. HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Tradução de Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: ArtMed, 1998. LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Tradução de Alfredo Veiga-Neto. 5. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. PEREZ-ROIG, Jose Antonio. Leer para vivir. Madrid: C.E.G.A.L., 1993.

56

RETAMOSO, Roberto. Sobre la pedagogía de lo literario. In: La enseñanza de la literatura como problema. Cuaderno N.1. Universidad Nacional de Rosario. Argentina, 1997, p. 47-55. SUBIRATS, Eduardo. Paisagens da solidão: ensaios sobre filosofia e cultura. Tradução de Denise Guimarães Bottmann. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1986. VARGAS LLOSA, Mario. La verdad de las mentiras. Madrid: Santillana, 2002. ZIRALDO. Uma professora muito maluquinha. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1995.

A POESIA, A CRÍTICA E A FICÇÃO DE W. G. SEBALD Maria Aparecida Barbosa1

1 Introdução Para efeito de documentação neste livro da X Semana Acadêmica de Letras da UFSC - 2016, apresento algumas discussões que pautaram o debate do simpósio temático (St 36) que tinha como objetivo fundamental refletir A poesia, a crítica e a ficção de W. G. Sebald (1944-2001). A proposta inicial era constituir um incipiente fórum, agregando as problematizações e os estudos atuais acerca do assunto que vêm sendo realizados por pesquisadores de diversas instituições acadêmicas brasileiras. W. G. Sebald nasceu em Wertach no extremo sul da Alemanha e, embora tenha atuado como professor na Universidade de Norwich, na Inglaterra, escrevia em língua alemã e dedicava-se à Literatura Alemã Moderna. Seus escritos ficionais Austerlitz, Os Emigrantes, Os Anéis de Saturno, e Vertigem estão traduzidos e publicados no Brasil; ao passo que a obra crítica, que é bastante traduzida ao inglês, está disponível no país somente através de Guerra Aérea e Literatura. As edições portuguesas suprem parcialmente o déficit com Campo Santo e Pátria Apátrida, bem como a poesia Do Natural.

2 “Realismo não basta” Os debates do simpósio tiveram início com essa provocativa chamada que entitula uma entrevista concedida pelo escritor em 1993, constante do livro “Auf ungeheuer dünnen Eis” - Gespräche 1971 bis 2001 (sobre uma camada extremamente fina de gelo - conversas de 1971 a 2001). No conto “A Vilegiatura do Dr. K. em Riva” o entrevistador Ralph Schock verifica a combinação de documentos da realidade e textos fictícios. Entabula, portanto, a conversa levando o entrevistado a discorrer sobre os modos como lida com essa relação de tensão. O conto marcara de certa maneira a passagem da descrição e do estudo da literatura para a criação literária, admite Sebald, que afirma não ser possível que o escritor escreva sem a influência das próprias leituras. Reverberações dessas leituras, sem que sejam necessariamente decifradas, se disseminam pela literatura que vai sendo produzida. Para evitar que a ficção seja insípida e desinteressante, “realismo não basta”, laivos do fantástico e do misterioso seriam às vezes indispensáveis. 1

Professora do Curso de Letras - Alemão e membro do colegiado do Programa de Pós-Graduação em Literatura. E-mail: [email protected]

58

Sua literatura acentuaria propositadamente o caráter ambíguo entre os fatos reais e os motivos ficcionais (Fälschungsmotive), a fim de impelir o leitor a questionar a veracidade ou a ficcionalidade das figuras e imagens presentes em seus contos e romances e se manter na incerteza.

3 Sobre a literatura austríaca Em importante vertente do trabalho de Sebald como crítico literário consistem os estudos acerca da literatura austríaca, compilados nos livros Die Beschreibung des Unglücks - zur österreichischen Literatur von Stifter bis Handke (a descrição da infelicidade - sobre a literatura austríaca de Stifter até Handke) e Unheimliche Heimat - Essays zur österreichischen Literatur (pátria apátrida - ensaios sobre a literatura austríaca). No ensaio referente ao romance fragmentário Andreas, de Hugo von Hofmannsthal, Sebald mostrou como a cultura burguesa, mais especificamente a literatura, impôs com suas restrições aos objetos eróticos rigorosos recalques à consciência dos escritores e dos leitores. No cenário literário burguês, principalmente francês, se vislumbrou, todavia, por trás da ortodoxia uma tendência literária na qual se sobressaem a heresia do proscrito e a teoria dos excessos na esteira do escritor Marquês de Sade. Nesse contexto das explorações libidinosas reprimidas pela cultura burguesa dentro da literatura de língua alemã Sebald conferiu ao modernismo de Viena um significado preponderante já devidamente reconhecido pela crítica. Entre outros exemplos o ensaio aponta as práticas de promiscuidade, perversão, homoerotismo e outras modalidades eróticas presentes no fragmento Andreas. Nesse sentido a trajetória do jovem personagem/protagonista Andreas de Hofmannsthal, ao invés de um romance de formação ideal, perfaz um romance de de-formação e destruição, na medida em que explora “as forças centrifugadoras da sua e das nossas vidas” (SEBALD, 2012, p. 63). Além dos temas marginalizados pelas preferências eróticas diversas o simpósio temático trouxe ao centro das discussões outra perspectiva reprimida pela poesia burguesa que Sebald igualmente recuperou e valorizou na crítica literária: a poesia dos doentes mentais. Chamando novamente a atenção para a expoência da literatura austríaca, Sebald ilustra esse viés marginal da composição poética com o caso do escritor não canônico Ernst Herbeck que tinha distúrbios mentais e viveu a maior parte de sua vida na Landesanstalt für Psychiatrie in Klosterneuburg (Centro Psiquiátrico de Klosterneuburg). Lendo o livro Kunst und Schizophrenie, com o qual o psicanalista Leo Navratil (1921-2006) atesta nos trabalhos artísticos dos pacientes psicóticos para além do poder terapêutico uma capacidade de percepção excepcional, Sebald analisou a obra escrita por Herbeck em seus últimos anos de vida, que foi assinada sob o pseudônimo Alexander. Através do ensaio «Eine kleine Traverse - das poetische Werk Ernst Herbecks» (rasteira ardilosa - a obra poética de Ernst Herbeck) ele chama a atenção ao terreno movediço no qual se constrói essa poesia de intensa força imaginativa expressa numa linguagem característica

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

59

e sintomática de desintegração psíquica. Para Sebald «consonante à própria lógica a explicação científica se inclina a subestimar aquilo que perturba seu conceito, uma tendência que no caso de Alexander é tanto mais verificável, porquanto nem ele tampouco sua obra correspondem à escritura convencional” (SEBALD, 2012, p. 131). A pesquisa do significado dessa poesia somente pode ser legítima se condicionada pela consciência de que os esclarecimentos não seriam menos falíveis e frágeis que a própria lírica objeto do estudo. Faz-se mister lembrar que mesmo obras canônicas, como por exemplo a kafkaniana, conteriam os “pontos cegos” semelhantes àqueles que caracterizam a poesia de Herbeck e representam para os leitores enigmas desafiadores. Se é que se pode de fato distinguir traços inerentes à literatura austríaca, Sebald orienta suas reflexões rumo a duas hipóteses iniciais. A primeira diz respeito ao procedimento bem comum de transposição das fronteiras entre o literário e o científico. Assim “a literatura austríaca não é simplesmente a pré-escola da Psicologia; na passagem ao século 20 e nas décadas seguintes, em seus avanços psicológicos, embora não os apresente em forma de conceitos, ela se encontra em muitos aspectos no mesmo patamar e em outros adiante das descoberas da Psicanálise” (SEBALD, 2012, p. 9). A segunda hipótese da chamada literatura austríaca se baseia num princípio de insatisfação consigo mesma, uma cultura, por conseguinte, que impõe a autocrítica como princípio inerente. Ambas as hipóteses conduzem ao cerne da tese de Sebald, segundo a qual a visão melancólica dos austríacos em relação ao mundo seria uma forma de resistência ao mundo burguês idealista, romântico, progressista.

4 Metodologia da composição Reportando-se ao lema mencionado no início, que foi estabelecido por Sebald a propósito da insuficiência do realismo, outra contribuição à discussão dentro do simpósio temático tratou da estrutura narrativa dessa literatura. Destacou-se aqui a complexidade da urdidura textual, que mantém semelhanças com um procedimento elogiado por Lévy-Strauss em seus estudos antropológicos (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 50-52), qual seja, a bricolage, prática do bricoleuer que trata o objeto de maneira imprevista e opera com o reemprego dos materiais numa função diferente da primeira para a qual foi pensado. Ponto de partida para essa hipótese da construção ficcional à maneira de uma bricolage teria sido uma pista legada pelo próprio escritor Sebald. Em entrevista à Sigrid Löffler (1993) ele confessou ser um inveterado catador e colecionador de quinquilharias e fragmentos, com os quais monta textos que são composições híbridas resultantes de reportagens jornalísticas, documentos históricos, conjugadas com imagens e fotografias. Assim como as imagens da memórias, Denkbilder, estudadas por Walter Benjamin, em sua pretensão de recomposição historiográfica logram algumas vezes chegar à síntese, o procedimento do bricoleur Sebald num primeiro momento se assemelha a essa tentativa de manipular elementos do real e fazê-los falar pelas aproximações e intercalações ficcionais.

60

5 “Gleichschwebende aufmerksamkeit” Em “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, Sigmund Freud aconselha uma técnica simples, que “consiste em não querer dirigir a atenção a algo específico e em dedicar a tudo o que se escuta a mesma ‘atenção uniformemente flutuante’” (1912). Tendo em conta essa experiência perceptiva acêntrica e outras transformações da percepção que concernem à subjetividade introduzidas por Freud e Bergson na passagem ao século 20, o simpósio contou no final dos trabalhos com a analogia das reflexões metodológicas da psicanálise com os procedimentos adotados por Sebald em sua atividade literária. Freud postulava por intermédio de sua técnica a supressão do risco de seleção conforme preconceitos conscientes e mesmo inconscientes, visando a abertura à paleta potencial de associações livres. No processo criador Sebald recorria à caminhada, à deambulação - que estimulam a “atenção uniformente flutuante” - para ativar o pensamento e a matéria de sua literatura e manter as potencialidades das leituras. Não somente o próprio escritor, também suas personagens ficcionais perfazem intermináveis passeios, caminhadas - e reparam à sua volta. Nos ensaios literários Sebald salienta igualmente a percepção diferenciada de alguns escritores dos fins do século XIX. Se conhecidamente Benjamin e Baudelaire se reportaram ao flaneur, Sebald estuda por seu turno o caso de Peter Altenberg, escritor austríaco que legou originais descrições advindas de observações noturnas em cafés, das incursões em parques e em exposições de animais, e se tornou célebre pelas notas sobre os modos de ver. O seu primeiro livro, Wie ich es sehe (como eu vejo as coisas) contém um esboço curioso com minuciosas écfrases que acompanham as gradações de cores ao entardecer: A dama contempla o lago ao longe. O lago: 5 horas: reluzente como afiadíssimos espadachins toledanos em combate. A Cordilheira dos Infernos é como transparência luminosa 6 horas: águas azul claras e faixas em cores de bronze. A Cordilheira dos Infernos é como vidro rosa 6:30 horas: lago limão amarelo das bordas solares, um hálito arroxeado como vapor de heliotrope. A Cordilheira dos Infernos é como ametista. 7 horas: listas em vermelho cúprico e verde garrafa e lago de águas acinzentadas. A Cordilheira dos Infernos empalidece... (ALTENBERG, 1896).2

Sebald destaca o fato de que olhar, olhar, olhar e sorver as imagens com a alma era o desejo de Peter Altenberg. Essas modalidades de transitar e, concomitantemente, perceber o espaço e o tempo reconfigurando-os, reconectando-os em novas significações, não descarta pretensões de alçar-se a perspectivas inéditas: o voo do albatroz representou para Baudelaire e também para Peter Altenberg a possibilidade de enxergar o mundo sob um viés original. 2

Essa e outras traduções constantes neste trabalho são de minha autoria.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

61

6 Considerações finais Dos debates, que incluíram outros pontos além dos mencionados, brotaram as sugestões de divulgação dos trabalhos e prosseguimento dos estudos em grupo. No número temático dos Cadernos Benjaminianos sediado na UFMG, a ser publicado em dezembro de 2016, sucederá o aprofundamento das questões abordadas nas respectivas comunicações que estão sendo transformadas em artigos, bem como a ampliação das perspectivas a partir de colaborações adicionais de pesquisadores convidados.

62

REFERÊNCIAS ALTENBERG. Peter. Wie ich es sehe. Berlin: S. Fischer, 1896. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2016. FREUD, Sigmund. “Ratschläge für den Arzt bei der psychoanalytischen Behandlung, 1912” (recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, 1912). In: ______. Kleine Schriften II - Kapitel 15. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2016. LÉVI-STRAUSS. Claude. Pensamento Selvagem. Tradução Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus, 2012. SEBALD. W. G. ‘Realismus reicht nicht aus’ - Gespräch mit Ralph Schock (1993). In: _______. “Auf ungeheuer dünnen Eis” - Gespräche 1971 bis 2001. Edição Torsten Hoffmann. Frankfurt am Main: Fischer, 201, p. 96-104. ______. Wildes Denken - Gespräch mit Sigrid Löffler (1993). In: ______. “Auf ungeheuer dünnen Eis” - Gespräche 1971 bis 2001. Edição Torsten Hoffmann. Frankfurt am Main: Fischer, 2011, p. 82-86. ______. Peter Altenberg - Le Paysan de Vienne. In: Unheimliche Heimat - Essays zur österreichischen Literatur. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1995, p. 65-86. ______. “Venezianisches Kryptogramm - Hofmannsthals Andreas”. In: Unheimliche Heimat - Essays zur österreichischen Literatur. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1995, p. 61-77. ______. “Eine kleine Traverse - das poetische Werk Ernst Herbecks”. In: Die Beschreibung des Unglücks - zur österreichischen Literatur von Stifter bis Handke. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2012, p. 131-148. ______. Die Beschreibung des Unglücks - zur österreichischen Literatur von Stifter bis Handke. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2012.

AS MUITAS IDEIAS PARA UMA MEDEIA: releituras e reescrituras do mito Zilma Gesser Nunes1 Sarah Fernandes Thaís Fernandes

1 Introdução A permanência do mito e da personagem Medeia, resgatados de eras imemoriais, e o seu legado que se estende até nossos dias podem ser observados nas reproduções em diferentes meios artísticos. O texto basilar de Eurípedes, escrito no século V a.C., na Grécia, foi (re)escrito e (re)lido sob diferentes pontos de vista desde a Antiguidade até o presente. Em Roma, o primeiro resgate conhecido da história da princesa colca foi feito por Ênio, no século III a.C., tendo se desdobrado em muitas outras narrativas. Podemos dizer que quase todos os autores latinos dedicaram algumas linhas ou textos inteiros ao mito. Encontramos menções à Medeia em Ovídio, Sêneca, Virgílio e até em Marcial. Contemporaneamente, a tragédia grega foi relida pelo cinema: em 1969, Pier Paolo Pasolini lança Medea e, quase 20 anos depois, aparece a versão de Lars Von Trier para o mito. O presente texto foi produzido a partir das comunicações apresentadas no Simpósio Temático As muitas ideias para uma Medeia: releituras e reescrituras do mito, ocorrido na X Semana Acadêmica de Letras (UFSC/2016). Selecionamos algumas das possíveis releituras e reescrituras do mito, começando pela versão de Eurípedes, passando pelas narrativas de Sêneca e outros escritores latinos, até chegar a duas interpretações para o cinema. Buscamos mostrar como Medeia foi vista por cada um desses olhares que se voltaram para uma mesma personagem em épocas e contextos tão diferentes.

2 De Eurípedes a Sêneca: para além de Aristóteles com um deus ex machina A figura de Medeia representa, desde Eurípides até Sêneca (e muito além de Sêneca), a mulher destituída da pátria, da família, das suas crenças, que abandona tudo por uma paixão. Muito mais forte do que o abandono que sofre, desponta o ódio por uma rival que ocupará seu lugar. Desde séculos antes de Cristo, a 1

Professora do DLLV/UFSC. E-mail: [email protected]; doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura (UFSC). E-mail: [email protected]; doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (UFSC). E-mail: [email protected].

64

linhagem das Medeias tem sobrevivido com sua sede de vingança incomensurável, ao parceiro traidor. Esse sentimento, desencadeado pela paixão humana, não seria o preceito mais recomendado pelas regras da Arte poética na Grécia. Sêneca, porém, não inventou isso, mas repetiu um padrão inaugurado por Eurípides e criticado por Aristóteles. Medeia, no primeiro episódio do drama já aparece representando seu infortúnio, que é humano e pessoal, contrário aos preceitos que definem o herói como aquele que se sacrifica pela coletividade. Segundo Cardoso (1989, p. 49), “Enquanto na tragédia helênica, via de regra, o homem se dobra ao destino, submetendo-se à vontade superior – daí a essência do herói trágico grego – [...] na tragédia latina o herói tem liberdade de escolher”. Apesar de espoliada, Medeia não fraqueja. Comparada em força ao poder viril, ela é digna de temor pelos que a rodeiam. Créon, o rei de Corinto, esbraveja: “[...] tu, tu, inspiradora de odiosos crimes; tu que em tuas ações reúnes uma malvadez feminina a uma força viril e a uma completa inconsciência, vai embora, liberta de tua presença o meu reino, leva contigo tuas ervas letíferas, tira de meus súditos o medo” (1999, p. 88). O tom de Medeia também é exaltado e, em contrapartida, temos a figura de sua Ama, que imbuída de um espírito estoico, tenta aplacar a sede de vingança da feiticeira. Para dar essa conformidade filosófica ao texto, Sêneca constrói uma figura pautada em uma linguagem repleta de máximas moralistas e em tom sentencioso. Diz a ama “Eu te suplico: tua secreta dor deve chorar no âmago do coração” (1999, p. 83). Apela, do seu lugar afetuoso de nutriz, “Ó criatura que eu nutri, susta teu ímpeto insensato: o silêncio poderá salvar-te” (1999, p. 84). Apela para seu instinto “Tu és mãe” (1999, p. 85). Adverte: “ninguém pode impunemente atacar os poderosos” (1999, p. 93), porém nada tem o poder de dissimular toda a ira que domina o coração traído de Medeia. Fica o registro da filosofia estoica pretendida. A tragédia, como representação de uma ação grave, segue seu curso. O que a distancia, sobremaneira, do modelo grego é seu andamento, a forma estática como é registrada, com um tom moroso e pouco próprio à ação. Muito comentada pelos críticos nesse quesito, há uma concordância no aspecto de que a peça de Sêneca deva ter sido escrita para ser lida e não representada. Até mesmo porque, para encenar o ato mais trágico da peça (a morte dos filhos de Jáson e Medeia), os recursos não dariam conta de outro preceito da tragédia grega: a verossimilhança. Como tornar a cena do assassinato de duas crianças convincente, além de comovente e inspiradora de pena e temor? Quanto à construção do epílogo, Sêneca, da mesma forma que Eurípides, distancia-se da concepção aristotélica de tragédia. O surgimento de um mecanismo externo para o desfecho da tragédia, não decorrente das próprias ações que se passam ao longo da tragédia, destoa dos preceitos clássicos. A solução inesperada, proporcionada por um deus ex machina com o propósito de salvar a neta do Sol, não é digna de uma heroína.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

65

E assim se dá o epílogo da tragédia que, contrariando, mais uma vez os preceitos aristotélicos, não decorre da própria ação representada no drama, mas de um recurso externo. Nossa heroína, afinal, era uma princesa bárbara e faltou a ela a racionalidade e o equilíbrio do herói trágico.

3 As medeias brasileiras: uma análise das Medeias latinas, de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior O presente trabalho tem como objetivo apresentar a obra Medeias latinas (2014), um corpus literário das treze versões latinas conhecidas a respeito do mito de Medeia. Por conta do espaço de que dispomos aqui, selecionamos apenas cinco textos entre os mitos compilados, intentando apontar de que forma Medeia foi descrita pelos diferentes autores e como o tradutor e organizador da obra, Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, traduziu essas passagens. Baseamos nossa reflexão na apresentação do livro, na qual Gouvêa Júnior (2014) aponta que o mito de Medeia, como qualquer mito, possui variantes entre suas versões e que, dependendo do contexto histórico-social em que cada autor escreveu, certas características da personagem são ressaltadas ou apagadas. A primeira versão que selecionamos é a mais antiga menção à Medeia na literatura latina: Medeia desterrada, de Ênio. A tragédia foi escrita ao final do século III a.C. e apenas poucos versos chegaram até nós. Na fala da Ama, estão “[...] os primeiros atributos que acompanhariam a trajetória literária de Medeia: ela era, pois, errans e saucia” (GOUVÊA JÚNIOR, 2014, p. 9): “AMA: Não sairia de casa a errar minha senhora,/ Medeia, por um sevo amor ferida na alma”2, em latim, (GOUVÊA JÚNIOR, 2014, p. 41, grifos no original).3 Escritas no século I a.C., as Fábulas de Higino descrevem, com certo detalhamento, feitiços de Medeia. A partir dessa obra, a condição de feiticeira (ou maga) da princesa colca se espalha pela tradição literária latina, chegando ao seu ápice em Dracôncio. Higino também se refere a Medeia como exul (desterrada), retomando o título da tragédia de Ênio, porém adiciona outra camada a esse significado, ao utilizar o adjetivo aduena: estrangeira. Nas palavras de Gouvêa Júnior (2014, p. 10), a adição de aduena “era o refinamento da tipificação da exilada que, estando em terra alheia, recebia o tratamento guardado aos forasteiros.”, o que pode ser comprovado nos seguintes versos: “ela foi exprobrada em razão de um homem tão forte, tão formoso e/ nobre ter uma esposa feiticeira e estrangeira.”4 (GOUVÊA JÚNIOR, 2014, p. 79). Medeia foi uma personagem recorrente nos textos escritos por Ovídio, poeta da segunda metade do século I a.C.. Nas Metamorfoses, por exemplo, há diversas ocorrências do vocábulo bárbara para descrevê-la. Além disso, Ovídio cria a 2 3 4

Os versos em latim serão apresentados em nota de rodapé. “Nam numquam era errans mea domo efferret pedem/ Medea animo aegro amore saueo saucia” (GOUVÊA JÚNIOR, 2014, p. 40). Todas as traduções aqui apresentadas são de Gouvêa Júnior. “obiciebatur ei hominem tam fortem ac formosum ac nobilem uxorem/ aduenam atque ueneficam habere” (GOUVÊA JÚNIOR, 2014, p. 78).

66

imagem de Medeia como uma bacante, sacerdotisas do deus Baco, a qual será repetida por outros autores: “Desgrenhada, Medeia, /qual bacante, rodeia os altares acesos”5 (GOUVÊA JÚNIOR, 2014, p. 109). Uma das versões mais famosas do mito é a tragédia Medeia, escrita por Sêneca (4 a.C. – 65). Adepto do estoicismo, o autor ressalta a insanidade e a loucura da personagem, causadas pelo seu amor por Jasão, e o seu sentimento de vingança, quando abandonada, demonstrando assim, como as paixões podem desviar uma pessoa do caminho da felicidade. Medeia é apresentada como uma mulher extremamente perigosa e que causa medo, como nos versos: “Incerta e louca, pela insânia sou levada/ a toda parte: onde vingar-me eu poderei?”6 (GOUVÊA JÚNIOR, 2014, p. 131). A última aparição de Medeia na literatura latina encontra-se no conjunto de poemas Romulea, escrito por Dracôncio, poeta africano que viveu entre 455 e 505. Nessa obra, há um poema sobre Medeia, a maga furiosa. Aqui, os poderes mágicos da personagem são exaltados, conforme aponta Gouvêa Júnior: “Depois do início da dissolução do poder imperial em Roma, os poderes mágicos de Medeia foram ainda outra vez relatados, embora potencializados pela já cristã intolerância contrária ao paganismo [...].” (2014, p. 13). Na tradução de Gouvêa Júnior (2014) desse poema, há treze ocorrências do vocábulo “maga” (em latim, dez ocorrências de sacerdos e três de maga). A repetição desse vocábulo denota a importância que o autor dá a esse aspecto da personalidade de Medeia. Através das versões e exemplos apresentados, buscamos mostrar como um mito se constrói na história de um povo e o tratamento que diferentes autores, tendo vivido em tempos distintos, dão a uma mesma personagem. Entre os mitos que selecionamos, Medeia é descrita como uma bela princesa estrangeira, desterrada por conta de um amor insano e capaz de usar seus conhecimentos de magia e feitiçaria para cometer os piores crimes.

4 As representações cinematográficas do mito de Medeia Dentre as várias representações do mito de Medeia, destacamos aqui duas traduções intersemióticas, versões cinematográficas que, ainda que baseadas na mesma peça, de Eurípedes, diferem muito visualmente entre si: a do dinamarquês Lars von Trier, de 1988, e a do italiano Pier Paolo Pasolini, de 1969, ambas intituladas simplesmente Medeia. Ao observarmos as escolhas estéticas de cada diretor, algumas características chamam a atenção por apresentarem uma personalidade particular da personagem Medeia. Apoiados pela ideia de Diniz, quando afirma que o diretor pode querer passar uma mensagem atrelada a signos que “quando combinados, podem criar estruturas significantes de uma outra ordem [...]” (1998, p. 315), analisaremos algumas dessas características. O filme de von Trier é um filme de poucos diálogos. O isolamento e a solidão da personagem são transmitidos menos pela fala e muito mais pela sua caracterização. 5 6

“passis Medea capillis/ bacchantum ritu flagrantis circuit aras” (GOUVÊA JÚNIOR, 2014, p. 108). “incerta uecors mente non sana feror/ partes in omnes; unde me ulcisci queam”? (GOUVÊA JÚNIOR, 2014, p. 130).

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

67

Para mostrar uma Medeia séria, sóbria, ele faz uso, em primeiro lugar, do figurino. Sempre de roupas pretas, que deixam a mostra apenas suas mãos e seu rosto, ela se torna uma personagem pouco carismática e bastante sisuda. Extremamente modesta, vai passar quase todo o filme de cabelos completamente cobertos. Aliada a sua caracterização está sua fama de feiticeira, que amedronta quem a conhece. Isso, de certa forma, reforça seu isolamento e von Trier explora ainda mais essa sensação de solidão completa quando decide que sua única amiga no exílio nunca apareceria na tela: o espectador vai apenas ouvir sua voz. A sugestão parece ser a de que Medeia está realmente perturbada, e talvez sua aliada esteja apenas dentro de sua cabeça. Desde o início do filme, o diretor trabalha com a ideia de que o espectador sabe qual é o final dessa história e constantemente insinua que a inquietação da personagem está crescendo. Para intensificar a angústia do exílio de Medeia, von Trier vale-se das cores do filme, predominantemente cinza e escuro. Tanto que, em um determinado momento, ele parece brincar um pouco com o espectador através desses elementos visuais. Se desde o início do filme ele nos apresenta essa atmosfera sombria, por alguns instantes a história muda e parece se encaminhar para um possível final feliz, logo após uma conversa de Medeia com Jasão. Nesse momento, ela reaparece em cena e vemos um arco-íris. O filme fica mais iluminado. Em pouco tempo, porém, essa possibilidade se desfaz. Então Medeia planeja sua vingança, friamente calculada, levando o espectador à angústia quando pede a ajuda de seu filho mais velho para enforcar o irmão mais novo. Pasolini, por sua vez, explora o mito de modo muito distinto. Quem interpreta sua visão da princesa colca é a cantora erudita Maria Callas, em seu único papel fora do âmbito da ópera. A caracterização de sua Medeia é completamente diferente: temos aqui uma personagem maquiada, de roupas extravagantes, uma bruxa misteriosa porém sedutora. Além disso, durante todo o filme Medeia nunca está completamente só (como a personagem de von Trier), pois suas criadas nunca a deixam. Essa caracterização parece indicar uma personagem muito mais passional, assim como sua vingança que é demonstrada de uma forma muito menos fria em comparação com a obra de von Trier. Outro indício de uma Medeia um pouco mais humana é que, nessa tradução, ao contrário do que acontece com von Trier, até o fim ela esconde dos filhos qual será seu trágico destino. As traduções de Medeia para o cinema deixam muito claro que esse mito permite infinitas releituras. Por ser uma personagem que pode ser interpretada de tantas maneiras, cada tradução traz um frescor que faz com que nunca assistamos a mesma história: sempre nos é apresentado um lado novo de sua personalidade, consequentemente sua história nunca se esgota. As infinitas possibilidades de leitura desse mito garantem sua presença na história dos clássicos que, como Calvino (1993, p.11) lembra, “nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.

68

5 Considerações finais A proposta do presente texto foi de trazer ao leitor algumas das releituras do mito de Medeia, através das diferentes perspectivas e pontos de vista expressos pelas autoras. Em nossa reflexão, abarcamos tanto traduções do mito para uma mesma língua (as várias versões escritas em latim) como para outras línguas (do grego de Eurípedes para o latim, do latim para o português) e, ainda, para outras mídias (as releituras cinematográficas de Pasolini e von Trier). Esperamos que nosso trabalho instigue os leitores à busca de outras versões e reescrituras de Medeia. Por ser um clássico, cada vez que esse mito é lido novas reflexões e questionamentos são suscitados, afinal, como bem disse Calvino (1993, p. 11), “[...] toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira”.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

69

REFERÊNCIAS ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Trad. Roberto de Oliveira Brandão. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1988. CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989. DINIZ, Thaís Flores Nogueira. Tradução intersemiótica: do texto para a tela. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 3, p. 313-338, set. 1998. EURÍPIDES. Medeia; Hipólito. As troianas. Tradução do grego, apresentação e notas, Mário da Gama Kury. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. GOUVÊA JÚNIOR, Márcio Meirelles (Org.). Medeias latinas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. Trad. Márcio Meirelles Gouvêa Júnior. MEDEIA. Direção Pier Paolo Pasolini. Alemanha/ França/ Itália: Franco Rossellini, 1969. DVD (118 min.). MEDEIA. Direção Lars von Trier. Dinamarca: Danmarks Radio, 1988. DVD (77 min.). SENECA. Medeia. In: Obras. Trad. André Bartholomeu. São Paulo: Pontes Editores, 1991.

ASPECTOS DA PRODUÇÃO DE LEGENDAS FUNCIONAIS Markus Johannes Weininger1 Sandro Rogério Silva de Carvalho

1 Introdução O campo da tradução audiovisual (TAV) como campo de pesquisa e análise cresceu rapidamente na esteira da expansão e diversificação da área de estudos da tradução ao longo das últimas duas décadas. Delabatista (1989 e 1990), Gambier e Gottlieb (2001) e Díaz-Cintas (2004) podem ser citadas como publicações de referência no começo da teorização sobre a TAV em geral e a legendagem em especial. O modelo da semiótica fílmica de Delabatista aponta para as quatro principais formas de veiculação de teores relevantes na tela: (1) conteúdos acústicos linguísticos (diálogos, voz de narradores etc.); (2) conteúdos acústicos não linguísticos (efeitos sonoros homo- e heterodiegéticos, música etc.; (3) conteúdos visuais linguísticos (placas e outras informações escritas no vídeo) e (4) conteúdos visuais não linguísticos (todo o resto da ação visível). A legendagem a princípio teria que dar conta do primeiro e terceiro itens e concorre com o quarto, posto que a legenda também é apresentada visualmente (por isso gerando as conhecidas restrições de tempo e espaço da apresentação de legendas). No contexto da legendagem de acessibilidade para o público surdo ou com deficiência auditiva, o segundo item acima também precisa ser contemplado nas legendas, aumentando o conflito com o quarto. Nesse texto, apresentamos algumas sugestões baseados na abordagem funcionalista na área de estudos da tradução (como resumida por NORD, 1997) com exemplos que conectam a teoria da legendagem com a prática. Uma legenda funcional precisa, ao mesmo tempo, contemplar os aspectos técnicos causados pelas restrições de tempo e espaço (Seção 2) e os aspectos da semiótica visual (Seção 3). Embora a teoria e a prática da legendagem tenham avançado nos últimos anos no Brasil (talvez devido a uma troca de geração dos profissionais envolvidos ou ao avanço da formação acadêmica na área de estudos da tradução), ainda é comum encontrar exemplos de legendagem que não respeitam essas duas exigências.

1

Professor do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras (DLLE/UFSC) e do Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução (PGET/UFSC). E-mail: [email protected]; graduando do curso de Letras, Língua Alemã e Literaturas na UFSC e Bacharel em Ciências da Computação pela mesma universidade. E-mail: [email protected]

72

2 Aspectos técnicos A legenda pode ser vista como um texto escrito produzido para dar ao espectador acesso ao conteúdo da mídia audiovisual, seja por desconhecimento da língua utilizada, seja por restrição total ou parcial ao canal de áudio. O espectador, porém, almeja ver e ouvir o conteúdo, e não lê-lo. Sendo assim, fica a legenda sujeita a assumir um papel secundário em relação à mídia audiovisual, gerando restrições em relação ao espaço e ao tempo.

2.1 Considerações espaciais Em relação ao espaço, uma legenda deve assumir um compromisso entre a legibilidade e a discrição. Ela deve ser vista, porém não se destacar perante a imagem. Assim sendo, seu espaço é limitado e sua confecção respeita normas convencionadas ou demandadas pelo cliente, tendo em vista o público ao qual se destina. Convencionou-se utilizar, no máximo, duas linhas na parte inferior da imagem; embora, em festivais de filmes, a legenda apareça fora da imagem, visando preservar ao máximo a fotografia da mídia. Tais convenções tornaram-se mais flexíveis com a popularização de mídias digitais, podendo-se encontrar hoje legendas de três ou mais linhas. Normalmente deslocam-se as legendas para a parte superior da tela quando, na parte inferior, ou acontece algo importante, ou o fundo é tão claro que torna as legendas ilegíveis ou são exibidas informações importantes (DÍAZ-CINTAS; REMAEL, 2007). Em geral, as legendas são horizontais, mas é possível encontrá-las dispostas verticalmente em algumas línguas, como em japonês, por exemplo. Por conta de distorções nas margens da tela de televisores, convencionou-se respeitar uma borda de 10% de sua largura. O alinhamento varia entre centralizado e à esquerda. Centralizado para manter os olhos no centro da tela, e alinhado à esquerda para fazer constante o ponto de início de leitura. Quando é possível que toda a legenda possa ser mostrada em uma única linha, há aqueles que preferem separá-las em duas, pois linhas curtas exigiriam menos esforço de leitura. Por outro lado, uma única linha evitaria o salto entre linhas. A posição da linha única também é passível de escolha. Ao ocupar a posição de cima, mantém constante a altura do início da leitura, enquanto que, na de baixo, deixa mais área de imagem visível. A quantidade de caracteres por linha depende do tamanho da imagem e da fonte, variando entre 32 e 40 caracteres por linha (cpl) em telas widescreen (16 por 9) e entre 30 e 35, em telas com tamanho padrão (4 por 3) (CARVALHO, 2005). Recomenda-se o uso de fontes sem serifa, tais como Arial e Helvetica (DÍASCINTAS; REMAEL, 2007).

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

73

2.2 Considerações temporais O tempo em que a legenda fica visível na tela, ou seja, quando ela aparece e quando desaparece, leva em conta três fatores principais: a sincronia com os canais de áudio e vídeo, os cortes entre as cenas e a velocidade presumida de leitura do espectador. De modo geral pode-se utilizar a regra dos 6 segundos, onde este seria o tempo necessário para que o espectador leia 2 linhas de 40 cpl. Tal regra é utilizada de modo proporcional, respeitando-se o tempo mínimo de permanência de um segundo para que o espectador perceba a presença da legenda. No caso de legenda de diálogos, deve haver uma sincronia com o áudio, ou seja, a legenda aparece quando começa a elocução e desaparece quando termina a elocução. Alguns defendem que a legenda deve preceder o áudio para que dê tempo de ler antes de terminada a elocução. Outros são da opinião de que o áudio deve preceder a legenda, argumentando que o espectador deve ouvir antes de perceber a legenda. Normalmente o desaparecimento se estende para além do fim da elocução quando não se tem outra depois, mas não mais que um segundo (CARVALHO, 2005). O mesmo vale para a legenda de elementos visuais, porém a sincronia será ditada pelo aparecimento e desaparecimento do elemento na tela. É recomendável que a legenda não se estenda para além de um corte de cena, pois pode confundir o espectador e sugerir que a legenda esteja dessincronizada. A pressuposta velocidade de leitura é medida em caracteres por segundo (cps) e varia de acordo com a pressuposta velocidade média do público-alvo do material audiovisual. Como regra geral, se utiliza 15 cps no cinema e entre 10 e 16 cps em VHS, TV por assinatura e DVDs (CARVALHO, 2005). Alguns fatores concernentes às considerações linguísticas influenciam na velocidade de leitura, tais como a complexidade sintática e semântica, bem como a quebra de sintagmas entre linhas na mesma legenda (segmentação interna) ou entre legendas consecutivas (segmentação externa).

2.3 Visualizando as restrições No intuito de demonstrar visualmente as restrições acima expostas, usou-se gráficos bidimensionais, onde o eixo horizontal representa o tempo da legenda em segundos e o eixo vertical, seu tamanho em número de caracteres. Utilizou-se, como exemplo, um trecho de 9 segundos do curta alemão “500g Alltag” (500g de Realidade) (BUECHLER; HAEFELE, 2010). Demonstrou-se a confecção da legenda desde a transcrição em alemão (Figura 1) até a legenda final em português (Figura 2). Foi considerado um limite espacial de 40 caracteres por linha (cpl) e uma velocidade de leitura de 18 caracteres por segundo (cps).

74

Figura 1 - Transcrição inicial em alemão

Fonte: Elaborada pelos autores.

A Figura 1 mostra a transcrição em alemão, onde a linha vertical cheia (8,0) representa o tempo de elocução e a tracejada (7,7), o tempo necessário para se ler a transcrição, considerando a velocidade de 18 cps. Note que, na velocidade considerada, seria possível ler a transcrição (7,7) dentro do tempo de elocução (8,0). Ainda na Figura 1, a linha horizontal cheia (80) representa o limite de caracteres considerando um máximo de duas linhas de 40 cpl, enquanto a tracejada (138), a quantidade de caracteres na transcrição. Note que a quantidade de caracteres na transcrição (138) está muito além do limite (80) e que a transcrição faz uso de três linhas de texto. Figura 2 - Legenda final em português

Fonte: Elaborada pelos autores.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

75

A Figura 2 mostra a legenda final em português composta de duas legendas de duas linhas de texto, onde as linhas verticais cheias (3,0, 3,6 e 8,0) representam o tempo de início e fim de cada elocução, enquanto as tracejadas (2,8 e 7,0), o tempo necessário para se ler cada uma das legendas, considerando a velocidade de 18 cps. Note que, com a velocidade considerada, seria possível ler as legendas (2,8 e 7,0) dentro do tempo de elocução (3,0 e 8,0) e que, ao separar a legenda em duas elocuções, surgiu um intervalo de 0,6 segundos (entre 3,0 e 3,6) que é a pausa da fala da personagem entre as elocuções. Ainda na Figura 2, a linha horizontal cheia (80) representa o limite de caracteres considerando um máximo de duas linhas de 40 cpl, enquanto as tracejadas (50 e 60), a quantidade de caracteres em cada legenda. Note que a quantidade de caracteres em cada legenda (50 e 60) não ultrapassa o limite (80). Pretendeu-se mostrar nesta seção que o cumprimento das restrições espaciais e temporais não são tão somente exigências burocráticas e estéticas, mas sim, importantes para a confecção de legendas funcionais que garantam o entretenimento ou a aprendizagem do espectador.

3 Análise funcional da semiótica visual Conforme mostrado, a tradução audiovisual sofre diversas restrições técnicas, em termos de espaço e tempo limitados para permitir uma legenda funcional, ou seja, que permita que o espectador ainda consiga apreciar o que aparece na tela e não fique preso apenas à leitura da legenda. Porém, há outros elementos que necessitam ser contemplados na produção do texto da legenda ou restrições semióticas: a legenda escrita não deve apenas reproduzir os elementos linguísticos acústicos e visuais mencionados por Delabatista (1990), mas precisa fornecer pistas que permitam ao espectador acompanhar e compreender a ação na tela e não pode entrar em contradição ou conflito com o restante das informações na tela. Isso excede e transcende claramente o modelo um tanto simplificado das quatro camadas semióticas, ou melhor, o quarto item de Delabatista precisa ser subdividido. Por um lado temos, p. ex., a impossibilidade de explicitar questões interculturais relevantes no contexto de partida, porém, desconhecidas das audiências de chegada (não há como adicionar as informações necessárias pelo motivo da limitação de tempo e espaço da legenda analisado acima, nem há como usar outras estratégias de explicitação de informações implícitas relevantes normalmente usadas na tradução, como, p. ex., notas de rodapé). Além disso, há marcas culturais como dialetos, ou aspectos como socioletos, idioletos, que podem ser constitutivos para personagens etc., e essas informações podem ser vitais para compreender o enredo. Um exemplo de um filme relativamente conhecido onde exatamente isso ocorre é Good Bye Lenin, em que o dialeto das pessoas marca claramente quem é da antiga Alemanha oriental ou ocidental, o que é determinante para acompanhar as alusões críticas e ironias onipresentes na trama. Ao mesmo tempo, as legendas para português desse filme não marcaram claramente o jargão socialista estereotipado na tradução. Portanto, muitas vezes, o espectador da versão legendada sente que está perdendo algo, que o filme é “meio longo”, ou que as legendas

76

não estão “fechando” com aspectos que ele percebe por outro canal no vídeo (atitudes de protagonistas, emoções perceptíveis pela linguagem corporal ou pela prosódia etc.). Assim, a presente contribuição propõe a análise da progressão da semiótica visual como ferramenta interessante para produzir uma legenda funcional, no sentido de Nord (1997) que estabelece como principal exigência para uma tradução a funcionalidade do texto de chegada para o público alvo. Para essa análise, o primeiro passo é reconhecer a complexidade do texto fílmico, que transcende a amplamente discutida multimodalidade (visual e auditivo). Além de multimodal, o texto audiovisual é polissemiótico. Há vários (sub-) sistemas de criação de significação interagindo o tempo todo. Entre eles, estão a prosódia e as já mencionadas marcas dialetais, socioletais, idioletais, música etc., no canal acústico e a progressão visual da ação na sua montagem com cortes, enquadramentos etc.; toda linguagem não verbal corporal, expressão facial, elementos dêiticos físicos, acenos, gestos e equivalentes e novamente aspectos sociais, econômicos, históricos etc., instanciados no texto fílmico através de figurino, adereços, acessórios e quaisquer objetos e locações mostrados na tela. O espectador do texto multimodal polissemiótico dentro do contexto de partida processa todas essas nuanças simultaneamente e sem esforço. Na versão traduzida, deve ocorrer o mesmo, na medida do possível. Neste sentido, Weininger (2014) analisa a importância de aspectos prosódicos e sociolinguísticos na interpretação simultânea. Para o espectador da versão legendada, vários desses elementos podem não ser familiares, ser desconhecidos ou até fatores que causam estranheza. A legenda textual exibida da tela, então, precisa estar em consonância com as outras camadas polissemióticas do texto fílmico. Se o foco da TAV for excessivamente linguístico, principalmente se o tradutor nem tiver acesso ao filme e tiver que trabalhar apenas com base na transcrição dos diálogos no script ou roteiro do texto (como ainda acontece em alguns casos devido à pressa ou à falta de compreensão por parte dos responsáveis), é evidente que a chance de não haver sincronização entre os diferentes meios semióticos aumenta. Figura 3 - Personagem

Fonte: Buechler e Haefele (2010, 0:49).

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

77

Assim, os elementos linguísticos e não linguísticos visuais e acústicos permitem uma análise relativamente detalhada de quem é a personagem mostrada na Figura 3, e como ela falaria em português. Sem essa análise semiótica visual, as escolhas lexicais da TAV não conseguem produzir um texto consistente com o que o espectador da versão legendada vê. A legenda se torna ou opaca ou distante. O tempo e o custo de processamento cognitivo das legendas aumentam e a experiência de assistir a versão legendada sofre.

4 Considerações finais Foram demonstrados acima dois importantes aspectos que contribuem para a produção de legendas funcionais, através da exposição teórica e exemplos práticos. Outro aspecto importante que não foi abordado aqui é o linguístico, as escolhas lexicais e textuais da tradução, que influencia e é influenciado pelos aqui expostos.

78

REFERÊNCIAS BUECHLER, Eleanor; HAEFELE, Manuel. 500g Alltag. EMH Films. Zürich, 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2016 . CARVALHO, Carolina Alfaro de. A tradução para legendas: dos polissistemas à singularidade do tradutor. Rio de Janeiro, 2005. 160 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 7 ago. 2016. DELABATISTA, Dirk. Translation and mass-communication: film and TV-translation as evidence of cultural dynamics. Leuven : Katholieke Universiteit, 1988. ______. Translation and the mass media. In: BASSNETT, Susan; LEFEVERE, Andre (Ed.). Translation, history and culture. London: Pinter Publishers Ltd, 1990. DÍAZ-CINTAS, Jorge. In search of a theoretical framework for the study of audiovisual translation. In: ORERO, Pilar (Ed.). Topics in audiovisual translation. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2004. DÍAZ-CINTAS, Jorge; REMAEL, Aline. Audiovisual translation: subtitling. Manchester: St. Jerome, 2007. GAMBIER, Yves.; GOTTLIEB, Henrik (Ed.). (Multi) Media translation: concepts, practices, and research. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2001. NORD, Christiane. Translating as a purposeful activity. Manchester: St. Jerome, 1997. WEININGER, Markus J. Análise e aplicação de aspectos sociolinguísticos e prosódicos na interpretação Libras-PB. In: QUADROS, Ronice Müller de; WEININGER, Markus J. (Org.). Estudos da língua brasileira de sinais III. Florianópolis: Insular/ PGET/UFSC, 2014, p. 71-98.

ENTRE O NORMAL E O PATOLÓGICO: contribuições da neurolinguística enunciativo-discursiva Ana Paula Santana1 Karoline Pimentel dos Santos2 Daniel De Martino Ucedo3 Larissa Picinato Mazuchelli4 Aline Olin Goulart Darde5

1 Introdução Este texto é resultante de um simpósio que teve como objetivo reunir pesquisas norteadas pela Neurolinguística Enunciativo-Discursiva e cujo eixo de discussão centra-se na articulação dos aspectos referentes à linguagem na normalidade e na patologia. Incluem-se nestas pesquisas reflexões sobre: (a) a relação entre envelhecimento e categorias clínicas como o chamado Declínio Cognitivo Leve; (b) o conceito de fluência nas patologias; (c) a linguagem na Demência Frontotemporal; d) o conceito de surdez e de surdo nos documentos oficiais. A Neurolinguística Discursiva, inaugurada no Brasil com a tese de doutoramento de Coudry (1986), fundamenta-se em uma concepção de linguagem como atividade humana, como lugar de interação e de interlocução entre sujeitos e uma concepção de cérebro como um Sistema Funcional Complexo (LURIA, 1991), fortemente influenciado pelas condições externas ao sujeito: sua história, sua cultura. A vertente Enunciativa da Neurolinguística Discursiva vincula-se a conceitos bakhtinianos, como dialogia, enunciado, acabamento,6 e de conceitos metodológicos importantes de Vygostky, como a busca pela compreensão dos processos – e não dos produtos – linguístico-cognitivos envolvidos na elaboração discursiva. Assim, a Neurolinguística EnunciativoDiscursiva considera não apenas as relações entre a linguagem e os demais processos cognitivos, mas também as relações entre a linguagem e o contexto histórico e social, subjacentes tanto à produção linguística, quanto à própria cognição. Dessa forma, os 1 2 3 4 5 6

Docente do Programa de Pós-Graduação em Linguística, UFSC. E-mail: [email protected]. Doutoranda, PPGL, UFSC. E-mail: [email protected]. Fonoaudiólogo, UFSC. E-mail: [email protected]. Doutoranda, IEL, UNICAMP. E-mail: [email protected]. Mestranda, PPGL, UFSC. E-mail: [email protected]. Existem inúmeros trabalhos que têm refletido sobre os conceitos Bakhtinianos nos estudos sobre linguagem e cognição. Para retomar alguns dos principais conceitos de Bakhtin na Neurolinguística aqui desenvolvida, sugerimos NovaesPinto (1999), dentre outros. E, claro, os trabalhos do próprio autor. Em especial, Bakhtin (1920-19224/2010, 1929/1995; 1929/2012).

80

estudos respaldados pelos princípios teóricos e metodológicos da Neurolinguística Enunciativo-Discursiva possibilitam evidenciar características do funcionamento linguístico-cognitivo na normalidade e na patologia. Neste simpósio, interessam as discussões acerca das sintomatologias linguísticas, dos limites entre o que é considerado patológico e o que é considerado normal a partir de uma análise dialógica pautada na observação de aspectos relacionados ao sujeito, suas práticas sociais e o contexto sócio-histórico-cultural em que se insere. Para tanto, considera-se aqui o normal não como uma média correlativa a um conceito social, ou como um julgamento de realidade, mas como um julgamento, sobretudo, de valor (CANGUILHEM, 2009), fazendo-se necessário, portanto, despir-se dos postos de observação que uniformizam a relação entre-sujeitos na/para a língua. Nesta perspectiva, as semiologias passam, então, a serem revistas sob este outro olhar que busca não somente pontuar possíveis danos linguísticos, mas, sobretudo, compreender uma nova norma, individual, e o que ainda está em funcionamento na língua (SANTANA, 2001). Assim, tanto o “normal” pode vir a ser evidenciado numa língua em “desordem”, quanto o déficit pode vir a revelar o trabalho do sujeito sobre a construção dos sentidos da linguagem. Ressalta-se ainda que estas questões não se limitam a uma análise fisiológica da linguagem, das relações diretas entre o sujeito e seu “meio”, mas se fundamentam no forte cunho ideológico da língua, atrelando à análise implicações de ordem subjetiva, social, cultural e política.

2 Linguagem e envelhecimento à luz da neurolinguística enunciativo-discursiva7 O poema “O espelho”, de Mia Couto, termina com uma reflexão, para nós essencial, sobre a relação que cada indivíduo estabelece com seu processo de envelhecimento e que nos ajuda a refletir sobre a importância dos aspectos subjetivos para a compreensão da relação entre linguagem e envelhecimento: “a idade é isto: o peso da luz com que nos vemos”. É esse movimento teórico de refletir sobre a relação entre sujeito, língua(gem), normalidade e patologia que a Neurolinguística Enunciativo-Discursiva traz para os estudos sobre envelhecimento. É também essa reflexão que questiona uma prática recorrente de patologização de aspectos linguístico-cognitivos intrínsecos ao “normal” e que muitas vezes leva à adoção de procedimentos terapêuticos realizados através de atividades linguísticas descontextualizadas e fragmentadas que negam ao sujeito um lugar em que possa interagir com e na linguagem (COUDRY, 1986/2001; NOVAES-PINTO, 1992, 1999), promovendo, inclusive, a chamada “morte social” (KLEINMAN, 2009). Quando trazemos essa discussão para o contexto do envelhecimento, evidenciamos análises que partem de critérios biológicos e que não levam em conta os aspectos 7

Este trabalho faz parte de uma pesquisa de doutorado em andamento, intitulada “A linguagem nos processos de envelhecimento normal e patológico na perspectiva da Neurolinguística” (FAPESP: 2015/15515-1), que se insere nos estudos do Grupo de Estudos da Linguagem no Envelhecimento e nas Patologias (GELEP/ Plataforma CNPq – IEL/UNICAMP).

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

81

sociais. Essa questão pode ser melhor evidenciada em diagnósticos como o Declínio Cognitivo Leve (doravante DCL), cujos critérios para diagnóstico são, de maneira geral: queixa de “falta de memória”; comprometimento “objetivo” da memória, diagnosticado por testes; funções cognitivas gerais normais; ausência de alterações das atividades da vida diária; e manifestações “não suficientemente graves” para o diagnóstico de demência (WAGNER; BRANDÃO; PARENTE, 2006). Ao que parece, o sujeito estaria “a meio caminho” entre a normalidade e a patologia (as demências). O fato é que, além dessas manifestações serem subjetivas e difíceis de serem “contabilizadas” e “quantificadas”, já que também dependem da própria relação do sujeito com sua condição, sua vida, e sua história, esses critérios ganham pesos distintos por cada autor que os investiga: há autores que afirmam ser necessário restringir os déficits à memória, enquanto outros afirmam que as funções cognitivas devem estar preservadas (WAGNER; BRANDÃO; PARENTE, 2006). A crítica que se faz aqui é a de que o DCL deve ser compreendido como uma categoria clínica em desenvolvimento e, portanto, deve se fundamentar na busca por melhores descrições, o que inclui reflexão linguística acerca tanto do discurso do idoso, quanto dos conceitos subjacentes a esse quadro, como os de língua, linguagem, memória8, cognição e envelhecimento. Somente a partir dessas reflexões acreditamos ser possível compreender, de fato, o que seria do normal e o que seria do patológico. Essa discussão contribui, como nos têm mostrado os estudos da área, para questionar a criação de “categorias sem sujeitos” (SKLIAR, 2003), que derivam de perspectivas normativas de ciência.

3 O conceito de fluência nas patologias9 Embora a fluência venha sendo utilizada como importante componente clínico, inserida em baterias de testes neuropsicológicos e fonaudiológicos e em classificações afasiológicas, há, historicamente, na literatura, ainda pouca discussão sobre o tema (WINGATE, 1987). Atualmente, as definições de fluência mostram-se pouco claras tanto na normalidade quanto nas patologias de fala e linguagem (SCARPA, 1995; MERLO, 2007) e suas alterações ocorrem em patologias distintas: gagueira, afasia, demências, dentre outras10.

8 9 10

Sugerimos a leitura da tese de Oliveira (2015) que, a partir da articulação dos trabalhos de Luria, Vygostky e Bakhtin, reinterpreta o modo como podemos compreender a relação entre memória e linguagem. Para mais detalhes, consultar:Santos (2015). Novaes-Pinto (2012), fundamentando-se nos estudos da área, caracteriza as afasias como “alterações de linguagem decorrentes de lesões cerebrais focais, como AVCs (derrames), tumores e TCEs (traumas crânio-encefálicos) que, geralmente, comprometem a linguagem em todas as modalidades: oral (produção e compreensão) e escrita (leitura e produção). As afasias podem estar ainda associadas a outras alterações cognitivas, como dificuldades de atenção, de percepção e de memória” (NOVAES-PINTO, 2012, p. 55). A Demência de Alzheimer pode ser caracterizada, de maneira geral, por uma síndrome de início insidioso, degenerativa e progressiva, que provoca alterações cognitivas (nas quais se inclui a linguagem), motoras e comportamentais que interferem nas práticas sociais cotidianas (CAIXETA, 2012). A gagueira, por sua vez, considerada uma patologia de fluência, apresenta-se como um tema em debate, devido às características singulares com que se apresenta a cada sujeito e à sua natureza multifatorial (ANDRADE, 2004, 2010; FRIEDMAN, 2003; CELESTE; ALMEIDA; MARTINS-REIS, 2014).

82

Quando se analisa a fluência a partir da neurolinguística enunciativo-discursiva verifica-se que a subjetividade é o ponto de contato entre as patologias. Por exemplo, há sujeitos com diagnóstico de gagueira que apresentam menos disfluências (típicas ou gagas) que seus interlocutores, sujeitos considerados “normais”, e que incluem o próprio avaliador terapeuta. Há sujeitos com afasia, a despeito das características esperadas nas tradicionais categorias “fluente” e “não fluente”, que podem exibir uma fala sintática e textualmente articulada, marcada, contudo, por repetições de sons e parte de palavras e bloqueios, característicos da gagueira. Já na Demência Alzheimer, cuja hipótese diagnóstica é composta pelo mau desempenho apresentado no Teste de Fluência Verbal (TFV), encontra-se sujeitos que apresentam fluência dialógica preservada, na medida em que trabalham para a manutenção do seu fluxo enunciativo, bem como completam colaborativamente a (dis)fluência do outro. A partir dessas considerações, conclui-se que a noção de fluência em cada uma das patologias abordadas mostra-se superficial e, portanto, frágil. Isto porque, ao se desconsiderar o sujeito e as suas condições de produção de fala das quais a fluência emerge, desconsidera-se o caráter heterogêneo da própria fluência e a natureza social da língua. Dito de outra forma, tanto em sujeitos normais quanto no contexto da patologia, a fluência e disfluência oscilam e se entrecruzam nos momentos de fala, não podendo ser engessadas em estados permanentes a despeito dos sujeitos e de suas interações sociais. Neste sentido, a análise da fluência, pautada num viés dialógico, contribui tanto para uma melhor compreensão do funcionamento da linguagem nas patologias, como também para reflexão dos limites e dos usos do conceito de fluência na avaliação e terapia clínica.

4 A linguagem na demência frontotemporal: uma análise enunciativo-discursiva Segundo a World Health Organization (2012), a Demência Frontotemporal (doravante DFT) é a quarta demência mais frequente no mundo. O caráter degenerativo-cognitivo desta patologia implica um progressivo dano a diferentes aspectos da linguagem, com a ocorrência de repetição (palilalia, ecolalia), amimia e estereotipia e, num estágio final, mutismo11 (CAIXETA, 2010). Há, contudo, poucos estudos que abordem a linguagem na DFT sob uma perspectiva dialógica. A análise da repetição na DFT, por exemplo, quando realizada a partir do viés dialógico, evidencia que o discurso, longe de se configurar como um déficit linguístico – uma mera réplica – é o resultado do trabalho do sujeito sobre a língua para se fazer dizer, caracterizando eventos de especularidade (LEMOS, 1986). Em outras

11

Entende-se por palilalia a repetição que o sujeito faz de sua própria fala e a ecolalia, a repetição que o sujeito faz da fala do outro. A estereotipia diz respeito ao uso de termo(s) “coringa(s)”, desapropriado(s) de um significado próprio, utilizado(s) nas várias situações em que há dificuldade verbal. Já a amimia se refere à ausência de expressão facial, importante dispositivo não verbal para a interação dialógica. O mutismo, por sua vez, caracteriza-se pela ausência da fala (CAIXETA, 2010).

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

83

palavras, o sujeito demonstra realizar seu intuito discursivo12 (cf. BAKHTIN, 1995) a partir do trabalho de “seleção” e “recorte” do enunciado do outro. Um outro ponto importante sobre a deteriorização cognitiva é que, com a perda da linguagem, observa-se uma interrrelação entre as semioses verbal e não verbal (MORATO, 2008). Com o aumento das dificuldades linguísticas, o sujeito passa a se utilizar mais da gestualidade para a manutenção do fluxo dialógico, sem, contudo, deixar de exercer sua ação colaborativa na construção dos sentidos. Desta maneira, conclui-se que as características semiológicas da DFT, como a repetição, quando analisadas no contexto dialógico, podem redirecionar as avaliações e intervenções terapêuticas na DFT. Isto porque, para além da constatação de ocorrências linguísticas apontadas como déficits na literatura, a análise dialógica pode trazer luz ao modo de funcionamento linguístico (SANTANA; SANTOS, 2015), evidenciando, assim, as estratégias do sujeito com DFT frente à patologia.

5 Sujeito surdo: a produção do normal e patológico no estatuto da pessoa com deficiência No contexto da surdez as concepções de normalidade e patologia são ideologicamente marcadas. Desta forma, os documentos oficiais também possuem um determinado sentido do que seja o sujeito surdo, a surdez e a deficiência. Tais concepções apresentam-se entremeadas, dentre outros aspectos, pela imagem social que as comunidades surdas e ouvintes atribuem à língua brasileira de sinais, à identidade surda, à cultura surda. Dessa forma, entende-se que a surdez é uma invenção construída a partir de vários olhares: médico, clínico, religioso, educacional, social, cultural, antropológico. Cada uma dessas invenções produz discursos distintos e contrastantes sobre o sujeito surdo, o que pode ser observado no Estatuto da Pessoa com Deficiência. O Estatuto da Pessoa com deficiência – Lei brasileira de Inclusão nº 13.146/2015 –, elaborado há mais de uma década com ampla participação social, é um dos mais importantes documentos de emancipação civil e social das pessoas com deficiência, destinado a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, visando sua inclusão social e a promoção da cidadania (BRASIL, 2013). A partir do conceito de normal e patológico acerca dos sujeitos surdos produzida por tal estatuto, levando-se em consideração um conjunto de discursos e práticas, educacionais e clínicas, que vem sendo difundidos nas últimas décadas, vê-se que, embora a surdez busque ser, em um primeiro momento, entendida de um lugar da “diferença”, quando ela aparece no documento, está integrada à discussão da “deficiência”, afinal, este é o público-alvo do Estatuto. 12

O conceito intuito discursivo, também conhecido como querer-dizer, na obra de Bakhtin (1995), deve ser compreendido em relação às definições de enunciado, acabamento e conclusibilidade. De maneira geral, percebemos o que o locutor quer dizer e é em comparação a esse intuito discursivo que daremos o acabamento do enunciado.

84

Se a deficiência é compreendida a partir do olhar clínico, como um “desvio da norma”, que precisa de adaptações e recursos de acessibilidade para ser “corrigida”, a surdez, por sua vez, acaba por carregar essa condição. Dessa forma, há uma contradição. Os sujeitos surdos sob o olhar sociocultural não necessitam de adaptações ou recursos de acessibilidade como indica o documento, mas sim serem compreendidos como sujeitos constituídos dentro de uma cultura. Trata-se então, de uma de uma diferença linguística (LOPES, 2007). Nesse sentido, o Estatuto da Pessoa com deficiência, apesar de buscar contemplar as especificidades linguísticas e culturais do surdo, ainda revela e perpetua em seu discurso um conjunto de contrastes binários como surdos/deficientes auditivos; surdo/deficiência; surdo/educação especial; surdez/reeducação; surdez/normalização, evidenciando uma outra bipolaridade: normal/anormal, saúde/patologia, ouvinte/surdo, maioria/minoria, oralidade/gestualidade (SCKLIAR, 2012). Desta forma, os discursos que circulam sobre o sujeito surdo, como nos mostra o estatuto, ainda são atravessados pela ideia de norma e patologia travestidos nos conceitos de “inclusão” e “língua de sinais”.

6 Considerações finais As discussões apresentadas trouxeram reflexões acerca da relação entre normalidade e patologia a partir de uma perspectiva sócio-histórica. Fundamentados teórica e metodologicamente na Neurolinguística Enunciativo-Discursiva, buscamos destacar que realizar uma análise linguística levando em conta aspectos subjetivos, ideológicos e socioculturais pode trazer implicações para a discussão sobre normalidade e patologia. Dito de outra forma, longe de se partir de uma visão dicotômica (normal x patológico; doente x doença), busca-se entender a constituição dos sujeitos e de seus sintomas como resultantes da heterogeneidade de suas práticas sociais.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

85

REFERÊNCIAS ANDRADE, C. R. F. Abordagens neurolinguística e motora da gagueira. In: FERNANDES, F. D. M.; MENDES, B. C. A.; NAVAS, A. L. G. P. (Org.). Tratado de fonoaudiologia. 2. ed. São Paulo: Roca, 2010. BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010. ______. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da Criação Verbal. São Paulo, SP: Martins Fontes. 1995. ______. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, SP: Hucitec Editora, 2012. BRASIL, 2015. Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/2015. CAIXETA, L. Demências do tipo não Alzheimer: demências focais frontotemporais. Artmed: Porto Alegre, 2010. ______. Doença de Alzheimer. Porto Alegre: Artmed, 2012 CELESTE, L. C.; ALMEIDA, A.; MARTINS-REIS, V. O. A autoavaliação de pessoas com gagueira em relação à expressão de atitudes. Distúrbios da Comunicação, v. 26, n. 1, 2014. COUDRY, M. I. H. Diário de Narciso. São Paulo: Martins Fontes, 2001. COUTO, M. Espelho. Idades, Cidades, Divindades. Lisboa: Editora Leya Portugal, 2015. FRIEDMAN, S. A construção do personagem bom falante. São Paulo: Summus Editorial, 1993. KLEINMAN, A. Global mental health: a failure of humanity. Lancet, 374, p. 603604, 2009. LEMOS C. T. G. A sintaxe no espelho. Cadernos de Estudos Linguísticos (UNICAMP), Campinas, n. 10, p. 5-15, 1986. LOPES, M. C. Surdez e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. LURIA, A. Curso de Psicologia Geral. Rio de Janeiro, RJ: Brasileira, 1991.

86

MORATO, E. M. O caráter sociocognitivo da metaforicidade: contribuições do estudo do tratamento de expressões formulaicas por pessoas com afasia e com Doença de Alzheimer. Rev. de Estudos da Linguagem, v. 16, n. 1, p. 157-177, 2008. NOVAES-PINTO, R. C. Agramatismo: uma contribuição para o estudo do processamento normal da linguagem. Campinas, 1992. Dissertação (Mestrado) – IEL/ UNICAMP. ______. A contribuição do estudo discursivo para uma análise critica das categorias clínicas. Campinas, 1999. Tese (doutorado) – IEL/UNICAMP. ______. Cérebro, linguagem e funcionamento cognitivo na perspectiva sócio-histórico-cultural: inferências a partir do estudo das afasias. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 47, n. 1, p. 55-64, jan./mar. 2012 SCARPA, E. M. Sobre o sujeito fluente. Cadernos de Estudos Lingüísticos, v. 29, 163-184, 1995. SANTANA, A. P. A linguagem na clínica fonoaudiológica: implicaçöes de uma abordagem discursiva. Distúrbios da Comunicação, v. 13, n. 1, p. 161-174, 2001. ______.; SANTOS, K. P. Teste de Fluência Verbal: uma revisão histórico-crítica do conceito de fluência. Distúrbios da Comunicação, v. 27, n. 4., 2015. SANTOS, K. P. A fluência em questão: da normalidade à patologia. Florianópolis, 2015. 240 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Linguística. SKLIAR, C. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro, RJ: DP&A Editora, 2003. ______. A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2010. WAGNER, G. P., BRANDÃO L., PARENTE M. A. Disfunções cognitivas no declínio cognitivo leve. Cognição e envelhecimento. Porto Alegre: ARTMED EDITORA S., 2006. WINGATE, M. E. Fluency and disfluency; illusion and identification. Journal of fluency disorders, v. 12, n. 2, p. 79-101, 1987. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Alzheimer’s Disease International. Dementia: a public health priority. Geneva: WHO Press, 2012. YAZBEK, A. C. 10 lições sobre Foulcault. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL E NA ALEMANHA Rosvitha Friesen Blume1 Eliane Kraemer Pinheiro Jéssica Carmem Toebe Marcos Oliveira Júnior Jhenyfer Vicente

1 Introdução O simpósio temático proposto para a X Semana de Letras da UFSC sob o título idêntico ao deste texto proporcionou uma discussão a respeito da multiplicidade da escrita autobiográfica brasileira e de língua alemã contemporâneas, buscando possíveis paralelos ou divergências entre essa produção literária nos países em questão. As discussões basearam-se em teorias contemporâneas sobre a escrita autobiográfica difundidas por teóricos como Philippe Lejeune, Serge Dubrovsky, Leonor Arfuch e Pierre Bourdieu, entre outros, com o intuito de analisar critica e, também comparativamente, essa literatura. A proposta surgiu a partir de um grupo de pesquisa que reúne alunos da graduação em Letras Alemão e da pós-graduação em Estudos da Tradução da UFSC, sob a coordenação da professora Rosvitha Friesen Blume, em torno do projeto de pesquisa intitulado “Escrita autobiográfica contemporânea no Brasil e na Alemanha: confluências, sujeitos, traduções”.

2 A escrita autobiográfica contemporânea a partir de Lejeune e Doubrovsky Estabelecendo uma reflexão teórica sobre a trajetória do gênero autobiográfico no contexto contemporâneo, é imprescindível considerar a famosa obra de Philippe Lejeune, Le pacte autobiographique (1975), onde o escritor e crítico francês propõe uma conceituação e uma classificação do gênero autobiográfico. Ele discute as distinções clássicas entre biografia e autobiografia e entre romance e autobiografia. Em suas reflexões fica nítida a determinação em legitimar e teorizar um gênero até então considerado menor no cânone literário, se comparado ao romance. O teórico 1

Professora da Área de Alemão, DLLE e da PGET, UFSC. E-mail: [email protected]; mestranda da PGET UFSC. E-mail: [email protected]; graduandos de Letras Alemão, UFSC: E-mail: [email protected]; E-mail: [email protected]; E-mail: [email protected].

ressalta a multiplicidade de gêneros vizinhos da autobiografia – memórias, biografias, romance pessoal, poema autobiográfico, diário, autorretrato ou ensaio, entre outros. E ele estabelece como marca principal de uma autobiografia o que denomina “pacto autobiográfico”. Trata-se, para Lejeune, de um acordo entre leitor e autor, de que naquele texto haveria uma identidade entre o autor, o narrador e a personagem de quem se fala. A autobiografia não comportaria, para o teórico, ambiguidade nesse sentido, afirmando que “a autobiografia não comporta graus: é tudo ou nada” (LEJEUNE, 2014, p. 29). E, nesta perspectiva, diz desconhecer a existência de pacto romanesco com coincidência de nomes do autor e narrador-personagem, bem como pacto autobiográfico em que a tríade autor, narrador e personagem não coincidam. Outro teórico francês que se ocupou da questão da autobiografia foi Pierre Bourdieu. Ele observa, referindo-se à forma clássica do relato autobiográfico, que existe uma preocupação em estabelecer uma coerência em função de uma intenção global. Na pretensão de ideólogo de sua própria vida, o narrador seleciona determinados acontecimentos significativos e estabelece entre eles conexões lógicas, ora retrospectiva, ora prospectivamente, produzindo um relato coerente, numa sequência de acontecimentos, com direção e significados, contemplando uma ordem cronológica. Ora, este relato linear é artificial, por conseguinte, irreal. Allain Robbe Grillet coloca que [...] o advento do romance moderno está ligado precisamente a esta descoberta, de que o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora do propósito aleatório (GRILLET apud BOURDIEU, 1986, p. 185).

Bourdieu refuta a metodologia dos pesquisadores que, na produção de histórias de vida, consideram o indivíduo dotado de uma identidade única, constante e linear no percurso de sua vivência, em contraposição ao “sujeito fracionado e múltiplo” que os teóricos têm postulado na contemporaneidade (BOURDIEU, 1986, p. 185). Não são poucas as abordagens que criticam e refutam as posições de Lejeune. Dentre elas, a mais obstinada foi a do escritor e crítico Serge Doubrovsky. Nos anos 1970, Doubrovsky cunhou o termo “autoficção”, um neologismo para fazer frente à compreensão clássica do gênero estudado por Lejeune. A autoficção permitiria, segundo Doubrovsky, a narrativa de experiências vividas sem o peso da concepção clássica do gênero autobiográfico. O teórico coloca que, diferentemente da autobiografia ou do romance biográfico, que se referem ao passado, na autoficção a cronologia é o presente. A autoficção não acredita numa verdade literal, numa referência indubitável, num discurso historicamente coerente, representando-se como uma reconstrução arbitrária e literária de fragmentos esparsos na memória. Segundo Martins (2010, p. 848), “Doubrovsky concebe todo contar de si como sendo ficcionalizante; assim, a autoficção é um gênero híbrido, que entrelaça realidade e ficção, uma narrativa que oscila entre o autor e o outro ficcional”.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

89

Se a autoficção trabalha com a ficcionalização da autobiografia e nela acontecimentos reais são ficcionalizados, cria-se uma intensidade na narrativa, ou seja, o autor prefere antes deformar os fatos, para depois reformá-los. Na autobiografia o autobiógrafo escreve suas memórias desde o princípio, de forma linear, já na autoficção, a história pode ser recortada em diferentes momentos, e contada conforme a preferência do autor. Segundo Vicent Colonna, para um texto ser considerado autoficção é necessária, ainda, a ficcionalização do eu, ou seja, o autor inventa uma personalidade e uma existência literária (COLONNA apud FIGUEIREDO, 2007, p. 22). Mas o que seria essa ficcionalização do eu? Se considerarmos que de certa forma o autobiógrafo descreve o seu eu como ele mesmo o vê e não se trataria necessariamente de um eu verdadeiro, então o limite entre a autobiografia e a autoficção em um certo momento se entrelaçam. Ainda que tomemos a decisão de confiar na veracidade da relação de identidade proposta entre o autor, o narrador e o personagem em uma autobiografia, precisamos compreender que em uma autobiografia lemos as memórias e o jeito como o próprio autor enxerga a si mesmo, ou seja, como ele próprio se compreende. Está claro que o contar e o escrever histórias de vida não é capaz de transpor inteiramente a lacuna entre o mundo vivido e o mundo narrado. Assim sendo, sempre nos restará um pingo de dúvida sobre a veracidade dos fatos a nós apresentados.

3 Dos diários às redes sociais: conceitos e limites da escrita autobiográfica contemporânea Atualmente encontramos vestígios de escrita autobiográfica em diversos meios de comunicação, meios estes que, propiciados pela internet, nos oferecem um grande leque e variedade de escritas autobiográficas. Muitas pessoas possuem blogs, por exemplo, e neles escrevem sobre diversos assuntos de suas vidas. Quando acompanhamos as postagens de um blogueiro, muitas vezes não nos damos conta de que, na verdade, estamos lendo fragmentos de sua própria autobiografia. E dessa mesma forma e ainda que sem intenção, nós mesmos acabamos escrevendo pedaços de nossa história em postagens do Facebook, Instagram e Twitter. Devido ao surgimento desses novos meios, nas últimas décadas, novas formas de escrita autobiográfica surgiram, escritas com concepções diferentes da autobiografia tradicionalmente estabelecida. As escritas de si parecem cumprir o dever de não deixar o próprio autobiógrafo solitário entre suas memórias, diários íntimos, correspondências, testemunhos, histórias de vida etc; escrever sobre si “atenua os perigos da solidão; dá o que se viu ou pensou a um olhar possível; o facto de se obrigar a escrever desempenha o papel de um companheiro, ao suscitar o respeito humano e a vergonha” (FOUCAULT, 1992, p. 129). Se antes escrever sobre si era realizado na intimidade dos diários, protegidos de qualquer olhar curioso a sete chaves, hoje esse tipo de escrita cumpre seu papel de forma bem diferente: na ampla exposição proporcionada pela internet, à qual o público tem amplo acesso, podendo ler e comentar o que é postado. Os blogs

90

são um dos principais meios de divulgar essas novas escritas de si. Além dos blogs há as inúmeras redes sociais, dentre as quais as mais conhecidas são o Facebook, Twitter e Instagram. Nessas redes, assim como nos blogs, as pessoas divulgam praticamente tudo o que fazem no seu dia a dia: o que comem, com quem conversam, o que assistiram e onde foram, o que pensam sobre os mais diversos assuntos, ou seja, publicam o que elas querem que as pessoas saibam; elas estão, de forma indireta, escrevendo suas memórias, suas lembranças, construindo e embelezando um eu que querem que as outras pessoas conheçam. Então, se antes as pessoas preferiam escrever suas lembranças e segredos fechados a sete chaves em um diário, hoje, com a eclosão da internet, as redes sociais, principalmente os blogs, esbanjam memórias e relatos de escritas autobiográficas, criando variadas discussões sobre o tema.

4 Mal de Alzheimer como metáfora: a fragmentação do sujeito na escrita autobiográfica contemporânea Dois livros autobiográficos recentes mostram muito bem a falta de estabilidade e de coesão do sujeito contemporâneo. Em O exílio do velho rei, do escritor austríaco Arno Geiger, e O lugar escuro: uma história de senilidade e loucura, da escritora brasileira Heloisa Seixas, a perda da memória fragmenta o sujeito, tornando-o assim, desabrigado no próprio lar, perdido em si mesmo, como um náufrago em meio a um mar de memórias; ou um eremita que peregrina pelo deserto buscando seu oásis, mas os lugares que seus olhos encontram frequentemente são miragens. Quando alguém não consegue orientar-se dentro da própria mente confusa e fragmentada para poder ver a diferença entre o que é socialmente real e o que se percebe individualmente, os filtros sociais, imprescindíveis para a boa convivência em grupo, se perdem ou perdem a validade. Para que isso aconteça não é necessário que se esteja em estado permanente ou diagnosticado de demência; no entanto, é assim que eles vivem, os dementes. “De minha mãe, de suas profundezas, também subiram substâncias desconhecidas. Esgarçados os filtros e desaparecida a autocensura, tudo o que ela tentou controlar, escamotear, esconder, pela vida afora, veio à tona quando sua mente começou a se degradar” (SEIXAS, 2007, p. 39-40). A luta do ser humano em manter-se racional, criando estratégias contra a loucura, falha constantemente diante do medo de já se encontrar no universo dos loucos. Heloísa Seixas, escritora brasileira nascida em 1952, além de narrar em sua (auto) biografia O lugar escuro a convivência com sua mãe demente, questiona, em certo episodio, sua psicanalista sobre a possibilidade de enlouquecer; a resposta da médica, “agora não mais”, a desconcerta: “Pedi explicações e ela então me disse que, em sua opinião, eu fora salva pela palavra. A palavra escrita” (SEIXAS, 2007, p. 35). Mesmo passado o perigo, a possibilidade ainda a assusta: “A convivência com a loucura é algo que contamina, entra pelos poros, vai tomando conta de você. Em vários momentos, em maior ou menor grau, isso aconteceu comigo: eu achei que estava enlouquecendo também” (SEIXAS, 2007 p. 78). Apesar do contraste sutil e assustador entre os sãos e os dementes, o processo de decomposição da persona social pode criar laços; “[...]

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

91

quando o mundo lá fora não os considerava mais como seus iguais, eu era da opinião que eles combinavam muito bem comigo” (GEIGER, 2012, p. 158). Arno Geiger, escritor austríaco nascido em 1968, conta em seu livro (auto) biográfico, O exílio do velho rei, a história de August Geiger, seu pai, e como o Mal de Alzheimer transformou a vida de todos os envolvidos na loucura do velho “Rei”. Nas palavras do autor: “A doença corroía não apenas o cérebro de papai, mas também a imagem que eu fizera dele quando criança” (GEIGER, 2012, p. 23), aqui já se pode ver que a noção temporal de passado e presente se fundem. Sobre o mesmo tema afirma Heloísa Seixas, de forma análoga: “Presente e passado aos poucos se misturavam, e com eles suas dores” (SEIXAS, 2007, p. 93), mas dentro do universo da narrativa, pode-se quase sempre encontrar algum conforto: “ler o que eu escrevia não tinha problema, dava até para sorrir. Mas a situação em si era um horror” (GEIGER, 2012, p. 157). Sobre o convívio com seu pai, o autor conta: Todos nós nos orientávamos pelas lacunas de memória, delírios e construções auxiliares com as quais sua razão se armava contra o incompreensível e as alucinações. O único lugar que restava para uma convivência que valesse a pena era o mundo como papai o percebia (GEIGER, 2012, p. 119)

A relação do escritor com seu pai exausto e debilitado pelo Mal de Alzheimer o faz refletir sobre o ato de escrever: “Dizem que cada narrativa é um ensaio para a morte, pois cada narrativa precisa chegar a um fim. Ao mesmo tempo, por se dedicar ao desaparecimento, a narrativa traz as coisas desaparecidas de volta” (GEIGER, 2012, p. 181). E acrescenta, enfim, a pergunta: “queremos livrar o doente da sua enfermidade ou a nós mesmos do desamparo?” (GEIGER, 2012, p. 189).

5 Escrita autobiográfica em literatura de língua alemã contemporânea Na literatura de língua alemã contemporânea há uma grande diversidade de textos de natureza autobiográfica. Alguns exemplos a seguir deverão mostrar essas diferentes formas de se narrar o eu. O mais famoso crítico literário alemão da segunda metade do século XX, Marcel Reich-Ranicki, publicou, em 1992, sua autobiografia, Mein Leben (Minha vida), que se tornou bestseller, com mais de um milhão de cópias vendidas. Trata-se de uma autobiografia clássica, organizada em cinco partes, divididas por anos de vida do autor-narrador em ordem progressiva, sendo que as prolepses servem para atribuir sentido aos acontecimentos narrados, dando coerência e unidade à história de vida do autor. É uma autobiografia perfeita no sentido da narrativa realista, na criação da ilusão do real. Em Paisagens da memória, de Ruth Klüger (2005), trata-se também de uma autobiografia linear, porém, com técnicas narrativas mais contemporâneas. A autora realiza uma constante autocrítica e crítica de situações e de pessoas. Ela não procura

92

embelezar a sua vida em retrospectiva através da criação de uma aparente coesão ou de um sentido maior que ligaria os acontecimentos vividos. Sobre seu segundo livro autobiográfico, a continuação do primeiro, “unterwegs verloren” (Perdida pelo caminho – 2008), Klüger declara em entrevista à crítica literária Julia Enke: “Não se trata de uma narrativa linear, mas é como se fosse uma série de ensaios sobre coisas diversas que, tomara, se configurem como um todo” (Frankfurter Allgemeine, 21.08.2008 – tradução nossa). No romance de Katja Petrowskaja, Vielleicht Esther (Talvez Esther – 2014), a dúvida sobre a possibilidade de apreender, de fato, o “real” numa narrativa, marca esse texto desde o seu título. O nome da bisavó possivelmente tenha sido esse, pois o pai não era acostumado a chamar sua avó pelo nome, mas, sim, de “avó”. Assim, o texto se compõe de muitos fragmentos, formando um mosaico de pequenas histórias que a autora é capaz de reunir, não sem muito esforço, viajando aos lugares onde seus antepassados teriam vivido e, procurando ali, por vestígios de sua existência. Já a escritora romeno-alemã Herta Müller faz uso da forma do ensaio autobiográfico para falar de sua vida em O rei se inclina e mata (2013). Tradicionalmente esses gêneros textuais eram abordagens teóricas de intelectuais sobre temas diversos. Já nos ensaios de Müller, bem como nos de outros intelectuais contemporâneos, a subjetividade é uma característica marcante. Em cada um dos nove ensaios trata-se de experiências da autora em sua infância ou juventude na Romênia, onde sofreu sob a cruel ditadura de Nicolai Ceauscescu. Porém, não existe no livro uma cronologia linear, não existe um esforço por completude ou por uma imagem do todo. São fragmentos, situações diversas frequentemente desconexas. A escrita autobiográfica também se faz presente na poesia de Thomas Kling, poeta falecido precocemente em virtude de um câncer no pulmão. Seu ciclo de poemas “Gesang von der Bronchoskopie” (Cântico da broncoscopia – 2005) expressa muito de seu sofrimento. É possível uma escrita autobiográfica em forma de poesia? O que Philippe Lejeune não havia previsto em seu Le pacte autobiographique em 1975 inclui em textos teóricos posteriores. Apresenta diversos exemplos de autores franceses contemporâneos por ele denominados “poetas da autobiografia”, caracterizando certos poemas deles em que trabalham com experiências vividas como uma “escrita fragmentária, montagem, busca de uma verdade que escapa ao poder das narrativas ordinárias, espaço generosamente cedido à colaboração do leitor” (LEJEUNE, 2014, p. 119). É o que se pode ver, também, em poemas de Thomas Kling.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

93

6 Considerações finais As discussões realizadas nesse simpósio temático proporcionaram, esperamos, uma introdução teórica à questão da escrita autobiográfica contemporânea, mostrando como as formas para falar de si se diversificaram e como houve uma valorização desse gênero na contemporaneidade. Os exemplos literários apresentados das literaturas de língua alemã e do Brasil comprovam que hoje, apesar de surgirem, ainda, autobiografias nos moldes clássicos, que buscam retratar retrospectivamente a vida do autor-narrador de forma coesa e exemplar em volumosos livros impressos, há uma multiplicidade de outras formas de vir a público com a própria história de vida, até mesmo através de uma imensidão de caminhos no mundo virtual da internet. Mas também em livros impressos apresentam-se as mais variadas formas inovadoras de escrita autobiográfica, como em romances, ensaios literários, poemas e outras obras contemporâneas.

94

REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. LÍllusion biographique. Actes de La Recherche en Sciences Sociales, n. 62-63, p. 69-72, juin 1986. FIGUEIREDO, Euridíce. Régine Robin: autoficção, bioficção e ciberficção. Revista IPOTESI, Juiz de Fora, v. 11, n. 2, p. 21-30, 2007. FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In:______. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992, p. 129-160. GEIGER, Arno. O exílio do velho rei. Tradução de Claudia Beck. São Paulo: Argumento, 2012. KLING, Thomas. Gesang der Bronchoskopie. In: ______. Auswertung der Flugdaten. Köln: DuMont, 2005. KLÜGER, Ruth. Paisagens da memória. Tradução de Irene Aron. São Paulo: Editora 34, 2005. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – De Rousseau à Internet. Organização Jovita Maria Gerheim Noronha; Tradução Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. MARTINS, Anna Fraedrich. A autoficção na literatura contemporânea. [Artigo apresentado na V Mostra de Pesquisa de Pós-Graduação – PUC/RS, 2010]. Disponível em: . Acesso em: 20 mai. 2016. MÜLLER, Herta. O rei se inclina e mata. Tradução de Rosvitha Friesen Blume. São Paulo: Globo, 2013. PETROWSKAJA, Katja. Vielleicht Esther. Berlin: Suhrkamp, 2014. REICH-RANICKI, Marcel. Mein Leben. München: Deutsche Verlags-Anstalt, 1999. SEIXAS, Heloísa. O lugar escuro. Uma história de senilidade e loucura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

95

FORMAÇÃO E ATUAÇÃO DE PROFESSORES NA ÁREA DA LINGUAGEM PARA A/ NA EDUCAÇÃO BÁSICA Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti1 Anderson Jair Goulart Amanda Machado Chraim Carla Christina de Barros Rosa Denise Souza Gonçalves Eloara Tomazoni Gabriel Eigenmann de Carvalho Hellen Melo Pereira Josa Coelho da Silva Irigoite Liliane Vanilde de Souza Natássia D’Agostin Alano Suziane da Silva Mossmann Tathiana Peter Tavares

1 Introdução Este estudo constitui a síntese de comunicações apresentadas no simpósio temático Formação e atuação de professores na área da linguagem para a/na Educação Básica, coordenado pelos professores Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti (DLLV/PPGLg/ UFSC) e Anderson Jair Goulart (PPGLg UFSC/UFFS). A seleção das comunicações teve como critério a articulação de pesquisas e projetos de extensão levados a termo ou em andamento no Grupo de Pesquisa Cultura Escrita e Escolarização, vinculado ao Núcleo de Estudos em Linguística Aplicada – NELA/UFSC. O foco temático articulador que delineia esta síntese e que ancora tais pesquisas e projetos de extensão é uma formação docente para atuação em Língua Portuguesa lastreada no que vimos nomeando ‘ideário histórico-cultural’, compreendido a 1

Coordenadora do ST - Doutora em Linguística e docente do DLLV/PPGg/UFSC: [email protected]; Coordenador do ST - Doutorando em Linguística e professor da UFFS: [email protected]; Doutoranda em Linguística, em atuação docente no CA/USFC: [email protected]; professora da RME de São José: [email protected]; acadêmica de Letras: [email protected]; Doutora em Linguística, professora da RME de Bombinhas: [email protected]; acadêmico de Letras: [email protected]; Doutoranda em Linguística: hellenmp@gmail. com; Doutora em Linguística, em atuação docente no DLLV/CCE/UFSC: [email protected]; Mestranda em Linguística, professora da RME de Florianópolis: [email protected]; Mestranda em Linguística: [email protected]; Doutoranda em Linguística, em atuação docente no MEN/CED/UFSC: [email protected]; acadêmica de Letras: [email protected]

96

partir de abordagens filosófico-epistemológicas e teórico-metodológicas assentadas em uma concepção de sujeito historicizado em relações intersubjetivas, situadas no tempo, no espaço social e na cultura, com especial atenção ao tensionamento entre o que é do âmbito do cotidiano e o que é do âmbito da história, tanto quanto em uma concepção de língua como produto da atividade humana essencial, a qual historiciza a interação social no simpósio que se delineia na cadeia ideológica (com base em VYGOTSKY, 2012 [1931]; VOLÓSHINOV, 2009 [1929]). Sustentamos essa compreensão nos estudos vigotskianos, nas produções do Círculo de Bakhtin e em fundamentos das teorias críticas de Educação. Assim considerando, nesta síntese reúnem-se desdobramentos de duas teses de doutoramento (IRIGOITE, 2015; TOMAZONI, 2016), módulos de projeto de extensão nomeado ‘Formação continuada para a docência em Língua Portuguesa para a Educação Básica’ e especificidades de projeto de pesquisa e extensão intitulado ‘Círculo de discussões para docência em Língua Portuguesa’ – compõem o ‘Círculo’ os seguintes licenciandos em Letras Português: Denise Souza Gonçalves, Thatiana Peter Tavares, Gabriel Eigenmann de Carvalho e Ana Maria Gonçalves Martins. A convergência entre esses estudos coloca-se na busca pelo encontro (com base em PONZIO, 2010, 2013) de professores, pesquisadores, licenciandos e estudantes da Educação Básica na defesa de processos de ensino e aprendizagem que tenham como propósito a ampliação de repertório cultural discente em linguagem, na formação humana (com base em DUARTE, 2013 [1993]), sob a égide da integração entre o que é do cotidiano e o que é da história (com base em HELLER, 2014 [1970]).

2 Conhecer aulas de LP, pensar sobre elas com professores de educação básica e com licenciandos em Letras: uma mesma busca em três frentes distintas Os estudos que constituem esta síntese têm a escola pública como campo de atenção prioritária. A começar por Irigoite (2015) e Tomazoni (2016), pesquisas que imergem em espaços de educação pública em linguagem na busca por compreender como as aulas de Língua Portuguesa se delineiam, os avanços que nelas se marcam e os desafios que se impõem nos/para os processos de ensino e aprendizagem com propósitos de ampliação de repertório discente em se tratando da linguagem e de como ela institui relações sociais nas diferentes esferas da atividade humana (com base em BAKHTIN, 2010 [1952-1953]; VOLÓSHINOV, 2009 [1929]). Irigoite (2015) discute o acontecimento aula de Português, tomada a aula como encontro da outra palavra e da palavra outra (com base em PONZIO, 2010), com enfoque na formação dos alunos para a leitura e para a escritura, compreendendo que o acontecimento aula de Português deriva de um conjunto de elementos, ecologicamente colocados, para o qual concorre uma conformação tripartite: (i) a instituição escolar, na forma como qualifica sua gestão nas relações com a gestão mantenedora, e em sua gestão interna nas relações com os professores; (ii)

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

97

esses professores, na forma como viabilizam seu encontro e dos alunos nas aulas de Língua Portuguesa; e (iii) o lócus em que reverbera tal ecologia: uma segunda esfera, a familiar. Trata-se de uma complexa rede de relações que delineia configurações culturais específicas e que se coloca como de relevância substantiva em se tratando do modo como a aula de Língua Portuguesa se historiciza: mais efetivamente ou menos efetivamente passível de consolidação da ampliação do repertório cultural dos estudantes em sua formação humana integral. Eis, na figura a seguir, a representação do movimento eliciado neste estudo – que envolveu duas escolas, cada qual com uma classe escolar –, representação que materializa duas conformações culturais escolares em interação – E1 e E2 – no âmbito da ecologia maior – EO. No interior das duas conformações culturais escolares, coloca-se a mencionada tríade: G remete às ações de gestão em cada escola; EP referencia as aulas de LP; e F remete às famílias de cada classe escolar. O estudo sublinha a complexidade da formação discente para atuação em LP, problematizando a relevância de uma habilitação profissional que coloque em simpósio diferentes campos do saber, para além da Linguística. Segue a anunciada representação: Figura 1: Culturas escolares em relações dialógicas

Fonte: Irigoite (2015, p. 144).

Em imbricamento com Irigoite (2015), Tomazoni (2016) tematiza o ato de escrever na disciplina de Língua Portuguesa, discutindo: (i) tal ato de escrever entendido como encontro que acontece na tensão entre singularidade e universalidade, de modo a compreender (ii) como esse encontro, em acontecendo, se historiciza (iii) considerada a presença, mais efetiva ou menos efetiva, do livro didático em aulas de Língua Portuguesa ministradas em Anos Finais do Ensino Fundamental. O estudo mapeia espaços para condições favoráveis ao ato de escrever entendido como encontro, em propostas em que o livro didático é mais efetivamente ou menos efetivamente constitutivo. Tais espaços, porém, conformam-se à lógica da esfera escolar, configurando-se como ações de escrever que são levadas a termo em tensionamento com atos assinados pelos interactantes (com base em BAKHTIN, 2010 [1920-24];

98

PONZIO, 2010a), na relação com ações – replicáveis, intercambiáveis – e atos – evênticos, não intercambiáveis (com base em PONZIO, 2010, 2010a, 2013, 2014). Em existindo tal espaço para a educação ao ato de escrever como encontro, importa que o que se tem colocado nesse espaço seja, pois, objeto de ressignificação. Para tal, urge a articulação de: (i) condições objetivas de trabalho docente que facultem ao profissional tempo de preparação das aulas para um número menor de turmas – atos implicam atenção a singularidade, já ações são fecundas quando as singularidades se apagam em todos numerosos; (ii) ressignificação da lógica sob a qual o livro didático (LD) se coloca como principal artefato na esfera escolar, mas não raro pouco relevante na acolhida por parte dos interactantes do processo educacional: o livro é contingencial e, quando o projeto docente não converge com ele, requerendo recurso à reprografia de outros materiais, colocam-se restrições para tal, dada a institucionalização do livro didático para a classe – em tese, não há por que reprografias outras se há, ali, o LD; e (iii) processos de formação inicial e continuada que facultem ao professor apropriação teórico-metodológica para efetivamente assumir o protagonismo da formação humana na escola – a autorregulação da conduta (com base em VYGOTSKY, 2012 [1931]) docente em se tratando da atividade pedagógica –, a fim de colocar em xeque representações recorrentes de que professores da Educação Básica em redes públicas não teriam tempo nem preparo teórico-metodológico para essa mesma autorregulação. Esses resultados, para além de ratificações do senso comum, colocam como questão fundante dos processos de formação docente inicial e continuada a problematização acerca de como o livro didático se historiciza no dia a dia escolar, sobretudo, neste caso, na criação de condições favoráveis a uma educação para o ato de escrever como encontro da outra palavra e da palavra outra. Seguramente a importância de o professor autorregular sua própria conduta no planejamento de suas aulas e na escolha de artefatos convergentes com seus propósitos educacionais, mais que um truísmo, é uma luta ainda em curso, não raro fragilizada pelo disseminado ardor na defesa do caro programa estatal institucionalizado no campo editorial didático no Brasil (CATOIA DIAS, 2016). Em sintonia com o eixo de discussão dessas duas teses, o projeto de pesquisa e extensão ‘Formação continuada para a docência em Língua Portuguesa para a Educação Básica’ tematiza processos de formação docente para LP no que tange à relação entre bases filosófico-epistemológicas, bases teórico-metodológicas e ações praxiológicas refratadas nas ações de ensino e de aprendizagem de Língua Portuguesa em escolas, com especial ênfase nas redes públicas. No âmbito dessas discussões, professores de tais redes públicas de educação participantes de pesquisa do Grupo Cultura Escrita e Escolarização – ao qual se vinculam os estudos mencionados nesta síntese – discutem, juntamente com pós-graduandos e licenciandos, tais bases, produzindo, em conjunto, textos paradidáticos para composição de curso de formação continuada a ser ofertado, em modalidade semipresencial, a profissionais já formados ou ainda em formação no campo da educação em linguagem. A proposta de oferta tem como mote fragilidades curriculares na formação inicial (com base

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

99

em GIACOMIN, 2014) ou rarefações de oferta de formação continuada (com base em TOMAZONI, 2012; CATOIA DIAS, 2012). Nesse processo, concepção de sujeito como historicizado nas relações com a alteridade e concepção de língua como instrumento psicológico de mediação simbólica, produto cultural da atividade humana essencial (com base em VYGOTSKY, 2012 [1931]; BAKHTIN, 2010 [1920-24]) colocam-se como fundamentos para a proposição de um percurso de formação docente comprometido com a ampliação de repertório cultural dos estudantes em sua formação humana integral (SAVIANI; DUARTE, 2012). Essa ancoragem dá espaço, no projeto de pesquisa e extensão aqui mencionado, à produção de um primeiro módulo norteador de vivências profissionais em educação em linguagem, coordenado pela profa. Msc. Suziane da Silva Mossmann. Nesse contexto, ainda na vinculação ao projeto em tela, um segundo módulo, focado na formação de leitores e coordenado pela Profa. Dra. Sabatha Catoia Dias, concebe leitura como encontro de autor e leitor por meio do texto escrito (com base em VOLÓSHINOV, 2009 [1929]; PONZIO, 2010; GERALDI, 1997 [1991]) e como (re)escrita (com base em L. PONZIO, 2002), enfatizando dimensões intersubjetiva e intrassubjetiva (com base em VYGOTSKY, 2012 [1931]) do ato de ler textos em gêneros do discurso diversos e implicações dessas dimensões para o ensino e a aprendizagem da leitura na escola. A dimensão intrassubjetiva implica atenção a como recursos lexicais e gramaticais são agenciados pelos autores em seus propósitos interacionais e entende essa atenção como fundamental para que os leitores, na compreensão, deem acabamento a esses mesmos propósitos interacionais (com base em VYGOTSKY, 2012 [1931]; BAKHTIN, 2010 [1952-1953]). Também aqui, professores de redes públicas de educação, pós-graduandos e licenciandos interagem em processos de estudo teórico e delineamento de proposições metodológicas para produção de materiais paradidáticos para curso de formação continuada de profissionais habilitados ou com habilitação em curso no campo da educação em linguagem. Um terceiro eixo do processo pertinente ao projeto de pesquisa e de extensão em foco é a escritura – sob a coordenação da Profa. Dra. Eloara Tomazoni –, concebida tal escritura como encontro de autor e leitor, a partir das mencionadas concepções de sujeito e de língua. Essa compreensão requer transcender uma educação para a escrita tomada em uma dimensão meramente técnica, de modo a facultar aos alunos discussões a partir de seu lugar singular e único, espaço em que emerjam suas vivências, experiências, concepções, valorações, tanto relacionadas aos temas discutidos quanto ao próprio ato de escrever, de modo que seja possível ampliar tais concepções por meio do acesso ao conhecimento, entendido como “[...] um produto social em que aquilo que uma pessoa sabe e efetivamente faz se circunscreve às condições históricas objetivas em que se encontra” (BRITTO, 2005, p. 13), e, nesse entendimento, educação escolar é concebida como formação humana (SAVIANI; DUARTE, 2012). Assim, trata-se de uma discussão que defende facultar aos alunos uma educação para o ato de escrever compreendido como encontro de sujeitos historicizados que vivem na tensão entre singularidade e universalidade (HELLER,

100

2014 [1970]), considerando o reconhecimento de sua própria participação no existir inserido na história, pois, segundo Bakhtin (2010 [1920/1924]), nessa participação encontramos a origem do ato singular e responsável e de todas as categorias do dever concreto e irrevogável. Em convergência, enfim, com essas compreensões, quer derivadas das mencionadas teses, quer constitutivas dos módulos que conformam o projeto de pesquisa e extensão registrado no corpo deste capítulo, coloca-se o último componente desta síntese: o projeto intitulado ‘Círculo de Discussões em Docência para Língua Portuguesa’ – coordenado pela Profa. Msc. Suziane da Silva Mossmann – que busca caminhos para compreender os processos de formação dos professores em se tratando do estudo, do planejamento e da operacionalização da relação entre bases filosófico-epistemológicas, bases teórico-metodológicas e ações praxiológicas refratadas nas ações de ensino e de aprendizagem de Língua Portuguesa nas escolas. Trata-se de um espaço de aprofundamento da formação de professores de LP da UFSC, mais especificamente para licenciandos do curso de Letras Português, lócus para reuniões de estudo, rodas de conversa com profissionais da área, visitações a escolas e atividades afins, cujo mote é conhecer e problematizar práticas docentes, gestão na educação em linguagem, documentos oficiais e congêneres, de modo a facultar a licenciandos vivências extracurriculares que tenham a realidade escolar como objeto de análise e de experimentação. O Círculo institui discussões periódicas sobre textos teóricos, viabilizando a interlocução do grupo de licenciandos em Letras Português com profissionais de escolas de redes públicas e privadas, os quais, nessas interações, discutem com os licenciandos a forma como se organizam as instituições escolares de que fazem parte em se tratando da educação em linguagem, narrando suas experiências, refletindo sobre planejamentos delineados no âmbito do Círculo, abrindo seus lugares de atuação para conhecimento do grupo, na busca pela consolidação do estado de intersubjetividade (com base em WERTSCH, 1985) entre os envolvidos, de modo a auferir uma progressiva maior autorregulação da conduta (com base em VYGOTSKY, 2012 [1931]) dos licenciandos nas projeções de ações pedagógicas no campo da educação em linguagem. Assim, tanto as duas teses aqui mencionadas – Irigoite (2015) e Tomazoni (2016) –, como os três2 módulos do curso de extensão com foco na formação docente – módulo focado nas bases epistemológicas, módulo focado na leitura e módulo focado na escritura –, bem como o projeto do ‘Círculo’, constituem frentes distintas do Grupo de Pesquisa Cultura Escrita e Escolarização. Coordenado pela Profa. Dra. Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti, com a subcoordenação da Profa. Dra. Rosângela Pedralli, esse Grupo ocupa-se em conhecer mais efetivamente como a educação em linguagem acontece nas escolas das redes públicas de educação, tanto quanto em convidar professores desse campo para comporem, juntamente com pós-graduandos em Linguística e licenciandos em Letras, um corpo de profissionais com propósitos 2

Há um quarto módulo, com enfoque na alfabetização, Coordenado pela Profa. Dra. Rosângela Pedralli, objeto de enfoque em outro Simpósio Temático da Semana de Letras, gerido por essa professora pesquisadora.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

101

de estudar e produzir materiais paradidáticos para realização de cursos de formação continuada a serem ofertados, em um futuro próximo, a professores e licenciandos nesse campo da formação em linguagem. Isso sob a égide de fundamentos histórico-culturais, para os quais o sujeito se forma nas relações com o outro/Outro, tanto quanto a língua se coloca como produto da atividade humana essencial e, ao mesmo tempo, a serviço dela.

3 Considerações finais Esta síntese desenhou-se a partir do propósito de registrar como se delineou o simpósio temático, cujo nome intitula este capítulo, ST levado a termo por ocasião da Semana de Letras na edição sob a qual se materializa o presente livro. A seleção dos estudos teve como critério a filiação ao Grupo Cultura Escrita e Escolarização, o que justifica que todos os estudos aqui mencionados tenham a escola pública como grande questão na tematização da educação em linguagem. Documentamos, assim, a vivência consolidada no simpósio, tendo como razão maior a projeção de escola pública na qual as aulas de Língua Portuguesa efetivamente ampliem o repertório cultural dos estudantes, contribuindo decisivamente para sua formação humana integral.

102

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010 [1920/24]. _______. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal. 5. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010 [1952/53], p. 261-306. BRITTO, L. P. L. Letramento e alfabetização: implicações para a educação infantil. In: FARIA, A. L. G. de; MELLO, S. A. (Org.). O mundo da escrita no universo da pequena infância. São Paulo: Autores Associados, 2005, p. 5-21. CATOIA DIAS, Sabatha. O ato de ler e a sala de aula: concepções docentes acerca do processo de ensino e de aprendizagem de leitura/práticas de leitura. Florianópolis, 2012. 323f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina. ______. Entre ecos e travessias: um olhar para o ato de ler no processo de educação em linguagem na esfera escolar. Florianópolis, 2016. 417f.Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Linguística. DUARTE, Newton. A individualidade para si: contribuição a uma teoria histórico-crítica da formação do indivíduo. 3. ed. rev. Campinas, SP: Autores Associados, 2013 [1993]. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997 [1991] GIACOMIN, Letícia. Conhecimentos gramaticais na escola: ‘regras’ de um ensino sem regras. Florianópolis, 2013. 274f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal de Santa Catarina. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014 [1970]. IRIGOITE, Josa Coelho da Silva. Aula de Português como encontro entre a outra palavra e a palavra outra: um estudo sobre a ecologia da apropriação da escrita na esfera escolar. Florianópolis, 2015. 513f. Tese (Doutordado) – Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina. PONZIO, L. Visioni del texto. Bari: Edizioni B. A. Graphis, 2002.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

103

PONZIO, Augusto. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. ______. Fuori Luogo. Milano/Udine: Mimesis, 2013. ______. Identidade e mercado de trabalho: dois dispositivos de uma mesma armadilha mortal. In: MIOTELLO, V.; MOURA, M. I. de. (Org.). A alteridade como lugar de incompletude. São Carlos: Pedro & João Editores, 2014, p. 49-94. SAVIANI, Dermeval; DUARTE, Newton. A formação humana na perspectiva histórico-ontológica. In: Pedagogia histórico-crítica e luta de classes na educação escolar. Campinas/SP: Autores Associados, 2012. TOMAZONI, Eloara. Produção textual escrita e escola:  um olhar sobre ancoragens de concepções docentes. Florianópolis, 2012. 378f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina. _______. O ato de escrever em encontros na escola. Florianópolis, 2016. 271f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina. VYGOTSKY, L. S. Obras Escogidas III: problemas del desarrollo de la psique. Trad. Lydia Kuper. Madrid: Machado Libros, 2012 [1931]. VOLÓSHINOV, V. N. El Marxismo y la filosofia del linguaje. Buenos Aires: Ediciones Godot, 2009 [1929]. WERTSCH, James. Vygotsky and the social formation of the mind. Cambridge/ Massachusetts/London: Harvard University Press, 1985.

104

GRAMÁTICA EM FOCO Núbia Ferreira Rech1 Sandra Quarezemin Damaris Silveira Giuseppe Varaschin Rafaela Miliorini

1 Introdução Este capítulo apresenta alguns dos pontos abordados no simpósio temático Gramática em Foco, organizado pelas professoras do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas – Núbia Ferreira Rech e Sandra Quarezemin, durante a X Semana de Letras da UFSC. O objetivo do simpósio foi promover a discussão de fenômenos gramaticais do português brasileiro. Na ocasião, trabalhos nas áreas de fonética, fonologia, morfologia, sintaxe e semântica, tanto na perspectiva sincrônica quanto na diacrônica, foram apresentados por alunos da graduação e da pós-graduação. A Gramática Gerativa, em sua versão Princípios e Parâmetros (CHOMSKY, 1981, 1986), trouxe uma nova maneira de ver a organização da linguagem e essa nova concepção abriu a possibilidade de buscar os dois maiores objetivos da teoria gramatical: a adequação descritiva e a adequação explicativa. Partindo desse contexto, verificamos a necessidade de criar uma renovação no ensino da gramática, buscando rotas alternativas para as aulas de português, para que se tenha mais construção e desconstrução de hipóteses gramaticais e menos transmissão de conteúdo gramatical pronto, sem nenhuma reflexão sobre a língua e seu funcionamento. Com esta preocupação em mente, o simpósio também abordou questões ligadas ao ensino da gramática nas escolas e ao papel do professor de língua portuguesa. Tendo em vista a delimitação de espaço destinado à publicação, fizemos um breve recorte da discussão teórica e dos resultados apresentados no simpósio Gramática em Foco. Este texto está organizado em quatro seções: na primeira, tratamos da relação entre a sintaxe e a semântica; em seguida, mostramos como as informações aspectuais são determinantes para que a conjunção “e”, enquanto concatenadora de sentenças, seja empregada de forma satisfatória; em um terceiro momento, trazemos o olhar da gramática gerativa para o fenômeno da focalização de 1

Coordenadora do ST e Professora do DLLV/UFSC e do Programa de Pós-graduação em Linguística. E-mail: nubiarech@uol. com.br; Coordenadora do ST e Professora do DLLV/UFSC e do Programa de Pós-graduação em Linguística. E-mail: [email protected]; Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Linguística. E-mail: [email protected]; Mestrando do Programa de Pós-graduação em Linguística. E-mail: [email protected]; Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Linguística. E-mail: [email protected]. As três primeiras autoras estão vinculadas ao NEG – Núcleo de Estudos Gramaticais – e os outros dois autores ao NES – Núcleo de Estudos em Semântica Lexical – da UFSC.

106

constituintes, destacando as sentenças clivadas enquanto estratégia escolhida pelos falantes; por fim, apresentamos algumas considerações acerca da temática tratada em nosso simpósio.

2 A interação sintaxe-semântica Os níveis semântico e sintático são tradicionalmente considerados isomórficos, por diversas correntes linguísticas. Ou seja, todo fenômeno sintático mapeia um correspondente semântico, e toda projeção semântica é derivada de uma estrutura sintática subjacente. A correspondência é unívoca, e a relação é de um para um: uma forma = um sentido. No trabalho intitulado As representações sintáticas da subpredicação em PB: a não uniformidade entre forma e sentido, analisamos o fenômeno da subpredicação em português brasileiro, contestando essa obrigatoriedade de uniformidade na interface sintaxe-semântica. O objeto foi delimitado a partir do conceito de predicação para Frege (2009) e para Searle (1969), que definem esse fenômeno como a atribuição de uma propriedade a um objeto. A subpredicação foi definida por nós como uma segunda predicação, interna à principal. Nossa ancoragem teórica foi a proposta de Culicover e Jackendoff (2005) na Teoria da Sintaxe mais Simples, que defende um sistema linguístico não transformacional, mas baseado em restrições, embora ainda gerativo e formalizável; a arquitetura da gramática, para os autores, é composta por três níveis: fonologia, sintaxe e semântica, gerados de forma independente e concomitante. Como a semântica deixa de ser um nível meramente interpretativo, a sua geração não depende mais unicamente da forma sintática; é postulada, então, a não uniformidade de interface como opção de economia teórica: a estrutura sintática é reduzida ao máximo, projetando somente os itens pronunciados. Tomando a Sintaxe mais Simples como base, analisamos sentenças com verbos que selecionam semanticamente uma subpredicação e aplicamos testes de constituência sugeridos por Haegeman (2006) para verificar em quais casos esses verbos licenciam um único constituinte sintático – onde há a subpredicação – como complemento. Nos casos em que é atestada a formação de constituinte, a subpredicação é projetada sintaticamente como uma small clause (SC); nos demais casos, a relação de predicação se dá diretamente com o verbo e, portanto, não é formada uma SC – para esse grupo de verbos, a representação sintática é semelhante à projeção de verbos triargumentais. Os resultados mostraram que muitos verbos tradicionalmente considerados selecionadores de SC pela tradição gerativa (STOWELL, 1983; HAEGEMAN, 1994; PROGOVAC, 2006) não o são, embora estabeleçam uma relação de subpredicação no nível semântico. Constatamos que a postulação de complexidade estrutural e de uniformidade de interface entre esses níveis deve ser empiricamente motivada.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

107

O estudo, por ser de cunho teórico, não pretende enquanto proposta didática dialogar diretamente com o ensino de gramática na educação básica. Entretanto, tomando como pressuposto que o objetivo do professor de língua materna é construir gramáticas em sala de aula (PIRES DE OLIVEIRA; BASSO; QUAREZEMIN, 2013), juntamente com seus alunos, essa pesquisa aparece como parte do saber teórico que deve estar subjacente à prática da docência nas aulas de língua materna. Acreditamos que o fazer científico contribui para que o aluno se constitua enquanto sujeito através de curiosidade investigativa e capacidade de julgamento.

3 Informações aspectuais no uso da conjunção “e” Para que haja sucesso na comunicação, é necessário que os interlocutores descubram qual, dentre as várias possibilidades interpretativas disponíveis para um enunciado, é aquela que está sendo empregada pelo falante em um dado contexto. A questão que se coloca, então, para quem pretende estudar a conjunção “e” do PB segundo esse tipo de concepção “inferencial” da comunicação (SPERBER; WILSON, 1995) é: que tipo de pistas os usuários da língua seguem para interpretá-la de um modo regular e previsível? Podemos falar, genericamente, de pistas sintáticas, semânticas e pragmáticas. No trabalho intitulado A interação entre classes acionais e as interpretações da conjunção ‘e’ no PB, defendemos que as informações aspectuais das sentenças concatenadas com o “e” são fatores cognitivamente relevantes na especificação de um sentido para a conjunção no contexto. Tratamos, portanto, de buscar por pistas semânticas, relativas ao funcionamento da estrutura conceitual humana (JACKENDOFF, 1983), que direcionam os interlocutores rumo às várias interpretações. Argumentamos que o aspecto funciona como um mecanismo limitador, que restringe as possibilidades interpretativas da conjunção. De início, assumimos que a distinção aspectual mais importante para limitar as possibilidades interpretativas da conjunção é a distinção entre situações estáticas e situações dinâmicas (VENDLER, 1967; BACH, 1981). Boa parte das teorias a respeito do assunto enfocam os mecanismos pragmáticos que subjazem ao vasto leque de enriquecimentos contextuais possíveis à conjunção, que seria semanticamente mínima (MOURA; VARASCHIN, 2016). Sem negar a relevância de tais princípios pragmáticos (ou mesmo o caráter semanticamente pobre da conjunção em si), a ideia que pretendemos propor é que, ao menos no caso da conjunção envolvendo sentenças estativas puras, há restrições semânticas envolvidas. A saber, a estrutura conceitual humana não consegue conceber como um Estado puro pode ser ordenado temporalmente. Isso significa que o “e” nunca receberá uma interpretação verocondicionalmente equivalente ao “e depois” se ele estiver coordenando sentenças estativas puras como em “João é alto e Maria é bonita”. Concluímos não ser, portanto, um fator contextual específico que determina que, nesses casos, a conjunção não será temporal. É somente após a restrição aspectual ao conjunto de interpretações possíveis que o raciocínio pragmático poderá se

108

dar, determinando, assim, em contexto, qual interpretação a conjunção efetivamente receberá. O exame explícito de fenômenos semânticos é, amiúde, relegado no contexto do ensino da língua materna na sala de aula. Isso talvez se dê devido à ausência de uma metalinguagem amplamente aceita entre os próprios pesquisadores da área no âmbito acadêmico. Acreditamos que o estudo das classes acionais pode figurar como um ponto interessante de discussão e de entrada da semântica e da discussão sobre aspecto no ensino básico. Primeiramente, porque se trata de um campo sobre o qual existe um consenso relativamente consolidado (ao menos a respeito de pontos fundamentais). Segundo, e mais relevantemente, pois o domínio da acionalidade apresenta irradiações evidentes em diversos fenômenos linguísticos – um dos quais é ilustrado pela presente pesquisa. Mediante a apreensão de conceitos como o de situações estáticas e situações dinâmicas, por exemplo, os alunos adquirem ferramentas para pensar sobre o modo como organizamos o tempo nos enunciados.

4 Estratégia de focalização dos falantes As sentenças das línguas naturais são todas bipartidas entre a informação não compartilhada pelos falantes, o foco, e a informação conhecida, o pressuposto. Os falantes do português, brasileiro e europeu, marcam sintaticamente o foco, por meio da clivagem. Ao clivar elementos da sentença, o falante o coloca em uma posição de proeminência na estrutura, através de seu movimento para uma posição não argumental e da presença de elementos que, nesse caso, são exclusivamente focalizadores, resultando em sentenças clivadas canônicas e invertidas e pseudo-clivadas canônicas, invertidas e extrapostas. O trabalho intitulado A clivagem como estratégia de focalização surgiu a partir do levantamento diacrônico do uso de tais sentenças e do intuito de reunir argumentos que vão contra a restrição apontada na literatura (KATO; RIBEIRO, 2005; KATO, 2009) de que o português de fases passadas, mais especificamente, anteriores ao século XVIII, não licenciava clivadas de cópula inicial, também chamadas de clivadas canônicas, por configurar uma gramática do tipo V2, ou seja, licenciava o movimento do verbo para uma posição mais alta na periferia esquerda da sentença, enquanto outro elemento seria fronteado a esse verbo, resultando na ordem V2, como é fortemente apontado na literatura2. Dentre os argumentos apontados por Kato e Ribeiro (2005) e Kato (2009) para a ausência de clivadas com cópula inicial, seguindo Sornicola (1988) e Lambrecht (2001), está o fato de o alemão, que é uma língua V2, não aceitar esse tipo de estrutura. Para Kato e Ribeiro, as clivadas canônicas seriam uma inovação do século XVIII, período em que o português deixa de configurar uma gramática V2. Entretanto, através de uma busca sintática por clivadas no Corpus Histórico do Português Tycho Brahe, vimos a ausência não apenas de clivadas canônicas no

2

Cf. Galves (1997), Paixão de Sousa (2004), Galves, Brito e Paixão de Sousa (2005), Cavalcante, Galves e Paixão de Sousa (2010), Gibrail (2010), Antonelli (2011), e Galves e Paixão de Sousa (2013).

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

109

português do período V2, embora algumas poucas ocorrências tenham sido encontradas, mas os outros padrões de clivadas eram também reduzidos. O que é defendido neste estudo é que não havia uma restrição para o uso de qualquer padrão de clivada no período V2, mas que a baixa recorrência do uso de clivadas pelos falantes, tanto do português V2, quanto do alemão, que é uma língua V2 moderna, reside em opções de focalização mais econômicas do que a do foco marcado, via clivagem. A opção em questão seria a do fronteamento de sintagmas ao verbo (GIBRAIL, 2010) que, ao realizar esse movimento, dispararia a interpretação de foco por estar em uma projeção dessa natureza. Além disso, vemos em Reich (2008) que, ao contrário do que é defendido por Kato e Ribeiro, o alemão aceita clivadas canônicas. O que diferencia essas duas línguas no que diz respeito ao uso da clivagem é que o alemão dispõe do foco prosódico, deixando a focalização complexa para contextos em que a interpretação semântico-pragmática do foco não é garantida na prosódia. O alemão dispõe de características que favorecem o foco prosódico, como acento tonal em praticamente todas as palavras da sentença e a desacentuação de elementos para dar saliência ao foco. O que ocorreria, portanto, no período V2 seria a ausência da necessidade do uso de clivagem, diante da opção mais econômica do fronteamento. Com a queda de V2, os sintagmas não seriam mais fronteados e, consequentemente, a estratégia primeira de focalização ficaria comprometida, abrindo espaço para o uso de clivadas. Uma hipótese ainda em investigação seria que a escolha da estratégia de focalização na língua estaria ligada às características prosódicas das mesmas. Para isso, é necessária a investigação com os próprios falantes dessas línguas. Pesquisas como esta são realizadas nas bases da gramática gerativa, o que torna não apenas viável, mas altamente representativa a pesquisa com os falantes da língua, pois o julgamento de gramaticalidade e de adequação de sentenças é algo que deve vir dos mesmos, dada a sua competência linguística. Considerando o teor de nosso aparato teórico e a responsabilidade que temos enquanto profissionais da linguagem, é interessante pensar na contribuição desse tipo de pesquisa, que reforça as bases gerativistas nas quais nos apoiamos para o ensino de língua materna na escola.

5 Considerações finais A proposição do simpósio temático Gramática em Foco não corresponde a uma atividade isolada, mas se insere em uma discussão que vimos realizando com os alunos do curso de graduação em Letras e mesmo com os alunos da pós-graduação em Linguística sobre a importância da pesquisa para o ensino da gramática de uma língua. Percebemos a sala de aula como um espaço em que o conhecimento deva ser construído, e não puramente transmitido. Conceber o professor de gramática como aquele que detém as respostas pontuais e inequívocas sobre o mecanismo de funcionamento da língua é restringir a riqueza dos recursos desse sistema. É importante que nossos estudantes de Letras, futuros professores, não tenham receio de discutir fenômenos linguísticos para além daqueles que são contemplados

110

em exemplos, muitas vezes artificiais, que permeiam as gramáticas tradicionais e livros didáticos que chegam às escolas da educação básica. Para isso, entretanto, julgamos imprescindível uma formação teórica sólida, que lhes permita conduzir adequadamente uma observação desses fenômenos, auxiliando os alunos na construção e verificação de hipóteses sobre como se organiza o seu sistema linguístico. Cremos que não nos depararemos com a passividade que muitos estudantes têm manifestado nas aulas de língua portuguesa atualmente se estivermos capacitados a conduzir uma reflexão sobre fenômenos linguísticos interessantes. Os trabalhos apresentados no nosso simpósio, representados aqui pela pesquisa de três dos nossos estudantes da pós-graduação, ilustram a tão necessária relação que precisamos fazer entre uma formação teórica sólida nos estudos de gramática e o ensino efetivo da língua. Na análise de um fenômeno linguístico sob a perspectiva sintático-semântica, por exemplo, se observa como ocorre a integração desses componentes da gramática na estruturação da língua. Certamente, um estudante que tem essa formação vai conduzir uma reflexão integrada nas aulas de língua portuguesa, não restringindo um fenômeno da língua às páginas do sumário da gramática livro, que o insere no(s) capítulo(s) reservado(s) à abordagem do componente fonológico, morfológico, sintático ou, quando está presente, o semântico. Por fim, destacamos a importância da formação teórica em gramática para a construção de uma concepção de língua como um sistema hierárquico e organizado. Um professor com essa formação vai mudar a percepção de muitos estudantes da educação básica de que o português não tem regras lógicas, é preciso decorar conceitos para reproduzi-los e, assim, obter aprovação na disciplina. Precisamos resgatar ou despertar nos estudantes a curiosidade sobre como seu sistema linguístico se organiza.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

111

REFERÊNCIAS BACH, E. On time, tense and aspect: an essay in English metaphysics. In: COLE, P. (Ed.). Radical pragmatics. New York: Academic Press, 1981, p. 63-81. CHOMSKY, Noam. Lectures on government and binding. Foris, Dordrecht, 1981. ______. Knowledge of language: its nature, origin and use. Praeger, New York, 1986. CULICOVER, P. W.; JACKENDOFF, R. Simpler Syntax. New York: Oxford University Press, 2005. FREGE, G. Lógica e filosofia da linguagem. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2009 [1978]. GALVES, Charlotte Marie Chambelland. Do português clássico ao português europeu moderno, uma análise minimalista. Estudos Lingüísticos e Literários, Salvador, v. 19, p. 105-128. 1997. GIBRAIL, Alba Verôna Brito. Contextos de Formação de Estruturas de Tópico e Foco no Português Clássico. Campinas, 2010. 291f. Tese (Doutorado em Linguística) – Unversidade Estadual de Campinas. HAEGEMAN, L. Thinking syntactically: a guide to argumentation and analysis. Cornwell: Blackwell Publishing, 2006. JACKENDOFF, R. Semantics and Cognition. Cambridge: MIT Press, 1983. KATO, Mary Aizawa. Mudança de ordem e gramaticalização na evolução das estruturas de foco no Português Brasileiro. Revista do GEL, Araraquara, v. 38, p. 375385. 2009. ______.; RIBEIRO, Ilza. Cleft sentences and WH-questions in Brazilian Portuguese: a diachronic analysis. [Trabalho apresentado no 35º LSRL (Linguistic Symposium on Romance Languages)]. Austin, 2005. MOURA, H.; VARASCHIN, G. Para uma explicação cognitivamente plausível da conjunção em Português. Fórum Linguístico, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 10551067, mar. 2016. PIRES DE OLIVEIRA, R.; BASSO, R.; QUAREZEMIN, S. Construindo gramáticas na escola. Florianópolis, LLV/CCE/UFSC, 2013.

112

PROGOVAC, L. The syntax of nonsententials: small clauses and phrases at the root. In.: PROGOVAC, L. et al. The Syntax of nonsententials: multidisciplinary perspectives. Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2006. p. 33-71. REICH, Uli. Cê que fez! Construções de foco em Português Brasileiro. Linguística, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 1-25, jun. 2008. SEARLE, J. Speech acts: an essay in the philosophy of language. New York: Cambridge University Press, 1969. SPERBER, D.; WILSON, D. Relevance: Communication and Cognition. Cambridge: Blackwell, 1995. STOWELL, T. Subjects across categories. The Linguistic Review 2, p. 285-312, 1983. VENDLER, Z. Linguistics in philosophy. New York: Cornell University Press, 1967.

INTERMEDIAÇÕES ENTRE LITERATURA E TEATRO Cynthia Valente1 Anderson da Costa José Carlos Mariano do Carmo José Ricardo Goulart Luiz Gustavo Bieberbach Engroff

1 Introdução O presente trabalho constitui-se em uma síntese de cinco comunicações apresentadas no Simpósio Temático Intermediações entre Literatura e Teatro, durante a X Semana de Letras. Esse simpósio teve como objetivo produzir  um diálogo multidisciplinar entre o teatro e a literatura, colocando em discussão os aspectos confluentes entre as duas áreas. As discussões aqui apresentadas, oriundas de diferentes abordagens, objetivaram refletir sobre os elementos comuns que dialogam entre o gênero dramático e os elementos cênicos que permitem a ressignificação  do texto literário. Com tal propósito, Anderson Costa, em “Qorpo Santo: Um Marginal entre o surrealismo e o absurdo”, discute o surrealismo e o absurdo, questionando a pouca visibilidade da obra de Qorpo Santo e, Cynthia Valente, em “Intermediações entre o teatro de Artaud e a poesia de Alejandra Pizarnik” apresenta os traços da influência de Artaud na obra poética de Alejandra Pizarnik. Na sequência, o trabalho de José Carlos Mariano do Carmo, “O Teatro de Animação na Obra de Carlos Henrique Schroeder: Histórias da Chuva”, analisa a representação literária dos grupos de teatro de animação na obra História da Chuva, do escritor Carlos Henrique Schroeder. Focalizando ainda mais a representação cênica, José Ricardo Goulart em “Performance e memória do trauma”, a partir dos trabalhos de Regina José Galindo, trabalha com o resgate de determinado acontecimento social traumático induzido ao esquecimento, a partir de criações artísticas que o deslocam de seu contexto histórico. Por fim, o trabalho de Luiz Gustavo Bieberbach Engroff, “Um retrato da Violência Mexicana a partir de 72/Migrantes/Altar”, explora o violento contexto mexicano trabalhado no espetáculo 72/Migrantes/Altar.

1

Professora do DLLE/UFSC e Doutora em Literatura Hispano-americana, E-mail: [email protected]; Pós-doutor em Estudos da Tradução, E-mail: [email protected]; Professor da Faculdade Senac Florianópolis e Doutor em Literatura, E-mail: [email protected]; Doutorando e Mestre em Teatro, E-mail: [email protected]; Doutorando e Mestre em Literatura, E-mail: [email protected]

114

Abordando a constante reelaboração que permeia a experiência cênica, pretendeu-se discutir sobre experiências de recriação literária nos espetáculos teatrais, explorando o caráter poético da oralidade cênica. A totalidade dos trabalhos apresentados nesse simpósio também fomentou uma discussão sobre as especificidades do gênero dramático e a sua evolução ao longo da história da Literatura, trazendo à tona discussões teóricas contemporâneas.

2 Qorpo santo: um marginal entre o surrealismo e o absurdo Vinculado ao teatro do absurdo e posteriormente ao surrealismo, Qorpo Santo escreveu a sua obra muito antes da eclosão tanto de um quanto de outro. Procurar discutir tais questões, além da marginalização de sua obra, é o que objetiva a presente comunicação.  Se pensarmos em uma tradição literária no Brasil, perceberemos que o conjunto de obras que logrou êxito de público e sobretudo de crítica privilegiou sempre certo pensamento de ordem positivista, manifestado no paradigma realista, na noção de literatura como mimese, na preocupação formal em poesia, na valorização do cogito cartesiano. À margem dessa concepção, foram relegados autores e obras que caíram no mais completo esquecimento e que somente mais tarde receberiam alguma atenção. Nessa situação, encontramos Qorpo Santo, cuja obra permaneceu completamente ignorada por mais de cem anos, até a primeira encenação em 1966 e a análise de Guilhermino César em 1969.   A biografia e, sobretudo, a fortuna crítica do autor, após a sua morte, em 1883, a que se seguiu um quase total silêncio. Esse ostracismo começou a ser rompido com o assombro que se apoderou do público, diante de suas ousadias, na noite de 26 de agosto de 1966, quando foram encenadas três das suas comédias (AGUIAR, 1957, p. 33). 

A escrita inclassificável para os padrões da época em que escreveu as suas peças explica o esquecimento a que foi relegado. Superada a questão da filiação do dramaturgo, se teatro do absurdo ou surrealismo, parece mais proveitosa a discussão sobre as razões do silêncio sobre a sua obra por tanto tempo e como isso se insere em uma prática comum na literatura brasileira.

3 Intermediações entre o teatro de Artaud e a poesia de Alejandra Pizarnik O presente trabalho objetiva produzir  um diálogo multidisciplinar entre  o teatro e a literatura, a partir da fusão que se estabelece entre a obra poética da escritora argentina Alejandra Pizanik e a concepção teatral de uma de suas declaradas influências, o dramaturgo Antonin Artaud. Para Artaud, o verdadeiramente teatral é o que escapa da linguagem falada, assim como o verdadeiramente poético para Alejandra é o que está fora da linguagem.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

115

A partir dessas premissas, pretende-se refletir sobre os elementos que dialogam entre o gênero dramático e os elementos cênicos que permitem a ressignificação  do texto literário, investigando a forma como o pensamento de Artaud se plasma na obra poética de Pizarnik. A intenção também é de discutir o desenvolvimento da concepção poética teatral em Pizarnik que, diante da impossibilidade de fundir-se à palavra poética, forja um duplo teatral que simula a liberdade pretendida. Em seu texto “O teatro e a crueldade”, Artaud nos apresenta o conceito do duplo, recuperando uma ideia para ele perdida do teatro: “El teatro debe darnos todo cuanto pueda encontrarse en el amor; en el crimen, en la guerra o en la locura si quiere recobrar su necesidad” (ARTAUD, 1972, p. 96). Por esse caminho, o autor nos leva à ideia do espetáculo total, onde o teatro recobra da vida o que é seu: “En este espectáculo de una tentación, donde la vida puede perderlo todo, y el espíritu ganarlo todo, ha de recobrar el teatro su significación verdadera” (ARTAUD, 1972, p. 98). Fora do domínio das palavras, ou seja, da poesia da linguagem, Artaud vislumbra uma poesia do espaço, uma poesia metafísica. O mesmo desejo tem Alejandra quando quer fazer o poema com o corpo. Para Artaud, o teatro (duplo da vida) pode chegar a ser este lugar verdadeiro, mais verdadeiro que a própria vida. Para Pizarnik, a poesia (duplo da realidade) é também um espaço onde se busca a verdade. No entanto, Pizarnik conhece a impossibilidade de fazer o poema com o corpo e, nesta consciência, reside a necessidade de criação constante do duplo. Diante da impossibilidade de fundir-se ao poema, Pizarnik forja um duplo poético que se metamorfoseia em outros duplos e simula esta liberdade confiscada.

4 O teatro de animação na obra de Carlos Henrique Schroeder: “Historias da Chuva” Este trabalho visa a analisar a representação literária dos grupos de teatro de animação na obra História da Chuva, do escritor Carlos Henrique Schroeder. O escritor parte de, pelo menos, duas tragédias: a morte do personagem Arthur e as enchentes no Vale do Itajaí, em 2008. Neste aspecto, do ponto de vista teórico, poderíamos afirmar que Schroeder elabora a narrativa a partir dos detritos da história, conforme afirma Walter Benjamin acerca dos Goncourts: “Fazer história dos detritos da História” (BENJAMIN, 2002, p. 138). Em certo sentido, também, o romance de Schroeder explora as dificuldades de ser escritor: Ser escritor é ser rancor. [...]. Eu vi gente vender o carro para publicar a porra do livro, entendeu, o cara perdeu o carro e, claro, a mulher, a sanidade, e ganhou o quê? A porcaria de umas caixas de livros (SCHROEDER, 2015, p. 128).

Ao mesmo tempo em que faz reflexões sobre o “ser escritor”, Schroeder acrescenta o fazer artístico:

116

Para eles, teatro é sobretudo risco, a todo instante, na escolha dos bonecos, dos personagens, da abordagem, dos movimentos, das palavras. Enxergar os espetáculos como móbiles, e não como algo plano, algo que se possa ser atravessado por todas as linguagens para criar e dar conta de um imaginário singular (SCHROEDER, 2015, p. 94).

Ao elencar, no romance, diversas companhias de Teatro de Animação, o autor reelabora o fazer artístico entre a literatura e o teatro como, por exemplo, a presença do Grupo Extemporâneo de Formas Animadas (Gefa). O caos da História, considerando a citação de Walter Benjamin, tanto pode ser a torrencial chuva de 2008 e a consequente morte do personagem Arthur, como as dificuldades artísticas enfrentadas pelo personagem protagonista, seja em ser escritor/editor ou, ainda, em fazer parte do teatro de animação. Podemos ainda inserir o aspecto da ludicidade, do brincar literário, da ironia como elementos da construção literária proposta pelo autor que, em comparação à literatura, afirma: Artistas e pesquisadores como Henrich Von Kleist, Maurice Maeterlink, Alfred Jarry, Edward Gordon Craig e Vsevold Meyerhold cercaram-se do teatro de animação como gênero artístico e da marionete como uma referência para o novo caminho da interpretação (SCHROEDER, 2015, p. 43).

Toda a tessitura nervosa da obra de Schroeder está centrada no alter ego do personagem dele mesmo, nas suas dificuldades amorosas ou nas suas atividades profissionais de artista de teatro de animação e de escritor/editor. Ao citar Kleist, Schroeder demonstra enorme domínio sobre as técnicas e estéticas artísticas: Os títeres necessitam apenas do chão, como os elfos, para tocá-lo e revivificar o impulso dos membros, pelo instante de detenção; nós precisamos dele para repousar nele e nos recuperarmos do esforço da dança; um momento que evidentemente não é em si dança, e com o qual nada se pode fazer exceto fazê-lo desaparecer, se possível (KLEIST, 1993, p. 199).

Para finalizar, é interessante verificarmos o que o narrador afirma: “Esta é a história de Lauro e Arthur, mas também a minha, de Melissa e de Deborah, e de nenhuma maneira é a história da chuva” (SCHROEDER, 2015, p. 153). Este fechamento é bem emblemático, pois as enchentes de 2008 são apenas pano de fundo para as incursões sobre o teatro de animação, sobre Arthur e Lauro, sobre Melissa e o próprio alter ego do escritor Schroeder, sendo partes que se ligam em determinados momentos da narrativa. Carlos Henrique Schroeder é o centro nervoso que liga todos os personagens, como um títere no melhor exemplo do Teatro de Animação.

5 Performance e memória do trauma No presente trabalho, pretende-se explanar sobre o resgate de determinado acontecimento social traumático, induzido ao esquecimento, a partir de criações

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

117

artísticas que o deslocam de seu contexto histórico ao evocar uma memória coletiva no momento de contato entre obra e espectador. Para tanto, dois dos trabalhos da artista guatemalteca Regina José Galindo, do ano de 2013, serão analisados nesta pesquisa: Tierra2 e Suelo Común3. Parto do princípio de que os acontecimentos que estimularam a criação das referidas obras podem ser considerados memórias traumáticas, ou seja, aquelas que, segundo Diana Taylor, estão diretamente ligadas a um acontecimento que “intervém no corpo individual/político/social em um momento particular e reflete tensões específicas” (TAYLOR, 2013, p. 235). Para Taylor (2009), o trauma pode ser entendido como uma performance de longa duração, uma vez que não pode ser separado daquele que o vivenciou e se caracteriza pela sua repetição. Nesta acepção, o trauma perdura na memória e, portanto, é sempre presente ou “uma memória de um passado que não passa” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 105). A relação com a memória que é induzida, cada vez mais, ao esquecimento, para mim, é clara nos dois trabalhos de Galindo. O ocultamento dos corpos – do qual a artista se ocupa – revela, a partir de eventos traumáticos, o extermínio de suas identidades. Ao desvelar essas memórias, esses trabalhos artísticos contribuem para a disseminação do conhecimento de um passado no qual a manutenção das relações de poder se beneficiava de práticas de tortura e extermínio em massa. Calar e omitir, apagar os rastros. Além disso, também fica clara nessas obras a reivindicação de um lugar na memória para os “deslocados”, de um desvelamento e de uma voz para os fatos invisibilizados no passado e no presente. Desde o início de sua trajetória artística, em 1999, Regina José Galindo vem, sob um viés crítico, expandindo seu olhar e se dedicando a abordar e denunciar as injustiças sociais, ou – para criar uma imagem – as feridas da Guatemala – que não se restringem às fronteiras desse país e podem ser reconhecidas em outros lugares, voltando-se às discriminações raciais e de gênero decorrentes das desigualdades retratadas pelas relações de poder, bem como as implicações éticas de tais injustiças sociais.

6 Um retrato da violência mexicana a partir de 72migrantes/altar O violento contexto mexicano de cinco anos atrás é o principal elemento provocador do espetáculo 72Migrantes/Altar, desenvolvido, no ano de 2014, por alunos da Escuela Nacional de Arte Teatral, sediada na Cidade do México. O trabalho em questão surge a partir de um acontecimento verídico na fronteira entre o México e os Estados Unidos, mais especificamente na cidade de San Fernando. Neste episódio, setenta e três migrantes oriundos de diversos países da América Latina (Brasil,

2 3

Esta obra abarca o conflito armado, durante a ditadura guatemalteca, que dizimou cerca de 200.000 pessoas. No trabalho, a artista aborda a forma com a qual o exército invadia regiões de tribos indígenas do país, destruía suas comunidades, exterminava-os e enterrava-os em grandes valas comuns. Neste trabalho, realizado na Eslovênia, a artista é enterrada por duas horas em uma cova coberta com vidro transparente, sobre a qual os espectadores podem transitar e ver seu corpo. A motivação da artista para esse trabalho é o esquecimento a que são relegados os vários corpos indigentes sob a terra que pisamos e nem percebemos.

118

Equador, El Salvador e Honduras) tentavam atravessar a fronteira em busca de supostas melhores condições de vida. Em meio à travessia, a comitiva foi interceptada pelo cartel Los Zetas, um dos grupos que controla o narcotráfico na região que executou sumariamente todos os migrantes, com exceção de um jovem equatoriano que conseguiu escapar ileso. A partir das memórias do sobrevivente e contando com o auxílio de jornalistas e escritores, foi desenvolvida uma página na internet4, com o objetivo de dar nomes aos imigrantes assassinados. E na montagem da peça teatral em questão, narra-se a história de sete migrantes, dando corporeidade e voz às histórias selecionadas pelo elenco. Sete relatos chegam à cena. Como os discursos se dão em primeira pessoa, a encenação possui uma forte influência narrativa, permeada vez ou outra por diálogos entre os personagens. Na maioria das vezes, esta concepção mais tradicional de teatro, calcada no diálogo, aparecia para reforçar as memórias dos migrantes durante a trajetória até as terras estadunidenses. Segundo Anatol Rosenfeld Sempre quando o teatro visa integrar o homem em amplos contextos universais ou sociais, impõe-se a recorrer a qualquer tipo de recurso narrativo a fim de ampliar o mundo para além dos limites da moral individual e da psicologia racional, ou seja, para além dos limites do diálogo interpessoal (ROSENFELD, 2012, p. 30).

Este procedimento adotado pela direção foi um dos inúmeros acertos presentes na encenação, configurando-a não como apenas uma performance teatral, mas algo que pudesse chegar próximo a um Manifesto pela vida e pelo povo da América Latina. Por fim, o espetáculo tende a nos levar a um dos objetivos que Brecht gostaria de alcançar com seu teatro épico, que pode ser conferido nesta afirmação de Rosenfeld: “O que importa é não permanecer na mera efusão irracional, é elevar a emoção ao raciocínio, canalizá-la num sentido inteligente, lúcido” (ROSENFELD, 2012, p. 32).

7 Considerações finais Os trabalhos aqui sintetizados buscam recuperar algumas das apresentações e discussões apresentadas no Simpósio Temático Intermediações entre Literatura e Teatro. Seus autores, a partir de diferentes abordagens, socializaram seus caminhos de estudo e apresentaram diferentes visões articulatórias entre o Teatro e a Literatura que fomentaram a necessidade de continuar esse debate em forma de um futuro grupo de pesquisa. Com este trabalho, buscamos, a partir de uma forma sintetizada, demonstrar como é possível e produtiva essa experiência de fundir literatura e teatro a partir de múltiplos olhares.

4

Disponível em: .

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

119

REFERÊNCIAS ARTAUD, Antonin. El ombligo de los limbos. El Pesa–Nervios. Trad. Antonio López Crespo. Buenos Aires: Editorial Aquarius S.R.L., 1972. ______. El teatro y su doble. Barcelona: Edhasa, 2006. AGUIAR, Flávio. Os homens precários. Porto Alegre: A Nação/I.E.L, 1957. BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades, 2002. KLEIST, Heinrich Von. Sobre o teatro de marionetes. Revista USP, n. 17, p. 196 -201, 1993. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2016. LOS 72 QUE MURIERON. Disponível em: . Acesso em: 4 jan. 2016. PIZARNIK, Alejandra. Textos selectos. Selección y Prólogo de Cristina Piña. Buenos Aires: Corregidor, 1999. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. SANTO, Qorpo. Teatro completo. São Paulo: Iluminuras, 2001.  SCHROEDER, Carlos Henrique. As fantasias eletivas. Rio de Janeiro: Record, 2014. ______. História da chuva. Rio de Janeiro: Record, 2015. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes. Gragoatá: Revista dos programas de pós-graduação do Instituto de Letras da UFF, Niterói, v. 13, n. 24, p. 101-117, jul. 2008. Disponível em: . Acesso em: 15 set. de 2015. TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: Performance e memória cultural nas Américas. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

INTRA-AÇÕES HUMANAS E NÃO HUMANAS NA LITERATURA: representações pós-antropocênicas Cláudia de Lima Costa1 Ana Luiza Bazzo da Rosa Fernanda Korovsky Moura Gisele Krama Melina Pereira Savi

1 Introdução Robert Pepperell (2003, p. iv) afirma que “há um estalo perceptível de uma tempestade no ar”. É desta maneira que o autor define a condição pós-humana, que vem sendo discutida por diversos teóricos no nosso século. Esta tempestade está relacionada à quebra de paradigmas e antigos preconceitos sobre a relação entre corpos humanos e corpos considerados não humanos, como os animais, a natureza e as matérias inertes. Tais discussões buscam romper esta barreira construída entre o humano e o não humano, iniciando uma nova era de interação entre seres: o pós-humano. Embora este seja um conceito relativamente novo, certos debates pós-humanos já estão presentes em expressões artísticas ao longo das últimas décadas. O binarismo humano e não humano, por exemplo, foi questionado por Mary Shelley, em Frankenstein, já em 1818, e pelo romance Os Despossuídos (1974), de Ursula K. Le Guin. Ademais, as relações entre o humano e o animal também permeiam a produção literária mundial, como em Humana Festa (2008), de Regina Rheda, e A Confissão da Leoa (2012), de Mia Couto. Tais exemplos ilustram a diversidade das discussões e representações do pós-humano na literatura, que atravessam décadas, limites geográficos e culturais. O presente capítulo, resultado das comunicações orais realizadas no Simpósio Temático Debates Literário-Artísticos Pós-Humanos e Não Humanos em Tempos de Mudanças Climáticas, organizado pela Prof.ª Dr.ª Claudia Junqueira da Lima Costa, durante a X Semana Acadêmica de Letras (UFSC/2016), busca demonstrar como diversas abordagens ao pensamento pós-humano se manifestam nas obras literárias citadas acima. 1

Coordenadora do Simpósio e docente do DLLV/UFSC e do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Contato: [email protected]. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Inglês da UFSC. Contato: [email protected]. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Contato: [email protected]. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Inglês da UFSC. Contato: [email protected].

122

2 Intra-ações humanas e não humanas em Mia Couto A obra A Confissão da Leoa não é um livro somente sobre leões, muito menos somente sobre humanos. Trata-se de um lugar em que a fronteira entre humanidade e animalidade está se espaçando e não é mais possível estabelecer limites precisos. Há um impacto social ao aceitar que os animais podem ter alma e que compartilhariam conosco elementos de sagrado e profano. Para entendermos estas sutilezas, “[...] precisamos questionar criticamente um mundo que dizem ser nosso, mas que não nos pertence temos que abrir mão de certos limites, de certezas que estão cristalizadas dentro de nós” (COUTO, 2013, p. 214). Para fazer esta narrativa, Mia Couto opta por colocar dois personagens para contar suas versões sobre os mundos que vivem. De um lado, um caçador e de sua angústia ao fazer a última caçada. De outro, Mariamar, em um sentimento devastador entre encarar e fugir da realidade ao perceber seu corpo se transformar, se descobrindo como uma leoa em um espaço de conflitos ao serem os leões aqueles que ameaçam a vila que ela tanto odeia e que matam sua própria irmã, Silência. Essa perda faz com que ela tome coragem para lutar outra vez por sua vida como uma fera defendendo o seu território. Logo em seguida ao enterro da irmã, Mariamar desceu rio abaixo. Fugia da vila, da violência do pai e de sua apagada vida. Sumia das lembranças, esquivava-se da dor. Sobre a água, a personagem percebeu que não estava só. Havia uma presença. Era um animal que, furtivamente, se esgueirava pelas folhagens. Bebendo água na margem do rio estava uma leoa a encarar a personagem sem medo. A leoa espreguiçou-se sem pressa e foi embora lentamente. Passeou sobre a terra como que fazendo carícias. Era o seu lugar, o seu território. Não eram os leões a matar as pessoas, a colocar medo no povoado. Tratava-se de uma leoa, plena de toda a sua delicadeza e feminilidade. A travessia pelo rio não deu a Mariamar a liberdade que esperava, mas conduziu a outra parte de si que estava adormecida. Quando criança, Mariamar tinha pesadelos e acordava com uma fome que não cabia em si. Porém, a fome não foi o único comportamento estranho semelhante a um animal. Um dia simplesmente tombou aos pés da cama sem poder se mover. Quando estava no quarto, Silência relatava que a irmã conseguia andar de gatas em transe, que raspava as unhas nas paredes e que os olhos se reviravam. Urrava e espumava como um animal, como se fosse sempre daquele jeito. Discussões sobre as fronteiras entre o humano e o animal foram consideradas por Rosi Braidotti (2013) através de uma reflexão pós-humana. É um exercício de indagar entre o eu e o outro na tentativa de uma ruptura lógica do binarismo de identidades e de uma universalidade que se estabeleceram ao longo dos séculos. Nesse sentido, o pós-humano surge como uma experimentação de corpos até o limite do que podem fazer, expandindo as relações entre o humano e a natureza. Este conceito desconstrói a supremacia das espécies e combate a noção de uma natureza humana. Para Braidotti (2013), a transformação em animais envolve o reconhecimento de solidariedade entre as espécies, onde há uma incorporação destes seres vivos. O animal é considerado necessário, familiar. Essa nova relação entre humanos e animais estabelece outro lugar, uma relação equilibrada já que agora

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

123

não é mais possível criar uma divisão precisa entre um e outro. É como se estabelecesse um canal de comunicação entre as espécies, uma porta que não é mais possível fechar, passando substância e identificação de um lado a outro. Estabelece-se não mais uma relação de exploração, de exaustão dos recursos, mas sim de compartilhamento do território, do ambiente, sem hierarquias. Em A confissão da leoa, Mia Couto faz essa importante discussão sobre as fronteiras entre animalidade e humanidade. A vida é repleta de limites que podem ser espaçados e rompidos em diferentes momentos. Nossas próprias células, apesar de terem membranas que as dividem de outras, são constantemente permeabilizadas, num fluxo contínuo de negociações destes limites. Por mais que tentemos nos isolar, estamos constantemente em contato, fazendo trocas, estabelecendo e rompendo barreiras. Dentro das fronteiras que criamos para nos proteger, segundo o escritor, a mais primitiva é a que nos divide dos animais, aquela que nos garante como ser humano. Mariamar se torna mais humana quanto mais chega perto de sua construção como leoa, de sua animalidade.

3 Intra-ações humanas e não humanas em Regina Rheda Novas maneiras de pensar a relação humano-animal também são discutidas no romance de Regina Rheda, Humana festa. Humana festa foi publicado também nos Estados Unidos, país onde a autora reside desde 1999. Da mesma forma que Rheda se divide entre estes dois países, sua obra é um romance interamericano, situado nos Estados Unidos e no Brasil, mais especificamente numa fazenda do Mato Grosso. Marcado por personagens femininas, o romance tem como protagonista a estadunidense Megan (nome alegórico para vegan, conforme indicação da própria autora), ativista pelo direito dos animais. Sua mãe Sybil é uma ecofeminista, herdeira dos movimentos sociais que ganharam força nos Estados Unidos nos anos 1970. Ambas mantêm uma relação conflituosa com seus companheiros, por conta de suas convicções político-ideológicas. Megan namora o brasileiro Diogo Bezerra Leitão, filho de um fazendeiro e criador de gado e porco. Sybil, após terminar um longo relacionamento com a antiga companheira, também ecofeminista, mantém um relacionamento com o chef Bob Beefeater, o qual passa a boicotar o veganismo da namorada, misturando alimentos de origem animal em suas refeições sem seu conhecimento. A terceira personagem feminina de destaque é Dona Orquídea, funcionária da fazenda dos pais de Diogo, que, mesmo sem conhecimento formal, é vegana por empatia. Dona Orquídea recusava-se a comer animais, mas é obrigada a matá-los e a cozinhá-los por conta de sua profissão. A personagem fala pouco sobre seus hábitos alimentares, pois se sente “torta” (RHEDA, 2008, p. 91) e deslocada, num contexto em que a exploração de sujeitos humanos e não humanos é completamente naturalizada. Dona Orquídea está inserida num ambiente carnívoro e com estruturas de gênero e de classe que a silenciam e a impossibilitam de agir de acordo com sua própria vontade.

124

Há, ainda, outras personagens femininas importantes no romance de Regina Rheda, como Dona Marcela, mãe de Diogo; Vanessa, sobrinha dos Bezerra Leitão, que sofre em segredo com a bulimia; e, por fim, há as porcas da fazenda, em especial Mortadela, amiga de Dona Orquídea. A relação das duas é autêntica e nasce de forma espontânea, alimentada pela identificação com o sofrimento. Enquanto assiste à dor das porcas confinadas, a trabalhadora rural compreende a política do matadouro e sofre com a condição daqueles sujeitos engaiolados. Talvez por conta da desumanização à qual foram submetidas, as mulheres têm mais facilidade para criar laço e afetividade com os animais não humanos. Não é à toa que, de acordo com os estudos de Carol J. Adams (2012), aproximadamente 80% dos integrantes de movimentos pela defesa dos animais são mulheres. Antes de Derrida cunhar o termo “carnofalogocentrismo”, Carol J. Adams, em A política sexual da carne, já havia abordado a relação entre a opressão sofrida pelas mulheres e pelos animais não humanos, sobretudo pelas fêmeas destas espécies. Segundo Adams, é o mesmo processo político e simbólico que transforma em comestível o corpo dos animais e em sexualizado o corpo das mulheres, dentro da mesma lógica de dominação. A autora termina o prefácio à edição de décimo aniversário de A política sexual da carne com a seguinte afirmativa: “Tenho convicção de que esses seres humanos que têm sido explorados podem simpatizar com não humanos que também são explorados e assim ajudá-los” (ADAMS, 2012, p. 34). É de extrema importância, portanto, que os Estudos Animais adotem uma perspectiva feminista, sem a qual pode não ser possível a libertação do paradigma de violência e dominação que estrutura a sociedade. Por sua vez, a teoria feminista contemporânea precisa colocar-se fora do antropocentrismo, considerando a crítica pós-humanista e as teorias pelos direitos dos animais, pois tanto a violência cometida contra as mulheres quanto a exploração dos animais não humanos são formas de dominação que estão imbricadas uma na outra.

4 Intra-ações humanas e não humanas em Ursula Le Guin Ursula K. Le Guin, por sua vez, em meados da década de 70 publicou Os Despossuídos, livro que busca, também, derrubar barreiras e binarismos entre o humano e o não humano. O romance de Guin é uma obra de ficção científica, na qual um físico, chamado Shevek, tem por objetivo “derrubar as paredes” que enxerga à sua volta. Essas paredes podem ser interpretadas como as construções dicotômicas que nos levam a entender que as alianças entre corpos humanos e não humanos são regidas por uma hierarquia em que o não humano está sempre subjugado ao humano, já que neste contexto o último é comumente tido como passivo ou desprovido de intencionalidade. Teóricas como Donna Haraway, Jane Bennett e Karen Barad vêm articulando teorias que problematizam o construtivismo social como tendo dado muito poder ao discurso (e, por conseguinte, à ideia de objetividade em que o humano teria acesso à verdade sobre um objeto ou um evento e seria capaz de descrevê-lo

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

125

sem que o objeto ou evento informasse algo de si mesmo para o humano). Essas teóricas nos convidam a observar como a matéria (e o não humano) informa o discurso e resiste à sua suposta capacidade de “representação”, que é unilateral e parcial. Na obra de Le Guin, nota-se que Shevek, do planeta Anarres, que em muito se parece com um dos possíveis futuros da Terra dentro do cenário das mudanças climáticas – já que o planeta é quente, árido e poucas espécies conseguem se adaptar – alia-se a corpos não humanos em uma maneira que ilustra sua filosofia de vida em que o humano não é central ou age sozinho no planeta. Foram exploradas as estratégias de aliança de Shevek com corpos não humanos nessa busca pela desconstrução de paredes que dificultam o acesso que ele deseja ter a uma forma menos hierárquica e violenta de se relacionar com o mundo. O exercício de pensar em formas de viver que levam em conta a necessária intra-ação de corpos humanos e não humanos pode ser de grande valia para lidarmos com as implicações do novo momento geológico em que ingressamos, o Antropoceno. Dentro do contexto das humanidades, o projeto político e filosófico de Jane Bennet em Vibrant Matter (2012) é, em momentos, muito similar ao projeto de Shevek. Ela, assim como a personagem, procura desconstruir paredes, desmantelar a ilusão de separação entre observador e objeto, entre corpos humanos e não humanos. Bennett explica que seu projeto filosófico tem como fim pensar de forma desacelerada acerca de uma ideia que vem ganhando velocidade, a da matéria como passiva ou inerte (vide Descartes). A parede que separa as coisas entre matéria inerte e corpos vibrantes é em parte responsável, ela argumenta, pela nossa falta de compromisso com a matéria vital, com o nosso lixo, com os agrupamentos humanos e não humanos dos quais fazemos parte. Já o projeto político da teórica é “encorajar entrosamentos mais inteligentes e sustentáveis com matérias vibrantes e coisas vivas”, e Bennett lança uma pergunta: “como é que as respostas políticas para os problemas públicos mudariam se levássemos a sério a vitalidade de corpos [não humanos]?” (2012, p. 8). Diante de um cenário em que matérias tidas como inertes são revistas como tendo graus de intencionalidade, que tipos de instrumentalizações da matéria problematizaríamos e/ou apoiaríamos e de que formas? Na narrativa de Le Guin, vê-se com frequência a construção de relações éticas entre humanos e não humanos e a problematização de relações predatórias entre as duas partes como tendo consequências tanto para o humano quanto para o não humano. Quando, em Os Despossuídos, Shevek consegue enxergar que as paredes, que as fronteiras que o atordoavam eram construções de areia projetadas com o intuito de limitar o agenciamento de pessoas, de ideias e de coisas, ele sai de uma espécie de “transe de insight” e sente-se orientado pelos objetos que o cercam, por elementos não humanos: Depois de um tempo ele levantou-se ainda trêmulo e acendeu a lâmpada. Ele vagou pelo quarto um pouco, tocando as coisas: a encadernação de um livro, a sombra da lâmpada, feliz por estar de volta entre esses objetos familiares, de volta ao seu próprio mundo [...] (LE GUIN, 2015, p. 180).

126

É o livro, a lâmpada e o quarto que estabilizam Shevek. São as coisas e o entrosamento dele com elas. O compromisso ético que surge dessa noção de que estamos sempre e tudo está sempre em agrupamento é o compromisso de que é preciso, talvez, para pensarmos o Antropoceno como a era em que o homem não cria outro centro, mas se enxerga dentro de um agrupamento e se responsabiliza pela parte que lhe cabe.

5 Intra-ações humanas e não humanas em Mary Shelley Mary Shelley (2012), ainda no início do século XIX, também instigou a reflexão sobre as relações entre corpos humanos e não humanos com a publicação de Frankenstein em 1808. A história do médico que desafia as leis da natureza ao impor vida a uma matéria inanimada – com consequências desastrosas – corrobora as três condições do pós-humano elencadas por Pepperell. Segundo o autor, a primeira condição do pensamento pós-humano é o questionamento dos ideais humanistas (p. iii). O ideal humanista pode ser representado pelo Homem Vitruviano, desenhado por da Vinci no final do século XV. Braidotti afirma que o Homem Vitruviano é “[...] o emblema do Humanismo como doutrina que combina a expansão biológica, discursiva e moral das capacidades humanas em uma ideia de progresso teleologicamente ordenada e racional” (PEPPERELL, 2013, p. 13). Não por acaso, o modelo do ser humano renascentista era do sexo masculino, europeu, branco e atlético. Qualquer desvio deste padrão seria considerado não humano. Com as discussões sobre o pós-humano, tal pensamento já não se sustenta. O pós-humanismo – diferentemente do humanismo, que colocava o europeu branco como centro do universo e poder – se pauta na descentralização de papeis aos diversos seres, sem superioridade de uma espécie sobre a outra: humana ou não humana, cultural ou natural, orgânica ou inorgânica. Esta primeira condição do pensamento pós-humano explicada por Pepperell pode ser encontrada em Frankenstein. A personagem Victor Frankenstein é um típico homem europeu que crê no ideal humanista, que percebe o ser humano como superior às demais espécies. Ao longo do romance, esta atitude da personagem é desafiada após seus experimentos com a natureza, que escapam do seu controle. Frankenstein, por fim, compreende que o mundo é um espaço de inter-relação e intra-ação entre os seres, nas quais o ser humano não desfruta absoluta superioridade. A segunda condição do pensamento pós-humano elencada por Pepperell está relacionada a novas formas de conceber o ser-humano. O ser humano não é mais visto como uma entidade fixa. Pelo contrário, o ser humano é uma construção social, baseada na “[...] formação discursiva culturalmente e historicamente específica; a qual, ademais, está se tornando cada vez mais problemática” (BRAIDOTTI, 2013, p. 24). Em Frankenstein, o doutor, ao contemplar sua criação, o chama de “monstro” e “demônio”. Por não estar de acordo com o padrão do Homem Vitruviano, o ser de Frankenstein foi relegado ao papel do “outro”, algo “não humano”. Contudo, sua

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

127

criação apresentava sentimentos relacionados ao ser humano, como compaixão e amor, enquanto o médico se mostrava cruel e egoísta. Afinal, quem era o monstro? O que poderia ser considerado humano e o que seria não humano? Já no início do século XIX, Shelley apontou este questionamento, que está no cerne dos debates pós-humanos. Por fim, a terceira condição do pós-humano explicada por Pepperell é a dissolução da barreira entre o humano e o tecnológico. Novas invenções, como o microscópio e o relógio mecânico, nos apresentaram novas dimensões de seres que se relacionam com o humano anteriormente desconhecidas (PEPPERELL, 2013, p. 158). Assim como afirma a já citada Jane Bennet, que discorre sobre a relação entre matérias inertes e corpos vibrantes, o universo é um emaranhado de intra-ação entre matérias, tanto humanas quanto não humanas. Tal binarismo entre natural e artificial já havia sido posto em debate com a publicação de Frankenstein. Neste romance de Shelley, as distinções entre matéria natural e matéria criada em laboratório se dissiparam e o limite entre o humano e o não humano apresentou-se como tênue e inconstante.

6 Considerações finais Mia Couto, Regina Rheda, Ursula K. Le Guin e Mary Shelley não são os únicos a debaterem a questão pós-humana através da literatura. Pelo contrário, discussões sobre novas maneiras de pensar a relação entre o humano e os animais, a natureza e a tecnologia felizmente já permeiam diversas expressões artísticas. Estes autores são provas de que a tempestade a qual se referiu Pepperell está definitivamente a caminho. Paradigmas e preconceitos estão sendo derrubados para que uma nova forma de pensar tome conta de nossas ações, tendo em vista nosso papel na inter-relação e inter-ação de seres no universo: um pensamento pós-humano.

128

REFERÊNCIAS ADAMS, Carol J. A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Editora Alaúde, 2012. BENNETT, Jane. Vibrant matter: political ecology of things. London: Duke University Press, 2010. BRAIDOTTI, Rosi. The posthuman. Cambridge/UK- Malden/US: Polity Press, 2013. COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ______. Pensar o Pensamento, Redesenhando Fronteiras. In: MACHADO, Cassiano Elek (Org.). Pensar a cultura. Porto Alegre: Aquipélado Editorial, 2013. p.95-106. LE GUIN, Ursula K. The dispossessed. New York: 1st Perennial Classics, 2015. PEPPERELL, Robert. The posthuman condition: consciousness beyond the brain. Bristol: Intellect, 2003. RHEDA, Regina. Humana festa. Rio de Janeiro: Record, 2008. SHELLEY, Mary. Frankenstein. São Paulo: Martin Claret, 2012.

LETRAMENTO, DIVERSIDADE CULTURAL E INCLUSÃO Ana Paula Santana1 Elisabeth da Silva Eliassen Lais Oliva Donida Letícia Alves de Souza Sandra Pottmeier

1 Introdução Este texto constitui-se a partir de três comunicações apresentadas na IX Semana Acadêmica de Letras (UFSC/2016) no Simpósio: “Letramento, Diversidade Cultural e Inclusão”. Pela amplitude das discussões realizadas durante a apresentação, optamos nesse texto, por articular um eixo comum a todos: a discussão sobre a leitura no contexto educacional e clínico. Sabe-se que, as práticas sociais de leitura apresentam-se como base para a alfabetização. Sendo assim, os estudos do letramento e da cultura escrita são fundamentais para entendermos os usos e valores dados à leitura nos diferentes grupos sociais. Na sociedade grafocêntrica em que vivemos, não dominar a leitura e escrita implica, muitas vezes, marginalização do sujeito (KLEIMAN, 1995; ROJO, 2009; SOARES, 2012, 2014; STREET, 2012; 2014). Temos ainda que considerar nessa discussão, que os diferentes modos de transmissão cultural, a desigualdade social e as diferentes formas de acesso à cultura escrita podem implicar em exclusão social (BOURDIEU, 2013). E é por isso, que partimos, nesse trabalho, de uma noção de “letramento ideológico”. Nesse sentido, o letramento é entendido como uma prática de cunho social, ideologicamente marcada (KLEIMAN, 1995). Portanto, compreendendo a linguagem escrita como uma prática social, deve-se levar em conta conceitos como: práticas de letramento, gêneros do discurso, eventos de letramento, capital cultural, herança cultural (ROJO, 2009; STREET, 2012; 2014; BOURDIEU, 2013). A partir dessas considerações o objetivo deste texto é discutir as práticas de leitura no contexto educacional e clínico a partir de três perspectivas: a) leitura de alunos do ensino médio; b) leitura de pessoas com deficiência intelectual; c) avaliação de leitura no contexto fonoaudiológico. As interlocuções que constituem o presente 1

Doutora em Linguística e docente do curso de Fonoaudiologia e da Pós-Graduação em Linguística (UFSC). E-mail: [email protected]; Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística (UFSC). E-mail: [email protected]; Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística (UFSC). E-mail: lais.donida@gmail. com; Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística (UFSC). E-mail: [email protected]; Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística (UFSC). E-mail: [email protected].

130

texto, partem de uma perspectiva histórico-social (VIGOTSKI, 1997; BAKHTIN, 2012), da história da leitura e da sociologia (CHARTIER, 2011; BOURDIEU, 2013; LAHIRE, 1997).

2 Acesso à cultura escrita: considerações sobre as práticas de leitura de alunos do ensino médio Esta comunicação discutiu o conceito de letramento autônomo e suas implicações para as novas práticas midiáticas de leitura a partir dos discursos de estudantes que frequentam o segundo ano do Ensino Médio de uma escola pública localizada no Vale do Itajaí – SC/Brasil. O conceito de Letramento Autônomo (STREET, 2014) parte do pressuposto de que, determinadas práticas sociais de leitura e de escrita, são associadas diretamente ao sucesso. Essas práticas são as mais utilizadas e valorizadas pela classe dominante enquanto as demais são desprestigiadas. A escola legitima essa idealização de um sujeito leitor e do que é leitura: considera-se a leitura de literatura e dos grandes clássicos (Machado de Assis, Érico Veríssimo, por exemplo), enquanto as demais formas de leituras, em sua maioria, são desconsideradas (gibis, revistas, tirinhas, por exemplo). Esta instituição de ensino, na grande maioria das vezes, corrobora com essa visão de letramento autônomo e valoriza ou exclui os alunos que vivenciam outras práticas. Atualmente, pode-se dizer que a escola ainda marginaliza as práticas de leitura e escrita utilizadas nos meios digitais (BUCKINGHAM, 2007; STREET, 2014). Em contrapartida, pode-se dizer também que nunca se leu e se escreveu tanto, já que os suportes digitais móveis (smartphone, tablet), favorecem e inserem esses alunos em práticas de letramento digitais. Ou seja, houve uma democratização no acesso às práticas de leitura e escrita com o advento das Tecnologias de Informação e Comunicação (CORTELLA, 2014). As novas práticas de leitura convocam, assim, “novos leitores”. Mas o que os estudantes dizem sobre seus hábitos de leitura? Para dar visibilidade a essa questão, apresentamos abaixo um relato de pesquisa que foi realizada com um corpus constituído por 25 estudantes de idade entre 15 e 17 anos, que frequentam o segundo ano do Ensino Médio de uma escola pública localizada no Vale do Itajaí-SC/Brasil. Foi realizado um questionário semiestruturado com dez perguntas abertas. Os estudantes tiveram que responder as questões de forma dissertativa. As perguntas do questionário foram sobre as práticas de leitura que esses sujeitos realizam no seu cotidiano: o que liam, por que liam, onde liam, com que frequência liam, se a família também tinha por hábito a leitura. O resultado apontou que dezesseis alunos afirmaram ter o hábito de ler, sete não leem nunca e, dois leem às vezes. Quando solicitados a justificarem porque têm ou não o hábito de ler, seguem exemplos de alguns relatos: [relato 1]: “[...] eu acho importante que tenhamos esse hábito para que nosso conhecimento cresça, além de ser um ótimo lazer”. [relato 3]: “Tenho pouco hábito de leitura porque não fui acostumada a ter leituras diariamente”. [relato 8]:“Não porque não me interesso

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

131

por ler”. Sobre o que leem, doze responderam que leem mensagens em redes sociais (Facebook, WhatsApp, Twitter), dez leem livros, dois leem revistas e, um afirma não ler nada. Os resultados apontam que, embora a maioria dos estudantes, ou seja, 64% possivelmente participem de leituras digitais diversas (Facebook, WhatsApp, mensagens de celulares, sites de internet, dentre outros), ainda encontramos 28% que afirmam não terem o hábito da leitura, seguidos de 8% que fazem referências as mídias digitais. Isso evidencia que, ideologicamente, os estudantes também concebem “leitura” como sendo “leitura de livros e revistas”, legitimando o conceito de letramento digital. Ou seja, embora as redes sociais passem a fazer parte dos hábitos de leitura dos sujeitos, haja vista, que estes são nascidos na “Era Digital”, considerados “nativos digitais” (BUCKINGHAM, 2007), poucos ainda consideram essa prática como “leitura” (CHARTIER, 2011). Logo, para que se discuta a inclusão e o direito de todos(as) ao acesso à cultura escrita, é preciso uma mudança de olhar para que se possa considerar que a inserção dos sujeitos se dá a partir de diferentes práticas de leitura e escrita. E, ainda, é preciso que a escola cumpra seu papel de “agência de letramento” e que considere as diversas práticas de leitura na formação do leitor.

3 As práticas sociais de leitura como ponto de partida à alfabetização de alunos com deficiência intelectual Esta comunicação pretende discutir a temática da apropriação da leitura a partir das vivências socioculturais por parte de alunos com deficiência intelectual. Se a discussão sobre a leitura na educação regular já pode ser considerada recorrente, o mesmo não ocorre com relação ao contexto da deficiência intelectual. Nesse cenário, as bases teóricas para um trabalho com a leitura dos alunos, ainda parecem concorrer com certos mitos em relação à capacidade de alfabetização e aquisição de novos conceitos por parte dos mesmos. Ressalte-se que a abordagem histórico-cultural (VYGOTSKY, 1997) é o ponto de partida para a constituição deste estudo, sobretudo porque tal perspectiva prioriza a análise do sujeito corpóreo, histórico e social, sendo o próprio sujeito agente de sua trajetória, tendo sua conduta mediada pelas condições históricas e culturais. Torna-se, assim, premente entender o que se chama de Deficiência Intelectual: Deficiência intelectual é uma incapacidade caracterizada por importantes limitações, tanto no funcionamento intelectual (raciocínio, aprendizagem, solução de problemas) quanto no comportamento adaptativo, que abrangem o âmbito das habilidades sociais e práticas cotidianas. Essa incapacidade origina-se antes dos 18 anos de idade” (AAIDD, 2006, s/n, tradução nossa).

Por vezes, pessoas com deficiência intelectual são consideradas incapazes de realizar atividades com algum tipo de complexidade e também são habitualmente infantilizadas. Contudo, o foco da aprendizagem deve estar no sujeito como pessoa

132

e não em sua dificuldade: “[...] a criança cujo desenvolvimento está dificultado pela deficiência não é simplesmente uma criança menos desenvolvida que seus pares normais, sim desenvolvida de outro modo” (VYGOTSKY, 1997, p. 12, grifos do autor, tradução nossa). Assim, “o grau de seu defeito e sua normalidade dependem do resultado da compensação social, quer dizer, da formação final de toda sua personalidade” (VYGOTSKY, 1997, p. 20, tradução nossa). De maneira geral, por práticas sociais de leitura e escrita, compreendemos as experiências que afetam o sujeito a partir de suas vivências com toda forma de escrita, como por exemplo, placas de trânsito, rótulos de alimentos, folhetos de ofertas, gibis, revistas, dentre tantas outras possibilidades (STREET, 2012; SOARES, 2014). Nesse sentido, ao nascerem, os sujeitos estão imersos na cultura escrita, sendo a escrita aqui entendida como capital cultural (BOURDIEU, 2013). A partir dessas considerações, as transmissões do capital cultural na família de crianças com deficiência intelectual, em muitos contextos, são realizadas de forma limitada. O fato é que esses pais não concebem seu filho como um “herdeiro”, e o “destitui dessa herança” (LAHIRE, 1997). Ou seja, muitas famílias mantêm uma preocupação efetiva com relação às questões assistenciais voltadas à pessoa com deficiência, pois muitas vezes, as pessoas com deficiência intelectual possuem outros problemas que estão relacionados à condição de saúde, e estes acabam abarcando maior atenção dos pais e, desta forma, questões relacionadas à aprendizagem da leitura e da escrita são esquecidas. Deste modo, a aprendizagem apresenta-se em um percurso de dificuldade até o momento de desenvolver-se e o sujeito apropriar-se da leitura e da escrita. Não é à toa que a literatura aponta para uma lacuna com relação a esses aspectos (FERREIRA, 2005; 2013), pois a grande parte das pesquisas, refere-se aos contextos assistenciais como, por exemplo, de ordem fisiológica e motora. A falta de produção indica que ainda se acredita pouco no potencial das pessoas com deficiência intelectual, pois continuam sendo caracterizadas como indivíduos incapazes, e assim, que não são possibilitados de apropriar-se da escrita e da leitura. O paradoxo aqui é que a política educacional vigente parte de uma educação especial na perspectiva inclusiva (BRASIL, 2008 – Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva), ou seja, deveria haver uma preocupação também com relação à leitura dessas crianças. A escola e a família deveriam ser os principais atores sociais envolvidos na inserção desses sujeitos nas práticas leitoras. Contudo, as pesquisas não apresentam dados nem, tampouco, discussões sobre essa temática. Essa investigação aponta, assim, para a necessidade emergencial de pesquisas que tomem as práticas de leitura de pessoas com deficiência intelectual como objeto de análise.

4 O letramento e a avaliação da linguagem escrita no contexto fonoaudiológico O tema desta comunicação surgiu da necessidade de discutir os pressupostos teóricos que vêm sendo utilizados para a avaliação da leitura e escrita na prática clínica. Dentre os profissionais que atuam com a linguagem escrita, está o fonoaudiólogo

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

133

e, como parte dos procedimentos deste profissional, destaca-se a avaliação. Nesta, o fonoaudiólogo pode lançar mão de diferentes ferramentas, incluindo testes e observações. Contudo, a maioria dos testes padronizados prioriza tarefas descontextualizadas das situações reais de uso da leitura e da escrita. O que nos leva ao seguinte questionamento: afinal, a avaliação fonoaudiológica tem considerado as práticas e eventos de letramento das quais os sujeitos participam, ou tem privilegiado apenas a observação de sinais e sintomas relacionados ao fracasso escolar? Para responder essa questão realizou-se uma análise do Teste de Desempenho Escolar (STEIN, 1994). Este é utilizado amplamente nas avaliações fonoaudiológicas e em pesquisas científicas da área, o qual consiste em três subtestes, sendo um de escrita (composto por um ditado de 34 palavras), outro de aritmética (subdividido em duas partes, uma oral com 3 problemas envolvendo cálculos e uma escrita envolvendo 35 tarefas de cálculo) e o último de leitura (abrangendo a leitura de 70 palavras isoladas). O desempenho do educando é medido por um escore gerado a partir dos erros nas tarefas supracitadas, e quando o escore é inferior aos preestabelecidos, sugere-se a presença de um distúrbio de leitura e escrita. Observando esse teste especificamente, entende-se a sua fragilidade para determinar a presença de um distúrbio de linguagem escrita, considerando que é composto por tarefas que em nada se aproximam com o uso real e efetivo da leitura e da escrita, corroborando com o que é apontando por Massi e Gregolin (2005), a respeito dos testes frequentemente utilizados na prática clínica. Deste modo, as autoras defendem que os testes não avaliam a escrita já que se constituem em tarefas descontextualizadas e fragmentadas, desconsiderando assim, as ações dos sujeitos e da própria linguagem. Enfatizam ainda que, estes demonstram uma compreensão equivocada entre a oralidade e a escrita, já que ignoram o texto como manifestação da língua. Ou seja, não avaliam a leitura e escrita, já que não é possível avaliar a atividade da escrita “fora” da linguagem e distante do sujeito. Compreende-se que a construção da leitura e escrita ocorre em duas dimensões interligadas: a escolar e a familiar. Portanto, antes de associar a causa de dificuldades na aquisição da linguagem escrita com déficits biológicos, é essencial investigar, em profundidade, as práticas de letramento, de forma a não rotular inutilmente sujeitos em processo de apropriação da linguagem escrita que poderia estar truncado por práticas insuficientes ou inadequadas (BERBERIAN; MORI-DEANGELIS; MASSI, 2006). Portanto, pondera-se que, um caminho possível para avaliação da leitura e escrita realizada pelo fonoaudiólogo, deverá buscar uma aproximação das tarefas avaliativas com as situações reais de uso da escrita, sendo o uso dos gêneros discursivos/textuais uma ferramenta essencial durante a avaliação. Conclui-se desta forma que a avaliação da linguagem escrita deve contemplar, além dos aspectos formais, o aspecto discursivo, nos quais as práticas e eventos de letramentos devem ser considerados fundamentais para qualquer indicação diagnóstica e terapêutica.

134

5 Considerações finais Ao final desse trabalho pode-se dizer que as três comunicações apresentadas buscaram discutir a constituição do leitor e suas práticas de letramento, que perpassam discussões sobre o conceito de leitura na educação e mesmo na clínica fonoaudiológica. Ou seja, ao conceber uma concepção de letramento autônomo como vigente ainda nas escolas e também na clínica, podemos chegar às seguintes considerações: a. b. c.

Na escola encontramos um “leitor que não se considera e nem é considerado um leitor” (a partir de uma concepção enviesada de leitura); O leitor que possui deficiência intelectual ainda precisa encontrar o seu lugar (até agora inexistente) na cultura escrita. Ou seja, não lhe é dado a oportunidade para assumir seu papel de “leitor” (para além das dificuldades orgânicas); A clínica fonoaudiológica ainda toma a normatização da língua (extraída de seu uso) para referendar a normalidade e a patologia.

O que se revela é que, de um lado ou de outro, nem a escola está preparada para a diversidade (não só de aluno, mas também de concepção de leitura), nem tampouco a clínica fonoaudiológica oferece um lugar diferente do escolar. Desta forma, tanto o contexto educacional quanto o clínico, apresentam ainda vigentes um modelo que legitima a exclusão social e desconsidera os vários tipos de leituras e de leitores.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

135

REFERÊNCIAS AMERICAN ASSOCIATION IN INTELLECTUAL AND DEVELOPMENTAL DIABILITIES (AAIDD). Definition. Disponível em: .  Acesso em: 20 jun. 2016. BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2012. BERBERIAN, A. P.; MORI-DE-ANGELIS, C. C.; MASSI, G. Violência simbólica nas práticas de letramento. In: BERBERIAN, A. P., MORI-DE-ANGELIS, C. C.; MASSI, G. Letramento: referenciais em saúde e educação. São Paulo: Plexus, 2006. BOURDIEU, P. Escritos de Educação. Organização de Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. 14. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, 2008. Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2016. BUCKINGHAM, D. Crescer na era das mídias eletrônicas. São Paulo: Edições Loyola, 2007. CHARTIER, R. (Org.). Práticas de Leitura. A leitura: uma prática cultural: debate entre Pierre Bourdieu e Roger Chartier. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. CORTELLA, M. S. Educação, escola e docência: novos tempos, novas atitudes. São Paulo: Cortez, 2014. FERREIRA, M. C. C. Alunos com deficiência na escola comum: Os professores ensinam? Eles aprendem? Trabalho apresentado na 28ª Reunião Anual da ANPED, 2005. ______. A escolarização da pessoa com deficiência mental. In: LODI, A. C. B. et al. (Org.). Letramento e minorias. 6. ed. Porto Alegre: Mediação, 2013. HÉBRARD, J. Alfabetização e acesso às práticas da cultura escrita de uma família do sul da França entre os séculos da França: entre os séculos XVIII e XIX: um estudo de caso. In: GALVÃO, A. M. O. e col. (Org.). História da Cultura Escrita: séculos XIX e XX. Belo Horizonte: Auêntica, 2007.

136

KLEIMAN, A. B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: KLEIMAN, A. B. (Org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: As razões do improvável (R. A. Vasques & S. Goldfeder, Trads). São Paulo: Ática, 1997. MASSI, G.; GREGOLIN, R. Reflexões sobre o processo de aquisição da escrita e a dislexia. Revista Letras, Curitiba, n. 65, p. 173-189, jan./abr. 2005. ROJO, R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial: 2009. SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. ______. Alfabetização e letramento. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2014. STEIN, L. M. TDE - Teste de Desempenho Escolar: manual para aplicação e interpretação. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo, 1994. STREET, B. V. Eventos de letramento e práticas de letramento: teoria e prática nos novos estudos do letramento. In: MAGALHÃES, I. (Org). Discursos e práticas de letramento:pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2012. ______. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução: BAGNO, Marcos. São Paulo: Parábola Editorial, 2014. VYGOTSKY, L. S. Obras escogidas. Tomo V. Fundamentos de defectologia. Madrid: Visor, 1997.

LITERATURA CHAMISSO: Yoko Tawada e Saša Stanišić Werner Heidermann1 Carla Miranda Tsunematsu Julia Stella Mastrocola

1 Introdução “Chamisso-Literatur” é a denominação de uma categoria relativamente nova dentro da literatura alemã. Trata-se da literatura escrita em língua alemã por escritores que não falam o idioma alemão como língua materna. Não falamos em traduções, falamos em originais escritos em alemão por pessoas que, pelos motivos mais variados, vieram para a Alemanha e têm uma produção literária significativa. A denominação é recente e ainda não se encontra incluída nos títulos mais atuais da história da literatura alemã, como na Deutsche Literaturgeschichte. Von den Anfängen bis zur Gegenwart de Beutin e outros do ano de 2008. Em A New History of German Literature de Wellbury de 2004, embora nas páginas 1122 a 1124 a literatura Chamisso seja explicitada, ela não é, contudo, denominada. Lemos na tradução para o alemão (Eine neue Geschichte der deutschen Literatur, 2007) o elucidativo comentário que “os críticos literários precisaram de muito tempo para reconhecer essas obras como parte do ambiente literário na Alemanha, ambiente em mudança” (WELLBURY, 2004, p. 1122).2 De onde vem o nome da literatura Chamisso? Trata-se de uma referência a Adelbert von Chamisso, escritor que nasceu em 1781 na França, de onde sua família fugiu no decorrer da Revolução Francesa. Adelbert conduziu pesquisas botânicas; pertenceu ao círculo da Madame de Staël e, mais tarde, ao grupo dos autores e teóricos românticos de Berlim. Participou de uma expedição de circum-navegação de três anos que o trouxe, aliás, também para Santa Catarina. Um segmento do mosaico da reitoria da UFSC, obra de Rodrigo de Haro, é uma homenagem a Adelbert von Chamisso. Ele faleceu em 1838 em Berlim. Sua obra mais lida é a novela Peter Schlemihls wundersame Geschichte com traços autobiográficos que tratam do tema da pessoa que perdeu sua terra natal (“Heimat”).3 O próprio Adelbert von Chamisso representa o tema de forma exemplar, tendo em vista que escreveu em alemão e não mais no idioma materno, o francês. 

1 2 3

UFSC. E-mails: [email protected]; [email protected]; [email protected] Original alemão: [D]ie Literaturkritiker haben lange gebraucht, um diese Werke als Teil der sich verändernden literarischen Landschaft in Deutschland zu erkennen (Tradução de W. H.). A tradução para o português do Brasil é de Marcus Vinicius Mazzari intitulada A história maravilhosa de Peter Schlemihl, Estação Liberdade. 2003(2.)

138

Foi em 1985 que o professor Harald Weinrich, da Universidade de Munique (e depois do Collège de France), instituiu o Prêmio Chamisso. Desde então, mais de 65 autoras e autores provenientes de mais de 20 países foram premiados. Na época surgiu a definição original do prêmio e com isso igualmente da categoria literária: prêmio para autores que escrevem em alemão sem ter o alemão como língua materna. Nos primeiros anos a literatura Chamisso foi quase idêntica à assim chamada “Gastarbeiterliteratur”, ou seja, a literatura de escritores de descendência turca, iugoslava, grega – “trabalhador convidado” é a tradução da expressão eufemística “Gastarbeiter”. Remete aos anos em que o governo alemão incentivava a imigração de trabalhadores do sul da Europa (através de convênios com Espanha e Grécia a partir de 1960; mais tarde com a Turquia, Portugal e Iugoslávia (MEIER-BRAUN, 2015, p. 26) O escritor suíço Max Frisch rebelou-se contra a denominação e comentou o fato dos convênios: “Chamamos mão de obra – chegaram, no entanto, seres humanos!”4 A partir da queda do muro de Berlim e das mudanças nas últimas décadas nos países socialistas, se fala cada vez mais em “Migrationsliteratur”, incluindo no conceito grande número de autores da Europa Oriental. As mudanças macropolíticas levaram a Fundação Robert Bosch, financiadora do prêmio, a uma redefinição da sua missão: desde 2012, então, quer prestigiar autoras e autores, cuja obra se caracterize por promover “mudança cultural” (“Kulturwechsel”). Outro pré-requisito é o uso extraordinário da língua de modo a enriquecer a literatura alemã. “Enriquecer a língua alemã” é uma concretização visível da alteridade, conceito teórico que às vezes se distancia bastante do texto concreto. A “mudança cultural” ganha visibilidade na inovação linguística, que trazem, por exemplo, as literaturas de Terézia Mora da Hungria e de Feridun Zaimoglu de descendência turca. Volker Weidermann, na pesquisa Lichtjahre. Eine kurze Geschichte der deutschen Literatur von 1945 bis heute, menciona somente Zaimoglu e Mora do grupo dos autores Chamisso. Na tentativa de fazer jus à obra de Zaimoglu, Weidermann cria a etiqueta de “Revolta e entusiasmo pela língua”5 (WEIDERMANN, 2007, p. 296), o que é uma fórmula feliz para o trabalho literário de Feridun. Weidermann caracteriza o estilo da Terézia Mora como: “ Uma outra melodia, transformada do húngaro para um novo e bonito alemão.”6 (WEIDERMANN, 2007, p. 254) Houve e continua havendo uma vívida recepção desta literatura na Alemanha. Várias obras desta categoria se tornaram bestsellers: é o caso de Nino Haratischwili da Geórgia (Das achte Leben für Brilka), e de Yoko Tawada, autora japonesa com produção em japonês, mas principalmente em alemão. É o caso de vários russos: Wladimir Kaminer e Alina Bronsky, e é o caso de muitos autores turcos e árabes. A literatura Chamisso, com isso, deixou de ser literatura exótica; em grande parte, é literatura bem recebida e, aliás, muito bem vendida. Vale a pena destacar que a grande maioria dos autores premiados são romancistas. São exceções, neste sentido, a dramaturga Emine Sevgi Özdamar (Prêmio Chamisso em 1999) e Yoko Tawada que também é poeta e ensaísta.

4 5 6

Em alemão: Wir riefen Arbeitskräfte, und es kamen Menschen! (Tradução de W. H.). Em alemão: Empörung und Sprachbegeisterung. Em alemão: Eine andere Melodie, aus dem Ungarischen herübertransformiert in ein neues, schönes Deutsch.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

139

A “mudança cultural” do autor ou da autora tem como consequência uma nova perspectiva por parte do leitor e da leitora. A “mudança cultural” nos obriga a incluir estudos teóricos sobre o híbrido. Centro da análise teórica poderia ser a abordagem de Homi Bhabha e seu “Terceiro Espaço” mesmo sabendo que esse entendimento traz o problema do “intelectualismo” apontado, por exemplo, por Canan que escreve: “[isso] poderia ter relação com o fato de que autores pós-coloniais se interessam mais por acessos a fenômenos culturais, fenômenos advindos dos estudos literários e textuais e das ciências sociais”7 (CANAN, 2015, p. 59). Ao invés de aprofundar, neste contexto da Semana de Letras, tendências teóricas, e também afim de evitar qualquer intelectualismo, cito em seguida um trecho histórico de Robert E. Park de 1928 que pode servir como uma das pedras fundamentais dos estudos sobre o híbrido: There appeared a new type of personality, namely, a cultural hybrid, a man living and sharing intimately in the cultural life and traditions of two distinct peoples; never quite willing to break, even if he were permitted to do so, with his past and his traditions, and not quite accepted, because of racial prejudice, in the new society in which he now sought to find a place. He was a man on the margin of two cultures and two societies, which never completely interpenetrated and fused (CANAN, 2015, p. 19).

Literatura pode fazer a diferença. Quem lê Nino Haratischwili, Saša Stanišić (Vor dem Fest), Catalin Dorian Florescu (Jacob beschließt zu lieben ou também Der Mann, der das Glück bringt), Yoko Tawada, Rafik Schami, Terézia Mora (Alle Tage), Feridun Zaimoglu (Kanak Sprak) se abre a universos anteriormente desconhecidos, a narrativas diferentes e realidades reais e fantásticas da Geórgia, Bósnia, Bulgária, do Japão, da Síria, Hungria, da Turquia. Nunca é um encontro superficial: a leitura da obra prima de Nino Haratischwili, por exemplo, é uma viagem pela história fulminante de um clã georgiano com as etapas russas, soviéticas e pós-soviéticas.   Foram apresentados, na Semana de Letras 2016, dois nomes que representam a literatura Chamisso: um nome já consolidado, Yoko Tawada (Prêmio Chamisso de 1996, apresentada por Carla Miranda Tsunematsu), e o outro de um autor mais novo, Saša Stanišić (Prêmio Chamisso de 2008, apresentado por Julia Stella Mastrocola). Reproduziremos aqui os dois trabalhos.

2 Yoko Tawada: entrelaçando culturas teuto-nippo-brasileira O presente texto será dividido em três partes. Na primeira, apresento a autora e sua trajetória. No segundo momento, traço alguns paralelos que fizeram com que eu me aproximasse de sua obra. Por fim, abordo a obra de Yoko Tawada e algumas de suas características marcantes.

7

O original: Dies könnte zum Teil damit zusammenhängen, dass postkoloniale Autoren stärker an literatur- und textwissenschaftlichen und sozialwissenschaftlichen Zugängen zu kulturellen Phänomenen intereesiert sind. (Tradução de W. H.).

140

Yoko Tawada é uma escritora japonesa que escreve tanto em japonês quanto em alemão. Um de seus aspectos interessantes é que ela se dedica a vários gêneros literários como romances, short stories, ensaios, poemas, peças para rádio e teatro, assim como textos para performances experimentais. Graduou-se em Literatura, mais especificamente em Literatura Russa, pela Universidade Waseda, em Tókio no Japão. Ela sempre foi muito íntima do mundo dos livros, sendo que esse contato se intensifica por seu pai ser dono de uma livraria. Tawada queria muito estudar durante um tempo na Rússia, mas, naquela época, nos anos 80, durante o período da União Soviética, realizar este sonho era praticamente impossível. A chance mais próxima era uma bolsa de estudos para a Polônia, mas o clima de instabilidade política era muito tenso, o que fez com que ela não se arriscasse. Mas mesmo assim ela queria, de alguma forma, estudar alguma língua europeia. Graças ao pai, que importava livros de outros países, conseguiu um estágio em um escritório na Alemanha. Sua viagem foi feita pela ferrovia transiberiana, viagem essa que aparece como tema de seu primeiro livro escrito em alemão intitulado Wo Europa anfängt. Mudouse para Hamburgo em 1982, algum tempo depois estudou Germanística e publicou a sua primeira obra em alemão, traduzida do japonês intitulada Nur da wo du bist da ist nichts. Foi a primeira autora conhecida por ser professora convidada na Universidade de Hamburgo para lecionar Poética Intercultural. Atualmente reside em Berlin e recebeu vários prêmios tanto alemães como japoneses e, dentre esses, o Prêmio Adelbert-von-Chamisso. Minha aproximação com a autora se dá de forma bastante pessoal: sou brasileira descendente de imigrantes japoneses por parte de pai. Aos 18 anos, fui para o Japão em busca de emprego e uma vida melhor e, até então, eu não sabia falar japonês. Com o tempo e através de muito trabalho duro e esforço, consegui não só uma vida melhor, mas também aprendi o idioma japonês e assimilei muito da cultura japonesa. Quando li Wohnen in Japan, o primeiro ensaio que li de Yoko Tawada, identifiquei-me muito, durante a leitura, com os elementos apresentados por ela. Com isso, comecei a ler cada vez mais obras de Yoko Tawada e percebi que não havia nenhuma obra dela traduzida para o português, consequentemente acabei interessando-me ainda mais pela produção literária de Tawada. Em suas obras, ela apresenta um processo de criação/recriação das palavras em determinados contextos. Essa ressignificação das palavras apresenta a não automatização das mesmas, incitando o leitor a uma reflexão sobre elas. Uma reflexão apresentando a teorização sobre a língua, mas com seus “jogos” de palavras, sempre de uma forma leve e bastante lúdica, apresentando a transculturalidade através da língua. A presença da água em suas obras é uma característica extremamente marcante e importante de Tawada: esse elemento é interpretado, não como delimitador de fronteiras, mas conectando continentes e culturas. E este espaço entre culturas é um território extremamente rico e importante na produção literária de Yoko Tawada. Fragmentos de culturas que formam um mosaico transcultural. Nenhuma destas culturas é estável, assim como a água e seus movimentos. Isto modifica a maneira como vemos a cultura e nós mesmos, desenvolvendo, assim, uma nova percepção sobre línguas e culturas.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

141

Ela mesma traduz suas obras do alemão para o japonês e vice-versa, e vê na tradução um processo de transformação em que, quando a cultura é trocada, nada se perde, e sim se transforma. Em uma de suas entrevistas, a autora diz não querer ser uma escritora que escreve em uma determinada língua A ou B, mas sim encontrar o que há de mais poético neste espaço entre elas e mergulhar.

3 Saša Stanišić e a literatura do refúgio Saša Stanišić nasceu em 1978 em Višegrad, na atual Bósnia-Herzegovina. Em 1992, ele assiste aos primeiros passos da Guerra da Bósnia e foge com seus pais para a Alemanha, onde se estabelece em Heidelberg. Lá estuda alemão e é incentivado por seu professor a escrever na língua estrangeira. Posteriormente, entra na Universidade de Heidelberg, onde cursa, de 1997 à 2004, Filologia do Alemão como Língua Estrangeira e Filologia Eslava8. Também estudou no Instituto de Literatura Alemã de Leipzig. Tem, até o momento, três livros publicados: Wie der Soldat das Grammofon repariert (Como o Soldado Conserta o Gramofone, Editora Record, 2009), de 2006, Vor dem Fest (Antes da Festa, Editora Foz, 2015), de 2014 e Fallensteller, lançado em maio de 2016, ainda sem tradução. Em 2008, o autor foi agraciado com o Prêmio Adalbert-von-Chamisso. Stanišić é um bósnio que escreve majoritariamente em alemão. A escolha da língua não é aleatória e, de seus dois primeiros romances, podemos tirar alguns motivos primordiais. Começo por seu segundo livro. Em Vor dem Fest, o autor fala de um pequeno vilarejo alemão, Fürstelfelde, que há 400 anos celebra a Annefest, uma festa que ninguém sabe porque é celebrada. Através da preparação dessa festa e da mobilização dos personagens, Stanišić explora a história e a diversidade da pequena cidade. Somos apresentados a alguns personagens bastante peculiares, como Lada, Anna, Sr. Schramm e a Sra. Schwermuth. Essa última é responsável por um “Arquivário”, que contém as histórias da cidade registradas. Os capítulos com os textos desse arquivário são alguns dos mais interessantes do livro por serem escritos em um alemão antigo, datado do final do século XVI e início do XVII. Segundo o tradutor Marcelo Backes em uma nota ao final do livro, “os relatos antigos são feitos em estilo crônica e com algumas marcas ortográficas e sobretudo estilísticas de épocas anteriores” (BACKES, 2015, p. 320). Ele ressalta também que há algumas imprecisões tanto ortográficas quanto estilísticas nesses textos e isso é intencional. O autor também utiliza o alemão contemporâneo, com marcas evidentes de coloquialidade. Essa brincadeira com a linguagem utilizada no livro, na forma de contar a história, pode ser encontrada também na mescla de categorias literárias utilizadas ao longo da história. O livro é um romance, mas dentro desse romance há espaço também para a crônica, para a anedota, para a poesia. Há também algumas “brincadeiras” com os caracteres utilizados: o uso de caracteres góticos em apenas algumas palavras ao longo do texto ou o capítulo que é em parte digitado, em parte manuscrito. 8

Disponível em: .

142

Para falar sobre o primeiro livro do autor, Wie der Soldat das Grammofon repariert, precisamos também falar um pouco sobre a Bósnia. O livro promove um outro olhar sobre a Guerra da Bósnia, através da figura de Aleksandar, um menino que vive em Višegrad, quando estoura a guerra e é obrigado a fugir com seus pais para a Alemanha. O livro tem uma carga autobiográfica bem forte, e é difícil não associar Aleksandar ao autor. A Bósnia é um país no sul da Europa e, até 1992, era uma das seis repúblicas que compunham a Iugoslávia. É habitada por diversas nações e grupos étnicos, sendo os maiores os sérvios, bósnios e croatas. A península balcânica é uma região estratégica e, durante os séculos, houve muitas brigas entre os impérios pela hegemonia da península. Isso favoreceu o surgimento e o fortalecimento do nacionalismo entre os povos dominados da região, como um mecanismo de defesa, transformando a preservação cultural numa necessidade. A Iugoslávia enfrenta uma crise política após a morte de Jozip Broz Tito, em 1980, com o desejo de independência de países como a Bósnia e a Croácia, que entram em conflito com o unitarismo sérvio, principalmente dos sérvios ultranacionalistas. Assim entram em ação medidas que visam, não somente a manter a Bósnia dentro do território iugoslavo, como também a eliminar aqueles que se põe como um obstáculo ao unitarismo. A limpeza étnica feita por exércitos paramilitares é o meio encontrado. A guerra se encerra apenas em 1995, com o Acordo de Dayton, que marca a divisão da Bósnia em duas entidades: Bósnia-Herzegovina e República Sérvia da Bósnia (Republika Srpska). A situação da Bósnia está totalmente relacionada às questões de preservação e imposição de identidades nacionais, sendo que o idioma é um de seus principais componentes. Cada uma das etnias possui sua própria língua. No entanto, as variações entre essas línguas são mínimas, de forma que um sérvio, falando sérvio, consegue se fazer entender por um bósnio e um croata, e vice-versa, apesar da diferença entre os alfabetos (sérvios utilizam o alfabeto cirílico). A constituição da Iugoslávia, por exemplo, trazia os artigos nos três idiomas; no entanto, seria preciso procurar minuciosamente para encontrar diferenças. Ainda assim, isso é algo extremamente polêmico e defendido pelos povos. Isso aparece bastante ao longo do livro, como quando Aleksandar é proibido de escrever em cirílico por um de seus professores. Aqui, a escolha pela escrita no idioma alemão, segundo o autor, se deu porque ele tentou escrever em bósnio e a escrita simplesmente não fluía. Ele não conseguia escrever sobre a guerra na língua da guerra. Através da língua alemã, o autor, mesmo sendo bósnio, é capaz de se colocar em uma posição maior de neutralidade. Caso tivesse optado pelo servocroata, seu relato poderia estar relacionado a uma visão bósnia da guerra. Como o Soldado Conserta o Gramofone traz a história de Aleksandar Krsmanovic, um garoto que tem entre 8 e 14 anos, filho típico da Iugoslávia, de mãe bosníaca e pai sérvio. A história inicia com a morte de vovô Slavko, ídolo de Aleksandar e quem o ensina a arte da narração, membro do partido comunista e um fiel seguidor dos valores da Iugoslávia de Tito. Essa morte tem um caráter simbólico

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

143

muito forte, na medida em que simboliza tanto o esfacelamento da Iugoslávia, quanto o fim da inocência de Aleksandar. A partir de então, segue-se uma série de histórias que desenham o cotidiano idílico de Višegrad e as peculiaridades de seus moradores. A guerra, conforme a narrativa avança, vai se tornando cada vez mais presente. Inicialmente, essa presença é inserida de forma sutil, como na passagem: “Minha mãe diz que eu não recebi visita de padrinhos da parte dos Pešićs. Isso tinha algo a ver com ela e seu lado da família” (STANIŠIĆ, 2009, p. 37). Essa presença vai se intensificando e os incidentes vão se tornando cada vez mais frequentes e preocupantes: uma explosão xenófoba em uma festa familiar; a saída de diversas famílias da cidade, as primeiras semanas mais quentes do ano são a época das mudanças. Um grande recomeço está começando, contagiante como uma gripe de primavera. Famílias inteiras foram atingidas, a gente mal reconhece os carros debaixo de tanta bagagem. As pessoas deixam a cidade com tanta pressa, viajam com tanta resolução, que não encontram tempo para dizer “Até logo” às que ficam (STANIŠIĆ, 2009, p. 79),

a entrada dos sérvios em Visegrad [“Um exército de noivos barbudos passam, eles davam tiros para o alto e festejavam a tomada da cidade por esposa” (STANIŠIĆ, 2009, p. 106)]. O ponto alto da tensão acontece quando Aleksandar, sua família, seus vizinhos e amigos são confinados em um edifício e forçados a conviver com os soldados, enquanto a guerra acontece nas ruas. A situação se torna não só insustentável, mas especialmente perigosa para a família, que foge até Belgrado e busca o exílio na Alemanha. De lá, ele envia cartas à Asija, sua amiga que ficou na Bósnia. É através dessas cartas que temos algum acesso à sua vida na Alemanha. Aqui, podemos identificar o início do processo de fragmentação que a narrativa sofre. Conforme Aleksandar envelhece, a narrativa tende a ficar mais fragmentada, a ponto de os últimos capítulos serem compostos, em grande parte, apenas por frases aparentemente soltas, sem formar parágrafos, nem mesmo orações subordinadas. A guerra não apenas esfacelou a Iugoslávia, mas também fragmentou Aleksandar. O menino iugoslavo é agora um homem cuja pátria esfacelou-se, e a cidade que antes conhecia tão bem, lhe parece estranha agora. Nas palavras do próprio Aleksandar, “Eu sou uma mistura. Eu sou um meio a meio, um mestiço, como um dia disseram. Eu sou iugoslavo, logo me desintegro [...]” (STANIŠIĆ, 2009, p. 50-51).

4 Conclusão Introduzimos, com este breve artigo, o conceito relativamente novo da literatura Chamisso, ou seja, o conjunto da obra literária de autores estrangeiros que vivem na Alemanha e escrevem em alemão. Escolhemos, então, dois autores, Yoko Tawada e Saša Stanišić, para exemplificar essa tendência literária. Em primeiro

144

lugar, para torná-los conhecidos também no cenário brasileiro e, em segundo lugar, com a intenção de nos prepararmos para conhecer melhor o conjunto da literatura Chamisso. Ambos os autores apresentam uma literatura a partir da qual se pode, de forma concreta, perceber, analisar e comprovar em que medida a alteridade se concretiza nos textos. Por fim, há o interesse em verificar fenômenos semelhantes na língua portuguesa: escritores estrangeiros que se propõem não apenas a escrever em língua portuguesa, mas que também têm a disposição de estabelecer intercâmbios entre suas culturas de origem e a cultura brasileira.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

145

REFERÊNCIAS BEUTIN, Wolfgang et al. Deutsche Literaturgeschichte. Von den Anfängen bis zur Gegenwart. Stuttgart/Weimar: Verlag J. B. Metzler, 2008. CANAN, Coskun. Identitätsstatus von Einheimischen mit Migrationshintergrund. Neue Styles? Wiesbaden: Springer Fachmedien, 2015. MEIER-BRAUN, Karl-Heinz. Einwanderung und Asyl. Die 101 wichtigsten Fragen. München: Verlag C. H. Beck, 2015. STANIŠIĆ, Saša. Vor dem Fest. München: Luchterhand Literaturverlag. 2014. ______. Antes da festa. Tradução Marcelo Backes. Rio de Janeiro: Editora Foz, 2015. ______. Wie der Soldat das Grammofon repariert. München: Luchterhand Literaturverlag, 2006. ______. Como o soldado conserta o gramofone. Tradução Marcelo Backes. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009. TAWADA, Yoko. Nur da wo du bist da ist nichts. Tübingen: Konkursbuch-Verlag, 1987. ______ . Sprachpolizei und Polyglotte. Literarische Essays. Tübingen: KonkursbuchVerlag, 2007. ______ . Wo Europa anfängt. Prosa und Lyrik. Tübingen: Konkursbuch-Verlag, 1991. WEIDERMANN, Volker. Lichtjahre. Eine kurze Geschichte der deutschen Literatur von 1945 bis heute. München: btb, 2007. WELLBURY, David E. et al. Eine Neue Geschichte der deutschen Literatur. Berlin: Berlin university Press, 2007 [Edição original: A New History of German Literature. Harvard University Press, 2004].

LUGARES DA MEMÓRIA Risolete Maria Hellmann1 Tânia Regina Oliveira Ramos Bianca Rosa Mattia Gisele Krama Marina Siqueira Drey Thalita da Silva Coelho

1 Introdução “Sob a história, a memória e o esquecimento. Sob a memória e o esquecimento, a vida.” Paul Ricoeur

Nosso Simpósio Temático se propôs a reunir pesquisadoras e pesquisadores que se dedicam ao estudo da memória e à recuperação e democratização da materialidade de Acervos Literários: um tatear de tesouros íntimos que se ressignificam com o tempo e com as distintas perspectivas que se estabelecem no contato com estes arquivos. Assim, o que chega a nós, muitas vezes, como um amontoado de ruínas potencializa-se em memória documental, fonte de uma narrativa outra da e para a história da literatura. É, portanto, a partir desse lugar que nos propomos a refletir (n)esses Lugares da Memória.

2 Helena, de Almeida Garret: resgate e ecos de um romance inacabado2 No livro Horas de Leitura, há um texto de Brito Broca intitulado Livros Bastardos, e talvez não haja melhor adjetivo para o que Broca nos propõe com a prática de seu “método pontilhista” – assim chamado pelo Professor Carlos Eduardo O. Berriel no prefácio da edição de 1992. Método este que pinça os detalhes esquecidos ou mesmo nunca lembrados; os detalhes da vida literária; as obras que não fizeram parte da história que nos é contada. Helena, de Almeida Garret participa desse contexto. A obra não entrou para o cômputo histórico das novelas de Garrett, razão pela qual alguns questionamentos sobressaem: - Por que o inacabado é ausência? Por que não aparece na história? Por que é bastardo e não legítimo? Quais são os critérios de escolha daqueles que escrevem a história? 1

2

Dr.ª Risolete  é Professora Titular do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). Dr.ª Tânia é Professora Titular na UFSC. São coordenadoras do Simpósio. Bianca , Gisele e Marina são Mestrandas no Programa de Pós-Graduação em Literatura (PPGLit) da UFSC. Thalita é Doutoranda no PPGLit da UFSC. Por Bianca Rosa Mattia.

148

O romance consta de vinte e quatro capítulos, que totalizam na edição de formato pequeno da Imprensa Nacional, 185 páginas. A história, em sua primeira parte, visto que incompleto o romance, se passa no Brasil colonial de 1836 e “Seguir-se-ia a parte ‘europeia’ da narrativa” (MONTEIRO, 1999 apud SANTANA, 2012, p. 358, grifo no original). Para além das análises acerca do conteúdo do romance, visto que, como afirma Maria Helena Santana “[...] o fragmento existente, [...] não deixa dúvidas de que Helena teria sido o nosso grande romance colonial – [...]” (SANTANA, 2009/2010, p. 4), meu interesse, por ora, diz com o que penso vir ao encontro da proposta de Brito Broca ao chamar de “bastardos”, livros como este de Garrett. A bem da verdade, os livros bastardos, assim como os filhos bastardos na antiga legislação, parece que também são filhos enjeitados, talvez não pelos seus pais, mas pela própria história. O inacabado permite ao leitor e à leitora ultrapassar o limite do ponto final, que supostamente caracteriza o acabado. Além disso, o inacabado deixa ao leitor e à leitora as infinitas possibilidades de sua continuação e é dessa forma que permanece vivo, porque se está a projetar, sempre, a cada nova leitura. Por fim, a pesquisa sobre o inacabado na literatura, em que pese ainda em seus primeiros passos, possibilita-me dizer que trabalhar com escritos inacabados, estejam eles em uma arca ou em uma mala, em um arquivo ou no papel ainda posto na máquina de escrever, em uma carta interrompida que de súbito nos chega às mãos, ou mesmo no computador daqueles que partiram antes de fazer log-off, é estar junto do que nunca morre, porque não acabado, mesmo que seus autores já o tenham partido. Os filhos bastardos existem. É a possibilidade de [re]ver a história com outros olhos e de poder, quem sabe, contá-la com nova voz que orienta os passos a serem dados nesta pesquisa. Como versa Ana Luísa Amaral, em seu romance Ara, “Que se comece a história em nova voz de gente” (AMARAL, 2016, p. 69, grifos no original).

3 A desconstrução do presente3 Mwadia é uma das várias personagens de O Outro Pé da Sereia (2006) que se vêm em transição entre as tradições do passado e o presente que necessita de uma história para se manter vivo. Esses dois tempos poderiam ser distintos, mas se entrelaçam nas obras de Mia Couto, onde o que foi vivido e o que é lembrado são reencenados para criar um novo futuro. Como se houvesse um caminho do meio onde é possível percorrer olhando para lados distintos, mas na mesma direção. A lembrança é o elemento mais evidente da narrativa. É um recordar que se dá pelas letras e pela atuação de Mwadia. Para seguir neste caminho de reconhecimento, destacou que uma maneira de lembrar é acionar as tradições presentes no dia a dia. Costumes criados há tempos e atualizados conforme a população muda. A rememoração via atos tradicionais se dá na obra, principalmente, pela oralidade, pela fala dos personagens, como se pudessem atravessar gerações com seus 3

Por Gisele Krama.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

149

ensinamentos. Mia não transcreve simplesmente esse conhecimento, mas busca fragmentos que dão conta da essência de um saber para então criar e representar aos leitores, para defender o quanto isso é indispensável para pensarmos um futuro para a África e para todos que mantêm um laço com o continente. Ao analisar as obras de Mia Couto é possível perceber, segundo Rodrigues (2013), que há uma mescla entre os tempos utilitários e os não utilitários, onde o segundo prevalece sobre o primeiro nas mais diversas formas. O tempo utilitário aparece no cotidiano, mas os personagens parecem não se preocupar com a contagem exata. Parece, segundo a autora, que o escritor não faz referências temporais para evitar a linearidade das narrativas e não traçar uma literatura de referências. O escritor também usa como recurso não citar a idade dos personagens, designando somente a que grupo etário estão inseridos, como criança, jovem, adulto ou velho. Prosseguindo nestas distinções, é preciso também entender as noções de passado, presente e futuro. Para os povos bantu, presente seria tudo o que não tiver sido concluído, se acabar, fica no passado. Contudo, o passado tem uma grande importância ao entenderem que as pessoas do presente se consideram devedoras aos antepassados e assim somente se voltando para o que já aconteceu haveria condição de assegurar um futuro. E como bem disse o ex-pugilista Zeca Matambira, consegue as complexidades do tempo: “[...] o passado é coisa mal morta, o melhor é não mexer nele [...]” (COUTO, 2006, p. 130).

4 O acervo Jorge Amado e o direito às histórias4 A partir da década de 1960, simbolicamente com a publicação de A história da literatura como provocação à teoria literária, de Jauss (1994 [1967]), tem-se um movimento de questionamento dos modelos de julgamento, seleção e rotulação estabilizados pela História da Literatura. A partir disso, não se pôde mais requerer o objetivismo do século XIX, a ingenuidade dos fatos seja abandonada, já que a história se faz para além dos “[...] monemas da língua metaliterária [...]”, para usar as palavras de Roland Barthes (1988, p. 54), quais sejam os séculos, os gêneros, os movimentos, as datas e os autores. É tendo em vista considerações como essa que venho insistindo com a história de “Histórias”, de pluralidade, de novos e outros discursos, de novas e outras possibilidades. Pois vejo, em minha experiência desde a graduação em Letras – Língua Portuguesa nesta instituição, que pouco estamos, de fato, preparados para essa abertura. Nesse contexto, teci um projeto de Mestrado que propôs “[...] uma (e não a) construção nos espaços vazios até então recorrentes nas escritas biográficas de Jorge Amado”. Uma ideia que procurou e procura elaborar o que denominei de o “[...] oferecimento de uma narrativa [biográfica] da lacuna de 1941 e de 1942 [...]” de Jorge Amado, em virtude das parcas informações que se tem dessa época a respeito da vida do autor, tanto devido ao silêncio do próprio escritor, no que toca aos episódios de envolvimento com a causa comunista, quanto à ausência de compartilhamento

4

Por Marina Siqueira Drey.

150

documental desse período, suprida, com o Acervo Jorge Amado, material inédito até 2012, quando iniciaram-se as pesquisas no arquivo. Assim, o artigo definido em “a História biográfica” de Jorge Amado em 1941 e 1942 nunca existiu. E, afinal de contas, o que isso significa? Bom, de saída, no mínimo, a consciência da própria impossibilidade de reconstituição absoluta do vivido. Segundo, a consciência de que tal reconstituição, no caso, só cabe no interior da categoria da narrativa, pois a possibilidade de contar uma vida, ou ainda, a de restaurar o vivido, existe somente em uma tessitura em que estão organizados fatos, sentimentos e afetos sob uma perspectiva temporal que é própria da narrativa. Em vista disso, pergunto à minha cria: qual lei e qual história será depreendida quando nasceres? O que eu estou oferecendo para essa História? Quais são os sujeitos que terão o direito a ler aquilo que você, narrativa biográfica, se tornará? Qual o alcance desse nova História daquele que levou para a vida o predicado de “romancista do povo”? Não sei. De todo modo, fica a reflexão de que o rompimento com o discurso canônico frente à tessitura biográfica de Jorge Amado no que se refere aos anos de 1941 e de 1942, é uma possibilidade de rompimento do discurso canônico do arconte, uma vez que reivindica vários rearranjos que tocam tanto à lacuna biográfica de Jorge Amado, quanto às produções literárias que deste pedaço de tempo se fizeram. Com isso, a historiografia literária têm a chance de pluralizar as tessituras, alargar as margens e ampliar os discursos frente às narrativas que se fizeram até então destes lugares da literatura.

5 O resgate do acervo de Carmen Dolores5 Este trabalho é resultado da minha tese de doutoramento que eu intitulei Carmem Dolores, escritora e cronista: uma intelectual feminista da Belle Époque, na qual fiz o resgate de vida e obra, especialmente as crônicas publicadas por Carmen Dolores, durante a Belle Époque brasileira, no jornal O Paiz6. A ida aos arquivos me permitiu conhecer um pouco mais da vida dessa mulher e da literatura que ela produziu. Para além dos dados descobertos sobre o meu objeto de estudo, um dos grandes aprendizados de toda a minha pesquisa foi reconhecer os jornais do século XIX e início do século XX como uma fonte riquíssima de informações sobre literatura, sobre a vida dos escritores. Daí a importância do trabalho de digitalização de todo esse acervo que está, literalmente se deteriorando nas bibliotecas desse país, e eu pude comprovar isso pessoalmente no que diz respeito ao jornal O Paiz, o periódico onde Carmen Dolores escreveu crônicas semanais entre 1905 e 1910. Quando comecei a pesquisa, o que encontrei em livros e artigos sobre Carmen Dolores (ou seja, sua fortuna crítica) não preenchia 30 páginas. E minha tese acabou resultando em 492 páginas, mais o volume 2 com as 292 crônicas. Foram 5 6

Por Risolete Maria Hellmann. O Paiz foi um jornal da grande imprensa carioca na virada do século.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

151

tantas informações importantes que fui achando nos jornais que meu objeto foi se ampliando. A obra de Carmen Dolores foi relegada ao descaso, tanto na história da literatura, quanto na crítica literária canônica, mesmo que um bom número de autores tenha feito referências a ela em seus livros. Apesar de eu não ter abarcado, neste estudo, a verificação de 100% dos autores que se dedicaram a escrever a sua história da literatura brasileira nos moldes do cânone – consultei trinta e cinco obras, e consegui, com essa amostra, perceber como a obra de Carmen Dolores foi interpretada, ou não, ao longo do século XX. Dos historiadores e críticos canônicos consultados, vinte e dois (62,8%) incluem-na no período que abrange as décadas de 1890 e 1900, denominado de diversas formas, conforme o autor e sua perspectiva metodológica, e treze (37,2%) excluem-na de sua obra. Contudo, a crítica feminista brasileira, desde a década de 1980, vem cumprindo seu papel político e científico ao resgatá-la desse silenciamento político. Sua fortuna crítica comprova que tanto sua produção ficcional, quanto a jornalística, é detentora de valor literário em função do seu espírito revolucionário, da sua competência intelectual e da sua habilidade com as palavras. Diante disso, sua inclusão no espaço da cultura e da literatura brasileira começa a se efetivar, não como inclusão na História canônica, mas como possibilidade de compor a história da literatura de autoria feminina, configurada pelo lugar de exclusão que, de fato, essa produção literária ocupou na cultura e na sociedade brasileira. Existe um valor cultural na obra jornalística e literária dessa intelectual feminista. Suas crônicas são uma extraordinária fonte de possibilidades interpretativas que constituem um testemunho da vida intelectual, literária, social e pessoal de seu tempo, representações de memória e subjetividade por meio de seu discurso poético jornalístico.

6 A voz do conjunto: as mulheres no romance inédito de Jorge Amado7 O acervo Mala de Jorge Amado vem sendo trabalhado pela equipe de pesquisadoras do NULIME desde 2012, tem sido catalogado, restaurado e conservado em ambiente propício para os documentos. Todo esse material é perpassado por intenso conteúdo político: correspondências do PCB e da ANL, fotografias de Luiz Carlos Prestes e de conferências sobre o comunismo, reportagens sobre o líder comunista, poemas sobre Prestes e prosas das mais diversas, entre elas, o romance inédito de Jorge Amado, talvez o mais militante de sua obra. No romance inacabado e inédito, Agonias da Noite, toda a história desenrola-se numa noite de tempestade, ao redor de um rádio, à espera do sinal da luta. É naquele espaço da sala de Augusto que se dará a maior parte do enredo, que acompanha os anseios, medos e sentimentos de cada uma das personagens, sem focar, de fato, em um núcleo específico. A personagem principal parece ser a espera pela revolução, uma revolução, que enquanto duram as páginas inacabadas do romance, jamais chega. 7

Por Thalita da Silva Coelho.

152

Lopes, o calmo militante, aquele que está na revolução pela revolução; Raymundo, o líder do movimento universitário, que está lá pela glória; Mario, pela esperança de que a morte lhe apague a culpa de relacionar-se com a esposa do melhor amigo; Miguel, o negro alegre que dirige o carro e conserta o rádio, que vê na luta uma oportunidade para os desfavorecidos; Prensa, o odiado por todos que está na revolução porque quer fazer homens sangrarem e mulheres chorarem; e Augusto, o dono da fazenda, que torcia para que os companheiros nunca chegassem à sua casa com o rádio que traria o grito da revolução. Na casa, além dos seis homens, estão os filhos de Augusto e Dalva, sua esposa. Ela, ao contrário dos militantes, evita aproximar-se, permanece por um tempo rezando por eles e depois, divide-se em imaginar as emoções e histórias de cada um deles, e ansiar pela atenção e olhar do marido. Dalva é descrita como uma mulher de olhos tristes e mãos caídas, que deseja um rádio de Natal. Ela não está sozinha como personagem mulher do romance de Amado, o espaço é ocupado por mais outras cinco mulheres: Heloísa, a noiva de Raymundo, rica, bonita, a quem o noivo dedica os versos Vieste com certeza dos mares do sul/Clandestina da Nau Catarineta; Maria Franco, amante de Mario e esposa de José Franco, dividida entre o compromisso do casamento e a felicidade; Joana, uma mulher que “bebia como qualquer dos homens” e que servia na casa de Dalva e Augusto; e Edith, uma mulher fora dos padrões de feminilidade, considerada pelos homens como medíocre, tem os cabelos curtos “como os de um rapaz”, o corpo pequeno de quem não fora “feita para a procriação”, casada com Heitor, o militante que acovardou-se e preferiu ficar na cama e garantir que viveria o amanhã. Maria Franco é a única, de todas as mulheres, que sabe o que está havendo e o porquê da reunião daqueles homens ao redor de um rádio. Ela suplica que Mario não vá, não siga à luta, que os dois fujam, juntos. É descrita constantemente como uma mulher corajosa, forte, que não chora, que almeja grandes aventuras e viagens, “Maria Franco, a sonhadora”. Ao contrário de Mario, Maria não parece angustiar-se com a culpa da traição: seu marido, José Franco, fugiu por questões políticas e ela acaba por se envolver com Mario, seu amigo, companheiro de luta de José. Mas ela não se abate, remói ou culpabiliza, repete diversas vezes que “Toda felicidade é traição”. A relação de José Franco – Maria Franco – Mario lembra constantemente Jorge Amado – Maria Cruz – Pompeu. É impossível passar pelas páginas do inédito sem perceber a semelhança. Maria Cruz, além do nome em comum, se assemelha a Maria Franco também pela personalidade resoluta e forte: na única carta enviada por ela a Jorge Amado, presente na Mala, Maria demonstra conhecimento político e temperamento decidido. Na época, já em relacionamento com Pompeu, a militante diz não se entender com Jorge “nem mesmo por carta”. Essa análise nos faz pensar que, talvez, o romance inédito do autor seja, em parte, uma autoficção, uma escrevivência, para usar um termo cunhado por Conceição Evaristo.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

153

7 Considerações finais A apresentação desta síntese de cinco, dos dez, trabalhos socializados no Simpósio Temático em questão procurou ilustrar o cerne de nossas discussões. O projeto A mala de Jorge Amado 1941-1942 , coordenado pela Profa. Dra. Tânia Regina Oliveira Ramos, incluiu ainda O (in)visível no acervo Jorge Amado (19411942), de Ailê Gonçalves e Revelando os negativos d´A mala de Jorge Amado: 1941-1942, de Rosane Hart. Todo o esforço dos ensaios, aqui condensados, identificaram a memória como ponto para se (re)conhecer aquilo que foi impelido pelo tempo: memória enquanto lugar criador, memória e trauma, memória e esquecimento, memória e representação, memória e subjetividade. Assim, fomos capazes de contemplar o resgate, os arquivos, os acervos e, substancialmente, as representações de memória nos discursos poéticos e literários.

154

REFERÊNCIAS AMADO, Jorge. Acervo “A Mala de Jorge Amado”. Documentação do nuLIME, núcleo Literatura e Memória. CCE Sala 507, UFSC. AMARAL, Ana Luísa. Ara: romance. São Paulo: Iluminuras, 2016. BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. Tradução Mário Laranjeira. Prefácio Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 65-70. BROCA, Brito. Horas de Leitura: primeira e segunda séries. Coordenação de Alexandre Eulalio. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992. COUTO, Mia. O Outro pé da Sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GARRETT, Almeida. Helena: fragmento de um romance inédito pelo Sr. Visconde de Almeida-Garrett. Precedido do Catalogo dos Autographos, Diplomas, Documentos políticos e literários pertencentes ao Sr. Visconte de Almeida-Garrett: coligidos e anotados por C. G. In: Obras do Sr. Visconde de Almeida-Garrett. Tomo XXII. Lisboa: Imprensa Nacional, 1871. HELLMANN, Risolete. Carmem Dolores, escritora e cronista: uma intelectual feminista da Belle Époque. Florianópolis, 2015. 420f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina. RAMOS, Tânia. Dos portais e das chaves da memória: janelas (in)discretas [Ensaio apresentado na X Semana de Letras, UFSC, 2016]. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. RODRIGUES, Filomena. O tempo é o caracol que enrola essa concha......: concepções do tempo em três romances de Mia Couto. In: CAVACAS, Fernanda; CHAVES, Rita; MACÊDO, Tânia (Org.). Mia Couto – um convite à diferença. São Paulo: Humanitas, 2013. SANTANA, Maria Helena. Os gentlemen visitam o sertão: imaginário colonial em Garrett, Eça e Agualusa. In: CONGRESSO NACIONAL ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA / X COLÓQUIO DE OUTONO COMEMORATIVO DAS VANGUARDAS, 6.,2009/2010, Braga. Anais... Braga: Universidade do Minho 2009/2010, p. 1-17. Disponível em: . Acesso em: 06 jun. de 2016.

O ENSINO DA LÍNGUA ESPANHOLA: o aluno como sujeito ativo e construtor de seu conhecimento Juliana Cristina Faggion Bergmann1 Mirella Nunes Giracca Bianca dos Santos Bezerra Gabriela Marçal Nunes Lílian Reis dos Santos Ana Paula da Costa Silva

1 Introdução O simpósio temático (ST) O Ensino da Língua Espanhola: o aluno como sujeito ativo e construtor de seu conhecimento, realizado durante a X Semana Acadêmica de Letras (UFSC/2016) e cujos trabalhos trazemos nesse texto, pretendeu reunir pesquisas e experiências atuais sobre o desenvolvimento de diferentes habilidades linguísticas nas aulas de espanhol como língua estrangeira (E/LE), enfocando especialmente situações em que a comunicação é o foco principal da atividade. Propôs-se, a partir disso, uma reflexão sobre as práticas pedagógicas e sobre a importância da construção coletiva do conhecimento, mostrando o professor como parceiro e mediador de um processo cujo ator principal é o aluno, que participa ativamente da sua construção e onde desempenha o papel de sujeito protagonista. Schön (2000) e Perrenoud (2002) têm em comum a compreensão da importância do professor como um profissional reflexivo, que observa, pesquisa e analisa sua prática e está em constante formação e que, por isso, entende sua responsabilidade e se percebe como parte fundamental do processo de aprendizagem. Nesse viés, foram compartilhadas diferentes alternativas para o desenvolvimento das habilidades linguísticas através de novas propostas e abordagens; demonstradas possibilidades práticas de exploração dos materiais, além de discutidas formas de se promover a aprendizagem colaborativa e a construção coletiva do conhecimento, compartilhando propostas de novos caminhos a serem trilhados para uma compreensão maior do que seja ensinar línguas estrangeiras, 1

Segundo a ordem dos textos: Professora MEN/UFSC e do Programa de Pós-graduação em Educação/UFSC ([email protected]); Professora da UNIR, doutoranda PGET/UFSC ([email protected]); bolsista PIBID Espanhol/UFSC, graduanda Letras/UFSC ([email protected]); bolsista PIBID Espanhol/UFSC, graduanda Letras/UFSC ([email protected]); PG – UFF/Seeduc_RJ/FME – Niterói ([email protected]); Professora extracurricular Espanhol/UFSC ([email protected]).

156

tendo por base a formação de professores reflexivos e pesquisadores. Assim, estão aqui representados quatro dos trabalhos do ST, que abordam experiências de compreensão e produção em espanhol como língua estrangeira.

2 Produção de texto em língua espanhola: a construção de uma prática a partir de uma experiência em sala de aula O presente trabalho visa apresentar a construção e o processo realizado para amenizar as dificuldades de interpretação e produção de texto dos discentes do curso de Letras Espanhol da UNIR (Universidade Federal de Rondônia). Tal processo fez-se necessário por perceber que a única disciplina de produção textual em língua espanhola só é ofertada no sexto semestre acadêmico dessa instituição, e por notar que os alunos apresentam imensa dificuldade em ler, interpretar e produzir textos em espanhol. Para tanto, foram pensadas e aplicadas atividades que estivessem relacionadas ao mundo real, buscando, assim, atraí-los para o contexto “sala de aula” em todos os sentidos, seja como alunos e como futuros professores, sendo assim concordamos com Marcuschi (2005), quando este afirma que “os gêneros textuais contribuem para estabilizar e organizar as atividades comunicativas do dia a dia, já que eles são frutos do trabalho coletivo e estão vinculados à vida cultural e social dos indivíduos”. Visto dessa maneira, uma das atividades propostas durante o semestre foi a produção de um artigo científico. O tema dos trabalhos foi de escolha dos alunos, com o intuito de que tivessem mais afinidade pela pesquisa realizada. Em seguida, buscaram fontes teóricas (ALMEIDA FILHO, 2010) relacionadas com seus temas para calcar seus trabalhos e assim perceber que não há investigação individual e sem uma boa base teórica. Dessa forma, a partir dos textos e teóricos estudados, os alunos tiveram que reescrever com as suas palavras e em língua espanhola os fundamentos e teorias entendidas, tomando decisões e ampliando os conhecimentos em língua estrangeira e também no âmbito de pesquisa acadêmica. Somente assim foi possível atingir os objetivos propostos da disciplina que são: ampliar e aprofundar as habilidades de leitura e produção de texto em língua espanhola; proporcionar aos alunos instrumentos necessários que os levem a discernir o uso adequado dos diferentes registros da língua espanhola empregada em diversos contextos comunicacionais. Para ampliar a construção da disciplina e o progresso dos discentes, fundamentamo-nos também em Bakhtin (1992) e Koch (2010), além de Brait (2002) e Leffa (2011). Como resultado, percebeu-se uma enorme participação por parte dos alunos, os quais se engajaram em apresentar seus trabalhos em eventos por Rondônia, como também apresentaram uma preocupação com o currículo acadêmico, o qual foi cumprido para obter o título de licenciado em Letras Espanhol. Com isso, mostra-se a importância de oferecer essa disciplina e esse conteúdo não apenas no sexto semestre, mas no início do curso, pois é uma maneira oportunizar os alunos a terem contato com elementos da língua como: a pragmática do espanhol falado; os níveis de linguagem; leitura e compreensão textual; os tipos e gêneros textuais; a pré-composição e composição de texto; a correção gramatical; a coesão e coerência textual.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

157

3 Dom quixote de La Mancha em 2015 Com o objetivo de inserir os alunos de licenciatura em Letras – Espanhol no contexto de ensino-aprendizagem das escolas públicas parceiras, preparando os futuros professores para inúmeras e diferentes situações da carreira, o subprojeto Pibid-Espanhol UFSC propôs aos bolsistas, no ano de 2015, a elaboração e aplicação de um projeto de intervenção nas escolas parceiras, pretendendo dar aos bolsistas a oportunidade e experiência em preparar atividades para o ensino da língua espanhola baseadas no conteúdo programático das professoras coordenadoras e parceiras. Pensando na literatura como uma ferramenta de aprendizagem de língua espanhola, foi desenvolvido, em conjunto com a professora supervisora do EEB Aderbal Ramos da Silva, o projeto de intervenção “Don Quijote de La Mancha en 2015”, que pretendeu incentivar o ato de ler e promover o ensino do Espanhol como LE, apresentando aos alunos a grande obra escrita por Cervantes, uma história que desenvolve a criatividade e a imaginação de seus leitores. O projeto foi aplicado em uma turma de segundo ano do ensino médio e teve como material de apoio o livro didático “Cercanía” (COIMBRA; CHAVES; ALBA, 2012). A intervenção foi dividida em três etapas. Na primeira, os alunos foram apresentados ao autor, Miguel de Cervantes e à obra. A segunda se deu pela leitura da obra em forma de quadrinhos, gênero escolhido por ter como característica a ludicidade e uma linguagem de interesse do público-alvo, o que ajudou muito na compreensão da história. A terceira e última etapa foi a aplicação da atividade elaborada pelas bolsistas: a releitura de Dom Quixote. Essa última etapa aconteceu na sala de vídeo, cuja organização possibilitou que alunos pudessem sentar-se em semicírculo, facilitando a interação com outros colegas. A atividade consistia na seguinte questão: “Quem seria Dom Quixote no ano de 2015?”. Cada aluno pode se expressar e realizar a atividade de releitura da maneira que lhe era mais conveniente, por meio de desenhos, recortes ou escrita. Contamos, inclusive, com a participação da professora supervisora, que também fez sua releitura. Ao final da atividade cada um, a sua maneira, apresentou sua releitura da obra de Cervantes, inclusive os bolsistas.

4 Nova língua, novos espaços – primeiros contatos com textos em espanhol O presente trabalho tem como objetivo mostrar o desenvolvimento do trabalho realizado em uma turma do 6° ano do Ensino Fundamental (rede estadual do Rio de Janeiro) nas aulas da disciplina Espanhol. A escolha do gênero (ou gêneros) que deve ser trabalhado nas turmas é determinada pela própria rede, que para esse ano de escolaridade são as Histórias em Quadrinhos e as Tirinhas. No currículo da rede há uma justificativa para o trabalho por meio de gêneros, na qual explicam que vivemos diversas situações de interação no cotidiano e que essas situações vão “[...] gerar variedades de textos ou enunciados, concretizados em diferentes gêneros discursivos, sejam eles de materialidade oral ou escrita” (RIO

158

DE JANEIRO, 2012, p. 3). Compreendemos os gêneros discursivos desde uma perspectiva bakhtiniana (BAKHTIN, 2011) e levamos em consideração as especificidades da turma e seus conhecimentos prévios na elaboração das atividades. Dessa forma, preparamos uma sequência didática (DOLZ; SCHNEUWLY et al., 2011) que incluía a ampliação do conhecimento de mundo sobre o universo hispânico por meio de leituras dos textos produzidos e veiculados na Argentina (Mafalda, Macanudo e Gaturro), sempre com a devida contextualização histórica e social e concomitante com a aprendizagem da língua. Tomamos como base uma visão de aprendizagem que tenha como parte de sua construção a interculturalidade, aqui exemplificada por Casanova (2005, apud SILVA JUNIOR; MATOS, 2010) como sendo: convivência entre diferentes culturas; conhecimento e relação cultural; busca do comum e enriquecimento com o diferente. Essa visão concorda com a visão dos PCNs para o Ensino Fundamental, quando afirma que a “[...] Língua Estrangeira no ensino fundamental é parte da construção da cidadania” (BRASIL, PCN 1998, p. 41). Para começar a ampliação do conhecimento sobre o país escolhido, a Argentina, foi aplicada uma atividade chamada “Viagem”, que consistiu em conhecer o país por meio de vídeos, slides e pesquisas. Como atividade prévia, os alunos preencheram um “passaporte”, que imita um documento real e recebe carimbo com o nome do país “visitado”. Utilizamos uma abordagem sociointeracionista da aprendizagem da língua, desenvolvendo a habilidade de ler em língua estrangeira sob uma perspectiva interativa (SOLÉ, 1998) na qual há o estímulo ao engajamento discursivo dos estudantes e que os mesmos construam seu conhecimento a partir de seus estudos, observações e vivências. Posteriormente trabalhamos a alfabetização na linguagem das histórias em quadrinhos (RAMOS, 2012), com suas especificidades e o reconhecimento de recursos da linguagem verbal e da não verbal. Após essa etapa partimos para a apresentação e para a leitura de títulos do gênero em espanhol, com atividades de leitura e interpretação de diversos textos argentinos, com destaque para a interpretação de elementos de humor e de crítica social presentes nas obras. As atividades culminaram na produção de tirinhas em língua espanhola. Concluímos que ao final do bimestre a turma já havia desenvolvido uma compreensão não só dos gêneros trabalhados, mas também sobre como a cultura de um país está presente em suas obras.

5 Uno, dos, tres... un pasito para el cambio maria – a problemática contextual no uso de canções no ensino de E/LE  O seguinte trabalho surge como relato de experiência sobre o uso de canções no ensino de língua espanhola para alunos do ensino fundamental II (6º. ao 9º. Anos) de duas escolas particulares da grande Florianópolis. Sendo a música um dos recursos didáticos mais acessíveis para alunos e professores, este trabalho tem como objetivo apresentar como o uso de canções em sala de aula possibilita não somente uma aproximação entre alunos e professores, mas, proporcionam também a manifestação de criticidade e pró-atividade dos aprendizes de língua espanhola, de

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

159

maneira a despertar uma significância contextual ao aprendiz de língua espanhola indo desta forma em concordância com a afirmação de Viana (2005) “a música é um tipo de produção simbólica contextualizada, ou seja, carrega traços de contextos culturais, políticos e econômicos da sociedade em que foi produzida e ainda tem o poder de formar opiniões ou até influenciar”. O professor, sendo o primeiro elo entre a Língua Estrangeira e os aprendizes em situação de ensino formal, necessita realizar o procedimento da seleção de materiais, no caso em especial das músicas, visando contemplar diferentes expectativas, necessidades e principalmente como reitera Ferreira (2002) “é preciso que o professor ouça muita música, dos mais variados tipos, ou seja, que deixe preconceitos de lado e experimente todas as variedades possíveis, para então formar sua opinião a respeito e, como bom ouvinte que será, saber selecionar aquilo que é mais útil e adequado para si e para o aprendizado de seus alunos”. Não raro encontramos a sugestão de músicas nos livros didáticos, porém, algumas delas são incluídas de forma descontextualizada (pelo sucesso); outras surgem desconexas com o tema da unidade; e outras ainda guiam o professor à escolha de uma música por um gosto pessoal, situação em que os professores, segundo Lima (2010), “arriscam-se a transformar um dos mais poderosos recursos didático-pedagógicos no ensino de língua estrangeira em uma espécie de “passatempo” desvinculado dos objetivos gerais do curso”. Tendo como base esses preceitos e como procedimentos pensados em encorajar os aprendizes a exporem suas opiniões e assim ocasionar uma reflexão consciente: 1) análise da forma de como a música é trabalhada em dois livros didáticos; 2) Delimitação do tempo de processo. Em relação ao Material A, os alunos, por desconhecerem o músico apresentado no livro e não se sentirem interessados com a proposta de criação de uma letra de música presente no final da unidade, propuseram a apresentação dos seus próprios cantores preferidos. Dessa forma, apesar das escolhas dos alunos abrangerem cantores de diversas nacionalidades, incluindo a brasileira, foram selecionados diversos cantores de origem hispânica como “Demi Lovato” e “Selena Gomez”. Já em relação ao Material B, a partir da proposta de produção textual “Después de escuchar una música, expresa por escrito qué sensaciones sientes tú”, foi possível perceber o conhecimento restrito dos alunos em relação às músicas em espanhol. Sendo assim, foi selecionada a música “Darte un Beso”, de Prince Royce, e que também teve versão gravada em língua portuguesa com grande êxito no Brasil, em uma tentativa de aproximação do conhecimento prévio dos alunos. Para essa atividade, os alunos receberam em mãos a letra da música originalmente em espanhol, assistiram ao videoclipe e realizaram a comparação entre ambas versões. Ao realizar esse processo, foi possível perceber que os estudantes de ELE demonstraram bastante interesse em descobrir músicas de países hispânicos e que ganharam versões em português além da possibilidade de que o ambiente de aprendizagem da língua estrangeira seja um espaço de compartilhamento de suas preferências e identidades musicais.

160

6 Considerações finais Como vimos nos relatos selecionados nesse artigo, são vários os caminhos possíveis para estimular o aluno a manter-se como sujeito ativo e construtor do seu conhecimento durante o seu processo de ensino-aprendizagem da língua espanhola. Em comum entre todos os relatos (apresentados aqui ou oralmente, durante o simpósio), é a busca por elementos de interesse dos alunos, a partir de sua realidade, de seu conhecimento prévio e de sua idade.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

161

REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de. Conhecer e desenvolver a competência Profissional dos professores de LE.Contexturas: Ensino Crítico de Língua Inglesa. São Paulo, APLIESP, v. 9, ed. Especial, p. 9-19, abr. 2006. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In:______. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão Gomes e Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 277-326. ______. Gêneros do Discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 261-306. BRAIT, Beth. PCNs, gêneros e ensino de língua: faces discursivas da textualidade. In: ROJO, Roxane Helena Rodrigues (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: Mercado de Letras, 2002, p. 15-25. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Ensino Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Estrangeira. Brasília: MEC/SEF, 1998. Disponível em: . Acesso em: 5 jun. 2016. COIMBRA, Ludmila; CHAVES, Luíza Santana; ALBA, José Moreno de. Cercanía. São Paulo: Edições SM, 2012. DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004. FERREIRA, Martins. Como usar a música em sala de aula. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2002. KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2010. LEFFA, Vilson. Criação de bodes, carnavalização e cumplicidade: considerações sobre o fracasso da LE na escola pública. In: LIMA, Diógenes Cândido de. (Org.). Inglês em escola pública não funciona? Uma questão, múltiplos olhares. São Paulo: Parábola, 2011, p. 15-32. LIMA, Luciano Rodrigues. O uso de canções no ensino de inglês como língua estrangeira: a questão cultural. Disponível em: . Acesso em: 6 jun. 2016.

162

MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais: definições e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Org.). Gêneros textuais e ensino. São Paulo: Parábola, 2010, p. 19-38. PERRENOUD, Philippe. A prática reflexiva no ofício de professor: profissionalização e razão pedagógicas. Porto Alegre: Artmed, 2002. RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2012. RIO DE JANEIRO. Governo do Estado do Rio de Janeiro. Secretaria de Estado de Educação. Currículo Mínimo 2012: língua estrangeira. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2016. SCHÖN, Donald A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Tradução Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2000. SILVA JÚNIOR, Antônio Carlos; MATOS, Doris Cristina. Rompecabezas intercultural: uma proposta didática para aulas de espanhol como língua estrangeira. Disponível em: . Acesso em: 9 jun. 2016. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Tradução de Cláudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 1998. VIANA, Graziela Valadares Gomes de Mello. Dura Travessia: a importância da música popular na mobilização pelas Diretas Já e na comoção pela morte de Tancredo Neves. In: PRATA, Nair; CAMPELO, Wanir. Tancredo Neves – A Travessia Midiática. Belo Horizonte, MG: Insular. 2005. Disponível em: . Acesso em: 3 jun. 2016.

O PENSAMENTO LINGUÍSTICO DE DANTE ALIGHIERI E O DE VULGARI ELOQUENTIA Silvana de Gaspari1

O ano de 2015 marcou os 750 anos do nascimento de Dante Alighieri, o assim chamado ‘progenitor do léxico italiano moderno’. “Nel mezzo del cammin di nostra vita/ mi ritrovai per una selva oscura” (Inf: I, 1-2). Acreditamos que a maioria dos que conhecem a Divina Comédia deva se lembrar dos versos iniciais que a compõem e entender o significado de suas palavras singulares. Palavras como: mezzo, cammin, vita, di, per, nostra e mi pertencem ao que se chama hoje de léxico fundamental do italiano antigo e moderno. Segundo o conhecido linguista italiano Tullio De Mauro, no início do século XIV, o léxico fundamental da língua italiana já estava formado em 60% e, no fim do mesmo século, graças às marcas dantescas, já tinha chegado a 90%. Isso não significa que não haja diferenças entre a língua de Dante e o italiano de hoje. Algumas de suas palavras ainda são totalmente obscuras, outras podem ter um significado diferente, e, para outras, o uso, naquele tempo, seria diferente. Mas, o que mais se pode levar em conta, pela grandeza e pelo significado, é a notável herança linguística que Dante deixou. Algumas palavras parecem introduzidas, ou, pelo menos, cunhadas por ele. E, ainda, além dessas palavras singulares, não são poucas as frases extraídas de versos famosos, sobretudo do Inferno, como, por exemplo, “tremar le vene e i polsi” (Inf: I, 90)2, apresentada por Dante no início da sua viagem ultraterrena e usada até hoje na linguagem corrente dos italianos. Dante é definido pai da língua italiana e, com o grande sucesso da Commedia, ajudou a difundir seu vulgar por áreas linguísticas muito distantes da toscana, favorecendo a circulação, e, mais tarde, a afirmação de um modelo dialetal, o florentino, sobre todos os outros idiomas usados na península. Mas não é somente a Commedia que representa a experiência de Dante com a língua italiana. Por muitos séculos, o De vulgari eloquentia foi o centro de uma importante discussão sobre a língua, discussão comumente chamada, até hoje, de

1

2

Profª Drª da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email: [email protected]. Graduada em Letras Português/ Italiano pela UNESP-Araraquara, mestre em Literatura Italiana pela USP e doutora em Teoria Literária pela UFSC. Desde 1992 é professora do Curso de Letras Italiano da UFSC. Seu projeto de pesquisa atual é direcionado para a área de poesia italiana, linha temática da qual faz parte no Programa de Pós-graduação em Literatura da UFSC: poesia e aisthesis. Segundo informações contidas no site da Accademia della Crusca, a expressão “far tremar le vene e i polsi” é uma das numerosas expressões da língua italiana herdadas a partir da Divina Comédia, principalmente por causa da grande popularidade atingida pelo poema ().

164

“la questione della lingua”3. Na segunda metade do século XIX, com o aperfeiçoamento da linguística como ciência histórica, a obra dantesca conquistou um novo interesse perante os olhos dos estudiosos que a viam como um precioso documento de especulação a respeito da natureza e da origem da linguagem. Já no século XX, os estruturalistas também se interessaram pelo tratado, quase que vendo nele uma antecipação, mesmo que muitas vezes distante, de seus pensamentos. Nesse sentido, a ideia do presente texto é fixar nossa atenção sobre a parte do tratado que, pode-se dizer, encerra a filosofia da linguagem de Dante. Mas, antes, nos convém examinar, mesmo que muito sucintamente, algumas das etapas seguidas pelos críticos do final do século XIX e também do século XX para depois chegar a uma conclusão mais contemporânea sobre a importância destes escritos.4 Recordemos, primeiramente, um ensaio de Francesco D’Ovidio5, de 1892. É um ensaio breve, mas muito rico para a presente análise. D’Ovidio, mesmo reconhecendo que em Dante se resume tudo o que de mais e de melhor se deu na especulação linguística medieval, coloca o pensamento dantesco no quadro da ciência daquele tempo com todas as suas limitações dogmáticas e metafísicas. São duas as observações de D’Ovidio, sobre o pensamento linguístico de Dante, que particularmente nos interessam. A primeira tem a ver com a língua de Virgílio na Divina Commedia. A segunda observação refere-se à evolução do pensamento do poeta, desde o De vulgari eloquentia até a Commedia, evolução que D’Ovidio traçou com muita clareza, mesmo acreditando notar nela uma contradição, que se refere ao motivo íntimo da troca do nome de Deus de “El”, em De vulgari eloquentia, para “I”, na Commedia. Parece que a interpretação de D’Ovidio é a reconhecidamente mais completa e melhor balanceada no que se refere à relação entre o pensamento de Dante e a filosofia da linguagem. Ele, porém, não soube notar, como fizeram, mais tarde, outros críticos, o significado do tratado à luz do novo método estruturalista de Ferdinand de Saussure.

3

4 5

Segundo a Enciclopedia dell’italiano Treccani, a “questione della lingua” pode ser pensada, de maneira muito reduzida, como um debate a respeito das várias denominações como o florentino, o toscano, a língua comum ou italiano, entre outras. Para Antonio Gramsci: “Ogni volta che affiora, in un modo o nell’altro, la quistione della lingua, significa che si sta imponendo una serie di altri problemi: la formazione e l’allargamento della classe dirigente, la necessità di stabilire rapporti più intimi e sicuri tra i gruppi dirigenti e la massa popolare-nazionale, cioè di riorganizzare l’egemonia culturale” (Quaderni del carcere. Quaderno 29, § 3). Para o intelectual italiano, ainda, o De vulgari eloquentia deveria ser entendido como um ato de política cultural e nacional. Pensando no meio do caminho entre as duas colocações feitas aqui, a questione della lingua seria, na sua essência, o longo debate em torno das normas e da identidade da língua italiana, que teve início com o tratado de Dante e que se desenvolve até o presente momento, quando são discutidos temas tais como: o destino do italiano, sua constituição, seu papel como língua oficial ou nacional, a língua da escola, sua relação com os dialetos. Importante é especificar que a questione della lingua não é uma exclusividade da Itália. Outros países, como França e Grécia, também discutem sobre as especificidades de suas línguas, sua identidade, seu uso e o destino reservado a elas (). Para mais informações sobre a temática aqui em questão, interessante é consultar: RIZZO, S. Note sulla felicità e la filosofia – e altri saggi di filosofia e letteratura. Francesco D’Ovidio (1849-1925) foi professor de história comparada das línguas e literaturas neolatinas junto à Universidade de Nápoles, onde era titular também da cátedra de literatura dantesca. O ensaio aqui citado intitula-se “Sul trattato De vulgari eloquentia”, publicado em 1873.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

165

Seguindo nessa linha crítica, a obra de Aristide Marigo6, de 1938, é, sem dúvida, a mais detalhada para os estudos dos vários fatores, internos e externos, do tratado de Dante. Com precisão, Marigo o enquadra no pensamento poético medieval, fazendo-lhe ressaltar a originalidade em relação às influências clássicas e medieval, em latim e em vulgar. Com o mesmo zelo, Marigo traça a história da crítica do tratado e lhe atribui, às mudanças radicais, o fato de lhe faltar uma interpretação global. Seria impossível reproduzir aqui a detalhada análise do texto conduzida por Marigo. Recordamos, porém, apenas algumas observações que parecem importantes. Pelo que se refere ao método de Dante, Marigo lhe indica o caráter marcadamente medieval e, em função disso, dedutivo, e diz ser evidente, para um estudioso de filologia que, no método de Dante, não é possível reconhecer nem mesmo o germe do método científico moderno. Ao mesmo tempo, Marigo não nega o valor de certas intuições de Dante sobre a natureza da linguagem e da poesia, e declara que, se essas não são corretas, não é por causa do pensador e sim do poeta, funções que se confundem em Dante. Para Marigo, os critérios da pesquisa dantesca não seriam nem científicos nem empíricos, mas sim filosóficos e estéticos ao mesmo tempo. Esta observação de Marigo parece muito justa e nos permite ver, no interior do tratado, o contínuo conflito, às vezes aparente às vezes velado, entre o elemento filosófico e o poético, entre o rigor do pensamento dedutivo e a exigência do poeta. Em Marigo, notamos a ausência de um tema já acenado por D’Ovidio, que é o problema da evolução do pensamento do Dante que se apresenta em De vulgari eloquentia até o que chega à Commedia. Justamente por esta falta, Marigo foi muito criticado por seus pares. Aqui, acreditamos que a poética de Dante e também o seu pensamento linguístico sejam, como disse Giorgio Barberi Squarotti, um work in progress, isto é, um corpo de conceitos não estáticos, continuamente influenciado por sua atividade de poeta. Passemos agora diretamente ao ensaio de Bruno Nardi7. O conhecido dantista coloca, no centro de sua pesquisa, a evolução do pensamento linguístico de Dante. Ele chegou à conclusão de que: “una linea logica nettamente definita e una profonda coerenza legano fra loro il primo trattato del Convivio, i capitoli introduttivi del De vulgari eloquentia e i versi del Canto XXVI del Paradiso”8. O estímulo desta evolução estaria no conflito entre o filósofo e o poeta que Marigo já havia observado. Dante, segundo Nardi, mesmo tendo sido um grande admirador das doutrinas tradicionais, teve sempre os olhos bem abertos para a realidade viva que se desenvolvia em torno dele. 6 7 8

Aristide Marigo (1883-1950) era professor de literatura latina medieval na Universidade de Pávia e teve seu nome ligado a importantes estudos sobre o De vulgari eloquentia. A obra de Marigo aqui mencionada é a tradução do tratado dantesco, publicada em 1938. Bruno Nardi (1884-1968) foi um dantista e estudioso de filosofia. Ensinou história da filosofia medieval na Universidade de Roma. Foi um grande conhecedor do pensamento filosófico e político de Dante Alighieri. O ensaio aqui citado é “Il linguaggio”. “uma linha lógica claramente definida e uma profunda coerência ligam, entre eles, o primeiro tratado do Convivio, os capítulos introdutórios do De vulgari eloquentia e os versos do Canto XXVI do Paraíso.” NARDI, B. “Il linguaggio”, in: Dante e la cultura medievale. Bari: Laterza, 1942, p. 149.

166

De grande importância é também o reconhecimento que Nardi tem de dois elementos da teoria linguística dantesca que até então tinham permanecido nas sombras. O primeiro seria de que a palavra representa a síntese viva do conceito, com o sinal sensível, ao mesmo tempo em que possui um valor espiritual. O segundo seria o princípio da arbitrariedade da linguagem, no interior da qual somente o desejo de falar é natural, enquanto a própria palavra é arbitrária. Em linha com o pensamento de Nardi, nota-se um ensaio de Antonino Pagliaro9, que aprofunda ulteriormente a análise do tratado em termos estruturalistas. Neste, notaremos somente os elementos novos e os que reforçam de maneira significativa os temas da crítica já familiar a nós até aqui. Entre estes últimos, Pagliaro reafirma a qualidade dinâmica da especulação dantesca sobre a linguagem e, pela primeira vez, descreve a descoberta de Dante entre os termos saussurianos de diacronia e sincronia. Assim, sobre a tão debatida questão, se o tratado dantesco é uma poesia ou um estudo de linguística, Pagliaro observa que, não obstante os muitos pontos relevantes de filosofia da linguagem, a obra desenvolve a poética do vulgar. Pertinente, então, a observação de muitos críticos a respeito de que Dante estaria interessado na linguagem não como linguista, mas sim como poeta. Duas observações originais de Pagliaro são, por fim, dignas de nota: a primeira diz respeito ao método da pesquisa, que é por ele mesmo visto como fruto da forma mentis medieval. A segunda observação está no reafirmar o valor da língua italiana, colocando às claras o caráter social, étnico e geográfico de uma língua nacional assim como a concebeu Dante. Recordamos agora o ensaio de Barberi-Squarotti10, que explicou muito bem a evolução do pensamento de Dante no seu trabalho “Poetiche del Trecento in Italia”. A concepção fundamental de Barberi-Squarotti é que a poética de Dante é um work in progress. Ele nota o caráter intelectual da concepção dantesca de poesia, no quadro geral do pensamento medieval, mas destaca que, em Dante, desponta o problema da linguagem como estímulo dinâmico em toda a sua meditação poética. E o autor nos mostra no poeta um processo de “democratização” da linguagem poética. Para Dante, uma língua tem valor enquanto essa foi e é língua de uma literatura, voz de uma poesia. A passagem do De vulgari eloquentia para a Commedia representaria, assim, a última fase deste processo de afinamento e de concretização da reflexão dantesca sobre a língua. Não se pode dizer que, na crítica sobre o De vulgari eloquentia, tenham faltado brilhantes expoentes. Mas, analisando o percurso que esses fizeram, somos 9

10

Conforme nos indica a Enciclopedia Treccani, Antonino Pagliaro (1898-1973) foi um orientalista e linguista italiano que se dedicou à interpretação histórica dos fatos linguísticos, no campo indoeuropeu e no romance. Como teórico da linguagem, depois de percorrer algumas trilhas teóricas de sua época, chegou a posições próprias, segundo as quais a linguagem é feita de conhecimento, e a língua é um sistema distintivo de tal conhecimento (Em: ). O ensaio utilizado aqui tem por título “La dottrina linguistica di Dante” e está publicado em: Quaderni di Roma, V. 1. Giorgio Barberi Squarotti (1929) é crítico literário e poeta italiano. Trabalhou como professor de História da Literatura Italiana na Universidade de Torino. É amplamente reconhecido no meio intelectual por seu trabalho com autores como Dante Alighieri, Nicolau Maquiavel, Torquato Tasso, Giovanni Verga, entre tantos outros.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

167

levados a esbarrar em problemas resolvidos pela metade, questões não colocadas e soluções incompletas. A primeira coisa a ser notada é que ninguém ainda mostrou a profundidade e a coerência do pensamento linguístico de Dante por meio de um acurado exame do texto aqui em questão. Falta ainda uma clara discussão da relação entre latim e vulgar nos termos da hierarquia linguística especificada no próprio tratado. Enfim, não obstante o valor da contribuição dantesca para a moderna geografia linguística italiana, ainda não se viu com precisão qual relação o seu pensamento tenha com a filosofia da linguagem e com a linguística geral de matriz saussuriana. Aqui a intenção é mostrar, sucintamente, que todas estas questões podem encontrar respostas se nos debruçarmos sobre o tratado para uma acurada análise do texto, que nos permita ver-lhe a fundamental unidade e coerência. Primeiramente, vejamos como Dante concebe a comunicação linguística e no que ele a diferencia da animal, de um lado, e da angelical, de outro. Os homens não se comunicam entre si como os animais e nem mesmo como os anjos. Para o gênero humano, comunicação linguística é passagem de conceitos de razão em razão; mas, porque os seres humanos tem também um corpo, essa deve acontecer por meio de sinais sensíveis, que devem ser, ao mesmo tempo, sensíveis e racionais; a parte sensível é o som, a racional, o significado. Estas são verdades fundamentais da linguagem humana que a linguística moderna redescobriu no século XX. Se é verdade que o método dantesco é dogmático e dedutivo, é também verdade que ele se aproxima constantemente da intuição concreta sobre natureza e linguagem. Além disso, no De vulgari Eloquentia, Dante não se dá nem mesmo escrúpulos em contradizer a Bíblia, onde retém, em base ao seu raciocínio, que as coisas não aconteceram como ali se diz. O poeta diz, em seu tratado, que a mulher falou primeiro. Mas, por que, depois disso, ele concluiu que é mais racional que o homem tenha falado primeiro? Se, depois, Dante diz que foi o homem quem falou primeiro, corrigindo a sua própria interpretação do texto bíblico, é porque, para ele, isso parece razoável. No quadro do pensamento religioso medieval, é certamente mais racional que coisas assim, por excelência, como a palavra, não tenham sido empregadas pela primeira vez no discurso com o demônio – e, além do mais, por uma mulher! Mas que tenha sido adotada, num primeiro momento, em louvor a Deus. E eis a causa da elaborada prova para mostrar que Deus falou, antes de tudo, com Adão. Método dedutivo, se se deseja, mas deduções ditadas, não por um dogma religioso, mas pela definição dantesca da linguagem adâmica. Neste ponto, deveria ser possível tratar da língua de Virgílio, um lombardo, na Commedia. E a pergunta seria: Como pode entendê-lo Ulisses, a quem deveria falar em grego? É este um deslize de Dante ou simplesmente um artifício cênico, uma licença poética para iniciar o novo episódio? A resposta a estas perguntas nos parece simples e coerente à luz do De vulgari eloquentia. Supõe-se que Virgílio não falasse nenhuma língua humana, mas se fizesse compreender por todos os

168

seus interlocutores segundo a fala que a eles era própria. E por que não entendeu Nemrud11? Porque este falava uma língua que ninguém entendia e, então, não podendo dialogar, não podia dizer nada de compreensível. Virgílio é a voz da razão compreensível a todo ser racional, ele é a razão dos gregos como também a salvação dos cristãos. O tratado dantesco oferece o fundo conceitual para compreender a natureza de Virgílio como voz da razão. Um último argumento que nos permitimos examinar é a debatida questão da supremacia do vulgar sobre o latim. Em Dante, a questão se trata de descobrir, no interior da unidade linguística, um vulgar que possa unir toda a Itália (utilidade geográfica) e suficientemente codificado para servir de depositário de uma tradição literária (utilidade histórica). Para concluir, acreditamos ter colocado em destaque, mesmo que brevemente, a fundamental unidade da especulação dantesca sobre a linguagem. A intenção primeira, e quase única, foi demonstrar a importância de se conhecer e estudar o tratado dantesco ainda hoje para se perceber sua atualidade e encontrar questões que nos aclarem o caminho para a construção da história da língua italiana. E fazemos isso para colocar em relevo a contribuição de Dante e seu De vulgari eloquentia para o estudo da linguagem, que se manifesta, assim, em toda a sua extraordinária atualidade para o pensamento linguístico e literário contemporâneo.

11

Podemos encontrar a história de Nemrud no Livro de Gênesis. Ele, segundo a história bíblica, é quem ordena a construção da Torre de Babel, mito bíblico que busca explicar a origem de todas as diversas línguas existentes sobre a terra.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

169

REFERÊNCIAS ALIGHIERI, D. De vulgari eloquentia. Organização de P. G. Ricci. Tradução de Aristide Marigo. Florença: Monnier, 1938. BARBERI-SQUAROTTI, G. Le poetiche del Trecento in Italia. In: Momenti e Problemi di storia dell’estetica. Milão: Marzorati, 1959. D’OVIDIO, F. Sul trattato De vulgari eloquentia. In: Archivio glotologico italiano, V. 2, 1873. NARDI, B. Il linguaggio. In: Dante e la cultura medievale. Bari: Laterza, 1942. RIZZO, S. Note sulla felicita e la filosofia – e altri saggi di filosofia e letteratura. Ariccia: Aracne editore, 2006.

OS DESAFIOS DA FORMAÇÃO HUMANA INTEGRAL EM TEMPOS DE APAGAMENTO DOS CONTEÚDOS ESCOLARES: uma breve reflexão1 Rosângela Pedralli2 Josa Coelho Irigoite Amanda Machado Chraim Cíntia Franz Laiana Abdala Martins Maíra de Sousa Emerick de Maria

1 Introdução As discussões acerca dos currículos que norteiam as ações desenvolvidas na esfera escolar são constantes no cenário brasileiro, e parece ficar claro que, em muitos momentos da história da educação do país, há aquele movimento da curvatura da vara proposto por Saviani (2012 [1983]) – ora vê-se uma exacerbação de alguns aspectos, ora a vara se curva para outro lado e exacerbam-se outros elementos. Contemporaneamente, diferentes teorias curriculares fundamentam concepções que, havendo especificidades que as distinguem, parecem convergir em pontos centrais – considerada a natureza deste trabalho, que se presta a ligeiramente levantar questionamentos para reflexão, não haverá um aprofundamento deste panorama, importando destacar justamente aquilo que aparentemente vem sendo reiterado por aquelas teorias vinculadas à ideologia pós-modernista.

2 As teorias vinculadas à ideologia pós-modernista e o apagamento dos conteúdos escolares As teorias alinhadas à ideologia pós-modernista constituem um campo que, apesar de constantemente teorizado, ainda carece de formulação no que se refere 1 2

O presente artigo consiste em uma síntese das discussões realizadas no Simpósio Temático Alfabetização e formação de professores, sob coordenação de Rosângela Pedralli e Josa Coelho Irigoite. Professora Adjunta do curso de Letras-Português da UFSC. E-mail: [email protected]; Professora do curso de Letras-Português da UFSC. E-mail: [email protected]; Doutoranda em Linguística Aplicada no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC. E-mail: [email protected]; Mestranda do PROFLETRAS da Universidade Federal de Santa Catarina e Professora de Língua Portuguesa na Rede Pública Municipal de Rio do Sul/SC. E-mail: [email protected]; Mestranda em Linguística Aplicada no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC. E-mail: [email protected]; Mestra em Linguística Aplicada no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC. E-mail: [email protected].

172

aos fundamentos filosófico-epistemológicos que embasam tais teorias, pois a própria formação dos professores depende de uma efetiva compreensão dos aspectos que estão atrelados a cada uma das metodologias educacionais delineadas. O não entendimento daquilo que está na base das teorizações educacionais redunda, ao que parece, em ações em alguma medida ingênuas e, por conta disso, em uma gaseificação do trabalho docente. Algumas teorias pedagógicas, por exemplo, têm se ocupado de promover o estudante e o processo de aprendizagem ao centro do trabalho escolar, desenvolvendo no discente, entre outros aspectos, as competências e habilidades tendo em vista o mercado de trabalho. Tal nomenclatura – competências e habilidades – vai ao encontro daquilo que Frago (2012) aponta como característica das políticas educacionais neoconservadoras, em que são introduzidos conceitos que visam à adaptação ao mundo empresarial privado. O conceito de competência, afirma o autor, é um termo tomado da formação profissional e técnica, “[...] y entendido como destreza, habilidad o saber hacer mensurable, cuantificable y por tanto evaluable, empleabilidad, flexibilidad y polivalencia o adaptación a las necesidades del mercado” (FRAGO, 2012, p. 104). Afastando-se de um currículo previamente definido, muitas das teorias que propõem o trabalho escolar a partir de projetos ou de pesquisas, por exemplo, apontam, tal qual Oliveira (2004, p. 43), que “[...] o principal deixa de ser quais conteúdos o Estado acha que os cidadãos precisam saber e passa a ser quais conhecimentos os estudantes querem criar ou ter para planejar melhor sua inserção na sociedade”. Tal posicionamento parece ir ao encontro daquilo que Frago (2001) coloca sobre as propostas neoliberais para a educação, apontando que um governo que age de acordo com os princípios neoliberais deve renunciar a possibilidade de intervenção, dando aos centros docentes plena autonomia para a seleção dos conteúdos ministrados nas escolas. Dessa forma, esta lógica, que solicita ao estudante que defina seu próprio currículo, pode tornar-se delicada se for compreendida como reflexo de uma filosofia neoliberal respingada também no meio educacional. Para o neoliberalismo, como explica Frago (2001), numa perspectiva bastante individualista, cada um possui o que merece em função das suas próprias decisões, sendo responsável pelo que lhe acontece. Diminui-se, assim, a responsabilidade do Estado, já que cada um dos estudantes é convocado a definir o que deseja pesquisar e como vai traçar o seu percurso na escola. Ainda nesse sentido, Frago (2012, p. 104) escreve que uma das consequências deste cenário é a geração de “[...] una serie de mecanismos y procesos de autoinculpación y subjetivización de la responsabilidad [...]”, de forma que os alunos se tornam responsáveis pelos seus resultados e por sua trajetória escolar. Este processo de subjetivação faz, assim, com que os sujeitos pensem que cada um é responsável por si mesmo, sem que o Estado tenha responsabilidade objetivamente em questões relacionada às suas vidas. El mérito y el esfuerzo son algo puramente individual que se supone al alcance de cualquiera si se lo propone y desea [...]. [...] dicha subjetividad responsable se forma a través de um doble mecanismo solo aparentemente contradictorio.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

173

Por un lado, sometiendose a un aprendizaje competitivo y diferenciado como vía hacia la autodisciplina y la producción de sujetos independientes y autónomos, únicos responsables de las decisiones que toman. Por outro, se promueve, como panacea pedagógica, el aprendizaje cooperativo o en grupo, pero en grupos inestables, temporales y diversos, que generan identidades precárias (FRAGO, 2012, p. 104).

Assim, em tais propostas, não há um currículo a priori que deve ser levado em conta pelo corpo do docente, de forma que o planejamento seja delineado em torno dos conteúdos previstos de antemão; pelo contrário, o currículo é norteado pelos próprios estudantes ao escolherem aquilo que será focado em sala de aula a partir de seus interesses, na maioria dos casos vinculados a aspectos pragmáticos de suas realidades e dentro do escopo do já sabido. Não há, por consequência, como aponta Oliveira (2004), a possibilidade de fixar aquilo que parece ser relevante de ser apropriado e compreendido pelos alunos. Saviani (2012 [1983]), numa vinculação à perspectiva histórico-crítica, problematiza este apagamento dos conteúdos na escola, pois sem eles a aprendizagem deixa de existir em grande parte dos casos; somente os conteúdos, assim, se constituiriam como forma de luta contra as farsas do ensino. Ele explica que, principalmente no que tange à educação das massas populares, os conteúdos, que representam a produção cultural humana, são indispensáveis para sua efetiva participação política. O domínio dos conteúdos significa, pois, o domínio da cultura. Se os membros das camadas populares não dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer valer os seus interesses, pois ficam desarmados contra os dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e consolidar sua dominação. [...] Então, dominar o que os dominantes dominam é condição de libertação (SAVIANI, 2012 [1983], p. 55).

Saviani (2012 [1983]) entende, deste modo, que as disciplinas têm uma importância para este processo, já que sem elas os conteúdos dificilmente são internalizados pelos sujeitos. A preocupação da escola deve ser, portanto, segundo esse autor, a de buscar os caminhos e os procedimentos metodológicos que garantam que tais conteúdos sejam realmente compreendidos pelos estudantes, apontando, dessa forma, para uma pedagogia revolucionária.

3 O paradoxo da busca pela formação humana integral e o esvaziamento da escola Esse movimento de curvatura da vara parece reverberar, assim, em um bom número de questões fundantes que dizem respeito desde o apagamento dos conteúdos escolares, tal qual tematizado na seção anterior, até a existência da própria escola. Importa que, ao tomarmos a escola como objeto de reflexão, seja na condição de pesquisador seja na condição de docente, tenhamos clareza que a romantização do ‘partir da realidade dos sujeitos’ não constitui o único modo

174

de posicionarmo-nos contra a Escola Tradicional, neutra, concebida como transmissora de conteúdos desvinculados das finalidades sociais. A ideia de uma pedagogia revolucionária parece estar acompanhada de um processo de formação humana que transcenda a mera preparação para o mercado de trabalho e se oriente, genuinamente, para uma formação humana mais integral. Tal formação, entretanto, é absolutamente dependente de um movimento contínuo e coletivo de pensar e definir quais conteúdos convertem-se como fundamentais a essa formação. Nesse sentido, vale destacar pelo menos dois aspectos. O primeiro deles dialoga com a crítica historicamente realizada à concepção tradicional de educação e à a-historização dos conteúdos escolares. Numa perspectiva de educação que se queira revolucionária e que contribua para a formação humana integral, os elementos históricos, culturais e, consequentemente, sociais que envolvem os conteúdos curriculares precisam ser preservados; o ensino não pode se dar na assepsia dessas questões. Outro aspecto importante a destacar é que assumir a importância de conteúdos que são pensados de antemão pelo coletivo da escola significa enfatizar o que une os sujeitos e não o que os separa, uma vez que a escola se ocupa da educação formal de todos os sujeitos. Do mesmo modo que a decisão sobre quais conteúdos escolares devam ocupar os professores, a questão sobre qual o papel de cada componente curricular para a consecução de uma formação com esses contornos também é fundamental. No que compete aos componentes ocupados com a Educação Linguística, parece-nos fundamental que os profissionais tenham clareza sobre a centralidade da linguagem para o desenvolvimento de um processo educacional que supere as pedagogias alienadoras e que permita o desenvolvimento integral das potencialidades humanas. É esperado dos componentes Língua Portuguesa e Línguas Estrangeiras/ Adicionais, bem como do profissional que se responsabiliza pelo ciclo de Alfabetização, uma ação que leve o sujeito a compreender a linguagem como meio de aprender a viver a sua subjetividade (BRITTO, 2012). Nesse sentido, comprometer-se com uma formação humana integral significa compreender que a instituição de ensino formal e o professor nunca são neutros, mas, sim, política e ideologicamente comprometidos com a função social da escola, o que requer uma atitude crítica e responsiva frente ao trabalho pedagógico. Britto (2003, p. 47) reforça o desafio de “desmontar a racionalidade dominante”, de modo a promover um diálogo com as referências culturais produzidas pelos sujeitos no plano da história, transformando a informação cotidiana em conhecimento científico que faculte a elevação do genérico humano (HELLER, 1970). Nesse contexto, estar ciente da base epistemológica é fundamental se quisermos pensar e planejar o trabalho educativo voltado para a formação integral dos sujeitos. Duarte (1998) assume como central a esse processo a apropriação dos objetos da cultura, em convergência com a compreensão de que cada nova geração tem que se apropriar das objetivações resultantes da atividade das gerações passadas. Esse mesmo autor afirma ainda que:

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

175

A formação do indivíduo é, portanto, sempre um processo educativo, mesmo quando essa educação se realiza de forma espontânea, isto é, quando não há relação consciente com o processo educativo que está se efetivando no interior de uma determinada prática social (DUARTE, 1998, p. 111)

Saviani (2012 [1983]), através do conceito de trabalho educativo, faz críticas ao escolanovismo, que tem como base uma concepção que legitima a alienação perante as desigualdades sociais. Tal crítica aponta para a mencionada pedagogia revolucionária, a pedagogia ativa. Nesse modo de conceber o ensino escolar, o ponto de partida não é a preparação técnica centrada na figura do professor, tampouco diz respeito à defesa de uma pedagogia em que as práticas sejam oriundas dos interesses e das necessidades pragmáticas dos alunos. Para Saviani (2012 [1983]), o ponto de partida é a prática social, comum a alunos e professor, voltando o ponto de chegada do processo educativo também à prática social. Os métodos tradicionais assim como os novos implicam uma autonomização da pedagogia em relação à sociedade. Os métodos que preconizo mantêm continuamente presente a vinculação entre educação e sociedade. Enquanto no primeiro caso professor e alunos são sempre considerados em termos individuais, no segundo caso, professor e alunos são tomados como agentes sociais (SAVIANI, 2012 [1983], p. 70).

O trabalho educativo é, portanto, uma atividade intencionalmente dirigida a determinados fins (DUARTE, 1998). Assim, a defesa consiste na importância de o trabalho escolar ser sistematizado pelo professor, culminando na apropriação efetiva dos conhecimentos científicos (aqueles produzidos e elaborados historicamente pelos sujeitos), orientado sempre para a formação humana desses mesmos sujeitos.

4 Formação humana integral: compromisso com a emancipação ou um imperativo neoliberal? À luz do conjunto complexo de questões que se apõem de modo dialético ao desafio de contribuir para a formação de pessoas, cabe aos profissionais que assumem tal função como centro do seu labor ter presente constantemente alguns questionamentos: Quem tenho comigo? Em favor de quem/de que organizo essa ação? Qual a contribuição genuína dessa ação para a formação dessas pessoas? O tratamento que dou aos conteúdos escolares no âmbito das ações didático-pedagógicas permite aos sujeitos repensarem sua própria existência? Que projeto de formação humana orienta tal ação? Mais radicalmente ainda, é fundamental ter presente que o convite à formação humana integral que fazem a nós os documentos parametrizadores de ensino contemporâneos (cf. DCNs, 2013; PCSC, 2014) não é consensual, recebe também acentos valorativos. Nessa direção, pode converter-se tanto em uma resposta a demandas

176

impostas pelo contorno neoliberal que boa parte das instâncias formais vem ganhando, incluindo a escola, ou numa proposta educacional radicalmente humanista. Movidos por essas discussões, concordamos com Mészáros (2008) sobre o papel da educação diante do suposto discurso reformista do capitalismo, elaborar estratégias que facultem a mudança das condições objetivas de reprodução e criar uma nova ordem social, diferente da que está posta, por meio da automudança consciente dos indivíduos. Nesse sentido, é indispensável a universalização da educação e a universalização do trabalho como atividade humana autorrealizadora.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

177

REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Câmara Nacional de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica/Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013. 562p. Disponível em: . Acesso em: 10 mai. 2016. BRITTO, L. P. L. Inquietudes e desacordos: a leitura além do óbvio. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2012. ______. Contra o consenso: cultura escrita, educação e participação. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2003. DUARTE, N. Relações entre ontologia e epistemologia e a reflexão filosófica sobre o trabalho educativo. Revista Perspectiva, Florianópolis, v. 16, n. 29, p. 99-116, jan./jun. 1998. FRAGO, A. V. El concepto neoliberal de calidad de la enseñanza: su aplicación en España (1996-1999). Temporá: Revista de historia y sociologia de la educación, n. 4, p. 63-88, 2001. ______. El desmantelamiento del derecho a la educación: discursos y estrategias neoconservadoras. AREAS. Revista Internacional de Ciencias Sociales, n. 31, p. 97107, 2012. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2004 [1970]. MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008. OLIVEIRA, G. M (Org.). Interesse, pesquisa e ensino: uma equação para a educação no Brasil. Florianópolis: PMF, 2004. SANTA CATARINA. Governo do Estado de. Proposta Curricular de Santa Catarina: Formação Integral na Educação Básica. S.l.: S.n., 2014. SAVIANI, D. Escola e democracia. 42. ed. Campinas: Autores Associados, 2012 [1983].

PESQUISAS LINGUÍSTICAS COM BASE NA AMOSTRA FÍLMICA RIO: olhares para a dublagem em português e em três variedades do espanhol Leandra Cristina de Oliveira1 Alison Felipe Gesser Beatrice Távora Carine Santos Albano Diare Brandelero Hernán Camilo Urón Santiago

1 Introdução O Simpósio temático O estudo das marcas de oralidade em espanhol: projeto CEEMO, proposto durante a X Semana Acadêmica de Letras UFSC, reuniu pesquisadores interessados em fenômenos linguísticos, tradutórios e literários diversos, emergentes a partir do olhar sobre as marcas de oralidade presentes em diferentes gêneros escritos, dentro do marco do Projeto Corpus do espanhol escrito com marcas de oralidade (CEEMO). Na ocasião da socialização das pesquisas, foram apresentadas nove comunicações de pesquisadores internos e externos à UFSC, fundamentadas em pressupostos teórico-metodológicos distintos, porém, com o objetivo compartilhado de considerar as marcas de oralidade nos gêneros textuais em estudo. Considerando o objetivo deste texto-síntese – articular reflexões apresentadas no Simpósio mencionado –, é pertinente trazer à luz pesquisas que dialogam de alguma maneira. Nesse sentido, em seções adiante, sintetizamos os trabalhos que se afinam em dois aspectos – pelo enfoque linguístico e pelo corpus considerado – a amostra fílmica Rio, primeiro filme contemplado no CEEMO, considerando a transcrição do material de áudio em quatro versões traduzidas: português do Brasil, espanhol mexicano, espanhol peninsular e espanhol neutral.

1

Professora do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras e do Programa de Pós-graduação em Linguística/ UFSC,doutora em Linguística. E-mail: [email protected]. Mestrando PPGLing/UFSC/CAPES. E-mail: [email protected]; Mestranda PGET/UFSC/CAPES. E-mail: [email protected]; Bacharela em Letras Espanhol/ UFSC/PIBIC. E-mail: [email protected]; Licenciada em Letras Espanhol/UFSC/PIBIC. E-mail: [email protected]; Licenciado em Letras Alemão e Graduando em Letras Espanhol/PROBOLSA. E-mail: [email protected].

180

2 A amostra fílmica em estudos da linguagem: desafios metodológicos no projeto CEEMO Assumindo a amostra fílmica como material legítimo para estudos na área de Letras, em que se efetiva a inmediatez comunicativa a partir da interação entre personagens em situações comunicativas, defendemos que o áudio original, a dublagem e a legenda – três materiais possíveis a partir desse produto audiovisual – representam amostras profícuas para pesquisas sobre a língua oral. No entanto, tendo em vista o objetivo principal do CEEMO – disponibilizar um corpus de textos escritos com marcas de oralidade –, consideramos pertinente recobrir o material de áudio (original e dublagem) em detrimento da legendagem. Esse recorte metodológico estabelecido no Projeto se justifica pelas seguintes razões: (i) a oposição entre as modalidades oral e escrita: concebemos a dublagem como um terreno mais favorável à presença de traços de oralidade, haja vista estarem a dublagem e a oralidade, em princípio, no mesmo modo de realização, diferentemente da legenda; e (ii) o maior apagamento de marcas de oralidade na legenda, comparada à dublagem, ocasionado pela influência da norma culta e da norma padrão sobre a modalidade escrita da língua. Sobre o mencionado em (ii), precisamente, entendemos que no trabalho do tradutor, tanto no processo de legendagem como no de dublagem, pode haver uma direção às normas citadas em virtude do prestígio que lhe é atribuído. Contudo, estudos reforçam o argumento sobre o maior apagamento de marcas de oralidade na legendagem em comparação com a dublagem (RODRIGUES; SEVERO, 2013). No que diz respeito aos interesses do CEEMO pela variação da língua espanhola, considerando a dificuldade de recobrir a diversidade dialetal hispânica a partir do gênero filme, julgamos relevante e factível a consideração de filmes estrangeiros traduzidos a diferentes variedades do espanhol. Quanto ao filme Rio, a equipe de pesquisadores trabalhou na transcrição e revisão do material de áudio traduzido, a partir do inglês, ao português brasileiro e a três versões do espanhol: espanhol mexicano, espanhol neutral e espanhol peninsular. Esse trabalho de transcrição implicou diversos cuidados metodológicos, como: (i) consideração de normas de transcrição específicas para esse tipo de gênero2; (ii) distribuição de fragmentos do filme a pesquisadores distintos, os quais estavam responsáveis pela transcrição de um mesmo fragmento nas quatro versões de áudio; (iii) revisão da transcrição por participantes distintos; (iv) organização das quatro versões de áudio em planilha, para disposição lado a lado; (v) identificação de fenômenos linguísticos diversos a partir de etiquetas específicas, previstas nas normas de transcrição; (vi) elaboração de cabeçalho com informações sobre a amostra, bem como indicação de fenômenos linguísticos (fonético-fonológicos, morfológicos, lexicais etc.) recorrentes na amostra; entre outras questões debatidas nas reuniões entre os pesquisadores envolvidos. 2

As normas de transcrição de material de áudio de filmes consideradas no trabalho de transcrição estão disponíveis em: .

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

181

3 AS formas de tratamento em português e espanhol através da análise de amostra fílmica Tendo como base comum o latim, os sistemas pronominais do português e do espanhol são relativamente próximos quanto à maneira de se dirigir ao interlocutor. Na atualidade, enquanto o português apresenta as formas tu, você, o senhor/a senhora para se dirigir à segunda pessoa (singular), no espanhol são utilizadas as formas tú/vos/usted, como afirma Oliveira (2009, p. 2). A eleição de uma dessas formas, no entanto, é uma tarefa complexa que envolve diversas variáveis como: idade, sexo, estilo, grau de intimidade e hierarquia. Em razão da dificuldade de eleição das formas para marcar e construir relações sócio-afetivas, Kerbrat-Orecchioni (2006) preconiza a inexistência de estabilidade nas interações e a possibilidade de uma margem de manobra entre os falantes, isto é, um grau de variação nas formas orientado pela situação de uso para expressar cortesia. A partir desse entendimento, e sob uma perspectiva qualitativa, esta seção apresenta de forma resumida a análise do uso dos pronomes de tratamento de segunda pessoa nas relações interacionais das versões do filme Rio (2011), através de uma proposta contrastiva, e versando sobre a funcionalidade das formas e sobre aspectos relacionados a identidades e prestígio linguístico. O quadro a seguir ilustra os resultados parciais, através dos quais foi possível perceber a evolução no trato de cortesia entre Linda e Túlio. Observa-se em (1) a primeira interação entre os personagens que, embora pertençam à mesma faixa etária, na relação se observa ausência de intimidade e graus hierárquicos distintos, já que Túlio possui o título de doutor em ornitologia. Essa afirmação se baseia no uso dos clíticos de terceira pessoa no espanhol (se e le, por exemplo). Percebe-se no mesmo quadro, em (2) e (3), a evolução na adoção dos pronomes de tratamento, evidenciada pelo uso dos clíticos e da concordância de segunda pessoa no espanhol, condizente com o grau de intimidade que passa a existir na relação entre os personagens no desenrolar da trama.

182

Quadro 1: Tratamento na relação interacional entre Linda e Túlio Português do Brasil

Espanhol Peninsular

Espanhol do México

Linda para Túlio: Linda para Túlio: Linda para Túlio: “Tudo bem “¿Se ha hecho daño? “¿No le pasó nada?” com você?” Linda para Túlio: Linda para Túlio: Linda para Túlio: (2) “Você sabe andar de “¿Tú nunca has con“Sí, sabes a la moto, não sabe?” ducido una moto?” moto, ¿verdad? Túlio para Linda: Túlio para Linda: Túlio para Linda: (3) “Hasta la duda “Você ainda duvida?” “¿No me conoces?” ofende, hum” (1)

Espanhol Neutral Linda para Túlio: “¿Se encuentra bien?” Linda para Túlio: “Sabes conducir motocicletas ¿verdad?” Túlio para Linda: “¡No me ofendas! Hum”

A amostra apresentada evidencia a utilização indiscriminada da forma você no português brasileiro, já que este pronome é utilizado na interação desde o primeiro contato, com ausência de aproximação, até o final da trama quando os personagens interagem com alto grau de intimidade. Os resultados parciais demonstram, quanto a isso, que a percepção de maior ou menor formalidade parece estar associada a fatores estilísticos, relacionados à situação comunicativa; nem sempre espelhando a associação tu/solidariedade e você/poder, discutida por Brown e Gilman (1960). O estudo também revela o uso do pronome você como estratégia para denotar neutralidade e caráter ‘menos invasivo’, conforme apontado por Lopes (2009). Em relação ao espanhol, observa-se que as variedades analisadas apresentam a oposição formalidade/informalidade no uso das formas de tratamento de segunda pessoa do singular através da divisão bipartida tú/usted, cujo uso parece apontar para a dependência de fatores estilísticos: no trato com pessoas íntimas emprega-se o tú; ao se referir a estranhos ou pessoas hierarquicamente superiores, emprega-se o usted.

3 Tempos verbais em variação no espanhol neutral Tendo em conta os fenômenos linguísticos em variação, que são sensíveis a fatores internos e externos à linguagem, é possível dizer que alcançar de forma neutra a todos os países aos quais se destina uma tradução, tal como se pretende com o trabalho empreendido na tradução “neutral”, é uma tarefa demasiadamente complexa. Assim, este trabalho analisa qualitativamente, sob a perspectiva da teoria da Variação e Mudança Linguística (LABOV, 2008 [1972]; COELHO et al., 2015), ocorrências de duas expressões verbais em variação – (i) futuro do indicativo; (ii) pretérito perfeito do indicativo. Para tanto, explicam-se, brevemente, as variantes dos tempos verbais observados. O pretérito perfeito na língua espanhola possui duas formas: a simples (PPS) “canté” e a composta (PPC) “he cantado”. De acordo com o gramático AlarcosLlorach (2000, p. 166-167), a diferença entre essas formas está em que o PPS alude a situações distantes de passado e de forma mais geral, enquanto o PPC

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

183

expressa situações ligadas ao presente. No que se refere ao futuro, Moreno e Eres Fernández (2007, p. 284-285) explicam que o futuro perifrástico (FP) –“voy a cantar” – se refere a uma situação que vai acontecer imediatamente após a fala, e que expressa una intenção vinculada à vontade do falante, opondo-se a uma intenção mais geral do futuro, expressada pela forma sintética (FS) – “cantaré”. Cabe ressaltar que o FP também pode expressar um futuro mais seguro para o falante (GDLE, 1999, apud JENSEN, 2002, p. 122).  Como recorte da análise, no que diz respeito à variação na expressão de pretérito, as variedades neutral e mexicana optam pelo pretérito perfecto simple enquanto a variedade peninsular utiliza o pretérito perfecto compuesto(dado em (1)). Na cena dessa ocorrência, o pássaro Blu, ao ver um funcionário da clínica com hematomas e feridas, pergunta se a responsável pelos ferimentos machucados havia sido a ararinha azul que iria conhecer, o que representa uma ação já terminada no passado. Na ocorrência em (2), na qual as variedades neutral e peninsular utilizam o PPC, percebe-se que o fato narrado aproxima a situação ao momento presente da enunciação, pois a personagem pergunta se já havia quebrado uma promessa de algum momento do passado até o momento da fala. Considerando os dados da variedade neutral, essas ocorrências aproximam o uso à norma gramatical, aqui sintetizada a partir de Alarcos Llorach (2000). Quadro 2: Formas verbais do pretérito nas variedades espanholas do filme Rio (1) (2)

Variedade Neutral

Variedade Mexicana

Variedade Peninsular

¿Ella hizo eso? ¿Alguna vez he roto una promesa?

¿Ella lo hizo? ¿Alguna vez rompí una promesa?

¿Le ha hecho eso? ¿Y alguna vez he faltado a una promesa?

Em relação aos resultados referentes ao futuro do indicativo, na ocorrência em (3), a variedade neutral utiliza o futuro sintético enquanto as demais se valem do futuro perifrástico. Trata-se de um contexto de menos certeza do falante; logo, a interpretação do dado, em uma análise de maior complexidade, implica evocar não a temporalidade, apenas, como também, a modalidade. A ocorrência em (4), por sua vez, trata claramente de um futuro próximo, visto que o personagem afirma estar a ponto de dar um conselho e logo em seguida o faz. Neste caso apenas a variedade neutral opta pelo FP. Ambos os casos sugerem, mais uma vez, que a variedade neutral parece guiar seu uso de acordo com a norma gramatical.

184

Quadro 3: Formas verbais do futuro nas variedades espanholas do filme Rio

(3) (4)

Variedade Neutral

Variedade Mexicana

Variedade Peninsular

Estamos solos y si no hacemos nada, ¡nos asesinarán! Te voy a dar un consejo: tú da el primer paso.

Estamos solos tú y yo y, si no hacemos nada, ¡nos van a matar! Te daré un consejillo: tú tienes que aventarte primero.

Estamos solos y si nos quedamos aquí ¡vamos a morir! Te daré un consejo: tú tienes que mandar.

A análise dessas ocorrências aponta indícios de que o espanhol neutral, nesta amostra, busca adaptar-se ao que prescreve a norma gramatical, no que concerne aos tempos verbais em variação, visto que, tanto no pretérito como no futuro, as variantes escolhidas por esta variedade, em concordância ou discordância das outras variedades, condizem com o preconizado pelas gramáticas citadas na discussão teórica deste trabalho.

4 Variação das interjeições na transcrição do filme Rio: debatendo sobre o “espanhol neutral” Nesta investigação, analisamos a variação linguística no espanhol, tendo como objeto de estudo o uso das interjeições próprias e impróprias em três variedades do espanhol contempladas em traduções da amostra fílmica Rio: espanhol mexicano, espanhol neutral e espanhol peninsular. Para tanto, assentados em estudos sobre a língua em uso, aqui considerado à luz da Teoria do Funcionalismo Linguístico, de corrente norte-americana, conforme os estudos de Cunha (2012, p. 173), serão considerados dados extraídos da amostra citada anteriormente. Recortando uma análise ainda em andamento, busca-se responder a três questões: (i) há variação das interjeições do espanhol neutral em relação às outras amostras? (ii) A qual variedade hispânica a versão neutral tende a se aproximar? (iii) Na amostra em estudo, são mais recorrentes as interjeições próprias ou impróprias?3 Como resposta à primeira questão, pode-se verificar a variação das interjeições do espanhol neutral em relação a outras amostras, como ilustram as ocorrências a seguir, em que, na variedade neutral é utilizada a interjeição Vaya, na mexicana Guau e na peninsular Mira, todas na função de expressar o sentimento de surpresa do personagem.

3

De forma sintética,as interjeições próprias são pequenas palavras ou ‘não palavras’ que possuem autonomia comunicativa e não entram, normalmente, em construções com outras classes de palavras; as impróprias pertencem à certa categoria gramatical e passam a funcionar como interjeições quando sofrem um processo de gramaticalização (FERNÁNDEZ, 2010-2011, p.36).

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

185

Quadro 4: Variação das interjeições nas três variedades do espanhol do filme Rio

(1)

Variedade Neutral

Variedade Mexicana

Variedade Peninsular

MARCEL - ¡Vaya, miren esto! Buen trabajo, Fernando.

MARCEL - ¡Guau, eso era todo! ¡Te la rifaste, Fernando!

MARCEL - ¡Mira quién ha venido! ¡Buen trabajo, Fernando!

Quanto à segunda questão, embora não se tenha uma resposta definitiva nesta etapa da pesquisa, percebe-se aproximação do espanhol neutral ora em relação à variedade neutral,ora em relação à mexicana, ora em relação a ambas. Para fins de ilustração, recortamos o dado em (2) adiante, demonstrando a coincidência de uso entre as três variedades no que diz respeito ao emprego da interjeição própria ¡Ahh!. Quadro 5: Aproximação das interjeições Mexicana e Peninsular com a variedade Neutral

(2)

Variedade Neutral

Variedade Mexicana

Variedade Peninsular

LINDA - ¡Ahh! ¡Uh! ¡Corazones! Jaja. ¡Qué cosa! ¡Ahh! ¡Uh! ¡Uh, uh, uh, uh!

LINDA - ¡Ahh! ¡Uh! ¡Qué cosa! ¡Ay, ay, ay! ¡Ahh! ¡Órale! ¡Ah! ¡Uh! ¡Uh!

LINDA - ¡Ahh! Corazones de... jaja. ¡Ay, cielos! ¡Ahh! ¡Uh, uh, uh, uh, uh, uh!

No que diz respeito à terceira questão, verifica-se a necessidade de um estudo mais preciso sobre os fatores que possibilitem distinguir as interjeições impróprias dos marcadores discursivos, tendo em vista a já atestada semelhança entre esses fenômenos, conforme os estudos de Fernández (2010-2011). Nesta etapa inicial da investigação, tem-se comparado apenas o emprego das interjeições próprias, ilustrado a partir das ocorrências abaixo. Quadro 6: Interjeições próprias nas variedades do espanhol (3) (4)

Variedade Neutral BLU - ¡Iugh! BLU - Ay, no. No lo creo. No, no.

Variedade Mexicana BLU - ¡Iugh! BLU - ¡Ay, no! ¡No manches! No, no.

Variedade Peninsular BLU - ¡Eh! BLU - Ah... No. Me da que no.

Como conclusão parcial dos dados, pode-se observar que as interjeições próprias e impróprias, fenômenos recorrentes na modalidade oral e nos textos escritos com marcas de oralidade, apresentam variação nas três amostras castelhanas consideradas. Na sequência da pesquisa, pretende-se verificar (i) a qual variedade hispânica (mexicana ou peninsular) tende a se aproximara variedade neutral e (ii) que tipo de interjeição é mais frequente na amostra em estudo.

186

5 Considerações finais Os estudos congregados neste texto-síntese tentam ilustrar o trabalho de pesquisa dos estudantes e professores envolvidos no Projeto Corpus do espanhol escrito com marcas de oralidade (CEEMO), voltado à investigação de gêneros textuais escritos que apresentam em sua composição traços de oralidade, representando, assim, uma amostra profícua para estudos sobre a variação e mudança linguísticas. Considerando a heterogeneidade do grupo, estão em desenvolvimento no interior do projeto pesquisas orientadas à Linguística e à Tradução. Os trabalhos aqui sintetizados, embora se orientem à luz de postulados linguísticos, têm servido de reflexão para o trabalho tradutório, o qual se beneficia das problematizações lançadas a partir de análises das escolhas linguísticas do tradutor; neste caso específico, dos tradutores do filme Rio.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

187

REFERÊNCIAS ALARCOS LLORACH, Emilio. Gramática de la lengua española. Madrid: Espasa, 2000. BROWN, Roger; GILMAN, Albert. The pronouns of power and solidarity. In: SEBEK, T. A. (Ed.) Style in language. Cambridge: MIT Press, 1960, p. 253-276. COELHO, Izete L.; GÖRSKI, Edair M.; SOUZA, Christiane M. de S.; MAY, Guilherme, H. Para conhecer a sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2015, p. 11-54. CUNHA, Angélica F. Funcionalismo. In: MARMELOTTA, Mário. E. (Org.). Manual de Linguística. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012. FERNÁNDEZ, Sandra. Un estudio de la interjección bueno en conversaciones de chats. UniversiteitGent. FaculteitLetteren en Wusbegeerte. Año académico 2010-2011. JENSEN, Kajær. El futuro y el condicional en el sistema verbal español moderno. Romansk Forum. XV Skandinaviskeromanistkongress, Oslo, 2002, p. 117-125. KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. Análise da Conversação: princípios e métodos. Trad. Carlos Piovezani Filho. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. Tradução de Marcos Bagno, M. Scherre e C. Rio de Janeiro: Parábola, 2008 [1972]. LOPES, Célia R. dos S. Retratos da mudança no sistema pronominal: o tratamento carioca nas primeiras décadas do século XX. In: CORTINA, Arnaldo; NASSER, Sílvia Maria Gomes da Conceição (Org.). Sujeito e Linguagem: séries trilhas linguísticas. Araraquara: Cultura Acadêmica, 2009, v. 17, p. 47-74. MORENO, Concha; ERES FERNÁNDEZ, Gretel. M. Gramática contrastiva del español para brasileños. Sociedad General Española de Librería, Madrid, 2007. OLIVEIRA, Leandra Cristina de. A evolução e o uso dos pronomes de tratamento de segunda pessoa singular no português e no espanhol. In: Letra Magna, Revista eletrônica de divulgação científica em língua portuguesa, linguística e literatura, ano 5, n. 10, p. 1-19, 2009. RODRIGUES, Tiago P.; SEVERO, Cristine G. Variação em legendas de filme traduzidas: a representação da fala de personagens pertencentes a grupos socialmente desprestigiados. TradTerm, São Paulo, v. 22, p. 303-326, dez. 2013.

(PLURI) SEXUALIDADES E DISCURSO: olhares foucaultianos da genealogia às estéticas de si Atilio Butturi Junior1 Sandro Braga Denise Ayres d’Avila Lisiane Panasink Saldanha Arthur Vinicius Anorozo Nunes

Este capítulo parte dos debates estabelecidos no Simpósio Temático (Pluri) Sexualidades e Discurso: Olhares Foucaultianos da Genealogia às Estéticas de Si, que teve lugar na X Semana Acadêmica de Letras da UFSC. O Simpósio reuniu pesquisas que, a partir dos estudos foucaultianos, contemplaram discussões e análises sobre práticas discursivo-corporais que produzem formas de sujeito e resistências a partir das sexualidades. Os trabalhos aqui reunidos, assim, problematizam: os discursos sobre os sujeitos trans; a construção da sexualidade nos dispositivos midiáticos; a condição de subalternidade relacionada aos discursos do corpo, da raça e do gênero.

1 O dizer do outro para dizer de si: a contradição de uma subjetividade transgênero Sandro Braga discutiu a problemática em torno do corpo e da “verdadeira” identidade, bem como a subjetivação do indivíduo através dela, que parece ter sido mesmo a grande questão da modernidade e que, na (des)ordem do contemporâneo, mais do nunca, vem produzindo desdobramentos que merecem nossa atenção (FOUCAULT, 1982). As questões tangencias ao corpo, sobretudo àquelas ligadas ao seu “bom” funcionamento, de longa data estiveram ancoradas nas ciências biológicas, com especial interesse pelas ciências médicas. Outras áreas – como a antropologia e a sociologia – também têm dado especial atenção para compreender a relação entre corpo e indivíduo. Mais recentemente, as inflexões do corpo têm ocupado um lugar novo de reflexão nas ciências da linguagem, sobretudo, quando se pensa o corpo como 1

Sobre os autores, respectivamente: a) docente do DLLV e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC, coordenador do Simpósio Temático; b) docente do DLLV e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC, coordenador do Simpósio Temático; c) mestranda do Mestrado Profissional em Saúde Mental e Atenção Psicossocial; d) graduanda do curso de Letras-Português da UFSC e bolsista PIBIC/ CNPq; e) mestrando do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC. Contatos do trabalho: [email protected] ou [email protected].

190

materialidade na qual se pode vislumbrar um estado movente da própria definição de corpo e de sujeito. Ou seja, suporte material de uma discursividade, que muda afetado pela história e, por isso, mesmo pode produzir formas distintas de subjetividade (BRAGA, 2010). Disso, pontuou duas formas de se compreender o corpo – habitat do sujeito –, uma biológica, portanto vista como natural; outra discursiva, portanto construída, mas não menos natural uma vez que seu efeito é fruto da cristalização de um sentido. Ao que incutiu duas questões: seria possível uma formulação discursiva sem a presença da carne que comporta o corpo físico? E, ainda, estaria o biológico desirmanado do discursivo? Tendo essas questões como pressupostas, Braga propôs pensarmos, analiticamente, acerca dos enunciados proferidos por sujeitos ditos transgêneros transexuais para marcar aquilo que estou identificando como certa contradição no dizer de si. A problemática é de que o transexual, como indivíduo, vivencia literalmente na pele a construção de um corpo refratário de sua subjetividade e que disso depende sua identidade. Dessa constatação, poder-se-ia dizer que o esse sujeito seria a epítome de uma verdade sobre si, verdade não intrínseca a um a priori, mas a um modo de ser e estar no mundo. Nesse sentido essa subjetividade seria produto de uma construção conjunta à própria (re)definição de seu corpo, resistindo e transgredindo nesse corpo a determinação genético-sexual como processo de atualização de si num fenômeno de metamorfose dupla. No entanto, o autor observou que para sustentar a legitimidade dessa condição em um novo corpo, esses sujeitos recorrem com frequência a enunciados que lhe assegurem uma essência subjetiva diferente daquela experienciada antes de identificar-se como transexual. Enunciados esses calcados no argumento de que haveria uma essência subjetiva antes mesmo do corpo e de que a medicina estaria para “corrigir” esse “erro” do corpo. Não propondo de modo algum uma crítica à subjetividade transgênero, apontou que é preciso mostrar que ao aludir a discursos como “não fui eu quem escolheu ser assim”, “corpo errado”; “sempre fui mulher”; “alma feminina”; o sujeito acaba por (re)produzir um discurso negativo à subjetividade transgênero. Esses dizeres soam e entoam como um lenitivo, uma desculpa admissível para que o outro o aceite nessas condições postas de forma fragilizada. O autor pensa que esse modo de operar o enunciado mascara a necessidade de uma política efetiva para a identidade trans. Por isso, defende pensarmos que o corpo e a subjetividade se constituem paulatinamente engendrados na própria história desses sujeitos; e na movência e inscrição de uma nova História que possibilita a emergência de novos sujeitos, novos dizeres e, portanto, novos discursos. Foucault (1979), no capítulo Verdade e poder, em Microfísica do poder, aponta como o campo do saber esteve, historicamente, implicado em relações de poder. Especificamente, a autor analisa o estatuto da verdade enquanto efeito das descobertas científicas. No entanto, mostra a verdade como resultado das condições de filiações políticas. Esse espectrograma registra os binômios saber e verdade de um lado, ciência e política por outro. A efetividade dessas relações é construída, articulada e alterada no curso e na movência da história. Desse modo, o sujeito, ao inscrever-se

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

191

pela língua, assim o faz mediante as possibilidades que o saber e os dispositivos de poder tornam possível – enquanto produção enunciativa.

2 O dispositivo jornalístico e o discurso trans Na comunicação acerca do discurso jornalístico sobre o público trans, Denise Ayres d’Avila analisou a produção de discursos sobre a transgeneridades e as transexualidades materializadas no dispositivo jornalístico elencado do corpus do jornal Folha de São Paulo no período compreendido entre 1 de agosto de 2014 e 3 de outubro de 2014. A metodologia de análise discursiva utilizada para esse fim foi a discussão de Foucault (2012, 2009). A partir do dispositivo da sexualidade, no que se refere a produção de gênero (NICHOLSON, 2000; BUTLER, 2015; BUTTURI JUNIOR, 2012), a comunicação se valeu de alguns autores que sustentam natureza e construção social de gênero e sexo. Problematizando o tema na discursividade médica, a comunicação trouxe o Manual Diagnóstico de Saúde Mental que trabalhou a transgeneridade no seu volume quatro como transtorno e atualizou a questão, dez anos depois, no volume cinco como disforia de gênero patologizando a questão com correspondência no Código Internacional de Doenças, o chamado CID. Fazendo uma contraposição entre os enunciados patologizantes e o texto de Enke (2012), mostra-se a disseminação do uso dos prefixos como conceitos-chave dos movimentos ligados à sexualidade e ao gênero na universidade. No uso mais comum, cisgênero implicaria a permanência e a assunção em certos parâmetros culturais e normativos de gênero, enquanto trans e cross trariam no bojo a disjunção com tais parâmetros – aqui não se considerando a exigência de subversão e de resistência. Para Enke (2012), a discussão cis X trans promoveu tanto a politização das formas de subjetividade genericamente constituídas quanto foi capaz de estabelecer uma ferramenta conceitual que não esbarrasse no binarismo (masculino e feminino) já solidificado. Ademais, a autora faz notar que os discursos trans permitiram, inclusive, engendrar porpostas de suspeição da regulação cis. Partindo para a análise do dispositivo Folha de São Paulo, observou-se que o jornal se apresenta como “apartidário, crítico e pluralista”. Possui uma circulação de 300 mil exemplares dia e seu público se concentra em 86% classe A e B, masculino, 74% acima de 24 anos, 76% detentores de imóveis e 85% com acesso à internet. Nas pesquisas promovidas pelo veículo jornalístico, fica-se sabendo que seus leitores defendem a temas da ordem progressista, como a liberalização do aborto, a reforma agrária, a descriminalização da maconha; no entanto, metade desses leitores liberais é contrária à união homoafetiva (FOLHA DE SÃO PAULO, 2016). Em seus textos, a Folha materializa esse viés conservador no que tange à sexualidade. O discurso trans aparece segundo a tática de normalização que rivaliza com a estratégia discursiva de vanguardismo e liberalização de que se vale a Folha, justamente a partir da posição-leitor, marcado por um suposto liberalismo nos costumes. Assim, no período pretendido de análise, no que compete às práticas trans,

192

o discurso da Folha é bastante restrito contando com menos de 15 artigos, sendo a maioria periféricos à questão trans, focalizando questões das homossexualidades. A voz trans é reduzida, interditada, silenciada, figurando como uma espécie de abjeção fantasmática, cuja materialização escapa ao dizer normal de um dispositivo sexual-midiático binário e heteronormativo, cindindo entre uma estratégia liberalizante e uma tática ubíqua de normalização – moral, religiosa, política. As resistências aparecem de forma tímida quando tomadas por um conjunto organizado de práticas discursivas, como a jornalística, que obedece a urgências históricas específicas.

3 Autoria, hibridismo e transgeneridade: Antony Hegarty e Anohni O trabalho de Atilio Butturi Junior pretendeu discutir a função autoria e seus possíveis deslocamentos na discussão foucaultiana (FOUCAULT, 2015; AGAMBEN, 2007), a partir da leitura dos discursos de Antony Hegarty e Anohni, artista norte-americano que produz enunciados em dois momentos distintos relativos à transformação de gênero. Quanto à autoria, então, partiu-se de dois regimes enunciativos: os regimes de nome próprio e de referente, que consideram o sujeito como uma garantia de estabilidade dos discursos; os regimes de tensionamento referencial a partir do hibridismo ontológico, pautado no deslocamento da condição de gênero dos sujeitos, segundo as modificações sociais e corporais do espectro trans (nesse caso, levando em consideração a transformação de Anohni). Conceitualmente, a hipótese é de que tanto o problema da autoria quanto a discussão sobre os gêneros do espectro trans exigem que se atente para as possibilidades de resistência e para as formas criativas de produção estética de si, segundo uma ética postulada como retórica corporal-subjetiva. Na arqueogenealogia, são três textos que remetem diretamente à problemática da autoria: A Arqueologia do Saber, O que é um autor? (ambos de 1969) e a aula inaugural do Collège de France, A Ordem do Discurso (publicada, originalmente, em 1970). Nos três casos, a leitura foucaultiana aponta: para a necessidade de se desnaturalizar o autor como uma entidade dada ou natural; para a produção da autoria no interior de regulações e ordens do discurso. Já na Conferência de Buffalo, de 1970 (ainda, O que é um autor?), Foucault sugere que há transformações na sociedade e que ”[...] a função autor desaparecerá de uma maneira que permitirá uma vez mais à ficção e aos seus textos polissêmicos funcionar de acordo com um outro modo, [...] mas que fica ainda por determinar e talvez por experimentar” (FOUCAULT, 2015, p.292). Dessa modificação possível, Butturi Junior chegou até Agamben (2007) e o texto O autor como gesto. Para o italiano, não obstante a função-autoria, há um sujeito que pode ser entendido como regesto dos discursos, cujo lugar de ausência é sempre-já uma marca implicando resistência e liberdade. Assim, “também a subjetividade se mostra e resiste com mais força no ponto em que os dispositivos a capturam e põem em jogo” (AGAMBEN, 2007, p. 63). Diante da possibilidade de pensar diferentes funcionamentos da autoria, na análise empreendida, dois momentos da trajetória de deslocamentos subjetivo-autorais

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

193

foram observados, segundo o caráter de trans como problematizador político do binarismo (ENKE, 2012) e em seu papel disjuntivo com relação às identidades forjadas pelo dispositivo sexual (BUTLER, 2015). No primeiro caso, na condição de autor-homossexual, notou-se que Antony materializa discursos – nas canções presentes nos álbuns da banda Antony and the Johnsons, notadamente em I’m a Bird now (2005) – em que o hibridismo de gênero aparece como gesto de resistência, mas ainda permanece marcado por uma produção de autoria que exige o nome próprio e a corporalidade binária (masculina) de gênero. Esses enunciados trazem à tona uma politização da corporalidade homossexual, tanto nas letras (que utilizam expressões do gueto homossexual norte-americano), quanto na produção das vozes (no álbum, há participação de artistas marcadamente homossexuais e cuja trajetória é de uma estético-política, como Rufus Wainwright). No segundo, a partir da transformação de gênero e da assunção corporal subjetiva do espectro trans (portanto, de Antony para Anohni), percebeu-se um tensionamento do gênero e da autoria, seja pela disjunção relativa ao nome próprio e à função-autor e sua consequente instabilidade subjetiva no álbum Hopelessness (2015) e nas entrevistas concedidas pela então trans-artista, seja pela ausência da relação entre nome próprio e corporalidade – Anohni não se inscreve, mas apenas deixa a marca do gesto político da negação. O autor considerou, por fim, que no caso da autoria de Anohni e da problematização relativa ao nome próprio, de forma “doce e vulnerável”, pode ser tomada como um gesto disjuntivo, que coloca em xeque a própria concepção de uma função autoral que rege as formas de subjetividade circunscritas (e seus sentidos estabilizados) e remonta, pelo contário, ao «gesto», conforme pensado por Agamben (2007) na leitura das “vidas infames” de Michel Foucault.

4 Os enunciados sobre as homossexualidades na Folha de São Paulo O trabalho Lisiane Panasink Saldanha objetivou apresentar uma discussão, desenvolvida no âmbito da iniciação científica, sobre a produção da homossexualidade masculina no dispositivo jornalístico. A análise foi norteada pela teoria foucaultiana, observando-se o funcionamento discursivo dos enunciados jornalísticos. A definição do corpus foi composto por textos informativos on-line que foram impressos na versão diária do jornal Folha de São Paulo e que versam sobre algum aspecto acerca de ‘homossexualidades masculinas’ publicados entre agosto e outubro de 2014. Observou-se que os textos trazem enunciados relacionados à homossexualidade, associando-a a duas estratégias, constitutivas, mas opostas: de um lado, relaciona-se com discursos liberalizantes, dando-lhes alguma positividade e legitimidade – como no caso da campanha “Casamento Gay: o que a folha pensa”. De outro lado, enunciados da ordem do “casamento”: memória da família, da igreja, da tradição que a Folha faz remontar em seu discurso de aparente liberdade. Nesse caso, o jornal retoma uma memória discursiva composta de pré-construídos relacionados aos discursos de normalização. A memória é entendida funcionando na modalidade do interdiscurso: é o já-dito que constitui todo o dito. Assim, no caso do “casamento

194

gay”, a estratégia da Folha é de retomar a memória heteronormativa e religiosa, que aproxima um direito civil (união estável) a um sacramento da ordem religiosa. O trabalho ainda revela uma luta discursiva em torno da então candidata à presidência, Marina Silva. Na modalidade do interdiscurso, aparecem: i) enunciados cristãos e tradicionais; ii) e enunciado liberais, da ordem dos direitos e a assunção de Marina como uma posição mais progressista e, portanto, polêmica. No que tange às conclusões da pesquisa, aponta-se para um regime de dizer bastante marcado pelo embate entre a Formação Discursiva Política/Religiosa, representada pela presidenciável Marina Silva, e a Formação Discursiva Liberalizante e da Diversidade, que tangenciam os discursos atuais de direitos sexuais e de gênero, que são supostamente “libertários” e defendem a diferença.

5 O discurso da marginalizada em A hora da estrela e em Que horas ela volta: a mulher nordestina em foco Arthur Vinicius Anorozo Nunes discutiu, em seu trabalho, como o nordeste brasileiro tem sido inventado por discursos variados, sendo que tais discursos estão associados a uma esteriotipização do sujeito nordestino que o coloca, muitas vezes, em situação de marginalização. É o que se vê no romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, e no filme Que horas ela volta?, de Ana Muylaert, dois trabalhos que trazem como protagonistas a mulher nordestina. Por meio de uma análise discursiva, investigou-se, a partir de enunciados sobre a mulher nordestina, a subjetividade feminina e marginal de duas personagens: Macabéa e Val. O autor investigou o modo como a subjetividade da nordestina, tanto no trabalho de Lispector, quanto no de Muylaert, foi construída tanto por meio da representação de um sujeito abjeto, faminto e frágil, constituindo naquilo que Maknamara chamará de monstruosidade, como vemos no caso de Macabéa, quanto na representação do comportamento subserviente decorrente da relação patrão/empregado, no caso de Val. Assim, percebeu-se que, em ambos os trabalhos, os discursos que se referem à mulher nordestina aparecem seja como mera reprodução de outros discursos preexistentes sobre o sujeito nordestino, como vemos em A hora da estrela, seja como protesto, contestação e denúncia dos marcadores sociais como vemos em Que horas ela volta?. Portanto, os discursos encontrados no corpus analisado corroboram a ideia de uma formação discursiva a respeito do nordeste marcada por aspectos que estabelecem um corte, uma cesura, uma separação entre sujeitos provenientes de classes sociais e origens geográficas distintas. Sobre esta separação, Foucault, ao falar sobre o conceito de racismo, dirá que No contínuo biológico da espécie humana o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros (FOUCAULT, 2005, p. 304).

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

195

Essa defasagem sobre a qual comenta o filósofo será responsável por uma separação – e respectiva marginalização do sujeito – que terá sua morte decretada. Morte não no sentido denotativo do termo, mas sim no metafórico. Trata-se da morte social. Assim, para Foucault, o desaparecimento da raça ruim e inferior é o que permitirá a proliferação e o empoderamento da raça dita superior. Eis o que vemos tanto em A hora da estrela, quanto em Que horas ela volta?. Excluídas do meio e colocadas à margem, cada uma existirá desde que haja o respeito às regras que as façam entender que suas existências estão fadadas ao fracasso, à subalternidade e à condição de sujeito abjeto.

196

REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. BRAGA, S. O travesti e a metáfora da modernidade. Palhoça: Unisul, 2010. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2015. BUTTURI JUNIOR, A. A passividade e o fantasma: o discurso monossexual no Brasil. Florianópolis, 2012. 280f. Tese (Doutorado em Linguística) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina. ENKE, A. F. The education of little cis. In: ENKE, A. Transfeminism perspectives. Philadelphia: Temple University Press, 2012, p. 60-80. FOLHA DE SÃO PAULO. História da folha/Perfil do leitor. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2016. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. ______. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982. ______. O que é um autor? In. ______. Ditos e escritos III. Estética, literatura e pintura, música e cinema. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. p. 268-302. ______. Em defesa da sociedade – curso no Collège de France, 1975-1976. Trad. Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2009. ______. A arqueologia do saber. 8. ed. Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. NICHOLSON, L. Interpretando o gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 2, p. 9, jan. 2000.

POLÍTICAS LINGUÍSTICAS E LÍNGUA PORTUGUESA: por uma abordagem crítica Cristine Gorski Severo1 Alexandre Cohn da Silveira Charlott Eloize Heloísa Tramontim de Oliveira Cristian Edevaldo Goulart Ana Cláudia Vicente Demétrio

1 Introdução Este texto tem como objetivo apresentar de forma integrada e articulada quatro propostas de políticas linguísticas que se enquadram na categoria de “políticas linguísticas críticas”. Trata-se de considerar as políticas linguísticas – seja como campo do saber ou como práticas políticas – a partir de uma perspectiva que problematize as relações de poder implicadas nas relações estabelecidas entre instituições oficiais, sociedade civil e línguas. O conceito de criticidade é explorado a partir das reflexões da Linguística Colonial (SEVERO; MAKONI, 2015; MAKONI; PENNYCOOK, 2006) e dos trabalhos de filosofia política vinculados a Michel Foucault (2015, 1997). Os temas explorados neste texto oferecem diferentes interpretações para a maneira como a língua portuguesa tem sido discursivizada para justificar uma série de ações políticas. Tais discussões se organizam em quatro seções: (i) uma discussão sobre a lusitanização tomada como dispositivo político que se apropria das línguas para projetos políticos específicos; (ii) uma proposta de reflexão sobre as relações de poder envolvendo as línguas a partir do conceito de “hierarquização linguística” (OLIVEIRA, 2016) aplicado ao contexto colonial angolano; (iii) uma análise da relação controvérsia e contraditória entre as políticas oficiais e as práticas linguísticas locais em torno da língua portuguesa em Timor Leste (SILVEIRA, 2015); (iv) um relato de experiência envolvendo os desafios e as contradições de ensino de língua portuguesa para refugiados haitianos que vivem situações sociais vulneráveis em Florianópolis. Espera-se que a apresentação de tais ideias ofereça um olhar amplo a respeito dos diferentes modos como a língua portuguesa – tomada como signo ideológico – é usada (e feita funcionar) a serviço de projetos políticos variados e, por vezes, interligados por um dispositivo lusófono que ressoa memórias coloniais.

1

Coordenadora do Simpósio e Professora do PPGLg/DLLV/UFSC. E-mail [email protected]. Doutorando do PPGLg/ UFSC. E-mail [email protected]; Doutoranda do PPGLg/UFSC. E-mail [email protected]; Doutoranda do PPGLg/UFSC. E-mail [email protected]; Mestrando do PPGLg/UFSC. E-mail [email protected]; Mestranda PPGLg/UFSC. E-mail [email protected].

198

2 Ressignificação do dispositivo da lusitanização na ótica da lusofonia A princípio, a lusofonia parece se constituir como um fato linguístico. No entanto, concomitante à compreensão geolinguística que corresponde aos territórios onde a língua portuguesa é falada, pode-se alargar essa compreensão, conforme proposto por Padilha (2005, p. 14): a lusofonia também pode significar “um gesto político de afirmação da força simbólico-cultural lusitana”. Sendo assim, assume-se como categoria analítica o conceito de dispositivo da lusitanização (SEVERO; MAKONI, 2015), em que a lusofonia opera como um signo político que emergiu na colonização portuguesa, colocando em relação diferentes culturas, povos, línguas e geografias, e integrando experiências compartilhadas ao longo da história. Os autores ainda definem a lusitanização como um dispositivo complexo que envolveu “[...] a maneira como instituições visões de mundo, religião e língua portuguesas/europeias buscaram dominar e controla regiões e povos tomados como colonizados” (SEVERO; MAKONI, 2015, p. 57). O papel metodológico do conceito de dispositivo, conforme delineado por Foucault (2015), articula um conjunto heterogêneo que engloba o dito e o não dito, leis, edifícios, discursos, instituições, enunciados científicos, em suma “a rede que pode se estabelecer” entre diversos elementos (FOUCAULT, 2015, p. 364). Ademais, o dispositivo surge em um determinado momento histórico com a função de responder a uma determinada urgência. Refletindo-se sobre isso, a urgência histórica da colonização fez com que o dispositivo colonial assumisse uma função estratégica, inscrito numa relação de saber/poder específica. Assim, surgiram diversas práticas e discursos que ajudaram a produzir um saber acerca da lusitanização, dentre as quais as “[...] práticas cristãs do batismo, a produção de gramáticas e dicionários, o tráfico de escravizados e a miscigenação” (SEVERO; MAKONI, 2015, p. 88). Uma vez que o dispositivo serve para responder a uma determinada urgência histórica, buscamos compreender de que modo, no cenário pós-colonial, o dispositivo da lusitanização se reinventa através do conceito de lusofonia. Sabendo-se que a colonização linguística foi um dos principais meios de atuação do dispositivo colonial, argumenta-se que, no período pós-independência, o dispositivo colonial da lusitanização, no qual a língua portuguesa teve destaque premente, tem sido atualizado para formatar o conceito de lusofonia. Exemplificando essa atualização, nem mesmo durante o período colonial, a discursivização de políticas de promoção e difusão da língua portuguesa recebeu tanto destaque como na atualidade, por parte de diversas instâncias, como é o caso da criação da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e de seu papel na reinvenção de um imaginário lusófono transnacionalmente conectado pela língua portuguesa. No cenário pós-colonial, o dispositivo de lusitanização se reinventa através do conceito de lusofonia, a exemplo do empenho de Portugal de se impor politicamente sobre as ex-colônias por meio da língua portuguesa, único trunfo do qual se vale para atualizar a ideia de tradição.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

3 Hierarquização linguística: os discursos jurídicos classificadores de sujeitos no período colonial de Angola

199

como

Busca-se compreender o processo colonial, jurídico e hierarquizador da língua portuguesa (OLIVEIRA, 2016) em Angola através da análise do documento colonial Estatuto do Indigenato. Com o advento da República portuguesa, em 1910, elaborou-se a primeira Lei Orgânica sobre a administração civil das Províncias do Ultramar, a qual introduziu em Angola a categorização de sujeitos em “indígenas-civilizados” e “não civilizados”, ficando estes últimos sob a autoridade direta da administração colonial. Foram publicados vários decretos para definir o Estatuto do Indigenato: o “Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique”, em 1926; o “Acto Colonial de 1930”; a “Carta Orgânica do Império Colonial Português e Reforma Administrativa Ultramarina”, em 1933; e o “Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique”, em 1954 – todos visando a “assimilação” dos indígenas na cultura portuguesa colonial. O “Acto Colonial de 1930” garantia ao portador do Bilhete de Identidade de Cidadania Portuguesa o estatuto de cidadão português, mesmo se tratando de Angola. O termo assimilado, por sua vez, foi uma construção jurídica do colonialismo português que muitos sujeitos desejavam adquirir através da posse do Bilhete de Identidade. Geralmente, a utilização do Bilhete se dava com o objetivo de tratar com desmerecimento o outro, retratando uma forma caricatural de comportamento, segundo Bittencourt (1997). De acordo com o Artigo 2º do Estatuto do Indigenato, “[...] consideram-se indígenas das províncias os indivíduos de raça negra ou os seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses”. Segundo Mingas (2000), com o decorrer do tempo, o número de portugueses nascidos em Angola começou a superar o de nascidos em Portugal. Assim, os colonialistas decidiram instaurar uma diferença entre eles: eram considerados Portugueses ou brancos de primeira os nascidos em Portugal e, de segunda, os nascidos em Angola. Aos primeiros era concedida prioridade de ajuda econômica bem como de acesso a cargos de alta chefia na colônia. Para melhor se imporem à maioria dos angolanos, que sentiam hostis a sua presença, os portugueses decidiram criar um “grupo de apoio” entre os autóctones. Para o efeito, os angolanos foram divididos em dois subgrupos: o primeiro era formado pelos “Assimilados”, cujos filhos tinham o direito de frequentar a escola conjuntamente com as crianças portuguesas, bem como de obter a nacionalidade portuguesa. O segundo grupo era formado pelos indígenas, ou seja, os que não tinham direito ao Bilhete de Identidade Português. Matrosse (2008) observa que os cidadãos africanos de Angola, por imposição de um regime com o qual não se identificavam, eram imperativa e intempestivamente catalogados como cidadãos portugueses. Segundo Matrosse (2008), tratava-se de uma lógica evidentemente incompreensível e inadmissível, no fundo absurda, pois Angola nunca se

200

situou no continente europeu, nunca fez parte da Europa, e não podia ser um país português por estar situada na África. Um dos principais motivos que explica o fenômeno de expansão da língua portuguesa no território angolano foi a implantação dessa política de assimilação, a qual configurou como uma das “soluções” encontradas por Portugal para reorganizar as relações com os nativos de suas colônias durante a ditadura salazarista (1926-1975). Tal política, além de aclamar o “[...] bom conhecimento da língua portuguesa como condição mais importante para aceder a qualquer posição de destaque na sociedade colonial” (MINGAS, 2000, p. 32), proibia fortemente os componentes da categoria de “assimilados” de falarem línguas locais. O Estatuto do Indigenato, portanto, pode ser considerado um importante marco jurídico colonial que ilustra como os processos de legislação do poder em Angola legitimaram uma política linguística de estratificação social e racial que exerceu efeitos perversos sobre as pessoas. Defendemos, portanto, que os trabalhos sobre políticas linguísticas devem atentar às relações de poder inscritas nas ordenações jurídicas e nos discursos oficiais que buscam legislar não apenas as línguas, mas, sobretudo, os sujeitos e suas relações.

4 Tecendo uma ideia crítica sobre a lusofonia em timor-leste: entre a política linguística de fato e a de direito A questão central desta seção é abordar, ainda que de forma sucinta, a problemática que cerca a categoria “língua” em contextos coloniais, pós-coloniais e “neocoloniais”. Particularmente, focado no contexto de Timor-Leste, este estudo visa confrontar discursos e trazer à tona tensões e relações de poder advindos da escolha política do Estado de Timor-Leste por conta da oficialização da língua portuguesa em sua Constituição Federal, em 2002. As turbulências históricas e políticas vivenciadas em Timor-Leste motivaram uma decisão política estatal pela cooficialização da língua portuguesa no pequeno país multilíngue asiático. Essa decisão, no entanto, embora pretenda caracterizar o país como lusófono “de direito”, configura a criação de uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 1983) que se pretende lusófona, uma vez que as políticas linguísticas “de fato” – aquelas vinculadas às práticas cotidianas – revelam que a língua portuguesa está longe de constituir uma unanimidade no país, ocupando um lugar exógeno e distante para muitos indivíduos timorenses. Uma vez que o projeto linguístico estatal timorense se opõe às necessidades linguísticas dos cidadãos do país, as relações assimétricas de poder, em suas instâncias macro e micro (FOUCAULT, 1997), emergem da disputa por uma língua que atenda a interesses, anseios e ideologias diversos, cumprindo muitas vezes ações de exclusão, marginalização e hierarquização linguística. Em Timor-Leste, esse papel tem cabido à condução dada pelo Estado para atribuir um dado lugar simbólico à língua portuguesa no país. Um exemplo disso está na conversão de capital simbólico (BOURDIEU, 1982) em capital financeiro aplicado ao uso da língua portuguesa, uma vez que o idioma é declaradamente um incremento salarial,

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

201

tal como estipulado no Plano Nacional de Carreira Docente do país. Outro exemplo é a política do Estado timorense quanto ao ensino bilíngue nas línguas oficiais do país – tétum e português –, fato que silencia as outras línguas do país (mais de 20) e que afeta veementemente os direitos sociais timorenses. A reflexão proposta por esta seção consiste na problematização acerca da presença do idioma lusitano em Timor-Leste e as tensões produzidas pelas relações de poder e pelos discursos conflitantes em defesa (ou não) do idioma. Para tanto, além dos documentos e discursos oficiais, leva-se em conta os depoimentos de timorenses, coletados em Timor-Leste e no Brasil, o que serve de contraponto ao que é estabelecido e defendido pelo poder dominante (SILVEIRA, 2015). As falas dos timorenses revelam duas particularidades interessantes de serem observadas: por um lado, corroboram a escolha linguística estatal, reproduzindo quase que mecanicamente um discurso ensaiado em que a língua portuguesa é descrita como “mais desenvolvida” e a melhor possibilidade de “comunicação com o mundo”; por outro lado, entretanto, fica evidente a desimportância do idioma na vida cotidiana dos timorenses, os quais só utilizam (quando utilizam) a língua portuguesa em situações muito específicas de contato com portugueses, ou situações de trabalho, no caso de professores e alunos (SILVEIRA, 2015; SILVEIRA; DIAS; BRITO, 2015). O que se percebe é que Timor-Leste vive um dilema causado pelas questões institucionais sobre o projeto de uma lusofonia forçada, o que faz com que os timorenses, em maior ou menor escala, vivenciem um apagamento de línguas, culturas e vozes nas políticas de língua adotadas. Distante geograficamente do mundo dito lusófono, o país fez a opção política por pertencer a esse espaço, na aposta de que, assim, se inseriria na modernidade. Se isso está ocorrendo, pelo menos em relação à questão linguística local, a população timorense ainda não se beneficia desta suposta modernidade. Pelo contrário, conforme pudemos observar, os principais beneficiários da lusofonia em Timor-Leste são ainda os programas de cooperação luso e brasileiro, que encontraram na meia ilha asiática campo para desenvolverem projetos educacionais e empresariais. Se a formação de uma elite intelectual e as disparidades sociais causadas também pela presença do idioma no país são consideradas “vantagens da modernidade”, então, de fato, o país tem se beneficiado com as políticas linguísticas adotadas. As práticas linguísticas locais – híbridas, translinguísticas e dinâmicas – e as representações locais de língua, ou seja, aquilo denominado como “políticas linguísticas de fato”, caminham na contramão de um movimento técnico-governamental que, ao instituir as “políticas linguísticas de direito” acaba por colocar em risco a ideia social do que vem a ser um “direito”. Tanto o cerne dessa discussão proposta, quanto os caminhos da política linguística timorense, ficam sem uma solução ou esboço mais concreto quanto a qualquer definição. Também ecoam questões decorrentes desse dilema a serem refletidas e discutidas seriamente: políticas de direito de quem? Políticas de fato para quem? Lusofonia timorense por quê?

202

5 Ensino de língua portuguesa para imigrantes haitianos: relato de experiência Esta seção apresenta um pequeno relato de experiência de ensino de português, por Goulart e Demétrio, para imigrantes haitianos em Florianópolis (GOULART, 2015). Contextualizando o tema, a imigração é um fenômeno há muito tempo conhecido no mundo. A história nos apresenta uma série de contextos gerais e específicos em que esse processo teve papel significativo na construção das sociedades, tendo em vista questões econômicas, culturais, territoriais, linguísticas, entre outras. O Brasil tornou-se o destino de muitos imigrantes nesse início do século XXI, dentre os quais destaca-se a vinda de grande número de haitianos que procuraram aqui reconstruir suas vidas após desastres naturais ocorridos em seu país de origem. Esses sujeitos encontram-se no Brasil em situação de refúgio – mesmo que a lei nº 9.474/97 (BRASIL, 1997) não se aplique efetivamente neste caso – através da obtenção do visto humanitário. Segundo o Instituto de Migrações e Direitos Humanos (), uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos imigrantes haitianos está relacionada à falta de conhecimento da Língua Portuguesa, fato este que tem dificultado o processo de interação destes sujeitos com os demais nas mais diversas esferas sociais. Assim, as situações comunicacionais têm se configurado como uma barreira social e, por isso, é necessário que se reflita sobre a situação social e política vivenciada por esses sujeitos a fim de que se alcance uma política linguística integrada (universidade, poder público e sociedade civil), para que, dessa forma, possamos problematizar os obstáculos e prestar o devido acolhimento aos imigrantes, incluindo a definição do papel da língua portuguesa como “língua de acolhimento”. Uma tentativa de construir uma política linguística crítica foi concretizada a partir de um projeto de extensão vinculado à Universidade Federal de Santa Catarina/DLLV (Processo 2014.5555), que teve como objetivo refletir sobre o papel da língua portuguesa como instrumento de inclusão social e de cidadania no que tange ao fluxo migratório de haitianos, a partir de uma proposta de ensino do português como língua estrangeira (PLE). As aulas de língua portuguesa foram ministradas por Goulart e Demétrio entre os meses de agosto e novembro de 2015, em uma escola da Rede Municipal de Educação, contando com uma média de 80 alunos. O projeto teve como parceria o DEJA/RME, representando a Prefeitura Municipal de Florianópolis, com intenção de estabelecer um diálogo e unir forças entre universidade e poder público, para o enfrentamento das barreiras linguísticas, resultando, assim, em um acolhimento efetivo a esses sujeitos. Baseando-se na experiência da execução desse projeto de extensão, pôde-se refletir e problematizar as políticas que são implementadas pelo poder público, com a finalidade de acolher os imigrantes e refugiados, bem como problematizar o próprio conceito de língua e a forma de ensino de língua no que se refere aos sujeitos imigrantes e refugiados. Considera-se, portanto, pertinente indagar a respeito dos sentidos ideológicos e políticos dos termos “PLE” e “Língua de Acolhimento” nos contextos dos imigrantes e refugiados haitianos face às reais dificuldades e tensões enfrentadas por eles.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

203

6 Palavras finais Este texto teve como objetivo articular quatro interpretações sobre o papel político da língua portuguesa em contextos de políticas linguísticas. Tratou-se de explorar, de forma geral, a emergência da lusofonia contemporânea à luz do dispositivo colonial da lusitanização e, de forma específica, sua aplicação aos contextos de Angola, Timor Leste e do Brasil. Assume-se que a língua portuguesa tem justificado uma série de políticas e intervenções sociais e ideológicas que produzem, legitimam e naturalizam diferenças, transformando-as em hierarquias e relações desiguais.

204

REFERÊNCIAS ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1983 [2008]. BITTENCOURT, Marcelo. A História Contemporânea de Angola: seus achados e suas armadilhas. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE A HISTÓRIA DE ANGOLA, 2., 1997, Luanda. Anais... Luanda, 1997, p. 161-185. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1982. BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2016. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 26. ed. São Paulo: Graal, 1997. GOULART, Cristian E. Haitianos - Uma nova história no Brasil e um novo recomeço em SC: elaboração de um projeto de PLE. Florianópolis, 2015. 101f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras Português – Departamento de Língua e Literatura Vernáculas, Universidade Federal de Santa Catarina. MAKONI, Sinfree; PENNYCOOK, Alastair (Org.). Disinventing and reconstituting languages. Clevedon: Multilingual Matters, 2006. MATROSSE, Dino. Memórias e reflexões. Angola: Nzila, 2008. MINGAS, Amélia A. Interferência do Kimbundu no Português falado em Lwanda. Luanda: Chá de Caxinde, 2000. OLIVEIRA, Heloísa T. A (re)construção do multilinguismo em Angola. Florianópolis, 2016. 97f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina. PADILHA, L. C. Da construção identitária a uma trama de diferenças: Um olhar sobre as literaturas de língua portuguesa, Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 73, p. 3-28, 2005. PORTUGAL. Estatuto dos Indígenas Portugueses das Provincias da Guine, Angola e Moçambique. Decreto-Lei n. 39.666, de 20 de maio de 1954. Agência-Geral do Ultramar, Lisboa, 1954.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

205

SEVERO, Cristine Gorski; MAKONI, Sinfree. B. Políticas linguísticas Brasil-África: por uma perspectiva crítica. Florianópolis: Insular, 2015. SILVEIRA, A. C.; DIAS, C. S.; BRITO, R. L.Cultura e Identidade em Políticas Linguísticas: o Caso de Timor-Leste. In: SILVA, Isabel Corrêa da et al. (Org.). Livro de Atas do 1º Congresso da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa. Lisboa: Leading Congressos, 2015, p. 6316-6329. SILVEIRA, A. C. Políticas de identidade para Timor-Leste versus identidade timorense em política: uma questão também linguística. In: REGUERA, Alejandra (Org.). VII Encuentro Internacional de Investigadores de Políticas Linguísticas. Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, 2015, p. 133-143.

PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA: abordagens sobre ensino, aprendizagem e pesquisa André Luiz Ramalho Aguiar1 Gisele Tyba Mayrink Redondo Orgado

1 Introdução Este trabalho se constitui a partir da confluência de comunicações apresentadas no Simpósio Temático (ST29) Português como Segunda Língua: Ensino, Aprendizagem e Pesquisa, inscrito na X Semana Acadêmica de Letras (UFSC/2016). Em virtude das limitações espaciais com vistas à publicação, optou-se por um recorte de discussões teóricas de dois estudos apresentados, a saber, Imigração e identidades nacionais: Estudo sobre a presença da Língua Portuguesa no território paraguaio, e PLE por aprendizes japoneses: contrastes linguísticos em gênero e número, de modo a reunir, em um único trabalho, discussões que convergem em um interesse comum: o ensino de português como língua estrangeira e suas características específicas entre língua e cultura. Faz-se relevante, igualmente, ressaltar pontos em comum, bem como divergentes, no que se refere aos autores e suas propostas, tendo em vista que, embora o Português como Língua Estrangeira (doravante PLE) seja o fio condutor em ambos os trabalhos, as línguas em contraste podem ser consideradas diametralmente distantes. Enquanto o primeiro autor centraliza sua pesquisa sob uma perspectiva etnolinguística e histórica da língua e imigração brasileira entre o par português-espanhol no Paraguai, a segunda apresenta reflexões sobre aspectos linguísticos entre o emprego de algumas classes gramaticais e suas flexões em gênero e número entre as línguas português-japonês.

1

Doutorando do Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]; Professora de Língua Japonesa do Curso Extracurricular do DLLE/UFSC; Mestre e Doutora em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]

208

2 A língua portuguesa e algumas questões históricas A língua portuguesa, originariamente falada na Europa, foi ganhando espaço através de conquistas, colonizações, interesses comerciais e consequente expansão em diversos países. São listados 9 países nos quais o português é a língua oficial2, com um número estimado de 280 milhões de falantes em todos os continentes, alcançando a posição de 5ª. língua mais falada no mundo. No Paraguai, a presença da língua portuguesa se deu, inicialmente, com a vinda do primeiro fluxo migratório brasileiro, iniciado em meados de 1950 até final da década de 1960 (RIQUELME, 2005). Desde então, os deslocamentos e vivências de imigrantes brasileiros chegaram ao número significativo de 349.842 residentes3, reconfigurando o cenário linguístico do país. Atualmente, o português é a terceira língua mais falada no território guarani, ultrapassado somente pelas línguas nacionais, castelhano e guarani. Desta forma, a língua portuguesa é vista como recurso e seu valor econômico é inquestionável, influenciando assim, as políticas linguísticas desenvolvidas pelos setores governamentais do Brasil e Paraguai e os investimentos impactantes de iniciativas privadas em todo território paraguaio. Do outro lado, no Japão, esta presença iniciou-se com a chegada dos navegadores portugueses em 1543. Foram eles os primeiros a traduzir a língua japonesa para uma língua ocidental4. Entre Brasil e Japão, porém, os acordos diplomáticos bilaterais se consolidaram há mais de 120 anos, e hoje o Brasil abriga a maior colônia de descendentes e de japoneses fora de seu próprio país. Atualmente, o português é a terceira língua estrangeira com maior número de falantes nativos no Japão, sendo ensinada em diversos centros culturais luso-brasileiros e em grandes universidades japonesas, como as de Tóquio, Sophia, Kyoto, Osaka, dentre outras (HAYASHI, 2013).

3 Imigrações e identidades: a língua portuguesa no Paraguai e algumas propostas metodológicas Nos últimos anos, os fenômenos das diásporas têm merecido lugar de destaque nos ambientes acadêmicos com diferentes mudanças de enfoques nos modelos de análise, na metodologia e nas fontes utilizadas. Os fluxos migratórios deixaram de ser fenômenos sociais isolados, passando a ser entendidos também como um espaço de relações sociais e linguísticas ativo no processo de construção das sociedades receptoras e emissoras. No que concerne às relações migratórias entre Brasil e Paraguai, análises significativas sobre processos migratórios na região (ALBUQUERQUE, 2009; FOGEL, 1990 e 2008; SALLES, 1996) ressaltam que a modernização da agricultura brasileira, a partir dos governos militares de 1970, 2 3 4

Fonte: Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. www.cplp.org Fonte: Brasileiros no Mundo (Em: ). Através do dicionário Nippojisho ou “Vocabvlário da Lingoa de Iapam”, compilado por missionários jesuítas e publicado em 1603.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

209

elevou o preço das terras. Esse foi o fator que, sem dúvida, pesou nos movimentos de diásporas. Não foram somente os espoliados pobres que se deslocaram por esse processo de modernização do campo, mas também investidores rurais em busca de terras por preços mais baixos e atraentes. Vários brasileiros que se concentravam em terras no Sul do país, especialmente no estado do Paraná, começaram a se transferir para o Paraguai pelas grandes facilidades oferecidas pelo governo do presidente Stroessner (1954-1989) aos proprietários brasileiros e grandes companhias. Contando com incentivos do governo paraguaio, disponibilidade de terras férteis e mais baratas que no Brasil, muitos iniciaram um fluxo de migração para aquele país. A política de Stroessner muito contribuiu nesse processo, devido à pouca rigidez de legislação sobre a propriedade de terra, que podia ser adquirida por estrangeiros. Os proprietários brasileiros, além de investir em terras mais econômicas que as brasileiras, tinham como finalidade produzir, especular ou arrendá-las a terceiros. Esse fluxo migratório era caracterizado por várias classes de produtores. De acordo ao contexto histórico enunciado, nossa pesquisa está focada na reconstrução de uma trajetória de vida migratória marcada pelos deslocamentos transnacionais e translinguísticos, por sentimentos que dialogam entre sensações de pertencimentos e estrangeirismos em um espaço territorial historicamente constituído por traços de fortes processos de hibridação cultural (HALL, 2003) e preocupações estéticas e ideológicas relacionadas às questões de linguagem e identidade (BANDIA, 2008). Além disso, buscamos refletir entorno das sucessivas práticas de repressão e resistência linguística (MÜLLER DE OLIVEIRA, 2009), representadas nas concepções vividas por brasileiros migrados a partir dos anos 60 e de seus filhos, nascidos em território paraguaio posteriormente ao processo de diáspora, identificados por brasiguaios5. Por isso, a pesquisa em questão tem por objetivo investigar, nas práticas discursivas, a expansão da língua portuguesa em território paraguaio durante o século XX, especialmente de 1960 a 2000, tomando como ponto de partida as representações dos sujeitos políticos e históricos que contribuíram para um processo construtivo de uma nova territorialidade (STURZA, 2008), para uma população brasileira além de territórios brasileiros. Neste sentido, a pesquisa se dá a partir de dois momentos específicos e dialógicos: (i) macrorregional (enquanto nacional): analisamos a situação da língua portuguesa no território paraguaio. Trata-se de constituir, no plano das ideias, a história da língua portuguesa que se projeta a partir das relações com outras línguas, com outras políticas, com outros saberes, com outras culturas e realidades

5

Seguimos o conceito trabalhado por Pires Santos (2004) para empregar o uso do termo “brasiguaio”. Segundo a autora, “a denominação é atribuída aos migrantes brasileiros que se deslocaram para o Paraguai e agora estão retornando ao Brasil”. Atualmente, este conceito se expandiu também pelo território paraguaio ao se referir aos brasileiros nascidos e residentes no Paraguai.

210

e (ii) microrregional (enquanto local): fazemos um estudo de caso na cidade de Santa Rita6, especialmente no Colégio Nacional Santa Rita e no Instituto Privado Paraguai-Brasil. Pesquisamos como essas escolas estão preparadas para receber atores sociais oriundos de outras línguas que não sejam as de línguas nacionais, neste caso, castelhana e guarani. Assim, investigamos nas práticas educativas a redefinição de identidades (RAJAGOPALAN, 2003, p. 69) brasileiras e paraguaias e a concepção de ensino (MAGALHÃES, 2002, p. 42) adotada pelos docentes em contextos multiculturais e plurilíngues. Desta forma, procuramos dar visibilidade a contextos históricos da língua portuguesa, buscamos responder à seguinte pergunta de pesquisa: como a língua portuguesa colabora na composição do processo identitário7 dos brasileiros que moram e/ou nasceram no Paraguai e como essas composições são influenciadas pelos contatos interculturais e plurilíngues representados na sociedade paraguaia do século XX? A pergunta mencionada anteriormente foi elaborada com o objetivo de conduzir o processo inicial da pesquisa. Entretanto, os trabalhos etnográficos vêm reconfigurando essa questão e direcionando novas frentes de análises para o desenvolvimento desta pesquisa. A pesquisa é de natureza qualitativa e de caráter descritivo e interpretativista. Desta forma, utilizamos uma abordagem etnográfica, a fim de buscar no campo as respostas convincentes para dialogar com o marco teórico proposto. Neste sentido, a análise do corpus da investigação está sendo desenvolvida a partir de materiais de linguagem orais e escritos, produzidos por uma população originária da diáspora brasileira e suas respectivas gerações nascidas no Paraguai, especificamente em comunidades que vivem em torno do município de Santa Rita, região oeste do Paraguai. Atualmente estamos realizando gravações em aparelhos eletrônicos e em vídeos durante nossos trabalhos de campo, assim como recolhendo diversos materiais escritos a partir de arquivos particulares e públicos. Dentre os textos e materiais, há correspondências familiares, decretos e portarias municipais, estaduais e nacionais, registros de cartórios, atas de reuniões de associações de moradores, relatórios de reuniões de professores e diretores das escolas pesquisadas, documentos consulares, diversas traduções, entre outros. Em síntese, partimos do pressuposto de que os estudos mencionados são – por excelência – interdisciplinares e transdisciplinares. Sendo assim, o projeto se permite dialogar com áreas relacionadas à Antropologia, Sociologia, Geografia, História, Educação Emancipadora e Linguística Aplicada.

6 7

O município de Santa Rita está localizado no departamento do Alto Paraná a 340 km ao leste de Assunção e a 70 km da tríplice fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai). Fundado por um grupo de imigrantes brasileiros em 1973, é considerado o maior produtor de soja do território paraguaio. Seguimos o conceito trabalhado por Stuart Hall (2003) para empregar o uso do termo “identitário”. Segundo o autor, “os processos identitários são constituídos a partir de espaços híbridos e dialógicos nos quais fomentam novos elementos construtivos para repensar as identidades no mundo pós-colonial”.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

211

4 Aspectos linguísticos em contraste português-japonês e algumas propostas metodológicas O aspecto heterogêneo entre o par de línguas Português-Japonês é algo que literalmente salta aos olhos, tendo em vista a característica imagética presente na escrita japonesa. Sua complexa forma de escrita é composta por quatro tipos distintos, a saber: os grafemas semânticos (ideogramas), conhecidos como kanji, que são caracteres ideográficos – utilizados para representar os substantivos, adjetivos, verbos e nomes; os grafemas fonéticos (fonogramas japoneses), divididos em duas categorias, o hiragana – utilizados para representar flexões verbais, morfemas que dão a função da palavra na sentença etc.; e o katakana, semelhante ao hiragana, porém utilizado para transcrever palavras de origem estrangeira e onomatopeias; e por fim, o rõmaji, uma adaptação do alfabeto latino utilizado para a transcrição ocidental, baseado no sistema Hepburn. Entre as implicações a serem afrontadas ao se trabalhar com línguas tão diferentes entre si, como no caso do japonês e o português, pode-se citar o caráter altamente diverso de sua estrutura gramatical. Diferindo da nossa língua, frases em japonês começam com um sujeito, mas, na maioria das vezes, ele é oculto e subentendido pelo conteúdo. Na oração, o sujeito vem seguido do objeto e, posteriormente, pelo verbo (SOV). Ademais, é a alteração de sufixos no final do verbo que determinará se a frase será afirmativa, negativa ou mesmo interrogativa. Podemos citar ainda alguns outros exemplos, como as conjugações verbais em japonês, que se resumem em passado e presente-futuro-infinitivo8, em que a identificação do tempo verbal no Futuro, neste caso, viria do contexto ou do uso de outros termos na oração que indicassem essa condição, enquanto a língua portuguesa apresenta um número muito superior de tempos verbais, dentre os 3 modos verbais adotados. Vale ressaltar ainda que é utilizada uma única conjugação verbal, independentemente do pronome a que se refere; o fato de não haver, na língua japonesa, o emprego da sílaba tônica, em contraste às nossas oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas; e o fato de não haver, igualmente, o uso diferenciado de gênero ou número. Deste modo, não existe um artigo definido específico, nem uma desinência ortográfica que identifique o gênero a que se refere; e o plural, embora exista, raramente é empregado e, nos poucos casos em que emerge, sua interpretação se dá a partir do contexto. Em contrapartida, a gramática da língua portuguesa apresenta classes gramaticais variáveis como: substantivos, artigos, adjetivos, advérbios, pronomes etc. Com tantas diferenças linguísticas, faz-se compreensível o desafio enfrentado pelos aprendizes japoneses ao se dispor a estudar a nossa língua, o português, como língua estrangeira. Embora experiências em sala de aula demonstrem que os aprendizes japoneses sejam, frequentemente, adeptos a uma metodologia mais voltada à sistematização, com foco central em questões gramaticais, sabe-se que, em estudos sobre uma língua, seja ela qual for, há que se considerar a cultura como algo intrínseco 8

O infinitivo pode ser utilizado tanto para indicar o presente quanto o futuro. Todavia, a maior complexidade da conjugação verbal na língua japonesa reside no nível de formalidade e polidez.

212

e, por que não dizer, indissociável de sua língua correspondente. Esse é um fator que deve ser igualmente considerado na elaboração do material didático, pensando-se na “importância da cultura e das relações interculturais como dimensões integrantes do processo de aprendizagem” – relações essas que se desenvolvem na e com a língua objeto de aprendizado –, muito embora ainda não exista no mercado editorial, materiais didáticos “culturalmente sensíveis ao sujeito em interação” (MENDES, 2012, p. 357). Considerando-se essa interação intercultural como um importante aspecto em sala de aula, a abordagem comunicativa, apresentada por Jack Richards e Theodore Rodgers (Approaches and Methods in Language Teaching, 1986), surge como uma proposta que abrange as necessidades apresentadas pelos alunos, de certa forma sistematizando a língua, mas propondo atividades que rompem com o estruturalismo que dá ênfase exclusiva à semântica. Sendo assim, a língua, então, passa a ser utilizada como uma ferramenta transmissora de ideias, que leva em consideração seus contextos, propiciando a comunicação e a interação entre aprendizes e professor, passando o objetivo a ser não somente a descrição da forma da língua, mas o que se faz através dela (LEFFA, 1988). Deste modo, ainda que seja adotada uma abordagem comunicativa, que prioriza o foco no sentido e na interação entre os falantes, a sistematização da gramática não seria suprimida, mas viria em apoio ao ensino/aprendizagem de PLE. Considera-se, então, a proposta de atividades compostas por gêneros textuais diversos, que sejam apresentadas de forma interativa, multicultural, lúdica, e, se possível, através de um conteúdo ilustrado – haja vista que o aspecto visual facilita a compreensão do aprendiz –, principalmente para exemplificar questões de classes gramaticais que poderiam causar maior estranhamento, considerando as diferenças linguísticas entre os pares de língua envolvidos no aprendizado, como, por exemplo, as classes envolvendo o gênero e o número que foram aqui abordadas. Em síntese, tais reflexões nos levam a compreender que o ensino e aprendizado do português como língua estrangeira, assim como as demais outras línguas, deve ser uma relação de troca, uma via de mão dupla, que envolva a língua e a cultura de origem, bem como a de chegada, pois professores e aprendizes devem compartilhar não só o conhecimento relativo à língua, como informações e conhecimentos, parte de seus mundos culturais (MENDES, 2012).

5 Considerações finais A proposta desse trabalho seria apresentar e discutir aspectos teóricos e práticos do ensino/aprendizagem/pesquisa da língua portuguesa como língua estrangeira, abordando uma visão geral de questões importantes relacionadas ao tema. É importante lembrar que não há um método predeterminado e único que seja melhor ou pior que os demais, afinal, são as experiências promovidas pelo professor-pesquisador de PLE em contextos específicos de sala de aula ou no trabalho de campo, em conjunto com o tipo de abordagem adotada entre os próprios

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

213

professores-pesquisadores, os estudantes e as comunidades e da inter-relação entre os participantes, com suas motivações, expectativas, crenças e experiências, que demonstrariam quais são as melhores técnicas que devem ser aplicadas. O português está entre as cinco línguas mais faladas no mundo. Entre as línguas europeias, é um dos idiomas que mais crescem atualmente, atrás somente do inglês e do espanhol9. Apesar desse fato, pode-se dizer que o ensino e a pesquisa de português como língua estrangeira ainda são espaços em construção, que se encontra em desenvolvimento. Embora em retrospectiva o ensino de PLE venha sendo aplicado desde os anos 50, foi a partir dos anos 80 que ganhou maior destaque, em virtude da demanda e da oferta de cursos e materiais didáticos, ainda que o amparo oficial tenha sido moderado, vindo a crescer significativamente nos últimos 20 anos (ALMEIDA FILHO, 2005). Embora o interesse de países e estudantes estrangeiros venha crescendo gradativamente, a literatura disponível atualmente sobre o ensino de PLE ainda é bastante ampla no aprendizado e ensino para falantes de línguas próximas (principalmente o espanhol e o inglês), mas não para línguas tão distantes quanto o japonês, o que evidencia a necessidade de continuar promovendo novas pesquisas na área de ensino/aprendizagem de PLE a fim de dar respostas às demandas solicitadas.

9

Fonte: UNESCO

214

REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, J. L. C. As línguas nacionais na fronteira Paraguai-Brasil. Cadernos CERU, São Paulo, v. 14, n. 2, set. 2006. ALMEIDA FILHO, J. C. P. O ensino de português como língua não-materna: concepções e contextos de ensino. São Paulo: Museu da língua portuguesa, 2005. BANDIA, P. F. Translation as reparation: writing and translation in postcolonial Africa, Manchester: Saint Jerome Publishing, 2008. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. HAYASHI, R. K. S. Interfaces Japonês-Português: implicações históricas para o atual panorama de ensino de PLE na terra do sol nascente. Revista SIPLE, Brasília, ano 4, v. 2, ed. 7, out. 2013. Disponível em: . Acesso em: 7 ago. 2016. LEFFA, V. J. Metodologia do ensino de línguas. In: BOHN, H. I.; VANDRESEN, P. Tópicos em linguística aplicada: O ensino de línguas estrangeiras. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1988, p. 211-236. MAGALHÃES, M. C. Representações de professores de inglês como língua estrangeira sobre suas identidades profissionais: uma proposta de reconstrução. In: MOITA LOPES, L. P.; BASTROS, L. C. (Org). Identidades: recortes multi e interdisciplinares. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2002, p. 319-337. MENDES, E. Aprender a viver com o outro: materiais didáticos interculturais para o ensino de português LE/L2. In: SCHEYERK, D.; SIQUEIRA, S. (Org.) Materiais didáticos para o ensino de línguas na contemporaneidade: contestações e proposições. Salvador: EDUFBA, 2012, p. 355-378. MÜLLER DE OLIVEIRA, G. Plurilinguismo no Brasil: repressão e resistência linguística. Revista: Synergies Brésil, n. 7, p. 19-26, 2009. RAJAGOPALAN, K. Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo, SP: Ed. Parábola, 2003. ROCHA, J. A.; POLL, M. M. A relação entre o termo antecedente o gênero do substantivo em textos de falantes de português como língua adicional. In: SILVEIRA, R.; EMMEL, I. (Org). Um retrato do português como segunda língua: ensino, aprendizagem e avaliação. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015, p. 125-144. STURZA, E.R. Língua de fronteiras e políticas de línguas: uma história das ideais linguísticas. Tese de doutorado defendida na Universidade de Campinas, 2008.

REPENSAR A PALAVRA Andrea Santurbano1

1 Introdução Neste trabalho buscarei, breve e paradigmaticamente, colocar algumas questões gerais que abrem e problematizam, de forma mais contundente, a discussão em relação ao pós-estruturalismo, em particular, sobre o valor a ser atribuído à palavra, à linguagem no âmbito da literatura. A premissa é que todo escritor trava uma luta com a linguagem muito mais do que normalmente se supõe ou explicitamente se assuma. Não no sentido, mais óbvio, da procura, do trabalho e da poluição da forma, à maneira, por exemplo, de um Gustave Flaubert. Todo escritor, num sentido geral, trava uma luta com o aspecto efêmero da palavra, vivenciando uma desconfiança sempre mais abismal de que a linguagem nada pode expressar, de que sua função referencial é destinada ao fracasso, pois o significado se esvazia no momento em que pretende se fixar num conteúdo objetivo, numa estrutura, enfim, numa categorização. Se isso funciona e é até indispensável para a pragmática da comunicação, sacrifica, no entanto, o aspecto subjetivo, individual, único que pode revestir a idealidade de uma imagem, uma ideia ou um pensamento. Tudo o que a palavra “toca”, procurando “generalizar” o que até então ficava na virtualidade do conceito, morre inevitavelmente como expressão de uma individualidade. Portanto, ao passo que a linguagem comum, para a subsistência de uma legítima necessidade de comunicação, se abriga em sua função convencional de signo, a linguagem literária tem a possibilidade de (res)significar esse “vazio”, essa “ausência” da palavra. Tem a possibilidade de desligar seus significados de uma referência automática ao mundo tido como real, admitindo, assim, a autonomia da palavra e procurando sua preexistência antes de sua inevitável desagregação. Maurice Blanchot, por exemplo, dentre outros, muito insistiu nesse assunto: [...] a linguagem literária é feita de inquietude, é feita também de contradições. Sua posição é pouco estável e pouco sólida. De um lado, numa coisa, só se interessa por seu sentido, por sua ausência, e essa ausência ela desejaria alcançar absolutamente nela mesma e por ela mesma, querendo alcançar em seu conjunto o movimento indefinido da compreensão (BLANCHOT, 2011, p. 313).

1

Professor do curso Letras/Italiano e do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Doutorado em Literatura Comparada - Università “G. d’Annunzio”, Chieti-Pescara (Itália) - e Pós-Doutorado em Literatura Comparada - Università di Roma “Tor Vergata” (Itália). E-mail: [email protected].

216

A incomunicabilidade e uma comunicabilidade sem palavras seriam, respectivamente, os dois limites que contêm o grande paradoxo humano. Blanchot, ainda, coloca: A frase da narrativa e a frase da vida diária têm ambas um papel de paradoxo. Falar sem palavras, fazer-se compreender sem nada dizer, reduzir o peso das coisas à agilidade dos sinais, a materialidade dos sinais ao movimento de sua significação, é esse ideal de uma comunicação pura que existe no fundo da conversa universal; dessa maneira de falar tão prodigiosa, em que as pessoas falam sem saber o que dizem e compreendem o que não ouvem, as palavras, em seu emprego anônimo, são apenas fantasmas, ausências de palavras e, por isso mesmo, fazem reinar, no meio do barulho mais atordoador, um silêncio que deve ser realmente o único no qual o homem pode descansar enquanto vive (BLANCHOT, 2011, p. 85).

Se, como dito, a linguagem comum assume a franquia de um valor referencial para não ruir, à literatura é demandada a audácia de mergulhar nesse grande paradoxo. É claro que este pressuposto não é universalmente assumido, assim como muita literatura prefere não se preocupar com tais reflexões meta-textuais e confiar simplesmente na mesma prerrogativa comunicativa da linguagem comum (naturalmente não estão aqui em discussão todas as outras peculiaridades do universo ficcional). Por outro lado, é visível a preocupação de muitos escritores, em tempos e espaços diversos, com o próprio valor intrínseco da ferramenta da escrita. Até numa vertente, por assim dizer, de fácil legibilidade, é muitas vezes evidente essa preocupação, a qual leva a uma redução esquelética e de profunda estranheza da linguagem. Sem remontar a Samuel Beckett, baste citar o caso da escritora húngara, de língua francesa, Agota Kristof e da sua escritura polida até o osso, a qual, justamente por isso, é capaz de multiplicar-se em desdobramentos narrativos que revertem a toda hora suas possibilidades de significar. Ou, em contrapartida, é possível ler a extraordinária bulimia literária de um Georges Simenon e sua recusa a “fazer literatura” como percepção de um perigo constante enxergado na linguagem mimética; o autor belga, com efeito, ao defender o valor icástico de sua escrita, rejeita com obstinação o congestionamento de palavras descritivas ou “supérfluas”, abrigando sua narração num limiar calibradíssimo em que a narração nunca excede o grau mínimo de referencialidade. A partir dessas considerações, pode-se entender como as vertentes do pós-estruturalismo contribuíram em enfatizar a necessidade de repensar a função da linguagem literária e, com isso, superar as grades analíticas do estruturalismo.

2 O pós-estruturalismo em seu embate com a palavra Cabe voltar aos anos de 1966 e 1967, que são anos cruciais para o debate pós-estruturalista. Michel Foucault em As palavras e as coisas, colocando a morte do homem como condição para a libertação da linguagem, radicaliza uma questão que já vinha sendo debatida, colocando dessa forma a literatura, sobretudo, como lugar

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

217

de emancipação da linguagem. É ela, segundo Foucault, “contestação da filologia”, que vai na contramão da linguagem vista como ferramenta de conhecimento: agora, diz Foucault, “seu discurso [da literatura] tem como conteúdo senão dizer sua própria forma” (2007, p. 416). O homem, que antigamente era um ser entre os seres, não apenas se torna um ser entre os objetos, como também se dá conta de que o que está tentando compreender não é constituído somente pelos objetos do mundo, mas também por si próprio. O homem, em suma, deve se transformar em objeto de sua própria investigação. Sempre vale lembrar a esse propósito o apelo lançado por Heidegger, em 1929, em O que é metafísica, segundo o qual essa mesma capacidade de questionar o postulante devia reagir ao discurso “certo” da ciência. Já em 1967, Roland Barthes (embora seja limitativo concentrar numa afirmação absoluta todas as evoluções no pensamento do crítico francês) alertava em O rumor da língua: O estruturalismo nunca passará de uma ‘ciência’ a mais (nascem várias em cada século, algumas passageiras) se não conseguir colocar no centro de seu empreendimento a própria subversão da língua científica, isto é, numa palavra, ‘escrever-se’: como não questionaria a própria linguagem que lhe serve para conhecer a linguagem? (BARTHES, 2004, p. 8).

Barthes, ainda, enfatiza o papel fundamental tido pelo espaço literário em relação à própria ordem do pensamento linguístico, sendo que [...] a literatura se vê hoje sozinha a carregar a responsabilidade inteira da linguagem; pois, se a ciência, indubitavelmente, precisa da literatura, ela não está, como a literatura, na linguagem; uma se ensina, quer dizer se enuncia e se expõe; a outra se realiza mais do que se transmite (BARTHES, 2004, p. 5-6).

E logo depois, em S/Z (1970), de novo Barthes, segundo as palavras de Leyla Perrone-Moysés, fazia estourar, do interior, a sistemática estruturalista, que já havia se imobilizado num vocabulário e numa metodologia pretensamente garantidos pela “cientificidade” (Cf. PERRONE-MOISÉS, 2002). Voltando, agora, atrás de alguns anos, Blanchot – e, obviamente, todos lhe são devedores no âmbito desse emaranhado teórico que vai se configurando –, em O livro por vir, ao comentar a obra de Borges, não deixa de destacar, por exemplo, que “ficções e artifícios” são os nomes mais honestos que a literatura possa assumir (Cf. BLANCHOT, 2005, em particular p. 138). Vale dizer, ao meu ver, que a linguagem e a reflexão literárias já devem marcar sua distância do estatuto da ciência, de um positivismo humanista, pois, justamente, é preciso desprendê-las das prerrogativas e da tirania do sujeito, o qual, ao contrário, se encontra no cerne do discurso científico. Blanchot quer “neutralizar” essa dependência, realçando o caráter absoluto de busca, de movimento da literatura, em que o próprio sujeito pode encontrar a si mesmo só na obscuridade da noite, mesmo perdendo o objeto, conforme o exemplo, incansavelmente citado, pensado e analisado, do mito de Orfeu e Eurídice.

218

Em suma, com todas as possíveis ressalvas – e Barthes, sem dúvida, conduz um discurso que não perde de vista certa função e inserção social de agentes como autor ou leitor –, os limites do estruturalismo, seus métodos e rigor analítico se revelam insuficientes para esses autores, para não dizer inconsistentes. Preocupação constante, em outros termos, é repensar a palavra, ou melhor, destituir esse repensar do seu estatuto centralizador, humanista. Quais, então, as possíveis saídas? Em O rumor da língua, Barthes aponta para a utopia de uma língua como “trama sonora”, que tenha um efeito fônico, mas “[...] sem que o sentido seja brutalmente dispensado, dogmaticamente excluído, enfim castrado. Rumorejante, confiada ao significante por um movimento inaudito, desconhecido de nossos discursos racionais, nem por isso a língua deixaria um horizonte de sentido” (BARTHES, 2004, p. 95). Sentido, entretanto, que seria algo de inalcançável, valendo por seu movimento rumorejante de fundo, como acontece na linguagem poética (lembrando que, sempre de acordo com Barthes, o rumor é sinônimo de bom funcionamento de um mecanismo). Em outros termos, parece se cumprir, ainda que por uma via mais acentuada do elemento fônico, aquilo que anunciava Blanchot, anteriormente citado, isto é, um “falar sem palavras”, no sentido de um silêncio que, mais do que ausência ou negação de ruído, é um murmúrio contrário ao barulho ensurdecedor das falas humanas. A linguagem narrativa poderia, assim, se defrontar com duas possibilidades: uma redução ao essencial, radicalizando um efeito de estranhamento (a partir de uma espécie de grau zero), ou a opção por infindáveis aberturas e esmiuçamentos de sentido, como acontece, por exemplo, na própria literatura de Blanchot. Em ambos os casos, é recusada a linguagem primária – a “cilada”, como diz Barthes – do mundo, revertendo-a no próprio esqueleto ou distorcendo seus supostos significados num jogo múltiplo e proliferante. O problema, então, não é a falta de palavras (exprimir o inexprimível), mas confiar à literatura a possibilidade de criar “silêncio”, no sentido não de voltar à espontaneidade e à originalidade como cura e objetivo e sim de trabalhar a linguagem para que ela possa se desprender de outra teologia, o do intimismo individualizante, para assumir, por assim dizer, uma porosidade neutra. Talvez vá nesse sentido o real “rumor da língua”, seu “estremecer” de sentido. Ainda recentemente, escreveu Roberto Esposito, em Le persone e le cose [As pessoas e as coisas]: O único tipo de linguagem que “salva” as coisas é o literário. E isso se dá não por este guardá-las em seu ser, mas por ter como óbvio que, atribuindo-lhes o sentido, as destrói. O ideal da literatura, como lembra, ainda, Blanchot, é não dizer nada. Ou dizer o nada, sabendo que a palavra escrita deve seu sentido ao que não existe. A não ser que se entendam as mesmas palavras – os lugares em que elas se depositam, uma folha de papel, uma lasca de rocha, a casca de uma árvore – como coisas, as únicas que permanecem vivas. Se a linguagem comum deixa as coisas separadas das palavras, a da literatura faz das palavras coisas novas, que justamente vivem do nada nelas inserido.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

219

A literatura assume as coisas em sua gênese e em seu destino último. Não procura tirá-las, inutilmente, do nada. Acompanha-as em sua deriva. A literatura é, de um lado, esta força extrema de destruição – a mais violenta devastação do caráter natural das coisas; de outro, a forma de suprema atenção para o que resta delas, para a cinza que o fogo deixa atrás de si (ESPOSITO, 2014, p. 56-57, tradução nossa).

Outro estudioso italiano, Franco Rella, que não deixa, entretanto, de criticar a deriva “niilista”, a seu ver, do pensamento pós-estruturalista francês2, analisando a poesia de Rilke e sua articulação significante com o universo dos objetos, também concentra sua atenção na disseminação, muda, de sentido: As coisas jazem mudas. Não possuem palavras. Nem sequer sobe delas aquele silencioso canto melancólico que nos parece entrever nas linhas do ensaio benjaminiano Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana. Mas nós podemos dizer a verdade das coisas, aquela verdade que está encerrada em seus corpos, como os estilhaços de luz que, segundo a Kabbalah, se espalharam pelo mundo após a quebra dos vasos no ato da criação (RELLA, 2011, p. 52, tradução nossa).

Porém, não é, justamente, essa origem messiânica a ser procurada nos objetos e nas palavras o objetivo da visão pós-estruturalista, sendo que na literatura em questão a fonte de significado é continuamente deslocada, na aceitação de que só em suas cinzas as palavras encontram sua possibilidade de se renovar, de combinar sua gênese com seu destino último, como sinalizava Esposito. Enfim, na literatura, a linguagem teria a possibilidade de se projetar ao infinito, gozando, ao mesmo tempo, do privilégio de escapulir do movimento sem retorno e sem sentido da morte.

3 Considerações finais Se é possível extrair desses pensamentos, ainda que com todas as marcas eminentemente especulativas, um legado que permanece fundamental, sobretudo nos dias de hoje, este pode ser representado pela possibilidade oferecida à literatura de ruptura de uma ordem normativa do discurso, de quebra da relação língua/poder e da subversão da tirania do sujeito, que marca sua relação com o outro pela afirmação do verbo da “verdade”. À linguagem literária, portanto, cabe negar o domínio de uma subjetividade, de uma interioridade demiúrgica, cujas palavras “certeiras” e confiantemente depositárias da verdade das coisas só podem apresentar, ao contrário, o simulacro de seus limites e de suas incertezas constitucionais. Romper esse silogismo, enfim, para superar os limites de um humanismo e de um antropocentrismo opressores.

2

Veja-se a tal propósito RELLA, F. La responsabilità del pensiero. Milano: Garzanti, 2009.

220

Retornando a Barthes, segundo ele, na linguagem se inscreve o poder, tornando-se necessário desfazer esse elo e desprender a linguagem dessa coerção. Sempre nas palavras da Leyla Perrone-Moisés, comentando A Aula, Barthes não propõe um objetivo, um lugar a salvo, uma verdade a ser atingida pela linguagem. Ele expõe e pratica uma diligência ao mesmo tempo obstinada e modesta: deslocar-se, praticar o indireto, abjurar, se necessário. Essa falta de objetivo prévio e de certezas reconfortantes o caracteriza como ‘decepcionante’, enquanto Mestre (MOISÉS, 2004, p. 63).

E mais uma vez, de forma emblemática, Blanchot, no Livro por vir, lembra a associação entre ditator e dictare, isto é, da repetição imperiosa que “cada vez que se anuncia o período da palavra estrangeira, pretende lutar contra ela pelo rigor de um comando sem réplica e sem conteúdo. Opõe, àquilo que é murmúrio sem limite, a nitidez da palavra de ordem” (BLANCHOT, 2005, p. 323). Repensar a palavra, seu sentido, sua potência, seu fracasso, tudo isso é demandado à linguagem literária, como prerrogativa exclusiva e eminentemente desafiadora.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

221

REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. ______. O livro por vir. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ESPOSITO, Roberto. Le persone e le cose. Torino: Einaudi, 2014. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. de S. Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007. HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica. Trad. de Ernildo Stein. In: Os Pensadores, vol. XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1973. PERRONE-MOISÉS, Leyla. A lição de casa, posfácio. In: BARTHES, Roland. A Aula. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 49-89. RELLA, Franco. Interstizi. Milano: Garzanti, 2011.

SUJEITOS EM TRÂNSITO, SABERES DESLOCADOS, IDENTIDADES EM MOVIMENTO Jair Zandoná1 Simone Pereira Schmidt Ana Carolina A. P. Cavagnoli Charles Vitor Berndt Fabrício Henrique Meneghelli Cassilhas Fernanda Friedrich Gabrielle Vívian Bittelbrun Jéssica Uhlig

1 Apresentação Este texto reúne cinco das nove apresentações realizadas durante a X SdeL da UFSC no Simpósio Temático Sujeitos em trânsito, saberes deslocados, identidades em movimento e que foi coordenado por Simone Pereira Schmidt e Jair Zandoná. O Simpósio tinha como propósito ser um espaço de discussão das representações contemporâneas de sujeitos e de identidades à margem do cânone ocidental, por meio de narrativas que enunciam vozes e saberes descentrados. O descentramento a que nos referimos diz respeito às posições ocupadas pelos sujeitos que se enunciam nos discursos não canônicos, as quais promovem significativos deslocamentos em termos das concepções correntes sobre identidade, saber, lugar, voz, representação. A partir de lugares convencionalmente não percebidos e não valorados, esses sujeitos se fazem ouvir e desafiam nossa tradicional compreensão sobre o estético, o político e o epistemológico, fazendo-nos repensar sobre os modos como operamos com nossos saberes.

1

Jair Zandoná ([email protected]) e Simone Pereira Schmidt ([email protected]) foram proponentes e coordenador@ do ST. As demais seções são, respectivamente, de autoria de: Ana Carolina A. P. Cavagnoli (anacarol_rj@ yahoo.com.br) doutoranda no PPG em Literatura na UFSC; Jéssica Uhlig ([email protected]) mestranda do PPG Interdisciplinar em Linguística Aplicada – UFRJ; Charles Vitor Berndt ([email protected]) mestrando no PPG em Literatura na UFSC; Gabrielle Vívian Bittelbrun ([email protected]) e Fernanda Friedrich ([email protected]) doutorandas do PPG em Literatura da UFSC; Fabrício Henrique Meneghelli Cassilhas ([email protected]) doutorando em Estudos da Tradução pela Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC.

224

2 A corrupção materna no romance caribenho Para entendermos o conflito das identidades antilhanas multipartidas é necessário pensarmos, primeiramente, na história de colonização das ilhas, em especial, das ilhas francófonas. Considerando o projeto de colonização francesa que se deu dentro de uma política paternalista com a missão cristã de evangelização, devemos levar em conta que o projeto de colonização viabilizou uma poderosa ideologia de alienação e assimilação nas Antilhas. Era importante que seus habitantes internalizassem a política amigável que patrocinou intelectuais antilhanos conhecidos como evolués para se educarem na metrópole2. Ao chegarem à Europa, foram radicalmente surpreendidos pelo tratamento que receberam dos próprios franceses. Só então, toda a igualdade era desmontada e o sonho francês caía por terra. O choque de tratamento gerou uma crise na identidade desses intelectuais num contexto de racismo e preconceito, e houve a necessidade de reconfigurar essas identidades. Quem somos nós, afinal? Diferentes maneiras de conceber as identidades caribenhas foram postas em causa: Négritude, Antillanité e Créolité abriram espaço para novos olhares e interpretações sobre as identidades contra o domínio colonial no processo da consciência bi(multi)partida. Por isso, a metáfora da corrupção materna: uma crise identitária no espaço de fronteira que se consolidou devido a políticas coloniais e neocoloniais no Caribe. Na literatura caribenha de autoria feminina é notório encontrarmos narrativas onde a relação mãe e filha surge impotente, traumática, com histórias irresolutas que acarretam exílio e deslocamentos, tal qual se dava a condição instável das ilhas. Edouard Glissant (1999, p. 5) afirma que os caribenhos vivem num relacionamento instável com sua própria realidade. Tamanha instabilidade contribuiu para gerar um sentido de não história ou um apagamento da memória coletiva. Caroline Rody (2001, p. 108) explica que a partir dos anos 1970, a literatura produzida por escritoras caribenhas se engajou num comprometimento de reimaginar a história das ilhas através da metáfora do “Caribe mãe-da-história”. A proposta era reivindicar sua origem e colocar à prova a contraditória condição do Caribe. A metáfora proposta por Rody de ver o Caribe como mãe vai assegurar às escritoras caribenhas o desejo de retornar ao passado para recontar a própria história da região e recuperar o sentido da(s) identidade(s) caribenha(s). Desse modo, não se pode falar em dar visibilidade à história das ilhas sem se falar da memória da escravatura no Caribe. No romance histórico-ficcional da escritora guadalupense Maryse Condé, I, Tituba, Black Witch of Salem (1986), a protagonista Tituba – primeira mulher escrava a ser condenada por feitiçaria no tribunal das bruxas de Salém em 1692 – narra a sua história de vida do Caribe às colônias inglesas e seu retorno a Barbados. Tituba é a própria recuperação da memória antilhana, o resgate histórico da memória da escravatura. Após a sua morte, ela escolhe adotar uma pequena garotinha, Samantha, para que pudesse ensinar sobre a natureza, o mundo sobrenatural e contar a sua história. Tituba garante, ainda que metaforicamente, a continuação do processo de 2

Frantz Fanon, Aimé Cesáire, Edouard Glissant e Maryse Condé são alguns dos evolués que emigraram para a França.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

225

resistência e descolonização através da história oral; recupera a maternidade traumática porque dá visibilidade ao não apagamento da história caribenha, e vivifica a memória da escravatura.

3 A expedição científica austríaca e as estratégias discursivas de Johann Natterer As expedições científicas foram, nos séculos XVIII e XIX, uma das atividades que contribuíram para o desenvolvimento das ciências na Europa, principalmente para a História Natural. Ampliadas para além-mar com a finalidade do conhecimento da natureza de outros territórios fora do continente europeu, o Brasil recebeu, especialmente após a vinda da Corte portuguesa em 1808, algumas dessas expedições que muito exploraram o país. Um exemplo foi a Expedição Científica Austríaca (ECA), ocorrida na primeira metade do século XIX. A ECA foi um projeto empreendido pelo governo austríaco com o intuito de estreitar os laços econômicos e políticos entre Portugal e Áustria, além de coletar objetos naturais para a coleção científica de Francisco I, imperador da Áustria e pai da arquiduquesa Leopoldina. O empreendimento foi encabeçado pelo naturalista Johann Natterer que, com uma equipe de catorze pessoas, chegou ao Brasil em 1817 juntamente com a comitiva que trouxe Leopoldina, recém-casada por procuração com o príncipe D. Pedro. Oficialmente, a empreitada prolongou-se até o ano de 1821, quando o governo austríaco determinou que os membros da expedição voltassem à Áustria, uma vez que o Brasil passava por turbulências políticas que antecederam o processo de independência da ex-colônia portuguesa. Entretanto, Johann Natterer desejava continuar a viagem e seguir pelo interior do país, que ele muito desejava explorar. Após a Independência do Brasil em 1822, quando a situação política dentro do país mostrou-se menos conturbada, Natterer obteve autorização para seguir viagem. Continuou, então, seu percurso acompanhado tão somente de seu assistente de caça, Dominik Sochor. Ambos percorreram a região centro-oeste do Brasil até 1826. Com a morte repentina de Sochor neste ano, Natterer tornou-se o último naturalista remanescente do grupo inicial e, enfrentando grandes obstáculos naturais e institucionais, permaneceu no Brasil até 1835, quando se viu incontornavelmente obrigado a abandonar o novo império americano. Apesar de os integrantes da ECA terem sido incumbidos de fazer descrições científicas sobre a flora e a fauna do país (RAMIREZ, 1968, p. 126), Natterer não fez sínteses narrativas sobre as suas atividades científicas. O acervo textual do cientista, ao qual temos acesso atualmente, é composto apenas por rascunhos de cartas e fragmentos de diários e de anotações. Ao pensar a ECA articulando os estudos da linguagem com a historiografia, acreditamos que seja necessário interpretar as práticas discursivas de Johann Natterer de forma atrelada às questões da linguagem. Os textos de Johann Natterer devem ser vistos não como um elemento neutro, mas segundo a concepção dialógica de

226

Bakhtin (2009), em que um texto e o sujeito estão em uma relação dialógica dotada de ideologias constituídas a partir de práticas do cotidiano. Visto que esses escritos fazem parte do evento histórico da ECA e estão, por isso, historicamente situados, precisamos entender também esses discursos como práticas sociais, e não como uma atividade puramente individual. Logo, há uma relação entre eles e a estrutura social em que ocorrem que necessita ser investigada. Sob a perspectiva interdisciplinar, associando história e linguagem, buscamos pensar o meio e o contexto em que os relatos de Natterer foram produzidos, fazendo, então, um diálogo entre o passado e o presente. As diversas questões que fazem parte do nosso meio social conjugado ao estudo baseado em relatos historiográficos é uma contribuição a essa proposta que tenta atualmente investigar problemas no mundo em que a linguagem é envolvida (COOK, 2003). Um estudo interdisciplinar possibilita inserir esses escritos sobre o Brasil em um novo contexto de interação discursiva e intertextualidade, enriquecendo os estudos das duas áreas com uma análise sobre uma época importante da história brasileira, no qual podemos discutir o uso da linguagem em relatos ainda pouco estudados sobre nosso país, bem como sobre nossa história política.

4 Mia Couto e o pós-colonial:uma discussão sobre tradução cultural Afastando-se da ideia de que a identidade é algo estático, fixo, isento de conflitos e contradições, Bhabha (2005) procura enxergá-la como algo líquido, inacabado, que está em contante processo de remodelação. Portanto, ao refletir sobre a situação das sociedades ex-colonizadas o autor defende um novo modo de sobrevivência para essas culturas – é o que ele chama de tradução cultural. Em suma, é possível afirmar que, através da tradução cultural, Bhabha (2005) positiva os hibridismos culturais e propõe uma reinvenção do modo como os indivíduos, fruto das relações coloniais, se relacionam com os elementos antagônicos que constituem suas identidades. Dessa forma, neste trabalho, nos dois romances de Mia Couto sobre o qual nos debruçamos, Terra Sonâmbula e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, podemos encontrar a mesma situação: personagens que estão divididas entre dois mundos, entre duas culturas, a cultura do ex-colonizador e a cultura autóctone, que resistiu aos séculos de dura colonização. Em Terra Sonâmbula, romance publicado logo após o fim da guerra civil moçambicana, iniciada em 1976, temos a personagem Kindzu, rapaz jovem, oriundo de uma aldeia pobre do interior de seu país, onde, apesar da grande influência da cultura imposta pelo colonizador, procura-se conservar muito dos costumes e crenças antigas daquela terra. Este narrador-personagem, Kindzu, em dado momento de sua narrativa nos diz: “Estávamos divididos entre dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro.” (COUTO, 2007, p. 95). A angústia de se sentir dividido entre dois mundos, de sentir e vivenciar a natureza híbrida de sua identidade, atormenta Kindzu durante todo o seu relato, que, além de retratar a crueldade e

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

227

miséria provocadas pela guerra, é recheado de acontecimentos insólitos, fantásticos, de natureza sobrenatural. De forma muito semelhante ao que acontece com Kinduz, Marianinho, protagonista de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, também sofre ao se ver compartido entre duas formas diferentes de ver o mundo. A sua história começa com o regresso à sua terra natal, a aldeia de Luar-do-Chão, por conta da notícia da morte de seu avô, que, ao fim e ao cabo, descobre-se não estar exatamente morto, sendo o que se chama de ‘’mal morrido’’. Pouco a pouco, então, ele, habituado à cultura da capital, da cidade grande, onde estuda, procura auxiliar seus familiares e tem de reaprender a conviver com uma série de costumes tradicionais da cultura autóctone daquele lugar misterioso. Tanto em Terra Sonâmbula quanto em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra é precisamente a partir do hibridismo dessas personagens, do entre-lugar, da zona fronteiriça, que ocupam enquanto sujeitos pós-coloniais, que Mia Couto parece tornar possível a ressignificação da relação entre a cultura tradicional e autóctone moçambicana e a cultura do colonizador, portuguesa, de matriz europeia. Desse modo, é sobre os ombros dessas personagens, que segundo Laranjeira (1994) representam os jovens e as gerações futuras de Moçambique, que recai a esperança, ou seja, a missão de (re)traduzir e reinventar o mundo. Assim, é por meio da tradução cultural, do papel dessas personagens híbridas, filhos da contemporaneidade, da pós-colonialidade, que os dois romances coutianos imaginam formas de se repensar e superar problemas de ordem socioambiental, política etc. É nesse sentido que afirmamos que Mia Couto promove uma rearrumação do mundo, ressignificando-o, reinventando-o, positivando os hibridismos e sonhando dias um pouco melhores.

5 Na tela e nas páginas: questões de gênero e raça em sitcoms e revistas femininas brasileiras Se Dalcastagné (2008) tratou da representatividade desvantajosa das mulheres na literatura brasileira e falou de uma “quase ausência do negro”, contribuindo para a reprodução de representações sociais que colocam esses grupos em posições desiguais, acredita-se que, no caso do audiovisual e das revistas femininas, esse cenário não é muito diferente. Na revista Claudia, da Editora Abril, entre os anos de 2004 e 2014, as mulheres negras foram protagonistas em apenas 5,3% das edições, em um primeiro levantamento proposto pela pesquisa. Entre essas personalidades está Taís Araújo, que “batalhou” até conquistar espaço na televisão (GUDIN, 2009, p. 50). O destaque à persistência da atriz naquela edição denuncia uma abordagem que chega a minimizar os impactos do racismo no país, ao sugerir que, com determinação e talento, seria possível vencer a discriminação. Quanto à TPM, da Editora Trip, que surge com a proposta de seguir na contramão das publicações mais conservadoras, personalidades negras apareceram em 10,3% das capas do período. Entre elas está a atriz Juliana Alves, ilustrando a

228

edição que problematiza o racismo, em abril de 2014 (TPM, abr., 2014). No entanto, mesmo nesse exemplar, é de se questionar se o preconceito sofrido não seria uma legitimação da apresentação das negras, como uma justificativa por elas estarem ali. Ao se olhar para as páginas de revistas, fica, então, a questão de como as negras aparecem, nos poucos momentos em que aparecem. Como evidencia Miskolci (2007), não basta apenas reivindicar visibilidade, é necessário avaliar a que tipo de visibilidade se almeja. A análise de páginas e telas evidencia reproduções – ou a falta de, como destaca Dalcastagné (2008) – semelhantes. A mulher não branca é praticamente inexistente no mundo audiovisual. Em suas pequenas e escassas participações dentro da construção das narrativas televisivas e cinematográficas do Brasil, elas aparecem limitadas a papéis fracos, estereotipados em demasia. Em análise das sitcoms realizadas para televisão paga no Brasil3, das 62 séries existentes até 2015 apenas 18 tinham mulheres como protagonistas, contra 27 com homens em papéis principais4. Não apenas os baixos números evidenciam a disparidade no retrato do sexo, a trama em que as personagens lideram refletem o sexismo dentro da narrativa brasileira. Enquanto 44% das séries protagonizadas por mulheres possuem relacionamentos amorosos em seu centro, apenas 4% das séries com personagem principal homem seguem a mesma temática. Já séries com foco no trabalho somam apenas 17% das protagonizadas por mulheres, em contrapartida a 48% das lideradas pelo sexo masculino. Os números apresentados reiteram a problemática da mulher retratada em uma esfera privada enquanto o homem transita livremente na esfera pública. Afinal, quem são as mulheres que estampam as capas de nossas revistas, que lideram as narrativas da nossa cinematografia? Elas repercutem ou ajudam quebrar estereótipos? O questionamento é extenso e em uma breve análise aqui debatida prova-se de extrema necessidade para construir um novo paradigma na representação midiática.

6 Nwunye M e o feminismo politicamente lésbico: sororidade entre as personagens de chimamanda Ngozi Adichie A sororidade é um conceito empregado na predicação das relações interfemininas. Refere-se a um pacto de irmandade, comumente utilizado nas várias esferas em que as mulheres se inserem. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie apresenta a sororidade como base de relação entre suas personagens femininas. Desde seu primeiro livro, Hibisco Roxo, as leitoras e os leitores de Chimamanda Ngozi Adichie são apresentadas(os) a mulheres que exibem forte empatia entre si, que se empoderam. Nesse romance, Chimamanda Ngozi Adichie nos apresenta duas personagens mulheres, que se tratam por “nwunye m” (minha esposa), mas que são na verdade cunhadas. Tratar-se por nwunye m faz parte de uma tradição igbo, 3 4

A pesquisa considera séries de comédia brasileiras produzidas para televisão paga, desconsiderando séries estrangeiras ou realizadas inicialmente para televisão aberta sem parceria com canais fechados. As séries com protagonismo dividido, em que ambos os sexos dividem o papel principal, somaram 17.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

229

que considera que ao se casar com uma pessoa, você se casa com a família dela. Kambili, a narradora personagem do livro, ao ver sua mãe e sua tia se tratando dessa forma se espanta, um espanto que pode ser comparado ao espanto da narradora de Virginia Woolf em Um teto todo seu com a falta de complexidade entre mulheres na literatura. Embora sejam contextos diferentes, temos aqui um estranhamento a algo que foge ao normativo; embora fosse igbo também, Kambili desconhecia o costume, pois seu pai os desprezava e evitava por serem costumes pagãos. Aproximamos a relação entre essas duas mulheres a ideia de postura “lésbica”, mencionada por Adrienne Rich (1983) no âmbito político, pois ambas se beneficiam desse relacionamento entre duas esposas que subverte o cristianismo compulsório de Eugine, pai de Kambili, assim como Adrienne Rich subverte a heterossexualidade compulsória. É possível encontrar relações como as que envolvem o uso da palavra Nwunye m em todos os romances da escritora nigeriana já publicados. Em Meio Sol Amarelo e em Americana, temos personagens mulheres que fazem da sua existência uma forma de resistência, seja traindo um namorado simplesmente porque teve vontade (algo que mais comumente acontece com homens na ficção) ou não deixando de ter atitudes com base na sororidade nem diante da mulher com a qual seu marido comete um ato de infidelidade. Aqui serão ressaltados alguns de seus contos que fazem parte da coletânea A coisa à volta do seu pescoço. No conto Casamenteiro temos uma personagem lutando contra a opressão de um marido arranjado pelo tio e pela tia. Ela encontra apoio em uma vizinha que no passado se relacionara com seu marido. Em Uma experiência privada, duas mulheres pertencentes a grupos rivais se protegem de um motim em uma loja abandonada. Na segunda-feira da semana anterior, temos uma jovem nigeriana que se sente atraída sexualmente por sua patroa, e esse sentimento proporciona a protagonista uma alegria de viver que há tempo não sentia. A historiadora obstinada, último conto do livro traz a sororidade entre gerações mostrando a história de mulheres da mesma geração vivendo nos períodos pré-colonial, colonial e pós-colonial. A relação entre a primeira e a última geração relatadas no conto é transformadora para ambas subvertendo diversas esferas de poder.

230

REFERÊNCIAS ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio sol Amarelo. Trad. de Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. _____. A coisa à volta do teu pescoço. Trad. de Ana Saldanha. Alfragile: Dom Quixote, 2009. _____. Hibisco roxo. Trad. de Tânia Ganho. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. _____. Americanah. Trad. de Julia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009. BHABHA, H. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG, 2005. CONDÉ, Maryse. I, Tituba, black witch of Salem. London: Faber and Faber Limited, 2000. COOK, Guy. Applied linguistics. UK: Oxford University Press, 2003. COUTO, M. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. _______. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. DALCASTAGNÉ, Regina. A personagem negra na literatura brasileira contemporânea. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 309-337. GLISSANT, Edouard. Caribbean discourse, selected essays. Charlottesville: The University Press of Virginia, 1999. GUDIN, Vera. Musa da igualdade. Claudia. São Paulo: Editora Abril, n. 9, ano 48, p. 48-52, set. 2009. LARANJEIRA, J. P. Mia Couto e as literaturas africanas de língua portuguesa. Revista de Filología Románica, Madrid, v. 18, n. 2, p. 185-205, 2001.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

231

MISKOLCI, Richard. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, p. 101-128, jan./jun. 2007. RAMIREZ, Ezekiel Stanley. As relações entre a Áustria e o Brasil. Trad. de Américo Jacobina Lacombe. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. RICH, Adrienne. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. In: Blood, Bread, and Poetry. Norton Paperback: New York, 1983. RODY, Caroline. The daughter’s return. African-American and Caribbean women’s fictions of history. Oxford: Oxford University Press, 2001. TPM. São Paulo: Editora Trip, n. 141, abr. 2014. WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Trad. de Vera Ribeiro. São Paulo: Nova Fronteira, 1985.

TESTANDO OS LIMITES DAS DIVISÕES: análises e questionamentos dos gêneros literários Alinne B. P. Fernandes1 Maria Rita Drumond Viana Frandor Marc Machado Jair Paulo Siqueira Luiz Filipi Schveitzer

1 Introdução A história das teorias dos gêneros literários confunde-se com a própria história da literatura. Na Antiguidade Clássica, tanto o teatro (por meio de As rãs, de Aristófanes) quanto a filosofia (por meio de a República de Platão e, especialmente, a Arte poética de Aristóteles) já buscavam descrever e delimitar os territórios a que pertenciam cada um dos gêneros e suas obras representativas. O posicionamento ambíguo entre descrição e prescrição, observável já em Aristóteles é, com o tempo, substituído por divisões cada vez mais normativas a respeito do que se pode ou não ser feito em cada um dos gêneros e subgêneros que se desenvolvem.  A despeito da quebra com o purismo genérico, notável já em Shakespeare mas que ganha força no Romantismo, divisões tripartites como a de Hegel, que propõe os três gêneros fundamentais como sendo o lírico, o épico e o dramático, mantêm-se correntes nos dias de hoje – influenciando, até mesmo, a matriz curricular do nosso curso de Línguas e Literaturas Estrangeiras na UFSC. Os textos a seguir são fruto das apresentações dos alunos de graduação Frandor Marc Machado, Jair Paulo Siqueira, Luiz Filipi Schveitzer. Vale ressaltar que os temas das apresentações dos alunos foram discutidos nas reuniões do grupo de estudos As Outras Literaturas, realizadas entre março e abril de 2016, em projeto de extensão da UFSC.

2 As cartas em Frankenstein A obra Frankenstein, de Mary Shelley, se insere não somente no cânone da literatura de língua inglesa mas também em uma tradição de textos literários que fazem uso de gêneros textuais popularmente considerados não ficcionais, como diários, biografias e cartas, que é o caso desta obra; uma tradição que pode ser 1

Professora do DLLE/UFSC. E-mail: [email protected]; Professora do DLLE/UFSC. E-mail: [email protected]; Alunos de graduação do curso de Letras.

234

traçada ao início do romance em língua inglesa, como Robinson Crusoé de Daniel Defoe. Este trabalho busca explorar as implicações do uso das cartas na narrativa de Frankenstein, or The Modern Prometheus. Nesta obra temos três vozes narrativas, a primeira pertencendo ao personagem, narrador e suposto autor das cartas, Robert Walton, capitão de um navio que segue em direção ao polo norte, que é escrita na forma de cartas endereçadas a sua irmã. Em suas cartas, Walton apresenta ao personagem Victor Frankenstein, que fora resgatado por ele e sua tripulação de um bloco de gelo no oceano gelado. Inicia-se então uma segunda narrativa, a de Victor Frankenstein, que é transcrita por Walton em suas cartas de acordo com o relato que Frankenstein supostamente confidencia a Walton durante a viagem. Em um terceiro momento temos a narrativa da Criatura que é contada pelo próprio Frankenstein, baseando-se em suas memórias, em seu relato. A estrutura dessa obra em múltiplas camadas narrativas atribui a essa narrativa um caráter duvidoso, uma vez que é impossível ao leitor determinar se a estória contada pelas vozes narrativas de Frankenstein ou da Criatura pertencem realmente a eles, uma vez que ambas estão sendo relatadas através do discurso de outra personagem, ou de duas personagens, como é o caso da criatura. Essa característica de recursividade em duas ou mais camadas de narrativa – ele disse que ele disse que ele disse – muitas vezes torna impossível que se possa submeter aquilo que um narrador está dizendo a questões de veracidade, isto é, dentro da diegese da obra, determinar se aquilo foi realmente dito pela personagem cuja voz é mimetizada no discurso de outrem (CALDAS-COULTHARD, 1997). Apesar da estrutura em forma de cartas, Frankenstein é um romance difícil de ser categorizado como epistolar, especialmente pois o leitor não tem acesso à voz ou a resposta do destinatário das cartas, ou seja, Margaret Saville, irmã de Walton. Apesar dessas diferenças em relação a outros romances epistolares mais característicos, Frankenstein faz uso de recursos epistolares em sua composição. A própria presença de um destinatário para as cartas tem efeito sobre o leitor, uma vez que “a experiência do leitor é parcialmente governada pela presença do destinatário” como aponta Janet Altman no livro Epistolarity - Approaches to a Form, e complementa “lemos qualquer carta de pelo menos três perspectivas: a do autor, a do destinatário, a nossa própria” (ALTMAN, 1982). O uso das cartas no texto literário, assim como de outros gêneros textuais considerados não ficcionais, a exemplo, o diário de viagem em Robinson Crusoé, funcionam de modo a mexer com a recepção do leitor em relação ao texto, de forma a mesclar ficção com realidade. Altman sugere que as cartas no texto literário funcionam de modo a mascarar, convenientemente, a ficção como um produto da vida real, criando uma ilusão de realidade no texto (1982). Para criar tal efeito, o autor da obra precisa fazer o autor suposto [Walton] falar para um destinatário para comunicar algo ao leitor que espia as cartas, possibilitando a criação de camadas de vozes, e aquilo que Barthes chamou “Effet de Réel”, ou Efeito de Realidade (ALTMAN, 1982).

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

235

Frankenstein é uma obra que atravessa tempo e espaço e cujas leituras e possibilidades de estudo se renovam ao longo dos séculos. A própria estrutura da narrativa com o uso de cartas, através de propriedades próprias deste gênero textual (Altman, 1982), permitem que a obra brinque, questione e transgrida os limites de história, estória, ficção, e o modo pelo qual eventos ficcionais e reais são (re)contados e narrados. Isso permite que Frankenstein seja usado não somente para o estudo da Literatura do século XIX, do romantismo inglês, do gótico ou da ficção científica, mas também para questionar e desafiar os limites entre gêneros literários e não literários, ficção e realidade, e as definições mais estáticas ou puristas dos gêneros literários.

3 O gênero narrativo no drama de Nelson Rodrigues A obra Vestido de Noiva (1943) que “deflorou” o Teatro Moderno Brasileiro e consolidou Nelson Rodrigues como um dos dramaturgos brasileiros mais importantes parece romper com as barreiras entre os gêneros dramático e narrativo. No drama dividido em três planos – alucinação, memória e realidade –, a protagonista Alaíde conta à Madame Clessi (uma cocote, falecida em 1905) diversos acontecimentos que a levaram até o estado em que se encontra. Nessa jornada na qual as barreiras entre os planos se rompem, Rodrigues transforma sua heroína em uma narradora, e evoca níveis narrativos e elementos não diegéticos que, posteriormente, foram discutidos por Genette (1995). Abordando os conceitos de diegese como sinônimo de história e universo espacial-temporal (REIS; LOPES. 1988), elucidou-se como o discurso narrativo se insere no texto teatral de Rodrigues. A função da narrativa é descrita por Genette como simplesmente contar uma história. Mas, para promover isso, há diferentes discursos. Dentro da narrativa de falas, que é a do interesse deste trabalho há, definido por Genette, três tipos de discurso das personagens: o “narrativizado”, o “transposto” e o “relatado”. O primeiro é assumido como se fosse um acontecimento entre os outros e feito pelo próprio narrador. O segundo acontece em estilo indireto: o narrador não apenas transpõe as falas das personagens, mas as integra no seu próprio discurso, fazendo com que assim, seu estilo e sua interpretação fiquem em evidencia. O problema é que esse discurso não nos dá garantia de fidelidade ao “realmente” pronunciado pela personagem, já que a interpretação do narrador se faz presente. O terceiro – que é do tipo dramático – é o mais “mimético”, pois o narrador finge ceder a voz à sua personagem. Genette deixa claro que, apesar dessa distinção em teoria, as formas de discurso não se separam de forma tão nítida nos textos e que esses discursos podem promover o que o autor caracteriza como “níveis narrativos”, ou como comumente conhecido “mise en abyme” (a narrativa dentro da narrativa dentro da narrativa). O nível extradiegético é onde se localiza o narrador primeiro. Junto ao narrador deste nível se encontram os aspectos que condicionam a enunciação e as entidades que podem intervir no processo narrativo. É a partir daqui que se pode constituir outros níveis. Este seria então o nível base em uma escala diegética. O nível imediatamente superior ao extradiegético é o intradiegético. Nesse nível localizam-se

236

os elementos da narrativa, como o tempo, o espaço, o enredo, as personagens etc. Se aqui uma das personagens acaba narrando uma outra história, um outro nível é aberto e a personagem responsável por isso se torna uma personagem-narrador. O nível superior a esse foi chamado pelo autor de metadiegético e, a partir desse, vários outros podem se abrir sempre que uma personagem iniciar uma narração. Nesse caso, cada nível aberto recebe o prefixo meta- na frente do nome do nível anterior (metametadiegético etc.). Há ainda um outro nível definido pelo autor como hipodiegético, mas que não cabe a discussão deste trabalho. Em Vestido de Noiva, os níveis narrativos e os elementos não diegéticos do discurso narrativo estão bem presentes. Os planos da memória e alucinação que no primeiro ato estão muito bem delimitados perdem as fronteiras rígidas entre si e misturam-se no decorrer da peça. Assim, não é apenas o tempo que perde sua organização nesses planos, mas os próprios acontecimentos passam a estar situados em planos em que não poderiam, gerando assim, os elementos não diegéticos. O plano da alucinação abriga Alaíde e Mme Clessi que tentam organizar as lembranças da heroína para saberem o que a levou até ali. No plano da memória são invocadas as lembranças que precisam ser organizadas, especialmente as lembranças do casamento da protagonista. Mas a partir de um momento, lembranças que deveriam ser de Mme Clessi, mas são narradas por Alaíde, encontram-se situadas no plano da memória. Memórias construídas a partir do que ela leu em jornais e no diário da cocote, que se apresentam por meio de diálogos que não poderiam ter sido vivenciados por Alaíde, o que nos mostra que são alucinações construídas a partir de fragmentos que a protagonista coletou anteriormente. Os discursos “transposto” e “relatado” apresentados por Genette se misturam e a noção de showing jamesiana (Genette, 1995) se faz presente quando a narrativa oral de Alaíde se transforma, por meio das alucinações e das invocações das memórias que sobrepõem sua fala, em uma narrativa mostrada. O showing como imitação ou representação narrativa, só é possível, segundo Genette, na representação dramática, pois nenhuma outra forma de narrativa é capaz de mostrar ou imitar a história que conta, a não ser que o objeto seja a própria linguagem (1995, p. 162). Esses discursos acontecem em passagens como: “ALAÍDE: [...] Papai estava dizendo: “O negócio acabava...” (Escurece o plano da alucinação. Luz no plano da memória. Aparecem pai e mãe de Alaíde. PAI: (continuando a frase) – “...numa orgia louca.”)” (RODRIGUES. 2012, p. 17). A partir da tentativa da mente de Alaíde em reconstruir sua história configuram-se o que Genette caracterizou-se posteriormente como níveis narrativos. Na peça é possível encontrar seis níveis: um extradiegético, um intradiegético, dois metadiegéticos e dois metametadiegéticos. O nível extradiegético é composto pela mente deteriorada de Alaíde nos mostrando sua tentativa de reorganizar sua história. No nível intradiegético temos as personagens Alaíde e Mme Clessi tentando reconstruir os passos da heroína até ali, e as outras personagens que se encontram e ajudam nesse percurso. Neste nível Alaíde começa a narrar sua história para Mme Clessi, abrindo assim o primeiro nível metadiegético onde aparece a história sobre seu casamento. Mas aqui ainda se abre um outro nível metadiegético que mostra a história de Mme Clessi antes de seu assassinato,

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

237

história que em um primeiro momento parece ser narrada pela personagem central, mas que mais tarde percebe-se ser narrada por Alaíde, misturando-se assim, os discursos “transposto” e “relatado”. No primeiro nível metadiegético se abre o primeiro nível metametadiegético quando o pai de Alaíde conta sobre o assassinato de Mme Clessi. O segundo nível metametadiegético é aberto a partir do segundo nível metadiegético e mostra sujeitos no velório da cocote discutindo sobre os motivos que levaram ao seu assassinato. Configurado o texto teatral a partir do entendimento de diegese como sinônimo de história resta ainda os elementos não diegéticos que surgem a partir do entendimento como universo espacial-temporal. Nesse sentido o voice over é o recurso mais utilizado por Rodrigues, mas uma outra transgressão é a mais notável na peça. No final do segundo ato, a mente de Alaíde mostra dois sujeitos discutindo as causas da morte da cocote, só aí a narradora e sua narratária descobrem que a mulher no caixão é a própria narratária. Neste momento as duas personagens passam do nível intradiegético para o segundo nível metadiegético e chegam a ver a própria narratária no caixão, configurando a metalepse narrativa ou a transgressão discutida por Genette. Desta forma, podemos observar que os dois sinônimos de diegese trabalhados por Genette no discurso narrativo se encaixam perfeitamente no texto teatral escrito por Rodrigues em 1943, e que nem por isso a peça deixa de ser caracterizada como tal. Isso só reforça o que Magaldi e D’onofrio tanto discutem sobre o drama como um gênero impuro: uma arte que se utiliza de diversos elementos de outras artes para gerar o maior impacto no espectador.

4 As fronteiras entre gêneros literários e não literários na trilogia Millennium, de Stieg Larsson A tentativa de encaixar textos em caixas nomeadas de ficção e não ficção foi, e ainda é, algo constante no meio literário. As fronteiras entre uma caixa e outra são muito frágeis, o que acaba por levantar o seguinte questionamento: será que uma obra pertence completamente a um único gênero textual? Foi nesse contexto que se pensou em analisar este aspecto na trilogia Millennium escrita por Karl Stieg-Erland Larsson. Esses livros são tratados como romance policial, entretanto, podemos encontrar neles vários outros gêneros inclusos que fazem questionar essas fronteiras, tais como os levíticos. A narrativa dos livros toma alguns rumos diferentes por serem expostas várias cenas que acontecem ao mesmo tempo, então, considerou-se explorar situações que apareçam de alguma forma a presença da protagonista Lisbeth Salander e algumas de suas relações pessoais. Logo ao começo do primeiro livro há uma frase como epígrafe sem fonte que aborda sobre a relação de mulheres abusadas e mortas na Suécia por homens. Portanto, é importante pensar o quão significativo é para uma nação oprimida ter uma personagem mulher que não se encaixa em nenhum padrão imposto pelo Estado. Cabe ressaltar que Lisbeth Salander não tem controle sobre seu dinheiro porque é considerada pelo governo como incapaz de administrá-lo.

238

Um fato interessante abordar é como são denominados os capítulos dos livros. Todos, sem exceção, são feitos com datas específicas e tem uma continuidade entre si. Essa ideia de datar os fatos pode trazer ao leitor uma consciência espaço-temporal que o faz acreditar com mais facilidade nos fatos expostos, mesmo eles fazendo parte de um romance ficcional. Outra fronteira questionada é o uso de fotografias no decorrer do primeiro volume da série. Elas não aparecem ilustradas no livro, porém, são descritas e investigadas. As fotografias funcionam como representação da realidade, ou seja, não é ela. É apenas uma repetição daquilo que existe, e não a coisa em si. Como a famosa pintura de Magritte, Ceci n’est pas une pipe, não há um cachimbo na pintura e sim uma representação do que seria um cachimbo. No segundo volume da série há o uso de uma tese de mestrado sobre tráfico de mulheres para que aja um aprofundamento na investigação sobre os crimes ocorridos. A tese de mestrado, por ter sido pesquisada em um período de tempo e estudada para ser finalizada, é considerada algo que trabalha com dados e informações mais precisas. Dessa forma, é curioso pensar qual o valor dela em meio a uma trilogia que trata de estupro e tráfico de mulheres, abuso de poder do Estado sobre mulheres e abuso da mídia sobre as pessoas. Há também o aparecimento de trechos bíblicos na trilogia. E neste caso encontra-se uma representação das anotações dos números destes trechos. Na narrativa entende-se que os levíticos estão relacionados com fatos reais dentro da estória, ou seja, da ficção. Assim sendo, seria a vida real do livro imitando a arte presente na bíblia. É a realidade ficcional imitando uma suposta ficção real (Ficção real, pois muitas pessoas acreditam fielmente que tudo o que está escrito nos textos bíblicos aconteceu em algum momento). Segundo o que Bird e Dardenne (1988) escreveram, quando um discurso passa de aquilo que fulano disse que beltrano disse que ciclano disse, perde-se a persuasão e a fidelidade dos fatos. Vejamos um trecho presente na trilogia: Cada citação estava cuidadosamente sublinhada na bíblia de Harriet. [...] Lembrou-se do sacrifício pelo fogo em Hedestad de que lhe falara o inspetor Gustav Morell: o caso Rebecka nos anos 1940, a jovem violentada e assassinada. Para matá-la, havia posto sua cabeça sobre carvões ardentes. ‘A seguir a vítima será cortada em pedaços, com a cabeça e a gordura, que o sacerdote disporá sobre a lenha colocada sobre o fogo do altar. ’ Rebecka. RJ (2008, p. 291).

No caso acima, temos as seguintes divisões de voz: narrador; Gustav Morell; citação bíblica. A voz do narrador vai até os dois pontos indicando o começo do discurso de Morell que vai até o início da citação bíblica. Todavia, quem está pensando em todas essas vozes é Mikael Blomkvist, outro personagem da série. Ou seja, temos, a princípio, duas leituras possíveis: a mudança de voz servindo como fator de relacionar trechos dos livros e relembrar o leitor de informações possivelmente esquecidas. Ou, a presença de três vozes sendo remetidas em um pensamento de lembrança faz com que o discurso seja duvidoso, portanto, passível de críticas. Contrapondo as duas questões, Luiz acredita que a segunda seja a mais plausível

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

239

para a discussão abordada. Não obstante, é dificultoso selecionar duas caixas para guardar algo, nem a primeira, nem a segunda funcionam completamente. Não se trata de um romance de ficção nem de realidade, e sim de uma linha tênue, um entre lugar entre os dois já que algumas situações são representações do cotidiano do autor, como a própria revista jornalística presente no livro e a qual Stieg Larsson trabalhava em vida, Revista Millennium. Por isso, prefere-se aquie a expressão “entre-lugar” utilizada por Silviano Santiago, pois as coisas não se dividem em a e b, assim como na ficção contém realidade e a realidade é construída de ficção.

240

REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. Categorias italianas, tradução V. Honesko. Florianópolis: EDUFSC, 2015. ______. A testemunha. In: ______. O que restou de Auschwitz, p. 25-48. ALTMAN, J. G. Epistolarity: approaches to a form. Ohio: Ohio State University Press. 1982. CALDAS-COULTHARD, C. R. News as social practice: a study in critical discourse analysis. Florianópolis: Pós Graduação em Inglês - UFSC, 1997. 114p. D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 2: teoria da lírica e do drama. São Paulo: Editora Ática, 1995. GENETTE, G. Discurso da narrativa. trad. MARTINS, Fernando Cabral. Lisboa: Vega, 1995. LARSSON, S. Os Homens que não amavam as mulheres. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ______. A Menina que brincava com fogo. Tradução Dorothée de Bruchard. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ______. A rainha do castelo de ar. Tradução Dorothée de Bruchard. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. MAGALDI, S. Iniciação ao Teatro. 7. ed. São Paulo: Editora Ática, 2003. MASSAUD, M. A criação literária. São Paulo: Cultrix, 2012. REIS, C.; LOPES, A. C. M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1988. RODRIGUES, N. Vestido de noiva. 11. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. SAER, J. J. O conceito de ficção. Revista FronteiraZ, São Paulo, n. 8, julho de 2012. SANTIAGO, S. O entre-lugar no discurso latino-americano (1971). In: Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre a dependência cultural. RJ: Rocco, 2000.   SHELLEY, M. Frankenstein, or the Modern Prometheus. The 1818 Text. New York: Oxford University Press. Oxford’s World Classics. 2009.

TRADUÇÃO LITERÁRIA COMENTADA E/OU ANOTADA: teoria, história e prática Andréa Cesco1 Gilles Jean Abes2 Clarissa Prado Marini3 Esteban Francisco Campanela Miñoz4 Francisca Ysabelle M. R. Silveira5 Jaqueline Sinderski Bigaton6 Marina Bento Veshagem7

1 Introdução O presente artigo é o resultado de comunicações apresentadas no simpósio temático “Traduções de obras literárias comentadas e/ou anotadas”, que envolveram teoria, história e prática durante a “X Semana Acadêmica de Letras da UFSC”. O simpósio reuniu trabalhos cujo o objeto de estudo esteve centrado na tradução comentada e/ou anotada de textos literários, pois acreditamos que a pesquisa em tradução inspira-se no campo fértil da prática tradutória e na sua reflexão. O tradutor vai delineando, portanto, sua própria poética sobre o ato de traduzir e os objetos decorrentes de certo ato pragmático: suas traduções. Nesse sentido, selecionamos cinco trabalhos que exemplificam atos e reflexões tradutórias. O primeiro deles, de Marina B. Veshagem, “Comentários sobre a poética da tradução de Macbett, de Eugène Ionesco”, expõe considerações sobre a poética tradutória de Macbett que se constrói principalmente a partir de reflexões que se redefinem na prática. O segundo, “Traduzindo teatro: uma tradução diferente”, de Esteban F. C. Miñoz, aborda as particularidades do texto teatrala partir das concretizações de Patrice Pavis. Quanto ao terceiro trabalho, de Jaqueline S. Bigaton, “O processo tradutório da correspondência criptografada de Maria Antonieta à Axel de Fersen”, este visa explorar a correspondência secreta e criptografada entre a rainha Maria Antonieta e o conde Axel de Fersen, datada do século XVIII. O quarto, de Francisca Y.M.R. Silveira,”Análise e tradução de HQs”, trata do processo de tradução de HQs, mostrando que é impossível desassociar a linguagem imagética da linguagem escrita no processo de tradução. O quinto e último 1 2 3 4 5 6 7

Professora doutora do DLLE e da PGET/UFSC, . Professor doutor do DLLE e da PGET/UFSC, . Doutoranda da PGET/UFSC, . Doutorando do Programa de Pós-Gradução em Literatura, UFSC, . Mestranda da PGET/UFSC, . Mestranda da PGET/UFSC, . Doutoranda da PGET/UFSC, .

242

trabalho, “Problematizações sobre Poétique du traduire de Henri Meschonnic e sua tradução para o português brasileiro”, de Clarissa P. Marini, apresenta reflexões acerca da tradução brasileira da obra Poétique du traduire (1999) do teórico francês Henri Meschonnic, publicada em 2010.

2 Comentários sobre a poética da tradução de Macbett, de Eugène Ionesco A peça Macbett foi escrita em 1972 pelo dramaturgo Eugène Ionesco, representante do Teatro do Absurdo, e é considerada uma paródia de Macbeth, dramaturgia de William Shakespeare de 1606. O dramaturgo adapta os nomes dos personagens e conserva a estrutura narrativa básica de Macbeth, mas apresenta a peça em um tom por vezes satírico. A tradução do texto de Ionesco do francês para o português brasileiro leva em consideração o fato de se tratar de um texto dramatúrgico, o que lhe confere algumas características específicas, como a oralidade, as indicações cênicas em didascálias8 e a potência de encenações futuras. No entanto, o processo tradutório compreende também reflexões que partiram de algumas questões: como entender a relação entre Macbeth, de Shakespeare, e Macbett, de Ionesco além da relação de paródia, enquanto imitação burlesca e sucessão linear no tempo? Como enxergar o absurdo, que está na base da produção dramatúrgica de Ionesco, não como delimitador da interpretação de sua obra, mas como potência de leitura de seus textos? A intertextualidade entre Macbett e Macbeth ecoa no processo tradutório, mas, ao refletir não apenas uma simples relação paródica, caracteriza sobretudo um vínculo que potencializa a leitura singular de ambos os textos. Da mesma forma, o absurdo, que Ionesco afirma corresponder a uma existência inimaginável, também se entranha na tradução, pois, especificamente neste caso, o sentido do original jamais poderia ser identificado pelo tradutor, mesmo que ele o quisesse encontrar. Em 1961, quando Martin Esslin publica O Teatro do Absurdo, livro em que cunha o termo para definir o teatro de vanguarda da década de 50, ele propõe uma análise que aparece como resultado do sentimento de angústia do homem, desprovido de seus referenciais, no mundo pós-guerra. Quase vinte anos depois, Michael Bennett escreve Reassessing the theater of the Absurd (2011), e, relendo a análise de Esslin, que considerou temática e equivocadamente existencialista, propõe uma aproximação estrutural, uma parábola ética que força a audiência a dar sentido à vida. Mais do que entender as conceituações sobre o Teatro do Absurdo e como elas se aplicariam à Ionesco, a análise“Patafísica”do textonos autoriza e encoraja a não classificar sua peça. A “Patafísica”, criada por Alfred Jarry como a ciência das soluções imaginárias e que analisa eventos à luz da irracionalidade e do humor, também nos permite ver uma realidade além daquela do consenso. Com essa forma de análise, é possível ler um texto como inesgotável, o qual sempre poderá propor novas 8

De acordo com o Aulete digital, é o “[...] conjunto de indicações e instruções que na Grécia antiga os autores dramáticos inscreviam nos manuscritos dados aos atores, para bem representarem suas obras”. Disponível em: .

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

243

verdades, que nunca serão imutáveis, definitivas, acabadas, esgotadas. A partir dessa reflexão, define-se que a tradução de Macbett poderia seguir o mesmo caminho de exploração do texto, absurdo em seu caráter de se constituir aberto a inúmeras leituras, nunca a serem concluídas, mas prontas a gerar novas interpretações.

3 Traduzindo teatro: uma tradução diferente Quando falamos de tradução de textos teatrais temos que saber que falamos de problemas diferentes aos da tradução literária. Também devemos lembrar que se os problemas encontrados na segunda já são mais conhecidos, não acontece o mesmo com a primeira. Antes de abordar o processo tradutório, observemos alguns dos aspectos de um texto teatral. É imprescindível entendê-lo, compreender sua estrutura e analisar os diversos fatores que atuam num texto dramático para depois circunscrever o funcionamento deste tipo de texto e encarar a tradução. Temos que esclarecer que particularidades do texto teatral como as indicações ou marcações, rubricas e didascálias, não pertencem ao texto literário e sim ao teatro como espetáculo. Ditas marcações interessam ao diretor e não ao leitor. É por meio dessas marcações que o dramaturgo esclarece o tom ou a intenção da fala que é proferida. Pavis (2008) denomina T1 – “concretização textual” – como o momento em que o tradutor trabalha como leitor e como “dramaturgo” do texto escrito, já na língua alvo. Em T2 Pavis registra a “concretização dramatúrgica” em si. Já em T3, “concretização cênica”, temos a colocação à prova do texto, o texto no palco, a palavra destinada a ser carne que se materializa nos ensaios. Mas essa concretização cênica precisa ser apropriada pelo público. É o que Pavis chama de “concretização receptiva” ou “enunciação receptiva”. É o momento em que o texto chega aos espectadores, é o final do processo de concretizações e de uma sucessão de traduções. É ao finalizar este processo que o tradutor poderá confirmar se essa série de concretizações foi acertada, se foi aceita e compreendida pelo público. No processo tradutório é válido destacar que a possibilidade de transitar por um coletivo de artistas criadores e de relacionar aos processos de montagens favoreceu o trabalho final das traduções já que essa reescrita é alimentada pelo trabalho de colaboração entre diretor, atores e tradutor, pelos diálogos entre as partes. Dessa forma, o tradutor tem a possibilidade de verificar se o instinto dramatúrgico tem sentido para outras pessoas. Da mesma forma com que um dramaturgo escreve um texto, o tradutor também tem que ler em voz alta, escutar o que foi escrito, comprovar se o diálogo é crível, se é convincente, pensar o texto na boca do ator. O diálogo teatral difere de um diálogo literário justamente por se destinar a ser enunciado em voz alta, necessita de um corpo e uma voz. O tradutor situado na intersecção de duas culturas e dois textos deverá cumprir a função de mediador. Deverá adaptar à língua e à cultura alvo a dimensão semântica, sintática, rítmica, acústica, conotativa etc. do texto-fonte, levando em consideração que o texto escrito irá parar na boca dos atores.

244

Finalmente, é o público e o futuro da peça que darão uma resposta ao tradutor no sentido de confirmar se atingiu seu objetivo, se acertou nas suas escolhas e na sua tradução.

4 O processo tradutório da correspondência criptografada de Maria Antonieta à Axel de Fersen Em outubro de 1789, logo após o início da Revolução Francesa, Maria Antonieta e a família real foram levadas ao Palácio das Tulherias, onde permaneceram presos até agosto de 1792, de onde foram conduzidos para a Torre do Templo. Não podendo se comunicar com seus aliados, Maria Antonieta começou a se corresponder com Axel de Fersen, conde e militar suíço, de maneira sigilosa e com o auxílio das poucas pessoas em quem podia confiar, utilizando-se de um método de criptografia conhecido como “método polialfabético de substituição com auxílio de palavra-chave”, criado por Fersen. O método contava com 22 alfabetos cifrantes (conjunto de pares de letras) e com a utilização de mots-vides (palavras vazias, em francês), como “vertu” (virtude) e “courage” (coragem), como palavras-chave, que podiam ser modificadas a cada nova mensagem (BAUER, 2007). As cartas escritas por Maria Antonieta estão no acervo dos Archives Nationales (arquivos nacionais) franceses. No entanto, não se trata da correspondência em sua totalidade, uma vez que a rainha queimou diversas cartas e documentos pessoais. Das cartas que enviou a Fersen, poucas restaram, algumas foram rasuradas e, em sua grande maioria, são fac-símiles feitos por Fersen ou por seu secretário (apenas uma é autógrafa de Maria Antonieta). Das 58 cartas restantes, trocadas entre a rainha e o conde, 13 estão parcial ou completamente cifradas. O processo de tradução inicia-se com a reescrita dos manuscritos digitalizados. Em seguida, as cifras são colocadas em uma tabela para facilitar o processo de deciframento. Nessa tabela, para cada linha de cifras, são criadas duas linhas abaixo, uma para as letras da palavra-chave e a outra para o texto em claro. No método utilizado por Maria Antonieta e Fersen, a lógica para o (de)ciframento da mensagem é de uma letra a cada duas: Texto cifrado

F

E

S

I

E

T

S

M Q

N

P

I

A

N

F

I

P

E

Palavra-chave

d

-

e

-

p

-

u

-

i

-

s

-

d

-

e

-

p

-

Texto em claro

j

e

x

i

s

t

e

m

o

n

b

i

e

n

a

i

m

e

Na tabela acima, trecho de uma carta enviada por Maria Antonieta no dia 29 de junho de 1791, tem-se um exemplo da segunda etapa do processo de tradução. A mensagem cifrada “FESIETSMQNPIANFIPE”, juntamente à palavra-chave

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

245

“depuis”, é traduzida para “J’existe, mon bien aimé”. Para encontrar o par equivalente às cifras “F” e “A”, por exemplo, é necessário consultar o quadro do alfabeto de ciframento, no qual a letra “d” indica o alfabeto específico a ser utilizado, que é formado, dentre outros, pelos pares “FI” e “AE”. Os pares contidos em cada um dos 22 alfabetos são simétricos, servem tanto para cifrar quanto para decifrar uma mensagem. Por isso, após traduzir uma mensagem em claro do francês para o português, é possível traduzi-la para uma mensagem cifrada utilizando-se do mesmo método, inclusive da mesma palavra-chave (tanto em português quanto em francês). As mensagens, como coloca Gylden (1931), possuem um caráter histórico relevante, posto que seu conteúdo revela a possível traição da rainha da França, que tentava articular, tanto com Fersen quanto com outros líderes das potências estrangeiras aliadas da época, o fim da Revolução Francesa e a restauração da monarquia. Em relação aos Estudos da Tradução, é válido notar que, ao se pensar a criptografia como tradução, estabelece-se um vínculo entre as áreas vistas como distintas, com o intuito de enriquecê-las ao se criar mais possibilidades de pesquisa.

5 Análise e tradução de HQs Desde os primórdios, a humanidade encontrou nas imagens uma forma de comunicação fácil e compreensível, como nos desenhos nas cavernas e os hieroglíficos. Mas ao longo do tempo, as imagens – que eram representações de sons, como nosso alfabeto – deram lugar a representações mais simples que não são mais vistas como imagens, mas como letras, o que abriu espaço para o surgimento de novas formas de contar histórias e registrar os acontecimentos. Sendo um ato de percepção estética e de esforço intelectual (EISNER, 1989), a leitura de histórias em quadrinhos é de fatoum ato de tradução inconsciente onde o leitor precisa exercitar suas capacidades interpretativas, visuais e verbais (EISNER, 1989). Devido à sua popularização, as histórias em quadrinhos encontraram-se no foco de diversos debates e pesquisas desde os anos 1970; porém no que concerne à área de tradução e o processo tradutório de histórias em quadrinhos, há uma grande escassez, tanto na teoria quanto na prática. Reconhecendo as narrativas gráficas como produções materiais históricas e sociais, imiscuídas de características próprias que fazem parte do local onde foram produzidas, reconhecemos também que as histórias em quadrinhos têm se mostrado ao longo do tempo um campo de pesquisa fértil e explorável em todos os aspectos. Se temos em vista que tanto na tradução de HQs quanto na leitura é impossível desassociar a linguagem imagética da linguagem escrita, juntamente com a representação da língua falada e popular, poderemos perceber que são desafios de tradução que necessitam ser estudados em conjunto. São estas particularidades que tornam os processos tradutórios executados nesta mídia especificos apenas para esse tipo de linguagem. Assim como na tradução de prosa, na tradução de quadrinhos há uma recodificação dos signos linguísticos de uma língua para outra, podendo ser estes signos tanto

246

verbais como não verbais. A necessidade de uma tradução conjunta, um processo de tradução que inclua estes elementos para poder, assim, alcançar um resultado harmonioso e coerente se faz inevitável. Se faz necessário criar possibilidades para o avanço e refinamento das técnicas de tradução ao traduzir histórias em quadrinhos, já que o mercado nacional de HQs depende em grande parte da tradução de histórias populares entre os consumidores que se mostram mais exigentes a cada dia. É preciso destacar a necessidade de um treinamento do tradutor no campo da paratradução e assim melhor traduzir um gênero que se torna mais popular a cada dia, tendo como base de tradução não apenas as teorias de tradução aplicadas aos signos verbais como também a interpretação de signos não verbais presentes nas HQs, como cor, traço, perspectiva e posicionamento dos quadros, esperando provar que estes elementos influenciam no processo tradutório de histórias em quadrinhos.

6 Problematizações sobre Poétique du Traduire, de Henri Meschonnic e sua tradução para o português brasileiro A tradução de textos de cunho teórico tem um impacto na maneira como será lida aquela teoria num novo contexto linguístico-cultural e acadêmico, podendo inclusive ter papel ativo no desenvolvimento da própria área dos Estudos da Tradução, já que é por meio da tradução, como destaca Steiner (2005), que a obra teórica sairá de seu contexto local para um contexto geral criando a oportunidade de influenciar a história intelectual. No âmbito deste trabalho, são expostas algumas problematizações acerca da tradução da obra de Meschonnic, o poeta, tradutor, linguista e teórico que publicou diversas obras sobre literatura, poesia e tradução. Em Poétique du traduire (1999), o autor desenvolve seus conceitos de alteridade, descentramento, literalidade, oralidade, ritmo para desenvolver o que ele chama de poética da tradução. O texto de Meschonnic começa com uma longa introdução e depois é dividido em duas partes intituladas “A prática: é a teoria” (La pratique, c’est la théorie) e “A teoria: é a prática” (La théorie, c’est la pratique), cada uma delas composta por treze capítulos. Na tradução para o português, no entanto, foram cortados sete capítulos da primeira parte e mais três da segunda. Portanto, do total de 26 capítulos do original, foram traduzidos apenas 16. Tendo em vista que a tradução de textos teóricos se mostra de vital importância para a difusão dos conceitos de um domínio do saber – neste caso, da Teoria da Tradução Literária – principalmente quando se trata de um texto que apresente conceitos inéditos, a análise da tradução de uma obra como esta se mostra relevante na medida em que busca problematizar não apenas a tradução dos conceitos de Meschonnic, mas também a escolha do recorte da obra. A partir disso podemos ainda nos perguntar quem determina a relevância de trechos da obra a serem ou não traduzidos. Neste caso foi uma decisão conjunta das tradutoras e do autor, mas essa decisão coloca em jogo a autonomia do leitor, já que

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

247

ele não tem como alcançar os capítulos não traduzidos e isso pode vir a afetar o entendimento da obra. De qualquer maneira, o fato de ser a única obra de Meschonnic traduzida e a única tradução dessa obra merece destaque e ganha importância por ser o único e exclusivo meio de acesso ao pensamento de Meschonnic para aqueles que não leem francês, no contexto linguístico-cultural de língua portuguesa.

7 Considerações finais O simpósio, através dos cinco trabalhos aqui apresentados, proporcionou um espaço de discussão e reflexão sobre as escolhas que surgem no ato tradutório e suas implicações, discutiu o posicionamento do tradutor em relação ao texto de partida e de chegada, ao leitor e a questões culturais, e também tratou de apontar diferentes posturas perante o texto, conforme a época em que as traduções foram realizadas ou publicadas. Considera-se que a escolha deste eixo temático ofereceu o espaço necessário para o intercâmbio entre os diferentes posicionamentos teóricos e práticos na área da tradução literária.

248

REFERÊNCIAS BAUER, Friedrich. Decrypted secrets: methods and maxims of cryptology. 4. ed. New York: Springer-Verlag, 2007. BENNET, Michel. Reassessing the theater of the absurd. New York: Palgrave McMillan, 2011. EISNER, Will. Quadrinhos e a arte sequencial.Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo.Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. GYLDEN, Yves. Le chiffre particulier de Louis XVI et Marie-Antoinette lors de la fuite à Varennes. Revueinternationale de criminalistique, v. 3, p. 248-256, 1931. IONESCO, E. Macbett. Paris: EditionsGallimard, 1972. JARRY, A. Patafísica: epítomes, recetas, instrumentos y lecciones de aparato. Compilado por Rafael Cippolini. Buenos Aires: Caja Negra, 2009. MESCHONNIC, Henri. Poética do traduzir. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva, 2010. MESCHONNIC, Henri. Poétique du traduire. Paris: Verdier, 1999. PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. Tradução de Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008. STEINER, George. Depois de Babel: questões de linguagem e tradução. Tradução de Carlos Alberto Faraco. Curitiba: Editora da UFPR, 2005.

VIVÊNCIAS DE DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA Isabel de Oliveira e Silva Monguilhott1 Maria Izabel de Bortoli Hentz2 Ana Carolina de Souza Ostetto3 Érica Marciano de Oliveira Zibetti Graciela Massironi Carus Maíra Sevegnani Morgana Ferreira Samara Hinkel Corrêa Thalisson Machado Tiago Carturani Vanessa Custódio Inácio

1 Introdução Este trabalho organiza-se a partir de quatro comunicações apresentadas no Simpósio Temático Vivências de Docência na Educação Básica que objetivou socializar experiências dos alunos do Curso de Letras Língua Portuguesa nas disciplinas Estágio de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura I e Estágio de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura II, em escolas de Educação Básica da Grande Florianópolis, vinculadas a diferentes redes de ensino. As práticas pedagógicas a serem relatadas referem-se à docência em aulas de Língua Portuguesa em turmas dos anos finais do Ensino Fundamental da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e em turmas do Ensino Médio. A concepção assumida no estágio de docência é a que entende a aula de português como o lugar de práticas de linguagem e o texto como unidade de ensino e aprendizagem da língua como conhecimento escolar. Para tanto, foram propostas atividades que privilegiaram as práticas de oralidade, leitura, escrita e análise linguística. As etapas principais que compuseram o estágio foram: a observação em sala de aula, a elaboração e a realização do projeto de docência. A seguir, apresentam-se, nas seções 2 e 3, os relatos dessas experiências e, na sequência, algumas considerações acerca do ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa nesta etapa de formação de futuros professores. 1 2 3

Professora Doutora do MEN/CED/UFSC, [email protected]. Professora Doutora do MEN/CED/UFSC, [email protected]. Licenciados em Letras pela UFSC, [email protected], [email protected], [email protected], [email protected], [email protected], [email protected], [email protected], [email protected], [email protected].

250

2 A pluralidade cultural no ensino de língua portuguesa em turmas do ensino fundamental na educação de jovens e adultos Essa seção reúne experiências de estágio no ensino de Língua Portuguesa realizadas em turmas do Ensino Fundamental da EJA em uma escola da rede municipal de ensino de São José, orientadas pela Profa. Dra. Isabel de Oliveira e Silva Monguilhott. O eixo temático da EJA no semestre em que foram realizados os estágios, 2015/2, foi Pluralidade Cultural. Assim, ambos os trabalhos, embora elenquem diferentes gêneros discursivos para o ensino de língua, versam sobre o mesmo eixo temático. A primeira experiência a ser relatada, intitulada As variações linguísticas nas identidades culturais4, teve como protagonistas alunos do 8º ano. Verificou-se que a turma era bastante heterogênea em diversos aspectos: os motivos que os levaram a procurar a EJA, a faixa etária, os objetivos que queriam alcançar cursando essa modalidade de ensino, as atividades que eles realizavam fora da escola, entre outras. Demonstraram-se bastante interessados nas aulas que envolviam discussões e debates, e bastante passivos em aulas que envolviam atividades de criação e escrita, por não estarem habituados e não serem estimulados a tal prática pedagógica nas aulas. Por esse motivo, e também para contemplar o eixo temático mencionado anteriormente, decidiu-se trabalhar com variação linguística, aproximando os conhecimentos escolares à realidade dos alunos. Esse trabalho se deu por meio de aulas expositivo-dialogadas, bem como de aulas que envolveram criação, visando sempre despertar o interesse do aluno, estimulando sua participação em todos os momentos e valorizando os saberes que já traziam como bagagem sócio-histórica. O projeto de docência foi embasado teoricamente pela concepção de língua/linguagem como interação (BAKHTIN, 2009) e pela compreensão de ensino de língua a partir do trabalho com os eixos: oralidade, leitura, escrita e análise linguística, conforme sugerem Antunes (2003) e Geraldi (1997). A respeito da metodologia, as aulas foram organizadas tendo como base o conhecimento prévio de cada aluno. Para isso, antes da introdução de um tema novo, foram feitas perguntas para que, assim, fosse possível diagnosticar o que eles já sabiam sobre o tema e, ao mesmo tempo, direcioná-los para que pudessem entender o que era relevante à disciplina. Para as aulas expositivo-dialogadas, diversas linguagens e gêneros discursivos repletos de informações sobre o tema foram apresentados: música, reportagens em vídeos, textos de opinião, conto, entre outros. Para as aulas de criação, os alunos dedicaram-se a criar textos de impressões a respeito do tema, os quais foram publicados em fanzines confeccionados por eles mesmos; e a criar relatos pessoais, também publicados em um livreto organizado pelos estagiários. Em cada produção criativa, foram expostas as características de cada um, explicando aos alunos como cada gênero se organizava. Nessas produções, trabalhou-se: i) a escrita; ii) a análise linguística, a partir da escrita dos alunos; iii) a reescrita, levando em conta as observações dos estagiários na primeira versão 4

Desenvolvida pelos professores-estagiários Samara Hinkel Corrêa, Thalisson Machado e Tiago Cartunani.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

251

do texto dos alunos; iv) a leitura; e v) a oralidade, principalmente na apresentação e leitura das produções dos alunos. Levando em conta os objetivos propostos no planejamento do estágio, todos foram, de maneira geral, alcançados. Alguns problemas foram enfrentados, tanto por parte dos alunos, da professora regente da turma e por parte da administração do colégio. A segunda experiência realizada no Ensino Fundamental da EJA intitulou-se Possíveis diálogos5 e foi realizada em uma turma de nono ano. Como é comum nas turmas dessa modalidade de ensino, também se observou uma oscilação quanto à faixa etária nessa turma. As exigências propostas pelo mercado de trabalho (entre outros motivos) fazem com que as pessoas retomem seus estudos, criando assim uma turma ainda mais heterogênea do que é regularmente. Através do planejamento do professor da turma, que previa o gênero discursivo crônica para o período das nossas aulas e pensando também no eixo temático proposto pela escola, o projeto docente concentrou-se em dois gêneros discursivos – crônica e lenda – e foi desenvolvido com a obra Uns papéis que voam, de Flávio José Cardozo e a Série Lendas da nossa gente, disponível on-line através do jornal Hora de Santa Catarina. Sempre levando em consideração os conhecimentos preliminares dos alunos, buscou-se a interação através de aulas expositivas e dialogadas, aulas que envolvessem o trabalho em equipe e que criassem um ambiente favorável à troca de experiências e conhecimentos, fazendo com que os alunos não fossem meros receptores, mas sim participantes ativos no desenvolvimento das aulas, envolvendo-se nas atividades propostas. Para isso, as atividades foram pensadas de forma que os alunos fossem protagonistas, como escrita e encenação de uma crônica; ou a atividade em que os alunos precisavam completar uma lenda; ou ainda a aula em que foi destinada à criação dos desenhos que compuseram a capa do livro, livro este que foi produto final do nosso projeto de docência e que foi montado a partir das produções textuais dos alunos. A experiência do Estágio Supervisionado I superou as expectativas com o envolvimento dos alunos, bem como com o alcance, de forma geral, dos objetivos.

3 O movimento artístico-literário barroco e outras dobras: arte e prática de escrita e reescrita no ensino médio Nesta seção apresentam-se as experiências de ensino-aprendizagem intituladas O barroco e outras dobras: poesia, arte e reflexões atuais6 e Ritmos e rimas da poesia barroca: música e literatura no ensino de Língua Portuguesa7 que se relacionam ao ensino do período artístico-literário barroco e ao ensino de análise linguística com foco nos processos de formação de palavras. Essas experiências foram realizadas por duas duplas de professoras-estagiárias do curso de Letras–Língua Portuguesa e Literaturas, que trabalharam com as turmas 5 6 7

Desenvolvida pelas professoras-estagiárias Graciela Massironi Carus e Vanessa Custódio Inácio. Desenvolvida pelas professoras-estagiárias Érica Marciano de OliveiraZibetti e Maíra Sevegnani. Desenvolvida pelas professoras-estagiárias Ana Carolina de Souza Ostetto e Morgana Ferreira.

252

102 e 108 do Ensino Médio, em uma escola da rede estadual de ensino de Santa Catarina, no município de São José, como parte das atividades da disciplina de Estágio de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura II, no segundo semestre de 2015, sob orientação da Profa. Dra. Maria Izabel de Bortoli Hentz. Tendo em vista que as práticas realizadas nas diferentes turmas se aproximaram em alguns aspectos, apresenta-se, após o referencial teórico que norteou ambos os trabalhos, uma visão geral das atividades realizadas nas diferentes turmas, para então se refletir sobre os aspectos em comum nessas experiências docentes, a saber: a compreensão de escrita como trabalho pela prática da escrita e reescrita e a importância de espaços de socialização dos textos produzidos pelos alunos nas aulas. Pensando a linguagem e o sujeito a partir das proposições do Círculo de Bakhtin (BAKHTIN, 2009, 2011, 2012; MEDVIÉDEV, 2012) e de Vygotsky (1987) com seus respectivos desdobramentos, procurou-se, ao longo da docência, olhar para o aluno como alguém que, em sua singularidade, se faz e se marca no mundo através de sua ação concreta, de um passo (BAKHTIN, 2012), e como alguém que constrói a linguagem ao mesmo tempo em que é constituído pelas/nas situações comunicativas de que participa. Com base nessa concepção dialógica de linguagem, o objeto de conhecimento das aulas de Língua Portuguesa foi, desse modo, a própria língua, sintetizada nas práticas de uso que dela se faz: fala/escuta (oralidade), leitura/escrita e reflexão sobre os próprios recursos da língua (análise linguística). A unidade de ensino foi o texto e o objeto de ensino os gêneros artigo de opinião e poema, que foram escolhidos em virtude de suas possibilidades de trabalho relacionadas ao período artístico-literário barroco e aos processos de formação de palavras, temas de trabalho sugeridos pelas professoras-regentes da disciplina de Língua Portuguesa das turmas anteriormente mencionadas. As reflexões de João Wanderley Geraldi (1997) no que concerne, especialmente, às práticas de escrita, também foram orientadoras desta ação docente. Segundo esse autor, assumir-se como locutor demanda que: “a) se tenha o que dizer; b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer; c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer; d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz para quem diz; e) se escolham as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d)” (GERALDI, 1997, p. 137). Subsidiados pelas reflexões supracitadas, os trabalhos realizados na turma 102 aliaram os conhecimentos artístico-literários referentes ao barroco aos conhecimentos morfológicos sobre estrutura e formação de palavras, mediados, sempre, pelo texto como unidade de ensino. Assim, a partir da leitura-estudo de poemas de Gregório de Matos e de sermões de Padre Antônio Vieira, e cotejando tais leituras com pinturas e arquitetura do mesmo período, os principais aspectos desse movimento, bem como os conhecimentos morfológicos outrora destacados, foram evidenciados em aulas predominantemente expositivo-dialogadas. Por reconhecer, ainda, similitudes do gênero discursivo sermão em relação ao gênero discursivo artigo de opinião, em virtude de em ambos predominar o tipo textual dissertativo-argumentativo, optou-se pelo trabalho de escrita e reescrita do último gênero. Para tanto, foram lidos artigos de opinião diversos e destacados seus aspectos – como sua

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

253

função social, seus leitores e meios pelos quais circula –, ao mesmo tempo em que aspectos já estudados nos sermões de Padre Antônio Vieira foram rememorados. Após o trabalho de leitura-estudo dos artigos de opinião, as práticas de escrita e reescrita nesse gênero foram vivenciadas. Partindo da ideia de que é necessário ir além dos conceitos, procedimentos e informações ensinados em sala de aula, ou seja, de que é preciso colocar esses aprendizados escolares em prática para que o aluno aprenda também a tomar a palavra, constituindo-se autor de seus dizeres, e assim responder ativamente à palavra do outro nas mais diferentes situações de interação, na turma 108 trabalhou-se a escola artístico-literária barroca, através de uma aproximação com a obra de Padre Antônio Vieira e Gregório de Matos e da relação entre poesia e música. A partir disso, foram realizadas leituras e análises dos recursos discursivos, textuais e linguísticos de sermões e poemas, sendo este último estudado de forma mais aprofundada, já que os alunos realizaram a produção escrita de um soneto. Com os textos trabalhados deste período, refletiu-se sobre a estrutura e a formação de palavras, a fim de “[...] desvelar traços da criação literária” (MENDONÇA, 2012, p. 212). Essa reflexão sobre a construção do sentido do texto por meio da estrutura das palavras auxiliou os alunos no momento da produção do seu poema, o qual foi escrito e reescrito com temática e recursos expressivos e linguísticos do barroco. Em ambos os trabalhos, as práticas de escrita e reescrita tiveram por objetivo instrumentalizar os alunos para que dispusessem dos meios necessários para se assumirem como locutores, conforme as ponderações de Geraldi (1997). Nesse sentido, é que, seja no trabalho com o artigo de opinião, seja no trabalho com o poema, intentou-se instigar os alunos a expressarem aquilo que desejavam, através de leituras diversas, e a buscarem as estratégias mais apropriadas para isso, por intermédio do trabalho em torno dos aspectos constituintes dos gêneros. A prática de reescrita, ainda, mediada pelas professoras-estagiárias, foi imprescindível para que os alunos pudessem perceber as inadequações linguístico-discursivas em seus textos, ao mesmo tempo em que permitiu a eles aprofundarem seus conhecimentos em torno desses gêneros. Nesse sentido, as professoras-estagiárias fizeram-se coautoras dos textos dos alunos, encorajando “[...] o outro a continuar buscando a melhor forma de dizer o que quer dizer para quem está dizendo, pelas razões que o levam a dizer o que diz” (GERALDI, 2010, p. 98-99). Por fim, faz-se necessário destacar um último aspecto em comum nas duas práticas docentes: o intento de propiciar aos alunos um ambiente de socialização de seus textos. Lembrando, com Bakhtin (2009) e Geraldi (1997), que as práticas linguísticas não acontecem no vácuo social, mas que são frutos de relações intersubjetivas, procurou-se um leitor/ouvinte para os textos dos alunos dessas turmas para além do professor. Assim, os artigos de opinião foram publicados em um webjornal produzido para a turma8, além de serem lidos em sala. Os poemas, do mesmo modo, foram socializados, sendo primeiramente lidos em sala e, posteriormente, expostos em varal literário e em espaços diversos do ambiente escolar. Com isso, 8

O webjornal pode ser acessado no endereço: .

254

os alunos puderam compreender que se escreve para um leitor que, nesse caso, e felizmente, estava também além dos limites da sala de aula.

4 Considerações finais As práticas de docência aqui relatadas e analisadas representam, em alguma medida, o exercício que estagiários do curso de Letras Português têm realizado para que a aula de Língua Portuguesa se constitua efetivamente em práticas de linguagem, na medida em que os gêneros do discurso – que regulam essas mesmas práticas – assumem a condição de objeto de ensino e o texto de unidade de ensino da aula de português. Nesse movimento, os alunos aprendem que a variação é um fenômeno intrínseco às línguas. Assim, ao mesmo tempo em que se reconhecem no conhecimento trabalhado pela escola, aprendem a respeitar e a valorizar o conhecimento do outro, como demonstram as práticas pedagógicas apresentadas na Seção 2. A aprendizagem da língua pelas práticas de uso e pela reflexão sobre esses mesmos usos possibilita também a apropriação de aspectos da estrutura da variedade mais valorizada socialmente, como descrito nas práticas apresentadas na Seção 3, de modo que o estudo do processo de formação de palavras fosse mais significativo aos alunos. Outro aspecto a se destacar nas experiências vivenciadas é a compreensão e valorização dos conhecimentos dos alunos como ponto de partida para a aprendizagem de novos conhecimentos. Isso se evidencia nas práticas pedagógicas apresentadas na Seção 2, quando se propõe a leitura de lendas, entre outros textos que circulam no universo dos alunos para identificação da diversidade cultural que neles se manifesta. Já nas práticas descritas na Seção 3, para a apropriação de conhecimentos relativos ao Barroco, como os sermões de Padre Antonio Vieira e os poemas de Gregório de Matos Guerra, propõe-se o diálogo com artigos de opinião e com poemas do autor que foram musicados por autores contemporâneos. Pelas experiências vivenciadas, podemos concluir que, pela escuta, leitura e produção de textos, orais e escritos, professores e alunos estão assumindo a palavra, fazendo-se sujeitos do seu dizer. Após a conclusão do estágio, evidencia-se a sua importância no processo formativo para a docência, pois proporciona ao futuro professor a vivência dentro da sala de aula e o aproxima da realidade que circunda o sistema educacional. Além disso, o estágio prepara para enfrentar as peculiaridades e os desafios da educação básica e possibilita ressignificar as práticas de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

255

REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. BAKHTIN, Mikhail (Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009. ______. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. São Paulo: WWF Martins Fontes, 2011, p. 261-306. ______. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. 2. ed. São Carlos, SP: Pedro & João, 2012. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______. A aula como acontecimento. São Carlos, SP: Pedro & João, 2010. MEDVIÉDEV, Pável N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Américo e Sheila Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. MENDONÇA, Márcia. Análise linguística no ensino médio: um novo olhar, um outro objeto. In: BUNZEN, Clecio; MENDONÇA, Márcia (Org.). Português no ensino médio e formação de professores. São Paulo: Parábola, 2012, p. 199-226. VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

TERCEIRA PARTE

CONHECENDO A SEMANA DE LETRAS 2016 DA UFSC Allana Kretzer1

A experiência não é o que nos acontece; é o que fazemos com aquilo que nos acontece. (Aldous Huxley)

Amanheceu. O que parecia mais uma segunda-feira comum foi na verdade um dia muito frio, como os catarinenses não viam há bastante tempo. O inverno, que já se fazia presente no que ainda era o nosso outono, estava de volta e parecia não estar para brincadeira. A data era 06/06/2016, números um tanto quanto curiosos. Porém, deixando de lado toda e qualquer superstição, o dia tinha tudo para ser incrível, regado de novos conhecimentos, e por que não de outras descobertas tantas? Começava a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC, com o tema Cem Anos do Curso de Linguística Geral: estruturalismos & pós-Estruturalismos devido ao aniversário de cem anos da publicação do Cours de Linguistique Générale, de Ferdinand de Saussure, edição de Charles Bally e Albert Sechehaye, que acontece em 2016. Como o livro é uma espécie de marco teórico dos saberes da área de Letras, a Semana teria como objetivo ser um espaço de debate sobre os conceitos inaugurados pelo estruturalismo saussureano. E, mais uma vez, os alunos teriam a chance de expandir o horizonte de seus conhecimentos e aprender sobre assuntos que muitas vezes fogem da sua grade curricular no semestre em curso, mas, ainda assim, despertam sua curiosidade. A Semana, no seu escopo geral, é uma proposta dos departamentos de Língua e Literatura Vernáculas e Língua e Literatura Estrangeiras para cumprir o compromisso firmado no Projeto Político Pedagógico dos Cursos de Letras-Português e Letras-Estrangeiras, relativo a 260 horas de atividades acadêmico-científico-culturais, com a finalidade de aprimorar o processo formativo do profissional de Letras (SEMANA ACADÊMICA DE LETRAS DA UFSC, 2016). Embora eu acredite que o evento em si vai muito além dessa proposta inicial – e podemos perceber isso ao analisarmos todo o desempenho e preparação dos envolvidos, como coordenadores, professores e acadêmicos –, ainda não há um grande e insaciável desejo por parte da maioria dos alunos em participar efetivamente do mesmo. O evento é, no entanto, uma oportunidade de sair do lugar comum em que os alunos passam a maior parte do semestre, conhecendo novos conceitos, descobrindo 1

Graduanda da 8ª fase do Curso de Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas. E-mail: [email protected].

260

novas e incríveis histórias, ouvindo professores e estudiosos que dominam e narram com paixão todo o seu estudo. Ainda, temos a oportunidade de prestigiar apenas aquilo que mais nos agrada ou apaixona; porém, o prazer que envolve tudo isso, infelizmente, ainda não foi descoberto por muitos. Meu cronograma estava pronto. Eu sabia de antemão todos os horários e locais das atividades que pretendia assistir naquela semana para aumentar meu repertório cultural. Por ora estava ansiosa, já que a programação estava tão boa quanto a leitura de um bom livro num dia frio. Porém, algo me entristeceu: muitas das atividades das quais eu gostaria de participar teriam choque de horários e eu teria que optar por apenas algumas. Então vamos começar da onde geralmente se começa: a primeira atividade daquela fria manhã de segunda-feira. Não poderia escolher tema melhor para assistir do que aquele que certamente aqueceria meu coração enquanto fazia tanto frio do lado de fora. Era um minicurso sobre meu eterno Fernando Pessoa, e me refiro como meu porque desde que o conheci sinto como se fizesse parte da minha história, já que sua poesia me acompanha há algum tempo e faz parte dos detalhes mais bonitos da minha trajetória. Olhares para Portugal I: Navegar é preciso, viver..., como resistir quando o título do evento já exala poesia por si só?Ao fim, não poderia ter chegado a diferente conclusão: o tom apaixonado com que Charles Berndt nos contou Portugal através de algumas obras canônicas da literatura portuguesa, entrando no incrível mundo de Luís de Camões, passando pela maravilhosa obra de Fernando Pessoa, nos instigando a descobrir mais sobre Miguel Torga e concluindo com o majestoso José Saramago, não poderia obter resultados melhores; certamente,conseguiu o que tanto almejou, pois nos fez sonhar Portugal. Após esse fascinante mergulho em uma pequena parte da história do país que descobriu o nosso, passamos para a abertura oficial da X Semana Acadêmica de Letras, que se deu por volta das 13h. Quem palestrou foi o professor Dr. Kanavillil Rajagopalan, vindo da Universidade de Campinas (SP), sob mediação do professor Dr. Fábio Lopes da Silva (UFSC). Com o tema Os Sussurros de Saussure, o professor Rajagopalan expôs um breve estudo feito a respeito das condições históricas que testemunharam algumas das ideias-chave que o mundo veio a associar ao nome do mestre genebrino e elegê-lo pai-fundador da Linguística. Logo em seguida tivemos o lançamento de livros organizados por alguns de nossos professores. Um deles, em especial, foi o que mais se destacou para mim: PETRIM: Escritos PET LETRAS UFSC, organizado pela professora Dra. Sandra Quarezemin, que se refere a um trabalho organizado a partir de reflexões do grupo de discentes do PETLetras da UFSC, com textos sobre literatura e linguística e uma sessão de contos e crônicas de 9 autores que participaram de uma Oficina de Criação Literária. Para finalizar a tarde das grandes aberturas, fomos presenteados com o Lançamento oficial do vídeo da música Anomalus de Romanelli / Pocket Show, considerada uma forma de manifesto de liberdade e uma denúncia da ditadura da normalidade: uma clara rejeição a todo tipo de discriminação seja ela de gênero, racial ou religiosa. O professor Dr. Sérgio Romanelli incorporou um de seus personagens

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

261

e levou o público ao delírio com sua performance no palco. Acredito que a dramatização realizada pelo artista e seus bailarinos, que acompanhavam o ritmo da música, tenha alcançado seu objetivo: fazer com que cada pessoa na plateia sentisse realmente a mensagem que tentavam passar. E agora, vamos ao relato do segundo dia da Semana de Letras – a terça-feira. A manhã já começou interessantíssima com a oficina Querido e Velho Jorge, organizada pela professora Dra. Tânia Oliveira Ramos e ministrada por sua orientanda Marina Siqueira Drey, que exerceu a função com maestria. Marina nos apresentou, com visível paixão, um pouco do projeto A Mala de Jorge Amado, que é um acervo, doado à professora Tânia no segundo semestre de 2011, contendo mais de 1400 páginas de, sobre ou contextualizando Jorge Amado no autoexílio em 1941 (Buenos Aires) e 1942 (Montevidéu), e que se encontra sob os cuidados da Universidade Federal de Santa Catarina. Pudemos conhecer alguns destes arquivos e perceber a vontade existente de, por meio deles, descobrir um pouco mais sobre essa etapa da vida de Jorge Amado enquanto esteve no exílio. Na tarde da terça-feira migramos da literatura para a linguística. Teríamos um encontro com a ilustríssima professora Dra. Eni Pulcinelli Orlandi (UNICAMP/ PPGCL – Univás), porém, por motivos de saúde, ela não pode viajar e comparecer em nosso evento, não nos prestigiando com sua fala rica em conhecimentos sobre a compreensão do digital na perspectiva da relação da linguagem com a sociedade. Na ausência da referida professora, o mediador da palestra, professor Dr. Pedro de Souza (UFSC), foi convidado a falar um pouco sobre seu maior objeto de estudo, que envolve a Teoria da Enunciação e Foucault. A quarta-feira tinha em seu cronograma um rico conteúdo em diversas áreas da nossa linguística e literatura, para o qual eu havia me programado participar; contudo, por problemas de saúde, tive que me ausentar de todas as atividades deste dia. Então passamos diretamente para outra manhã gelada que se deu na quinta-feira. Às 8h, no primeiro horário de atividades, já fomos contemplados com a mesa-redonda Perspectivas para a Pesquisa em Literatura Infantil e Juvenil, coordenada pelo professor Dr. Lincoln Paulo Fernandes (UFSC) e que teve a participação das professoras Dra. Eliane Debus (UFSC), Dra.Chirley Domingues (UFSC) e Ma. Cybelle Saffa (PPGI – doutoranda). As professoras nos apresentaram uma visão geral do que é fazer pesquisa direcionada para o estudo da literatura infantil e juvenil. Para isso, discutiram o encaminhamento dessa pesquisa no Brasil e em Portugal; discorreram sobre o acervo que possui o PNBE para a Educação Básica, e o papel da tradução nesta literatura. Ao ouvi-las, pudemos perceber ainda mais o quanto este tema é importante para nossa formação acadêmica, mas o quanto ainda se luta para esse estudo ganhar espaço na academia e nas escolas brasileiras. Afinal, a literatura, em sua grande parte, é o que move nossos sonhos, e aprendemos a sonhar quando somos ainda muito pequenos. Como já dizia Antonio Candido (2011), é necessário que a literatura seja vista como um direito básico do ser humano, pois a ficção atua no caráter e na formação dos sujeitos.

262

Ao fim desta mesa-redonda pude perceber que muitas outras pessoas compartilham dos mesmos pensamentos que tenho a respeito deste assunto, e saí com a certeza de que é importantíssimo lutar para que todas as crianças – as de hoje, as que virão e até mesmo as que já cresceram – mantenham (ou conquistem) o direito e o desejo de, às vezes, mergulhar no mar dos sonhos e da fantasia, nesse mundo em que nem sempre a realidade é o melhor lugar para se viver. Quinta-feira à tarde foi a vez da apaixonante mesa-redonda sobre Corpografias, onde tivemos a indescritível oportunidade de ouvir o mediador professor Dr. Stélio Furlan (UFSC), com sua fala apaixonada sobre poesia, ao mesmo tempo em que fomos agraciados com as falas da poetisa Telma Scherer (PGL/pós-doutoranda) e do poeta Dennis Radüns. Ao sair desta mesa-redonda concluí que viver sem poesia é viver sem sonhar e, retomando Antonio Candido, não há ser humano que viva sem alguma espécie de ficção, pois “[...] assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado” (CANDIDO, 2011, p. 176). Percebemos então que “se ninguém pode passar as vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura [...] parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito” (CANDIDO, 2011, p. 177). A literatura é, para ele, [...] o sonho acordado da civilização. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente (CANDIDO, 2011, p. 177).

E foi esta certeza que tive ao sair dos pensamentos nos quais me isolei ao ouvi-los falar. A poesia faz parte da literatura do mundo e não podemos viver sem ela. Após uma quinta-feira repleta de grandes inspirações, o que esperar da mera sexta-feira e último dia da X Semana de Letras? O tema do primeiro evento do dia já era um tanto quanto inusitado. Escolhi participar, às 8h, do minicurso O Diabo na Literatura Ocidental, ministrado pela professora Dra. Salma Ferraz (UFSC). Não sabia muito bem o que esperar do tema, mas confesso que saí, às 12h, depois de não desviar a atenção um minuto sequer da fala da professora, completamente fascinada. A Dra. Salma Ferraz pretendia com o minicurso nos apresentar uma visão geral sobre a criação do mito do Diabo no ocidente, e conseguiu fazê-lo com perfeição. Particularmente, fiquei encantada com a apresentação do livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, e A Igreja do Diabo, de Machado de Assis, ambos ainda desconhecidos por mim, porém já incluídos, agora, em minha lista de próximas leituras. A tarde da sexta-feira foi contemplada com a conferência de encerramento, que teve como tema Saussure é mesmo Estruturalista? Atualidades do Pensamento de

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

263

Ferdinand de Saussure, ministrada pelo professor Dr. Valdir do Nascimento Flores (UFRGS). Logo em seguida, para fechar com chave de ouro este grandioso evento organizado pelos departamentos de Língua e Literatura Vernáculas e Língua e Literatura Estrangeiras, tivemos a honra de assistir ao show do professor Dr. Marcos Antonio Rocha Baltar (UFSC) e da banda D’Accord. Posso afirmar que estar naquela apresentação e fazer parte daquela plateia, aquietou minh’alma e fez meu coração ouvir a voz; a voz que cantou poesia para nossos ouvidos. Ao fim da nossa X Semana de Letras tive a prova de que vale muito a pena participar, seja academicamente, seja pessoalmente. Além disso, o evento nos permite visitar diversas vertentes acerca do estudo sobre as línguas, a literatura e a linguagem. Temos a chance de transitar por caminhos nunca d’antes sonhados. Corremos um sério risco de nos apaixonarmos por assuntos pelos quais jamais imaginamos nos interessar. Embora haja muito mais a contar, finalizo este trabalho com um agradecimento especial a todos os envolvidos na organização desta maravilhosa Semana, pelo simples fato de ter conseguido aumentar ainda mais a minha paixão pelo mundo das Letras.

264

REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio. Direito à literatura. In: ______. Vários escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p 176-177. SEMANA ACADÊMICA DE LETRAS DA UFSC. 2016. Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2016.

O BIOBALANÇO DE UMA TRAJETÓRIA ACADÊMICA Silvana de Gaspari 1

Quando fui convidada a escrever este breve texto, para que integrasse o livro com os resultados da X Semana Acadêmica de Letras da UFSC, pensei: o que me leva a participar, pela sexta vez, da organização deste evento? E a resposta me foi imediata: acreditar ainda, depois de trinta e um anos de profissão, em uma universidade pública, gratuita e de qualidade. Acreditar que o verdadeiro fazer acadêmico se dá de dentro pra fora, se dá a partir de um coletivo, de um bem-estar que não se volta somente para o nosso próprio umbigo, mas se efetiva na relação com o outro, seja ele quem for dentro da hierarquia com a qual estamos acostumados a lidar nas instituições superiores de ensino. E ainda ouso dizer que seja esse o mesmo espírito que motiva praticamente todos os docentes e discentes envolvidos na organização e coordenação deste evento. Evento que, apesar de caseiro, no bom sentido do termo, tomou proporções de evento internacional, tendo até conseguido, em suas duas últimas edições, o reconhecimento e o financiamento da CAPES, instituição a qual estendo o meu agradecimento. Mas este reconhecimento não veio nem de graça e nem com facilidade! Desde sua primeira edição, a semana de letras sempre contou com organizadores que queriam mais, mais para todos e não apenas para o Lattes de cada dia. Queríamos mais para nossos estudantes, nossos docentes, nossos núcleos, nossas pós-graduações, nossos bolsistas, enfim, mais pra todos que ainda têm o sonho de ver um país crescer pela educação de seu povo. E digo isso porque, às vezes, me vejo como sobrevivente de uma época diferente de universidade, quando as conquistas verdadeiras eram as coletivas e se refletiam em mudanças de comportamento e de foco em relação ao mundo que nos cerca. Esse era o sonho, o desejo e a esperança de uma menina de 21 anos que, ao terminar o curso de Letras Português/Italiano, só tinha uma certeza: a de que seu diploma a faria conquistar o mundo. Não conquistei o mundo! Mas acredito que ganhei coisa maior, já que, com cada atitude minha, estou buscando tornar o mundo um lugar um pouco melhor. Por isso, tento ajudar na formação de profissionais cada vez mais conscientes, para que se tornem pessoas cada vez melhores. O sucesso vem com o prazer de fazermos o que gostamos e o que amamos.

1

Graduada em Letras Português/Italiano pela UNESP – Araraquara, mestre em Literatura Italiana pela Universidade de São Paulo e doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina. Sua dissertação de mestrado tem como tema central o verismo italiano, com enfoque nos autores Giovanni Verga e Luigi Capuana, e sua tese de doutorado versa sobre a Divina Comédia e sua relação com dois textos apócrifos: Enoque e Isaías. Desde 1992 é professora do Curso de Letras Italiano da Universidade Federal de Santa Catarina e desde 2010 participa da Comissão Permanente de Organização da Semana Acadêmica de Letras – UFSC. E-mail: [email protected].

266

Mas, e o que o Curso de Letras tem a ver com isso? Fazer português pra quê? Pra ser professor? E língua estrangeira? Que, às vezes, nem pra isso serve? Fazer Letras para “ler” e “interpretar” o mundo. Fazer Letras pra poder falar, escrever, pensar um mundo além daquele que desejam que a gente veja, aceite, engula! Nossos alunos e nossos docentes têm o dever de cumprir o juramento: “Consciente de minha responsabilidade como profissional de Letras, comprometo-me a exercer minhas atividades com dignidade, contribuindo para a cidadania, disseminação do conhecimento e promoção da cultura. Juro!” E é por acreditar nesse juramento que, chegar à realização da X Semana Acadêmica de Letras, foi para mim uma satisfação. Para alguns, isso pode parecer pouco, porém, me é um privilégio. Ainda mais pra quem, como eu, tem por objeto de pesquisa a Divina Comédia, de Dante Alighieri, autor que vê no número 10 o símbolo da perfeição, segundo as ideias de seu tempo. Número perfeito, redondo e, se pensarmos nas gerações que se sucedem, marca de transformação. Subimos hoje ao patamar de estarmos editando nosso terceiro livro! E isso só se deve ao trabalho e, por que não, carinho e dedicação de todos que se envolvem na organização desta semana. Timidamente, já temos inclusive a participação das Libras. E queremos que esta parceria aumente cada vez mais! Aqui, agora, paro e reflito: talvez este texto devesse ser mais teórico, mais pomposo, mais cheio de citações de nomes ilustres. Mas opto por quebrar a regra e agradeço e reverencio os ilustres, praticamente anônimos, que integram a comissão organizadora e a monitoria de nosso evento. Talvez, também, só eu e alguns outros olhares percebam e enxerguem o caráter inclusivo e generoso de nossa comissão. Temos problemas? Muitos! Temos falhas? Um monte! Mas temos vontade de acertar e de tirar os olhos de nós mesmos, olhar adiante, e sermos contemporâneos da maneira como nos coloca Agamben (2009, p. 59): A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.

Aproximar-me do presente, tendo os olhos no porvir. Esta ‘cegueira’ só é possível se reconhecermos que temos uma trajetória e que esta nos transforma a todo instante. Por isso, o que mais me motiva em minha escolha, ao participar da construção deste evento, é o caráter que ele tem e que me alimenta, em termos ideológicos, quando penso no que deva realmente ser o trabalho dentro de nossas universidades brasileiras: trabalhar de dentro pra fora, colocar, sempre que possível, nossos desejos individuais em segundo plano, entendendo que, no futuro, nossa semente, plantada hoje, germinará.

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

267

Entregar este livro a vocês é mais do que somente uma realização pessoal, uma entrada a mais no Lattes. É, para quem se dedicou pra que ele existisse, a certeza de que a cegueira de hoje nos trará a luz de amanhã. Neste momento, um conceito me vem à mente com muita força e me faz pensar na Semana Acadêmica de Letras como uma coleção. Para Marcelo Abreu (2001): Uma coleção é, partindo de uma proposição genérica, um conjunto de objetos acumulados com uma função específica: garantir a comunicabilidade do visível, aquilo que se vê e se realiza no mundo real, e o invisível, aquilo que não se vê e se encontra fora do mundo sensível imediato, mas existe em um mundo ideal. Nesse sentido, o invisível pode ser o universo do sagrado, habitado pelas divindades ou pelos mortos, ou lugares longínquos no espaço, outras terras, ou no tempo, o passado. Essa função das coleções é, segundo Pomian, universal, isto é, ultrapassa todas as classes de objetos acumulados nas mais diferentes sociedades e temporalidades e todos os tipos de relação que se constituem entre os objetos de coleção e seus destinatários, aqueles que os veem. A exposição ao olhar é, aliás, um dos critérios fundamentais para definir as coleções. Existem ainda outras condições que permitem afirmar que um conjunto de objetos constitui uma coleção. A primeira é que esses objetos acumulados devem estar fora do circuito das atividades econômicas, isto é, destituídos de seu valor de uso, de sua utilidade original. As outras condições dizem respeito ao lugar onde se acumulam e à proteção dos objetos de coleção. As coleções se acumulam em lugares fechados preparados para a exposição ao olhar e são protegidas a fim de que se garanta a sua exclusão do circuito das atividades econômicas.

Caraca! É isso aí! Os objetos acumulados aqui são textos, pedaços de textos, traduções, recriações de autores, inseridos em uma linha de tempo, tentando se comunicar entre si. São objetos olhados pelo colecionador que os reconstrói pelo meio. Essa construção se unirá a algo já construído e, geralmente, sacramentado por alguém que “alguém” já elegeu maior do que nós. É assim que nós tentamos pensar a construção do saber que se faz a partir de nosso evento: nossa coleção é inspirada, norteada, orientada a partir do meio, entendendo que o saber que se constrói aqui parte do meio e não se identifica como ponto de partida e nem de chegada. Buscamos pensar pelo meio, sem as amarras propostas, supostas e sobrepostas pelo que veio antes ou pelo que virá depois. E, assim, pensando no saber que se faz e se refaz a cada instante, nossa coleção foi construída. Nela couberam os sussurros de Saussure, as dúvidas quanto ao verdadeiro ‘pai’ do estruturalismo, textos que envolvem literatura e escola, literatura e teatro, alfabetização, reflexões sobre o mito, os clássicos, a neurolinguística, a autobiografia, formação e atuação de professores, a famigerada gramática, legendagem, as tantas literaturas estrangeiras, a memória, ensino de língua estrangeira, literatura oral, o pós-estruturalismo e a literatura, Foucault, a sexualidade, políticas linguísticas, a aquisição da segunda língua, identidade, tradução, gêneros literários,

268

a educação básica, poesia, crítica ficção. Saberes que se evidenciam e se tocam a partir de um mesmo desejo: abrir nossos olhares para um mundo que se apresenta a nós diferente a cada dia. Aqui, concluo esta breve reflexão. Mas não o meu desejo de que nosso trabalho continue e se estabeleça como meio! Sem a pretensão de ser partida ou chegada pra nada. Mas sim de ser movimento, transição, passagem! Escrevi uma vez um texto no qual falava sobre Décio Pignatari e aqui me arrisco a retomar uma parte dele e que, naquele momento, me fez muito sentido ao concluir minhas intenções: “A verdadeira coleção, segundo Pignatari, é a que brota dos fragmentos da vida, dos recortes de nossa memória, dos nossos arquivos biográficos: biobalanço. Necessidade continua de criar e recriar para além do que está cristalizado e sedimentado – liberdade criadora.” (GASPARI, 2014, p. 195). Que venha a nós a liberdade criadora! Que nos ilumine a vida e a memória que brotam de nossas experiências e frutificam para além de nossas individualidades!

ESTRUTURALISMOS, PÓS-ESTRUTURALISMOS & OUTRAS DISCUSSÕES: a X Semana Acadêmica de Letras da UFSC

269

REFERÊNCIAS ABREU, Marcelo. Imaginária Urbana e identidade da cidade. Primeiros escritos. Coleção Urbana, n. 7. LABHOI l PPGH-UFF/SME, Angra dos Reis, jul. 2001. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2014. AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo. Tradução de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. GASPARI, Silvana de. A coleção literária de Décio Pignatari em Retratos do amor quando jovem: Dante, Goethe, Shakespeare e Sheridan”. In: PETERLE, Patricia; SANTURBANO, Andrea; BARBOSA, Maria Aparecida. (Org.). Coleções literárias. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, p. 187-195.

SOBRE OS ORGANIZADORES Atilio Butturi Junior

Possui mestrado e doutorado em Linguística pela Universidade e pós-doutorado em Linguística pelo IEL/UNICAMP, sob supervisão do professor Kanavillil Rajagopalan (2015). Atualmente, é professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina e atua, como docente permanente, em dois programas de Pós-Graduação: Linguística (UFSC) e Interdisciplinar em Ciências Humanas (UFFS). É editor-chefe da revista Fórum Linguístico e desenvolve pesquisas na áreas de Análise do Discurso, Filosofia da Linguagem e Teorias de Gênero e Sexualidade, pautadas nas discussões pós-estruturalistas.

Donesca Cristina Puntel Xhafaj

Mestre e Doutora em Letras/Inglês e Literatura Correspondente na Universidade Federal de Santa Catarina, universidade onde atua como professora Adjunta. Pertence ao Grupo de Pesquisa AQUILES: Aquisição de Inglês como Língua Estrangeira: Questões teóricas, pedagógicas e de metodologia de pesquisa e, no momento, seus interesses principais de pesquisa são consciência metalinguística, aprendizagem colaborativa, produção oral em segunda língua, a abordagem de ensino baseada em tarefas, e diferenças individuais de aprendizes de uma segunda língua.

Leandra Cristina de Oliveira

Professora do Departamento de Língua e Literatura Estrangeira (DLLE/UFSC) e do Programa de Pós-graduação em Linguística (PPGLing/UFSC), com mestrado e doutorado nesse Programa. Atua no ensino de Espanhol (LE) e de Linguística, e em pesquisas de Espanhol e Português como LE/L2.

Noêmia Guimarães Soares

Mestre e Doutora em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); é professora adjunta da UFSC junto ao Departamento de Língua e Literatura Estrangeira (DLLE). Suas pesquisas estão nas áreas de Ensino de Francês (LE) e na interface entre Psicolinguística e Tradução e, mais recentemente, entre Tradução e Ensino de LE e Tradução e Crítica Genética.

Rosângela Pedralli

Mestre e Doutora em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, docente colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC, docente permanente no PROFLETRAS/UFSC e coordenadora adjunta de Linguagem do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Tem interesse por ensino e aprendizagem de língua materna em diferentes níveis de escolarização e cultura escrita em processos de escolarização, filiando-se à base histórico-cultural.

SOBRE O LIVRO Tiragem: 250 [Não comercializado] Formato: 16 x 23 cm Mancha: 12 x 19 cm Tipologia: Times New Roman 10,5/12/16/18 Arial 7,5/8/9 Papel: Offset 90 g (miolo) Royal Supremo 250 g (capa)

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.