Português Indígena: novas reflexões

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Português Indígena: novas reflexões Rogério Vicente Ferreira Rosane de Sá Amado Beatriz Protti Cristino (Orgs.).

2014

Apresentação Português Indígena: novas reflexões é composto por oito capítulos e fora organizado por professores com vasta experiência de trabalho com povos indígenas brasileiros e suas diferentes línguas. Ao longo de seus capítulos, o livro apresenta trabalhos desenvolvidos por professores de universidades públicas brasileiras, doutorandos e mestrandos em linguística, todos voltados para a descrição, análise e exposição de peculiaridades oriundas do contato entre a língua portuguesa falada pela sociedade majoritária com os Dâw, Kaiowá, Akwe)-Xerente, Parkatêjê, Terena, além de reflexões acerca de ações do professor de língua portuguesa como língua adicional em escolas indígenas, bem como de uma situação em que a língua indígena é aprendida como segunda língua a partir da língua portuguesa. O primeiro capítulo de autoria do Prof. Dr. Valteir Martins, da Universidade do Estado do Amazonas, A Inserção do Português no Discurso dos Dâw: um estudo sobre as influências linguísticas das relações de contato entre português e dâw analisa, numa perspectiva sociolinguística, as relações de contato entre a língua indígena Dâw e o português, identificando a inserção da língua portuguesa no discurso dos Dâw. O Português como Segunda Língua dos Dâw: um estudo entre a oralidade e a escrita padrão da escola da Prof. Dra. Silvana Andrade Martins, da Universidade do Estado do Amazonas, compõe o segundo capítulo do livro e apresenta uma análise da língua portuguesa empregada pelos Dâw como segunda língua, focalizando, em particular, os jovens escolarizados da faixa etária de 14 a 25 anos. A autora delimitou esse enfoque na expressão oral e escrita, centrando em aspectos da produção textual, da gramática e da ortografia, os quais são indicadores de conhecimento da escrita padrão escolar. A Profa. Dra. Valéria Faria Cardoso Carvalho, compondo o terceiro capítulo do livro em O Português de contato dos Kaiowá (Guarani), apresenta uma breve descrição do português de contato falado por índios kaiowá/guarani, o qual, devido à situação de contato linguístico, tem características tanto da variedade do português do Brasil quanto da língua kaiowá (guarani), línguas tipologicamente distintas. Rodrigo Mesquita, pesquisador da Universidade Federal de Goiás, esboça os Aspectos gramaticais do code-switching em akwe) xerente – português. Neste artigo, o autor investiga os aspectos gramaticais de code-switching (doravante CS) na fala oral

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dos akwe) xerente, envolvendo as línguas xerente (Jê) e portuguesa. Para tanto, o modelo MLF – Matrix Language Frame Model (Myers-Scotton 1993a, 2002) dá o suporte teórico, buscando entender o papel das línguas envolvidas no discurso bilíngue xerente, considerando o comportamento de CS como um processo essencialmente criativo (Gardner-Chloros 2009b) e não arbitrário. O quinto capítulo, de autoria do Prof. Dr. Antonio Almir Silva Gomes da Universidade Federal do Amapá, intitulado O ensino (argumentativo) de PLA nas escolas indígenas do estado do Amapá e norte do Pará discute o contraste da realidade atual do ensino de português identificado nas escolas indígenas do estado brasileiro do Amapá e no norte do estado do Pará com modelos mais recentes de ensino voltados ao trabalho com o texto, compreendido como fonte de aprendizagens (linguísticas e informacionais). Para isso, o autor argumenta em favor do estabelecimento de propostas claras para o uso do texto na sala de aula indígena que vão além do planejamento de um conjunto de questões a serem usadas como ferramentas de ensino e favorecem, sobretudo, a comunicação na língua alvo. Ocorrências e Recorrências de Alternância de Código entre Parkatêjê e Português de autoria Profa. Dra. Marília Ferreira da Universidade Federal do Pará e da pesquisadora Cinthia Neves, da mesma instituição, apresenta os principais tipos de alternância encontrados em narrativas orais tradicionais do povo indígena Parkatêjê, apontando sua recorrência nas sentenças, sugerindo que é possível prever onde é mais provável que ocorra alternância e também onde não ocorrerá. José Amorim da Silva, pesquisador da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, o Prof. Dr. Rogério Vicente Ferreira e a Profa. Ms. Caroline Pereira de Oliveira, ambos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, apresentam o sétimo texto do livro Uma reflexão sobre referenciação em textos escritos em língua portuguesa por alunos indígenas da comunidade terena de Miranda – MS. Este artigo visa discutir, sob o aporte da Linguística Textual, questões sobre processos de referenciação utilizados em textos escritos em língua portuguesa (L2) por alunos de 8º e 9º anos (ensino fundamental) e também do ensino médio da comunidade terena de Miranda (MS), especificamente sobre estratégias de substituição do referente por elementos gramaticais e lexicais, por meio de processos linguísticos de coerência e coesão textuais. Patrícia Regina Vannetti Veiga, pesquisadora do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, discute em Uma breve reflexão da

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aquisição da língua ancestral como segunda língua: entre as falas em português e guarani a aquisição de uma segunda língua em um caso muito especial; uma criança Mbyá de quatro anos, que fala o português como primeira língua, mas agora está aprendendo a sua língua ancestral, o Guarani-Mbyá, língua da família linguística TupiGuarani. Consideramos que a leitura desta obra proporciona a seus leitores uma vasta noção da complexidade e diversidade que os estudos do português falado por populações indígenas brasileiras requer, bem como proporciona para a comunidade linguística geral, assim como para os pesquisadores de línguas ameríndias uma vez que sabe-se da intensa relação sociolinguística estabelecida entre a sociedade majoritária e as minorias étnicas e suas línguas. Este livro apresenta textos inéditos acerca de um assunto ainda pouco discutido no âmbito da linguística indígena e dos estudos vinculados à língua portuguesa. A constituição da língua portuguesa no Brasil, diante de tamanha diversidade linguística, já foi tratada anteriormente em diversos trabalhos, mas a língua portuguesa falada por parte desta diversidade ainda é algo que merece maior atenção por parte de pesquisadores e estudiosos da linguagem.

Caroline Pereira de Oliveira Professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Campo Grande (MS), maio de 2014

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SUMÁRIO A INSERÇÃO DO PORTUGUÊS NO DISCURSO DOS DÂW: UM ESTUDO SOBRE AS INFLUÊNCIAS LINGUÍSTICAS DAS RELAÇÕES DE CONTATO ENTRE PORTUGÊS E DÂW Valteir Martins pg.06 O PORTUGUÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA DOS DÂW: UM ESTUDO ENTRE A ORALIDADE E A ESCRITA PADRÃO DA ESCOLA Silvana Andrade Martins pg.14 O PORTUGUÊS DE CONTATO DOS KAIOWÁ (GUARANI) Valéria Faria Cardoso-Carvalho pg. 29 ASPECTOS GRAMATICAIS DO CODE-SWITCHING EM AKWẼ XERENTE – PORTUGUÊS Rodrigo Mesquita pg. 52 O ENSINO (ARGUMENTATIVO) DE PLA NAS ESCOLAS INDÍGENAS DO ESTADO DO AMAPÁ E NORTE DO PARÁ Antonio Almir Silva Gomes pg. 72 OCORRÊNCIAS E RECORRÊNCIAS DE ALTERNÂNCIA DE CÓDIGO ENTRE PARKATÊJÊ E PORTUGUÊS Marília Ferreira; Cinthia Neves pg. 93 UMA REFLEXÃO SOBRE REFERENCIAÇÃO EM TEXTOS ESCRITOS EM LÍNGUA PORTUGUESA POR ALUNOS INDÍGENAS DA COMUNIDADE TERENA DE MIRANDA – MS José Amorim da Silva; Rogério Vicente Ferreira; Caroline Pereira de Oliveira pg. 116 UMA BREVE REFLEXÃO DA AQUISIÇÃO DA LÍNGUA ANCESTRAL COMO SEGUNDA LÍNGUA: ENTRE AS FALAS EM PORTUGUÊS E GUARANI Patrícia Regina Vannetti Veiga pg. 130

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A INSERÇÃO DO PORTUGUÊS NO DISCURSO DOS DÂW: UM ESTUDO SOBRE AS INFLUÊNCIAS LINGUÍSTICAS DAS RELAÇÕES DE CONTATO ENTRE PORTUGÊS E DÂW Valteir Martins1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A etnia Dâw é composta por uma população de 126 pessoas. A língua Dâw pertence à família linguística Maku Oriental (Martins, V. 2005). Conforme a tradição, os Dâw são seminômades e se deslocaram gradativamente da região do Japurá em direção à cidade de São Gabriel da Cachoeira, Noroeste do Amazonas. Nesta área, vivem há aproximadamente 50 anos e, nos meados da década de 80, os Dâw fixaram moradia à margem esquerda do rio Negro, em frente à cidade de São Gabriel. Este local onde moram até hoje é conhecido como Waruá. A cidade de São Gabriel conta com uma população em que 95% são de origem indígena e falam 22 línguas, sendo que três delas, TuKano, Baniwa e Nheengatu são consideradas cooficiais, juntamente com a língua portuguesa. Nesse contexto multilíngue, os Dâw têm sua língua étnica como primeira língua e o português como segunda língua da maioria deles. Especialmente aqueles que estão acima de 50 anos sabem o Nheengatu e utilizam essa língua nos contatos intertribais. Nas últimas três décadas, vem sendo constatado um crescimento do conhecimento da língua portuguesa entre os Dâw, devido à intensificação do contato com os falantes desta língua estrangeira e e à diversificação de atividades cotidianas que possibilitam a prática do português como segunda língua. Além desses fatos, boa parte dos jovens Dâw, ao concluírem o ensino fundamental em sua comunidade, vai cursar o ensino médio em São Gabriel da Cachoeira, onde o português é a língua utilizada. Também, três jovens Dâw se alistaram no Exército Brasileiro e passaram oito anos em serviço militar. Esse contato mais intenso proporcionou a eles falar um português com um sotaque semelhante ao regional.

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Professor do programa de pós-graduação da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). E-mail: .

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Considerando o exposto, observa-se que os Dâw, ao falarem em sua língua materna, principalmente os mais jovens, inserem palavras e frases inteiras do português em seu discurso. Assim sendo, esse trabalho se propõe a descrever os processos de empréstimos de palavras da Língua Portuguesa no sistema linguístico Dâw. Aponta-se para uma diferença entre os mecanismos fonológicos utilizados nos empréstimos feitos há mais de trinta anos, quando o conhecimento da língua portuguesa pelos Dâw era menor, para os recentes, em que se detecta a intensificação do contato dos Dâw com a língua nacional. Para a descrição dos processos de empréstimos atuais, compuseram o corpus dois livros didáticos na língua Dâw, elaborados em 2006 (Mêe Lêer Sã’ãa, “Vamos Aprender a Ler”) e 2007 (Mêe Lêr Sã’ãa Dâw nõor, “Vamos aprender a Ler na Língua do Dâw). Esse material foi elaborado pelo Dâw conhecido como wiij, cujo nome em português é Roberto Carlos Fernandes Sanches e por Rosani Mendes, pedagoga, não indígena que convive com os Dâw e lhes presta serviço voluntário nas áreas da saúde e educação, principalmente. Wig é funcionário da prefeitura de São Gabriel da Cachoeira e atua como professor da língua Dâw na escola da comunidade.

ANÁLISE DA INSERÇÃO DE EMPRÉSTIMOS ANTIGOS Nessa unidade, retoma-se a análise feita por S. Martins & V. Martins (2012) sobre os mecanismos de empréstimos em Dâw. Os autores explicam esses procedimentos de nativização de palavras do português no léxico do Dâw, tendo como base a teoria da fonologia dos empréstimos, segundo o modelo de análise-por-síntese, proposto por Calabrese (2006)2. Descrevem o sistema de empréstimos do Dâw, no qual se determina que uma sequência de sons não familiares a um determinado ouvinte não pode ser produzida, nem identificada por esse ouvinte, pois ela não existe em sua gramática internalizada. Logo, a percepção acústica deste enunciado envolve a construção de uma representação mental na língua nativa do ouvinte, a qual assim se processa: (a) sons linguísticos e configurações não familiares do enunciado estrangeiro são bloqueados pelas informações de marcas ativas internalizadas pelo 2

Este modelo apresenta uma modificação do modelo de análise-por-síntese de reconhecimento da fala proposto por Halle e Stevens (1962) e adotado por Mattingly e Liberman, em sua teoria motora de percepção da fala (1985; 1989); (Cf. Calabrese 2006: 14-20).

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ouvinte (não há instrução para produção nem identificação do sinal acústico); (b) o sinal acústico deve ser ajustado para ser identificado e esse ajustamento é obtido por reparações feitas segundo os sinais sintetizados na gramática internalizada do ouvinte: componentes fonéticos, fonológicos, morfológicos e sintáticos; (c) o ouvinte seleciona e a aceita a forma que lhe pareça ser a melhor adaptação para o enunciado estrangeiro; (d) essa saída perceptual se torna parte da memória permanente do ouvinte e, portanto, pode ser usada na produção; (e) uma vez que essa representação perceptual é adaptada e estocada na memória permanente, pode ser produzida novamente e então adotada por outros membros da comunidade de fala do ouvinte original; (f) os reparos selecionados tornam-se um modo estabelecido para nativizar palavras estrangeiras em um determinado grupo linguístico. Portanto, é segundo esses pressupostos, que os autores supracitados analisaram a fonologia dos empréstimos de Dâw, investigando o modo estabelecido pelos Dâw para nativizar palavras do português. Os empréstimos são “itens lexicais incorporados ao sistema nativo com a finalidade de ampliar o léxico, e que podem ser usados pelos monolíngues” (Paradis, 1996). Esses itens lexicais ao serem emprestados devem passar pelo filtro fonológico da língua receptora, sofrendo os devidos ajustes com a finalidade de se nativizarem. Em Dâw, os empréstimos do português que se integram ao léxico há mais de trinta anos passaram por reparações de sons e configurações do que era ilícito, não usual, em referência às palavras da língua receptora. Esses filtros são estabelecidos pela comunidade linguística, ao importar o empréstimo em seu léxico. Esses

procedimentos

de

reparação

fonológica

envolvem

segmentos,

suprassegmentos, estrutura da sílaba e da palavra. As regras fonotáticas de palavra bemformada em Dâw servem como parâmetro para a nativização. As operações de reparações fonológicas acionadas pelos Dâw para nativizar os empréstimos do Português em sua língua são sintetizadas, conforme apresentadas pelos autores supracitados:

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(a) os sons ilícitos (consoantes e vogais) do Português para Dâw são adaptadas; (b) a sílaba tônica da palavra da língua doadora constitui a base do empréstimo; (c) o ataque da sílaba pós-tônica do Português é silabificado como coda em Dâw; (d) as regras fonotáticas de Dâw relativas aos padrões silábicos, número de sílabas por (e) palavra, atribuição do acento e tom são implementadas. Por adaptação de sons ilícitos, entende-se que aqueles sons de palavras da língua doadora que são inexistentes na língua receptora. Por isso, precisam ser substituídos por sons foneticamente semelhantes, pois pelo fato de terem uma configuração ilícita na língua receptora, não podem ser identificados pelos falantes/ouvintes desta língua, por não existirem em suas estruturas cognitivas uma representação mental da percepção destes sons. Logo, para construir esta representação mental, os falantes/ouvintes da língua receptora acionam operações de reparações com a finalidade de ajustarem os traços de configuração dos sons ilícitos, tornando-os assim familiares às suas representações mentais de percepção e produção. Entre os sons do Português que são ilícitos em relação ao inventário de Dâw constam somente consoantes. São elas: [t,d,z,,s,f,v,,]. Esses sons são reparados, estabelecendo-se as seguintes correlações: a) A africada palatal surda [t] se adapta ao som mais próximo da língua Dâw que é a oclusiva palatal ejetiva /c/. Exemplos: (1). Tinta (2). Altina

> [cin’] > [cin]

[tita] [awtina]

b) A africada palatal sonora [d] se adapta ao som mais próximo da língua Dâw que é a oclusiva palatal sonora //. Exemplos: (3). balde (4). Índio

[badi] [idj]

> [ba] >[i]

c) A fricativa alveolar sonora /z/ se adapta ao som mais próximo da língua Dâw que é a oclusiva palatal sonora //. Exemplos:

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(5). Zeca (6). Zinco

[zka] [zi.k]

> [ek] > [i]

d) A fricativa palatal sonora // se adapta ao som mais próximo da língua Dâw que é a oclusiva palatal sonora //. Exemplos: (7). Gelo [el] > [el] (8). João [oaw] > [aw] e) A fricativa bilabial sonora /v/ se adapta ao som mais próximo da língua Dâw que é a oclusiva bilabial sonora /b/. Exemplos: (9). Vela (10). Chave

[vla] [avi]

>[bel] > [ab]

f) A fricativa bilabial surda /f/ se adapta ao som mais próximo da língua Dâw que é a oclusiva bilabial sonora /p/. Exemplos: (11) forno (12) fita

> [podn] > [pit]

[fohno] [fita]

g) A fricativa alveolar surda /s/ se adapta ao som mais próximo da língua Dâw que é a fricativa palatal surda //. Exemplos: (13) bolsa [bowsa] > [bu] (14) cem [sj] > [j] h) A lateral palatal sonora // se adapta ao som mais próximo da língua Dâw que é a lateral alveolar sonora /l/. Exemplos: (15) Telha (16) Célio

[tea] sjo]

> [tel] > [el]

i) A vibrante simples sonora // se adapta ao som mais próximo da língua Dâw que é a lateral alveolar sonora /l/. Exemplos: [na.za] > [l] (17) Nazaré (18) dinheiro [diej] > [jl] j) A oclusiva velar surda /k/ se adapta ao som mais próximo da língua Dâw que é a fricativa velar surda /x/. Essa adaptação se dá pelo fato de a oclusiva surda se realizar

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como ejetiva [k’]. Por não ter a ejetivação, o som mais próximo é a fricativa do mesmo ponto e sonoridade. (19) (20) (21) (22) (23)

caixa [kaja] cama [kama] campo [kap] caixa [kaja] café [kaf]

[xa] [xam] [xam] [xa] [xape]

> > > > >

Os exemplos de 01 a 23 mostram que as palavras emprestadas sofrem as adaptações para se ajustarem ao sistema fonológico da língua, tais como: as palavras emprestadas têm somente sons existentes na fonologia Dâw; as palavras passam a ter somente uma sílaba e com tons; palavras terminam em consoante ou vogal longa. Desta forma, os empréstimos adquirem todas as características das palavras nativas, de modo que os futuros aprendizes da língua receptora não as identificarão como sendo de origem estrangeira. ANÁLISE DA INSERÇÃO DE EMPRÉSTIMOS RECENTES Os empréstimos recentes que integram o léxico de Dâw não obedecem às regras de nativização usadas para tornar as palavras estrangeiras iguais às nativas. Os dados 24 a 36 comprovam que as palavras emprestadas não passam por um filtro rigoroso de adaptação. Não são feitas todas as adaptações previstas de sons ilícitos, de conformidade com o que ocorre com os empréstimos antigos; nem sempre são adaptadas como palavra monossilábica, o que é uma característica do léxico Dâw; e habitualmente as palavras não ganham tons. Como exemplos de empréstimos recentes, os quais inovam nos procedimentos de integração ao léxico da língua nativa, dispõem-se os dados 24 a 36, que são palavras extraídas dos dois livros didáticos de ensino e práticas da Língua Dâw, elaborados pelo Roberto Sanches, professor Dâw, e Rosani Mendes (2006; 2007). Os exemplos estão escritos ortograficamente. (24) (25) (26) (27) (28) (29)

desenho ditado palavra Lenita escola vogal

> > > > > >

dêsẽnh ditad palaab lenit eskol wôgaw

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(30) (31) (32) (33) (34) (35) (36)

aluno tinta galeto consoante doutor malária glotal

> > > > > > >

aluũn tintay galêt kõsôwãt dutuul malal glôtaw

Constata-se que essas palavras não foram ajustadas à estrutura monossilábica do léxico Dâw, que é uma característica dessa língua. Há dissílabos na língua, mas esses são minoria e, preferencialmente, possuem vogais idênticas; os trissílabos são raros e, em geral, são empréstimos. No entanto, ao examinar esses empréstimos em que a estrutura dissilábica foi a maioria, verifica-se que foi mantido um ajuste característico em Dâw, que é a redução silábica em todas as palavras emprestadas. E, no exemplo 34, as vogais das duas sílabas da palavra foram adaptadas como homogêneas. A preferência de Dâw por sílabas finais travadas foi ativada na adaptação dos empréstimos e o ajuste da sílaba final não pesada que é uma estratégia da fonotática de Dâw foi também realizado, como nos exemplos 31 e 36. O som de // que não existe em Dâw foi bloqueado tanto no início de sílabas como em sílabas complexas, como nos exemplos 35 e 26, respectivamente, sendo adaptado pelo som foneticamente semelhante, a lateral alveolar /l/. CONSIDERAÇÕES FINAIS As mudanças nas regras de nativização de empréstimos do português em Dâw são motivadas pelo grande envolvimento dos Dâw com o ambiente de uso do português, como a escola bilíngue da comunidade, escolas de São Gabriel, alistamento militar, cursos de agente de saúde, magistério indígena, atividades esportivas, religiosas, programas de rádio e televisão, etc., o que tem aumentado a fluência, sobretudo dos jovens, na língua portuguesa. Na esteira dos pressupostos da teoria análise-por-síntese, em que o falante/ouvinte adapta a palavra da língua doadora segundo seus padrões de estruturais mentais, por não existirem em sua gramática internalizada, pode-se dizer que o domínio maior da língua portuguesa permite aos jovens Dâw ter o quadro fonológico mental das duas línguas, o que parece dispensar certos ajustes e manter outros, que devem ser mais

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pertinentes no plano das operações mentais de reconhecimento de palavras nativizadas. Esses processos inovadores devem ser alvos de investigação em futuras pesquisas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALABRESE, Andréa (2006). The Current Major Models of Loanword Phonology. An analysis-by-synthesis model of loanword phonology. In: Workshop Loan Phonology. Moderator Leo Wetzels. Vrije Universiteit Amsterdam. MARTINS, Silvana Andrade; MARTINS, Valteir (2012). Nativização de empréstimos do português do Brasil na língua indígena Dâw. III SIMELP. A formação de novas gerações de falantes de português no mundo. Macau, China: Universidade de Macau. MARTINS, Valteir (2005). Reconstrução Fonológica do protomaku oriental. Utrech, Holanda: LOT. PARADIS, Carole (1996). The inadequacy of filters and faithfulness in loanword adaptation. In Current Trends in Phonology: Models and Methods, edited by Jacques Durand and Bernard Laks. 509-534. SANCHES, Roberto Carlos e MENDES, Rosani. Mêe Lêer Sã’ã Dâw Nõor. São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, 2006. (mimeo) ________. Mêe Lêer Sã’ã. São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, 2007. (mimeo)

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O PORTUGUÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA DOS DÂW: UM ESTUDO ENTRE A ORALIDADE E A ESCRITA PADRÃO DA ESCOLA Silvana Andrade Martins1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS O nome Dâw é empregado como autodenominação de uma etnia minoritária e significa ‘gente de verdade’. A língua étnica deste povo pertence à família linguística Maku. Eles vivem na região do Alto Rio Negro, nas proximidades de São Gabriel da Cachoeira, uma cidade do estado do Amazonas, Brasil, que dista de sua capital 1.601 Km, a Noroeste, pelo rio Negro. Sua população soma 126 pessoas, sem contar cerca de seis agregados ao grupo por laços de casamento, os quais são das etnias Tukano, Hupda e não indígena. Desde os anos 80, os Dâw têm se concentrado em uma extensão de terra em frente à cidade de São Gabriel, formando uma comunidade conhecida como Waruá, cujo nome significa “espelho”, em Nheengatu. Essa denominação foi dada devido a uma enorme pedra que há no porto principal da comunidade, a qual possui um formato hexagonal. Tradicionalmente, são “seminômades, coletores e caçadores, habitantes do interior das selvas, das áreas de igarapés; viviam no igarapé Wiç, afluente do Weni e subafluente do rio Mariê, no médio rio Negro” (Martins S. A. 2004: 3). Segundo eles contam, por causa de ataques constantes de outros povos indígenas, foram se deslocando, fugindo dessa área periculosa em direção ao alto rio Negro até chegarem à área urbana de São Gabriel da Cachoeira. Ali vivem há mais ou menos 100 anos. Essa região é um verdadeiro mosaico linguístico. É uma das áreas mais plurilíngues e pluriculturais do mundo. Nesse perímetro municipal, são faladas 22 línguas indígenas, de quatro troncos linguísticos diferentes (Tupi-Guarani, Tukano Oriental, Maku e Aruak). Ao lado do português, as línguas Baniwa, Tukano e Nheengatu são consideradas cooficiais, de acordo com a lei 145/2002, aprovada no dia 22/11/2002. Esse contexto sociocultural e linguístico é tradicionalmente estratificado e os grupos Maku, como é o caso dos Dâw, ocupam a base dessa pirâmide social. Na

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Professora da Universidade Estadual do Amazonas.

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perspectiva histórica, aos Dâw não era facultado o casamento com povos de outras etnias e eram considerados como servos dos demais. Para se comunicarem com falantes de outras línguas indígenas, caboclos, portugueses e nordestinos que por ali chegaram, utilizavam o Nheengatu, ou língua geral, e, aos poucos, foram aprendendo a língua portuguesa. Até os anos 80, o conhecimento da língua nacional estava mais restrito aos jovens, do sexo masculino. As crianças e as mulheres, de modo geral, não falavam o português ou tinham um conhecimento muito básico, restrito a algumas palavras e frases simples. O contato dos Dâw com os falantes de outras línguas indígenas, como do Nheengatu e do português se dava principalmente na cidade, local em que esporadicamente eles chegavam, com a finalidade de comercializarem pequenas quantidades de frutas nativas da floresta, caça, peixes, caranguejos; compravam e trocavam produtos nos comércios, para adquirirem café, bolacha, açúcar, sal, tabaco, cachaça, principalmente; algumas vezes limpavam roças de caboclos e realizam pequenos serviços domésticos. A sua atividade principal, no entanto, era a extração de cipó e piaçaba, que são encontrados nas partes centrais da mata. Para a realização desse trabalho, eram levados de barco pelos patrões não indígenas até esses locais de extração. Depois de alguns meses de serviço, que ocorriam somente no verão, época propícia para esta atividade, eram deixados nas proximidades da cidade ao acaso. Nas últimas três décadas, principalmente, o relacionamento dos Dâw com a população da cidade tem se modificado e o conhecimento e uso da língua portuguesa se intensificou entre eles. Hoje, sem necessitar de outros para os auxiliarem no contato linguístico, eles frequentam bancos, igrejas, comércios, hospitais e alguns estudam ou estudaram na cidade ou fizeram cursos fora da aldeia, como é o caso de quatro deles que cursaram magistério indígena em outras localidades desta região. Cinco deles serviram ao Exército Brasileiro e entre eles houve quem seguisse carreira militar por alguns anos. Outros atuam ou já atuaram na área de saúde. Muitos deles já viajaram para a capital do estado, para Brasília e outras localidades do país; Há outros que estudaram fora do estado. Assim os contatos dos Dâw, valendo-se da língua portuguesa, têm sido ampliados significativamente. Também os moradores da cidade e pessoas de fora vão com certa frequência até a comunidade para participarem de atividades esportivas, religiosas, mutirões de serviços de saúde, pesquisas acadêmicas, etc. Devido a essa mudança e intensificação das relações de contato dos Dâw com a população citadina e, principalmente, por causa da implantação da escola bilíngue desde

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os anos 80, essa etnia se apropria cada vez mais do português como segunda língua. Porém, mesmo que toda a comunidade saiba o português, a língua que todos eles utilizam em seu dia a dia é o Dâw. Na escola municipal bilíngue, que funciona em sua comunidade, as crianças são alfabetizadas em sua língua materna. Entretanto, é inegável que o contato com os falantes do português se fortifica a cada ano que se passa e a ascensão do português entre eles deve ser tratada com atenção, para que não se torne uma ameaça à língua da etnia. Conforme relatou Roberto Sanches, professor Dâw que ensina a sua língua na escola, “os pais querem que as crianças estudem o português e elas também querem isso. Até costumam faltar à aula no dia da semana em que há aula de leitura e prática da língua Dâw.” Motivar o estudo e uso do Dâw é uma preocupação dele como professor, para que as próximas gerações não substituam sua língua pelo português. Por isso chama-se a atenção para a importância social de que o incentivo à apropriação da escrita padrão do português pela escola seja feito de maneira que se respeite e valorize o uso da língua materna das etnias minoritárias, como é o caso dos Dâw. COMUNIDADE DOS DÂW: ASPECTOS SOCIOLINGÜÍSTICOS E CULTURAIS Faz-se

uma

análise,

sob

uma

perspectiva

interacional,

de

aspectos

sociolinguísticos e culturais da comunidade Dâw, para que se possa compreender o papel que a língua portuguesa como segunda língua exerce nesta sociedade. A comunidade Dâw, conhecida como Waruá, fica à margem esquerda do rio Negro, em frente ao município de São Gabriel, numa distância de aproximadamente 3 km. O rio, neste trecho, costuma ser bastante agitado. Os Dâw atravessam-no geralmente de canoa com motor de barco rabeta. Em 1984, alguns Dâw começaram a fazer casas nessa localidade e, aos poucos, outras famílias foram chegando por ali e construindo moradias e roças. Assim, instalaram-se nesta área, já que não tinham antes um espaço nas redondezas que fossem deles para habitarem. Até então, moravam temporariamente nos fundos de sítios de outros indígenas e de caboclos e, por isso, viviam se deslocando, por vontade própria ou involuntariamente, a pedido dos donos dessas terras. Nessa faixa territorial de pequena extensão em que residem e que hoje faz parte do território indígena contínuo, organizaram-se numa réplica da cidade de São Gabriel.

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Eles dividiram esse espaço em bairros, os quais receberam os mesmos nomes dos bairros que a cidade possuía naquela época: Praia, Centro e Dabaru. Atualmente, na comunidade Waruá, há 30 casas. Geralmente, os filhos casados moram em casas separadas e os viúvos habitualmente moram sozinhos. As moradias que antes não possuíam paredes e eram cobertas de palha e tinham chão batido dão agora lugar a casas construídas com paredes de tábuas, cobertas com zinco, e algumas já exibem piso cimentado ou assoalhado com madeira, alto do chão. As casas baixinhas foram substituídas por outras mais altas, com cerca de 3 metros de altura. Ao redor delas, cultivam árvores frutíferas como cupuaçu, açaí, mamão e laranja. Os Dâw não costumam construir banheiros. Não utilizam mais a água do rio para beberem; bebem somente água do igarapé e dos poços. Na comunidade há um poço artesiano e um cavado. Construíram casas de forno para o preparo de seu alimento básico, a farinha de mandioca, embora nem todos tenham roças para o cultivo desta raiz. Desse modo, grande parte da farinha consumida por eles é comprada na cidade. As roças ficam bem longe das casas, distam de 30 minutos à uma hora de caminhada pela mata, pois não há na proximidade das moradias terra boa para o cultivo da mandioca principalmente. Além deste tubérculo, cultivam banana, abacaxi, pupunha, açaí, etc. Este último gera um recurso financeiro pequeno, mas importante para os Dâw, pois lhes possibilita comprar o galeto, a farinha, o açúcar, etc, itens que compõem sua lista de consumo diário. A renda da comunidade tem como fontes principais os pagamentos de aposentadoria aos idosos e os salários de profissionais como agente de saúde (1), professor (2), militar (1), além da pequena comercialização de açaí, conforme citado. Além das 30 casas, na comunidade há uma igreja organizada por eles, 5 portos, área para praticar esportes, equipada com campo de futebol, futsal e quadra de vôlei, feita de chão batido. As crianças, a partir dos três anos, todas já sabem nadar. Os jovens organizam campeonatos de futebol, de arco e flecha, entre outros, e competem entre eles e também com outras comunidades. Tanto meninas quanto meninos participam dessas atividades esportivas. A comunidade possui um gerador que é ligado somente à noite. Com isso, muitas famílias adquiriram televisores e ficam reunidas em torno de seus aparelhos, assistindo à programação noturna, enquanto uma pequena parte da população frequenta a escola no turno noturno, cursando a EJA.

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O uso de celulares faz parte da vida dos jovens Dâw. Há pelo menos 11 aparelhos na comunidade, os quais eles os utilizam tanto para fazerem ligações, quanto para enviarem mensagens e ouvirem músicas. Na comunidade Waruá atualmente residem 126 Dâw, considerando tanto aqueles que são filhos de pais Dâw, quanto os que um dos pais pertence a essa etnia. A maior concentração populacional está na faixa etária de 14 a 25 anos, num total de 33 jovens. Em seguida, encontram-se as crianças entre 7 a 13 anos, que somam 22 e, os adultos de 26 a 35 anos que também contabilizam 22 pessoas. Há nove crianças abaixo de 1 ano e 17 estão entre 1 a 6 anos. Por esses números, observa-se que a população Dâw é jovem, o que traz uma perspectiva de crescimento demográfico muito favorável. Na faixa de 36 a 49 estão apenas 3 Dâw e 10 possuem entre 50 e 60 anos; há apenas 10 pessoas com mais de 60 anos, o que demonstra que a expectativa de vida entre eles até então tem sido baixa. Também se agregaram ao grupo cinco pessoas que não são Dâw, mas que estão casadas com Dâw e moram na comunidade. A língua Dâw é a língua materna de todos os Dâw e o português é a segunda língua da maioria. O grau de proficiência em português diminui entre os que estão acima de 50 anos e que são do sexo feminino, os quais geralmente possuem somente um conhecimento básico desta língua oficial. O Nheengatu é a segunda língua, aquela que é usada nas situações de contato intertribal. A escola bilíngue Dâw/português oferece o ensino nas duas línguas, desde a préescola. A vontade dos pais, no entanto, é que os filhos estudem o português, pois consideram que é essa língua que irá proporcionar a seus descendentes uma ascensão social. No final dos anos 80, com a proposta ortográfica e material didático elaborados por V. Martins e S. A. Martins (1986), foi implantada a escola bilíngue na comunidade, com o apoio da prefeitura de São Gabriel. No entanto, por vários fatores, pode-se dizer que o seu funcionamento se sistematizou a partir de 2000. O atual prédio onde a escola funciona possui 15 metros de comprimento e 4 de largura. É de madeira, coberto de zinco e tem piso cimentado. Comporta três salas de aula, onde funcionam as turmas de pré-alfabetização, alfabetização e uma sala de 1º ao 4º anos. Conta com três professores ministrantes contratados pela prefeitura de São Gabriel, entre eles dois são Dâw. De 2009 a 2012 funcionou a EJA, até o 8º ano. Quase todos os Dâw adultos, num total de 60, matricularam-se no curso, mas somente 10 o frequentaram, devido às diversas dificuldades que encontraram. Na EJA, o estudo da

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língua materna substituiu o ensino da língua inglesa na matriz curricular, ou seja, entrou como o componente de língua estrangeira, de conformidade com a informação recebida de Roberto Sanches, professor indígena do curso. A escola dos Dâw também tem sido frequentada pelos seus vizinhos de outras etnias como Tukano e Baniwa, os quais vêm para cursarem a EJA. Roberto Sanches, cujo nome na língua é Wig, é o professor de Ensino e Prática da língua Dâw. Já chegou a trabalhar em sala com 40 alunos. Nas atividades de ensino e prática da língua materna enfatiza a leitura e produção textual, sobre temas da cultura Dâw. Juntamente com Rosani Mendes, que presta assistência à comunidade, elaborou dois livros de leitura e interpretação de textos Dâw, datados de 2006 e 2007, os quais são utilizados nas aulas da língua étnica. Ao ser questionado sobre os espaços em que o Dâw atualmente usa a língua materna, Wig respondeu que suas casas são o local principal, no convívio com seus familiares. Na igreja, falam as duas línguas, português e Dâw, pois sempre há pessoas presentes que não são Dâw. Nas orações em público, falam em Dâw e português, devido à pluralidade de pessoas de outras línguas (Baré, Tukano, Baniwa, não indígenas falantes de português) no recinto. Há outros que usam mais o Dâw em suas falas na igreja, porque os idosos presentes não entendem bem o português. Falam Dâw e português fora da comunidade, dependendo da situação envolver ou nãom, além de Dâw, falantes de outras línguas. Também, quando embriagados, eles gostam de falar em português, pois se sentem mais desinibidos a utilizar a língua estrangeira. Já o Nheengatu é cada vez menos falado, geralmente é empregado pelos idosos ao se encontrarem com indígenas de outras etnias e/ou caboclos vizinhos. A APROPRIAÇÃO DO PORTUGUÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA PELOS DÂW Nas perspectivas teóricas da sociolinguística variacionista (Labov 1994; Calvet 2007), do funcionalismo linguístico (Souza, 2012) e do ensino de língua na escola (Bortoni-Ricardo 2004; Mollica 2003), analisa-se a variedade do português empregada como segunda língua pelos Dâw, que estão na faixa etária de 14 a 25 anos. Busca-se conhecer como esse processo de apropriação da L2 vem sendo desenvolvido, principalmente no âmbito da escola bilíngue que funciona na comunidade Waruá, onde os Dâw residem. Identificam-se as características da variedade do português que

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utilizam e seus reflexos na escrita do português, bem como a influência das estruturas gramaticais da L1 na L2. Dos 33 jovens desta faixa etária focalizada, 22 deles têm mais de dezessete anos e, por isso, já poderiam estar cursando ou ter completado o ensino médio. Entretanto, entre esses, somente 4 concluíram ensino médio e/ou magistério indígena e 2 ainda estão cursando o ensino médio. Os demais, num total de 16 jovens, 7 possuem ensino fundamental completo e 9 não o completaram. Quanto ao ensino fundamental, como se constata por esses indicadores, 40,9% dos jovens acima de 17 anos ainda devem conclui-lo. Como material de pesquisa, analisa-se um conjunto de atividades escolares realizas por estudantes Dâw durante o ano de 2012, que incluem produção de textos espontâneos e exercícios gramaticais, visando à aprendizagem de padrões ajustados à escrita padrão do português. Na análise da produção textual, verificaram-se a estruturação do texto, no que se refere à coerência textual, coesão lexical e gramatical, padrões gramaticais e ortografia. A produção espontânea de textos é uma prática amplamente desenvolvida na escola bilíngue da comunidade tanto nas aulas de língua portuguesa quanto nas aulas de Dâw. Os alunos são incentivados a produzirem textos e ilustrarem, geralmente sobre temas ligados à fauna e à flora ou a respeito de atividades do seu cotidiano. Essas práticas têm contribuído para que eles desenvolvam a sua expressão escrita, produzindo textos bem articulados, embora apresentem marcas da oralidade, como alguns desvios dos padrões de ajustes gramaticais, considerando como parâmetros a(s) norma(s) culta(s) da língua. Alguns exemplos são as inadequações no emprego da concordância nominal e verbal, no uso de conectivos, ausência de artigos, etc. e inadequações na seleção do item lexical. Esses desvios da norma escrita pouco interferem na progressão do texto e no seu estabelecimento como uma unidade de sentido. Exemplificam-se essas ocorrências com um texto produzido por um aluno de 14 anos, que cursa o 5º ano do ensino fundamental e que foi revisto pelo professor Dâw.

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Imagem 1: redação do 5º ano

Neste texto, o aluno demonstra conhecimento da elaboração da estrutura de uma narrativa, utilizando marcas características das estórias narradas em língua portuguesa. Caracteriza o início do texto com a expressão ‘era uma vez...’, desenvolve um enredo com uma sequência de ações introduzidas pelo uso de pronome anafórico e apresenta um desfecho também característico das estórias ‘a mulher dele ficou muito feliz e eles se beijaram. Fim’. Este fato evidencia que este aluno do 5º ano já tem um bom conhecimento da produção escrita de textos narrativos em língua portuguesa. O texto é coerente, claro. Ao mesmo tempo é importante realçar que o conteúdo desta produção textual reflete particularidades da cultura regional do alto rio Negro. O evento de ‘ir mergulhar para pegar peixes’ refere-se a uma atividade realizada pelos pescadores desta região para capturar peixes. Eles constroem ‘cacuri’, uma espécie de curral feito de varas, que é colocado no rio para aprisionar os peixes que estão subindo. Daí, os pescadores precisam mergulhar para pegar os peixes retidos pela armadilha. Menciona-se este fato para realçar a importância de que o conhecimento escolar do português como segunda língua não deve suprimir a expressão da cultura do estudante indígena. Além disso, é

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interessante realçar a estrutura gramatical que o estudante Dâw emprega para expressar este evento: ‘o homem ia mergulhar peixes’, expressão cujo sentido em português não fica claro. Por isso, foi revisada pelo professor também Dâw ‘o homem ia mergulhar e pegar peixes’. Na língua Dâw, há serialização verbal, ou seja, um conjunto de verbos, que formam uma unidade lexical e gramatical que expressam um evento único, como é o caso desta atividade ‘ir – mergulhar- pegar’ (cf. S. Martins, capítulo 25, tomo II). Este aspecto gramatical da língua étnica reflete no modo em que o aluno organiza a frase na língua estrangeira. Também se observa que o aluno já demonstra ter adquirido um bom conhecimento das regras gramaticais do português padrão, embora apresente algumas dificuldades especificamente quanto à concordância de gênero e número. Dâw expressa “as relações morfossintáticas, na maioria das vezes, por palavras gramaticais ao invés de afixos” (S. Martins, 2004: 678). O gênero, por exemplo, é marcado lexicalmente e, talvez por isso, os estudantes Dâw, ao escreverem em português, às vezes fiquem confusos neste emprego gramatical. Ainda em referência à produção textual, esta prática pode ocorrer interrelacionada com exercícios de ortografia, fazendo a substituição de ilustrações no interior dos textos pelas palavras correspondentes. Também costumam fazer cópias de textos tais como: narrativas, músicas, recados, orações, poesias, entre outros. Esta prática contribui para o conhecimento de estruturas textuais diversas, aquisição da ortografia e aprimoramento da caligrafia, etc. Nos textos analisados neste estudo, observa-se que há predominância do uso de letras de forma. Quanto às atividades de interpretação de textos, constatou-se que as questões a serem respondidas não estão restritas à recuperação da informação, abrangem também a interpretação e reflexão, o que é um fator muito positivo para que o aluno desenvolva sua habilidade de compreensão da língua portuguesa. A leitura de livros não é uma prática usual para os Dâw fora do ambiente escolar. Mesmo no ambiente escolar, ela está mais restrita a textos fragmentados, extraídos dos livros didáticos, embora a escola tenha uma biblioteca, com alguns títulos. No entanto, as práticas sociais da leitura fazem parte do dia a dia deles, pois frequentam as agências bancárias e fazem uso de caixas eletrônicos; utilizam celulares para enviarem e receberem mensagens; leem placas, letreiros de estabelecimentos comerciais, rótulos de embalagens de produtos que consomem, bulas de remédios, etc., além disso, assistem diariamente aos programas de televisão e a seus comerciais. Logo,

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pode-se dizer que a quantidade de entradas visuais da escrita da L2 é muito significativa. Na sala de aula, os exercícios de gramática são abundantes. Contudo, aprender a indicar as categorias gramaticais de gênero e número, utilizar artigos definidos e indefinidos em concordância com o substantivo, por serem estruturas gramaticais incongruentes com a gramática de Dâw, conforme dito uma língua com pouca morfologia flexional, requerem mais atenção dos alunos. Para ilustrar a dificuldade dos estudantes nesse âmbito da gramática, é interessante observar a solução equivocada que o aluno do 5º ano deu às questões abaixo, evidenciando a dificuldade de aquisição de fenômenos morfológicos do português que diferem da estrutura de sua língua materna, talvez devido às metodologias de ensino de L2 que pouco contribuem nesse processo de aprendizagem. “Diante do exercício, escreva 3 palavras masculinas e 3 femininas extraídas do

texto”. O aluno respondeu: Masculinas: macaco, boi, luz; Femeninas: onça, escreva; anta. A resolução dada demonstra que o aluno compreendeu que o gênero feminino em português é marcado pela vogal final –a. Logo, tem um entendimento parcial desse fenômeno morfossintático da língua portuguesa. Ainda questões mal formuladas dificultam a compreensão do processo morfossintático do português, conforme se observa em questões para trabalhar a marcação de número. “Escreva 3 palavras abaixo no singular e transforma depois em plural:”

Caça bebe (?) Caças bebes

amanhã; hojes

Observa-se que o uso da palavra ‘hoje’ no plural remete a uma particularidade da língua Dâw, quanto à maneira de compreender o tempo. A noção expressa em português pelo termo ‘hoje’, referente ao intervalo de 24 horas, em Dâw é expressa por dois itens lexicais. Um se refere ao ‘hoje’ que já passou ‘nãm’ e outro ao ‘hoje’ a vir a

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ser ‘yɔh’. Talvez essa visão étnica na compreensão do tempo tenha influenciado o estudante Dâw a colocar o advérbio ‘hoje’ no plural. Quanto à aquisição de aspectos fonológicos do português, os Dâw fazem exercícios escolares que envolvem o reconhecimento da sílaba tônica, o número de sílaba, identificação de vogais e consoantes; no nível morfossintático, são numerosos os exercícios sobre a marca de plural; de gênero masculino e feminino; de reconhecimento de substantivos, adjetivos, etc.; no léxico, são estudados os nomes coletivos, atribuição de campos semânticos, como identificação de nomes de animais, roupas, objetos, cores, meio de transporte, etc. Após essa análise geral sobre as práticas de ensino da língua portuguesa desenvolvidas na escola bilíngue dos Dâw, reúnem-se elementos que ilustram o conhecimento que eles têm do português, concentrando os exemplos em dois textos, um produzido por um aluno de 14 anos, que estuda no 5º ano; e outro, por um concludente de magistério indígena. Como indicadores desse conhecimento da escrita padrão do português, enfocam-se os aspectos textuais, gramaticais e ortográficos.

Imagem 2: redação 2 do aluno de 5º ano

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Conforme se observa, o texto produzido apresenta unidade textual, progressividade e as características da estrutura narrativa. Também se verifica a utilização adequada de estruturas da gramática normativa da L2, como concordâncias nominal e verbal. As dificuldades maiores são referentes ao emprego da pontuação e uso de maiúsculas, além da repetição ou omissão de palavras. Na sequência, apresenta-se um texto dissertativo, que versa sobre a importância da língua Dâw, de autoria de Roberto Sanches, professor Dâw, egresso do curso magistério indígena. Nele o autor expressa sua preocupação com a preservação da língua Dâw, haja vista o aumento do grau de bilinguismo dos Dâw em língua portuguesa.

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Ao analisar este texto dissertativo, evidenciou-se o conhecimento que o autor possui da L2 referente à estruturação, progressão, fluidez e criticidade textual. Fez uso do léxico da cultura letrada, ao empregar palavras como comunicar, valorizar, incentivar, aplicar, bilíngue, discente, falantes, antepassados, falência, etc., demonstrando estar em processo de aquisição do conhecimento de utilização dessas palavras no contexto. Ele utilizou as estruturas gramaticais da norma de prestígio, referentes às concordâncias nominal e verbal, ao uso de pronomes, conectivos, etc. A pontuação e a ortografia são itens que devem ser reforçados, não diferente do que ocorre com aqueles que têm o português como primeira língua. Alguns desvios ortográficos são ocasionados pela representação múltipla de fonemas, como o /s/ (insentivar), inadequação na estruturação de palavras (perde-mos), acentuação (falencia, tambem). De modo geral, no conjunto do material analisado, em referência à ortografia, os principais desvios são relativos à acentuação (lingua, atraves, importancia, indigena, familia, tambem); representação de fonemas ilícitos no Dâw, como /s/ (dissionário); /ʒ/ (elozio); /f; v/ vor (for); presença da oralidade na escrita (simplismente; ensentivar; pro; pra); confusão em marcar a nasalização (bimlingue, muntum). Entretanto, esses desvios não prejudicam a importante mensagem que traz em defesa da preservação da língua indígena e do seu registro por meio da elaboração de dicionário. O emprego adequado da pontuação é outro aspecto que deve ser reforçado na aquisição da escrita do português. Também devido às incongruências de sistemas linguísticos da L1 em relação à L2, as regras de concordância de gênero e de número, uso de preposições, uso de elementos de ligação na elaboração das frases e de artigos são os principais itens a serem trabalhados com os estudantes Dâw, no processo de aquisição da língua portuguesa como segunda língua. O fato de aprender a língua portuguesa é visto pela comunidade Dâw como um quesito de grande importância, considerando as oportunidades de continuar seus estudos, visando à formação universitária. CONSIDERAÇÕES FINAIS A escola bilíngue Dâw, administrada pela Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira, tem exercido um papel primordial para conduzir esses estudantes ao domínio da escrita padrão do português. Contudo, essas ações devem ser feitas em consonância

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com a valorização do estudo da língua Dâw. Assim, essa etnia minoritária amplia seus saberes linguísticos, abrindo portas que possibilitem uma maior participação nos espaços socioculturais da sociedade envolvente, sem abrir mão de sua língua materna. No que se refere ao domínio da escrita padrão do português, verificou-se que os concludentes do ensino médio possuem um conhecimento razoável do português, que lhes possibilita continuar aprendendo a L2, enfocando aspectos gramaticais específicos da L2, que lhes parecem ser mais complexos. O objetivo é prepara-los como etnia minoritária para ingressar no ensino superior, conforme é do interesse geral dos jovens e desejo de seus pais. Com as cotas para alunos indígenas oferecidas pela Universidade do Estado do Amazonas e, com a presença das universidades estadual e federal na cidade de São Gabriel da Cachoeira, o acesso ao ensino superior pode ser viabilizado, uma vez que os Dâw têm conhecimento do português como segunda língua. Por fim, espera-se que este estudo contribua para o conhecimento da situação sociolinguística do Dâw, sobretudo referente ao nível de escolaridade e domínio da língua portuguesa. Por meio dessa análise, pôde-se compreender o espaço que a língua portuguesa ocupa no interior desta comunidade linguística e como se dão as práticas de ensino do português como segunda língua dos Dâw, no contexto da escola bilíngue. Os resultados obtidos servirão para orientar práticas pedagógicas que conduzam a uma aprendizagem da L2 ainda mais eficiente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORTONI- RICARDO, Stella Maris (2004). Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula. 4° ed. São Paulo: Parábola Editorial. CALVET, Louis-Jean (2007). Sociolingüística: uma Introdução Crítica. 3° ed. São Paulo: Parábola Editorial. LABOV, William (1994). Principles of Linguistic Change: Internal Factors. Oxford. MARTINS, Silvana Andrade (2004). Fonologia e Gramática Dâw. Vol. I, II. Utrech, Amsterdam: Editora LOT. MARTINS, Valteir e MARTINS, Silvana A. (1986). Cartilha Dâw. São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, mimeo. MOLLICA, Maria Cecília (2003). Da linguagem coloquial à escrita padrão. Rio de Janeiro: Letras.

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SANCHES, Roberto Carlos Fernandes e MENDES, Rosani (2006). Dâw mêe lêer sã'ãã dâw nõõr. São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, mimeo. SANCHES, Roberto Carlos Fernandes e MENDES, Rosani. (2007). Dâw mêe lêer sã'ãã dâw nõõr. São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, mimeo. SOUZA, Edson Rosa de (org.) (2012). Funcionalismo linguístico: novas tendências teóricas (org.). São Paulo: Contexto.

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O PORTUGUÊS DE CONTATO DOS KAIOWÁ (GUARANI)1 Valéria Faria Cardoso-Carvalho2

INTRODUÇÃO Este artigo tem por objetivo apresentar uma breve descrição do uso do português pelos kaiowá/guarani (k/g) que vivem em comunidades indígenas no Centro-Oeste brasileiro, numa região fronteiriça com o Paraguai.3 Em específico, buscamos descrever fenômenos linguísticos resultantes da situação de contato como adaptações ou acomodações fonéticas, alterações no padrão morfossintático da língua receptora, entre outros. Para tanto, valemo-nos de noções sociolinguísticas e etnográficas para analisar a realização desses fenômenos linguísticos. O kaiowá é tido como dialeto guarani, língua pertencente ao subgrupo I da família tupi-guarani, tronco tupi (Rodrigues, 1994) que, junto ao nhandewa e ao mbyá, no Brasil, constituem o ‘guarani atual’. Esta língua, por sua vez, não pode ser estudada em sua plenitude, senão tratando fundamentalmente de cada variedade em específico, portanto, tratamos aqui da língua kaiowá (guarani). Tem-se, ainda, que atualmente não se pode asseverar sobre o grau de contato entre o português e a grande maioria das línguas indígenas brasileiras, tendo em vista que algumas dessas línguas ainda carecem de estudos linguísticos e antropológicos, bem como, são, em menor número, os estudos que se ocupam desse tipo de situação de contato linguístico. Tal fato levou-nos a tratar de uma das situações de contato linguístico vivenciado ainda hoje no Brasil. No caso, o contato entre a língua guarani e a portuguesa, que coexistem nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste brasileiras.

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O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil e da FAPEMAT, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso. 2 Professora Adjunta da Faculdade de Letras, Ciências Sociais e Tecnológicas da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) - Campus Universitário de Alto Araguaia. (P.S.: Agradeço a leitura atenta da colaboradora Profa. Dra. Ilda de Souza). 3 Nossa pesquisa vem sendo desenvolvida com membros das comunidades kaiowá/guarani localizadas, mais especificamente, junto às Terras Indígenas (T.I.): Pirakua (município de Bela Vista, região Sudoeste do Estado de Mato Grosso do Sul) e Jata Yvary (ou Lima Campo, município de Ponta Porã, região Sulfronteira do Estado).

LINGUÍSTICA DE CONTATO: OBJETOS E CONCEITOS Contato de Línguas e Bilinguismo4 em si não são disciplinas científicas. Para Appel e Muysken (2005), são assuntos ou campos de estudo em que várias disciplinas podem contribuir. Essas disciplinas podem interagir ou funcionar independentemente, devido aos diferentes pontos de vista, metodologias e terminologias, tendo em vista que, quando em uma sociedade ocorrem línguas em contato, essa pode ser de interesse para sociólogos, antropólogos, linguistas etc. (Appel e Muysken, 2005: 5-10). Ao considerar aqui o fenômeno – contato de línguas - vale fazer menção ao fato de que estudos vêm se firmando atualmente sob a denominação de Linguística de Contato. Tais estudos têm se desenvolvido a partir da distinção entre empréstimo e interferência proposta por Weinreich (1953 apud, Appel e Muysken, 2005) em que permanece a identificação dos dois tipos básicos de influência interlinguística. Com relação ao empréstimo, Weinreich (Op. Cit) enumera várias razões para uma palavra ser emprestada: i) influencia cultural; ii) palavras nativas raras se perdem e são substituídas por palavras estrangeiras; iii) duas palavras nativas, que soam muito parecidas, uma delas é substituída por uma palavra estrangeira, a fim de resolver eventuais ambiguidades; iv) há uma necessidade constante de sinônimos para palavras afetivas que perdem sua força expressiva; v) empréstimos, novas distinções semânticas podem tornar-se possíveis; vi) a palavra pode ser tomada a partir de uma linguagem de baixo status e ser usada pejorativamente; vii) a palavra pode ser introduzida quase inconscientemente, por meio de bilinguismo intensivo. (Weinreich, 1953 apud Appel e Muysken, 2005:165). Certamente, o leitor pode pensar em outras razões para ocorrerem empréstimos. Para Appel e Muysken, num caso mais simples, quando uma palavra é emprestada como um todo (tanto som como o significado), quase nada precisa ser dito. No entanto, muitas outras possibilidades de empréstimos lexicais podem ocorrer, forçando, assim, o desenvolvimento de uma abordagem mais sistemática com proposta por Haugen (1950, apud Appel e Musken, 2005). Segue uma síntese do que expõem os autores citados: Para a tipologia de empréstimo de Haugen, a principal diferença é distinguir entre a 4

De modo geral, entende-se por Bilinguismo o uso simultâneo de duas línguas distintas. Este fenômeno linguístico tem suscitado amplo debate entre estudiosos – linguistas, psicólogos, psicolinguistas etc – além de ser tratado de acordo com o variar das abordagens teóricas.

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importação e a substituição. A importação envolve trazer um padrão e a substituição é a troca de elementos linguísticos da língua fonte pela língua receptora. Usando essa distinção e aplicando-a para vários níveis de análise de estruturas linguísticas, Haugen vem com os seguintes tipos de empréstimos: (i) Loanwords (estrangeirismos): importação morfêmica sem substituição. Este é o tipo mais comum, tais como o uso da palavra ‘chic’ do Inglês. Dentro da categoria dos vocábulos, podemos então distinguir os casos em que houve substituição no nível de fonemas (empréstimos fonologicamente adaptados) daqueles em que este não foi o caso; (ii) Loan blends (empréstimos misturados): há substituição morfêmica, bem como a importação. Neste tipo, incluem-se os "híbridos", como a palavra holandesa ‘soft-ware huis’ para ‘soft-ware house’, e (iii) Loan shifts (empréstimos alterados/trocados): importação morfêmica sem substituição. Aqui apenas o significado, simples ou composto, é importado, e as formas que representam esse significado são nativas. Um exemplo bem conhecido de ‘empréstimo mudado’ é ‘wolkenkratzer’ em alemão, ‘gratte-ciel’ em francês e ‘rasca-cielos’ em espanhol, todos baseados no Inglês ‘sky-scraper’ (arranha-céu). Quando o significado é simples, também podemos encontrar casos de ‘empréstimo mudado’. Isso também é chamado de ‘tradução de empréstimo’. Em holandês, o verbo ‘controleren’ significa, principalmente, ‘verificar’, mas nos últimos anos, adquiriu também o significado de ‘controlar ou ter poder sobre’ do inglês. (cf. APPEL E MUYSKEN, 2005:165).

Ainda segundo os autores, outra distinção muito relevante, neste ponto, é a entre empréstimos de núcleo e empréstimo de vocábulo não nuclear. Vocabulário nuclear refere-se a itens básicos a sociedade humana, tais como 'fogo', 'mãos', 'dois', 'filha'. Itens não nucleares são elementos de muita matéria específica e não-matéria cultural e organização de um grupo, tais como 'cortador de grama', 'dicionário', 'psiquiatria'. Com relação à interferência, vale mencionar que na literatura da Linguística de Contato, outros autores convalidam os conceitos de empréstimo e interferência linguística por meio dos conceitos de substituição, importação/incorporação, e ainda, adição, como podemos verificar na ‘teoria de interferência linguística’ de Thomason & Kaufman (1988), na qual os autores distinguem os dois tipos de mudanças causadas por contato linguístico do seguinte modo: a interferência - que se dá por meio da substituição, ou ainda, como resultado de aprendizagem irregular por parte de um grupo durante um processo de mudança linguística e o empréstimo - que ocorre por meio da incorporação de traços de uma dada língua por falantes nativos de outra língua.

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SOBRE INFLUÊNCIA AMERÍNDIA NA FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS O contato de línguas faz parte da história linguística e social da maioria das comunidades do mundo e o que diversifica os contatos de línguas são os contextos sociais em que ocorrem as coabitações linguísticas, assim como os produtos gerados por essas coabitações (Appel e Muysken, 2005). Na América Latina, por longo tempo, línguas europeias (românicas) e línguas ameríndias têm coexistido em condições de típica diglossia (Cf. Rubin, 1968 apud Appel & Muysken, 2005:58). Sabe-se que essa diglossia está associada a uma complexa estrutura social e política existente desde os tempos da colonização. No Brasil, o processo de colonização iniciou-se com o povoamento, a exploração e a dominação de terras brasileiRas por portugueses a partir do século XVI. Neste tópico, apresentamos as principais leituras acerca da possibilidade de ter ocorrido ou não influência linguística advinda de línguas ameríndias na formação do português brasileiro (PB). Desde já, elucidamos que em maior número são os trabalhos a respeito da influência ou não de línguas africanas na formação do português no Brasil do que trabalhos a respeito da possível influência ameríndia. Contudo, buscaremos focalizar a discussão referente ao contato entre o português e línguas indígenas. Por fim, vale mencionar ainda que os trabalhos que discutem tais influências linguísticas versam, em geral, sobre a hipótese de crioulização do português em terras brasileiras. A hipótese de crioulização do PB apoia-se em informações linguísticas e em dados demográficos ao teorizar sobre a influência de línguas ameríndias e africanas na formação do PB. Em síntese, podemos mencionar três posicionamentos divergentes quanto à aceitação ou rejeição dessa hipótese. Tais posicionamentos são apresentados nos tópicos subsequentes. - Adeptos à hipótese da crioulização A existência de um processo de crioulização do português é defendida em vários trabalhos dentro de um mesmo quadro teórico sociolinguístico como os trabalhos de Guy (1981, 1989), Holm (1987, 1992), Baxter (1992) e Baxter & Lucchesi (1997), entre outros. Segundo os adeptos à hipótese, as estruturas consideradas típicas do PB, como por exemplo, a variação no uso da concordância, devem-se a um estágio não documentado de crioulização, resultante de um contato intenso com línguas africanas

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e/ou línguas ameríndias tipologicamente diferentes do português. Assim sendo, as variações verificadas no PB são impossíveis de ocorrer no português de Portugal. Aos adeptos à hipótese de crioulização do português em terras brasileiras, os seguintes fenômenos linguísticos são tidos como indícios de processos de crioulização: i) neutralização entre as 1ª e 3ª pessoas verbais; ii) variação da concordância de número e gênero; iii) simplificação do padrão silábico; iv) a alternância de [l] e [r]; v) processos de nasalização e desnasalização; vi) uso do pronome do caso reto em função de objeto direto; vii) uso do pronome oblíquo em função de sujeito; viii) uso do se reflexivo para 1ª pessoa; ix) alternância de preposição, incluindo a preposição em no lugar das preposições a e para; x) uso do verbo ter indicando posse e existência; i) uso não frequente de formas perifrástica e redução ampla de modos e tempos verbais; xii) uso frequente de formas expletivas e outros processos de ênfase, como a reduplicação. (cf. Scherre & Naro, 2009). - Contestadores da hipótese de crioulização A existência de um processo de crioulização do português do Brasil é contestada também em vários trabalhos de Naro (1978), Naro & Scherre (2007) e de Scherre & Naro (2009). Para estes autores, o pidgin português teria sido formado na Europa, pelos falantes adultos de português para facilitar a comunicação com os falantes não nativos, assim, a origem do processo de mudança linguística do português já veio com o português trazido para o Brasil. E, desse modo, o contexto brasileiro só reforçou uma mudança já em curso. Segundo os contestadores da crioulização do português, os fatores que contribuíram para a mudança do português brasileiro foram a pidginização — isto é, o uso pidginizado do português pelos portugueses em seu contato com africanos, tanto na Europa quanto na África, desde o século XVI, sendo esse uso chamado de língua de

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preto ou português de preto, e com os índios, uso chamado de português de índio, e o uso da língua geral tupi e a aprendizagem imperfeita na aquisição de segunda língua por adultos. (Petter, 2011). Conforme Lobato, (...) há uma tendência quase unânime a se rejeitar a influência das línguas indígenas e das línguas gerais sobre o português, a não ser no vocabulário, onde se deu uma rica criação de empréstimos na toponímia e no léxico da flora e da fauna, entre outros campos semânticos. Rodrigues, em mais de uma publicação (Rodrigues 1986, 1996), tem defendido essa rejeição. Deve-se a ele a distinção entre duas línguas gerais, a paulista (com origem no tupi) e a amazônica (originada do tupinambá). Segundo ele, a influência estrutural se deu comprovadamente do português para as línguas gerais, e não do tupi, do tupinambá ou das línguas gerais para o português. A influência dessas línguas para o português, nos diz ele, parece ter se restringido ao vocabulário. Nesses trabalhos ele compara o português e o tupinambá quanto ao sistema de sons, às formas verbais, ao sistema de demonstrativos, à distinção de gênero e número, e a distinções lexicais, e, além disso, compara dados do tupinambá com dados da língua geral dela originada, mostrando como nesse processo de mudança linguística houve uma aproximação em relação à gramática do português. (LOBATO, 2004:15)

Em “O português brasileiro: formação e contrastes” (2008: 218), Noll entende que o atual conhecimento acerca de possíveis influências linguísticas sobrevindas do contato entre línguas indígenas e o português brasileiro demonstra que no português não há, positivamente, influência de línguas indígenas (nem de línguas africanas), além daquelas relacionadas ao léxico e às expressões idiomáticas, uma vez que, nenhum desenvolvimento do português pode ser claramente classificado como sendo de origem indígena (ou africana). - Adeptos da crioulização, com ressalvas A terceira abordagem sobre a questão da crioulização do português do Brasil que trazemos a tona é denominada aqui de “adeptos da crioulização, com ressalvas”, defendida por Lobato (2004). Tal proposta é motivada e discutida pelos prós e contras das duas outras abordagens opositoras e, principalmente, está focada no tema referente à possível influência de línguas indígenas (no caso, o tupi e o tupinambá) na formação do português brasileiro. No artigo intitulado “Sobre a questão da influência ameríndia na formação do português do Brasil”, Lobato (Op. Cit) defende a influência de línguas de origem indígenas na formação do PB. Para a autora, a situação de contato do período colonial (séculos XVI, XVII e XVIII), resultou na formação da gramática do português do

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Brasil, quando essa língua foi adquirida por grande parte da população adulta do país como segunda língua. Segundo essa abordagem da questão, o fato de diferentes variedades do português europeu terem sido trazidas para a colônia não foi fator crucial para a mudança. Nas palavras de Teyssier (1997: 78), “o povoamento europeu se fez a partir de todas as regiões de Portugal” e, nessa situação de coexistência de diferentes variedades, houve um processo de padronização, com “eliminação de todos os traços marcados dos falares portugueses do Norte e por generalização das maneiras não marcadas do Centro-Sul”. Isso pode muito bem ter ocorrido, mas o que importou para a mudança, segundo a hipótese deste artigo, foi, repito, o processo de aquisição do português como segunda língua por uma população adulta. (LOBATO, 2004:19)

Em sua proposta, a autora deixa claro que contesta a indicação de ocorrência de influência estrutural direta das línguas indígenas para o português brasileiro. Para Lobato, o falante adulto não tem como adquirir de imediato todo um conjunto de informações abstratas sobre a estrutura interna das palavras, daí que não constrói seu conhecimento da língua do mesmo modo que o faz a criança ao aprender sua língua nativa. Deste modo, a autora propõe que a semelhança existente entre o português e as línguas indígenas analisadas é puramente acidental, uma vez que foi consequência do processo de aprendizagem em idade adulta e não de influência estrutural direta de uma língua sobre a outra. Em resumo, a fixação dos traços extensionais para as derivações sintáticas, no caso do português do Brasil, foi fruto do fato de os falantes adultos aloglotas no contexto colonial brasileiro não terem como adquirir, de imediato, as informações abstratas sobre a estrutura das palavras que o português europeu usa nas suas derivações sintáticas, tendo de ter recorrido aos traços extensionais. (LOBATO, 2004:13)

Thomason e Kaufman, na obra clássica Language Contact, Creolization and Genetic Linguistic, afirmam que “é a história sociolinguística dos falantes, não a estrutura de suas línguas, que é o determinante primário do resultado linguístico do contato de línguas” (THOMASON e KAUFMAN, 1988: 35). Como pudemos observar, as três propostas de análise sobre a influência ameríndia na formação do português levam em conta a história sociolinguística dos falantes. Considerando também tal premissa, passemos a tratar da contextualização sócio histórica do contato entre o português e o guarani (kaiowá).

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A

HISTÓRIA SOCIOLINGUÍSTICA DO CONTATO ENTRE O PORTUGUÊS E O GUARANI

(KAIOWÁ) Neste tópico, abordamos a história sociolinguística que permeia o contato entre o português e o guarani, além de tratarmos de os contextos linguísticos atuais em que os falantes k/g podem estar envolvidos e, por fim, expomos uma descrição concisa da língua kaiowá (guarani) falada em comunidades indígenas situadas no estado de Mato Grosso do Sul (Brasil). Breve contextualização sócio histórica do contato das línguas: português e guarani (kaiowá) Como já foi mencionado, o contato de línguas faz parte da história linguística e social da maioria das comunidades do mundo. E o que diversifica os contatos de línguas são os contextos sociais em que ocorrem as coabitações linguísticas, assim como os produtos gerados por essas coabitações (Appel e Muysken, 2005). Ainda conforme estes autores, há cinco tipos de contextos linguísticos dominantes em nossa história recente. Resumidamente, são eles: i) o ‘arquipélago linguístico’ (línguas isoladas com poucos falantes); ii) contextos que envolvem fronteiras mais ou menos estáveis entre famílias linguísticas; iii) situações resultantes da expansão colonial Europeia; iv) contextos que envolvem grupos de falantes de uma língua minoritária em meio ao uso de uma língua nacional, e v) contextos resultantes de um inverso movimento migratório (fluxo migratório para a Europa). (cf. Appel e Muysken, 2005:5-10) No caso do contato linguístico entre o português e o guarani (kaiowá), o temos como sendo resultante da expansão colonial Europeia, um tipo de contexto linguístico comum à maioria das línguas ameríndias. As línguas europeias (românicas) e línguas ameríndias, por longo tempo, têm coexistido em condições de típica diglossia. Sabemos que, na América Latina, essa diglossia está associada a uma complexa estrutura social e política existente deste os

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tempos da colonização. No Brasil, o processo de colonização iniciou-se com o povoamento, a exploração e a dominação de terras brasileiras por portugueses a partir do século XVI. No que se refere aos índios guarani, tem-se que os colonizadores portugueses os contataram nas duas primeiras décadas do século XVI e que esse convívio foi se ampliando e intensificando nas décadas seguintes. O primeiro contato entre portugueses e os índios guarani deu-se no litoral sul de São Paulo e, a partir daí, foram explorando as regiões mais meridionais, até a costa sul de Santa Catarina. Nos dois séculos que se seguiram, grupos guarani foram alvos de práticas de escravização, perseguição por bandeirantes e objeto de ação missionária jesuítica. Durante esse período de colonização, para não se submeterem aos processos de “domesticação”, os índios abandonaram as aldeias da costa atlântica. No século XIX, os guarani que escaparam dos colonos e das missões jesuíticas e conservaram sua autonomia, estabeleceram-se num território que por muito tempo permaneceu inacessível. A partir do século XX, os estudos etnográficos, além de registrarem a presença de índios guarani no litoral e a persistência de grupos guarani em se fixarem na costa atlântica, permitiram maior conhecimento das especificidades linguísticas e culturais desse povo, definindo as bases para a classificação de grupos guarani na atualidade. (Ladeira, 2004:4). Esses aspectos reunidos e associados aos diversos movimentos migratórios dos guarani permitem distinguir no território brasileiro pelo menos três grandes grupos guarani: os nhandewa, os mbyá e os kaiowá5. Tais grupos guarani estão assim distribuídos no território brasileiro: no litoral (regiões Sul e Sudeste), as aldeias guarani estão localizadas na faixa geográfica que se estende do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo e são formadas predominantemente por grupos familiares mbyá; já os kaiowá concentram-se, em sua maioria, no estado de Mato Grosso do Sul (MS), região CentroOeste; e os nhandewa convivem tanto com os kaiowá quanto com os mbyá, com aldeias em toda a porção Centro-Sul do país. Atentemo-nos, ainda, a dois principais aspectos ligados ao contato entre os portugueses e os guarani (kaiowá), o domínio geográfico de habitação e o histórico de ocupação territorial. Quanto ao domínio geográfico de habitação, consideremos a região que vai do sul do Paranapanema até o Rio Grande do Sul, e desde o Paraguai (rio Paraná) até o litoral sul do Brasil (ou seja, Paraná ao Rio Grande do Sul). E quanto ao 5

Os kaiowá (povos da mata), no Brasil, e Pai) Tavyterã, no Paraguai. Os nhandewa se autodenominam guarani

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domínio histórico de ocupação, tem-se que toda essa região estava sob o domínio da Coroa Espanhola, de modo que não houve, a princípio, contato com o português, uma vez que, só no fim do século XVII e no século XVIII é que os portugueses entraram nessa região, primeiro militarmente e depois por força de tratados entre as duas Coroas (Portuguesa e Espanhola), os quais aumentaram as fronteiras do domínio de Portugal. Nessa época, houve uma grande revolta indígena, tendo sido os índios combatidos pelos portugueses com seus exércitos. Alguns índios escaparam, mas a maioria morreu. Pequenos grupos ficaram na região, junto com uma população mista de espanhóis e portugueses. A partir desses dois aspectos, temos que a história sociolinguística dos falantes kaiowá/guarani é resultante de um contato misto entre os colonizadores europeus - espanhois e portugueses. Dos contextos linguísticos entre os kaiowá (bilíngues) Devido ser este um artigo procedente de uma pesquisa linguística que vem sendo desenvolvida junto a comunidades indígenas k/g situadas na região de fronteira entre o Brasil e o Paraguai, faz se necessário descrever os possíveis contextos linguísticos de interação que esses indígenas podem, atualmente, exercer nessa região do país e, assim, melhor caracterizar sociolinguisticamente a situação de contato envolvida. É válido mencionar ainda que nossa pesquisa baseia-se em amostra de dados linguísticos obtidos durante coleta em campo realizada em dois momentos distintos: julho de 2012 e fevereiro de 2013. Os nove colaboradores desta pesquisa (sete mulheres e dois homens) são habitantes de aldeias indígenas circunvizinhas a municípios fronteiriços entre Brasil e Paraguai6, situação que acentua o contato entre os kaiowá/guarani e falantes do português e também do castelhano, essa falada oficialmente no Paraguai, juntamente com o guarani paraguaio. Com o intuito de descrever o cenário linguístico fronteiriço próprio dessas comunidades indígenas k/g que apresentamos o quadro (1) como os tipos comuns de interlocução que falantes kaiowá realizam em diferentes contextos de uso linguístico.

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A pesquisa de campo dá-se junto às comunidades indígenas: Pirakua (município de Bela Vista - MS) e Jata Yvary (ou Lima Campo, no município de Ponta Porã - MS). Quanto ao município de Porto Murtinho-MS, esse último ponto de inquérito não possui reservas ou aldeias indígenas kaiowá/guarani, no entanto, é objeto de nossa pesquisa pelo fato de uma variedade do guarani atual ser falado por uma parcela da população desse município.

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Quadro (1) – Tipo de Situação de Interlocução.

De acordo com o quadro acima, o indígena k/g, com um interlocutor nãoaldeado no Brasil - poderá falar em português - com possíveis alternâncias de código (code switching), com a maioria dos brasileiros; ou falar em kaiowá, compreendendo ou falando o jopara (mescla linguística entre o guarani paraguaio e o castelhano), uma variedade linguística utilizada, principalmente, em relações comerciais na cidade de Ponta Porã (MS), no entanto, seu uso é pouco provável junto à cidade de Bela Vista (MS). Nessa cidade, poucos são os brasileiros que falam o jopara, em geral, falantes mais idosos ou que possuem relações familiares com paraguaios da cidade vizinha Bella Vista (Paraguai). O mesmo indígena k/g, com um interlocutor não- aldeado no Paraguai, mais provavelmente, utilizará sua própria variedade do guarani atual, o kaiowá/guarani, vindo a compreender ou até mesmo produzir uma variedade mais próxima ao jopara. De acordo com os dados expostos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2013) que, em abril de 2013, lançou mapas com sínteses de dados do Censo Demográfico de 2010 sobre população indígena brasileira, dos 473 habitantes da T.I Pirakua (‘buraco do peixe’), (99,7 %) declaram ser falantes da língua indígena kaiowá (guarani). Deste modo, o quadro (2) também apresenta tal informação ao tratar de uma situação comunicativa na qual o interlocutor é indígena e aldeado. Na seção seguinte, apresentamos uma breve descrição da língua kaiowá falada atualmente nas comunidades indígenas acima referidas, num contexto linguístico de interação compreendendo dois ou mais falantes kaiowá/guarani.

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Descrição concisa da língua kaiowá De acordo com Cardoso (2009), o kaiowá apresenta quinze fonemas consonantais, sendo: cinco obstruíntes /p/ /t/ /k/ /kw/ /ʔ/; cinco sonorantes /m/ ([m] [mb] [b]) /n/ ([n] [nd] [d]) /ɲ/ ([ɲ] [ʤ] [j] [j̃]) /ŋ/ ([ŋg] [g]) /ŋw/ ([ŋw] [w̃] [ŋgw] [gw]), e outros

cinco fonemas contínuos /w/ ([w] [v]) /s/ /ɾ/ /ʃ/ /h/. E um sistema de seis vogais que podem ser orais ou nasais: /a/ ([a] [ə]) /e/ ([e] [ɛ]) /i/ /ɨ/ /o/ ([o] [ɔ]) /u/; /ã/ /ẽ/ /ĩ/ /ɨ̃/ /õ/ /ũ/. Vale ilustrar, ainda, o alfabeto da língua guarani que foi implantado, inicialmente, no Paraguai e que, atualmente, tem sido bastante utilizado em escolas de ensino bilíngues (guarani/português), no Brasil. Deste modo, o leitor pode observar o quão divergentes parecem ser as leituras do sistema sonoro do guarani e/ou de suas variedades. Segue o conjunto de grafemas guarani: 7. Quanto ao padrão de estrutura silábica do guarani, a literatura, em geral, defini como sendo CV. Quanto à estrutura morfossintática kaiowá (guarani), tem-se que essa língua possui uma estrutura preponderantemente aglutinante. Com base em Cardoso (2008), essa é uma língua que conta com as seguintes classes de palavras: o nome, o verbo, o advérbio, o pronome, a posposição e a partícula, aspecto bastante comum às línguas tupi-guarani. Os nomes kaiowá distinguem-se de outras classes de palavras por apresentarem as seguintes características: categoria de posse alienável ou inalienável expressa por meio de pronomes clíticos e relacionais; categoria de número expressa por meio de uma partícula pluralizadora {kwery ~ kwera}, ou ainda, por palavras quantificadoras; não flexionar morfologicamente a categoria de gênero, sendo essa expressa por inerência ou por itens lexicais distintos; indicar categoria de tempo nominal; ocupar, sintaticamente, a posição de núcleo de um sintagma nominal, ocorrendo como argumento de predicados verbais e não-verbais e também como constituinte de um sintagma posposicional; e, semanticamente, constituírem palavras que possuem estabilidade temporal. Exemplos: ita [i´ta] ‘pedra’, cheroga [ʃeɾɔ´ga] ‘minha casa’, ywyra [ɨwɨ´ɾa] ‘árvore’, ywy [ɨ´wɨ] ‘terra’, kwarahy [kwaɾa´hɨ] ‘sol’.

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Em geral, a consoante oclusiva glotal é representada por uma apóstrofe < ‘ > (puso).

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Os verbos em kaiowá distinguem-se de palavras de outras classes por possuírem as seguintes características: categoria de número/pessoa; categorias de tempo, modo e aspecto (TAM); categoria de voz8 que altera valência verbal; sintaticamente, pode funcionar como predicador e, por apresentar a categoria de número e pessoa, pode ser o único constituinte da oração. Em suma, a transitividade da ação verbal, associada à oposição semântico-lexical: atividade vs. inatividade, resulta na classificação dos verbos kaiowá nas seguintes subclasses: verbos transitivos ativos, verbos intransitivos ativos e verbos intransitivos inativos (ou descritivos)9, por fim, há ainda uma quarta subclasse verbal, a dos verbos copulativos que, por sua vez, não se distingue segundo esses mesmos critérios oposicionais. Em kaiowá, os advérbios constituem uma classe aberta, assim como os nomes e os verbos e são prototipicamente invariáveis (não flexionáveis) e independentes, e não possuem traços morfossintáticos específicos, sendo caracterizadas por suas propriedades distribucionais, aos quais distinguem por sua mobilidade dentro da sentença e por sua função de modificador de verbos ativos ou inativos, ou ainda, de outros advérbios. Nos dados de que dispomos da língua kaiowá, pudemos identificar palavras adverbiais que expressam propriedades semânticas temporais, locativas, interrogativas e negativas. Seguem os dados respectivamente: (1) [kwe´he ɾõŋwã´hẽ] kwehe ro-

gwahẽ

ontem 1a.pl (excl)-chegar ‘chegamos ontem’ (2) [mboʔe´haɾɨ hĩʔã´wĩ] Mbo’e -ha -ry hi’agwĩ ensinar-Nom-Posp perto ‘perto da escola’ (3) [kɨ´pɨ tɨ´pɔ ɾe´hota ɾeʤo´ʔo ɨwɨ´wɨ kwa] kypy typo re- ho-ta

re-jo’o

ywywy kwa

onde Inter 2a.sg-ir-Fut 2a.sg-cavar terra

buraco

‘onde você irá cavar o buraco?’ 8

As propriedades acionadas pela categoria de voz aplicam-se apenas a verbos transitivos e estão associadas à hierarquia de pessoa (1>2>3). 9 “A term like ‘descritive verb’ may be used instead (for example, Seki 1990, 2000 on Kamaiurá, TupíGuaraní branch of Tupí family).” (DIXON, 2002:22).

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(4) [ã)nĩ e) ɾã´sẽ] anĩ e-rasẽ neg 2a.sg imp-chorar ‘não chore’ Sintaticamente, o predicado transitivo possui um argumento na função nuclear de (A) e outro na função nuclear de (O). Grosso modo, em kaiowá, os verbos no modo indicativo marcam o argumento externo com (A) ou (Sa) por meio dos prefixos de série I; o argumento interno (O) ou argumento externo de predicado intransitivo inativo (So), por meio de clíticos pronominais de série II ou marcam ainda (A/O), simultaneamente, por meio dos prefixos da série III. Pessoa/ Número

Prefixos da Série I

Clíticos da Série II

Prefixos da Série III

1 sg

[a-]

[ʃe₌]

-

2 sg

[ɾe-]

[nde₌ ~ nẽ₌]

[oɾo- ~ ɾo]

1 pl (incl)

[ʤa-]

[ɲãnde₌ ~ ɲãnẽ₌]

-

1 pl (excl)

[ɾo-]

[oɾe₌]

-

2 pl

[pe-]

[pẽnde₌ ~ pẽnẽ₌]

[opo- ~ po-]

3

[o-]

i- [i- ~ O] ~ h-

-

Quadro (2) - Séries de prefixos e clíticos pronominais marcadores de pessoa.

Assim, essa língua codifica o argumento externo (A), junto a verbos transitivos de sentenças independentes, por meio dos prefixos da série I, seguido do morfema { i- ~ h-} marcador de voz direta (cf. (5)), quando (A) é hierarquicamente, mais alto que o argumento interno (O), e codifica o argumento interno nestas sentenças, por meio dos clíticos pronominais da série II, seguido do marcador de voz inversa {ɾ-} (cf. (6)). (5) [ʃe ahai´hu ma´ɾiape] che ah- aihu maria-pe eu 1a.sg-dir-amar maria-Acus ‘eu amo Maria’ (6) [deʃeɾe´ʃa a´ve] nde che- r- echa ave você 1a.sg-inv-ver PTC ‘você me vê também’

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Notemos que a não presença do sufixo de caso acusativo {-pe} implica na mudança de estratégia de codificação do SN em função de (O). A ordem dos constituintes também pode codificar esse SN acusativo, que, em geral, ocorre de acordo com a ordem preferencial (SVO). Desse modo, no dado de número (5), o sufixo marcador de caso acusativo {-pe} é opcional. Observemos outro exemplo com essa mesma ordem de constituinte, mas sem a marca morfológica de caso. (7) S V O [ha´ʔe ndoʤu´kai ʤagwaɾe´tɛ ´maʃo] ha’e nd- o- juka -i jaguarete macho ele neg-3a. matar-neg onça macho ‘ele não matou a onça macho’ Considerando a temática do presente trabalho, passamos a enfatizar essa questão de ordem de constituinte, tratando concisamente da possibilidade de ser manifesta a influência do português e do castelhano na língua guarani (ou melhor, em suas variedades linguísticas do guarani faladas atualmente) resultante do contato íntimo estabelecido. Segundo Thomason e Kaufman (1988), numa situação de contato entre uma língua estrangeira (fonte) e uma língua nativa (local), a mudança linguística nesta última verifica-se de forma mais sistemática na área do léxico, por meio de empréstimos lexicais, porém em caso de contato mais longo e consistente, as línguas nativas podem incorporar também traços fonéticos, morfológicos e sintáticos. Tal como previsto na teoria proposta, os dados do guarani (kaiowá) aqui descritos evidenciam a influência do português, sobretudo, manifesta no léxico. E quanto ao empréstimo manifesto na sintaxe, podemos de igual modo, evidenciar mudanças sintáticas induzidas pelo longo contato com o português e também com o castelhano. Rodrigues (1996) comprova ter havido influência gramatical do português nas

línguas gerais, e não do tupi, do tupinambá ou das línguas gerais para o português, tendo em vista que a influência das línguas ameríndias para o português parece ter se restringido ao vocabulário. Ao comparar o português e o tupinambá quanto ao sistema de sons, às formas verbais, ao sistema de demonstrativos, à distinção de gênero e número, e a distinções lexicais, Rodrigues mostra que por esses processos de mudanças linguísticas houve uma aproximação da língua tupinambá em relação à gramática do português.

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A exemplo de empréstimos gramaticais ou estruturais, tomamos o caso da mudança na ordem de constituintes do guarani de SOV para SVO. Para tanto, valemonos das colocações feitas por Dietrich (2009), Martins (2003) e Cardoso (2010). Dietrich (2009:9), ao tratar do “Cambio del orden de palabras em lenguas tupíguaraníes”, observa que, atualmente, há uma tendência à posposição, ou seja, ao uso da ordem SVO no guarani paraguaio. Segundo o autor, esta tendência deve-se à forte influência do castelhano, que no caso do guarani paraguaio, o contato entre as línguas leva mais de 400 anos. Para Martins (2003:163), a mesma tendência à posposição é observada junto a dados do mbyá oriundos de informantes jovens, indicando que o processo de mudança de ordem também está ocorrendo em mbyá (cf. 8), possivelmente por influencia do português. (8)

S V O xee a-ø-exa Maria pe eu 1sg-Rel-ver Maria eu vejo Maria (Martins, 2003)

Em Cardoso (2010:164), os dados do kaiowá ilustram a ocorrência da nova ordem preferência do guarani atual, a ordem SVO. (9)

S V O [´ʤagwa oisu´ʔu kunu´mĩ] jagwa o-i-su´u kunumĩ cachorro 3ª.(A)-dir-morder menino-Acus ‘o cachorro mordeu o menino’

Ainda segundo Cardoso (Op. Cit, p.164), o processo de empréstimo sintático em guarani, por implicar numa mudança tipológica (mudança na ordem de palavras) promovida por língua(s) tipologicamente distintas, configura-se como mais um contraexemplo à Hipótese de Compatibilidade Estrutural de Allan (1980, apud Harris; Campbell, 1995: 123) que postula haver influência sintática apenas quando duas línguas têm “uma boa dose de similaridade sintática”, ou seja, quando ambas são tipologicamente semelhantes. Como vimos, a literatura tem considerado a mudança na ordem de constituintes do guarani de SOV para SVO como uma manifestação de influência sintática

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promovida por línguas tipologicamente distintas, no caso as línguas europeias, e as variedades do guarani que se encontram em situação de contato íntimo. O PORTUGUÊS DE CONTATO DOS KAIOWÁ (GUARANI) Longe de assumirmos (ou não) a hipótese de crioulização do PB por línguas ameríndias, versamos sobre uma das variedades do português falado atualmente neste território - o português de contato dos kaiowá/guarani do estado de Mato Grosso do Sul. Para isso, partimos dos fenômenos linguísticos elencados na literatura como sendo indícios de processos de crioulização do português em terras brasileiras (cf. no tópico 3). Abaixo, descrevemos aspectos fonético-fonológicos, morfossintáticos, lexicais e semânticos usados no português de contato falado pelos índios k/g. - Aspectos fonético-fonológicos Alguns vestígios fonético-fonológicos do contato entre a língua kaiowá (guarani) e as línguas europeias, o português e o castelhano, podem ser observados em processos como: a) simplificação da estrutura silábica do português (com o uso do padrão silábico da língua nativa). (10) torneira: [toɾo´neɾa] ~ [to´neɾa] enfermeiro: [fe®´meRo] mercado/armazém: [ama´se‚I]9 a’) acomodação ao padrão silábico da língua fonte. (11) trator: [ta´toɹ] ~ [ta´to] livro: [´bibilɪ̯ ə] ~ [´biblɪ̯ ə] ~[´bibla] ou [kwati´a gwa´su] ‘papel/livro grande’ bicicleta: [bisi´klɛtə] b) alternância entre /l/ e /r/. (12) calendário/almanaque: [aɹma´nake] flecha: [´fɾɛʃə] aldeia: [aɹ´deɪ̯ə] b’) adição do fonema /l/, bem como do fonema /f/

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(13) geladeira: [gela´deɾa] motorista: [ʃo´fɛɹ] bola: [pe´lɔta] c) nasalização das oclusivas . (14) bolo: [´mbolo] morre o mato: [´mbohe ´mato] no mato tem muito bicho: [´mato tɛ̃ mũɪ̯to ´mbiʃo] d) redução de ditongo nasal (15) avião: [ãvĩ´õ] ~ [avi´õ] calção: [ka´sõ] e) monotongação (16) relógio: [ahe´lɔgi] calculadora: [kakula´doɾa] geladeira: [gela´deɾa] f) paroxitonização (17) fósforo: [´fɔfɾo] óculos [´o: ko] ~ [´o: kogos] lâmpada: [lã´pɾa] ~ [[lã´pa] Ainda do ponto de vista fonético-fonológico, destacamos outras ocorrências que foram registadas em Cardoso (2010:159), também relativos ao português de contato dos kaiowá. São elas: g) adaptação fonética (19) vycho ~ mbycho < bicho vaka ~ baka ~ waka < vaca h) acomodação do padrão fonológico por acréscimo de consoantes epentéticas [Ɂ] (a oclusiva glotal desvozeada), representada na grafia pelo diacrítico < ´ >. (20) o´aprende < (ele) aprende ro´asisti < assistirmos i) acomodação silábica com acréscimo da consoante [n] (a nasal alveolar vozeada) em contextos nasais.

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(21) inãmigo < seu amigo j) acomodação por recombinação do padrão silábico, bem como a adição do fonema [l] lateral alveolar vozeado. (22) olumina < ilumina; ipeliro < ‘es peligroso’; luana < Luana; televizaw < televisão Enfim, alertamos a respeito da exposição de itens emprestados do castelhano, tais como pelota ‘bola’ e ipeliro ‘es peligroso’, que são resultantes do contato dos índios guarani (kaiowá) com os espanhóis desde o período colonial e, atualmente, procedendo do contato com falantes desta língua que vivem na região da fronteiriça entre Brasil e Paraguai. - Aspectos morfossintáticos Dentre os poucos dados transcritos de que dispomos desse português de contato, pudemos observar alguns dos processos de simplificação morfossintática. Com intuito de adicionar elementos linguísticos a este aspecto, adotamos dados do português de contato dos kaiowá expostos no trabalho realizado por José Filho (2000:58-71). Passemos, então, a observar processos de simplificação morfossintáticos próprios dessa variedade do português indígena falado em terras brasileiras. a) neutralização entre as 1ª e 3ª pessoas verbais. (23) ‘eu foi na aviveiro trabalhar’ b) variação da concordância de número no sintagma nominal (SN). (24) ‘os professor foi marcando o nomes’ ‘os índio cachorro correu atrai do viado’ ‘depoi de termina toda vieram na sala’ ‘depoi de conversar sobre a árvores’ ‘nos mato ou nas floresta que tenha bastante madeira’ c) variação da concordância de gênero no SN. (25) aluna: [ala´luna] professora: [a ku¯ã mbo/e´haRa]

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com chinelo: [haSinE´lape] ‘todos coisa’ d) variação, alternância, ou ainda, a ausência de preposições. (26) ‘tirou frecha para asserta do viado’ ‘marcelo ficou filmando para os alunos’ ‘o branco depoi vender terra índio’ ‘nós brincava bola sexta feira’ ‘professor disse por alunos’ e) justaposição de genitivos ou de outros elementos do SN. (27) ‘depoi índio carta para branco’ ‘quatro grupo cada’começou tirar semente de cedro’ ‘atirou frecha cachorro índio’ f) uso variável de artigos. (28) ‘outro xutou alto de mais i Ø bola foi na janela’ ‘com Ø dia Ø árvore nós plantar árvore’ 5.3 Aspectos lexicais e semânticos O que é bem aceito entre os autores que divergem a respeito do grau de influência dos “substratos” no português do Brasil é a ocorrência de empréstimos vocabulares. Esses itens lexicais emprestados, em geral, pertencem ao campo semântico da fauna e da flora, além de topônimos, são exemplos: quati, guará, jacá, jaú, nambú, jurubeba, lambari, mandioca, Jaguapiru, Goiás, Tiete, entre outros. Contudo, aproveitamos aqui para apresentar dados do português de contato dos kaiowá em que se verificam casos de: a) neologismos semânticos (29) [mbɔ´tɨ] = desligar um aparelho eletrônico (mboty = fechar, tapar) [tiɾa ãŋ´ga] = tirar foto(grafia) (anga = alma) [õmbo/e´Ru] = igreja (ombo’eru = ‘ensino do pai’) b) neologismos de forma (30) Padaria: [´pãʊ̯ wẽnda] (pão venda = venda de pão) Farmácia: [pohãɾẽ´nda] (remédio venda = venda de remédio)

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Diante do exposto, alertamos para o fato de que muitos dos processos linguísticos observados no português de contato dos kaiowá também são compartilhados por falantes monolíngues em português (no Brasil). O uso de variantes do português vernáculo por falantes k/g, além de dar indícios a respeito do tipo de interação linguística e dos possíveis interlocutores que interagem nas situações de contato, podem ainda evidenciar diferentes níveis de bilinguismo, ou ainda, diferentes níveis de fluência linguística decorrentes da aquisição irregular ou não da segunda língua. Acreditamos que tais níveis de fluência devem ser apreciados a partir da ideia de um continuum entre o maior e o menor nível de aquisição e uso da segunda língua falada pelos k/g. Destacamos que almejamos analisar esse assunto com mais profundidade em pesquisas futuras. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo apresentou uma descrição concisa do português de contato falado por índios kaiowá/guarani, o qual, devido à situação de contato linguístico, tem características tanto da variedade do português vernáculo do Brasil quanto da língua kaiowá (guarani), línguas tipologicamente distintas. Em decorrência desse contato entre as línguas, ponderamos a respeito das variáveis sócio históricas envolvidas, além de, internamente, descrevermos sobre os efeitos linguísticos manifestos nos planos fonético-fonológicos, morfossintáticos, lexicais e semânticos do português de contato dos Kaiowá/guarani. Ao caracterizarmos também aspectos da língua kaiowá (guarani) de contato no Brasil, buscamos asseverar seu status de brasilidade, mesmo que por intermédio de apenas uma das varias línguas indígenas faladas hoje no Brasil. Declarando, assim, sob um ponto de vista sociolinguístico, uma democracia sociocultural. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPEL, René; MUYSKEN, Pieter (2005). Language Contact and Bilingualism. London: Edward Arnaold. BAXTER, Alan N. (1992). A contribuição das comunidades afro-brasileiras isoladas para o debate sobre a crioulização prévia: um exemplo do estado da Bahia, In: Ernesto d’Andrade e Alain Kihn (eds.): Actas do colóquio sobre crioulos de base lexical portuguesa. Lisboa: Colibri, 7- 35.

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ASPECTOS GRAMATICAIS DO CODE-SWITCHING EM AKWẼ XERENTE PORTUGUÊS Rodrigo Mesquita1

INTRODUÇÃO O foco deste trabalho está na investigação de aspectos gramaticais de codeswitching (doravante CS) na fala oral dos akwẽ xerente, envolvendo as línguas xerente (Jê) e portuguesa. Para tanto, nos apoiamos no modelo MLF (Myers-Scotton 1993a, 2002) buscando entender o papel das línguas envolvidas no discurso bilíngue xerente, considerando a comportamento de CS como um processo essencialmente criativo (Gardner-Chloros 2009b: 113) e não arbitrário. O povo indígena xerente tem uma população aproximada em 3.600 indivíduos, sendo a grande maioria bilíngue. As terras indígenas que ocupam, devidamente demarcadas, localizam-se no estado do Tocantins, aproximadamente cem quilômetros ao norte de Palmas, a capital. Os estudos anteriores realizados junto aos Xerente, sejam de natureza linguística, antropológica ou outros, revelam uma realidade cultural e sociolinguística imersa numa situação de contato com características comuns à vivida por outros povos indígenas e outras específicas. Esta situação é reveladora de fenômenos diversos, próprios de contextos de contato e bilinguismo e, entre eles, o code-switching. Braggio (2001/2002: 31) aponta várias situações em que línguas indígenas brasileiras estão sendo deslocadas, em diversos domínios sociais, pela língua dominante (o português). Entre elas está a língua xerente - família Jê, tronco linguístico Macro-Jê (Rodrigues, 1986) -, falada pelo povo indígena cujo histórico de contato com os não índios data de mais de duzentos anos. Desde 1989, com a criação do Estado do Tocantins, os Xerente se encontram no caminho do desenvolvimento daquele estado, principalmente pela proximidade com capital. Segundo Gardner-Chloros (2009a), o papel do CS e outros fenômenos comuns em situação de contato, em relação à mudança linguística, ainda é uma questão de discussão. Pesquisadores apontam que fenômenos decorrentes de dada situação de contato podem ter um papel mais ou menos determinante na mudança. Poplack (1980), 1

Doutorando em Letras e Linguístca pela Universidade Federal de Goiás, bolsista do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

por exemplo, ainda minimiza o papel do CS na mudança ao contrastá-lo com o empréstimo, que é visto pela autora como uma forma de convergência. Levando em consideração os aspectos sócio-históricos e a atual situação sociolinguística dos Xerente, acreditamos que o amplo entendimento do CS e do modo de vida bilíngue do povo akwẽ pode ajudar a elucidar se há conflitos diglóssicos revelados na prática deste e outros fenômenos linguísticos. A partir das considerações de Braggio (1997-2011) acerca do uso de CS entre os akwẽ, nosso estudo pretende avaliar o valor preditivo e explicativo do modelo MLF em situações de contato diglóssico, especialmente no que tange às restrições estruturais que o modelo propõe. Neste sentido, tentamos clarear o caminho para entender as funções do CS na sociedade xerente e se há alguma relação entre a forma como ocorre o code-switching em akwẽ e o possível processo de obsolescência da língua. O CODE-SWITCHING O CS trata-se de um fenômeno reconhecidamente inerente a falantes bilíngues ou multilíngues e não raro está relacionado a situações de contato linguístico e sociocultural. O CS é geralmente definido como “o uso alternado de dois ou mais códigos por indivíduos bilíngues numa mesma interação conversacional” (Grosjean 1982: 145-6). Bullock e Toribio (2009: 4) acrescentam que esse uso alternado não é aleatório e que um conjunto significativo de pesquisas tem demonstrado amplamente que o CS não representa uma falha de comunicação, mas reflete a manipulação hábil de dois sistemas linguísticos para diversas funções comunicativas.

Dos primeiros registros sobre o fenômeno, os mais conhecidos são os de Haugen (1953, apud. Myers-Scotton 1993b) e Weinreich (1953, apud Myers-Scotton 1993b) que, embora não tratem especificamente do assunto, observam sua ocorrência e relacionam o fenômeno a uma forma de “interferência”, interpretada em seu sentido literal. Essa visão pressupõe a noção de “bilíngue imperfeito”, ou seja, um falante incapaz de manter uma conversa na língua tida como base naquele momento. Este ponto de vista pode ser percebido no trecho:

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O falante bilíngue ideal alterna de uma língua para outra de acordo com alterações adequadas na situação do discurso (interlocutores, tópicos, etc.), mas não em uma situação de discurso inalterada e, certamente, não dentro de uma única sentença. (Weinreich 1953, apud Myers-Scotton 1993b: 48)2

Para Myers-Scotton (1993a, 1993b), esta posição reflete a visão prevalecente de seu tempo, de que os sistemas de uma língua são tão bem organizados que fenômenos como empréstimo e CS devem ser vistos apenas como fatores periféricos, utilizados para preencher lacunas no léxico. Para a autora, esta visão não contempla a possibilidade de que fatores estruturais e/ou sociolinguísticos possam restringir ou facilitar a entrada de empréstimos ou CS ou ainda que existam categorias lexicais que são mais suscetíveis à ocorrência desses fenômenos do que outras. Nesta perspectiva, Poplack (1980) afirma que não se deve relacionar necessariamente o CS com deficiência de nenhum falante, tampouco das línguas envolvidas e que, pelo contrário, trata-se de um bom indicador da habilidade bilíngue dos falantes com competência em ambas as línguas. A partir da década de 70, vários estudos específicos ou não sobre CS se desencadearam, com destaque ao artigo de Blom e Gumperz (1972), que deu maior ênfase ao fenômeno e estabeleceu bases teóricas e classificações que foram consideradas em diversos estudos posteriores. Entre estas classificações está a distinção entre CS situacional e metafórico e conceitos como “we code” e “they code”3. Os estudos subsequentes sobre code-switching basicamente se distinguiram em duas correntes, que se complementam para o amplo entendimento do assunto. A primeira trata os aspectos sócio-pragmáticos de eventos de fala bilíngues e se dá pela categorização, quantificação e análise das funções pragmáticas e motivações sóciopsicológicas subjacentes ao code-switching. A segunda busca formular restrições formais e padrões de ocorrência universais para esta prática discursiva, mais particularmente ao code-switching intra-sentencial, isto é, o uso alternado de dois códigos dentro dos limites de uma sentença. Sendo assim, 2 The ideal bilingual switches from one language to the other according to appropriate changes in the speech situation (interlocutors, topics, etc.), but not in an unchanged speech situation, and certainly not within a single sentence. 3 As noções de we-code e they-code foram introduzidas pelo linguista John Gumperz. Para Gumperz (1982), em contextos de contato linguístico com configurações de conflitos diglóssicos, a língua do grupo minorizado é considerada como we-code, ou ‘nosso código’, por estar relacionada com fatores identitários e internos ao grupo, sendo assim associado a algo mais informal. Por outro lado, o they-code (código deles) está relacionado à língua majoritária e, assim, relacionado a situações mais formais. Uma vez que, para Gumperz (1982b, apud. Gardner-Chloros 2009b: 104), a relação entre a ocorrência de um conjunto particular de formas linguísticas e o contexto extralinguístico é indireta, “no CS, o we-code e o they-code são geralmente usados na mesma conversação” (Gardner-Chloros 2009b: 105).

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a pergunta central do primeiro tipo de pesquisa é como a escolha linguística reflete poder e desigualdade, ou é um índice de ‘direitos e obrigações’ atribuídos aos componentes de certas categorias sociais. A segunda tradição geralmente diz respeito à questão das restrições sintáticas dentro do panorama de uma teoria gramatical particular. (Auer 1998: 3).

- A tipologia de CS Conforme Milroy & Muysken (1995), o CS pode acontecer nos atos de fala de vários indivíduos durante a conversação, nas elocuções dentro de um único ato de fala e ainda dentro de uma elocução simples. Vários modelos foram elaborados na tentativa de classificar os dados de CS. O que há de comum entre eles é a distinção entre CS intersentencial e intra-sentencial. No CS intersentencial frases completas são alternadas fazendo uso de línguas diferentes. Neste caso, os diferentes sistemas gramaticais estão de acordo com as gramáticas das respectivas línguas em uso, conforme os exemplos (1) e (2). Nestes, o falante bilíngue em xerente/português alterna entre as duas línguas na mesma interação, mantendo em cada sentença a estrutura morfossintática da língua utilizada. (1) Eu acho que... não sei. i))wanã mãtô kbâ kutõ. ‘Eu acho que... não sei. Antes já tinha acabado.’ (2) Qualque dia, pode se terça, tem que se. Ah! Watôre dure i))nporpuk. ‘Qualquer dia, pode ser terça, tem que ser. Ah! (INT) Agora me lembrei.’ Para Poplack (1980: 98) o CS intra-sentencial exige “uma maior competência linguística do falante”, em relação ao CS intersentencial. Bullock e Toribio (2009) discordam, justificando que a alternância implicando a produção muitas vezes de cláusulas completas em cada língua, requer um nível avançado de proficiência bilíngue, tal qual para a produção do CS intra-sentencial. Embora o material fornecido por este tipo não seja tão rico em informações linguísticas da interação entre as gramáticas das línguas envolvidas quanto o CS intrasentencial, este tipo de ocorrência pode apresentar indícios das motivações extralinguísticas que operam na interação. Contudo, este não é o foco do presente trabalho e deverá ser discutido em outras oportunidades. Já no CS intra-sentencial, como nos exemplos xerente-português (3) a (5), a alternância pode ocorrer no meio das frases ou em parte delas. Também conhecido

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como CS clássico4, esse tipo de CS é geralmente o alvo das investigações que buscam indícios sobre o modo como as duas gramáticas da fala bilíngue interagem a nível das sentenças e/ou outras unidades de análise (veja em 3.1., adiante). (3) Ai EJA wa-m-hã tem aluno que vai trena, Ai EJA 1NSG-DAT-ENF5 tem aluno que vai treinar pode trena rowahã wa-me)). pode treinar à tarde 1NSG-COM ‘Ai os que estão na EJA6 tem aluno que vai trena pode trena à tarde conosco’ (4) Pke segunda waza saiku, ku))wa krikahã-arE-ku. Porque segunda 1FUT.IMP.IRREA subir lá cidade-grande-ILAT ‘Porque segunda eu vou subir (ir) lá para cidade grande’ (5) Mais até we i))-s-kuzu terça-nã mãkrã-ku Mais até vir 1-REF-insistir terça-INES anoitecer-ILAT i))-wsi-da ou amzumre. 1-chegar-PRPS ou meio dia. ‘Mas até vou tentar voltar terça no fim da tarde ou meio dia.’ Embora haja definições amplas, como a de Grosjean (1982), que abarquem a noção de que há uma alternância para outra língua, seja através de uma palavra, uma frase, uma sentença, etc., o CS intra-sentencial unitário também é tratado por alguns autores como inserção (Muysken 2000) ou empréstimo lexical (Poplack 1980) e que não exigem tanta proficiência bilíngue do falante em relação aos demais tipos (Bullock e Toribio 2009: 4). Para o momento, corroboramos com a afirmação de Myers-Scotton (1993a), para a qual o CS deve ser analisado como um continuum juntamente ao empréstimo e não como fenômenos não relacionados, uma vez que seguem em princípio as mesmas

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O termo CS clássico (classic code-switching) foi sugerido por Myers-Scotton (1993a) e se tornou recorrente nos estudos subsequentes da autora e de vários outros estudiosos de CS. Myers-Scotton (2006: 241) explica que o termo inclui “elementos de duas ou mais línguas/variedades (language varieties) que se encontram na mesma cláusula, mas apenas uma dessas variedades fornece a estrutura morfossintática para a cláusula”. 5 Os morfemas da língua xerente foram tratados aqui como em Sousa Filho (2007), a fim de manter a coerência nos estudos sobre a língua: 1NSG – 1º pessoa não singular; DAT – dativo; ENF – marcador enfático; COM – comitativo; 1FUT.IMP.IRRE – 1ª pessoa futuro (tempo) imperfetivo (aspecto) irrealis (modo); ILAT – Ilativo; INES – inessivo; REF – reflexica (partícula); PRPS - propósito. 6 Abreviatura de Educação de Jovens e Adultos, modalidade de ensino regulamentada pelo artigo 37 da LDB, geralmente direcionada a alunos jovens e adultos que não completaram os períodos da educação básica em idade considerada apropriada. Esta modalidade é adotada em várias escolas indígenas dentro do território xerente.

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regras, ou seja, geralmente estão sujeitos aos mesmos procedimentos morfossintáticos durante a produção da linguagem. O MATRIX LANGUEGE FRAME MODEL - MLF Entre os modelos teóricos explicativos de CS, adotamos neste trabalho o Matrix Language Frame Model - MLF (Myers-Scotton 1993a, 2002). Tal modelo foi preterido em relação aos demais por apresentar construtos teóricos sensíveis aos dados linguísticos de CS em situações de contato assimétrico, ou seja, entre línguas com configuração de poder desiguais. Considerada como uma abordagem de produção (Gardner-Chloros 2009a), o modelo é voltado ao CS intra-sentencial, ou mais especificamente, CS clássico. Neste modelo teórico, a autora explica que o CS se dá através de um conjunto de princípios linguísticos abstratos, possivelmente baseados em aspectos cognitivos e que estão presentes nas diferentes comunidades linguísticas (ou comunidades de fala). Myers-Scotton (2002) estabelece como unidade de análise a CP (Projection of Complementizer) ou projeção do complementizador e se baseia nas distinções entre língua matriz (ML)7 e língua encaixada (EL) e entre morfemas de conteúdo e morfemas de sistema. A CP é redefinida pela autora (Myers-Scotton 2002), por ser considerado como unidade de análise mais adequada para tratar de fenômenos de línguas em contato em geral, em relação à sentença, como foi utilizado pela autora anteriormente (MyersScotton 1993a), quando tratou mais especificamente o code-switching. Myers-Scotton (2002: 54) justifica que “mesmo no interior de uma sentença, as gramáticas podem não estar em contato”. Para a autora, a CP é a estrutura sintática que expressa a estrutura predicado-argumento de uma proposição, além de estruturas adicionais necessárias para codificar as estruturas relevantes ao discurso e a forma lógica dessa proposição (MyersScotton 2002: 54).

Também é importante salientar que, neste modelo, as estruturas gramaticais estão contidas em lemas (entradas abstratas no léxico mental de um falante), que são escolhidos e ativados no nível conceitual de produção linguística. Nesta direção, a

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Este trabalho mantém as abreviaturas utilizadas por Myers-Scotton, ou seja, ML (matrix language) para a língua matriz e EL (embedded language) para a língua encaixada.

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autora explica que tanto no modo de fala monolíngue quanto no bilíngue a forma como se realiza a elocução dependerá de informações pragmáticas e sócio-pragmáticas. Myers-Scotton & Jake (2009: 339) resumem assim as três premissas básicas do modelo MLF: 1. As línguas participantes não desempenham papéis iguais na cláusula bilíngue (assimetria). 2. Em constituintes bilíngues dentro desta cláusula, nem todos os tipos de morfemas vem igualmente da ML ou EL. 3. O Princípio do Morfema de Sistema delimita a ocorrência de morfemas de sistema que constroem a estrutura de cláusula da ML. - Língua matriz e Língua encaixada Os estudos focados nas características estruturais do CS intra-sentencial em geral dependem da especificação de uma das línguas envolvidas como língua base ou língua matriz. No entanto, muitos estudos relatam a dificuldade de especificar qual das línguas assume este papel na interação. Segundo o MFL, uma das línguas envolvidas cede o sistema morfológico e suas categorias funcionais, constituindo o quadro no qual os elementos da outra língua podem se integrar. Para Myers-Scotton (1993a), quando um CS intra-sentencial ocorre, a distribuição das línguas envolvidas é assimétrica. Neste sentido, a língua mais abrangente estruturalmente é a ML e a outra é a EL. A ML, portanto, fornece os quadros gramaticais abstratos onde a EL é encaixada. No MFL, a identificação da ML pode ser feita identificando na CP bilíngue qual é a língua responsável pela estrutura (ordem dos morfemas) e com “morfemas de sistema críticos”. Conforme Myers-Scotton (2002: 59) estes são “morfemas de sistema que apresentam relações gramaticais externas ao seu constituinte núcleo”. Em consonância com o modelo de marcação (Myers-Scotton 1993b), a autora acrescenta que a definição ainda está sujeita a fatores sociolinguísticos, uma vez que a ML é, geralmente, a opção não marcada na interação em que se manifesta o CS e não raro coincide com a L1 do falante e da comunidade de fala em que está inserido. Fatores sociopolíticos, educacionais, situacionais, enfim, macro e micro contextos são relevantes e podem determinar, por exemplo, que a L1 dos falantes se converta em EL. Segundo Myers-Scotton (2002), a CP pode consistir de

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1) ilhas de ML, contendo apenas morfemas de ML; 2) constituintes mistos, incluindo morfemas da ML e EL e 3) ilhas de EL, contendo apenas morfemas da EL. As ilhas de ML são formadas por morfemas da ML e estão sob o controle da gramática da ML. Por outro lado, as ilhas de EL também são bem-formadas (wellformed) pela gramática da EL, mas estão inseridas em um quadro da ML. Portanto, ilhas de EL estão sob a restrição da gramática da ML. Os exemplos abaixo ilustram a divisão de CPs: (6) [Ndio wa-zungu wa-na-sem-a]cp [old habits die hard]cp Sim CL2-Europeu CL2-NONPST-dizer-FV 8 "Sim [como] os europeus dizem, velhos hábitos custam a morrer." (Swahili/English; Myers-Scotton 2002: 56) (7)[Lakini sasa wewe angalia profit [amba-yo a-li-end-a ku-make]cp]cp Mas agora você olha para lucro REL-CL9 3s-PAST-ir-FV INF-obter "Mas agora você olha para [o] lucro que ele foi [adiante] para obter." (Swahili/English; Myers-Scotton 2002: 57) (8)[Lakini a-na so many problems, mtu [a-me-repeat mara ny-ingi]cp]cp Mas 3S-com tantos problemas pessoa 3S-PERF-repetir vez CL9-muito “Mas ele tem tantos problemas, [que] [ele é] uma pessoa [que] tem repetido muitas vezes." (Swahili/English; Myers-Scotton 2002: 57) Segundo Myers-Scotton (2002), o exemplo (6) contém duas CPs em uma sentença bilíngue, porém são duas CPs monolíngues, uma em Swahili e outra em Inglês. A autora salienta que “por esta razão, este não é o tipo de code-switching que é estudado com a CP bilíngue como unidade de análise” (Myers-Scotton 2002: 56). Os exemplos (7) e (8) também contém duas CPs, porém ilustram, segundo Myers-Scotton, o tipo de componente no qual as duas línguas estão realmente em contato, ou seja, a CP bilíngue, unidade de análise do modelo MLF. - Morfemas de conteúdo e morfemas de sistema Outra distinção crucial na identificação da ML é a distinção entre morfemas de conteúdo e morfemas de sistema. Os morfemas de conteúdo expressam papel semântico e pragmático e atribuem ou recebem papéis temáticos. São, por exemplo, substantivos, 8

Conforme Myers-Scotton (2002): CL: termo de classe (noun class); NONPST: não-passado; FV: vogal final; REL: relativo; PAST: passado; INF: infinitivo; 3S: 3ª pessoa singular; PERF: perfectivo.

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verbos, adjetivos, marcadores discursivos e algumas preposições, essenciais na transmissão de mensagens em um evento comunicativo. Os morfemas de sistema expressam a relação entre os morfemas de conteúdo e não atribuem ou recebem papéis temáticos. Alguns exemplos são flexões, determinantes, adjetivos possessivos e palavras funcionais, essenciais na construção dos quadros gramaticais. Há uma semelhança, porém sem paralelismo perfeito, entre esta dicotomia e outras como classe aberta e classe fechada e de elementos gramaticais em oposição a elementos léxicos. Para Myers-Scotton (2002:71) conteúdo é um termo de fácil compreensão, que provoca poucos problemas” [e que] ...morfemas de sistema é usado porque identifica uma classe de morfemas com mais precisão do que qualquer um dos outros termos utilizados, classe fechada de palavras ou elementos funcionais9. (grifos da autora)

Assim, em CPs bilíngues, um tipo específico de morfema de sistema é aplicado apenas a partir da ML e os morfemas de conteúdo podem partir tanto da ML quanto da EL. A partir desta distinção entre os tipos de morfema, Myers-Scotton (1993a) propõe dois princípios para identificar a ML em CPs bilíngues: O Princípio da Ordem dos Morfemas: Em constituintes ML+EL consistindo de ocorrências individuais de lexemas da EL e de qualquer número de morfemas da ML, a ordem dos morfemas de superfície será a da ML. O Princípio do Morfema de Sistema: Em constituintes ML+EL, todos os morfemas de sistema que possuem relações gramaticais externas ao núcleo de seu constituinte virão da ML. (Myers-Scotton 1993a: 83)

MÉTODO, DADOS E SUJEITOS DA PESQUISA - Contextualização da pesquisa Neste tópico apresentamos sinteticamente os aspectos da organização social xerente e da atual situação sociolinguística, que inclui a situação de contato assimétrico com a sociedade majoritária. Tal explanação é fundamental para o conhecimento da comunidade de fala e dos eventos de fala (Hymes 1972), cujos discursos estão carregados de escolhas pragmáticas e variações de estilo motivadas pelos macro e micro contextos situacionais.

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Sobre esta discussão, veja Myers-Scotton (2002: 69-72).

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Farias (1990) relata que os primeiros contatos dos Xerente com os não índios se deram no século XVII e se intensificaram a partir da segunda metade do século XVIII, quando passaram por processos de aldeamento e catequização. A partir de então, os Xerente travaram diversas batalhas por sua sobrevivência, enfrentando a população sertaneja que avançava em busca de terras para pastagem e exploração vegetal e mineral. Além disso, sofreram com epidemias e doenças ainda desconhecidas e, portanto, não passíveis de serem tratadas com o conhecimento de plantas medicinais que possuíam. Tudo isso ocasionou uma redução demográfica que quase os levou à extinção. A recuperação demográfica só foi possível com a demarcação das Terras Indígenas Xerente e Funil em 1972 e 1988, respectivamente, e com as garantias advindas da Constituição Federal de 1988 que, embora aplicada de forma tímida, deu o pontapé inicial para que uma nova luta se iniciasse, desta vez com argumentos ancorados em leis. A cidade de Tocantínia, onde está a maior parcela das terras xerente, fica a aproximadamente cem quilômetros de Palmas. É nesta cidade que pode ser observado, a qualquer hora do dia, a movimentação de vários akwẽ, nas ruas e praças da cidade, no comércio, nas escolas e em suas próprias casas. Na cidade, muitas vezes ficam à margem da sociedade, são discriminados e expostos ao uso abusivo de álcool e drogas. Muitos justificam que vão para a cidade em busca de melhores condições de vida, de emprego e para acompanhar os filhos que lá vão estudar. Em 2006, havia aproximadamente 150 crianças e jovens Xerente matriculados nas escolas da cidade. Em 2012, há 182 alunos matriculados, mesmo com vagas de educação infantil e ensino fundamental nas escolas distribuídas dentro da reserva xerente. Há uma série de conflitos envolvendo a educação escolar indígena10, que vão desde a atitude dos pais, que divergem quanto à língua em que seus filhos deverão ser educados (L1 ou L2), até as políticas públicas que estão longe de efetivar o que está garantido no papel, ou seja, uma educação diferenciada, dentro dos moldes e necessidades da cultura. É no ambiente urbano, entre os mais jovens e mais escolarizados, que Mesquita (2009) identificou a maior intensidade no uso de empréstimos. Assuntos que, num passado não distante, não faziam parte do repertório da língua e da cultura xerente, tais como programas de televisão (há três anos não havia sequer energia elétrica na maioria

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Sobre o assunto, veja Braggio (2008).

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das aldeias), problemas burocráticos a serem resolvidos na cidade, novidades tecnológicas, assuntos escolares e outros são possíveis motivadores para a ocorrência de empréstimos e também o CS entre os Xerente. Esse fator chama atenção quanto à variável ‘tópico’, como uma potencial determinante para ocorrência de CS. Segundo Grosjean (1982), alguns assuntos são mais passíveis de serem tratados em determinada língua do que em outra. Para o pesquisador, isso se dá seja porque o falante aprendeu a falar sobre os temas em uma determinada língua ou ainda porque não seria apropriado trata-los na outra. Em situações de línguas em contato com diglossia, as pressões sociais atuantes nestes contextos sociolinguísticos podem levar as línguas a uma situação de concorrência (Braggio 2010). Desta forma, alguns tópicos podem estar ligados a domínios sociais relacionados à língua/cultura majoritária. - Bases metodológicas A etnografia da comunicação, tal como postulada nos trabalhos de Hymes (1972a, 1972b e 1981), Gumperz e Hymes (1972) e Gumperz (1996) funcionam como fio condutor na coleta dos dados. Esta perspectiva nos permite, além de investigar aspectos gramaticais dos dados de CS, discutir alguns aspectos sócio-pragmáticos levando em consideração o contexto de produção dos mesmos. Hymes (1981) aponta a pesquisa etnográfica como a observação sistemática e detalhada durante um considerável período de tempo no local em que vive uma comunidade de fala, ou seja, no ambiente natural em que ocorrem os eventos de fala. Gumperz e Hymes (1972), ao propor um modelo multidisciplinar de investigação do comportamento comunicativo em contextos culturais, a Etnografia da Fala ou Etnografia da Comunicação, propõem uma série de conceitos intitulados unidades sociais. São eles: competência comunicativa, repertório comunicativo e comunidade de fala, que dizem respeito aos indivíduos e sua relação com os códigos linguísticos; e situação comunicativa, evento de fala e ato de fala, quanto às situações de uso dos códigos. Hymes (1972a) define evento de fala como um momento em que dois ou mais falantes se comunicam, em ocasiões de atividades ou aspectos de atividades sociais que são diretamente governadas por regras ou normas para o uso da fala, definidas na comunidade de fala. Neste sentido, o autor considera a comunidade de fala como unidade natural da teoria sociolinguística, por ser caracterizada como um todo

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organizado por normas compartilhadas que regulam as diferentes situações e eventos comunicativos e que compartilha a mesma concepção social e cultural do mundo. Hymes (1972b) defende ainda a heterogeneidade da comunidade de fala e admite que um indivíduo pode participar de diferentes comunidades de fala, o que torna a relação entre estas e o indivíduo bastante fluida. No mesmo sentido, Gumperz (1996) justifica a diversidade dentro de uma comunidade de fala, afirmando que ela se constitui por uma variedade de redes de socialização, associadas a padrões linguísticos de uso e interpretação. Porém, para Gumperz, o papel das redes sociais deve ser considerado como unidade de análise e não a comunidade de fala: Se os significados residem em práticas interpretativas e essas se localizam em redes sociais nas quais o indivíduo é socializado, então as unidades “cultura-” e “língua-” não são as nações, os grupos étnicos ou algo parecido (...) ao invés, são redes de indivíduos em interação (Gumperz 1996: 11).

Dentro da perspectiva de Hymes (1972) e Gumperz (1996), levantamos, inicialmente, algumas possíveis redes sociais mais abrangentes entre os Xerente, ou melhor, a comunidade de fala Xerente: 1) ambiente familiar; 2) pessoas que vivem na cidade; 3) ambiente escolar; 4) reuniões das lideranças; 5) conversas públicas (rádio amador); 6) discurso dos anciãos e 7) rituais. Estes domínios sociais são os mesmos levantados em Mesquita & Braggio (2012), ao tratar os empréstimos semânticos em Xerente, exceto pelo acréscimo aqui do item (5). Isso porque as peculiaridades dessa rede social só foram percebidas mais recentemente e é justamente dela que recortamos a amostra de dados apresentada neste trabalho. - Os sujeitos da pesquisa A população xerente é de aproximadamente 3.600 pessoas, divididas em cerca de 64 aldeias (novembro de 2013). Este trabalho conta com a colaboração de 3 pessoas.

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O evento de fala analisado se insere no item (5) da lista anterior (item 4.2), ou seja, conversas públicas através do rádio amador. Foi gravado, portanto, em ambiente natural de fala e envolve a participação de três homens, jovens com idades entre vinte e quatro e trinta e dois anos, indígenas e bilíngues em xerente/português. Todos têm como primeira língua (L1) o xerente. No evento de fala, que tem um tempo total de 11 minutos e 42 segundos, cada participante está em uma aldeia diferente: Waktõhu, Brupre e Mirassol, todas localizadas na Área Indígena Xerente. - A coleta de dados e os instrumentos da pesquisa A escolha da amostra foi proposital na medida em que recorta um evento de fala com maior probabilidade de ocorrência de CS. Acreditamos, até o momento, que o tópico principal da conversação (educação escolar indígena) e a faixa etária dos falantes (+-jovens11), além de outras micro variáveis atuantes no recorte, podem ser potenciais motivações para a ocorrência de CS. Agar (1996: 169) alerta que uma amostra extraída de acordo com variáveis (a princípio) mais convencionais pode revelar-se simplista ou até enganadora diante os eixos de agrupamento e/ou diferenciação que estruturam o objeto da pesquisa. Para o autor, à medida que o conhecimento do campo estudado é aprofundado, há uma maior percepção das classificações operantes no contexto em questão. Desta forma, é claro que poderemos, mais adiante, nos deparar com resultados diferentes. Esse aspecto exige reflexão e (re)interpretação constante dos dados, o que é próprio da análise quantitativa. Os dados foram coletados em junho de 2012, em ambiente natural, onde os eventos de fala ocorrem. A observação participante foi o método eleito. Para Agar (1996), este método permite ao pesquisador entrar no mundo dos indivíduos que colaboram com sua investigação. Com o consentimento dos auxiliares de pesquisa, gravações de áudio em meio digital formam a base de dados que, posteriormente, foram transcritos e submetidos à análise. De qualquer forma, a transcrição dos dados foi despersonalizada. As gravações são acompanhadas de notas e observações em diário de campo, para identificação dos sujeitos e do contexto em que os enunciados foram produzidos.

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Quanto à faixa etária, é utilizada aqui a mesma subclassificação adotada em Mesquita (2009): 1) até 10 anos (crianças); 2) de 11 a 20 anos (+ jovens); 3) de 21 a 49 anos (+- jovens); e 4) 50 anos ou mais (velhos).

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Estas observações mostraram-se valiosas para posterior descrição e interpretação dos dados. Os dados foram transcritos de acordo com a ortografia padrão do português, considerando as suas variações e com maior fidelidade possível à produção fônica. A língua xerente foi transcrita de acordo com a escrita vigente na comunidade, e conforme a proposta de Krieger e Krieger (1994), no intuito de aproximar o trabalho da comunidade indígena pesquisada. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS No recorte apresentado há uma conversa através do rádio entre três akwẽ. Cada um está em uma aldeia diferente: Waktõhu, Brupre e Mirassol. Aí está estabelecido o ambiente aldeia, em oposição à cidade. Todos vivem nas respectivas aldeias, estão envolvidos na educação escolar indígena e falam especificamente de assuntos referentes à escola da aldeia Brupre. Os três falantes tem o mesmo sexo, a mesma faixa etária e vivem em ambientes semelhantes, ou seja, são jovens homens adultos que vivem em suas respectivas aldeias. Em uma análise sociolinguística com uma amostra de dados e número de participantes maiores, os três provavelmente comporiam uma mesma célula sociolinguística. Isso pode justificar porque não fizemos distinção entre eles nos dados expostos e que, em geral, utilizaram recursos semelhantes na produção de CS. Os principais temas da conversação são educação escolar (como deveria ser aplicada a disciplina ‘Ensino Religioso’ na escola Brupre) e as atividades esportivas na escola. Saudações e outros assuntos secundários também aparecem. Vale considerar que a conversa no rádio se dá diretamente entre as pessoas envolvidas, mas é de certa forma pública, pois é ouvida nas outras aldeias onde há o rádio. Às vezes, há interferências de outras conversas ou pessoas ‘entram’ na interação iniciada por outras (como é o caso destes dados). O rádio pode funcionar assim como um ponto de encontro entre pessoas que estão em locais diferentes e servir assim para pequenas ‘reuniões’. Estas reuniões costumavam acontecer sempre no warã, um espaço comum (pátio) que geralmente ficava no centro das aldeias (Farias 1990). A posição dos rádios nas aldeias reforça essa ideia, uma vez ficam normalmente centralizados, facilitando o acesso a todos os moradores. Também há uma conexão com o Polo de saúde em Tocantínia, sendo este o único ponto de conexão com o rádio na cidade. Encontramos aí um evento de fala bastante específico.

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Conforme o modelo MLF (Myers-Scotton 1993a, 2002), a amostra analisada aponta a língua xerente fornecendo o quadro morfossintático para as CPs bilíngues, ou seja, funcionando como a ML na maior parte da interação. Veja os exemplos (9) a (12): (9) ai ta(h)ã transporte ai-mã aproveita ne‚si pbumã. 12 Aí aquele transporte 2-DAT aproveitar REPET PRPS ‘Ai aquele transporte, vamos aproveitar sempre.’ (10) nmã(h)ã-te O-perde-zE-i-kõdi com certeza. qual-ERG 3-perder-NOM-VL-NEG com certeza ‘Nenhum deles quer perder, com certeza’. (11) ai quint-nã dia todo wa-t trena-da piko, ambâ [...]. Aí quinta-INES dia todo 1NSG-ERG treinar-PRPS mulher homem ‘Aí na quinta dia todo treinamos mulher, homem...’ (12) ai s-i))m-educação-física-wa sext-nã ta-nõrai-te. Aí R3-NGR-educação física-INES sexta-INES 3-NSG-PP ‘Ai (eles) tem educação física na sexta para eles.’ Nos exemplos, os morfemas de sistema que possuem relações gramaticais externas ao núcleo de seu constituinte tem origem da língua indígena, enquanto apenas alguns lexemas do português ocorrem no quadro geral de ordem dos morfemas fornecido pelo xerente. Estão aí, então, respeitadas as condições que satisfazem a identificação da ML (xerente) e da EL (português), segundo o modelo MLF. A maioria dos morfemas portugueses são morfemas de conteúdo, especialmente nomes e verbos. Myers-Scotton (2002: 70) argumenta que os marcadores de discurso (como ‘aí’ em (9), (11)-(13) e ‘né’ em (13)) podem ser considerados morfemas de conteúdo ao nível do discurso. Myers-Scotton (1993a) afirma que outro critério para identificação da ML seria a observação da língua com maior número de morfemas na amostra de discurso. Esta afirmação foi abandonada pela autora nos anos seguintes. Segundo Myers-Scotton (2002: 61-62), embora a língua que é a fonte da estrutura gramatical geralmente seja a que fornece mais morfemas numa CP bilíngue, este não é sempre o caso. Os exemplos (13) e (14) atestam esta afirmação.

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DAT – dativo; REPET – repetição; PRPS – propósito; ERG – posposição de caso ergativo; NOM – nominalizador; VL – vogal de ligação; INES – inessivo; 1NSG – 1º pessoa não singular; NGR – nome genérico relacional; PP – posposição possessiva; PRED – predicativo; CIT – citacional; ALA – alativo; CONJ – conjunção; DIR – diretiva (partícula).

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(13) ai quart, quint-nã, s-i))m-aula-di né. Aí quarta quinta-INES R3-NGR-aula-PRED né ‘Aí quarta, na quinta, tem aula, né.’ (14) Pke aluno-nõrai-mã semp só rowahã, pra da certo. Porque aluno-NSG-DAT sempre só tarde para dar certo ‘Porque para os alunos sempre só da certo à tarde’. Nestes exemplos, a maior parte dos morfemas vem do português, porém a ordem dos morfemas vem da língua xerente. Além dos morfemas de conteúdo, alguns morfemas de sistema também compõem as ilhas de EL em (13) e (14) e também nos exemplos (15) a (19), abaixo. No entanto os morfemas de sistema do português são os que apresentam o traço [- referência à informação gramatical externa ao núcleo da constituinte], ou seja, early system morphemes e bridge late system morphemes, conforme o modelo 4M13 (Myers-Scotton 2002). O outro tipo de morfema de sistema apontado no modelo 4M é o outside late system morphemes [+ referência à informação gramatical externa ao núcleo da constituinte], sendo este sempre provindo da ML. É justamente a este tipo que se refere o Princípio do Morfema de Sistema, descrito em 3.2. (15) eu acho que mãr kõdi akwe‚ tkai n-i‚m-aula psã pe(s). eu acho que que não gente/índio terra R3-NGR-aula ver certo ‘Eu acho que não (tem) na terra do akwe‚, (tenho que) confirmar essa aula.’ (16) are ta(h)ã, pke maioria dos alunos é to tazi CONJ aquele porque a maioria dos alunos CIT lá wapte mnã kãtô piko jovem DIR CONJ mulher ‘Ai aquele, porque a maioria dos alunos lá é jovem e mulher.’ (17) Pke enquanto escor (n)Esi sikburõ-i-wa Porque enquanto escola REPET reunir-VL-INES kã(te) tarE-n(e)-hã ambâ pode até jogar. talvez inutilmente-(?)-ENF homem pode até jogar ‘Porque enquanto permanecerem na escola, os homens que estiverem sem fazer nada podem até jogar.’ (18) Aluno tahã wapte [...], so rowahã-ku, mais tanErE pikõ Aluno aquele jovem só tarde-ALA mas enquanto isso pode ta treinano. rçmakrãrE até amzumre, arE rowahãku ambâ si.

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O modelo 4M é um modelo complementar ao MLF, onde os tipos de morfema sistema são subdivididos por Myers-Scotton quanto ao seu acesso no nível conceptual da produção linguística. Este modelo, por uma questão de espaço, não será explicitado neste trabalho. Para ver mais sobre o modelo veja MyersScotton (2002) e Myers-Scotton & Jake (2009).

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mulher pode estar treinando manhã até meio-dia e tarde homem somente ‘Os alunos jovens (...), só à tarde, mais enquanto isso as mulheres podem estar treinando de manhã até meio dia, e à tarde só os homens.’ (19) Pke quint-nã aula adu a últi(ma) é normal. Porque quinta-INES aula ainda a última é normal ‘Porque na quinta a última aula ainda é normal.’ Myers-Scotton (2002: 64) ressalta que a ML pode mudar dentro de um enunciado, porém “não é tão frequente – e certamente não ao acaso”. Sobre o assunto a autora declara que: Sincronicamente, uma mudança dentro da mesma conversa é possível; um caso extremo seria uma mudança na mesma sentença. Diacronicamente, uma mudança pode ocorrer quando os fatores sociopolíticos na comunidade promoverem algum tipo de mudança para a L2 (Myers-Scotton 1993a).

Em Myers-Scotton (2002), a autora, então já assumindo a CP como unidade de análise e não mais a sentença, alerta que faltou precisão em sua declaração inicial e reforça a ideia de que a mudança de ML não é possível dentro de uma CP. Sendo assim, a teoria assume que pode haver mudança da ML de uma sentença para outra ou até de uma CP para outra, mas não dentro de uma CP. O trecho do exemplo (20) é constituído de quatro CPs. O falante inicia com uma CP bilíngue, onde a língua xerente é a ML. A segunda CP é monolíngue em português. Já na terceira CP o português é a ML e só se trata de uma CP bilíngue porque finaliza com a posposição nominal xerente ‘-nã’. A quarta CP mantém a estrutura do português como ML com uma ilha de EL no final. [com certeza]2. (20) [nmã(h)ã-te O-perde-zE-i-kõdi]1, qual-ERG 3-perder-NOM-VL-NEG com certeza [ai tem que ser sext-nã]3 [pke so educação física ta-nõrai-te]4. Aí tem que ser sexta-INES porque só educação física 3-NSG-PP ‘Nenhum deles quer perder, com certeza. Aí tem que ser na sexta porque só (tem) educação física para eles.’ CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao realizar uma descrição e análise gramatical preliminar do CS utilizado pelos akwẽ, procuramos identificar a língua que (geralmente) fornece o quadro morfossintático para a CP bilíngue xerente-português, dentro do quadro teórico proposto por Myers-Scotton (1993a, 2002). Verificamos que a ML, com poucas exceções, é a língua xerente, restando ao português a posição de EL dentro da CP

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bilíngue. Isso se encaixa na assertiva da autora de que, normalmente, a língua que costuma ocupar esse papel é também a L1 do falante. Além disso, buscamos informações, indícios que pudessem ajudar a entender como se dá esse fenômeno entre os xerente e se há alguma relação entre a forma como o CS se dá e o processo de obsolescência que a língua tem enfrentado (Braggio 2005). Assim, constatamos uma alternância da ML do xerente para o português entre CPs, em casos mais isolados. Certamente, isso não se dá aleatoriamente (Myers-Scotton 2002: 64) e há fatores sociopolíticos operando, o que merece investigação. De qualquer forma, isso demonstra o dinamismo da língua matriz diante das situações de discurso (Amuzu 1998, apud. Myers-Scotton 2002) Em uma curta amostra, identificamos uma grande variedade de tipos de CS e de configurações linguísticas dentro de uma CP, a unidade de análise adotada no modelo MLF. Neste sentido, é inquestionável a proficiência linguística dos falantes nas duas línguas envolvidas. A riqueza da amostra garante material linguístico para uma vasta investigação da relação entre as gramáticas das línguas xerente e portuguesa e que podem revelar indícios de como as duas gramáticas se acomodam no discurso bilíngue xerente e até que ponto a língua indígena tem sua vitalidade ameaçada, dada a relação de poder assimétrico entre as duas línguas/culturas. Embora a quantidade de sentenças na amostra, com ocorrência de CS possa ser considerada grande (maior que cinquenta por cento) e, a princípio, seja alarmante em relação à vitalidade da língua indígena, esses dados não devem servir para uma generalização dos padrões de ocorrência de CS. Como afirmamos, a escolha da amostra foi proposital ao escolher o evento de fala, o tópico da conversação e a faixa etária dos falantes que podem ser, a princípio, variáveis extralinguísticas onde há maior probabilidade de ocorrência de CS. Isso pode se dar em função das configurações de contato com a sociedade majoritária e a atual situação sociolinguística dos akwẽ. Conforme ressaltamos em todo o texto, esse trabalho nem de longe pretende encerrar a discussão sobre o assunto. As lacunas deixadas são, pelo contrário, janelas para vislumbrar trabalhos futuros, sejam deste ou de outros pesquisadores. Somado aos demais, este trabalho procura contribuir com os estudos sobre contato entre línguas geneticamente distintas, com os estudos sobre as variedades e usos do português por povos indígenas e ainda, juntamente aos xerente, entender cada vez mais a sua atual situação sociolinguística.

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Além disso, a pesquisa cumpre seu papel à medida que, além da contribuição para a ciência linguística, tem seus resultados refletidos juntamente à sociedade envolvida, colaborando assim para a educação escolar indígena diferenciada, conforme garantido pela lei federal e para a conservação do patrimônio imaterial da humanidade, tais como são as línguas e culturas e suas particularidades. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAR, Michael H (2006). The professional stranger: an informal introduction to ethnography. New York: Academic Press. AUER, Peter (1998). Introduction: Bilingual Conversation revisited. In AUER, Peter (eds). Code-switching in conversation: Language, interaction and identity, pp.0124. London and New York: Routledge. . BLOM, Jean-Petter; GUMPERZ, John. J. (1972). Social meaning in linguistic structures: Codeswitching in Northern Norway. In John. J. Gumperz; Dell Hymes (eds.). Directions in Sociolinguistics: the ethnography of communication, pp.407-434. New York: Holt, Rinhart; Winston. BRAGGIO, Silvia. L. B. (2002) Línguas indígenas brasileiras ameaçadas extinção. Revista do Museu Antropológico. Goiânia, v. 5/6, p. 9-54

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O ENSINO (ARGUMENTATIVO) DE PLA NAS ESCOLAS INDÍGENAS DO ESTADO DO AMAPÁ E NORTE DO PARÁ Antonio Almir Silva Gomes1

INTRODUÇÃO O estado do Amapá, localizado no extremo norte do Brasil, apresenta uma diversidade de povos e línguas indígenas que ainda são adquiridas como língua materna (L1). Juntamente com povos indígenas que vivem em uma extensa região ao norte do estado do Pará denominada Parque Nacional do Tumuqumaque, a maioria adquire e utiliza em seu cotidiano o Português Brasileiro (PB) como língua adicional (LA). Nesse contexto do Português Brasileiro tomado como LA, este artigo propõe-se a tratar de alguns aspectos inerentes às ações de ensino presentes nas escolas indígenas. Não se debruça, portanto, a questões teóricas de aquisição, mas às pistas que o uso do Português como Língua Adicional (PLA2) revela sobre as práticas de ensino presentes atualmente nas escolas indígenas das duas regiões mencionadas acima. Com isso, minha investigação volta-se para o interior da escola e suas práticas de ensino de PB; seja na perspectiva docente, seja na perspectiva do órgão estadual de ensino. A escola indígena em todos os momentos de sua existência carrega consigo características peculiares quando contrastada à escola não indígena. A partir da Constituição Federal de 1988, mais precisamente com os Artigos 210, 231 e 232, todavia, dá-se início à concepção atual de Educação Escolar Indígena (EEI) na qual se preconiza em linhas gerais o respeito e a valorização das peculiaridades inerentes a cada povo. É o que se vislumbra, posteriormente, por exemplo, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9.394/96 de 20 de dezembro de 1996 (LDB) quando esta define em seu Artigo 78 a EEI como uma modalidade de educação na qual estão presentes as línguas e culturas próprias dos povos indígenas. Define-se nesse contexto como objetivos:

1

Professor Doutor da Universidade Federal do Amapá. Adoto a nomenclatura “adicional” para referir-me ao português utilizado nas aldeias por considerar que o termo “segunda língua” não o representaria, já que outras línguas são utilizadas no mesmo contexto; língua francesa, por exemplo. 2

[…] proporcionar aos índios, suas comunidade e povos, a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências. (LDB, 1996: 1). […]garantir aos índios, suas comunidades e povos o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não indígenas. (LDB, 1996: 1).

Esse novo modelo de EEI gerido a partir da Constituição Federal e melhor delimitado na LDB (9.394/96) tem impacto também na formação do professor que atuará nessa modalidade de ensino. O Artigo 8o da Resolução da Câmara de Educação Básica no 3, de 10 de dezembro de 1999 ao indicar que a atividade na escola indígena será exercida prioritariamente por professores indígenas oriundos da respectiva etnia permitiu a valorização de profissionais provenientes do próprio povo onde está a escola. Como consequência, surge a necessidade de cursos de formação superior específicos para atender a essa demanda. Criam-se as Licenciaturas Interculturais nos primeiros anos do século XXI a fim de formar professores indígenas aptos a trabalhar na Educação Básica promovida nas diversas comunidades indígenas brasileiras. Dada a presença no estado do Amapá dos povos Wajãpi (Tupi-Guarani), Apalai (Karíb), Wayana (Karíb), Tiriyó (Karíb), Karipuna (Tupí-Guarani), Galibi Kalinã (Karíb), Galibi Maworno (Crioulo), Palikur (Aruák)3, inicia-se em 2007 na Universidade Federal do Amapá o curso de Licenciatura Intercultural Indígena cujo objetivo expresso é “Formar e habilitar professores indígenas, prioritariamente dos povos e comunidades do Amapá e do Norte do Pará para o magistério na Educação Básica das escolas indígenas” (UNIFAP, 2007: 22). Essa formação pode ocorrer considerando-se uma das seguintes habilitações: Linguagens e Códigos; Ciências Exatas e da Natureza; Ciências Humanas. Idealmente, será o professor formado com esse perfil que atuará nas escolas indígenas da região. Na prática, todavia, as aulas de PLA ainda são ministradas nas últimas séries do Ensino Fundamental, bem como em todas as séries do Ensino Médio, majoritariamente, por professores não indígenas. Assim sendo, este artigo não se detém, também, à comparação entre aulas de PLA ministradas por professores indígenas ou não indígenas, mas, tão somente, a observar o que ocorre no interior das salas de aula. Ao assim fazê-lo, indico algumas diretrizes para o ensino de 3

Classificação genética conforme apresentada por Moore, Galucio e Gabas Jr (2008). Os Galibi Kalinã são mencionados por Rodrigues (1985: 63) como Galibi do Oiapoque. Não há referência em Rodrigues, op. cit., aos Galibi Marworno. Os Karipuna são elencados como membros da família Pano, habitantes de territórios localizados no estado de Rondônia e cuja existência de falantes é incerta (Rodrigues, 1985: 81).

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PLA baseadas na diversidade de gêneros textuais por considerá-la bastante adequada ao contexto de ensino aqui abordado. O artigo divide-se, desta forma, em três seções distintas. Na primeira, intitulada “O ensino de PL segundo os programas oficiais de ensino de Português” (2), mostro que o conteúdo programático proposto nos órgãos oficiais de ensino pauta-se sobremaneira em conteúdos que visam à estrutura linguística. Na segunda seção, “As práticas de ensino de PLA nas escolas indígenas” (3), assemelho, a partir de excetos de Relatórios de Estagio Supervisionado, as ações docentes em sala de aula de PLA à proposta dos órgãos oficiais de ensino, bem como analiso alguns exemplos de materiais didáticos específicos para escolas indígenas como insuficientes à proposta de ensino aqui defendida. Na última seção “Modelo de ensino que respeite língua, cultura e identidade” (4), apresento concepções acerca de ações de ensino de PLA baseadas no texto como fonte de práticas comunicativas. O ENSINO DE PLA SEGUNDO OS PROGRAMAS OFICIAIS DE ENSINO DE PORTUGUÊS Quando se pensa em ensino de uma língua adicional delimita-se como objetivo macro a aquisição/desenvolvimento das habilidades de ouvir, compreender, ler e escrever. No caso dos programas oficiais pensados pela Secretaria Estadual de Educação (SEED) para as séries correspondentes ao Ensino Fundamental das escolas indígenas do Amapá e Norte do Pará, contudo, parecem ocupar maior destaque (pela recorrência em diferentes anos da Educação Básica), em detrimento das habilidades mencionadas acima, aspectos descritivos da gramática do PB, com ênfase em Fonética e Fonologia, Morfossintaxe e Semântica, conforme descrevo abaixo a partir de programas da SEED: Fonética e Fonologia: fonema, classificação das vogais e das consoantes; sílaba, acentuação. Morfologia: classes de palavras. Na descrição da classe de verbos, por exemplo, delimita-se como tópicos a serem estudados: os verbos regulares, irregulares, auxiliares, anômalos, abundantes, defectivos. Sintaxe: frase, oração, período, termos essenciais e acessórios da oração, adjuntos, apostos, vocativos, predicativos do sujeito e do objeto. Na sintaxe do período composto destaca-se, por exemplo, o período composto por coordenação e o período composto por subordinação, além do uso de pronomes oblíquos em contextos de

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ênclise, próclise e mesóclise. Destacam-se, também, a concordância verbal e a concordância nominal. Na parte de Semântica, destacam-se como itens a serem estudados a significação das palavras por sinônimos, por antônimos, por parônimos, por homônimos, conotação, denotação. Associado ao que denominam Estilística, são identificados temas como figuras de palavras, figuras de pensamento e figuras de construção. No que tange à parte de Redação propriamente dita são sugeridas a narração, a descrição e a dissertação. Sem muito destaque, mencionam-se a leitura e a interpretação de textos. Na seção seguinte se observará uma interação entre esse conjunto de conteúdos prescritos em programas oficiais de ensino com o que de fato acontece na sala de aula nas escolas indígenas. A essa realidade pretendo chamar a atenção com o objetivo de suscitar

novas

práticas

entre

escola

indígena,

o

professor/aluno,

o

conhecimento/comunidade, o PLA. AS PRÁTICAS DE ENSINO DE PLA NAS ESCOLAS INDÍGENAS A realidade de ensino de PLA nas escolas indígenas do estado do Amapá e Norte do Pará é vislumbrada a seguir sob três perspectivas. Na primeira (3.1), servemnos de recurso excetos extraídos de Relatórios de Estágio Supervisionado produzidos por acadêmicos do curso de Licenciatura Intercultural Indígena (Linguagens e Códigos), turma 2007, do Campus Binacional Oiapoque da Universidade Federal do Amapá, onde atuei como docente entre os anos de 2011-20134. A segunda perspectiva é aquela própria comunidade indígena. Aqui me detenho a um caso específico de Projeto Político Pedagógico produzido por professores de distintos povos. A terceira perspectiva de ensino de PLA é vislumbrada a partir de uma coleção de dois volumes de livros didáticos de ensino de PB. Utilizo o contraste entre as três perspectivas para indicar a possibilidade de novas ações de ensino que potencialize no aluno uma aprendizagem comunicativa e intercultural.

4

Neste artigo, optei por apresentar excetos dos referidos relatórios sem identificar os respectivos autores a fim de manter a impessoalidade das informações. Esses são habitantes das comunidades do Manga (Oiapoque), Kumarumã (Oiapoque), Kumenê (Oiapoque), Parque Nacional do Tumuqumaque. As situações de ensino de PLA descritas referem-se, portanto, à realidade vislumbrada nas escolas destas comunidades. A quem interessar possa a leitura dos mesmos relatórios, sugiro contatar o colegiado de Licenciatura Intercultural Indígena/Campus Binacional UNIFAP pelo e-mail .

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- Práticas de Metalinguagem A partir dos dados apresentados a seguir, pode-se verificar que o que ocorre no interior das escolas indígenas não é muito diferente daquilo que ocorre no interior de muitas escolas não indígenas; ou seja, metalinguagem como conteúdo de ensino. Vejamos, por exemplo, que um dos temas mais recorrentes nas aulas de PLA nas escolas indígenas é a categoria gramatical verbo. Ao descrever as atividades relacionadas a esse tema em uma turma de 70 ano, o autor afirma que “A professora começou dando uma pequena explicação sobre o verbo, dizendo que o verbo tem três ações: tempo, qualidade e característica”. Ao referir-se a uma aula na mesma turma cujo assunto foram os adjetivos, o mesmo autor afirma que “Depois da explicação a professora usou uma música para ensinar melhor os adjetivos. Em seguida apresentou o assunto do dia. Adjetivo é a palavra variável em gênero, numero e grau que exprime qualidade ou estado para o substantivo. Exemplo: antigos, feio, azuis, simples, baixinho, etc”.

Ao referir-se ao emprego das letras em uma turma de 70 ano, outro autor descreve as informações abaixo como relacionadas ao emprego de e de : “Geladeira – gelado – geleiro Laranja – laranjada Jornal – jornalista – jornaleiro”

Segundo o relatório referente à turma de 7º ano, a informação apresentada pela professora acerca do tema em questão foi a seguinte: “Escrevem-se com j ou g as palavras derivadas de outras escritas com essas letras. Escrevem-se com g as palavras que apresentam terminações –agem, – igem, –ugem. Escrevem-se com j as palavras que apresentam a terminação – aje”.

Um terceiro autor, ao descrever seu estágio em uma turma de 60 ano, informa que em uma dada aula “O trabalho apresentado era sobre substantivo comum e substantivo próprio, o qual a professora citou vários exemplos para que os alunos pudessem entender melhor o assunto ministrado”.

76

Ao descrever atividades inerentes a outro tema recorrente nas aulas de PLA, o substantivo, um quarto autor afirma ao estagiar em uma turma de 9º ano que “A professora começou apresentando o assunto Substantivo, explicou que as Classes de Palavras são em torno de dez. E que os Substantivos fazem parte dessa somatória. As classes de palavras também são conhecidas como Classes Gramaticais. A classificação das palavras em português é feita com base em mais de um critério, palavra variável em gênero, numero, grau que caracteriza o substantivo, atribuindo-lhe qualidade, estado ou modo de ser. O critério considerado é o semântico e o critério abstrato e o sintático...”.

Para não acreditarmos que são tratados como temas de aulas nas escolas indígenas do Amapá e Norte do Pará apenas léxico e/ou categorias gramaticais, apresento a seguir exceto do relatório de estágio referente a uma turma de 90 ano cujo tema era Linguagem Figurada. Segundo o autor, “[...] A professora prosseguiu com o conteúdo Linguagem Figurada dando continuidade com o assunto Metonímia, conceituando: A metonímia consiste na substituição de um termo por outro, havendo entre eles uma realização de interdependência, de proximidade, de familiaridade e/ou continuidade5”.

Em seguida, o autor descreve os conceitos apresentados pela professora da turma, conforme segue: “A metonímia ocorre quando empregamos O nome do autor pela obra. A marca pelo produto. O continente pelo conteúdo. A parte pelo todo. O singular pelo plural ou vice versa. A matéria pelo objeto.”

A semelhança identificada entre as premissas de ensino de PLA propostas pela SEED (2) e o que de fato ocorre nas salas de aula das escolas indígenas observadas é uma prova de que as habilidades linguísticas de PLA adquiridas pelas populações indígenas a que se refere esse artigo decorrem dos diferentes tipos de relação socioeconômicas e culturais que seus usuários estabelecem cotidianamente com a sociedade externa e não da escola, uma vez que, da forma como ministrada, não favorece a aprendizagem de habilidades para além da gramática. 5

Destaque do autor.

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Outra prova favorável à importância das relações socioeconômicas e culturais estabelecidas para fora da aldeia como responsáveis pelo PB utilizado pelos povos indígenas é o próprio registro dessa língua por professores indígenas – marcado por especificidades fonético / fonológicas e morfossintáticas (cf. Gomes, 2012) – característico da modalidade oral. Tal característica, em consonância com Amado (2012), não é entendida como um problema a ser enfrentado na sala de aula (indígena) mas, ao contrário, uma ferramenta de ensino que potencializa a comunicação intercultural. Esta, por sua vez, se estabelece não apenas pela interação linguística, mas também pela compreensão do universo nacional e internacional. A essa perspectiva soma-se a necessidade de melhor conhecimento dos anseios e da realidade dos povos atendidos. A seguir, faço referência a um pequeno conjunto desses anseios e realidades expresso em um currículo de ensino pensado por distintos povos. Ao assim fazê-lo, sinalizo, sobretudo, para a discrepância entre o que ocorre no interior das escolas indígenas relacionado ao ensino de PLA e o que as comunidades esperam dessa modalidade de ensino. - O currículo de ensino conforme as comunidades indígenas Para as escolas indígenas da região do rio Uaçá/Oiapoque-AP, professores e comunidades, em conjunto com o CIMI, delimitaram em 2006 o “Currículo de Ensino Fundamental das Escolas Indígenas Karipuna, Galibi Marworno, Palikur e GalibiKalinã”. Neste, seus autores delineiam o currículo de ensino referente a PLA nas escolas de seus povos e assumiram como objetivo macro os seguintes aspectos: Proporcionar à população indígena o conhecimento prático dessa língua como finalidade de comunicação intercultural; Ajudar os falantes da língua indígena a apropriar-se dos esquemas de pensamento, significados e significações próprias da língua portuguesa.

Além disso, assumem que “se pretende principalmente o domínio da língua oral” (CURRÍCULO, 2006: 47). A escrita é posterior ou concomitante ao conhecimento da língua oral. Para além da aquisição das modalidades orais e escritas, prevê-se que os alunos devam ser “capazes de expressar-se na maneira reconhecida oficialmente”

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(CURRÍCULO, 2006: 47). No mesmo currículo, os professores atenuam a relevância do estudo do PB em seus aspectos puramente gramaticais ao assumirem que “a estrutura da língua e a gramática são importantes na medida em que ajudam nesta finalidade e não como objetivo avulso e acadêmico” (CURRÍCULO, 2006: 47). Esse último objetivo parece não condizer com os tópicos apresentados nos itens anteriores, especialmente quando os professores assumem que as habilidades de ler, escrever, interpretar, expressar-se, dialogar, desenvolver a capacidade crítica, etc. “são essenciais para o desenvolvimento individual e social; os conteúdos vão sendo acrescidos gradativamente ao ganho das habilidades” (CURRÍCULO, 2006: 34). Na mesma perspectiva, baseado na seção seguinte, presume-se que o objetivo de uso pautado em finalidades interculturais fica bastante reduzido se considerarmos a amplitude que tal conceito implica. - O livro didático: um caso específico Na contramão do que foi observado na seção (2) que trata do conteúdo programático pensado pela SEED, no qual se identifica sobremaneira a valorização de aspectos metalinguísticos do PB, em alguns materiais didáticos disponíveis para escolas indígenas se pode encontrar um direcionamento distinto para o ensino de PLA. É o caso do livro “Aprendendo português nas escolas Tiriyó e Kaxuyana”, que direciona o processo de ensinar e de aprender para habilidades que ultrapassam o conhecimento metalinguístico. Na obra em questão, organizada por Maria Cristina Troncarelli (IEPÉ, 2010), não há praticamente nenhuma referência explícita a questões gramaticais do PB. Ao contrário, encontra-se uma infinidade de textos produzidos por professores Tiriyó e Kaxuyana – “entre março e setembro de 2007, durante as aulas de Língua Portuguesa e Metodologia de Ensino, do Curso de Formação Continuada de ProfessoresPesquisadores, realizado pelo Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena” – que corroboram a leitura, a compreensão e a interferência no próprio texto. Dividido em duas partes, nas quais se encontram, respectivamente, 19 e 24 textos, concentra-se em questões das comunidades Tiriyó e Kaxuyana (localizadas no Parque Nacional do Tumuqumaque) tais como atividades de caça e de pesca, de produção de manufaturados, animais e objetos do universo do próprio povo, etc. Ao longo de suas

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páginas, o aluno é convidado a escrever, criar, pôr em prática as habilidades desejáveis no uso de uma segunda língua (ler, escrever, falar, etc.). O segundo volume da coleção, intitulado “Praticando português nas escolas Tiriyó e Kaxuyana” – organizado por Maria Cristina Troncarelli com textos dos professores Tiriyó e Kaxuyana – divide-se, também, em duas partes. Ambas apresentam situações cotidianas desses povos, sendo a primeira parte de caráter predominantemente descritivo (20 textos, onde se encontram textos sobre os animais, as aldeias Notïpe e Santo Antonio, a cidade de Macapá) e a segunda de caráter predominantemente procedural (14 textos, onde se encontram textos sobre a produção de diversos sucos, beiju, mingaus e outros tipos de alimentos). À diferença do “Aprendendo português nas escolas Tiriyó e Kaxuyana”, no segundo volume encontram-se questões metalinguísticas. A seguir, reproduzo duas das atividades propostas, extraídas respectivamente das páginas 69 e 179: (1) Complete usando M ou N: DE____TEGE____TE

MARI____BOM____DO

DOMI____GO

TA____BÉM

CA____PO

MA____GA

E____XADA

VE____TO

PO____BO O____BRO LÂ____PADA

(2) Invente duas frases com o verbo conseguir no tempo presente e duas no pretérito perfeito6. A proposta desse artigo não incide sobre o uso (ou não) de atividades de metalinguagem, mas sobre o uso do texto nas aulas de PLA7. Nesse contexto, a natureza dos temas abordados nos dois volumes em questão conduz-me a um questionamento, qual seja a diversidade de temas presentes no livro didático de PB para as comunidades indígenas. Interessa-me convidar o leitor ao pensamento e, quiçá, à procura de respostas para o limite e para a diversidade de temas e realidades provenientes da sociedade 6

Destaque do autor. Uma forma interessante de acrescentar informações a aulas de estrutura / rótulos gramaticais perpassa por ações como as desenvolvidas com professores Wajãpi, Timbira e Terêna em que “procurou-se desenvolver um conjunto de abordagens no ensino de língua portuguesa que permitisse a grupos indígenas diversos aplicá-los sobre suas próprias línguas” (Neto, 1997: 109). Um dos ganhos possíveis ao professor / aluno ao utilizar métodos semelhantes em sala de aula é a própria compreensão das semelhanças e diferenças entre a língua indígena e o PB. Pode-se, também, deduzir riscos a essa situação, dentre elas a possibilidade de “induzir os aprendizes a sentirem sua própria língua como inferior, deixando de usá-la”, como veem alguns linguistas em relação ao ensino de PB (cf. Amado, 2012: 391).

7

80

nacional a constarem no livro didático a ser utilizado na escola indígena. Até que ponto seria desejável inserir nessa ferramenta de ensino temas distintos daquilo que é o universo de tal sociedade? Qual(is) perspectiva(s) deve ser adotada ao assim fazê-lo? Considero essa última pergunta igualmente relevante ao visualizar o texto sobre a cidade de Macapá apresentado no volume em questão (p. 79) conforme abaixo: “Na cidade de Macapá tem muitas pessoas, tem casas grandes, crianças, carros, rio grande com peixes e também tem ladrão. Na cidade precisamos de dinheiro para tudo: para comer, beber água, para comprar roupa, sapato e bicicleta. Sem dinheiro não dá para viver na cidade. Em Macapá tem pista de avião a jato, barcos, televisões, motos. Tem escolas e postos de saúde.

Na seção seguinte, retomo essa discussão com respostas tentativas a questões desse tipo: MODELO DE ENSINO QUE RESPEITE LÍNGUA, CULTURA E IDENTIDADE As discussões apresentadas anteriormente nos trazem à evidência de que o ensino de PLA nas escolas indígenas precisa sofrer alterações, de modo a evitar o ensino pautado somente em questões metalinguísticas. Fugir deste modelo significa tratar o ensino de PLA inserido no contexto de uso; implica, principalmente, a postura crítica do professor, capaz de conduzir o processo de ensino baseado nas próprias necessidades do povo envolvido. Sendo assim, as características observadas, por exemplo, nos livros propostos pelo IEPÉ (2010), são entendidas aqui como insuficientes para a modalidade de ensino que defino como intercultural, pois compreendo que apresentar no material didático específico das escolas indígenas apenas temas de sua própria realidade (caça, festas, plantio, etc.) nega a diversidade / complexidade de informações e gêneros textuais. Em seu lugar, é aconselhável primar pela diversidade de temas e gêneros textuais inerentes à sociedade local, nacional e internacional. Essa compreensão incide no fato de que temas distintos constituem a realidade de populações indígenas e, portanto, não implica retorno a modelos anteriores de educação indígena voltados, por exemplo, a políticas nacionais de integração8 mas, ao contrário, constrói-se na escola uma fonte de conhecimento sobre a sociedade nacional através da língua, ao mesmo

8

Um cenário acerca desse modelo de educação escolar indígena em vigor no Brasil especialmente entre os anos de 1960 a 1980 pode ser encontrado em Kahn & Franchetto (1994).

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tempo em que o melhor domínio desta permite a seus aprendizes interação via oralidade e escrita de forma ampla. O ensino de PLA nas escolas indígenas baseado na diversidade de temas e gêneros textuais deve ser uma realidade exatamente porque tem implicações na noção de identidade, concomitantemente à busca do novo. Não adianta pensar que é possível evitar o contato das populações indígenas com outras populações, já que as diversas formas de mídia são realidade no contexto indígena. Assim, a escola atuará no sentido de empoderar e não de cercear o uso do PB. Esse processo, importante ressaltar, tem como consequência um sistema em que as diferenças são evidenciadas através de um processo autenticamente intercultural9. - Por que os gêneros textuais Propor atividades de ensino de PLA nas escolas indígenas considerando-se os gêneros textuais tem como objetivo primeiro chamar a atenção dos envolvidos no ensino de PLA a práticas de leitura e de produção de textos cujos resultados não condizem com objetivos voltados à ampliação de habilidades de compreensão, interação, escrita, etc. O que proponho é um ensino com caráter sócio-comunicativo. Ao assumir os gêneros textuais como profícuos para esse fim o faço baseado em (i) Marcuschi (2005) para quem o texto materializa o discurso e (ii) Koch (2002: 17), segundo a qual o texto é o “próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos”. A variedade de gêneros textuais na escola indígena ocorrerá, assim, pautada no fato de que as sociedades são complexas, logo o produto da mesma se comporta de maneira igualmente complexa. Não corroboram essa compreensão práticas de ensino de PLA baseadas exclusivamente em textos do cotidiano indígena; já que é indiscutível a ideia de que estamos todos interligados. Os gêneros textuais, portanto, permitem maior liberdade de ensino exatamente por constituírem-se a partir de sujeitos sócio-históricos e sócio-comunicativos logo, mais representativos da própria realidade sócio-histórico-cultural e linguística. Sendo assim, conforme mostrarei na seção seguinte, na qual proponho algumas atividades que 9

Por processo de ensino intercultural não entendo que as aulas de PLA devam basear-se especificamente em temas de cultura, mas em temas inerentes ao cotidiano da língua alvo. Baseio-me, para tal, em Juliano (1993), que aponta para contato, diálogo entre culturas, interação, interlocução, reciprocidade, confronto entre identidade e diferença como relacionados à interculturalidade.

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expressam o modelo aqui defendido, não identifico restrições ao uso dos mais diversificados gêneros textuais. Em linhas gerais, entendo que o que determinará a escolha será a referência cultural do povo. O que faz sentido, interessa...? Compreendo, ainda, que a variedade de gêneros aqui defendida perpassa o domínio do texto em si, de modo a atingir o discurso, a comunicação plena em PB. Como tal, a discussão para o ensino do PLA nas escolas indígenas não deve se concentrar no registro (coloquial ou culto) da língua que deve prevalecer na escola indígena, mas em contextos e metodologias que permitam a aplicação desta língua nas diversas situações sociais em que se fizer necessária; consequentemente, os registros serão melhor compreendidos. Pensar, todavia, nas práticas de ensino descritas em (3.1) gera um cenário em que de um lado encontra-se a escola, obsoleta por suas características metalinguísticas e de outro, o contato com a sociedade nacional via mídia, relações sociais, econômicas e culturais. A seguir, proponho atividades que refletem meu entendimento de como o texto pode ser utilizado como ferramenta de ensino que ultrapassa os limites da escola / comunidade. - Propostas de atividades No lugar de atividades de produção de textos narrativos, dissertativos e descritivos com temas aleatórios, como descrito no exceto (3) extraído de um relatório de estágio, considero de maior relevância, por exemplo, propor ações baseadas nas habilidades em (4). (3) “A professora escreveu no quadro focos principais do texto narrativo, ao mesmo tempo fazendo comentário sobre o texto, em quanto isso escrevemos, após escrevermos do quadro a professora comentou a respeito que escreveu no quadro, em seguida a professora pediu para que os alunos fizessem uma narrativa sobre o dia de ontem em deis minutos” (relatório de estágio). (4) I II

Escrever: SMS, cartas, documentos, textos em geral, etc. Ler: documentos oficiais gerados em reuniões da comunidade, livros, artigos de jornais, revistas, etc.

III Falar: com amigos, órgãos públicos, etc. IV Compreender: o que escreve e o que ler.

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Ressalto que essas quatro habilidades precisam ter impacto no desenvolvimento da habilidade de argumentação na língua adicional, seja através da oralidade, seja através da escrita. Dessa forma, presume-se que a habilidade de argumentação permeará toda ação de ensino de PLA. A diversidade de temas que o professor proporá impactará a noção de interculturalidade no sentido de evidenciar as peculiaridades de distintas sociedades. Para isso, o professor precisa considerar como ferramentas de trabalho as diversas mídias a que esse estudante tem acesso. Sabe-se, por exemplo, que, para alguns dos povos aqui mencionados, a internet é uma realidade local; o celular, por outro lado, é objeto presente entre a maioria dos mesmos povos. As distintas realidades socioculturais identificáveis entre os povos do Amapá e Norte do Pará devem ser consideradas pelo professor, sobretudo, em relação ao item II (Ler: documentos, livros, artigos de jornais, revistas, etc.). Por isso, vale ressaltar a importância do perfil de pesquisador recomentada ao professor, uma vez que tal item implica a realização de pesquisas constantes a fim de encontrar temas atuais e de interesse da comunidade. Essa questão ganha importância ainda por presumir que a necessidade de tratar de temas relacionados ao uso de internet em uma comunidade, por exemplo, pode não encontrar eco em outra comunidade. Especificamente relacionado ao item IV, espera-se que as atividades valorizem não apenas as informações explicitas mas, principalmente, as informações implícitas. Aqui está a essência do ensino de PLA para as comunidades indígenas. Nesse sentido, as questões postas para os textos apresentados abaixo10 cujo escopo é o uso da internet ilustram o que denomino aqui Ensino Argumentativo de PLA. TEXTO I O texto I – publicado na versão on line do jornal Folha de São Paulo no dia 24 de abril de 2012 – indica a utilização da internet por povos indígenas brasileiros para diversos fins. Índio usa Skype para articular luta por direitos com outros povos O líder Tashka Yawanawá, da tribo dos Yawanawá no Acre, defende que os povos indígenas usem as últimas tecnologias para se articular em prol de suas causas.

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O conjunto de textos serve apenas para apontar direções que devem ser seguidas no sentido de ampliar as ações de ensino e de aprendizagem de PLA. Não tem a intenção, portanto, de constituir-se o conjunto de textos a ser trabalhado em uma série especifica ao longo de um ano letivo em uma dada escola indígena.

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"Hoje povos indígenas não podem mais fugir do homem branco, da tecnologia. Temos que nos atualizar, nos preparar para encarar esse novo mundo", diz Yawanawá. Segundo ele, que diz usar o Skype para videoconferências com outros povos, a humanidade hoje vive "numa aldeia global em que tudo está conectado". "O que faço na minha aldeia pode afetar quem estiver na Europa, Japão ou Estados Unidos. Se derrubar minha floresta, não vai haver tanta neve em Nova York no Natal." Uma das principais preocupações de Tashka é a luta por salvaguardas para preservar o conhecimento e cultura indígenas ligados à utilização de "serviços prestados pela natureza", tema que será debatido em um encontro nas Filipinas no fim deste mês. "Ao fazer jardins com plantas medicinais, aquele conhecimento serve à comunidade indígena e um dia poderá também servir ao mundo para curar muitas doenças que afetam hoje nossa humanidade". Como recurso para uma aula de PLA o texto acima pode ser utilizado em uma turma de Ensino Fundamental para fins de vocabulário, conhecimentos geográficos, conhecimentos acerca de recursos / usos da internet, salvaguarda de conhecimentos, conhecimentos tradicionais, etc. Em atividades de vocabulário, em uma comunidade onde há internet disponível na escola – Manga (Oiapoque), por exemplo – pode-se utilizar a própria rede como ferramenta para falar de palavras tais como videoconferência, skype, neve, salvaguarda, Nova York, Filipinas. Ao tratar das cidades mencionadas no texto, pode-se aproveitar a rede de computadores para descobrir suas características culturais, geo-sociopolíticas, etc., numa verdadeira aula intercultural. Discussões podem ser geradas sobre o tema da salvaguarda de conhecimentos entre diversos povos indígenas, conhecimentos tradicionais. Nesse sentido, no lugar de perguntas de interpretação textual do tipo (5)11 abaixo o professor pode sugerir perguntas do tipo (6). (5) Onde mora Tashka Yawanawá? - Qual é uma das principais preocupações de Tashka? - Para que Tashka usa a internet? - Onde vai acontecer um encontro no final deste mês? Etc. 11

Perguntas dessa natureza são utilizadas como atividades de interpretação de texto em aulas de Língua Portuguesa nas escolas indígenas. Veja, por exemplo, o relato de uma atividade com texto – extraído de um relatório de estágio – intitulado Minha Vida de Criança em que os alunos deveriam escrever informações sobre a vida de Beto através das seguintes perguntas: a) A cidade em que nasceu; b) Cidade onde mora; c) Quantos anos têm; d) O nome dos amigos; e) O que gosta de fazer; f) O que ele faz quando chega a sua casa.

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(6)

O que o uso da internet pode proporcionar aos povos indígenas? - Você acha importante o uso da internet em sua comunidade? Por quê? - O que você já fez na internet? Que achou? - Descreva as diversas formas de conhecimentos de seu povo. - Você acha que os conhecimentos do seu povo estão seguros? - Que é tecnologia para você? Que se pode fazer com a tecnologia? - O que Tashka faz com a tecnologia? - Que representa para seu povo as plantas medicinais? - Quais seriam as causas de seu povo? - Que significa dizer que “hoje os povos indígenas não podem mais fugir do

homem branco”? - Que significa dizer que a humanidade vive hoje numa aldeia global? Diferentemente do conjunto de perguntas em (5) no qual o aluno é convidado apenas a reproduzir as informações postas na superfície do texto, o conjunto em (6) convida o aluno a ir à direção de informações implícitas do texto, bem como serve de apoio para a construção de conhecimentos ao permitir que o mesmo aluno expresse suas próprias ideias. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que se trabalha com interpretação textual, desenvolvem-se as habilidades dissertativas. Tem-se, assim, um método em que a argumentação sustenta uma dissertação, a busca de informações implícitas, a construção de conhecimentos e reflexões interculturais. Para além das atividades de vocabulário, conhecimentos geográficos, conhecimentos acerca de recursos / usos da internet, salvaguarda de conhecimentos tradicionais já mencionados, o Texto I, bem como o Texto II apresentado a seguir, pode servir de suporte para questões de gramática. Pensando-se em atividades relacionadas a tempo verbal, por exemplo, tão comuns nas primeiras séries do Ensino Fundamental, poder-se-iam substituir as questões do primeiro grupo abaixo por questões do segundo grupo. Vejamos: Questões do Tipo I Qual o tempo dos verbos das orações12 abaixo?

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Emprego o conceito de “oração” aqui por se tratar daquele mais utilizado no Ensino Fundamental.

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“O que faço na minha aldeia pode afetar quem estiver na Europa, Japão ou Estados Unidos. Se derrubar minha floresta, não vai haver tanta neve em Nova York no Natal” Conjugue no tempo passado e futuro o verbos defender e fugir. Para você, o que é um verbo?

Questões do Tipo II Quais são as interpretações possíveis a partir de mudanças ocorridas nos verbos das orações abaixo: "Hoje povos indígenas não podem mais fugir do homem branco, da tecnologia”. "Hoje povos indígenas não precisam mais fugir do homem branco, da tecnologia”. "Hoje povos indígenas não querem mais fugir do homem branco, da tecnologia”. Qual a intenção do autor do texto ao utilizar o verbo ter na sentença “Temos que nos atualizar, nos preparar para encarar esse novo mundo"?

Questões como as do Tipo II devem substituir questões como as do Tipo I por primarem pelo contexto de uso da língua. São empregadas de maneira contextualizada. Nessa perspectiva, o professor trabalha em suas aulas de maneira permanente, também, com aspectos da semântica da língua, já que os diferentes usos do verbo implicam a alteração da informação quanto a intenções, preservação de face, etc. Vejamos a mesma perspectiva no Texto II: TEXTO II Entrevista do estudante de Letras Ariabo Umutina publicada na edição 2265 – ano 45 – n.16 de 18 de abril de 2012 da Revista Veja. “Falamos ‘facebook’ mesmo” Nascido na aldeia Umutina, em Mato Grosso, o estudante de letras, de 22 anos, fala sobre o livro didático bilíngue que prepara para garantir a sobrevivência do seu idioma nativo

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Veja: Quantas pessoas falam umutina? Ariabo: A aldeia tem 600 pessoas, mas só os mais velhos falam. Os novos aprendem só português. Eu só sei falar porque um ancião me ensinou. Veja: Além de traduzir palavras, você vai codificar a estrutura da língua? Ariabo: Sim, é fundamental para ensinar as crianças. Por exemplo, para o plural não usamos a letra s no final. O que fazemos é colocar uma palavra que indica “grande quantidade” perto do substantivo. Assim: peixe é “haré”; peixes, “haré makeawá”. Veja: E os verbos? Ariabo: Muitas vezes, não temos necessidade de usá-los. Para dizer “o Rio Paraguai tem muitos peixes”, por exemplo, é só acrescentar Olaripó, que é o nome que damos ao rio, à frase anterior: “Olaripó haré makeawá”. Veja: Há distinção entre gêneros? Ariabo: Para substantivos e adjetivos, não. A distinção é só para alguns nomes próprios. Veja: Como ficam palavras que designam coisas novas, como Facebook? Ariabo: Fazemos como em português: adotamos o estrangeirismo. Não há nenhum problema nisso. Na aldeia, nós falamos ‘facebook” mesmo. Veja: Os índios umutina usam Facebook? Ariabo: A 15 quilômetros da aldeia há uma conexão com a internet. Todos os meus amigos usam. Além da presença da internet na vida de comunidades indígenas, um outro tema igualmente importante, passível de ser abordado a partir do Texto II, é a própria língua indígena em suas múltiplas facetas. O recomendado à ação docente, nesse caso, é basear-se no sentido de valorizá-la enquanto bem da própria comunidade; demonstrar sua função social, identitária, observar aspectos gramaticais a ela inerentes. Nesse último caso, o professor poderia realizar atividades capazes de evidenciar as particularidades de cada uma das línguas abordadas. O conjunto de textos acima – vistos como sugestão do que pode se tornar uma aula de PLA – cumpre outra função, qual seja a inserção de temas diversos inerentes à sociedade nacional, mas relacionados ao contexto local, no ambiente escolar. À escola cabe ensinar o novo, cabe desafiar as diversas competências e habilidades. Temas próprios da comunidade em que a escola está inserida, conforme atestado em 3.3, cabem

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predominantemente, portanto, nas aulas de L1 e não necessariamente nas aulas de PLA. Inseridos aqui, geram o risco de tornarem-se tão somente textos traduzidos. É necessário dizer, ainda, que as atividades propostas implicam outro conjunto de questões, não mais relacionado diretamente ao discente, mas à própria prática docente, uma vez que se refere a aspectos metodológicos. Considerando-se, portanto, o compromisso social com os ideais do povo onde a escola está inserida, o professor deve, ao trabalhar com textos, questionar-se acerca da importância do conteúdo abordado para aquele contexto específico. Sendo assim, precisará encontrar respostas prévias às seguintes questões: (7) Qual texto? - Qual a informação do texto? - Para que esse texto? - Qual a importância do texto para meu aluno enquanto indivíduo e enquanto membro de uma sociedade? - Será necessário buscar informações adicionais para uma melhor compreensão do texto? Esse conjunto de informações delineadas anteriormente ao trabalho com o texto implica, sobretudo, que este não deve ser utilizado apenas como recurso para que o aluno resolva a um conjunto de atividades. Deve, antes, servir como fonte de informações, de aprendizagem. Assim, não cabe ao professor preocupar-se primeiro com o conjunto de atividades possíveis a partir do texto, mas com as informações que o constituem. Agir nessa direção, então, torna o trabalho com o texto duplamente positivo, uma vez que sinaliza para questões de produção textual, de argumentação e de informações do mundo que o cerca. Ao professor, atribui-se um novo papel que não o de mero corretor de texto, mas de incentivador, que abre os horizontes de seu aluno, que lhe permite argumentar. Ao considerar essa perspectiva de ensino, saio da figura estrita do professor índio para a figura do professor de PLA considerando-se que nas escolas aqui pensadas há professores não indígenas atuando, sobretudo, nas últimas séries do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. O início desta mudança perpassa por questões relacionadas (i) ao melhoramento do material didático oferecido nas escolas indígenas; (ii) à capacitação dos professores; (iii) à criação de alternativas que, nesse caso, não podem ficar apenas na falácia.

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Ao fim, devo assumir que as diretrizes apresentadas neste artigo não se constituem inéditas sob a perspectiva da Linguística Aplicada voltada ao ensino de língua adicional. Halliday (1973), por exemplo, assinala que comunicar-se requer mais que simplesmente o domínio de uma estrutura linguística devido ao fato de que línguas são fundamentalmente sociais. Na mesma direção, pode-se mencionar a Abordagem Comunicativa (Communicative Approach) que, segundo Widdowson (1990), surge nos anos de 1970-80 como alternativa à abordagem de ensino baseada na estrutura linguística (Structure-centered). Quando se pensa no ensino de PLA em comunidades indígenas do Brasil, pode-se mencionar Maher (1994), que propõe a partir de uma “proposta concreta de atuação desenvolvida, especificamente, para as escolas indígenas do Acre e sudoeste do Amazonas” a promoção conjuntamente com os alunos não apenas do “desenvolvimento de uma experiência estrutural, linguística, mas, principalmente, o desenvolvimento de uma competência comunicativa na língua-alvo” (Maher, 1994: 71). Em perspectiva semelhante, Amado (2012: 395) assume que “um professor que ministre aulas de português, seja nativo ou indígena, terá que atentar, dentre várias outras questões, para fatos discursivos como esses” (aspectos de oralidade, marcadores verbais diversos, etc.). 5 Considerações Finais Procurei mostrar que a realidade do ensino de PLA nas escolas indígenas do Amapá e Norte do Pará requer mudanças de direção. Considero que a realidade vislumbrada atualmente não deve se mantida, já que não corresponde àquilo que se espera de um processo de ensino/aprendizagem que valorize a comunicação/uso da língua adicional sob diversas perspectivas. Em seu lugar, defendo um ensino pautado no empoderamento das habilidades de leitura, escrita, argumentação, bem como de ampliação do conhecimento de mundo discente. Para isso, a diversidade de gêneros textuais e, sobretudo, o uso de temas da sociedade nacional nas aulas de PLA, em oposição ao uso de temas do cotidiano da própria sociedade (indígena) local é considerado essencial. Finalmente, assumo oposição à execução (mecânica) de ações metalinguísticas de ensino que persistem como tal no âmbito escolar descrito nos relatórios de Estágio Supervisionado. Nessa direção, cabe-me perguntar (como linguista): (1) Ao decidirem o que querem, as próprias comunidades interessadas têm formas de fazê-lo? (2) Por que

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mesmo tendo algumas comunidades indígenas atribuído papel secundário à metalinguagem na escola de seus filhos as práticas de ensino continuam impregnadas dessa característica? (3) Qual o papel da UNIFAP (e quica das IFES que “formam” professores de linguagem que atuarão nas escolas indígenas) nesse cenário? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMADO, Rosane de Sá (2012). Português Segunda Língua: perspectivas para a pesquisa linguística e o ensino pluri- e intercultural, pp.385-398. Revista PAPIA 22(2). BRASIL. Decreto no 3.276, de 6 de dezembro de 1999. Câmara de Educação Básica. Dispõe sobre a formação em nível superior de professores para atuar na educação básica, e dá outras providências. Brasilia-DF. Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB). Brasília-DF. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. CIMI (2006). Currículo de Ensino Fundamental nas escolas indígenas Karipuna e Galibi-Marworno, Palikur, Galibi-Kalinã no município de Oiapoque. 2. Ed. Belém-PA: Mensageiro Editora. GOMES, Antonio Almir Silva. (2012). Português brasileiro em uso por professores indígenas do estado do Amapá. Anais do Simpósio Internacional de Ensino de Língua Portuguesa, pp. 1-13, v.2, n.1. Uberlândia: EDUFU. HALLIDAY, M. A. K (1973). Explorations in the Functions of Language. London: Edward Arnold. IEPÉ Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena. Aprendendo português nas escolas Tiriyó e Kaxuyana. Maria Cristina Troncarelli. (org.). (2010). Programa de formação de professores-pesquisadores Tiriyó e Kaxuyana. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Macapá: Iepé. Praticando português nas escolas Tiriyó e Kaxuyana. Maria Cristina Troncarelli. (org.). (2010). Programa de formação de professores-pesquisadores Tiriyó e Kaxuyana. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Macapá: Iepé. KOCH, Ingedore Villaça (2002). Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São Paulo: Contexto. MAHER, Terezinha de Jesus Machado (1994). O Ensino de Português nas Escolas Indígenas, pp. 69-77. Em Aberto, v. 14, n.63. Brasília-DF.

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MARCUSCHI, Luiz Antonio (2005). Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Org.). Gêneros textuais e ensino, pp. 19-36. 4. ed. Rio de Janeiro: Lucerna. UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ (2007). Projeto Político Pedagógico do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena. Macapá-AP. WIDDOWSON, H. G (1990). Aspects of Language Teaching. Oxford. Oxford University Press

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OCORRÊNCIAS E RECORRÊNCIAS DE ALTERNÂNCIA DE CÓDIGO ENTRE PARKATÊJÊ E PORTUGUÊS Marília Ferreira 1 Cinthia Neves 2

CONSIDERAÇÕES SOBRE O POVO E A LÍNGUA PRKATÊJÊ A língua Parkatêjê pertence à maior família linguística do grupo Macro-Jê, a família Jê. Juntamente com outras línguas (Krahô, Krinkati, Apaniekrá-Canela, Ramkokamekrá-Canela, Pykobjê-Gavião, Krenjê e Apinajé) forma um grupo de línguas inteligíveis entre si em diferentes graus denominado “Complexo Dialetal Timbira” (Rodrigues, 1986). Além de aspectos linguísticos, fonético-fonológicos e sintáticos, esses povos compartilham características culturais: a disposição das casas em forma circular na aldeia e o costume de realizar a corrida de toras, por exemplo. Atualmente, o Parkatêjê é falado por aproximadamente 10% de uma população de 478 pessoas3 residentes na Terra Indígena Mãe Maria, localizada a 30 Km do sul de Marabá, às margens da BR-222, sudeste do Pará. O grupo hoje conhecido como Gavião Parkatêjê (ou Gavião do Pará) é composto por remanescentes de três grupos que viveram na região do sudeste do Pará e do Maranhão: Rõhôkatêjê, grupo do cocal; Akrãtikatêjê, povo da serra; e Kyikatêjê, turma do Maranhão4, por ter vivido às proximidades da cidade de Imperatriz: “E todo mundo era uma turma só – depois é que teve briga e espalhou: uma turma ficou no Tucuruí, outra turma correu pro Maranhão. Mas primeiro era tudo junto, cada um na sua aldeia, tudo por aqui – do Moju, até a serra, na cabeceira do Jacundá.” (KRÔHÔKRENHUM JÕPAIPAIRE, 2011, p. 75)

Segundo Araújo (1989, p.9), até 1980 o povo estava dividido em duas aldeias, “uma sede, às margens da estrada, conhecida como ‘turma do 30’, por estar a Sede localizada no km 30 da Rodovia PA 70 (...); a outra aldeia, dos ‘maranhão’ ou kyikatêjê, ficava a cerca de 4 km da primeira.” (ARAÚJO, 1989, p. 9)

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Professora Doutora. da Universidade Federal do Pará. Doutoranda pela Universidade Federal do Pará, Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 3 Dados do Posto de Saúde da Comunidade apresentados em Krôhôkrenhum Jõpaipaire (2011, p. 97). 4 Outro povo Timbira é conhecido por Gavião do Maranhão (Gavião Pykobjê). No caso dos Kyikatêjê é uma referência ao lugar em que este grupo se refugiou. 2

A situação sociocultural dos dois povos era diferente devido ao tempo de contato e localização de suas aldeias. Por influência e imposição dos funcionários do Posto Indígena, o grupo do trinta adotou usos e costumes dos não-índios, deixando os costumes tradicionais, entre eles a língua indígena. Muitas são as discussões acadêmicas e sociais quanto à língua desses povos: seriam Parkatêjê e Kyikatêjê variantes de uma mesma língua ou línguas próximas? Considerando que se esses dois povos viveram juntos, falando duas línguas distintas e inteligíveis entre si, deve-se ter em conta “a percepção que os próprios falantes têm de sua língua e ressaltar o esforço contínuo que tem havido entre esses povos quanto ao fortalecimento de uma unidade cultural, a qual passa, sem dúvida, pela unidade linguística (...)”. (AMADO, 2006, p. 3)

Falantes de uma mesma língua ou não, esses povos detêm a tradição de narrativas orais que, segundo Ferreira (2010), apresentam uma estrutura básica “composta de um início, um meio e um fim”; são histórias míticas ou autobiográficas que ainda são repassadas de geração a geração. As histórias são contadas de modo a combinar gestos, expressões, repetições, rimas, entonações e, nas narrativas parkatêjê, alternância de código, uma troca rápida e significativa para o português. As trocas de uma língua para outra, encontradas nas narrativas parkatêjê contadas pelo chefe Krôhôkrenhum, são o objeto de estudo desta dissertação, na qual as alternâncias são descritas e analisadas com base em teorias que tratam da sistematicidade do fenômeno. A próxima sessão reconta a trajetória dos parkatêjê a partir do contato com o mundo não-índio; aproximação que deixou marcas como a que que este trabalho se propõe a apresentar. CONTATO COM O PORTUGUÊS: O PASSADO E O PRESENTE Segundo Araújo (1989, p. 8), o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) contatou o primeiro grupo de índios gavião (Rõhõkatêjê) em 1956, ano em que as terras onde se encontram foram por eles ocupadas e até 1976 o território era conhecido por “Posto Indígena Mãe Maria”. Esse contato foi inevitável, pois foi “a única possibilidade de sobrevivência física para os componentes do grupo do Cocal, localizado, então nas

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cabeceiras do rio Praia Alta, no município de Itupiranga” (FERRAZ, 1993 apud FERREIRA, 2003, p. 20). Nesse momento, relata o chefe Krôhôkrenhum, “parece que tinha cinquenta famílias na aldeia do Praialto (...). Foi quando, de repente, apareceu a doença. Foi muito ruim. Morreram todos, e nós diminuímos de novo”, restando não mais que vinte pessoas. Crianças e adolescentes com idades entre cinco e dezesseis anos foram entregues a famílias em Itupiranga e em Marabá para que fossem tratados, dentre os quais estava uma das irmãs de Krôhôkrenhum, Kwyikwyire, que relembra alguns momentos desse período no livro de memórias de seu irmão: “dizem que eu estava barriguda, dizem que ela mesmo ficou com medo de eu não escapar, mas ela cuidou de mim, graças a Deus, e eu consegui escapar. (...) O meu pessoal sempre ia me visitar, levar as coisas, pra mim. Meu irmão, esse finado (Jõkorenhum), que morreu, ele sempre me visitou, sempre teve contato comigo; eles iam lá.” (KRÔHÔKRENHUM JÕPAIPAIRE, 2011, p. 175)

Em muitos aspectos o grupo deixou seus costumes. Por exemplo, as crianças deixaram de ser batizadas com nomes gavião ou, quando o recebiam, vinham acompanhados de nomes não-índios, sendo chamadas por esses; muitos adultos atualmente são conhecidos por seus nomes kupẽ 5. A convivência dos parkatêjê com os não-índios foi inevitável. As terras parkatêjê constituem uma grande área de castanhais que por volta de 1920 começou a ser invadida. Anos depois, em 1967, a rodovia PA-70 (atual BR-222, rodovia em que residem) cruzou a Reserva Indígena Mãe Maria para ligar Marabá à BR-010 (BelémBrasília). Dez anos depois, juntamente com a construção da PA-150, o Decreto 80.100 de 8/08/1977 autorizou a construção da linha de transmissão entre Marabá e Imperatriz, passando novamente pela reserva. Posteriormente, nos anos de 1980, com as obras da Usina Hidrelétrica de Tucuruí nas fundações, foram instaladas dentro da reserva torres de transmissão, que também atingiram os parkatêjê. Finalmente, no mesmo período, em 1985, foi criada a Estrada de Ferro Carajás, conectando as minas de ferro de Carajás/Pará ao Terminal Portuário de Ponta da Madeira/Maranhão. O contato com o mundo kupe͂ garantiu a sobrevivência do povo parkatêjê, permitiu a união dos grupos e os tornou independentes em termos econômicos. Entretanto, a língua portuguesa ocupou espaços cada vez maiores no grupo 5

O que não é índio.

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“depreciando o uso da língua tradicional, percebida como insuficiente para os novos relacionamentos que se estabeleciam” (ARAÚJO, 2008). Interferências que ultrapassaram os nomes, pois “as crianças não estão mais aprendendo o Parkatêjê como sua primeira língua, mas sim o português. Isso coloca o Parkatêjê em uma situação de risco” (FERREIRA, 2003, p. 22). Mudanças linguísticas/estruturais também podem ser notadas na língua indígena, como a descentralização de vogais, a redução do léxico e a inserção/empréstimo de palavras do português. Ao descrever a variante étnica do português falada nessa comunidade, Ferreira (2005) exemplifica que, na fala da 2ª ou 3ª geração, vogais centrais como [ɨ] são produzidas na região posterior. Assim, termos como [katɨɪ] ‘vovó’ são pronunciados [katuɪ]. Da mesma forma, por assimilação e influência da língua portuguesa, o aspecto lexical sofreu alterações como a perda das especificações para o ato de comer. No parkatêjê eram, por exemplo, distintos o ato de comer carnes duras como veado (kukre)͂ , comer frutos ou carnes macios como cupuaçu e peixe (kuhô) e triturar os alimentos como castanha (kãmxàr). Todas essas formas foram substituídas por uma forma genérica - kukre͂ - tal como em português, no qual uma forma atende a todos os tipos de comida. Para Araújo (2008), “quanto aos parkatêjê, é sua política lingüística interna – e adequado planejamento – que definirá a revitalização de sua língua.” Revitalização que dá seus primeiros passos com a realização de festas tradicionais como a do Põhytetet (festa do milho verde) e com as crianças da comunidade aprendendo os cantos rituais que homenagearam o cacique no lançamento de seu livro. O FENÔMENO DE ALTERNÂNCIA DE CÓDIGO Um indivíduo bilíngue ao se comunicar apresenta características próprias, podendo optar pelas variantes e línguas que domina de acordo com seu interlocutor ou com a situação em que a interação ocorre. Ou seja, o bilíngue não apenas pode escolher entre diferentes variedades de uma língua, como pode escolher entre duas línguas. Enquanto um indivíduo monolíngue muda de uma variante de uma língua para outra, “a bilingual may change varieties in one language, change languages, or do both” (GROSJEAN, 1982, p. 128). O esquema abaixo apresentado por Grosjean (1982) ilustra

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o repertório de opções que um bilíngue possui na interação, a depender do seu interlocutor. Assim, uma situação de bilinguismo, na qual o indivíduo tem habilidade de fazer escolhas entre variedades de uma mesma língua ou duas línguas, resulta, segundo Wardhaugh (2006, p. 101), pelo menos, em ocorrência de alternância entre os códigos (code-switching) envolvidos na interação. Este fenômeno recorrente na fala bilíngue constitui, portanto, um importante aspecto do contato de línguas, mas apenas recentemente recebeu atenção de pesquisadores. A alternância de código (também referida como code-switching) caracteriza-se pelo uso de duas ou mais línguas em uma conversação. Poplack (1980a, p. 583) define esse fenômeno como “the alternation of two languages within a single discourse, sentence or constituent”. Grosjean (1982, p. 145) propõe que seja “the alternate use of two or more languages in the same utterance or conversation”. O mais influente e mais citado nome dos estudos sobre o code-switching é Gumperz (1982), que propôs o primeiro inventário de funções do code-switching, mostrando que este fenômeno é uma estratégia discursiva adotada por falantes bilíngues, que não ocorre de maneira randômica. Gumperz (1982) relaciona o codeswitching às escolhas estilísticas dos monolíngues. Segundo ele, esta prática discursiva presente na interação bilíngue sinaliza informação contextual equivalente ao que é transmitido através da prosódia e outros processos lexicais ou sintáticos em ambientes monolíngues. A escolha linguística gera, portanto, pressuposições acerca de como o que foi dito deve ser decodificado. Ainda para Gumperz, a escolha do código não é uma escolha de conteúdo, mas de estratégia discursiva, de cunho social, pois, segundo ele, os falantes não utilizam a linguagem somente por conta de suas identidades sociais ou de fatores situacionais, buscam também explorar as potencialidades das escolhas para transmitir significados de natureza sócio-pragmática. Assim, o uso de uma variante em detrimento de outra possui relevância de natureza intencional para o significado da mensagem, fazendo da escolha do código não uma escolha de conteúdo, mas principalmente uma estratégia discursiva. - O modelo de restrições de Poplack (1981) Segundo Poplack (1981, p. 170), há divergências na literatura a respeito do que é code-switching verdadeiramente. Assim como no estudo da autora na comunidade El

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Barrio, nesta dissertação a alternância de código é definida de acordo com o grau de adaptação à outra língua. Na análise de Poplack (1981), se um item da L1 está completamente adaptado à fonologia e morfologia da L2, a autora considera que houve integração total, como nos exemplos abaixo apresentados no estudo, nos quais os itens destacados, pertencentes ao inglês, quando alternados, entram na sentença fonologicamente adaptados ao espanhol: (1)

Yo jangueo [haƞ’geo] en la ciento quince. (Eu saio na Rua 115)

(2)

Tabanos una nota bien jevi [he’βi]. (Estávamos em uma vibe pesada)

Os termos seguiram as regras fonológicas, morfológicas e sintáticas da variante porto-riquenha de espanhol – straight seguiu a regra de glotalização atestada no Caribe, comum em posição interna na palavra; hang out (jangueo), tornou-se vocábulo único; e heavy (jevi) ocupa a posição ditada pela regra para os adjetivos – e não fizeram parte da análise de Poplack, pois não são vistos como instâncias de code-switching. Já exemplos como o mostrado em (3), em que há falta de adaptação aos padrões de uma língua aos padrões da outra, Poplack considera como code-switching: (3) You didn't have to worry que somebody te iba a tirar con cerveza o una botella or something like that. (Você não tem que se preocupar que alguém possa atirar cerveja ou uma garrafa em você ou alguma coisa do tipo) Na Rua 102 de El Barrio, Poplack encontrou três tipos de alternância de código. O primeiro está relacionado ao controle que o falante tem da L2, quanto menos ele conhece a outra língua, menos as alternâncias que ele realiza estarão estruturalmente integradas em sua fala. No caso da comunidade porto-riquenha, aqueles que consideram o espanhol como a língua na qual se sentem mais seguros tendem a alternar para o inglês com tags, formas imutáveis ou expressões idiomáticas. Nas narrativas parkatêjê selecionadas para esta dissertação, as formas tag “aí” e “né”, da língua portuguesa, aparecem com frequência, como em: (4) Kãmã apane͂ re, né Fica calado, né? (5) Aí... wa pupũn wa tapa ne͂ me͂ wa tapa tojapakti Aí... Eu vi, eu estava saudoso porque eu saudoso lembro

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(6) Ijõkre assim jũ mũ jakre inõre pa wa pê pa aprender Minha cantiga, assim, ninguém me ensinou, eu aprendi sozinho por mim mesmo Segundo Oliveira (2006, p. 33), “como os tags estão sujeitos a restrições sintáticas mínimas, eles podem ser inseridos em diversas posições num enunciado monolíngue sem violar regras sintáticas; portanto este tipo de alternância pode ser produzido mesmo quando o falante possui conhecimento limitado da língua estrangeira”.

Outro tipo de alternância descrito por Poplack (1981) é o que autora chama de alternância de nome, na qual apenas um substantivo da outra língua é inserido no discurso. Este tipo de alternância será tratado mais adiante, na subseção dedicada às trocas de uma língua para outra nesta classe. Os tipos de code-switching encontrados no El Barrio foram divididos por Poplack (1980) em três tipos, que vão do que exige menos domínio da L2 pelo falante, ao que precisa de fluência nas duas línguas: tag-switching; code-switching intersentencial; e code-switching intrassentencial. A alternância intersentencial se dá no nível do período, demandando maior domínio da segunda língua por parte do falante, que deve se adequar às regras gramaticais das duas línguas. Neste tipo de alternância, a sentença inicia em uma língua e termina em outra: (7) Amji kapi karyri nã pia hõ pê pia apiri apu nawỳ. Jê, quero também... Quero também... Fazer índio. Dizem que ela continuou pedindo de novo: Jê, quero também... quero também... fazer índio. As alternâncias intersentenciais serão apresentadas mais adiante, porém chamadas de sentenças combinadas, seguindo a nomenclatura de Poplack (1981). O outro tipo de alternância, intrassentencial, pode ocorrer no meio ou em partes de frases, exigindo uma maior competência linguística do falante, o qual não deve infringir as regras sintáticas de nenhuma das línguas envolvidas. (8) Me pê me͂ kwàrà é o memo mejõkrepôi nã kre As cantigas do Me͂ kwârsão as mesmas do Me͂ jõkrepôi (9) kupe têkiê, mã mej têkiê mpa aiku me respeitar só me ikra ou como hõ kitare...

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As coisas do não-índio e as nossas coisas, nós respeitamos só nossos filhos ou como as coisas deles mesmo... Esta alternância que ocorre dentro dos constituintes é a de maior frequência de ocorrência nas narrativas parkatêjê. Porém, não somente nos dados selecionados para esta dissertação, este tipo de troca é o mais comumente encontrado. Com base em análises quantitativas sobre as ocorrências intrassentenciais, Poplack (1981) propôs duas restrições linguísticas gerais para a alternância de códigos, as quais se complementam: Restrição de Morfema Livre e Restrição de Equivalência. As duas restrições juntas são suficientemente gerais para dar conta de todas as instâncias de alternância nos dados examinados, porém não parecem tão fortes para generalizar as instâncias de não-ocorrência do fenômeno, embora os resultados dos estudos de Poplack sugiram que é possível prever onde é mais provável que ocorra alternância e também onde não ocorrerá. - Restrição de Morfema Livre A Restrição de Morfema Livre estabelece que “é possível alternar qualquer constituinte no discurso, desde que este seja um morfema livre” (POPLACK, 1981, p. 183). A alternância pode ocorrer também entre um morfema fixo e uma forma lexical fonologicamente integrada à língua desse morfema. Isso explica o uso da palavra “escanear” em português, que combina o verbo “scan” do inglês, adaptado fonologicamente à língua portuguesa, com o morfema /-ar/ que designa os verbos primeira conjugação em português. Em parkatêjê, uma combinação deste tipo foi encontrada com frequência: (10) Nãijõtpêamjı͂ jõlei to ho pà nã ikakru apte wỳr ikakôk Eu me lembro da minha lei, não era assim não, era respeitada. (11) Kupe͂ chama a lei nã aite me͂ jõlei O não-índio chamada “a lei”, nós tínhamos também nossa lei. (12) Aiku me͂ ijõlei ele mũ aiku maipẽn tête kãmã Minha lei, naquele tempo, era bem segura. (13) Ikakrã apte jõlei ijuahi Só eu seguro nossa lei.

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Nos exemplos de (10) a (13) a alternância só é possível porque “lei” está integrada ao parkatêjê, pelo menos no campo da semântica. De acordo com Poplack (1982, p. 175) “nenhuma palavra com morfologia das duas línguas pode existir sem antes ter a raiz integrada à língua do sufixo fonologicamente e semanticamente”. Ainda não se pode falar em integração fonológica de “lei” ao parkatêjê, uma vez que, apesar de estar nos padrões silábicos da língua (CVV), ocorre com uma consoante não existente no quadro fonológico da língua, a lateral / l /. - Restrição de Equivalência Funcionando simultaneamente à primeira restrição, a Restrição de Equivalência prevê que a alternância ocorre quando as línguas compartilham as mesmas categorias gramaticais e a mesma ordem de constituintes, pois “os códigos tendem a ser alternados em pontos onde a justaposição dos elementos (...) não viola regras sintáticas de nenhuma das línguas, isto é, em pontos onde as estruturas de superfície das línguas se mapeiam uma na outra”. (POPLACK, 1981, p. 175)

Entre português e inglês, por exemplo, são distintas as regras de colocação dos adjetivos. Em inglês, esta classe precede os substantivos, ao passo que, em português, normalmente ela é posta após o nome modificado – à exceção de casos como “grande”, “bom”, “jovem”, etc., que podem preceder os substantivos causando modificações semânticas –, de modo que uma alternância envolvendo substantivo e adjetivo entre português e inglês, segundo esta restrição, não seria gramatical para o bilíngue. Poplack representa a área na qual as estruturas de superfície das línguas são equivalentes de acordo com a figura abaixo:

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Figura 1: Representação da gramática da alternância de código

As áreas externas, onde não há equivalência das gramáticas, tendem a ser reservadas a segmentos monolíngues do discurso. Por exemplo, orações transitivas simples são, segundo Ferreira (2003, p. 163), constituídas “por um predicado simples, cujo núcleo é um verbo transitivo, o qual apresenta dois argumentos, a saber, o sujeito (A) e o objeto (O)”. Em parkatêjê este tipo de oração se apresenta com a seguinte estrutura: _____________________ A–O–V _____________________ Já a estrutura prototípica do português é: _____________________ A–V–O _____________________ As gramáticas das duas línguas não coincidem, portanto, quanto ao predicado, não sendo possível uma alternância entre parkatêjê e português neste constituinte. De um modo geral, as ocorrências de alternância encontradas nas narrativas parkatêjê sustentam os modelos de restrição propostos por Poplack (1981) como mostram as próximas subseções que ilustram as alternâncias na língua. SEGMENTOS ALTERNADOS PARKATÊJÊ Para exemplificar as restrições propostas em seu estudo, Poplack (1981) listou os principais tipos de alternância encontrados em seus dados: a) sentença completa (full sentence); b) sentença conjugada (conjoined sentence); c) interjeição (interjection); d) entre sintagma nominal principal e sintagma verbal; e) entre sintagma verbal e sintagma nominal objeto; f) entre sintagma verbal e sintagma preposicional; g) entre verbo e advérbio; h) entre nome e adjetivo; i) entre determinante e nome; j) entre auxiliar e verbo.

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A tabela abaixo aponta o número de ocorrências das principais alternâncias nas fronteiras dos constituintes e dentro deles: Segmento alternado

Nº de Ocorrências

Na fronteira de constituintes Sentença completa

12

Sentença combinadas

9

Repetição

4

Dentro do constituinte Tags Nome Verbo

5 20 10

Advérbio e palavras denotativas

8

Conjunção

14

 

Total = 82 Tabela 1: Número de ocorrências de alternância de código nos constituintes

Baseando-se na lista apresentada por Poplack (1981, p. 176), listam-se abaixo as principais ocorrências encontradas nas narrativas parkatêjê. - Alternância em fronteiras de constituintes - Sentença completa Os textos selecionados foram narrados na língua parkatêjê. Encontram-se neles, no entanto, sentenças proferidas em português, nos quais não apenas um item como nome ou verbo é alternado, mas o período todo: (14) Agora kupe͂ chama 15. Nós chama... Nós era 15, nós aparecemos aqui, né? (15) Não tem pena não. Nem criança, nem velho. Não tem pena, mata todo mundo. Porque quando é briga, é briga.

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- Sentenças combinadas Neste tipo de alternância, sentenças narradas nas duas línguas se ligam para constituir um período. (16) Amji kapi karyri nã pia hõ pêpia apiri apu nawy: Jê, quero também, quero também fazer índio. Dizem que ela continuou pedindo de novo: Jê, quero também... quero também... Fazer índio. (17) Estuda inõre ele quer ser governo nã hã Não estuda. Ele quer ser governo. - Repetição Segundo Romaine (1995, p. 143) uma das funções de um discurso com alternância é que a mesma coisa seja repetida, pois a alternância “às vezes reitera o que acabou de ser dito”. Os dados selecionados apontam três ocorrências em que a mesma idéia é proferida nas duas línguas dominadas pelo falante: (18) Kupe͂ chama quatro, né? Nós chama to aikrut. O não-índio chama quatro, né? Nós chamamos “to aikrut”. (19) Parece que eu tô sozinho. Wateheta ne͂ . Parece que eu estou sozinho. Eu estou sozinho. Cabe ressaltar que estas narrativas foram coletas por indivíduos monolíngues em português. Não se pode excluir, portanto, a possibilidade de a presença dos pesquisadores ser um fator que influencia diretamente a alternância de código. Nos casos de (18) e (19) acima, o falante informa nas duas línguas a palavra que expressa a ideia “três mais um”, que é aikrut. Não obstante, a contração “né” é marcador conversacional que pode indicar pedido de confirmação ou concordância com aquilo que foi dito. Provavelmente, se o falante não estivesse diante de interlocutores falantes de língua portuguesa não haveria necessidade de enunciar a frase em português, ainda que essa tivesse sido dita a falantes bilíngues. Nesse caso, então, há mais chance de o falante ter sido influenciado pelo contexto e seus interlocutores do que pela necessidade de repetir a ideia. A presença de monolíngues é um dos fatores que, segundo Grosjean (1982), influenciam a escolha da língua da língua a ser utilizada pelo falante no momento da enunciação.

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- Alternância dentro dos constituintes - Nomes Uma distinção usualmente feita quando se trata de classes de palavras é a que envolve nomes e verbos. Segundo Payne (1997), são estas as duas grandes classes que uma língua apresenta no mínimo; e apesar de haver aproximações entre as características típicas de uma ou de outra, dificultando o estabelecimento de fronteiras, é possível identificar noções prototípicas para cada uma. Os nomes, em geral, incluem palavras que expressam conceitos temporalmente estáveis, ao passo que os verbos correspondem semanticamente a ações, eventos e processos, nos quais a noção de temporalidade varia. Na categoria de alternância intra-sentencial, Poplack (1981) aponta que esta classe temporalmente estável apresenta a maior proporção de alternância. Segundo Romaine (1995, p. 125) uma das razões para a alta freqüência de ocorrência deste tipo de troca é o fato de esta classe ser “relativamente livre de restrições sintáticas”. Ferreira (2003, p. 47) aponta algumas características sintáticas que definem a classe de nomes na língua parkatêjê, dentre as quais estão: a) a posição de núcleo de uma locução nominal, ocorrendo como sujeito e objeto de verbos e posposições; b) a possibilidade de ocorrer como predicado de orações não-verbais; e c) a possibilidade de serem modificados por descritivos, quantificadores, demonstrativos e outros nomes. Em português o nome substantivo funciona como núcleo do sintagma nominal, acompanhado por determinantes e modificadores. As duas línguas, portanto, permitem troca nesta classe sem violação de suas estruturas sintáticas: (20) Me͂ ntia cinco mpy dez tõmõ wapêmatwỳreaikaa me͂ a ne͂ Mulher [eram] cinco, homem [eram] dez, poucas pessoas. Então ficamos acampados aqui mesmo. Me͂ ntia cinco , mpy dez Mulher cinco , homem dez Os outros dados em que ocorre alternância de nomes seguem a mesma estrutura sintática, em pontos nos quais a justaposição das línguas sem prejuízos sintáticos é possível:

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(21) Mpo ita to dinheiro nã to mã apa pê Trabalhei para ganhar dinheiro. (22) Feriado ita ton kãmã amji pê kaka Não quero respeitar o feriado [porque não tinha para os índios]. (23) Amtỳ nã me͂ ikỳre governo chefe nã Como faz o governo, prepara o chefe. (24) Tamri kitare mejõ capitão nã inxu nã Deus é Jê, nosso capitão, nosso pai. Os segmentos em (23) e (24) trazem uma alternância com características de empréstimo, pois nota-se na comunidade uma tendência a utilizar os termos “capitão” e “chefe” para fazer referência à sua liderança, o Capitão Krôhôkrenhũm. A frequência de uso de pares homônimos, que leva palavras usadas com menos frequência à substituição é como uma das razões para que línguas emprestem termos umas das outras. Considerando, no entanto, que a adaptação fonológica e morfológica é o critério que diferencia as duas categorias, alternância e empréstimo, “capitão” e “chefe” são aqui tratados como troca de língua, não como integração dos termos na L1. Outro tipo de alternância na classe de nomes se apresenta na estrutura tópico/comentário: (25) É… A dança kupe͂ tekiê É... A dança, coisa do não-índio. (26) A bola kupe͂ tekiê A bola, coisa do não-índio. (27) Escola kupe͂ tekiê A escola, coisa do não-índio. Em (25) aparece um termo em português para o qual há correspondente em parkatêjê. Entretanto, a “dança” a que o falante se refere não é aquela de sua tradição, mas sim a que foi introduzida por não-índios, um elemento que passou a fazer parte da cultura a partir do contato. (26) e (27) são mais dois segmentos com termos característicos de empréstimos, palavras integradas à língua; porém, apenas semanticamente, para designar novos objetos, novas noções, sem acomodar-se à fonologia ou morfologia da língua. Uma evidência para que “bola”, principalmente, seja considerada aqui como alternância é a ocorrência do artigo “a”, do mesmo modo que

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em “a dança”, seguindo regra de composição do sintagma em português, em que o determinante indica o gênero e o número do substantivo. Há nas narrativas também ocorrências de alternância de nomes da L1 inseridos em sentenças da L2: (28) Se é tĩr mas tĩr mas chama wawy iwawy Se é vivo mas... Vivo mas... [Nós] chamamos wawy, iwawy. (29) Reza não é minha, não é itekjê. Reza não é minha, não é coisa minha. (30) Mas mpo nã que ele usa eu não quero Mas coisa que ele usa eu não quero. Nestes segmentos, o falante opta pela L2 como língua de base, inserindo termos de sua L1. Esta subseção tratou de alternâncias envolvendo termos temporalmente estáveis, que não indicam ações, os quais se diferenciam semântica e sintaticamente dos termos tratados na próxima subseção, os verbos. - Verbos Ferreira (2003, p. 85) define a classe de verbos em parkatêjê a partir de dois critérios: a) critério semântico – classe de palavras associada a processos, eventos, ações, desejos que estão ligados à noção de temporalidade; b) critério morfossintático – os verbos exercem caracteristicamente a função de predicado e estão ligados às categorias gramaticais de tempo, aspecto, modo, voz e polaridade, que podem ser expressas morfológica ou sintaticamente. Quanto ao número de argumentos6 que esta classe admite, tanto em parkatêjê quanto em português, tais elementos podem ser transitivos, de argumentos nucleares A (sujeito) e O (objeto) ou intransitivos, cujo papel nuclear corresponde a S. As duas línguas compartilham, portanto, características semânticas, como a associação a ações, e sintáticas, dentre elas a função de predicado, que permitem a alternância de uma para outra nesta classe de palavras. 6

A nomenclatura deste trabalho segue a premissa de Dixon (1994, p. 6), segundo a qual “todas as línguas operam em termos de três relações primitivas: S – sujeito intransitivo; A – sujeito transitivo; e O – objeto transitivo”.

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Nas narrativas selecionadas foram encontradas as seguintes ocorrências: - Verbos transitivos Em parkatêjê todos os verbos transitivos são verbos semanticamente ativos, cujos argumentos são A e O e ordem que segue o padrão AOV. Nos dados coletados, todos os casos nos quais foram encontradas ocorrências com verbos transitivos e argumento O expresso na sentença seguem a estrutura prototípica do português: _____________________ A–V–O _____________________

(31)Mpa aiku mẽ respeitar só 2Pl PR Nós respeitávamos só os nossos filhos.

mẽ pl

ikra filho

(32) Me arkwa atuixà mã ren toipa anenã inkrere nã toipa nã pa aprender Eles cantavam na nossa língua até o final. Eu me lembro para aprender. Segundo mencionado anteriormente, parkatêjê e português não compartilham a mesma ordem de constituintes em seus predicados. As ocorrências em (32) e (33) não obedecem, portanto, à Restrição de Equivalência de Poplack (1981), pois a alternância ocorre, nos três casos, em pontos onde as gramáticas das duas línguas não coincidem. Este tipo de enunciado que envolve sistemas linguísticos diferentes quanto à ordem de constituintes foi objeto de estudo de Mahootian (1993); (MAHOOTIAN E SANTORINI, 1995, apud BATHIA E RITCHIE, 2006, p. 289) que focaram na relação entre os constituintes na estrutura da frase, argumentando que “a língua de um núcleo determina a posição dos complementos na estrutura da frase na alternância de código da mesma forma que em contextos monolíngues”. A autora observou em seu corpus que em uma alternância envolvendo o verbo de uma língua SVO e o objeto de uma língua SOV, a língua do verbo determina a posição do objeto. Isso explica porque todos os casos envolvendo verbos de português não seguem a ordem prototípica do parkatêjê, mas sim aquela encontrada na língua do verbo.

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- Verbos intransitivos Segundo Ferreira (2003, p. 87) em parkatêjê, semanticamente, os verbos intransitivos podem ser ativos (verbos de ação), ou descritivos (verbos não-ativos e estativos). Nos dados foram encontradas três alternâncias relacionadas a verbos intransitivos ativos, que designam ação tanto em português quanto em parkatêjê e cujo sujeito manifesta controle, característica de verbos ativos: (33) Estudar ka mũ mpa krare estudar kairiri are Estudar, nossos filhos vão estudar direto. (34) Mu mẽ estudar kairiri are [eles] Têm que estudar direto. Os trechos apontam que as alternâncias nesta classe de verbos ocorrem com um termo para o qual o parkatêjê não apresenta correspondente, uma vez que se relaciona a um novo conceito nessa cultura. Seguindo a definição de Grosjean (1982, p 308) para a distinção entre alternância e empréstimo, tratou-se aqui “escola” como alternância já que é uma mudança completa para o português, sem adaptação fonológica e morfológica da palavra. Os segmentos abaixo trazem predicados formados por um verbo de ligação expresso e um predicativo: (35) Parece ijapak jamrere Parece [que] não tem orelha. Parece [que é] surdo. (36) Kỳikatêjê era kupe͂ katê Kỳikatêjê era matador de não-índio. Segundo Schachter (1985, p.10), além da subclassificação dos verbos em transitivos ou intransitivos e ativos ou estativos, há línguas que apresentam uma subclasse de verbos copulativos, como o verbo to be (ser/estar) do inglês, que ocorrem com predicados nominais ou adjetivos. Em outras línguas, porém, não há cópula propriamente dita ou esta não é um verbo. Parkatêjê é um exemplo de língua sem cópula, o predicativo se liga diretamente ao sujeito, ou seja, “a função do verbo ser parece ser um desenvolvimento secundário” (LYONS, 1979, p. 338).

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Para expressar, então, em parkatêjê o correspondente a “Kyikatêjê era matador de não-índio”, em português, a sentença esperada é: (37) * Kỳikatêjê

kupe͂ katê

Kỳikatêjê

kupe͂ - katê

Kỳikatêjê

não-índio - matador

Kỳikatêjê

ser.matador.de.não-índio

Assim, uma alternância com o verbo ser, como em (37), coloca como língua de base o português, cujas regras são seguidas, ou seja, Suj + Verbo de ligação + Predicativo. Novamente, o falante escolhe a L2 como língua de base e alterna com elementos da L1. Do ponto de vista pragmático, a necessidade de expressar ação passada pode ter motivado a escolha pelos padrões do português. A seguir, apresentam-se os exemplos de alternância envolvendo advérbios. - Advérbios Na língua parkatêjê, segundo Ferreira (2003, p. 144), a classe de advérbios se constitui de palavras que designam lugar e tempo, compostas por um dêitico marcado por uma posposição. Os locativos estão “em sua maioria, relacionados aos demonstrativos, bem como nomes relacionados a partes do corpo”; destes últimos se tem uma extensão para a indicação de lugar.Os temporais se relacionam a tempo como “partes de um dia e (...) períodos mais curtos ou mais longos de tempo”: Nas narrativas parkatêjê foram encontrados dois advérbios que não se relacionam às subclasses de locativos e temporais existentes na língua. São palavras que iniciam as sentenças expressando noção de tempo e negação em português, para os quais as ideias são concluídas em parkatêjê: (38) Agora mã ri ita to (39) Não é... mẽ kôt toj não mẽ kôt to wa nare kãmã te ijõkre Em português há uma série de palavras que se assemelham aos advérbios, porém sem classificação específica na Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), sendo

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chamadas simplesmente de palavras denotativas. Uma palavra deste grupo foi frequência nas narrativas para denotar exclusão: (40) Itan nari só amji mã mpei nõre (41) Wa kare me͂ kaxuwa só me͂ (wa krare) kôto taihô ita nã to hàpe kôt me to Na próxima seção será apresentado o último tipo de alternância encontrado dentro dos constituintes. - Conjunção Matthews (1997, p. 68) define conjunção como a palavra que une duas unidades sintáticas. As conjunções se subdividem em dois tipos: conjunções de coordenação, cujas principais são e, mas, ou, nem, pois, ora; e de subordinação, que exprimem relações diversas como causa, consequência, fim, condição, concessão, tempo, comparação e modo. Em parkatêjê há, segundo Ferreira (2003, p. 146) um número pequeno de elemento desta classe. A língua, no entanto, não conta com um estudo de aspectos sintáticos em orações dependentes, levando a autora a listar quatro elementos neste grupo: me, elemento conector de duas locuções; mã e nã, que designam sujeitos diferentes e idênticos, respectivamente, e coordenam orações; e nem, que exprime causa, segundo ela. Nas narrativas analisadas foram encontradas ocorrências com conjunções coordenativas e subordinativas da língua portuguesa: - Adversativas As conjunções coordenadas adversativas em português têm a função de estabelecer uma relação de contraste entre os sentidos dos termos ou orações envolvidas na operação. A mais frequente conjunção do português para expressar adversidade, mas, ocorre nas narrativas selecionadas com a mesma função e posição da língua portuguesa, porém introduzindo orações de parkatêjê: (42) Anenã kupẽ proibido ita kupẽ to. Mas me͂ arkwa nã amrı͂ are. O não-índio chama proibido. Mas na nossa língua não.

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(43) Wa kãmpar kêtêre kormã apte ikakôk jakotore ikakôk jakotore, mas jarkwa nã mu tapa kormã tapa wa mũ tojapak taiti kormã. Eu entendo muito pouco o português, meu domínio dessa língua é curto, mas a minha língua eu não esqueço, eu ainda lembro bem, muito bem. (44) Ikakôk jakôtore ikakôk jakôtore mas jarkwa nã mu tapa kormã tapa amu tojapak tajti kormã. Eu falo pouco [o português], mas a minha língua eu não esqueço, eu ainda lembro bem, muito bem. Os dados mostram que há significativa ocorrência da conjunção adversativa mas. Este trabalho dedica-se a descrever os segmentos que são alternados e em que pontos da estrutura sintática isso ocorre. Havendo necessidade, portanto, de que estudos posteriores explorem as motivações para o uso dessa conjunção com tanta frequência, assim como de outros elementos especificamente. - Explicativas Em português, as conjunções coordenativas explicativas unem duas orações, das quais a segunda explica o conteúdo da primeira: (45) Porque kupe͂ tekiê ri na aipu mã (46) kôt(o) inũare porque kỳmã apa ane͂ kahàkàre (47) Porque wa pê rỳ hà mũ ty - Temporais As conjunções subordinativas temporais iniciam uma oração subordinada tornando-a índice da circunstância do tempo/período em que o fato da oração principal ocorre: (48) Quando governo akiêj nã ntuwa nã to Quando um governo sai, uma nova lei é feita. (49) Quando hapôj mã ntuwa akiêj nã ntuwa nã mu ntuwa tairã Os exemplos descritos neste capítulo se voltaram aos aspectos morfossintáticos da alternância de código, apontando em que pontos do discurso, na fronteira de constituintes e dentro dos constituintes, o falante utiliza o português e o parkatêjê.

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Segundo Thomason (2001), as línguas exercem influências umas sobre as outras não apenas na ordem das palavras ou dos morfemas. O contato provoca mudanças que também afetam o caráter tipológico da morfologia, da fonologia, do léxico e do discurso das línguas. Nas narrativas parkatêjê, pôde-se constatar mudanças de caráter morfológico, a inserção de palavras do português ao léxico da língua indígena e a alternância de código como recurso que sinaliza as intenções discursivas do falante. Estas e outras mudanças advindas do conato com o português merecem estudos específicos e aprofundados que deem conta de descrevê-las e explicá-las. ALGUMAS CONCLUSÕES Este trabalho apresentou ocorrências de alternância de código entre português e parkatêjê em narrativas orais do povo parkatêjê sob o ponto de vista do modelo de Poplack (1981), dedicando-se a descrever os padrões de ocorrência das duas línguas nas sentenças. O modelo de Poplack (1981) prevê que o code-switching está fundado em duas restrições: a “restrição de morfema livre”, prevendo que a alternância pode ocorrer após qualquer constituinte desde que não seja um morfema fixo; e a “restrição de equivalência”, que prevê a ocorrência em pontos onde elementos de ambas as línguas são equivalentes, para não haver violação de regras sintáticas das línguas envolvidas. Este modelo se propõe a ser de validade universal; e as ocorrências encontradas na fala parkatêjê apontam tanto para a universalidade da teoria, quanto do fenômeno. As ocorrências de trocas de código foram quantificadas, levando à conclusão de que, assim como aponta Poplack (1981), os termos pertencentes à classe de nomes tendem a ser alternados com maior frequência. Nesta classe foram detectadas vinte trocas para o português, ao passo que as outras classes como tags, verbos, advérbios e conjunção apresentaram, respectivamente, cinco, dez, oito e quartoze trocas. Em linhas gerais, conclui-se com este trabalho que a alternância de código não só preenche uma necessidade linguística do falante quando este não lembra em uma das línguas o termo que deseja utilizar. A partir dos exemplos aqui apresentados, pôde-se também notar que a alternância entre códigos é mais que um fenômeno randômico envolvendo enunciados ora em uma língua ora em outra; é um mecanismo estruturado de seleção das línguas na construção do discurso.

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UMA REFLEXÃO SOBRE REFERENCIAÇÃO EM TEXTOS ESCRITOS EM LÍNGUA PORTUGUESA POR ALUNOS INDÍGENAS DA COMUNIDADE TERENA DE MIRANDA - MS José Amorim da Silva 1 Rogério Vicente Ferreira 2 Caroline Pereira de Oliveira 3

INTRODUÇÃO A população terena, segundo Aylwin (2009, p. 46), é classificada como a segunda maior de Mato Grosso do Sul – o primeiro é o povo guarani – e sua população, no início desta década, foi estimada em 16 mil pessoas. Seus dados históricos foram analisados com mais afinco em meados do século XIX. Até então, o contato com os não indígenas era escasso. A guerra provocou dispersão tanto de índios quanto de não índios, o que ocasionou o rompimento de fronteiras entre ambos. Este artigo tem como foco discutir questões sobre processos de referenciação utilizados em textos escritos em língua portuguesa (L2) por alunos de 8º e 9º anos (ensino fundamental) e também do ensino médio da comunidade terena de Miranda (MS). As questões teóricas tiveram com base as teorias da Linguística Textual e acrescidas de contribuições da Sociolinguística. Fenômenos como a substituição gramatical, lexical e expressões nominais4 na cadeia textual passaram a ser observados com mais atenção pelo fato de contribuírem para a relação de elementos coesivos que se situam no interior dos enunciados e respectivamente para a progressividade da tessitura do texto, além do próprio sentido. No que concerne à Sociolinguística, foram discutidos alguns pontos pertinentes à questão da variação linguística, pois o aluno indígena convive em dois espaços, indígena e não indígena. Esses ambientes sociais certamente possibilitam a tais discentes que adquiram conhecimentos diversos, que contribuem para a ampliação de seu repertório linguístico; mas podem também exercer influência sobre o aprendizado da língua terena. A variação linguística é discutida neste trabalho com ênfase sobre a 1

Professor Mestre da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Professor Doutor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 3 Professora Mestre da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Doutoranda em Linguística da Universidade Estadual de Campinas. 4 Fávero (2002) defende que a referenciação ocorre por meio de conjunções, dentre outros recursos que são utilizados no interior das sentenças e, às vezes, no final delas, mas de modo geral desempenha a função de conectar as partes, deixando-as coesas e significativas. 2

língua terena (L1) e sobre a língua portuguesa (L2), que são como tantas outras, influenciadas por fatores - geográficos e sociais no decorrer do tempo, o que as tornam pertinentes como objetos de pesquisa, levando à análise de possíveis influências culturais que são adaptadas por seus usuários. Conforme Aylwin (2009), a manutenção da língua terena nessa comunidade deve-se ao processo de conscientização fomentado pelas lideranças desse povo, que procuram manter “intactos” alguns aspectos de sua cultura. Apesar de certa influência do não índio em sua trajetória histórica, o terena procura manter seus costumes e cultura, como foi observado no decorrer da pesquisa, tanto por meio de leituras quanto pela interação durante a pesquisa de campo. Por outro âmbito, Gressler (1988, p. 51) afirma que a língua portuguesa tem sido o principal meio de comunicação, enquanto o uso da língua materna é focalizado no ambiente comunitário. Por isso, acredita-se que tal preocupação por parte das lideranças em manter a língua materna deve-se não apenas aos costumes e crenças, mas sobretudo ao seu status de bem cultural que marca e representa a história desse povo. O uso da língua materna na comunidade é uma prática constante entre os membros na busca de mantê-la; por isso, é ensinada nas escolas por professores terena como meio de conhecer melhor o uso adequado da língua na variedade escrita. O uso da linguagem materna nessa comunidade tem fomentado discussões para a elaboração de materiais didáticos, que têm como objetivo assegurar à comunidade terena um melhor conhecimento sobre o processo de estruturação da língua, além de fatores extralinguísticos. Isso demonstra a responsabilidade dos educadores e lideranças que procuram manter o bem mais precioso: a língua materna. O motivo que tem gerado certa preocupação por parte dos educadores é a restrição de material para o desenvolvimento da prática de ensino ao discente no ambiente escolar. A complementação desse material certamente contribuiria para maior discussão e ampliação de conhecimento sobre o sistema linguístico do aprendiz. ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO EM TEXTOS ESCRITOS POR ALUNOS TERENA Para fundamentação teórica, é discutida a questão da referenciação a partir do ponto de vista de Koch e Elias (2009; 2010), tais autores afirmam ser a referenciação uma forma de introduzir novas entidades no texto para que o locutor possa ativar, recategorizar, deixar o referente em espera, entre outros procedimentos. Também

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constituem o referencial teórico os trabalhos de Antunes (2005), Neves (2000; 2010), Marcuschi (2008), Adam (2008), Bastos (2001), Charolles (1988), Mira Mateus et al. (1983), Mondada e Dubois (2003). Além desses teóricos, contamos com algumas pesquisas realizadas por Nascimento (2003), Lima (2004) e Nincao (2008), e que apresentam alguns pontos relevantes sobre procedimentos linguísticos no texto escrito. O trabalho de Nincao (2008) diz respeito à análise do biletramento no texto escrito pelo aluno terena, por isso acreditamos ser pertinente para complementar nossa discussão sobre fatores tanto históricos quanto linguísticos. Por outro âmbito utilizamos obras de teóricos que discutem fatores históricos e culturais dos povos indígenas, como Mattelart (2005), Cunha (1992), Melatti (2007), e Rodrigues (2002). O procedimento da coleta de dados teve como princípio fundamental a interação entre professores, coordenadores e direção das escolas: Cacique Timóteo – rede estadual e Escola Coronel Nicolau Horta Barbosa - rede municipal; ambas situadas no município de Miranda – Mato Grosso do Sul. Após diálogo com os representantes dessas escolas, foram elaborados questionários que direcionassem os discentes sobre questões que envolvessem conhecimentos históricos e culturais a respeito de pessoas tanto do ambiente indígena quanto externos, desde que tivessem certa representatividade para os integrantes da comunidade. A primeira coleta foi realizada em outubro de 2009 com três turmas (1º, 2º, e 3º anos do ensino médio). Nesta, as perguntas foram mais abrangentes, pois permitiam que os alunos escrevessem um texto descritivo ou narrativo sobre alguma pessoa importante, o que nos permitiu conhecer ter certa aproximação com os discentes e perceber algumas estratégias dos elementos referenciais no texto. Na segunda coleta, utilizamos o mesmo procedimento e pedimos que produzissem um texto em que focalizassem pessoas relevantes que ali moravam. Para finalizarmos foi realizada a terceira coleta em que procuramos ser mais concisos e, para isso, focamos alunos de 8º e 9º anos do ensino fundamental e 3º ano do ensino médio, que deveriam escrever um texto narrativo ou argumentativo sobre a cultura indígena ou sobre pessoas importantes da comunidade em que vivem, ou seja, do ciclo de amizade e que contribuíam com alguns ensinamentos culturais e de representatividade do povo terena. Durante a busca de dados para análise, foram coletados noventa e sete textos, dentre os quais foram selecionados para este artigo apenas dois, tendo em vista que se trata de um artigo. Para fins de aferição sobre as estratégias de referenciação utilizadas pelos alunos. Demos prioridade àqueles em que havia mais repetições do mesmo item

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lexical ou gramatical, recategorizações do referente, uso de catáfora, expressões nominais definidas e indefinidas. Os textos analisados foram digitados ipsis litteris, tendo como objetividade de ostentar e facilitar a compreensão e, o modo pelo qual foram analisados os elementos referenciais contidos na cadeia textual. Antes de empreendermos nossa análise, é válido ressaltar que a escolha pelas tipologias textuais - descritiva ou narrativa para a escrita dos textos pelos alunos teve como base a elaboração de um planejamento acerca das possíveis ocorrências referenciais nos textos. Para aplicarmos o teste da produção de texto foi discutido com os alunos sobre tipologia textual – conceitos básicos: com título, linguagem utilizada, estruturação do texto, o que permitiu ao discente ter mais tranquilidade e liberdade para produzir para o desenvolvimento da produção textual. - Anáfora pronominal Produzir textos não é uma tarefa fácil. Prova disso são as várias teorias ou teses desenvolvidas e defendidas especialmente a partir da década de 1980, em que os autores procuram orientar sobre o aperfeiçoamento do processo de produção de textos escritos e discutir recursos de que o locutor pode usufruir para alcançar textualidade. Os pronomes, por exemplo, têm sido concebidos como elementos significativos tanto para o estabelecimento ou garantia de coesão quanto para a coerência e a progressividade da cadeia textual. Conforme aponta Roncarati (2010, p. 162-163), ao discorrer sobre a pronominalização, “além de esse recurso estratégico estabelecer uma relação de correferência - que remete ao objeto inicial, quando retomado geralmente forma uma cadeia, que aduz informações específicas sobre a entidade anafórica”. Desta forma entendemos que a retomada referencial por meio de pronomes contribui significativamente para a coesão, a coerência e a progressão textual, que acontecem na maioria das vezes pela formação de cadeias, isto é, um processo em que o autor do texto geralmente recorre ao mesmo elemento linguístico que já foi utilizado na tessitura textual. Esse procedimento geralmente é de grande relevância, pelo fato de exercer função de “elo” entre as partes do texto – coesão textual, mas pode formar uma cadeia cíclica, isto é, o texto apresenta ideias repetidas sem desenvolvimento. Neste caso, torna-se irrelevante, pelo fato de não haver progressão das ideias apresentadas na pelo autor durante sua produção textual.

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Segundo Antunes (2005, p. 89) é importante que antes de usar um pronome ou saber sua classificação gramatical, conheça a função desse elemento na produção do texto. Essa reflexão aplica-se a todos aqueles elementos que são pertinentes ao estabelecimento da coesão e da coerência e que possibilitam ao autor produzir seu texto de forma eficaz e condizente com a situação, a começar com o uso da linguagem adequada. Ao analisarmos a anáfora pronominal por esse viés, abrimos espaço para discussões sobre a ocorrência desse recurso interligado às inferências e não meramente sobre uma visão restrita, que se volta apenas para a função de substituir o referente na cadeia textual. Assim, passamos de uma visão restrita para uma visão reflexiva (ampla), que proporcione novas possibilidades de uso desses recursos linguísticos.

{T 1} O meu amigo [1] que fez doutorado Um dia o meu melhor amigo [2] saiu da aldeia para Estudar para continuar os seus estudos. Ele [3] fez e cursou o segundo grau, ele [4] estudou muito pra chegar aonde ele [5] quer chegar. Ele [6] é muito importante para nós, como para aldeia inteira, um dia ele [7] falou para nos que o sucesso do estudo depende de nóis, do nosso esforço. Ele [8] disse que um dia ele [9] chegaria no sonho dele [10], e o sonho se cumpriu, esforçou muito e ele [11] deixou a família aqui na aldeia para estudar, não só a família, tem os amigos, irmãos, professores, e outros, que desejaram para ele [12]um sucesso na vida. Ele [13] tá lá no Dourado ainda, para continuar os seus estudos, ou melhor, indo para outra fase dos seus estudos, o meu amigo [14] terminou o doutorado e ele [15] saiu muito bem, Esse representa o nosso orgulho lá fora, ele [16] é exemplo, todo mundo tem o seu direito de ser alguém na vida, de ser estudante ou seguir para a profissinalizante. O nome dele [17] é vianei, [18] um dia, eu acredito que eu vou chegar aonde ele [19] chegou. Aluna do 2º ano do ensino médio – Idade 17- Data: maio de 2010 A aluna traz à tona o referente amigo [1], que, por sua vez, é introduzido/precedido pelo pronome possessivo meu. Neste caso, o pronome reforça o sentido de proximidade ou afetividade entre a aluna e a pessoa citada. Na sequência, passa a ser retomado por outros elementos estratégicos, fazendo o texto progredir, como podemos observar no decorrer do texto. No primeiro parágrafo, o referente é retomado por meio da expressão nominal o meu melhor amigo [2], que representa a importância dessa pessoa para a aluna, ocorrendo assim o que é denominado por Mira Mateus et al. (1983, p. 203) de hiponímia –“elemento-classe”, uma vez que a expressão utilizada deixa subentender que há outros amigos, todavia esse é representado como um ser superior no conjunto.

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A retomada pronominal ele [3] exerce função anafórica, o que a torna significativa para o desenvolvimento da cadeia textual. Esse procedimento permite que aconteça o processo de coesão referencial apontado por Fávero (2002, p. 18), permitindo a progressividade do texto e tornando-o compreensível ao interlocutor. No que concerne às retomadas [4], [5], [6], [7], [8], [9], [10], [11], [12], [13] e [16], a aluna usou o processo de repetição pronominal propriamente dita, que, segundo Bastos (2001, p. 99-100), é um recurso que “tem sua função tanto no texto oral quanto no texto escrito, pois não se repete por repetir”. Isso demonstra que o uso desse recurso é essencial na produção de texto, porque além de garantir que o leitor não perca a referência, contribui para a conectividade das partes, havendo assim o processo de coesão textual. A esse respeito, Antunes (2005, p. 71) também argumenta que “a repetição é um recurso de grande funcionalidade, pois é significativo no que concerne ao desempenho de diferentes funções, de modo que todas elas, de alguma forma, sejam coesivas”. Assim, pode se compreender que os pronomes utilizados pela aluna não são meramente elementos gramaticais com a função apenas repetitiva, mas sobretudo, de representação. Nesse contexto, podemos argumentar a partir do ponto de vista de Roncarati (2010, p. 83), para quem, neste caso, há uma relação de “identidade de referência”, uma vez que a expressão meu melhor amigo está em correferência com as sucessivas retomadas pronominais que estão explícitas no texto, à medida que formam uma cadeia, o que ocorre de forma “exaustiva, frequente em narrativas curtas”. Nesse tipo de ocorrência, defendemos que a repetição deve ser entendida como um recurso fundamental para que o locutor possa manter a focalização. No item [14], a aluna retoma o referente ao utilizar-se da expressão nominal definida o meu amigo, cuja função exercida no texto é manter o referente em saliência, ou seja, em discussão. Esse tipo de expressão foi analisado por Lima (2004, p.170) em sua tese de doutorado, em que defende que as expressões definidas contribuem para esclarecimento do referente, levando o leitor a criar expectativa de identificação de forma mais precisa. Veja o exemplo retirado da tese: Me dê um balde. O balde pequeno. Neste caso, deixa óbvio ao leitor de que se trata, pois o locutor mostra exatamente o que quer, a partir de indicações sobre as características do objeto, enquanto a questão do indefinido não traz essa clareza ao interlocutor. Ainda se pode refletir sobre a expressão nominal o meu amigo e a expressão que recategoriza o referente: o meu melhor amigo. Nesta última ocorrência, trata-se de

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uma relação parte-todo, a que Adam (2008, p. 136) denomina “sinédoque”. Além disso, esse recurso permite ao sujeito produto do texto a utilizar-se de outros procedimentos linguísticos para discorrer a respeito do referente, de modo que traga ao texto informações novas e que deixe explícito para o interlocutor compreender a mensagem inserida no texto. Conforme Marcuschi (2008, p. 109), as repetições pronominais já mencionadas resultam também em “coesão referencial”, que, por sua vez, inserem-se em “formas remissivas não referenciais”, pelo fato de não terem “autonomia referencial”, pois o autor cita o referente de forma concreta. Esse tipo de ocorrência envolve a inserção de “artigos e pronomes”, como podemos verificar nas ocorrências pronominais do texto em questão. A esse respeito, Araújo (2000, p. 87) menciona formas “remissivas nãoreferenciais” podem ser classificadas em: presas – que são aquelas que têm a função de artigos, isto é, aquelas que antecedem o nome e seus modificadores: “Corresponde à classe dos artigos e pronomes; e livres – “são as que desempenham propriamente a função pronominal, abrangendo os pronomes de terceira pessoa em geral e os advérbios pronominais”. Logo, “as formas remissivas referenciais desempenham duas funções na articulação do texto”. (ARAÚJO, 2000, p. 87). No primeiro momento, exercem a função de relacionar os elementos que estão dispersos na superfície textual e, num segundo momento, “as formas remissivas alimentam o texto”, pelo fato de relacionarem-se às indicações ao referente propriamente dito. Esse processo forma o que é denominado de coesão referencial, uma vez que o referente é o elemento fundamental para que se possa desenvolver a cadeia textual. No que concerne à retomada pronominal de terceira pessoa em [15], esta denomina-se como anáfora pronominal, que, segundo Koch (2002, p. 86), é típica do texto falado. Embora esse tipo de ocorrência seja predominante em textos falados, não se pode negar que tem sido muito frequente na escrita. Cremos que esse fato esteja relacionado aos fatores culturais da comunidade, que tem estilo e características próprias, vinculadas ao processo de formação cultural e ideológica de seu povo. Por outro lado, a retomada [17] se dá por meio do pronome possessivo “dele”, exercendo função diferente de [10], pois neste último caso, a intenção parece ser explicitar o referente, que até então era representado pela expressão nominal “meu amigo”. Por outro âmbito, a permuta de pronome possibilitou ao locutor maior

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flexibilidade e contribuiu para o desenvolvimento do texto. Além disso, como defende Neves (2010, p.75), a referenciação “envolve interação, e, consequentemente, intenção”. E é exatamente isso que ocorre no texto: a intenção da aluna, a princípio parece que não era revelar o referente no início de sua produção textual, mas ampliar a expectativa do interlocutor em saber de quem realmente se tratava. No último parágrafo do texto, em [18], a aluna apresenta o verdadeiro referente ao citar Vianei, em que ocorre uma catáfora, que, segundo Koch e Elias (2010, p.127), corresponde a um tipo de procedimento que ocorre toda vez em que o locutor usa a “remissão para frente”, isto é, não apresenta no primeiro momento o referente, deixando para revelá-lo na parte final do texto. Na ocorrência [19], há uma anáfora pronominal no texto em análise. No tocante ao nível de informação apresentada, o texto apresenta poucos critérios de informatividade, por retomar constantemente o referente por meio do uso de pronomes em lugar de outros processos referenciais, produzindo um processo cíclico, ou seja, sempre se volta ao mesmo tema/referente, sem que o texto progrida significativamente. - Expressões nominais e pronominalização O uso de certos elementos referenciais tem sido discutido no âmbito da Linguística Textual como componentes fundamentais na produção de texto.

Tais

recursos, quando utilizados no processo de tessitura textual de forma pertinente à situação, contribuem significativamente para que o locutor possa transmitir ao seu leitor informações de maneira precisa e convincente. As expressões nominais, por exemplo, são recursos referenciais que desempenham funções relevantes na cadeia textual. Mas, para que esses elementos façam sentido, é necessário que o locutor os utilize em pontos estratégicos do texto. Assim também os pronomes, denominados como elementos anafóricos, quando retomam o referente - além de exercerem a função de catáfora toda vez que o locutor faz o uso do pronome e posteriormente traz à tona o referente propriamente dito. A partir desses recursos linguísticos, analisamos como tais elementos foram utilizados na cadeia textual pelos discentes que fizeram parte desta pesquisa.

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O Lider [1] o lider da aldeia [2] lidera, muito bem ele [3] busca ajudar todos da comunidade Ele [4] busca ajudar a aqueles que estão Precisando de ajuda. Ele [5] core atrás do que, estamos precisando. busca entender[ ø ] os Problemas e ajudar ao nosso povo. A Comunidade também ajuda o lider da aldeia [6] o Povo escolheu um lider, [7] que nós entende que nós compreende e que nós ajude a tudo o que Precisamos é isso é muito bom. Ter uma pesso que lidera [8] com, muita vontade e corre atrás do que queremos. Escola Municipal Coronel Nicolau Horta Barbosa – Aluna do 9º Ano – Idade: 14 Anos – Data: 02/09/2010 {T 2 }

O título do texto é representado pelo referente líder [1], que posteriormente é retomado pela expressão nominal definida o líder da aldeia [2], que, além da função anafórica em relação ao referente, recategoriza-o. Esse tipo de estratégia é significativa para a progressividade do texto, além de desempenhar o processo de coesão textual. Marcuschi e Koch (2002, p. 40), ao discutirem sobre descrições nominais, afirmam que “caracterizam-se por operar uma seleção, entre as diversas formas de propriedades de um referente – reais (contextuais)” que são emitidas pelo produtor do texto. Por isso, entendemos que a tomada de decisão para o uso desse recurso parte do locutor, que visa, sobretudo, à compreensão pelo ouvinte. Outra situação apresentada no texto em análise diz respeito à substituição por anáforas pronominais, em que se repete o mesmo item linguístico: o pronome pessoal de terceira pessoa ele, em [3], [4] e [5], e por elipse (em “[ø] busca entender”). Por meio desses recursos, a autora dá sequência à cadeia textual e, ao mesmo tempo, garante a coesão. Por isso a pronominalização tem grande relevância na produção de texto, não apenas por exercer a função coesiva, mas também por desempenhar um grande papel sobre a coerência. Por outro lado possibilita ao locutor retomar o referente, o que contribui para a progressividade do texto – o que, aliás, se aplica à maioria das ocorrências de repetição. No caso, os elementos em análise estão em correferência, por haver dependência semântica em relação aos termos antecedentes. Segundo Adam (2008), esse tipo de ocorrência se relaciona com anáfora fiel, uma vez que ela não indica nenhuma propriedade nova, ou seja, neste tipo de estratégia o referente é retomado a partir de correferência. É relevante ressaltar que o uso desse recurso contribui para que o locutor desenvolva sua produção, todavia esse tipo de retomada é concebido como repetição lexical, procedimento esse apontado por Antunes

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(2005, p.70-71) como fator significativo na produção de texto, uma vez que “constitui um recurso interativo, requisito próprio da continuidade exigida pela coerência”. A partir dos exemplos citados, espera-se que seja possível a compreensão, por parte do interlocutor, a respeito da repetição que, para alguns autores, é recurso necessário na produção de texto, em especial no texto falado (BASTOS, 2001, p. 99105); para outros, é recurso essencial, tanto no texto falado quanto no escrito (ANTUNES, 2005) e, para outros, esse recurso apresenta a falta de criatividade, no que concerne a outros procedimentos linguísticos, o que poderia tornar o texto mais claro e interessante para o interlocutor. Para nós, a repetição é positiva se for usada em uma proporção que faça sentido e atribua continuidade ao desenvolvimento do texto. Nos textos escritos, esse recurso é de pouca funcionalidade e indica a transferência de hábitos de fala para a produção escrita, cujas normas são distintas. Nossa reflexão aponta para a defesa do uso de anáforas lexicais e expressões nominais, entre outros procedimentos, em detrimento do excesso de pronominalizações, a não ser que estas sejam relevantes para que haja continuidade, de modo que estejam relacionados a coesão textual, pois ao contrário é preferível utilizar-se de outros recursos, como enfatiza Bastos (2001, p.99-105) ao defender que o processo de repetição é pertinente no texto falado, mas na escrita é preciso mais atenção sobre esse tipo de recurso, pelo fato justamente de sua limitação no que concerne a informações diversificadas. Para contextualizarmos a questão que estamos defendendo e por entendermos ser pertinente à produção de texto, retornamos às várias retomadas pronominais no texto {T2}. Segundo Costa Val (1994, p. 8) ao analisar entre outros recursos a utilização de pronomes que ocorrem entre enunciados, tais elementos não são suficientes para permitir que haja textualidade e tampouco sequência significativa, pois para a autora, “o nexo entre frases se constrói não no nível gramatical, mas no nível semântico”. No texto {T2}, a retomada [6] relaciona-se a [2], o que merece algumas reflexões pelo fato de a aluna usar a mesma expressão; porém, em [2], em face do cotexto (discurso “impessoal”, marcado pela 3ª pessoa gramatical), o referenciador artigo definido (NEVES, 2010, p. 86) parece remeter a um referente genérico ou a um hiperônimo (todo e qualquer líder de aldeia), ao passo que em [6], cotexto ancorado na 1ª pessoa do plural, parece tratar-se de um líder específico e conhecido pela autora, de modo que o artigo definido assume outra função (quase) hiponímica, diferente da

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anterior. Assim, definitude e referenciação são fatores que se complementam: a primeira é uma “parte-todo”, enquanto a segunda pode ser considerada como “todo-parte”. Por outro âmbito, há uma hiperonímia que acontece de forma implícita, pelo fato de se abordar uma comunidade – todo-parte em que há um líder – pessoa que representa a comunidade. Nesse segundo momento ocorre a hiponímia. Para contextualizar nossa análise, apontamos que tal ocorrência está em [7], por meio da expressão nominal um líder, que, a princípio, generaliza, porém, ao deixar-se qualificar pelos atributos que seguem, materializados em orações adjetivas restritivas, acaba por ter seu sentido particularizado: um líder específico, que se destaca num universo de líderes. Ainda em {T2}, o item [8], em uma leitura menos atenta, parece estar em correferência com [7]; todavia, se pensarmos no processo de produção textual e nas “regras” de ordenação ou organização de textos descritivos ou mesmo no modo como o texto da aluna progride, é mais provável que se relacione com [1], por recategorização. Em [1], o artigo definido generaliza, criando a expectativa de que a autora vai descrever líderes em geral (todo); em [2], há uma particularização, ou melhor, um recorte no todo, e “o líder da aldeia”, embora ainda genérico, delimita o universo maior “prometido” (parte de um todo) no título; em [8], ao determinante indefinido, de efeito generalizante, segue a predicação do referente por meio de qualificadores atribuídos pela autora a um referente específico, conhecido. A expressão nominal uma pessoa [que lidera] não só retoma líder [1] e o líder da aldeia [2], mas também um líder [7], além de, no contexto global, recategorizar esses referentes como um ser “único” e específico, permitindo a inferência de que se trata do líder da aldeia a que pertence a estudante-autora. Acrescentamos que o processo de ativação em [8] acontece de forma ancorada, pois há associação com um líder [7], termo expresso anteriormente. Portanto, esse tipo de recurso se dá com base em “algum tipo de associação com elementos que já foram expressos no cotexto e no contexto sociocognitivo dos interlocutores” (KOCH; ELIAS, 2009, p. 135). Por isso, acreditamos que as expressões nominais, de um modo geral, são recursos de grande relevância para que o locutor possa trazer informações novas, e, além disso, realizar várias predicações sobre o referente, construindo, assim, textos mais informativos. Neste caso, as expressões nominas utilizadas no texto em discussão foram significativas e contribuíram de forma relevante para o desenvolvimento do processo de tessitura textual, deixando-o de modo coeso.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao iniciar nosso trabalho de pesquisa, constatamos a flexibilidade da língua/linguagem no contexto social da comunidade terena e a identificação daqueles sujeitos como cidadãos em busca de espaço na comunidade nacional. Destacamos que os alunos usufruíram, em suas produções escritas, de recursos como os pronomes pessoais, em especial de terceira pessoa, na função de sujeito – denominados pelas gramáticas normativas de “pronomes pessoais do caso reto.” Aqui classificados como pronominalização anafórica. Além desses recursos, o que também foi bastante recorrente foi o uso de expressões nominais em forma de retomadas ao referente, muitas vezes pelo processo de recategorização, que, além de garantir a referência, são decisivos para a progressividade textual. Quanto ao aspecto textual, concluímos que a ocorrência do pronome após o sujeito nos textos dos alunos terena escritos em língua portuguesa, pode ser explicado de duas maneiras. Primeiramente, tal uso deve-se à influência de L1, em que o pronome se pospõe ao sujeito como forma de enfatizá-lo; segundo, porque em L2 seu uso seria justificado com uma forma de referenciar, isto é, anaforizar o sujeito. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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UMA BREVE REFLEXÃO DA AQUISIÇÃO DA LÍNGUA ANCESTRAL COMO SEGUNDA LÍNGUA: ENTRE AS FALAS EM PORTUGUÊS E GUARANI1 Patrícia Regina Vannetti Veiga2

INTRODUÇÃO Áurea3 nasceu na aldeia Guarani do Jaraguá, “Jaraguá-itu”, zona oeste de São Paulo. Nesta comunidade, alguns são falantes de guarani, principalmente os mais velhos, mas a língua não é mais utilizada no dia a dia. A mãe dela nasceu e cresceu nesta aldeia, falando apenas o português e algumas palavras do léxico guarani, como juruá4 (literalmente “não indígena” ou “branco”), pacowa (literalmente “banana”, mas que é utilizada quando estamos cansados ou com o ‘saco cheio’) ou xeramõi (literalmente “meu avô”, em geral, designa pessoas mais velhas). Já o pai dela é nascido e crescido em uma aldeia Guarani-mbyá do litoral paulista e falava apenas a língua guarani. Quando os dois se casaram, o marido quis aprender o português (língua majoritária) e ela o guarani (língua ancestral), então, um começou a ensinar a língua para o outro. Neste processo, o marido teve mais êxito, logo aprendeu o português, que passou a ser usado por toda a família, uma vez que viviam no Jaguará, onde a utilização desta língua é predominante. A mãe tentava incentivar o pai a falar com os filhos em guarani para que eles aprendessem esta língua, mas o pai, pela ausência de um contexto que incentivasse o uso do guarani, utilizava o português, com algumas palavras ou frases esparsas na sua língua materna. Há cinco meses, a mãe resolveu tomar uma atitude decisiva; mudar com a família para a aldeia “Tenondé Porã” no bairro de Parelheiros em São Paulo. Mesmo dentro da cidade, esta comunidade fica mais afastada e tem um espaço geográfico mais amplo. Nela, todos falam o guarani, alguns mais velhos, inclusive, falam pouco o português. O objetivo da mãe foi claro: “Quero que meus filhos aprendam a falar guarani”. 1

Este artigo é o resultado final da disciplina de “Aquisição da Linguagem” cursada no programa de pós graduação em Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, no ano de 2013. 2 Pedagoga e antropóloga, mestranda em Linguística na Unicamp. Pesquisa com apoio da FAPESP. Email para contato: [email protected]. 3 Agradeço Áurea e sua mãe, Poty, por me ajudarem nessa pesquisa e pela amizade. 4 Neste artigo, as palavras em guarani foram escritas a partir da ortografia utilizada pelos educadores Mbyá.

Este trabalho será uma análise do corpus recolhido de duas maneiras; através da observação durante uma tarde em que estive com a mãe e com a criança na casa delas e por meio dos relatos da mãe, que narrou para mim algumas situações de diálogo com a filha. Portanto, refletiremos, a partir das falas dessa criança, sobre as características do processo de aquisição da segunda língua, em sua fase inicial ou parcial, tendo como ponto fundamental ser a língua da sua nação. OS SIGNIFICADOS DA LÍNGUA PARA OS SEUS FALANTES: A MEMÓRIA GUARANI O guarani é uma língua minoritária em um país que impôs o monolinguismo do português. Algumas pesquisas indicam que, nos dias de hoje, existem no Brasil, aproximadamente, 180 línguas indígenas, e apontam que, antes da chegada dos portugueses, existiam mais de 1.000 línguas indígenas. A partir deste dado percebemos o quanto essas línguas foram silenciadas ao longo dos séculos, por meio da interferência missionária, da colonização e dos inúmeros fatores históricos que as inibiram de serem faladas. Entre os Guarani-Mbyá da aldeia do Jaraguá, o português foi adentrando no contexto indígena até levar a supressão da língua local, através de situações de contato crescentes, como a miscigenação, o contato ou a necessidade de se falar o português como meio de aceitação na sociedade do entorno. É possível relacionar esse processo ao que Payer (2006, p. 106) descreve, referindo-se aos imigrantes italianos, mas que se encaixa neste caso: “Silenciamento obrigado da outra língua, sem que este processo seja, entretanto, sempre explícito”. As relações entre falar o português ou o guarani apresentam diferentes sentimentos de não pertencimento linguístico. Os indígenas que não falam o português se sentem excluídos ou não integrados ao lugar em que vivem (nação brasileira), por outro lado, existe um sentimento de não pertencimento ao grupo indígena guarani por não falar a sua língua (a da nação guarani). A mãe de Áurea, Poty, fala sobre o significado cultural desta língua ancestral para os Guarani e sobre o seu sentimento por não ser falante: “Quando você só fala português o seu divino está em outro local que não é o guarani5. Significa que você não pertence a esse grupo, que você não é pertencente do povo guarani. E isso acarreta a você muita discriminação, que eu senti 5

Segundo Poty, na cultura guarani a língua e o som que ela emite, através da fala, representam uma ligação com o divino, por isso, as rezas são sempre cantadas. A palavra é o próprio ser, a vida.

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muito porque, como eu não falo guarani, sempre, desde criança até agora adulta, eu tenho casos de preconceito, de discriminação por conta disso. Por isso que eu queria muito que meus filhos aprendessem o guarani de pequeno”. Podemos concluir que a língua guarani, para os guaranis, garante pertencimento de um sujeito a uma coletividade guarani. Poty confirmou essa análise quando nos deu o exemplo de que se uma pessoa chega à aldeia e fala o guarani sem sotaque estrangeiro, esta pessoa é considerada guarani, mesmo não sendo indígena, portanto, é tratado como parente. O inverso também ocorre, como no caso dela, quando percebem que ela não fala guarani, chamam-na de juruá (“não indígena”), mesmo conhecendo a sua história6. Poty, mesmo não falando o guarani, mostrou o quanto a língua ancestral está presente no universo indígena e mantém uma relação de familiaridade (de evidência)7 com os integrantes desta comunidade ou nação. Por alguns meses, foi oferecido um curso da língua guarani por um paraguaio na aldeia. Durante o curso, ela percebia que a língua ensinada por ele era diferente da falada por seus ancestrais, ela comparava o léxico e ressaltava as diferentes formas de estruturação gramatical entre as línguas. Para ela, a língua se tornou uma memória, quase inconsciente, se materializando nesta situação motivadora; o momento em que ela teve contato com uma “língua outra”. Os traços da língua guarani foram representados por sua memória social, que reconheceu as particularidades linguístico-discursivas do guarani falado pelo seu grupo, mesmo não sabendo falar esta língua. Podemos relacionar este caso com o de Caracous, citado por Pereira Castro (2006) no texto Sobre o (im) possível esquecimento da língua materna, um jovem vietnamita que falou a sua língua de infância com a sua avó doente, mesmo julgando têla esquecido. O vietnamita era uma “língua do esquecimento”, já que ele sofria preconceito na França quando a usava, portanto, era uma língua estranha, mas, ao mesmo tempo, familiar. Podemos comparar com o ocorrido à Poty, o guarani foi deixando de ser falado na sua aldeia natal em virtude do preconceito da sociedade do entorno, em geral, a brasileira, para com a língua e com o próprio indígena. Por outro lado, esta ligação subsistente da língua enquanto expressão do divino e como identidade do grupo, permitiu que ela guardasse uma memória da língua, mesmo ouvindo-a apenas

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A sua avó materna era cacique da aldeia Jaraguá-itu. O seu avô era indígena, mas foi criado por alemães e só voltou a morar em aldeia depois dos 50 anos de idade. Já por parte de pai, os avós eram miscigenados. 7 PAYER, Maria Onice, 2006, p. 104.

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em cantos ou falas esparsas, esta língua esteve permanentemente em seu universo sociocultural. A importância da identidade linguística na aquisição das línguas foi tratada por diversos autores, Larsen-Freeman e Long (1994) adotam o termo motivación integradora (“motivação integradora”): “Se dice que um aprendiz está motivado integradoramente cuando desea identificarse com outro grupo etnolinguistico” (LARSEN-FREEMAN Diane; LONG Michael, 1994, p. 158). No caso tratado nesse artigo, o grupo etnolinguístico é o próprio grupo cultural Guarani-mbyá e, falar a língua deste grupo é uma motivação de integração e identidade com o mesmo. OS ENUNCIADOS NA AQUISIÇÃO DA LÍNGUA MATERNA Áurea tem quatro anos e apresenta um vasto vocabulário, organizações sintáticas e semânticas da sua primeira língua, o português. Podemos considera-lo como a língua materna de Áurea, já que foi essa a língua com a qual ela cresceu, ouvindo-a, não apenas em sua casa, como também, na sua comunidade. Portanto, Áurea se constituiu enquanto sujeito falante através do português. Para avaliarmos com maior clareza a posição que Áurea ocupa enquanto falante do português no uso cognitivo da linguagem, traremos um dado coletado durante a entrevista em sua casa, a respeito dos dêiticos na construção do enunciado na fala infantil, na função de organizadores da temporalidade na criança. Eu estava conversando com a mãe dela na sala da casa delas, quando, no meio da conversa, ela interveio, o que resultou neste diálogo: C8: Vocês qué o suco que eu fez... amanhã? A9: Amanhã? C: Hahã! Ainda é de noite! Eu fez de noite ainda. A: Ah é? C: É... tá na geladela! (eu aceitei o suco e ela me trouxe um copo) Na sua fala houve uma confusão entre os termos ontem, hoje e amanhã, marcadores da temporalidade no momento da enunciação. Áurea hesitou por um instante até escolher o termo amanhã, referindo-se a ontem. Diante da complexidade do 8 9

Criança. Adulto.

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uso dos dêiticos nas construções da linguagem, percebemos que ela conseguiu diferenciar o ontem, sabendo que não era hoje, mas tomando-o como amanhã. A fala do adulto colocou em dúvida o termo utilizado através da pergunta de estranhamento (“Amanhã?”). Na resposta, a criança se inscreveu no presente inerente à enunciação, utilizando o tempo verbal no presente na tentativa de corrigir o seu equivoco (“Ainda é de noite!”), mas como era de dia, logo ela complementou, retornando ao verbo no passado (“Eu fez de noite ainda!”). Portanto, os usos dos dêiticos evidenciam diferentes posições subjetivas e discursivas da criança na sua relação com a língua enquanto possibilidade, representando “um saber que se manifesta na fala da criança pela constante relação entre os termos ontem, hoje e amanhã (...) mas a cada ato enunciativo eles são engendrados de novo e definidos a partir do tempo da enunciação” (PEREIRA Castro, 2011, p. 3). A AQUISIÇÃO DA SEGUNDA LÍNGUA: ENTRE L1 E L2 A língua guarani é a língua ancestral da etnia à qual Áurea pertence e, como vimos anteriormente, existe um significado simbólico a ela atribuído, de pertencimento a um grupo social. Porém, esta não deixa de ser uma língua estrangeira para a menina, talvez não tão estranha, já que é uma língua da sua nação, mas em relação à aquisição desta língua, esta é primeira vez que a menina experiencia o seu aprendizado e uso no cotidiano. Enquanto a língua materna é uma experiência inaugural, na língua estrangeira, a relação se dá pelo conhecimento (PEREIRA Castro, 2011). Podemos dizer que Áurea está neste processo de conhecer a língua guarani; ela fala poucas palavras, encontra dificuldades em compreendê-las e, como veremos, mistura formas de expressão. Embora esteja morando em uma aldeia onde predomina o uso do guarani, ela ainda não vai à escola, em casa utiliza o português e, brincando com as outras crianças da aldeia (a maioria é bilíngue), Áurea não entende quando falam em guarani e insiste para traduzirem, o resultado é que, quando ela está na brincadeira, as crianças acabam utilizando o português. Alison J. Elliot, em seu livro A linguagem da criança (p. 169), destaca alguns dos principais tipos de bilinguismo que aqui tentaremos incluir a este caso. O autor chama de bilinguismo aditivo quando o falante aprende a segunda língua sem que a

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primeira perca a sua importância, por enquanto, este é o caso de Áurea; ela continua falando prioritariamente o português. Outro tipo de bilinguismo definido pelo autor é o bilinguismo subtrativo, quando a segunda língua é a predominante na comunidade do falante. Este também é o caso de Áurea, porém, ela consegue contornar esta situação pedindo a tradução, já que a maioria fala também o português, em virtude dos contatos com o entorno. A língua guarani está se tornando cada vez mais presente no universo linguístico de Áurea, nas relações entre a sua língua materna e a recente situação de bilinguismo a qual ela está exposta. Podemos identificar, no exemplo a seguir, o fenômeno de transferência entre línguas, comum no aprendizado da L2, neste caminho de conhecer uma língua outra, a partir da língua que se sabe. Apresentaremos uma situação que foi narrada por sua mãe em que fica explícita uma mudança na atividade gramatical da criança, provavelmente, decorrente do contato com a língua guarani. Áurea estava no banheiro e não tinha papel higiênico. Ao invés de pedir o papel da maneira como ela comumente fazia: - Manhê, não tem papel higiênico! Ela gritou de um jeito diferente para a sua mãe, três meses depois de se mudar para a nova aldeia: - Manhê, papel higiênico nenhum! Podemos relacionar esta fala com a transferência entre línguas em dois aspectos: o primeiro é o aspecto fonológico, referente à prosódia do guarani. Como Áurea vem escutando ao seu redor esta língua, adaptou a sua fala em português ao som que ouve do guarani, principalmente no que se refere à melodia da frase e das palavras, que no guarani são oxítonas e tem a nasalidade como traço importante da língua. Segundo Scarpa (1991) o processamento sonoro é a base para a organização da fala, o reconhecimento do elemento prosódico, da entonação, evidencia uma espécie de intuição linguística e molda a materialidade da língua em aquisição para o aprendiz. O outro se trata da mudança na sua atividade gramatical em relação à ordem das palavras, gerando uma oposição ao que Chomsky define como core grammar entre L1 e L2. Na língua guarani o genitivo possessivo se pospõe à coisa possuída, ou seja, o possuidor se antepõe ao possuído, diferente do português que antecede a preposição de, como também no caso do adjetivo, no Guarani, ele está diretamente ligado ao

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substantivo, sem utilização do verbo de ligação ser10. Na construção de Áurea, ela fala: “papel higiênico nenhum”, no português seria mais comum: “não tem nenhum papel higiênico”, ou seja, ela elimina a relação de posse dada pelo verbo ter e pospõe a qualificação do possuído, como também, o adjetivo “nenhum” em relação ao substantivo “papel higiênico” está diretamente relacionado. Esta mudança pode ter sido influenciada pela fala em português das outras crianças, que acessam a gramática universal (GU) do guarani, língua materna delas, usando esta estrutura linguística como base gramatical na sua linguagem, mesmo quando falam em português, sua L2. Neste caso, Aurea teria, a partir do contato com as outras crianças, repetido o modo como elas estruturam as frases em português, como falantes do guarani, adaptando-a a outra situação. - O papel do outro na aquisição da linguagem A mãe da Aurea está empenhada para que a filha aprenda a língua ancestral que ela não aprendeu, portanto, a relação da menina com a língua nesta etapa inicial de aquisição da L2 está relacionada a repetições ou imbricações do turno do adulto na composição do seu enunciado (PEREIRA Castro, 2009), como na situação a seguir: A criança quer o bolo que a mãe acabou de preparar, então, a mãe coloca uma condição: Mãe: Eu só vou te dar bolo se você falar em guarani: “Xevy bolo”!11 (xevy: literalmente “para mim”; pode ser também traduzido como “eu quero” ou “me dá”) C: Tá bom. Xevy bolo! Xevy bolo! (A mãe dá o bolo para ela) Áurea aprendeu a frase e voltou a utilizá-la em situações semelhantes, quando queria comer alguma outra coisa (sorvete, bala, entre outros), passou a utilizar o guarani para obter êxito. Podemos analisar este fato à luz de Cabral: Praticamente, elas aplicam este princípio (entendimento do simbolismo da fala) quando estão aptas a atribuir o mesmo significado a enunciados recorrentes no mesmo contexto de uso, o que se torna mais evidente quando começam a produzir os mesmos enunciados com o mesmo significado no mesmo contexto de uso... recorrendo no mesmo contexto de uso, provocam respostas semelhantes. (2009, p. 129) 10

Como podemos ver nos exemplos, respectivamente: Aurea yaguá (o cão de Áurea) e iporã nderoga (sua linda casa). 11 A palavra “bolo” em guarani é “mbojape”, mas a mãe não empregou este termo.

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A autora refere-se à construção de sentidos na fala infantil, Áurea já desenvolve o simbolismo da fala no português, porém, é interessante analisarmos que ela relacionou este enunciado da fala em guarani a outros contextos semelhantes de uso, se tornando um enunciado independente do estímulo direto do outro, no caso dela, da mãe. Esta expressão ganhou, portanto, um uso autônomo, transloucado para os momentos em que o mesmo contexto de uso se apresentava, seja motivado pelo desejo de agradar a mãe ou pelo desejo da comida. Embora, na sua fase inicial, tenha sido uma incorporação da fala do adulto, houve uma ressignificação do enunciado, possibilitada pela rede de memória desenvolvida por Áurea da língua guarani. Sobre o papel da sua enquanto o outro-adulto no processo de aquisição da L2, analisaremos este outro dado, referente à interação mãe-criança na relação sujeitolíngua (PEREIRA Castro, 1998). Conversava eu e a sua mãe, quando Áurea interferiu, sendo incisiva: C: Mãe! Mãe! Mãe em guarani? Mãe em guarani? (abraçando-a pelas pernas). Mãe: Mãe em guarani? É Xexy! (literalmente “minha mãe”) C: Xexy! Xexy! Tira um monte de árvore? (ela estava querendo saber por que o pai dela cortava árvores do quintal). Mãe: Tira? Árvore? Eu nem consigo entender o que você fala em português... Neste momento, falávamos das dificuldades que Áurea tem em aprender a língua guarani. Ela quis mostrar à mãe que estava interessada na língua e a melhor maneira para fazer isso foi chamando a própria mãe utilizando o guarani. Esta foi uma tentativa da menina em incluir o vocabulário guarani nos seus enunciados com a mãe, neste caso, na fala direta com ela, na própria nomeação do discurso. Áurea conseguiu relacionar as ações anteriores da sua mãe, de repetir as palavras em guarani para a filha ou de criar significantes para esta língua (como no caso do bolo), com a situação presente. A pergunta que ela fez não fazia sentido com o assunto, pelo menos aos olhos adultos. Porém, foi um momento em que Áurea teve consciência do que falávamos e quis mostrar à sua mãe o contrário, como se fosse uma resposta indireta à afirmação que a mãe fazia a respeito dela não conseguir aprender a língua guarani. Neste caso, houve uma mudança na fala da criança ou a “adoção” de uma diferença linguística (LEMOS, 1998, p.27), quando ela deixou de falar em português para se expressar em guarani, ela poderia ter chamado à mãe de “mãe”, mas preferiu

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usar “xexy”, mudando a sua fala. Podemos supor que esta mudança ocorreu a partir da relação de alteridade estabelecida entre a criança e a mãe naquele momento de diálogo. Áurea se percebeu no discurso da mãe, identificou-se com o mesmo, caso contrário, não teria tentado remediar a situação (mostrando à sua mãe que conseguia falar em guarani), através da pergunta sobre o vocabulário em questão e da sua utilização naquele enunciado, criando um assemelhamento da sua fala à expectativa da mãe. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da análise sobre as falas de Áurea, podemos concluir que ela está no processo de construção dos significados da língua guarani dentro do seu contexto linguístico, incorporando, aos poucos, conceitos e vocabulários desta nova língua (L2) nos seus discursos. Em um primeiro momento, os usos são através da imitação ou repetição das falas em guarani, mas logo ganham novos usos na construção dos seus enunciados, como no caso do “xevy” ou do “xexy”. Neles, existiu uma captura da criança pela língua numa cadeia de significantes, transformando-a em sujeito da linguagem, mesmo com a anterior influência do ‘outro’ na sua constituição. Quando Áurea construiu a sua frase em relação ao papel higiênico utilizando as características do guarani, ela percebeu a língua guarani como um sistema fonológico distinto, tentando imitar este “som estrangeiro” (HELLER-ROAZEN, 2010, p.12) através da sua reconstituição em um enunciado próprio. Até a mãe da menina estranhou esta formulação quando ouviu e logo associou com a influência da fala em guarani. Portanto, supomos que “Os aprendizes de L2 seriam sensíveis a certos princípios que definem os ‘traços centrais’ de L2” (PEREIRA Castro, 2006, p.136). Estes ‘traços centrais’ seriam, neste caso, a prosódia e a forma básica de construção de uma oração. Pudemos também perceber o quanto o desenvolvimento linguístico está relacionado ao processo de aprendizagem, como no caso do uso dos dêiticos; para a criança, o tempo real não tem divisões, ele é contínuo, faz parte do processo de aprendizagem sobre o mundo adaptar-se a esta lógica da racionalidade temporal, que pode ser desenvolvida através da sua compreensão na linguagem. No caso do bolo, a criança ampliou a utilização do mesmo enunciado a contextos semelhantes daquele utilizado na primeira vez, organizando cognitivamente a sua interação com a ordem de acontecimentos no mundo.

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O caso de Áurea evidencia a constante relação entre a linguagem e a experiência na aquisição da linguagem, seja pelas experiências dela com a mãe, na escolha e formação de enunciados a partir das suas vivências anteriores ou através das suas relações simbólicas com esta língua, que cerca o universo cultural e identitário de Áurea, fazendo dela uma menina indígena Guarani-Mbyá. Nesta perspectiva, podemos concluir que o processo de aquisição da segunda língua, principalmente, neste caso de intersecções entre a língua materna e a língua ‘outra’, acontece tanto por meio de interações espontâneas com o ambiente sociocultural, quanto por meio dos estímulos e motivações do outro. Segundo Klein (1986) a principal distinção a ser feita na aquisição da segunda língua é a partir do modo de aprendizado, que pode ser tutored (“guiado”) ou untutored (“não guiado”, comumente chamado de “espontâneo”). O primeiro caso refere-se ao aprendizado da L2 por meio de um aparato metodológico de ensino formal das estruturas da língua, já o segundo, refere-se ao aprendizado por meio das relações sociais e interativas do aprendiz cotidianamente na sociedade da língua alvo, sem uma intervenção sistemática. Como vimos ao longo do artigo, o caso de Áurea se encaixa melhor na segunda forma de aprendizado, o espontâneo, uma vez que ela vive em um contexto de uso da língua guarani e se relaciona cotidianamente com falantes desta língua. Porém, existe também a influencia da mãe no seu aprendizado, neste sentido, o mesmo autor ressalta: “(...) some kind of ‘guidance’ will obviously occur even in the most spontaneous language learning” (KLEIN, Wolfgang, 1986, p. 18). Esse tipo de ‘orientação’, no caso, pela mãe de Áurea, está previsto em ambientes de aprendizagens espontâneas. Ela interage com a filha por meio de negociações presentes em suas relações familiares cotidianas, em uma atitude de incentivá-la no aprendizado e no uso da L2, o guarani. Nesse artigo, foram apontadas breves reflexões das formas como o conhecimento linguístico da segunda língua vai sendo organizado e aprendido pelo falante em fase de aquisição. Esse é um complexo caminho de experiência e conhecimento da nova língua, que transcorre o ouvir, as construções dos enunciados e as diferentes formas de uso das línguas, em uma constante inter-relação do falante com o outro e do falante com o grupo ou nação a qual ele pertence.

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