Portuzelo: as arquitecturas da lavoura (e a sua preservação) numa aldeia da Ribeira Lima

June 13, 2017 | Autor: Fabiola Pires | Categoria: Rural History, Water resources, Water History, Rural Architecture
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PORTUZELO: AS ARQUITETURAS DA LAVOURA (E A SUA PRESERVAÇÃO) NUMA ALDEIA DA RIBEIRA LIMA

FABÍOLA FRANCO PIRES

-os, de forma a conhecer a evolução do lugar e dos seus componentes; alertar para a sua descaracterização através da destruição e alteração, tanto dos seus elementos arquitectónicos, como das estruturas-base do povoamento; e propor soluções/discutir possibilidades de preservação deste património, e da gestão do território enquanto unidade coerente.

1. Introdução e objectivos: Este estudo, parte de uma investigação efectuada no âmbito da minha pós-graduação em História e Património pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vem abordar o tema da água associada à lavoura num lugar específico de uma freguesia da ribeira Lima, bem como o desaparecimento e descaracterização, ali, destes elementos estruturadores do território. A comunicação apresentou sobretudo arquitecturas como moinhos e azenhas, aparelhos de elevar e encaminhar a água de rega e, o centro de toda a vida agrícola alto-minhota e sobretudo limiana - o casal1 - incluindo o "lugar", a leira de lavradio e a bouça de mato. Os objectivos deste estudo serão, portanto, inventariar o património popular ainda existente nesta categoria; recolher documentação, dados e factos históricos, sistematizando-

2. O lugar de Portuzelo: Portuzelo, topónimo derivado do medieval de “porto” (com sufixo “zello”), que significa “pequeno porto”, refere-se ao atravessadouro de um curso de água, ou noutros, à passagem entre elevações, tendo um sentido análogo ao topónimo “portela”2, aplicando-se neste caso à passagem, no ribeiro de Portuzelo, junto ao rio Lima3. Aparece pela

1 E entenda-se aqui "casal" não exactamente na definição medieval, sempre associado a um senhorio externo civil ou eclesiástico, mas como o conjunto de exploração de um proprietário livre e da sua família. Como define Orlando Ribeiro, "No Norte, designa-se por casal esse tipo de exploração, que combina parcelas de campo, prado e vinha, distintas ou coexistentes na mesma terra, com bouças onde se abastece de mato e lenha.". RIBEIRO, Orlando - O Mediterrâneo e o Atlântico - esboço de relações georáficas: Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1987. 2 FERNANDES, A. de Almeida - Meadela Histórica : Junta de Freguesia da Meadela, 1994, p.321. 3 "Et inde per portum de Portuzelu (...)", sendo esta uma das delimitações do Couto de Paredes, equivalente a uma terça parte da freguesia da Meadela, em 1136. JAVIER, Francisco e Pérez, Rodriguez - Os Documentos do Tombo de Toxos Outos: Consello da Cultura Galega, Sección de Patrimonio Histórico, Santiago de Compostela, 2004, p. 97.

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1 e 2. Localização da Meadela no concelho de Viana do Castelo e localização do lugar de Portuzelo na freguesia da Meadela. SOLÉ, Glória P.S. - Meadela, Comunidade Rural do Alto Minho: Sociedade e Demografia (1593-1850), Guimarães: Núcleo de Estudos de População e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, 2001. pp. 44 e 47.

primeira vez como lugar habitado do couto de Paredes4, no século XIII, aquando das Inquirições de Afonso III, em 1258, juntamente com outros dois: Paredes e Gandra5. Apesar do característico povoamento disperso do noroeste marítimo português, que aqui tão bem se detecta, Portuzelo forma um pequeno aglomerado em torno do ribeiro homónimo e do maciço do Alto do Xisto, procurando uma zona ligeiramente mais alta e rochosa (apesar de completamente assente no vale), deixando todo o terreno fértil livre para cultivo. É muito característica daqui a casa e seus anexos que se penduram nos rochedos, especialmente à margem do ribeiro, quase o engolindo, para poupar o máximo de espaço possível, aproveitando igualmente essa relação para tirar partido dos recursos naturais, em especial, da força da água. À volta do lugar são bem visíveis as extensas veigas: a norte, a de Paredes, e a sul a da Insuela, tocando

o rio; elementos onde o lavrador-pescador da ribeira Lima, busca o seu sustento. É actualmente, o lugar mais bem conservado em termos paisagísticos, tendo em conta que a freguesia da Meadela, onde ele se insere, faz parte desde 1988 do perímetro urbano da cidade de Viana do Castelo, tendo sofrendo até hoje as vicissitudes próprias de uma freguesia "dormitório", periférica à cidade, onde a pressão imobiliária é constante, tendo sido já destruídas e desmembradas pequenas e grandes antigas propriedades de lavradores e nobres. No entanto, é ainda visível no cadastro a diferença entre o território do antigo couto/morgadio de Paredes e o resto da freguesia, onde se foram instalando, a partir do século XVI, quintas nobres de vilegiatura e produção agrícola, segundas casas das grandes famílias de Viana.

4 o couto de Paredes representava a terça parte oriental da freguesia de Santa Cristina da Meadela, mais o actual lugar da Costa, em Perre. 5 “homines de paredes et portuzello et da gandra et de ipso cauto de paredes”. HERCULANO, Alexandre - Portugalliae Monumenta Historica: o saeculo octavo post christum usque ad quintumdecimum, V.1, fasc. 3: Lisboa. Academia Scientiarum, 1891, fl.333.

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3. “Manta de retalhos” das propriedades agrícolas na metade sul da freguesia da Meadela, 1981 (Portuzelo, à direita, ao longo do ribeiro). Oficina do Mapa da FLUP Fotografia aérea (voo de 20 de Novembro de 1981), Viana do Castelo, Fiada 5, 4200ft: 7096, 7098, 7099, 7700

4. Postal do lugar de Portuzelo, onde se podem ver os seus moinhos, “lugares”, e as lavadeiras a corar a roupa junto à levada do moinho da ponte. Destaque para a lavadeira da direita, que segura um cabaço, artefacto com que também se regava os campos, 1908. Arquivo Municipal de Viana do Castelo.

5. Implantação de Portuzelo no Alto do Xisto e a veiga da Insuela a rodeá-lo de sul. Google Earth.

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6. Exemplo de um lugar, no lugar de Portuzelo, rodeado pelos seus muros e anexos agrícolas. Note-se a implantação na rocha viva. Foto da autora, 2012.

7. Vista do caminho entre o mesmo lugar e outro de sua propriedade (note-se o passadiço entre os dois), “ligados” por um cano de rega, e vista aérea. Foto da autora, 2012 e Google Earth.

mente, as leiras de lavradio, situadas nas veigas próximas, e as leiras ou bouças de mato8. Em alguns casos, e pela proximidade do ribeiro de Portuzelo, a casa de habitação funde-se com o respectivo moinho, participando na exploração agrícola desta unidade, e dando origem a uma nova tipologia de habitação e produção: a casa-moinho, aqui de carácter completamente privado e familiar. Na verdade, nada nesta região parece soar a comunitário. Mesmo quando várias pessoas partilham um moinho, são proprietários dele, e não apenas usufrutuários.

3. O "lugar" e o "casal" A oriente, especialmente neste lugar, não existe a grande propriedade nobre, os portões brasonados e as capelas, mas antes a pequena e média propriedade do lavrador, explorada pela família, cujo centro nevrálgico se implanta no "lugar"6: célula murada contendo a habitação (sempre de dois pisos, com lagares, adegas e cortes por baixo), os anexos agrícolas, horta, pomar e/ou vinha. Em alguns documentos aparece também a designação "casal", referindo-se ao mesmo espaço7. A este elemento associavam-se, igual-

6 "e que do dito penedo assima vai em direitura por dentro do lugar do dito Domingos Gonçalves Pelico e vinha de Gabriel Lourenço da Villa de Vianna sahir ao caminho publico donde entra pello lugar de Manoel de Mesquita da freguezia de Santa Marta, e vai ter a hum marco redondo que tem a mesma crus para a parte do Poente, e está no baldio, e alto do Xisto ficando a caza do dito Gabriel Lourenço e quazi todo o lugar da parte da Freguezia da Meiadella.". "Demarcação dos lemites da freguesia da Meiadella com a de Santa Marta", Tombo Novo da Igreja de Santa Cristina da Meadela, 1743 cit. por FERNANDES, A. de Almeida Meadela Histórica: Junta de freguesia da Meadela, 1994, p.68.. 7 "Domingos Pires Costa e Rosa Antunes Parenta (...) precizando da quantia de cem mil reis (...) para certos arranjos de sua caza, e em aumento do seu Cazal (...)". "Escriptura de juro que fazem Domingos Pires Costa e sua mulher da freguesia da Miadella deste termo a Irmandade do Espirito Santo Sam Pedro, Sam Paulo desta Villa.", 16 de Dezembro de 1827, Notariais, Arquivo Distrital de Viana do Castelo. 8 Podemos perceber essa distribuição e fracionamento através de um exemplo concreto, já de inícios do século XX, num documento de partilhas que foi redigido após a morte da mulher de um casal de lavradores do lugar de Portuzelo. A partir do documento, temos acesso a várias informações como a constituição

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8. Localização das moendas, serrações e engenhos de água na Meadela em 2013, estando as desaparecidas assinaladas a vermelho. Mapa da autora baseado nos diversos documentos expostos ao longo do artigo.

do agregado familiar, os filhos que já tinham saído de casa e, acima de tudo, as propriedades que o casal detinha, e que iria agora legar a cada um dos filhos. Podemos perceber que, em 1927, as propriedades que constituíam o pequeno agregado agrícola do casal de lavradores Manuel Fernandes da Ponte e Joana Fernandes Moreno, eram: "um lugar e casas de vivenda, no lugar de Portuzelo, que se compõe de casa alta, coberto e terreno de lavradio e vinha (...)", "Uma leira de mato e pinheiros (...) na serra ou monte de S. Francisco (...)"; "Metade doutra leira de mato e pinheiros no mesmo sítio de «São Francisco», ou «Abelheira» (...)"; "Uma leira de mato e pinheiros, no mesmo sítio de «São Francisco», ou «Abelheira» (...)"; Uma leira de mato e pinheiros no sítio do «Carrascal» (...)"; "Quatro décimas partes de uma leira de lavradio e vinha, no sítio do «Pescadouro» ou «Pedrinha» (...)"; "Uma leira de lavradio e vinha, denominada «leira nova», no sítio de Portuzelo (...)"; "Metade de uma leira de mato e pinheiros, na serra de «São Francisco» ou «Abelheira» (...)"; "Uma leira de lavradio e vinha no sítio das «Boucinhas» (...)"; "Metade de uma leira de lavradio e vinha, no sítio da «Insuela» (...)"; "Metade doutra leira de mato e pinheiros, no sítio do «Carrascal» ou «Penedo Fundo» (...)"; as outras duas metades das duas leiras anteriores; "Seis décimas partes duma leira lavradia e vinha, no sítio do «Pescadouro» ou «Pedrinha» (...)", que faz parte da que anteriormente foi referida no mesmo local; "uma leira de mato e pinheiros na serra de São Francisco, ou Serra da Abelheira, denominada «Fonte Verde». Documento de partilhas familiar cedido por Teresa de Jesus Fernandes Pereira, neta deste casal, 1927.

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parte do Sul que moe com a mesma água que vem da dita ponte (...)"15, informa-nos de uma série de características físicas e de propriedade que este abarca: é de casa térrea e telhado (tal como ainda hoje); tem uma só mó mas lugar para outra; é de vários herdeiros; a igreja tem aqui uma rolda, de quinze em quinze dias, onde manda moer os seus criados, um dia e uma noite já desde o século XVI (segundo o Tombo Velho de 1540), que principia na quinta-feira de manhã, véspera de feira na Vila de Viana, e ainda na sexta-feira de manhã; e que o abade traz a rolda arrendada a Manuel Parente, da Meadela (já estando arrendada no século XVI), por dois alqueires de milho e dois de centeio, por dia de S. Miguel. Através das suas confrontações, que nos situam de uma forma muito precisa esta construção, é-nos ainda dada a informação da existência de um outro moinho ["(...)e confronta o dito moinho do sul com matos e penedos, e do norte com o rio, e do poente com a levada do moinho de André Alves de Carvalho da dita vila, o Faneca de Alcunha, e pelo nascente lhe fica a dita ponte de Portuzelo(...)"]16, que, pela sua localização, julgo ser o atual do Vila Chão (ou do Gigante).

4. As moendas Supõe-se que, em Portugal, os moinhos tenham sido introduzidos pelos Romanos, afirmando Gama Barros que, no século V, os visigodos já os consideravam de uso vulgar na Península, pois a legislação avulsa e o Código Visigótico, do século VII, referem-se a eles9. A sua presença torna-se indubitável no século X, sendo referida em inúmeros textos. Em Portuzelo, a primeira referência aparece no século XII, na carta de couto à Villa Paredes, datada de 1136, em beneficência do mosteiro de S. Justo de Toxos Outos "(...) para que de hoje em diante possuais a referida villa, com seus prados, pastos, montes, fontes, rios, moinhos, árvores, vinhas e hortos."10, pelo que já aqui deveriam existir antes dessa data. Depois desta época, a próxima que encontramos é já no século XIII: o moinho de Gosendo11, que chega até nós através das Inquirições de 125812. Na Idade Moderna, e pelo Tombo Velho da freguesia da Meadela, de 1540, surge o moinho do Gayteiro13, e o da Ponte14, sendo o último ainda hoje existente, em bom estado de conservação e pronto a funcionar. Para além de nos definir o seu local e a razão da sua denominação, chamando-se "o da ponte de Portuzelo por ficar logo abaixo dela e ser o primeiro para a

9 OLIVEIRA, Ernesto Veiga de, GALHANO, Fernando e PEREIRA, Benjamim - Sistemas de Moagem: tecnologia tradicional portuguesa, Lisboa : Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983. p.78. 10 "(...) ab hac die et deinceps habeatis uos prefatam villam cum suis pratis, pascuis, montibus, fontibus, riuis, molendinis, arboribus, uineis, ortis et cum omnibus directuris suis...". JAVIER, Francisco e PÉREZ, Rodriguez - Os Documentos do Tombo de Toxos Outos. Santiago de Compostela: Consello da Cultura Galega, Sección de Patrimonio Histórico. p. 95. 11 "(...) in Moyno de Gosendo jaz j. bouza (...)". HERCULANO, Alexandre - Portugaliae Monumenta Historica: o saeculo octavo post christum usque ad quintumdecimu. Lisboa: Academia Scientiarum, 1891. V.1, fasc. 3. fl. 334. 12 HERCULANO, Alexandre - Portugalliae Monumenta Historica: o saeculo octavo post christum usque ad quintumdecimum, V.1, fasc. 3: Lisboa. Academia Scientiarum, 1891, fl.333. 13 "A bousa que jás atrâs a Gandra assima do moinho do Gayteiro, que ficou de Garcia de Portuzzelo (...)". Tombo Velho da igreja de Santa Cristina da Meadela, 1540. Cit. por FERNANDES, A. de Almeida - Meadela Histórica. Viana do Castelo: Junta de Freguesia da Meadela, 1994. p. 177. 14 "Nº 58 - No moynho mais chegado à ponte de Portuzello tem a igreja nelle de cada quinze dias hum dia, e pagam por esse dia em cada hum anno à igreja dois alqueires de trigo, e trallo Fernão da Meadella; Nº 59 - João Álvarez, da Costa, paga de censoria à igreja em cada hum anno por dia de Natal, pello moinho da ponte, hum quarto de trigo cozido e huma canada de bom vinho.". Tombo Velho da igreja de Santa Cristina da Meadela, 1540. Cit. por FERNANDES, A. de Almeida - Meadela Histórica. Viana do Castelo: Junta de Freguesia da Meadela, 1994. p. 178. 15 "Confrontação do moinho em que tem parte a igreja": Tombo Novo da igreja de Santa Cristina da Meadela. 1743 in FERNANDES, A. de Almeida - Meadela Histórica. Viana do Castelo: Junta de Freguesia da Meadela, 1994. p. 338. 16 "Confrontação do moinho em que tem parte a igreja": Tombo Novo da igreja de Santa Cristina da Meadela. 1743. Cit. por FERNANDES, A. de Almeida - Meadela Histórica. Viana do Castelo: Junta de Freguesia da Meadela, 1994. p. 338.

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9. Moinho da ponte e engenho no seu interior. Fotos da autora, 2013.

10. Azenha e moinho de rodízio do Vila Chão (ou do Gigante). Fotos da autora, 2013.

11. Pedido de licenciamento para fazer um canal para descarga e calha de roda motriz, com vista a estabelecer uma fábrica para moagens e serragens pertencente à empresa José Martins de Matos & Companhia, no ribeiro de Portuzelo, 1892, e Fábrica de moagens e serragens, e posteriormente de boinas, com destaque para a calha da roda, à esquerda do edifício.. Arquivo Distrital de Viana do Castelo - 1ª Secção da 1ª Direcção de Serviços Fluviais e Marítimos e foto da autora, 2012.

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12. Levada do antigo moinho do Navega. Foto da autora, 2013.

para descarga e calha de roda motriz, com vista a estabelecer uma fábrica para moagens e serragens pertencente à empresa José Martins de Matos & Companhia18, sendo este seguido, logo em 1905, de um pedido de licença para construir um muro-cais de desembarque e transporte de madeiras para essa mesma fábrica19. Os outros dois casos aparecem-nos, o primeiro, num documento de 1899, através de uma transgressão feita pelos proprietários do moinho das Magras ao reconstruir um açude ilegalmente, sendo acusados por dois outros proprietários de moinhos: Joaquim Fernandes D'Amorim, do Vila

É também em 1775 que há notícia, em Portuzelo, de um outro moinho com funções muito diversas das tradicionais: moía vidraço para a fábrica da louça de Darque17. É interessante que, pelo menos nesta região, e neste período, os moinhos estão muitas vezes associados à criação de serrações de madeira, quer industriais, como esta, quer "caseiras", multiplicando assim a utilidade da força motriz provida pela água dos rios ou das marés. Em Portuzelo temos três exemplos. Do primeiro deles surge notícia em 1892, através de um pedido de licença à Secção Hidráulica de Viana do Castelo, onde é requerido fazer um canal

17 "No fabrico da louça também podia diversificar geograficamente os fornecedores e assim discutir preços, e foi por isso que preferiu o vidro fabricado em moinho fundado na outra margem do rio Lima, no lugar da Poupeira, em Santa Marta (junto à ponte do Arco) em 1775, e daí descia até à foz da ribeira de Portuzelo, para ser colocada na outra margem, na baixa de Darque.". ABREU, Alberto - A loiça de Viana - das origens ao século XXI. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo, 2005. p. 77. Existiu de facto, um moinho na Poupeira, com este nome, que hoje se encontra arruinado, mas para além de a Poupeira se situar ainda na freguesia da Meadela, lugar de Portuzelo (sempre a confusão com lugar de Portuzelo e freguesia de Santa Marta de Portuzelo), o "moinho de vidro", ficava também situado nesta freguesia e na margem direita do ribeiro de Portuzelo, próximo ao que é hoje o que resta da linha ferroviária do vale do Lima, que nunca chegou a ser concluída, tendo o próprio moinho criado topónimo no local, não se sabendo ainda hoje que tipo de moinho seria, apesar de os habitantes do lugar afirmarem que é um de vento que lá se encontra desativado há largos anos. 18 LIMA, Abade João de Barros - Epílogo de usos e costumes desta igreja de Santa Cristina da Meadela. Título das primícias, Dízimos, São-Joaneira e mais avenças que se pagam a esta igreja: 1743, transcrito em FERNANDES, A. de Almeida - Meadela Histórica. Viana do Castelo: Junta de freguesia da Meadela, 1994. p. 279. 19 Arquivo Distrital de Viana do Castelo, 1ª Secção da 1ª Direcção de Serviços Fluviais e Marítimos -"Licença requerida por José Martins de Matos & Companhia para construirem um cais, a fim de facilitar o embarque de madeiras para uma fábrica de serragem que possuem na margem esquerda do ribeiro de Portuzelo", Processo nº 43, da pasta nº 60/1905-Processos 1 a 44.

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Chão, já aqui referido, e João Soares Rodrigues, proprietário de "(...) moinhos, azenhas e engenho de serra do João Lopes, situados no rio de Portuzelo (...)"20, engenho esse ainda hoje na memória dos mais velhos do lugar, e cuja casa onde ficava o moinho ainda hoje existe com o nome moinho do Lages, assim como o outro caso, que só através dessa fonte há memória, restando o registo do moinho, em 1940, mas não da serração, que pertencia e estava dentro dos terrenos de José Gonçalves Borlido Navega, também no ribeiro de Portuzelo. Dos outros que inventariei e dos quais fui recolhendo alguma informação, a maioria só tem a primeira referência nos apontamentos dos guarda-rios de 1940 para a freguesia da Meadela, sendo que a memória popular e o facto de vários nomes mais antigos estarem registados (note-se que o proprietário nem sempre coincide com que recebe o requerimento do guarda-rios), garante uma maior antiguidade (pelo menos inícios de século XX). O seu declínio deu-se em meados do século XX tendo sido, antes disso, alguns deles, substituídos por moinhos, primeiramente a gasóleo e depois a energia elétrica (como é o caso, nesta freguesia, do moinho do Lages, o qual por ter uma venda associada, estava mais exposto aos incrementos da tecnologia). O que laborou até mais tarde, quase até aos anos 90, foi precisamente um dos aparentemente mais antigos, o da ponte, sendo ainda hoje aquele em que o mecanismo se encontra intacto e pronto a utilizar, tendo sido adquirido e restaurado pela junta de freguesia nessa época, quando deixou de ser utilizado. Para além dos referidos acima, existem ainda hoje uma série deles, todos desativados, e outros desaparecidos ou em ruínas, mas de que ainda há memória. Entre as suas funções contam-se as: de moer milho, centeio21, cevada22,

13. Moinhos existentes na Meadela em 1940. Arquivo da ARHN Anotações dos Guarda-Rios dos cantões de Carreço e Perre.

20 Arquivo Distrital de Viana do Castelo, 1ª Secção da 1ª Direcção de Serviços Fluviais e Marítimos -"Multa aplicada a António Salgueiro e Joanna Gonçalves de Oliveira por transgressão do Regulamento dos Serviços Hydraulicos no rio de Portuzello", Cota: 2.38.4.5. 21 "(...) e no mesmo Rio hâ bastantes moinhos de moer milhaõ, e senteyo.". Arquivo Nacional Torre do Tombo - Memórias Paroquiais de 1758, Meadela,vol.23, nº100, p.670. 22 Há ainda relatos da moagem de cevada no moinho de rodízio denominado do Gigante, por ser pertença, há muitos anos e ainda hoje, da família com esse apelido.

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14. Moinho a gasóleo (depois transformado em elétrico) da casa-moinho do Lages e porta (vermelha) da venda, onde iam moer milho os lavradores da região. Fotos da autora, 2012.

serrar madeira23, e moer vidro, como já foi referido, para a fábrica da louça de Viana. Não se sabe como seria a sua gestão em tempos mais recuados, mas há cerca de pelo menos um século, todos eles eram particulares, à exceção do moinho da ponte, dos Matos, e da Poupeira; a maioria, no início e meados do século XX, não tinha moleiro, à exceção do Dantas, e os lavradores do lugar que não eram proprietários nem tinham rolda em nenhum moinho, dirigiam-se a estes para moer o milho e o centeio, pagando em medidas de milho (rasas, que o poderiam ser realmente, ou "pelas almas", isto é, com cogulo). Como era regra por todo o país, também aqui os moinhos de rodízio eram em número muito superior às azenhas, sendo as que existiam sempre de propulsão inferior, alimentadas por açudes, bem

como alguns dos de rodízio, sendo outros alimentados por levadas de água em pedra embutida no solo. No século XVIII, através do Epílogo de usos e costumes da freguesia, percebemos ainda que teriam existido lagares de azeite em moinhos24, e que os moleiros dos moinhos de grão teriam sido muito mais numerosos, para além de que era "uso e costume pagarem os moleiros dos ditos moinhos que moem grão e de que levam maquia por avença, em cada um ano, dois alqueires de milho que se vencem e estão obrigados a pagar por dia de S. Miguel e também se paga o dízimo dos moinhos e lagares de azeite conforme o rendimento que neles lucram quando se faz aseite."25. Estes artefactos já aqui não existem há bastante tempo, nem mesmo onde toca a memória dos locais, provavelmente por

23 Arquivo Distrital de Viana do Castelo, 1ª Secção da 1ª Direcção de Serviços Fluviais e Marítimos -"Licença requerida por José Martins de Matos & Companhia para construirem um cais, a fim de facilitar o embarque de madeiras para uma fábrica de serragem que possuem na margem esquerda do ribeiro de Portuzelo", Processo nº 43, da pasta nº 60/1905-Processos 1 a 44. 24 É notória a diferença que fazem entre moinhos de grão e lagares de azeite ou moinhos: "É uso e costume desta freguesia de se pagar a décima parte de todos os frutos prediais como bem a saber, do trigo, centeio, cevada, milho, feijão, linho, vinho, azeitona, sal, e de todos os animais gados e aves que nasciam e criavam, convém a saber, dos anhos, cabritos, leitões, frangos, perus, patos e de toda a ave doméstica e género de criação de gados, e também do peixe que se pesca dentro dos limites desta freguesia, e dos enxames, cera, lã, leite, e dos lagares do azeite, ou moinhos, e de todos os mais moinhos que moem grão, dando de dez um à igreja e ficando com nove: com declaração que os sobreditos dízimos se pagam a esta igreja por inteiro, sendo granjeados, colhidos ou cultivados pelos moradores e fregueses desta igreja.". LIMA, Abade João de Barros - Epílogo de usos e costumes desta igreja de Santa Cristina da Meadela. Título das primícias, Dízimos, São-Joaneira e mais avenças que se pagam a esta igreja: 1743, transcrito em FERNANDES, A. de Almeida - Meadela Histórica. Viana do Castelo: Junta de freguesia da Meadela, 1994. p. 279. 25 LIMA, Abade João de Barros - Epílogo de usos e costumes desta igreja de Santa Cristina da Meadela. Título das primícias, Dízimos, São-Joaneira e mais avenças que se pagam a esta igreja: 1743, cit. por em FERNANDES, A. de Almeida - Meadela Histórica. Viana do Castelo: Junta de freguesia da Meadela, 1994. p. 279.

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15. Moinho e azenha do Dantas no século XIX e hoje. Gravura retirada de VIEIRA, José Augusto - O Minho Pitoresco, Tomo I : Livraria António Maria Pereira - Editor, Lisboa, 1886 e Foto da autora, 2012.

16. Moinhos dos Matos, azenha junto à linha do vale do Lima, das Magras e do Dantas. Fotos da autora, 2012.

a norte e poente. Como é natural devido ao relevo, ela tende a dividir-se, em termos de captação de água para irrigação do solo, em duas zonas muito distintas. Os campos mais próximos da serra, beneficiando dessa localização, são normalmente irrigados através de minas e nascentes localizadas na encosta, tendo os lavradores construído aquedutos de pedra que, por gravidade, a encaminhavam para os campos, ou para presas onde depois era distribuída por vários consortes. Encontramos ainda hoje diversos testemunhos dessa prática de encaminhamento, acumulação, e serventia da população em toda a metade ocidental da freguesia, não apenas para favorecer a irrigação dos campos de cultivo, mas também tendo como destino final lavadouros e fontes. A de maior dimensão e ainda hoje melhor conservada, é a fonte e lavadouro de Fornelos, no lugar homónimo. Temos dela notícia, pela primeira vez, no Tombo Novo da Igreja, em 1743. Este documento refere que ele é "o lavadouro de roupa da Igreja (...) e que ainda que no dito lavadouro estivesse a lavar alguma pessoa, em chegando criados do Reverendo Abade desta Igreja, para lavarem naquela fonte, logo a dita pessoa lhe largava o dito lavadouro; e sempre assim foi uso e costume (...)"26. Nas zonas mais baixas, nomeadamente na veiga de Pa-

não ser aqui a azeitona produto muito abundante, como já refere o Abade João de Barros nas memórias paroquiais, em 1758. É curiosa por isso a obrigação de os moinhos de grão pagarem sempre à igreja, todos os anos a mesma quantia, e os de azeite apenas pagarem o que produzissem, o que demonstra bem a força do milho nesta região (e provavelmente a quantidade de moinhos que aqui lavoravam). Devo ainda esclarecer que a denominação dada aos moinhos nesta freguesia deriva sempre de dois fatores: ou a localização, ou a alcunha do proprietário ou família do proprietário. Os moinhos cujos nomes são de locais, como da Ponte, da Poupeira, etc., mantiveram quase sempre a sua designação, ao passo que os que adotaram alcunhas, vão variando no tempo conforme os proprietários (dos Matos, das Magras, do Vila Chão, do Gigante, do Pontes, do Dantas, etc.), sendo que ainda hoje a memória dessas alcunhas está muito viva entre a população e é um importante meio de identificação dos mesmos. 5. Os engenhos de captação e distribuição de água: A freguesia da Meadela é caracterizada por uma zona ribeirinha, extremamente plana, de veigas, nomeadamente a oriente e sul, em contraposição a outra, com um relevo mais acidentado, proporcionado pela serra de Santa Luzia,

26 LIMA, Abade João de Barros - Confrontação do lavadouro da roupa da Igreja: Tombo Novo da Igreja de Santa Cristina da Meadela.1743, cit. por FERNANDES, A. de Almeida - Meadela Histórica. Viana do Castelo: Junta de freguesia da Meadela, 1994. p. 341.

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17. Lavadouro e presas, no lugar da Presa e aqueduto embutido no muro de uma propriedade. Fotos da autora, 2013.

18. Lavadouro de Fornelos, no lugar homónimo. A água de lavar a roupa corria depois para os campos, para regar, através de um buraco no muro. Fotos da autora, 2013.

19. Estanca-rios com poço de pedra junto à ponte de Portuzelo, e seu engenho. Fotos da autora, 2013.

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20. Estanca-rios em casas: estanca-rios do Navega e seu engenho, no lugar do moinho de vidro; e estanca-rios hexagonal no lugar dos Matos. Fotos da autora, 2013

21. Estanca-rios abandonado na veiga de Paredes. Fotos da autora, 2011

22. Aqueduto de pedra de um estanca-rios na veiga da Insuela. Foto da autora, 2012.

vo da propriedade privada. Os estanca-rios encontravam-se sempre dentro dos campos murados e pertenciam apenas ao proprietário do mesmo. Eram todos movidos com o auxílio de uma junta de bois. Eram normalmente de grande dimensão, e podiam apresentar-se sob duas formas. A primeira consistia num poço de pedra, com altura variável, que dependia da extensão a regar e da pendente onde ele estava implantado, e por onde se acedia através de uma rampa ao mecanismo (em tempos mais recuados elaborada em madeira, e nos últimos tempos em ferro). Este mecanismo, constituído por duas rodas, uma vertical e outra horizontal, era acionado através de um tronco de madeira puxado pela junta de bois,

redes e na Insuela, no lugar de Portuzelo, e nos campos do lugar dos Matos e da Argaçosa, onde não era possível contar com a pendente da serra nem com as suas nascentes, o processo de rega assumia formas e processos completamente distintos. A captação aqui era feita, ou diretamente a partir do ribeiro de Portuzelo, ou em parceria com as levadas dos moinhos, ou até mesmo, através de engenhos especificamente construídos para esse efeito, que captavam a água a partir de poços: os estanca-rios27, sendo nesta região, em alguns casos, construções de grande envergadura28. Este sistema, muito diferente do seu vizinho junto ao monte da Meadela, era caracterizado pelo domínio exclusi-

27 Embora noutros locais, aparelhos semelhantes apareçam com outras designações, entre elas a mais popular - nora - nesta região, a população local designa-os sempre desta forma., embora entre os que aqui existem haja algumas diferenças consideráveis que adiante explicarei. 28 DIAS, Jorge - Aparelhos de elevar a água de rega: contributo para o estudo do regadio em Portugal: Junta de Província do Douro Litoral, 1953.

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por via de aquedutos elevados de pedra, que iam gradualmente descendo em direção ao solo, transformando-se, em alguns casos, em simples valos de terra. Quando o aqueduto passava num campo, e para que se fizesse a respetiva rega, este apresentava uma abertura de lado, sempre tapada com uma peça de madeira, que se levantava, deixando correr a água para a terra, e a partir daí guiando-a, de forma a atingir todos os pontos onde era necessária. Com os valos térreos, funcionava de forma semelhante, tapando-se, no local que se queria, com terrões, para que a água se desviasse do rego e entrasse no campo29. Todos estes engenhos eram, como já referi, particulares, como particulares eram os terrenos onde estavam implantados. Como não era possível, quer em termos económicos, quer em termos físicos, já que nem todos os campos tinham nascentes ou poços, que todos os lavradores tivessem um estanca-rios (ou fácil acesso à água a partir da levada de um moinho) para regar, estes engenhos eram, na maior parte das vezes, alugados. Dependia, por isso, da vontade do possuidor do aparelho, a forma como se fazia a sua utilização, pois ele determinava os dias que cada lavrador tinha direito, consoante o número de campos que tinha de regar, e era ressarcido pelo empréstimo do mesmo, normalmente em rasas de milho, como no caso dos moinhos, sendo que uma rasa nesta região equivaleria a cerca de 13kg. Estes artefactos de rega, que assumem na maior parte das vezes materializações tão interessantes e volumosas, foram sendo gradualmente abandonados a partir de meados do século XX, e substituídos pelos motores de água que, em alguns casos, passaram a aproveitar-se dos poços já abertos para eles. Como refere Jorge Dias, já em 1953, para o resto do país, "os lavradores apontam para as causas deste desaparecimento: para a mesma quantidade de

que fazia com que os copos de madeira ou folha metálica agarrados à roda vertical mergulhassem no poço e despejassem a água num tabuleiro que, por sua vez, a derramava no aqueduto de pedra. Este espaço era sempre sombreado através de uma armação em ferro que suportava a vinha. Outra das tipologias de estanca-rios presente nesta região era muito semelhante à que acabei de descrever, no que diz respeito ao funcionamento do mesmo, com a diferença que o seu aspeto se assemelhava a uma casa com dois pisos onde se acedia por rampa ou escada. Na verdade, dificilmente perceberíamos que ali está albergado um estanca-rios sem perguntar, se destas construções não saísse o braço pétreo de um aqueduto. Além da forma de uma casa comum, encontrei um exemplo muito curioso, no limite de Portuzelo com o lugar dos Matos, que embora integrado nesta tipologia tem duas diferenças. A primeira é que o poço não se encontra em cima da nascente de onde a água brota, mas sim afastado, formando esta um lago que só depois se vai encaminhar para uma abertura situada a uma cota mais baixa que o solo, entrando dentro do estanca-rios. A segunda é que a casa que o protege toma a forma de uma torre hexagonal com cerca de 8 a 9 metros de altura, sem nenhuma abertura à exceção da porta, por onde se acede através de uma rampa de pedra voltada a um pequeno carreiro de acesso exclusivo a este edifício. Não se sabe se teriam existido mais exemplares semelhantes, nem a razão de tão extravagante construção. O terceiro tipo é o mais simples, e encontra-se exclusivamente na veiga de Paredes, na zona da ponte do Arco. O poço de pedra desaparece, e o estanca-rios é constituído apenas pelo engenho suportado por uma pedra onde é embutido, sendo que o local de onde se extrai a água é apenas uma poça aberta na terra. Dos estanca-rios, como já referi, a água era distribuída

29 "Em Paços de Ferreira existe também a rega pelo rego, quando a água corre sozinha pelos regos, limitando-se o lavrador a desviá-la para o rego seguinte, quando já regou suficientemente as terras marginais. Chama-se rega pelo pé quando o lavrador guia a água com a enxada e com os próprios pés, por toda a superfície do campo.". DIAS, Jorge - Aparelhos de elevar a água de rega: contributo para o estudo do regadio em Portugal: Junta de Província do Douro Litoral, 1953, p.29.

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6. A rega nos "lugares" dos lavradores A necessidade de irrigação das culturas estendia-se também aos próprios "lugares" dos lavradores, os quais continham, quase sempre, horta e um pequeno pomar, e mesmo a algumas quintas nobres, que dentro de muros albergavam vários campos de cultivo, na outra parte da freguesia. Assim, e como exemplo bem preservado de como se procedia à rega de um "lugar", apresento, de seguida, a casa do Lages, no lugar de Portuzelo, propriedade do lavrador rico dono dos motores que acima referi, e que no século XIX era uma azenha de roda vertical, passando no século XX a funcionar como moinho de rodízio com 3 mós, moendo o milho que era depois vendido aos lavradores, na venda que ficava no compartimento dedicado às mós, por baixo da casa: É ainda hoje alimentado por uma levada que canaliza a água do ribeiro de Portuzelo para uma abertura que passa por baixo dela e vai movimentar as pás dos rodízio (atualmente inexistentes). Ao mesmo tempo é encaminhada, primeiro por baixo da casa, saindo depois por um aqueduto de pedra que circula na horta e se encaminha para um poço; para esse poço vai também água que é captada noutro junto ao muro da casa (por estar a uma cota mais baixa que o rio), e daqui vai alimentar um lavadouro de pedra e, antigamente, um moinho de rodízio que foi demolido para em seu lugar ser construída uma casa de habitação. Daqui, a água, por o terreno estar a uma cota mais alta que o rio, é devolvida a este, finalizando o ciclo. No caso da quinta de Paredes, cabeça do morgadio homónimo, situada entre Portuzelo e o lugar do Matinho, a rede de distribuição de água era iniciada com a sua captação através de duas nascentes exteriores e uma interior à quinta (no viveiro). A água era aqui acumulada não só para rega dos campos, como formava um tanque decorado - a fonte do paço (ou fonte de Paredes) - que se situava numa

água, o esforço do gado é maior, a conservação é cara e são muito frequentes as reparações."30. De uma forma geral, nesta época, ainda se podia assistir à substituição das rodas do engenho de madeira para ferro, já que "as emendas da bomba, secas durante grande parte do ano, não vão além de 6 anos. Só a bomba de baixo, como está mergulhada, resiste de 30 a 40 anos."31. Nesta região, o processo já se encontrava mais adiantado, como é visível nos pedidos de licença da Secção Hidráulica de Viana do Castelo, que registam pedidos para utilização de motores para extração de água já em finais dos anos 40. Da mesma forma, como para a utilização dos estanca-rios a ordem era ditada pelo respetivo dono, quando se introduziu o motor de água houve a necessidade de se nomear um marcador das águas, que nesta aldeia era o lavrador mais rico e respeitado e, consequentemente, aquele que possuía os motores a que mais lavradores recorriam, já que ficava muito dispendioso adquirir um, e mais dispendioso ainda voltar aos antigos processos de extração de água por estanca-rios. Como a aldeia se situa em torno do rio e rodeada de veigas, este lavrador optou por adquirir um motor que colocou no seu "lugar" para regar os campos da Insuela, e mesmo não possuindo propriedades para a parte norte, na veiga de Paredes, adquiriu um segundo, que colocou no "lugar" de um outro lavrador com quem acertou a utilização, com o intuito de daí retirar também algum lucro do aluguer do motor. As relações socioeconómicas entre os proprietários agrícolas e a utilização das águas é aqui bastante complexa, pelo que fica apenas, neste artigo, uma pequena amostra daquilo que ainda terá de se desenvolver e investigar nesse ponto.

30 DIAS, Jorge - Aparelhos de elevar a água de rega: contributo para o estudo do regadio em Portugal: Junta de Província do Douro Litoral, 1953, p.111. 31 DIAS, Jorge - Aparelhos de elevar a água de rega: contributo para o estudo do regadio em Portugal: Junta de Província do Douro Litoral, 1953, p.111.

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24. Estanca-rios hoje desaparecido, na quinta de Paredes, em 1934, e tanque da quinta de Paredes actualmente. Site do Espólio Fotográfico Português e foto da autora, 2010.

zona da quinta dedicada ao lazer, sendo a sua primeira notícia de 1540, no Tombo Velho da igreja de Santa Cristina da Meadela32. Desta fonte, descia por valos abertos na terra a água que alimentava um lavadouro. Há igualmente relatos da existência de dois estanca-rios. O rego de água que circulava dentro da quinta, corria depois para fora dos seus muros e ia alimentar um lavadouro popular, ainda hoje existente, denominado Fonte do Branco, partindo daqui em direção às salinas, junto ao rio Lima. Há igualmente relatos da existência de uma mina de água junto à casa, escavada na rocha, hoje desaparecida. O recurso às minas não era, por isso, exclusivo da metade montanhosa da freguesia, mas também aqui era utilizada, havendo mesmo ocorrências nas leiras de lavradio, assim como recurso às presas construídas com grandes blocos de pedra para armazenagem da água. 7. A preservação do lugar e das suas arquitecturas Os resultados deste estudo servem, em primeira instância, a população local no intuito de a aproximar e esclarecer acerca do património a preservar. É natural que, tendo frequentado os mesmos lugares desde que nos conhecemos, ou não estando devidamente orientados para perceber determinadas dinâmicas ou o valor intrínseco de certos artefactos inseridos nos seus adequados contextos, o comum cidadão não os entende (pelo hábito da sua presença e/ou

23. Levada com dois orifícios (esquerda para o moinho e direita para rega). Valos de pedra para encaminhamento da água. Presa de água. Lavadouro. Fotos da autora, 2012.

32 Hoje encontra-se desaparecido em parte incerta. FERNANDES, A. de Almeida - Meadela Histórica. Viana do Castelo: Junta de Freguesia da Meadela, 1994. p.165 e 169.

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-lo entender, para que seja compreendido, vivido e preservado pelas gerações que se identificam com ele, porque o percebem e o respeitam, e não porque assim lhes é exigido. O trabalho e este consequente artigo pretendem ser por isso, igualmente, um repensar do conceito patrimonial enquanto todo e não focado no objecto, alertando não só as populações - porque a Meadela e Portuzelo enquanto lugar-caso, são apenas exemplos que se estendem a toda a ribeira Lima - mas também os responsáveis pelas decisões superiores que têm transformado a nossa paisagem, na maior parte dos casos, em algo desenraizado e ilógico, desrespeitando os seus antecedentes. O caso de Portuzelo é também gritante, sobretudo no que concerne à perda de população para o núcleo mais urbano da freguesia, encostado à cidade de Viana do Castelo, o desenraizamento e envelhecimento da sua população, e a falta de utilização dos espaços comuns, muitas vezes por má qualidade na remodelação e transformação neles operada. O estudo aprofundado de uma comunidade, como já referi, não pretende ser o armazenamento de dados específicos sobre ela, mas sim um laboratório aplicável a outras que nasceram e evoluíram dentro da mesma lógica. Conhecer e entender as dinâmicas sociais e económicas de uma povoação, é ter um trunfo eficaz para correctamente trabalhar sobre ela no futuro.

porque não foi munido de instrumentos conceptuais para o efeito), e por isso não tem a preocupação de os proteger e preservar, muito menos de, quando tem que fazer uma alteração, por exemplo, na estrutura ou aspecto do seu "lugar" ou do seu moinho, acabe por subverter a lógica com que ele foi pensado e construído. Isto serve igualmente para pequenos (grandes) detalhes como a escolha dos rebocos e respectivas cores, a opção pela pedra à vista, o alargamento desmesurado das vias antigas, a colocação de mobiliário urbano extremamente desenhado, a introdução de materiais alheios à tradição como o cimento, ou mesmo de elementos discordantes do ambiente como passeios e estacionamentos rígidos. Da mesma forma, e enquanto arquitecta, tenho-me apercebido frequentemente que os PDM's (Planos Directores Municipais) que regulamentam a intervenção em espaços periféricos ainda de matriz rural, não têm em conta a sua lógica, subvertendo, na maior parte das vezes, escalas e linguagens aplicando-as indiscriminadamente a realidades que em nada se tocam. O património é também o desenho do povoamento, da paisagem, e não apenas o elemento isolado. Na verdade, o elemento isolado enquanto património, é apenas isto, e permanece deslocado num entorno que em nada o enquadra. Proteger o património, a meu ver, não é apenas colocar-lhe a etiqueta da classificação para que não lhe toquem, mas antes mostrá-lo, explicá-lo e fazê-

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