PÓS-MEMÓRIAS DE ÁFRICA NA PINTURA E LITERATURA

August 4, 2017 | Autor: Ana Alfaiate | Categoria: African Studies, Estudos Africanos
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Curso de Pós-Graduação
Portugal e os Pós-Colonialismos: Conceitos, Contextos e Vozes
Universidade de Bolonha, Universidade de Coimbra, Instituto Camões

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O que resta dos impérios:
reescritas, revisões e reformulações pós-coloniais



PÓS-MEMÓRIAS DE ÁFRICA NA PINTURA E LITERATURA

Ana Cristina Alfaiate
África do Sul, Maio 2014

Para tecermos considerações sobre a pós-memória teremos que considerar a transmissão oral dos factos, os seus enunciadores e recetores, tal como a forma ou o meio pelo qual essa memória não vivida vai ser assimilada, partilhada e apresentada – artes plásticas, literatura ou documento fílmico.
A experiência de cada memória de factos ocorridos possibilita uma nova releitura adaptada à realidade do sujeito rememorador assim como condiciona a sua transmissão às especificidades do público. As imagens podem constituir um factor disparador de memórias que poderão servir como material de conhecimento e, simultaneamente, causar novas transmissões e novas leituras.- um processo contínuo que, no seu todo, contribui para a criação da memória pública e coletiva de uma comunidade.
Por outro lado, a ligação entre crianças (que não viveram quase nada) e os seus avós e familiares (que viveram quase tudo) dá-se de maneira natural e vibrante, uma vez que as histórias contadas têm adaptações e detalhes coloridos, só possíveis se narrados diretamente pelo próprio personagem.

Neste contexto de memória e pós - memória, o artista plástico Diogo Navarro é um exemplo contemporâneo da influência que a sua curta infância passada em Moçambique detém na sua produção artística e na sua própria identidade:
" No meu mundo de criança registei os sons dos insetos que se desvanecem em concertos distantes de pássaros e rãs à beira de ribeiras, os cheiros que são transportados por ondas de calor em Xinavane, onde nasci, o cheiro intenso da cana do açúcar que se transformava num ar doce que vinha da fábrica, as conversas e vozes das minhas amas, em dialetos musicais. Um apelo forte da natureza despertou-me estes sentidos que percebo agora serem como uma impressão no meu ADN."
Muito a lembrar a pintura de William Turner, Navarro transmite, nas suas telas, tal como o mestre inglês da luz e dos oceanos, uma emoção extrema que nos transporta para a espiritualidade do mundo, neste caso para o mundo longínquo geograficamente mas muito presente na sua alma e ao qual, finalmente, chama de " casa".
Nas suas telas descobrimos a intensidade do azul do Índico que apontam para longínquas paragens tal com os quentes amarelos e ocres de África que fazem a ligação entre continentes, entre realidades diferentes mas também entre afinidades culturais e linguísticas.



O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Halbwachs, excecional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho (BOSI, 2003, p.55).
Como refere o mesmo autor, precisamos ver o meio material, o espaço, para recuperarmos o nosso passado onde a memória se conserva. O " nosso espaço" é aquele que ocupamos por onde passamos e que fixa as nossas construções e pensamentos do passado para que este volte a aparecer nas nossas lembranças.
Estas " paisagens da memória" de Diogo Navarro, confirmam que a memória não é apenas um mecanismo de copiar e armazenar informações mas é também um recurso para recuperar informações e combiná-las para que formem pensamentos novos.
Para o artista, a viagem a Moçambique foi o fechar de um ciclo: nascimento, partida e regresso. Chama "casa" a Moçambique, espaço que vai deixar, para seguir um outro caminho, ainda incógnito, numa viagem com sentido transcendental e como o próprio afirma " O tempo esfumaça-se, há tempos dentro do tempo com diferentes modos de viver".



" Portugal e Moçambique, na distância e no tempo parecem infinitos, mas algo os une, uma história e uma língua. Esta é uma das primeiras pontes entre estes dois mundos, a língua portuguesa. Fiquei impressionado com o facto de esses outros mundos falarem a mesma língua que eu, mas percebi que, apesar das distâncias, existem outras energias comuns, e existe uma linguagem que é única, a linguagem dos artistas."

Deixando um caso de memória individual feliz que, no entanto, já se tornou pública, parto para a literatura de cariz colonial, mais precisamente, a literatura da Guerra Colonial, um " entre-lugar" na expressão utilizada por Roberto Vecchi para denominar este evento histórico entre colonialismo e pós colonialismo, que contribui para desmontar e analisar criticamente o pretenso excecionalísmo da ocupação colonial mas que, também, pode alimentar mitologias, como um " novo Encoberto" ou o " Encoberto do séc. XX ", como referem Margarida Ribeiro e Ana Calapez, respetivamente.
A Guerra Colonial representa o momento em que termina um mundo e começa outro que se encontra ainda em definição, por vezes tempestivo, e permite, ainda, diversificar os modos de pensar o Império e poder construir uma memória que se torne parte de uma memória pública.
A Literatura tem a capacidade de caracterizar no texto literário aquilo que falta na vida social e política de uma determinada comunidade. As estruturas literárias sofrem atualizações e modificações porque o momento histórico é outro como acontece por exemplo com a poesia trovadoresca que podemos detetar numa canção popular brasileira ou ainda a influência de The Tempest, de William Shakespeare, na literatura colonial britânica.
Considerar apenas a produção literária das ex-colónias, depois da independência, como o único objeto relevante para estudo é uma posição redutora e simplista pois, como afirma Paulo de Medeiros, a memória, neste caso no âmbito da literatura, pode ajudar a colocar a história noutra dimensão. Assim tomemos os exemplos de António Lobo Antunes e Lídia Jorge, autores que se centram nas questões coloniais nas suas produções literárias, como Os Cus De Judas ou Costa dos Murmúrios exemplificam, respetivamente. O tema da Guerra Colonial, é um acontecimento muito específico da situação colonial portuguesa por ser tardio e de grande intensidade, a sua memória revela a importância que carrega para uma compreensão da identidade portuguesa atual a nível pessoal e nacional uma vez que a literatura pós-colonial projeta, em miniatura, a estrutura e as proporções internas do colonialismo português e coloca-o num plano de alegoria histórica.
Ainda da escritora Lídia Jorge, a obra O Vento Assobiando As Gruas refere a sociedade portuguesa na sua condição pós colonial e ainda a questão das migrações após o 25 de Abril tecendo duras críticas à sociedade portuguesa contemporânea, contribuindo para a caracterização da sociedade metropolitana e não só as sociedades colonizadas. Podemos alargar o nosso campo de visão e pensar na Europa Pós – Colonial com as reivindicações de imigrantes franceses que nos remetem para as questões do poder, da memória, da tradição, da pluralidade de uma sociedade que não se reconhece ou se aceita como pós-colonial, temas estes também abordados em A Costa dos Murmúrios.
Ao pensarmos em sociedades pós-coloniais, multiculturais, o antigo conceito de multiculturalismo serve, hoje em dia, para resolver situações conflituosas que surgem nas nações europeias. No entanto, e para completar estas considerações sobre as sociedades pós-coloniais metropolitanas, gostaria de focar o resultado das recentes Eleições Para o Parlamento Europeu em que os partidos xenófobos subiram de importância nos seus resultados eleitorais.
A questão da xenofobia na Europa a que hoje assistimos pode ser entendida à luz dos conceitos tecidos por Edouard Glissant de opacité (o direito a preservar a identidade psico-cultural) e relation (o laço que existe entre duas coisas, dois fenómenos) entre culturas, assim com através da classificação que faz das culturas, dividindo-as em atavique (estado de raiz única, exclusiva) e composite (estado de rizoma, raiz que vai ao encontro de outras raízes), que nos elucidam sobre o modo de funcionamento das mesmas. Do mesmo modo dicotómico, Glissant denomina la pensée, que forma o imaginário dos povos que, por sua vez, se realizam nela, em continentale (organizada, projetada) e archipélique (mais intuitiva, mais frágil).
Todos estes conceitos, que não perderam os seus significados originais mas foram utilizados por Glissant no contexto de análise das sociedades, contribuem para que possamos compreender o funcionamento das sociedades em relação à alteridade e que aplicados à Europa atual, pós-colonial, nos dão uma perspetiva bastante fiel do rumo que o velho continente está a tomar.
Resumindo as breves considerações tecidas neste trabalho, os conceitos de espaço, tempo, memória e pós-memória são indissociáveis. Das memórias individuais que são partilhadas de diversas formas e suportes, discurso oral, imagens, pintura, literatura e ainda outras como o texto fílmico, brotam memórias públicas.
A literatura pós-colonial, a literatura da Guerra Colonial, pode constituir um documento crítico sobre os conceitos de excecionalidade, lusotropicalismo ou crioulidade da colonização portuguesa mas pode, também, levar à criação de novos mitos, de novos "encobertos". Por outro lado, este testemunho documental fornece um importante contributo para a compreensão da sociedade portuguesa colonial com as suas fragilidades, preconceitos e contrassensos inserida numa Europa que mostra já, de porta bem aberta, o seu desagrado ou mesmo rejeição do outro, que na maioria dos casos foi parte de uma parcela de território nacional, a (ex) colónia, mas que a metrópole não aceita ou não compreende no "seu" espaço original.
















BIBLIOGRAFIA

CASTRO, Isis Pimentel de, Pintura, Memória e História;

CHIODI, Analucia, Retratos da Memória Por Meio Da Pintura.
http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/15673/000688294.pdf?sequence=1

JUNIOR, Benjamim Abdala (2012), História Literária. Transcrição da Aula Magistral do curso Portugal e os Pós-Colonialismos: conceitos, contextos e vozes (1.ª edição: 2012/2013). Cátedra Eduardo Lourenço Universidade de Bolonha/ Instituto Camões/ Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

LOURENÇO, Eduardo, A Morte de Colombo.

MBOM, Clément, Edouard Glissant – De l´opacité à la relation.
http://www.edouardglissant.fr/mbom.pdf


NAVARRO, Diogo, Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Lisboa.
https://www.facebook.com/media/set/?set=a.216666768445522.41912.133464846765715&type=3

http://www.mnhnc.ul.pt/portal/page?_pageid=418,1802343&_dad=portal&_schema=PORTAL

SANCHES, Manuela Oliveira (org), Portugal Não É Um País Pequeno.

SANTIAGO, Silvano, O Cosmopolitismo do Pobre.

SEEMANN, Jorn, O Espaço da Memória E A Memória Do Espaço.
https://www.google.co.za/search?q=jorn+seemann+o+espa%C3%A7o+da+mem%C3%B3ria&ie=utf-8&oe=utf-8&aq=t&rls=org.mozilla:pt-PT:official&client=firefox-a&channel=np&source=hp&gfe_rd=cr&ei=MTiIU8DHDard8gfL2IDACQ

VECCHI, Roberto, Excepção Atlântica – Pensar a Lit. Da Guerra Colonial.


FILMOGRAFIA

HÁ CONVERSA, 6/05/2014.
http://www.rtp.pt/play/p692/e153180/ha-conversa/350202


REFERÊNCIAS FOTOGRÁFICAS

Imagem de Capa: Montagem da Exposição de Diogo Navarro " Dois Mundos" , Museu Nacional de História Natural, Lisboa, 2011.
Imagem 2: "África", Diogo Navarro.
Imagem 3: Moçambique, 2014.







NOTAS


Idem.

Chiodi, Analúcia, Retratos da Memória por Meio Da Pintura, p. 11.

Navarro, Diogo.

Vecchi, Roberto, Desfecho Temporário, p.7

As eleições europeias, que se realizaram entre quinta-feira e domingo nos 28 Estados membros, ficaram marcadas pela subida dos partidos eurocéticos numa série de países, sendo as mais simbólicas as vitórias da Frente Nacional francesa e do UKIP britânico, com votações superiores a qualquer outro partido nos respetivos países.
Segundo as projeções europeias de domingo à noite, os partidos eurocéticos deverão contar com mais de 140 deputados no próximo Parlamento Europeu.
Além da FN e do UKIP, elegem deputados partidos eurocéticos como o Partido da Liberdade Holandês (PVV), a Alternativa para a Alemanha, o austríaco Partido da Liberdade (FPOe), o italiano Movimento 5 Estrelas, o Partido Popular da Dinamarca, o húngaro Jobbik, entre outros.
http://www.tvi24.iol.pt/iol-push---politica/durao-barroso-europeias-eleicoes-tvi24/1557197-6185.html

MBOM, Clément, Edouard Glissant – De l´opacité à la relation.


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