Pós-modernismo no Quarteto de Cordas D. 887 de Schubert

July 25, 2017 | Autor: Liduino Pitombeira | Categoria: Franz Schubert, Music analysis, Postmodern Music
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XX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - Florianópolis - 2010

Pós-modernismo no Quarteto de Cordas D. 887 de Schubert Liduino José Pitombeira de Oliveira Universidade Federal de Campina Grande/ PPGM-UFPB – [email protected] Resumo: Este artigo pretende demonstrar a existência de características pós-modernas no Quarteto de Cordas D.887 de Schubert. Após um exame da estrutura da obra, com o auxílio de análise redutiva, algumas características singulares identificadas são relacionadas a uma série de definições de pósmodernismo estabelecidas por Jonathan Kramer. Palavras-Chave: Schubert, Quarteto D.887, Pós-modernismo, Fractais

1. Introdução Este artigo descreve conexões entre o primeiro movimento do Quarteto de Cordas em Sol maior (D. 887) de Schubert e o pensamento pós-moderno. Isto pode parecer completamente ilógico do ponto de vista cronológico, uma vez que Schubert é um compositor do início do século XIX e, dessa forma, certamente precedeu a era pós-moderna. Contudo, é possível detectar nessa obra estruturas morfológicas e harmônicas singulares, que trascendem os padrões do período da prática comum, para usar um termo de PISTON (1987, p.464) e mesmo, em certos aspectos, os padrões modernistas. Nossa investigação consiste de três fases: 1) Definição de pós-modernismo na música, 2) Identificação das características formais e harmônicas da obra e 3) Descrição das características pós-modernas na obra. 2. Pós-modernismo musical De acordo com Jonathan KRAMER (1996, p.22), o prefixo “pós” na palavra pósmodernismo não indica cronologia, ou seja, não indica uma fase que aconteceu após o modernismo, mas, em vez disso, sugere uma reinterpretação do modernismo. Assim, pósmodernismo pode ser entendido mais como uma atitude estética do que como um período temporal. Kramer também exemplifica, no mesmo artigo, que Mahler, mesmo sendo anterior a Schoenberg, teve uma atitude pós-moderna ao abandonar a recapitulação em sua Sinfonia Nº 7, e continuar inserido em um contexto tonal, enquanto Schoenberg teve uma atitude modernista ao tentar negar completamente o sistema tonal. Kramer também estabeleceu uma lista de características que definem a música pós-moderna: a) não respeita as fronteiras entre o passado e o presente, b) procura quebrar as barreiras entre valores populistas e elitistas, c) evita formas totalitárias, d) desacredita na oposição binária, e) inclui fragmentação e descontinuidade e f) apresenta múltiplos signficados e múltiplas temporalidades.

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3. Estruturas morfológicas e harmônicas e processos composicionais O Quarteto em Sol maior, D. 887, foi composto em 1826 e publicado postumamente em 1851 com o número de opus 161. O primeiro movimento dessa obra é estruturado na forma sonata com o emprego de variações em ambos os grupos. Segundo DAHLHAUS (1986, p.2), o uso de variações dentro do âmbito de uma forma sonata faz parte da tradição anterior e posterior a Schubert. Ao realizar esse procedimento composicional, Schubert mistura dois princípios estéticos. Por um lado, a forma sonata é uma estrutura com um objetivo bem determinado, o qual consiste em resolver um conflito dialético, em termos de polarização tonal, do primeiro com o segundo grupo temático, ou, de acordo com WEBSTER (1978, p.20), um conflito entre os próprios materiais temáticos desses grupos. Por outro lado, a técnica da variação não tem essa mesma direcionalidade estrutural da forma sonata e funciona somente como um comentário ao tema (DAHLHAUS, 1986, p.2). A estrutura da exposição pode ser observada no diagrama redutivo da Figura 1.

Figura 1. Diagrama redutivo da exposição

Ao justapor diretamente as formas maior e menor da tríade tônica no tema a1, Schubert introduz ambiguidade modal. Embora aceite perfeitamente ambas as tríades maior e menor como representantes válidos da tônica, como bem observa WEBSTER (1978, p.20), Schubert usa esse procedimento de ambiguidade como uma “idéia promissória”, parafraseando CONE (1986, p.13). Por exemplo, a ambiguidade Lá - Si aparece nos compassos 48-49, onde um acorde de sexta germânica se transforma em IV7 ou V7/ VII (um acorde introduzido no compasso 18), pela enarmonização do A. Schubert expande este elemento cromático em termos de pequena e grande escala. Em pequena escala, se transforma na figura retórica denominada passus duriusculus utilizada em a2. Esta figura retórica consiste em uma linha melódica cromática, ascendente ou descendente (BARTEL, 1997, p.357 ). Bartel ainda acrescenta que a carga expressiva de uma quarta cromática descendente, que é uma forma familiar do passus duriusculus, tem sido explorada por uma grande variedade de grandes compositores. Em larga

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escala, essa figura retórica representa a dicotomia formal entre variação (estática) e sonata (dinâmica). Se ampliarmos a idéia sugerida pela figura passus duriusculus observaremos que ela tem implicações estéticas profundas. Em primeiro lugar, ela introduz uma atmosfera modal: Sol (comp. 15) — Fá (comp. 17) — Mi (comp. 19) — Ré (comp. 19) é um arquétipo frígio. Esta atmosfera modal aparecerá mais tarde em b1, que soa como uma dança renascentista, devido a seu caráter rítmico e encadeamento de vozes. Em segundo lugar, sequências cromáticas sugerem o infinito. DAHLHAUS (1986, p.10 ) observa que a moldura violenta que Schubert impõe nas sequências cromáticas naturalmente infinitas (Sol-Fá-Fá-Mi-Mi-Ré...compassos 15-20) têm o propósito de preservar a tonalidade. No desenvolvimento, contudo, como veremos adiante, Schubert decide não conter este impulso cromático. Em terceiro lugar, o passus duriusculus introduz a semente para um idéia revolucionária no contexto musical do século XIX: a escala de tons inteiros. Este “sabor” de tons inteiros será um tópico central no desenvolvimento. Tal impulso já pode ser claramente observado em a2’’ (comp. 34), onde o baixo desce de acordo com o padrão Sol (comp. 34) — Fá (comp. 37) — Mi (comp. 41) — Dó (comp. 43) — Si (comp. 51). Contudo, aqui, esta progressão é subordinada ao impulso tonal geral: Dó se torna a sensível de Ré e atinge o Si (terça da tônica) via Dó (comp. 43-51). A transição apresenta um incomum movimento ascendente de quintas que conduzem até um acorde de Fá maior, que parece levar a lugar nenhum: é o V da mediante (Si menor), mas, como é comum em tais passagens escritas por Schubert, a ponte prepara para uma tonalidade “errada”, uma vez que o segundo grupo inicia na dominante. O segundo grupo consiste em um grupo de variações interpoladas com material transicional, que tem a clara função de conectar os dois principais centros tonais do grupo (V e III). O material que fecha a seção (b2) é baseada em elementos da transição. O desenvolvimento é o ponto de máxima liberdade e complexidade harmônica. A Figura 2 mostra a estrutura desta seção. Em d, a linha estrutural flui de um instrumento para outro como se fosse uma melodia solo intercalada com pequenas interrupções executadas por todos os instrumentos do quarteto. Na primeira vez que é apresentada, ela aparece claramente estratificada, com o violoncelo tocando e os demais instrumentos realizando as interrupções. Em d’, a linha estrutural é distrubuída entre o primeiro violino (comp. 189-191), o segundo violino (comp. 192-193), a viola (comp. 194-195) e o violoncelo (comp. 196-200). No compasso 201, já que o violoncelo

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está executando a melodia que aparece originalmente em a2’ (comp. 180), a linha do baixo é executada pela viola. Somente no compasso 207 a linha do baixo retorna para o violoncelo.

Figura 2. Diagrama redutivo do desenvolvimento

Nesta seção, a escala de tons inteiros e o passus duriusculus são os principais blocos composicionais. Podemos observar como uma representação em larga escala do desenvolvimento é uma expansão do passus duriusculus em movimento retrógrado: Ré (comp. 168) — Mi (comp. 180) — Mi (comp. 201) — Fá (comp. 218) — Fá (comp. 246) — Sol (comp. 249). A bela autosimilaridade encontrada nessa estrutura quase fractal revela quão poderosa era a mente de Schubert em termos de intelecto e intuição composicional. MANDELBROT (1977, p.34) afirma que a auto-similaridade ocorre quando cada peça de uma forma é geometricamente similar ao todo. Esta estrutura musical criada por Schubert pode ser mais uma constatação de que os grandes espíritos artísticos intuitivamente revelam antecipadamente importantes descobertas da cultura humana. O cubismo, por exemplo, ao introduzir uma representação bidimensional de um objeto multidimensional, nas artes visuais, intuitivamente mostrou que o tempo é uma dimensão, um conceito estabelecido por Einstein anos mais tarde. Este desenvolvimento revela de forma inequívoca a perfeita arquitetura de uma mente conectada com as perfeitas proporções da natureza. O mesmo impulso retrógrado que governa todo o desenvolvimento, como vimos no parágrafo anterior, aparece imediatamente no início da reexposição, quando Schubert repete a1 com uma diferença significativa: aqui, em vez do movimento Si-Si (comp. 2-3), o tema expressa essa díade em ordem reversa (comp. 279-280). Um esquema redutivo da reexposição é mostrado na Figura 3. Na reexposição, o segundo grupo temático tem uma forte polarização em direção à subdominante, como se pode observar claramente na redução da Figura 3. Essa seção é mais compacta, omitindo Tr2’’ e b1’’’. A coda reapresenta o motivo de tons inteiros introduzido no

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desenvolvimento e a peça é finalizada com o motivo maior-menor a1, como se para afirmar que aqueles “atos proibidos” expressados no desenvolvimento ocorreram apenas em sua imaginação.

Figura 3. Diagrama redutivo da reexposição

4. Características pós-modernas da obra Consideremos agora alguns aspectos da obra à luz da estética pós-moderna, com base em cada uma das características mencionadas por Kramer. a) Desrespeito às fronteiras entre o passado e o presente – poderíamos expandir esse conceito e afirmar que Schubert mistura nessa obra elementos de uma tradição anterior, tais como o passus duriusculus, atmosfera modal e o princípio da variação, com elementos revolucionários (e mesmo do futuro), tais com a escala de tons inteiros. Assim, a obra transcende o domínio estético clássico-romântico. A inclusão de arquétipos modais e da escala de tons inteiros num mesmo corpo composicional antecipa o que Debussy fará oitenta anos depois. b) Quebra das barreiras entre valores populistas e elitistas – os valores elitistas são representados aqui pela arquitetura intelectual perfeita da forma sonata; os valores populistas pela atmosfera renascentista de tradição oral do segundo grupo temático. Estes dois valores convivem pacificamente na obra. c) Evitação de formas totalitárias – a ambiguidade entre variação e forma sonata mostra a intenção de Schubert de evitar um modelo formal rígido. d) Descrédito na oposição binária – a ambiguidade maior-menor expressa nos momentos iniciais da peça é a chave para a obra como um todo. Tal ambiguidade, como observamos anteriormente, se expande em vários graus através da obra. Da mesma forma, ao iniciar a reexposição do segundo grupo em uma tonalidade inesperada, ele desacredita na polaridade dialética da forma sonata proposta pela tradição (especialmente Beethoven). e) Inclusão de fragmentação e descontinuidade – Dahlhaus diz que “a impressão deixada pelo desenvolvimento é de continuação ilimitada, que se interrompe como que por acaso e não porque um alvo foi alcançado” (DAHLHAUS, 1986, p.10). Da mesma forma, essa idéia de fragmentação é mostrada no final da transição no primeiro grupo. Espera-se uma transição que

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realize uma conexão suave entre o primeiro e o segundo gurpos. Aqui, Schubert termina a transição com um acorde de Fá maior e inicia o segundo grupo em Ré maior. O próprio uso da variação traz a idéia de descontinuidade, uma vez que esta técnica é dissolvida e desaparece completamente no texto. f) Apresentação de múltiplos signficados e múltiplas temporalidades – a peça é ao mesmo tempo tonal e modal, variação e forma sonata, “maior e menor”, restrita e expandida, elitista e populista etc. A noção de auto-similaridade, expressa na arquitetura do desenvolvimento, é uma metáfora da geometria fractal, que, por definição, apresenta signficados múltiplos. Referências: BARTEL, Dietrich. Musica Poetica. London: University of Nebraska Press, 1997. CONE, Edward, “Schubert’s Promissory Note: An Exercise in Musical Hermeneutics”, Schubert: Critical and Analytical Studies, ed. Walter Frisch. Lincols: University of Nebraska Press, 1986, p.13-30 DAHLHAUS, Carl. “Sonata Form in Schubert: The First Movement of the G-Major String Quartet, Op. 161 (D. 887)”, Schubert: Critical and Analytical Studies, ed. Walter Frisch. Lincols: University of Nebraska Press, 1986, p.1-12 KRAMER, Jonathan. “Postmodern Concepts of Musical Time”, Indiana Theory Review, Vol 17/2 (Fall 1996), p.21-61. MANDELBROT, Benoit. The Fractal Geometry of Nature. New York: W. H. Freeman and Company, 1977. PISTON, Walter and DEVOTO, Mark. Harmony. 5ª Ed. New York: W.W. Norton & Company, 1987; WEBSTER, James. “Schubert’s Sonata Form and Brahms’ First Maturity”, Nineteenth-Century Music, July 1978, V. 2, Nº 1, p. 18-35.

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