POSFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA - SÓCRATES E O DIÁLOGO SOCRÁTICO em Rossetti, L. (2015) \"O diálogo socrático\", Paulus Editora, 2015, São Paulo

June 22, 2017 | Autor: Nicola Galgano | Categoria: Plato, Socrates
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O diálogo socrático

Posfácio à edição brasileira1 Sócrates e o diálogo socrático

Laura Candiotto conversa com Livio Rossetti

G

ostaria de lhe perguntar, primeiramente, como nasceu este livro, traduzido agora para o português, e por que, depois de quarenta anos de artigos escritos sobre Sócrates, o senhor publicou uma coleção e não uma monografia (embora se trate, de fato, de uma coleção claramente orgânica, que pressupõe uma ideia precisa de Sócrates). Por que um tal livro? Não tenho dificuldade de reconhecer que a figura de Sócrates tenha sempre me posto em xeque. Confesso que tentei muitas vezes escrever um livro orgânico sobre o assunto. Se esse livro nunca saiu foi porque não consegui fazê-lo: tive sempre a impressão de que algo importante me escapava. Mas encontrei depois o hipnoterapeuta parisiense François Roustang, autor de um livro importante, Le secret de Socrate pour changer la vie (2009), e ele não só se convenceu de que eu tinha que escrever um livro, mas também reuniu alguns de meus escritos, propôs um índice e logo encontrou um editor. Se eu dissesse que só modifiquei levemente o índice, você não acreditaria, mas as coisas aconteceram basicamente assim. Isso aconteceu porque um livro virtual já existia, no sentido de que o senhor estava elaborando uma proposta interpretativa muito característica, bem identificável e registrada em artigos que, reunidos, já configuravam um sistema. É isso mesmo? 1

Esta conversa, originalmente escrita em italiano, foi traduzida para o português por Nicola Galgano (da USP).

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Sim, é mais ou menos isso... Portanto, eu não poderia ser senão grato a Roustang. Há anos é oferecida uma generosa seleção de artigos seus na internet: refiro-me ao seu rossettiweb.it/livio/, verdadeiro tesouro para os estudiosos de Sócrates. De fato, o senhor foi um dos primeiros a acreditar na importância da informática para a educação em filosofia e para uma difusão compartilhada. Basta pensar em seu Eutifrone interattivo e em seu recentíssimo Filosofia 2.0, escrito com Marco Bastianelli2. Quanto há de socrático em sua prática comunicativa? Se encontrarmos uma maneira de falar do Sócrates que “não escuta”, terei algo pertinente a dizer. Se for o caso, nos lembraremos disso depois.  Diga-me, então, sumariamente, em que consiste sua proposta interpretativa? Posso lhe dizer, se você me permitir falar do presente e não do passado. O quê? No sentido de também pôr em circulação algumas ideias que só elaborei depois da publicação do livro ou, ao menos, que não foram incluídas em O diálogo socrático. Está bem, eu tinha percebido isso ao ler sua resposta a Ramírez e Caserta3, na qual o senhor se concentra em um tema que no livro só tinha sido mencionado. Enfim, a ideia de Sócrates que o senhor elabora por último me interessa mais do que a presente nos artigos incluídos no volume de 2011. Quero dizer: o senhor continuou a investigar, e esta é, mais uma vez, uma postura propriamente socrática! 2 A informação básica está disponível em . 3 Na conclusão do amplo “Foro de discusión”, que se encontra em NOVA TELLUS, 30.2, 2012, pp. 277-305.

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Bem, me convenci de que o Sócrates dos muitos livros publicados ao longo do século XX e, especialmente, na segunda metade do século, é um Sócrates desgastado, privado de sua memorável criatividade e capacidade de atingir os outros. Tentei também redescobrir um Sócrates forte, criativo e muitas vezes agressivo que se destaca de modo notável em muitos diálogos. E também um Sócrates que não está interessado em fixar doutrinas... Ao contrário de Vlastos... Ah, sim. Vlastos identificou Sócrates com algumas doutrinas e fez dele um professor (e, devo dizer, não um grande filósofo). Era preciso finalmente voltar os holofotes para a literatura socrática antiga, para o diálogo socrático, ampliando o campo de observação para além da quadriga de Guthrie. Quadriga? Sim, no capítulo sobre Sócrates de sua História da Filosofia Gre4 ga , Guthrie começou dizendo que, ao invés de escolher entre os testemunhos de Aristófanes, Platão, Xenofonte e Aristóteles, era o caso de tentar montar a quadriga, isto é, utilizar os quatro. Na época, não demorei a chamar atenção para o fato de que, neste caso, haveria muitos outros cavalos na estrebaria, a maioria deles não utilizada: especialmente Ésquines de Esfeto e Fédon.  Que beleza! Eu proporia começar a dialogar a partir da pessoa de Sócrates, para depois, num segundo momento, tratar dos socráticos e da literatura socrática antiga, apenas para seguirmos alguma ordem. Está bem, me parece certo. Em Sócrates, este desconhecido5, o senhor faz um levantamento das novidades trazidas por Sócrates em seu tempo. Como elas 4

W.K.C. Guthrie, A History of Greek Philosophy, Cambridge UP. O segundo volume, dedicado aos Sofistas e a Sócrates, é de 1967. 5 O artigo, publicado na revista polonesa Peitho Examina antiqua, está disponível em . Ele não foi incluído em O dialogo socrático.

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se relacionam com as propostas já presentes na Atenas da época? Por exemplo, com a produção das muitas e criativas antilogias? Eu me limitaria a sustentar dois pontos: a antilogia foi concebida pelos sofistas como um discurso minuciosamente preparado com antecedência, pensado para impressionar um grupo inteiro de ouvintes mais ou menos cultos e suscitar neles uma perplexidade tenaz; Sócrates distinguiu-se pela decisão de evitar os monólogos longos e a relação um-muitos (isto é, orador-público), de dirigir-se especialmente ao indivíduo e de jogar magnificamente com a carta da imprevisibilidade nos desenvolvimentos da conversa. A inovação não poderia ter sido mais espetacular, creio. Espetacular, certamente. Mas estamos seguros de que o diálogo socrático era mesmo tão inovador? Ele não encontra suas raízes nos gêneros literários anteriores ou contemporâneos, especialmente no âmbito teatral? Escrevi no Diálogo a esse respeito, como você bem sabe. Além disso, um artigo muito recente de Fernando Santoro6 trata da questão, comentando algumas posições minhas. Sim, seguindo os vestígios de uma herança siciliana, com referência especial à comédia de Epicarmo! Eu próprio investiguei essa hipótese, mas, no final das contas, decidi abandoná-la, pois as semelhanças não garantem nada. Conceber um modo de ser, de viver a própria vida com intensidade e criatividade, de ocasionar um conjunto de narrativas é uma história que tem uma vida própria, que nasce de forças endógenas. Em comparação, o que poderia significar o fato de que em Atenas alguém tinha ideia das comédias de Epicarmo? O gênero do diálogo socrático é totalmente original. Então voltemos à novidade da qual, em sua opinião, Sócrates foi portador. O senhor anunciou também uma segunda contribuição totalmente nova. 6

F. Santoro, “Epicharmus and the plagiarism of Plato” in G. Cornelli, R. McKirhan, C. Macris (eds.), On Pythagoreanism, De Gruyter, Berlin-Boston, 2013, pp. 307322.

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A outra inovação consiste, se eu não estiver errado, em uma ideia diferente de excelência. O sofista almejou instigar a curiosidade intelectual, distinguiu-se como personagem brilhante e perseguiu o sucesso nas assembleias políticas, assim como nos tribunais, sem expressar uma desconfiança específica em relação às diversas formas de oportunismo (por exemplo, quando eram postas em campo as mais diversas atenuantes7). Sócrates, pelo contrário (e somente Sócrates), aprendeu a elaborar não só a recusa da relação entre profissional e alunos pagantes (isto é, clientes), mas também a recusa de algumas formas de oportunismo e, aos poucos, chegou a elaborar uma ideia inédita de excelência que incluía também a vergonha ou até mesmo se baseava nela. Por exemplo, a vergonha por uma conduta contraditória. Um longo discurso poderia ter lugar aqui. Prometo que retomarei a seguir a conversa sobre alguns desses pontos. Quero observar apenas que se Sócrates foi a figura que o senhor esboçou brevemente – uma figura, contudo, bem diferente da que comumente nos é apresentada, e não só nas enciclopédias –, então ele foi mesmo excepcional, ao menos por ter delineado algo como um ideal de vida amplamente inovador e por tê-lo dotado de um futuro imenso em nosso Ocidente (embora questionável em alguns de seus resultados). Suas ideias também são filhas da democracia? Vendo de longe, não me parece óbvio que seja assim. De fato, é lógico supor que a cultura sofística tenha se desenvolvido em concomitância com (ou na sequência de) o estabelecimento da democracia em Atenas, mas não se pode dizer que as ideias desenvolvidas por Sócrates tenham uma relação tão direta com a democracia. Elas no máximo a pressupõem. Esse tema também é muito interessante, mas só falamos dele porque falávamos das novidades das quais Sócrates foi portador. Voltando ao assunto, eu observaria agora o seguinte: sabemos 7 A esse respeito, ver o artigo mais adiante, nota 9 da página 278.

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que, no século quinto (aproximadamente, até Platão), a forma de expressão adotada pela filosofia não foi o tratado. Prevaleceu a busca de uma comunicação mais flexível, matizada e até mesmo mais problemática, e é possível que isso tenha gerado um terreno especialmente favorável ao desenvolvimento do universo mental de Sócrates. Como o senhor vê isso? Observo que o livro apenas toca no assunto, embora eu saiba muito bem que, ao menos segundo o senhor, não se trata de um detalhe. É verdade, o livro apenas toca no ponto, e este passa desapercebido, mas a questão é (ou, ao menos, penso que seja) de primeira grandeza. Tudo gira em torno de algo que poderíamos chamar de recuo autoral. Os mestres de Mileto inauguraram uma espécie de recuo autoral zero, no sentido de que, diferentemente dos poetas, não hesitaram em identificarem-se com suas teorias e apresentá-las como defensáveis. O que se tornou praxe entre os ditos filósofos da natureza para depois afirmar-se definitivamente com Aristóteles e seus alunos. Mas o que houve neste ínterim? Os paradoxos, as antilogias e os diálogos socráticos “abertos”. De Zenão e Protágoras a Platão (e em algumas passagens de Xenofonte), observa-se uma tendência difusa a não se expor daquele modo, preferindo-se a representação de situações e dando-se vida a uma cultura de ficção culta e instrutiva, mas que evita credenciar teorias sustentadas abertamente. É algo que é preciso levar em conta, pois, do contrário, surgem desentendimentos de peso. Por exemplo? Já é estranho que se fale com tanta certeza das doutrinas de Platão, ainda que ele permaneça sempre nos bastidores e evite cuidadosamente fazer emergir uma “lição” unívoca de cada diálogo, mas o que fizeram Vlastos e muitos outros estudiosos antes e depois dele? Tentaram identificar as teorias sustentadas por Sócrates apesar da ausência de condições para fazer isso com algum fundamento. No entanto, se Sócrates (assim como o próprio Platão) quisesse ter fixado algum ponto de seu ensino, não teria feito ao menos um esforço mínimo para isso? Ele sabia muito bem que outros tinham se dedicado e se dedicavam a fixar suas próprias ideias.  276

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Bem, de fato, seu argumento é forte. Por outro lado, é natural tentar identificar as doutrinas de Sócrates, ainda que elas venham à tona graças a um processo elaborado de “destilação” das fontes, e não se pode dizer que o procedimento não tenha dado frutos. Frutos modestos, diga-se de passagem. Além do mais, frutos condicionados à adoção de uma forma mentis de tipo aristotélico, isto é, à propensão a pensar que um intelectual seja obviamente identificado com suas doutrinas. Mas não é óbvio tratar a busca das supostas doutrinas de Sócrates como a coisa mais natural a ser feita. Considere apenas isto: quão enfraquecido vem a ser o Sócrates que teria se limitado a ensinar a unidade das virtudes e a negar o peso dos condicionamentos (akrasía). Não significa nada que ele tenha sido capaz de investir tanta energia em conversas com desenvolvimentos imprevisíveis e êxitos perturbadores, bem como na elaboração da ideia de excelência da qual eu falava há pouco (e em muitas outras coisas)? Claro, essas não são doutrinas estruturadas, mas sabemos que a formulação de teorias e argumentos muitas vezes acontece após a elaboração de uma orientação de pensamento e de determinadas linhas de conduta ou escolhas de vida.  Compartilho plenamente a ideia de que o estilo dialógico seja muito mais do que um mero acessório e que, além disso, reconhecendo suas múltiplas formas de expressão, se possa entender algo mais até das ditas “teorias”. De fato, as “teorias” não são independentes da forma em que são expressas. Quando se reconhece isso, percebe-se que as “teorias” socráticas parecem muito pouco com o que entendemos com a palavra “teoria”. No entanto, sinto a necessidade de problematizar e farei isso transcrevendo estas linhas de Franco Trabattoni8, que, por acaso, referem-se exatamente ao senhor: “‘Estabelecido isso’, Rossetti acrescenta, ‘metade da questão socrática é resolvida’ (81). Agora, se a questão 8

F. Trabattoni, “Socrate conteso: Platone e gli stoici”, in F. de Luise, A. Stavru (eds.), Socratica III. Studies on Socrates, the Socratics, and the Ancient Socratic Literature, Sankt Augustin, 2013, 106-118 (p. 110).

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socrática consiste em determinar o que é fidedigno e o que não está nos registros de nossas fontes, onde a análise de Rossetti é correta, será correta também a conclusão. Mas, se um aspecto importante da questão socrática consiste em perguntar se Sócrates tinha ou não uma filosofia própria que, no plano meramente teórico, ia além dos ‘modos de agir’ e da ‘lógica que se entrevê por trás de tais modos’, então o problema não está resolvido, pois tanto Xenofonte como Platão atribuem a Sócrates, além de modos de agir, algumas sequências teóricas precisas que, no entanto, muitas vezes se contradizem.” Como o senhor responderia a isso? Aliás, como responde? Parece-me que posso (e devo) afirmar novamente que não se trata de buscar doutrinas como se estivéssemos autorizados a apagar Sócrates dos livros de história da filosofia se elas não emergissem. Não, pois Sócrates se expressou de modo diferente daquele que consiste na oferta de teorias, ou seja, ele se expressou com um estilo de vida que era portador de forças inovadoras e, repito, sem sentir a necessidade de fixar suas ideias. Um exemplo, por favor! Pensemos apenas na akrasía. Na cultura grega dos tempos de Sócrates, era um costume a alegação de que somos condicionados de vários modos (pelos deuses e pelo acaso, pela ira e pelo amor, associados à cegueira), por isso nunca somos plenamente responsáveis por nossas ações. Relembro o memorável “e depois pões a culpa em Zeus”, que aparece nas Nuvens de Aristófanes (v. 1080, Discurso Injusto), e mais ainda o “conselho dos deuses”, com que se abre a Odisseia, já que aqui é o Zeus homérico que se queixa dos homens jogarem com má fé a culpa nos deuses a fim de se justificarem. Sim, de fato, o senhor escreveu isso em seu artigo Sobre la costumbre griega de culpar a los dioses, que é de 19879. 9

O artigo, publicado na revista mexicana Analogia, está disponível em . 278

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Exato. Encontramos esse costume especialmente nos oradores que presumem ser aquela uma desculpa sempre boa. Bem, Sócrates responsabiliza as pessoas, as leva a sentir vergonha e, portanto, a não buscar desculpas de nenhum tipo. Essa é uma novidade para sua época, e teve um sucesso evidente (até mesmo um grande sucesso, como você disse há pouco). Bem, nas mãos de Sócrates essa não é ainda uma doutrina, mas um modo de ser e um convite, que depois – só depois – tornou-se doutrina. Então, digo a Trabattoni: quando falo de modos de agir, refiro-me a inovações dessa magnitude, e elas são muitas. Outro exemplo, por favor! Com prazer. Consideremos o cuidado que Sócrates teve em evitar o enrijecimento dos papeis mestre-discípulo: não só nada de honorários, mas também recusa das ocasiões convencionais, costume de travar a conversa “instrutiva” à mesa ou na rua, no ginásio e até mesmo na cama: pensemos não só no Fédon (60bc) e no caso de Alcibíades no Simpósio, mas também na conversa com Hipócrates (em Protágoras 310b-). Agindo assim ele captou (com um senso de ocasião que cada um pode avaliar) a necessidade latente a que tentaram responder vários pedagogos modernos, de Tolstoi, Montessori e Dewey em diante. Qual era o sonho de todos eles? Uma escola não mais enrijecida, uma escola em que as relações fossem decentemente fluidas e, portanto, autênticas. Bem, Sócrates já tinha elaborado o sonho e à pergunta deles já tinha dado respostas precisas, tanto é que, em seu tempo, os pais podiam decidir se mandariam seus filhos à escola dos sofistas ou perambular com Sócrates. De fato, essas são coisas concretas e ensinos efetivos, ainda que não adquiram a forma de “pontos de doutrina”. Portanto, estilo de vida e discursos. Esse assunto me interessa muitíssimo! Alguns autores, que me são caros, abordaram esse aspecto: por exemplo, segundo Michel Foucault, é o dizer a verdade que se encarna na “vida verdadeira” ou, segundo Ludwig Wittgenstein, é uma certa coerência entre estilo e conteúdo ou, dito de outro modo, entre linguagem e metalinguagem o que temos que realizar em nossas vidas. O que, traduzido de modo muito banal, significa adequar o que se pensa ao que se diz. Todavia, em alguns 279

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casos, não se diz o que se pensa, em outros, age-se desse modo deliberadamente, a fim de produzir um efeito no interlocutor. Fiz essa divagação porque penso que era propriamente esse o espaço em que agia Sócrates e, talvez, também Platão. Não digo que não, mas decorre uma boa diferença entre quem, como Platão, escreve, formula e reformula mil vezes seus pensamentos, e quem, como Sócrates, não põe nada por escrito. Além do mais, no caso de Sócrates não podemos sequer confrontar a conduta com as palavras! De fato, aquilo que temos são representações ou evocações, ainda por cima quase todas benevolentes (o único escrito hostil, a dita Kategoría de Polícrates, de alguns anos após o processo, só é conhecido em parte e, mesmo assim, indiretamente). Mas isso não significa que Sócrates não tenha elaborado algumas “teorias” (ressignificando o termo, de acordo com o que foi dito, de modo a torná-lo mais móvel e gerativo) que atuavam no interior de sua prática comunicativa. De fato, quando se analisa os diálogos desse ponto de vista, é possível apreender uma espécie de “orientação”. Consideremos, por exemplo, o Êutifron: durante a busca da definição de tò hósion, os argumentos aduzidos servem para aprimorar uma definição que se tornará melhor do que a oferecida no começo. Isso não significa, talvez, que algo que orienta o diálogo emerge de algum modo? Não podemos chamá-lo de “teoria”? Eu me deteria no primeiro ponto: concordo que a prática comunicativa de Sócrates foi representada muitas vezes e de modo congruente (ela é reconhecível, possui algo inconfundível); concordo que essa sua prática nos fala não só de seu modo de agir, mas também da propensão a raciocinar de certo modo, de uma personalidade e de seu universo mental, mas podemos ir além? Para tentar isso temos que atravessar o filtro dos diálogos, aprender a lê-los também na contraluz, elaborar ideias sobre o que nos diálogos é próprio de cada autor, o que é testemunho a respeito do protagonista e depois tentar entender se há convergência, não acha?  Na verdade, eu iria além. Cometendo um grande anacronismo, eu sugeriria atribuir à época o dito nietzscheano de que 280

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a verdade é reconhecida como um remédio pior do que a doença, e também a abordagem hermenêutica de que “a verdade” nunca é independente do “círculo” em que foi produzida. Digo isso porque me parece que com o movimento sofístico, do qual Sócrates fez parte, emergiu uma consciência dos limites do tratado (do ponto de vista do estilo) e da verdade (do ponto de vista do conteúdo). Não queriam Sócrates e os sofistas negar aquela forma de verdade que, como um dogma, impõe-se à existência? Agora, isso não significa que o pensamento crítico esteja fora do horizonte da verdade. Significa, antes, que a verdade que Sócrates testemunha é algo diferente de uma teoria imposta. A tentativa de um Sócrates sofista não poderia ser exatamente a de fazer aparecer a verdade na performance, mais especificamente, na prática filosófica da refutação? Cara Laura, agradeço muito por essa sua nova intervenção. Tento responder com duas perguntas retóricas: você acha possível pensar que os sofistas tenham teorizado sobre os limites ou os inconvenientes do tratado? E você acha possível pensar que Sócrates tenha teorizado sobre os limites da verdade quando posta por escrito? Sabemos que Platão teve consciência disso, pois demonstra escrever “sem muita convicção”, no sentido de que nunca se esquece que nos escritos se cunha, inexoravelmente, uma parcela de “traição” do que é pensado e verdadeiro. Podemos até dizer que essa consciência “salva” Platão. Mas como se pode atribuir tudo isso ao universo mental de Sócrates e dos Sofistas? A não ser que se fale em termos de inclinação a pensar, testemunhada pela conduta, mas isso é muito diferente de ter (1) pensado, (2) procurado (e encontrado) as palavras e, por fim, (3) escrito. Quero insistir nisso. Está propondo que passemos de Sócrates aos diálogos e assim entremos nas questões específicas do livro, não é? Sim, talvez seja o caso. Enfim, que passemos aos muitos diálogos socráticos publicados na época... Interrompo-o: estamos falando de cerca de duzentos diálogos socráticos? 281

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Sim, não menos de duzentas unidades dialógicas. Esse ponto é tratado no primeiro capítulo. Continue, por favor. Além disso, eu disse lá que os muitos diálogos socráticos publicados na época exigem não só um acréscimo de atenção, visto que, até agora, tudo o que não é platônico foi excessivamente negligenciado... Interrompo-o novamente: percebo que quem diz isso é o fundador da International Plato Society, aquele que depois sentiu a necessidade de dar vida às conferências denominadas Socratica10. Dou um salto e continuo: não só por esta razão, mas também e sobretudo porque os diálogos socráticos, tanto aqueles escritos por Platão como os outros, são “obras de ficção” regidas pelo princípio do recuo autoral, por isso não é nada imediato entender de onde e até que ponto tais “ficções” fornecem uma informação confiável. Os textos, de fato, não o dizem, mas todos nós fomos educados a tratar o diálogo como um depósito de informações e ensinos geralmente confiáveis, sem dar a devida importância ao recuo autoral. Deste ponto de vista, há que se reinterpretar tudo! O senhor ofereceu alguns exemplos dessa reinterpretação, trabalhando especificamente com o Êutifron e com dois capítulos dos Memoráveis. Falemos um pouco do seu Êutifron de muitos anos atrás11, cujo ensaio introdutório é reproposto agora. Confesso que nunca ouvi falar do seu Êutifron. Como o senhor explicaria isso?

10 A informação básica está disponível em e, respectivamente, em . 11 O livro Platone, Eutifrone, com direção editorial de L. Rossetti (Roma, 1955), foi publicado junto com um Invito a dialogare con Socrate, pequeno livro acompanhado de um hipertexto em disquete. O amplo ensaio introdutório incluído no livro, “L’ Eutifrone come evento comunicazionale”, consiste agora no capítulo IV do Dialogue Socratique. Lembramos que o hipertexto foi sucessivamente atualizado e publicado em um CD-rom intitulado Un Eutifrone interattivo (Perugia, 2005). Uma versão demonstrativa da nova versão está disponível em .

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Digo apenas que, na época, o livro não foi lido e nenhum especialista se interessou por ele. Suponho que, uma vez que era muito diferente dos outros comentários a Platão ou que vinha acompanhado de um hipertexto, ele não se adequou ao padrão corrente. Mas voltemos à questão. Quem escrevia um diálogo socrático, fosse um Platão ou um Ésquines, inventava, criava ex nihilo uma situação narrativa. Para nossa sorte, fazia referência a algumas pessoas reais (sobretudo a Sócrates) e a uma vivência (às lembranças pessoais) das quais tirava a inspiração para conceber com muita liberdade sua história. Poderia ser de outro modo? Eu diria que não, realmente. Aliás, quando pensamos na necessidade de testemunho e na finalidade apologética dos diálogos socráticos, compreendemos melhor porque os escritores dos lógoi sokratikói usavam pessoas reais como personagens de suas obras. Mais do que isso, sempre para nossa sorte, quem se dedicou a escrever diálogos socráticos nas primeiras duas-três décadas sucessivas ao processo e à morte do mestre o fez não só por gosto pessoal, mas também para afirmar a si próprio, para evocar um passado que o honrava, para desenvolver ideias que julgava merecedoras de serem expostas e, sobretudo – digo, sobretudo – por pensar nas expectativas razoáveis do público, que de Sócrates conhecia ao menos alguma coisa e que, em todo caso, esperava ver delinear-se um passado reconhecível e, particularmente, um ou mais personagens reconhecíveis (sobretudo Sócrates), e assim por diante... Pare, por favor, não o estou acompanhando mais. Entendo. Além do mais, estou, de fato, resumindo um artigo que, em teoria, teria sido bom que eu o tivesse incluído em O Diálogo socrático. Qual? É intitulado The Sokratikoi Logoi as a Literary Barrier. Toward the Identification of a Standard Socrates Through the Dialogues, e data de 200412. 12

O artigo, disponível em , foi publicado em V. Karasmanis (ed.), SOCRATES 2400 years since his death, Athens 2004, 81-94. 284

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Conclusão drástica ou até mesmo drástica demais, não é? Não cabe a mim dizê-lo. Podemos dizer, contudo, ao menos que os diálogos socráticos são expressão de um intercâmbio comunicativo vivo entre Sócrates e seus interlocutores. Reconhecer e evidenciar as modalidades socráticas de propor e, de fato de conduzir uma conversa, seja do ponto de vista dos dispositivos microrretóricos, seja do ponto de vista das estratégias macrorretóricas, é uma contribuição sua importante para a comunidade científica. Debatemos já há algum tempo sobre a finalidade da utilização de tais técnicas. Poderia expor aqui sua posição? A quais resultados Sócrates visava quando se entretinha com seus interlocutores? Gosto desta pergunta. Na grande maioria dos diálogos aos quais temos acesso (e digo “grande maioria” porque há exceções, especialmente os diálogos mais marcadamente doutrinais de Platão), encontra-se sempre um Sócrates bem reconhecível (“sempre o mesmo Sócrates”, eu diria), e é um Sócrates que, com seu estilo de vida e sua conduta, torna-se portador de inovações poderosas em relação ao que sabemos do modo de viver e de pensar de seus contemporâneos. Por conseguinte, temos amplas oportunidades para pensar a respeito das novidades que ele pôs em circulação, mesmo sem nos determos especificamente nos pontos de doutrina que lhe são atribuídos. Em outras palavras, um grande grupo de diálogos nos fala do personagem e de seu universo mental, não tanto com as afirmações de caráter doutrinal ocasionalmente atribuídas a ele, mas com a representação de Sócrates pego no ato de interagir de trocar ideias.  Parece-me, porém, que o próprio gerar estranhamento no interlocutor já era um grande resultado! Por trás de tais performances, portanto, deve ter havido um projeto. O senhor não acha que as performances socráticas visavam a um fim? Primeiramente, uma menção ao estranhamento. De fato, em meu livro usei muitas palavras para enfatizar o lado agressivo do dialogar socrático e, por conseguinte, o sentimento de estranhamento que a conversa com ele muitas vezes acabava gerando. Agressividade e estranhamento estão evidentemente ligados a um contexto, a um tipo de mensagens, a 285

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um tipo de emoções que a conversa com Sócrates acabava provocando. Então você tem razão ao falar de um projeto, mas só no sentido de uma intenção não declarada, não expressa, talvez nem mesmo elaborada mentalmente, como acontece quando a intenção se resolve em fatos (em nosso caso: um certo tipo de interações verbais com os interlocutores assíduos e com os outros). Muitas pistas convidam a supor que o “projeto” de interação perseguida por Sócrates era uma daquelas coisas que fazemos, mas não dizemos, entre elas está a clara impressão de que havia muita imprevisibilidade em suas conversas. Em meu livro, Le vie de la confutazione13, tentei exatamente mostrar como a retórica socrática era funcional em relação à educação do interlocutor, do público e da cidade. Neste sentido, pode-se falar ao menos de um projeto não declarado, não explicitado? Claro, de certa forma, Sócrates sabe aonde quer chegar. Há também a sua capacidade de emocionar, a sua capacidade de incidir sobre a ideia que o interlocutor faz de si próprio e daquilo que não vai bem em seus hábitos de vida. Por sua vez, os socráticos, escrevendo diálogos, não se limitam a representar um tipo de excelência, mas encontram também um modo de lançar várias mensagens, incluindo aí o convite ao cultivo da filosofia. De “educação do interlocutor”, contudo, eu não falaria, parece-me demais. Para poder falar de educação é necessário pressupor, ao menos no que diz respeito aos autores dos diálogos, uma intenção mais precisa, e não me parece que isso aconteça. Você falou de finalidades políticas, no sentido de críticas aos políticos no poder e de uma tentativa de renovação social. Certamente, tais finalidades às vezes ganham forma, mas eu não generalizaria. Claro, não vamos generalizar. Pois estou convencida de que o método socrático seja “contextual”: as estratégias para realizá-lo e as finalidades perseguidas variam em função dos interlocutores. Um bom método para identificar as finalidades dos diálogos 13 Milão-Udine, 2012.

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socráticos consiste em partir de quem são os interlocutores de Sócrates. Sócrates refuta alguns porque pensa que eles podem melhorar e outros porque, refutando-os, os critica e os faz sentir vergonha diante da opinião pública. E o mais interessante é que para cada categoria há estratégias diferentes. Em seu texto o senhor descreve detalhadamente a estratégia do ridículo: como ela está ligada ao mecanismo da vergonha? Quais são os interlocutores a serem ridicularizados? Como é possível que tal estratégia não se torne técnica e, portanto, deixe espaço à improvisação? De início, eu observaria que aquela lista de dispositivos tinha a finalidade de enfatizar que existe uma retórica de Sócrates. Mas eu voltaria a investigar mais a estratégia em relação à qual cada movimento tem um sentido (a tipologia dos interlocutores vem depois, não?). Consideremos os muitos casos em que, depois de algumas preliminares, Sócrates toma conta da situação. Antes de tudo, a situação oferece a ele a ocasião a partir da qual consegue se mover com agilidade. Sócrates começa a partir daquilo que o interlocutor disse a fim de induzi-lo a se aventurar em territórios que não lhe são familiares e – parece-me que posso dizer – tal é o seu talento: levá-lo a ampliar os próprios horizontes, eventualmente sofrendo um pouco pelo fato de caminhar tateando ou de dar passos em falso. A aventura, contudo, acontece, e o interlocutor avança, ainda que com um sufoco crescente. Pagando um tal preço, ele consegue fazer uma viagem no impensado, acaba saindo mais rico e, se não for tolo, sabe apreciar. Hmmm..., estou ouvindo algo novo. Por acaso mudou de ideia a respeito de algo? Admito, mudei um pouco, sim. Em um artigo anterior, eu tinha enfatizado muito a diferença entre o andamento dialógico das preliminares e a propensão a tomar um rumo que, para o interlocutor, resulta desorientador, até que ele se sinta incomodado ou pior (como no caso de Alcibíades e de Eutidemo). Claramente, são duas fases objetivamente diferentes, tão diferentes que se pode dizer (com Walter Kohan) que, na segunda fase, Sócrates não escuta mais o que o interlocutor diz. Mas também me ocorreu pensar: é normal que ampliar os horizontes deste 287

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modo custe um certo cansaço, que se perceber exposto a uma objeção cause algum embaraço, que o inexperiente se encontre um pouco desarmado, ainda que, refletindo, chegue, talvez, à conclusão de que, se tivesse sido mais preparado, bem que teria respondido, insistido em manter certo ponto ou em fazer objeções. Tudo isso faz parte do esforço do pensamento, não lhe parece também? Pois, do contrário, se poderia cair em uma conversa que deixa as coisas como estão, ou seja, que não é ocasião para caminhar rumo ao desconhecido. Então, a seu ver, uma “descompensação” existe, mas tem sua própria lógica, e não seria justo um escândalo, como, no entanto, fizeram um tal de Kohan e depois um tal de Rossetti14. Sim, não posso negar que cheguei há pouco tempo às conclusões que acabei de formular. Talvez seja por isso que sempre adiei o projeto de escrever um livro sobre Sócrates: porque sentia que algo continuava a me escapar. Interrompo-o a fim de lembrar uma outra “descoberta” recente sua que se refere ao Zópiro de Fédon. O que o senhor acha de me dizer do que se trata? Você sabe que em setembro de 2013 aconteceu um congresso sobre as escolas socráticas menores15 e que estava prevista para aquela ocasião uma apresentação minha sobre o Zópiro, diálogo que eu tinha estudado durante um longo período até 1980 e do qual não voltei mais a tratar. Então, eu já tinha preparado com antecedência o meu paper quando, no final de julho, ocorreu-me notar algo elementar, mas que passou totalmente desapercebido durante milênios.   14

W.O. Kohan tratou do assunto em “Sócrates: la paradoja de enseñar y aprender”, in L. Rossetti - A. Stavru (eds.), Socratica 2008. Studies in Ancient Socratic Literature (Bari, 2010), 159-184; Rossetti, por sua vez, em “Un Socrate che non ascolta: per esempio nell’Eutifrone”, Peitho Examina antiqua 2.2011, 25-38 (disponível em ). 15 U. Zilioli (ed.), From the Socratics to the Socratic Schools. Classical Ethics, Metaphysics and Epistemology, New York-London, 2015.

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O que, precisamente? O lado surpreendente de tudo isso é que se trata de um dado objetivo, facilmente observável, de importância evidente, mas nunca notado. Mas isso é possível? Desafio você a demonstrar o contrário. Mas agora vou tentar dizer brevemente do que se trata. A história de Zópiro, narrada por Fédon, inclui uma confissão de Sócrates, a seguinte: Etenim sum, sed contineo, isto é: “Zópiro afirma que sou libidinoso e que tenho os olhos de pederasta, e é verdade, mas me contenho (isto é: contenho-me tão bem que vocês nem percebem)”. Nisso tudo, o mais extraordinário, em meu ponto de vista, é que aqui, como também no Alcibíades de Ésquines, ganha forma uma confissão ou confidência de Sócrates, acontece de ele próprio nos dizer que tipo de homem é, o que sente, qual é sua subjetividade. Coisa que não acontece desse modo em Platão ou Xenofonte. Por conseguinte, o valor testemunhal destas obras é muito alto, embora só as conheçamos em parte, e é bizarro que um aspecto tão significativo, apesar de conhecido há séculos, tenha passado totalmente desapercebido até agora. Não se encontra nada nem em Mondolfo, La comprensione del soggetto umano nell’antichità classica16. Hmmm... Fui pega de surpresa. Mas começo a entender o motivo de o senhor ter tido sempre a sensação de não estar totalmente preparado para escrever um livro sobre Sócrates: porque sobre o assunto existia (e evidentemente ainda existe) muito a ser descoberto. Acrescente a isso que a figura é complicada, costuma não revelar suas cartas, não explica por que tem certos comportamentos ou por que não hesita em causar sofrimento em seus interlocutores. Portanto, era necessário chegar a pôr o problema e depois buscar soluções que estivessem à altura do problema posto. Havia uma curiosidade que precisava ser ativada e dirigida, e era necessário “aprender” a interrogar mesmo o Zópiro e o Alcibíades. 16 Florença, 1958 (e agora Milão, 2012).

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Voltando a Sócrates: que ele possuísse um método (método que, de modo labiríntico, transformava-se em função dos contextos) e estivesse bem consciente disso, parece-me um ponto resolvido. O senhor, aliás, explicou que Sócrates praticou e ensinou a praticar pontualmente a evocação oral – depois escrita – de determinadas conversas. Se mantivermos esse ponto (e não vejo por que não mantê-lo), então diremos também que o próprio Sócrates chegou a objetivar muitos aspectos do seu dialogar. E mais, de tanto se comportar como “Sócrates” durante anos e anos, não teve como não se estudar e se compreender. O que me responde? Que você tem razão sobre isso também. Que, afinal, exagerei em tirar de sua figura para dar aos narradores. Então, retrato-me. Então... ? São duas coisas diferentes. Para começar, aceito redimensionar a importância do “Sócrates que não escuta”, tendo como base as considerações feitas há pouco. Mas você desloca o discurso dizendo: Sócrates estava bem consciente do que fazia. Bem, começo admitindo que devia haver algo de verdadeiro nisso, mas em seguida sinto a necessidade de enfatizar que a questão é muito complexa. Bem, pra mim isso basta. Vejamos agora em que poderia consistir a complexidade. Não sem observar que, mais uma vez, estamos indo muito além daquele Diálogo socrático do qual decidimos falar. O que devo dizer, então? Talvez “amicus Plato” fazendo referência ao livro? Pelo contrário, que o senhor não parou de refletir e de indagar, que esta não é uma conversa fictícia... mas, ao invés de hesitar sobre tais detalhes, eu pediria para caminhar decididamente rumo à complexidade. Onde o senhor vê a complexidade? OK. Em certo sentido a coisa é simples. Sócrates deve ter tido ocasião para refletir sobre o que fazia. Se ele também narrou a si próprio (isto é, se em certa altura sentiu a necessidade de contar e de fazer reviver alguns de seus encontros memoráveis), então é verossímil que a repre290

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sentação de si próprio em ação tenha sido traduzida como uma ideia precisa do que ele era, fazia, pretendia, evitava etc., e do motivo pelo qual se comportava de certo modo. Perfeito. Mas tudo isso arriscando comprometer sua própria espontaneidade e, então, sua própria credibilidade, isto é, correndo o risco de passar por alguém que representa a si próprio, não acha? zer?

Admito que não tinha pensado nisso. Neste caso, o que fa-

Acrescente a isso que os autores dos diálogos socráticos só podiam ir nessa direção, pois se punham a representar um personagem de nome Sócrates que se comporta como Sócrates, isto é, age (ou representa?) como Sócrates. Ao menos dois exemplos clamorosos nos dizem que essa era uma possibilidade real. Me vem à mente apenas o caso de Aristipo, capítulo 3 de seu livro. E o outro exemplo? O outro eu o veria na pequena cena com Querefonte, no início do Górgias platônico (447cd), quando o discípulo mostra que sabe construir muito bem a típica pergunta socrática e montar uma espécie de armadilha padronizada. Poderíamos acrescentar também aquela passagem da Apologia platônica, na qual Sócrates apresenta sua exortação, que tinha se tornado habitual e sempre a mesma (29de). Sabemos quanto é útil o paradigma teatral para interpretar os mecanismos educativos e quanto um educador deve representar, deliberadamente, um determinado papel para poder produzir um determinado efeito nos “educandos”. O filósofo da educação e pedagogo italiano Riccardo Massa17 foi um mestre no assunto. Temos então um Sócrates educador, parafraseando o título do livro belíssimo 17 R. Massa, Cambiare la scuola. Educare o istruire?,  Roma-Bari, 1997. Para um aprofun-

damento, ver a conversa com Duccio Demetrio, presente em .

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de Stenzel18. Mas já dissemos muitas vezes durante nosso diálogo que Sócrates não pode e não quer ser interpretado como um mestre. Quero dizer que ele soube forjar sua própria pessoa com exercícios cotidianos, dialógicos e não dialógicos, a ponto de não ter mais que representar. Podemos dizer, então, de modo mais simples, que Sócrates sabe o que faz, visto que o seu fazer é expressão direta do seu ser? Sim, claro que sim. Acrescento que, em meu ponto de vista, há sempre uma boa diferença entre estar consciente e teorizar a respeito daquilo de que se está consciente. Teorizar a respeito de algo significa construir um discurso sobre ele, identificar os pressupostos, dar um nome às coisas, enfim, dar muitos outros passos, ir muito além da mera consciência. Bem, não creio que há condições para se atribuir a Sócrates todos esses desenvolvimentos (ademais, com base em quais evidências?). Acrescente a isso que, se Sócrates tivesse percorrido esse terreno, então poderia também ter desejado fixar alguns pontos, ou seja, objetivar alguma doutrina sua, o que não ocorre. Conclusão: consciência, sim. Até mesmo uma certa complacência consigo mesmo? Sim, nos últimos anos. Mas não mais do que isso. Porém... vamos tentar olhar para o agir comunicativo socrático com base em uma perspectiva terapêutica. Sócrates tinha como alvo fazer com que seus interlocutores vivenciassem experiências capazes de influenciar seu estilo de vida. Como escreve Pierre Hadot19, o exercício filosófico de Sócrates é um “apelo a ser”. Você bem entendeu que sou relutante a denominar e a “definir” o que Sócrates faz. A expressão de Hadot, por exemplo, parece-me genérica e, ao mesmo tempo, ambiciosa demais. 18

J. Stenzel, Platon der Erzieher, Leipzig, 1928. Nesse famoso volume, intitulado Platão educador, Julius Stenzel evidencia o significado pedagógico da filosofia platônica, entendido como doutrina encarnada na vida dos homens e descrita por Platão nos quadros da vida social. Stenzel enfatiza a centralidade de Sócrates como figura que não entende a aprendizagem como obra do puro intelecto, mas como uma troca real, entre homens, motivada por éros. 19 P. Hadot, Qu’est-ce que la philosophie antique? Paris, 1995.

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Mas se insere perfeitamente numa concepção de filosofia como prática, que, mesmo não podendo ser generalizada, constitui ainda uma boa via para se entender algo do agir socrático. Mas, além disso, fico surpreendida com o adjetivo “genérica”. Por que genérica? Sinto a necessidade de lhe responder como respondi há pouco às palavras de Trabattoni: enfatizando que nosso personagem não se limitou a lançar mensagens nobres (por exemplo, “um apelo a ser”), embora tenha delineado novos modos – e muito estruturados – de conduzir a própria vida e a dos outros. Claro, Hadot provavelmente se ressente de certa influência existencialista ao cunhar tal expressão, mas acho que devemos começar a pensar em algo móvel e gerativo, não só no caso das “teorias”, mas também no caso deste “apelo a ser”: se aceitamos a proposta de Hadot, temos que tentar pensar em algo praticado e encarnado em primeira pessoa. Como o senhor sabe bem, as emoções, por exemplo, desenvolvem um papel central no “apelo” socrático. Mas atenção. Corremos o risco de passar da coisa às palavras. A mim interessa manter os olhos na coisa e, se uma palavra me expõe ao risco de perdê-la de vista, prefiro abrir mão da palavra. Enfim, com todo o respeito pelo mestre: a musa de Pierre Hadot não me desperta nenhum encantamento. Proponho, portanto, que volte às emoções. Especialmente à vergonha, como dizia no início de nosso diálogo. Em seu estudo sobre a estratégia do ridículo (cap. 5), ocorre que um dos efeitos buscados por Sócrates era exatamente o de provocar a vergonha. Qual é a psicologia socrática que preside tal concepção? Começaria notando que o tema da vergonha induzida por Sócrates não vai rumo ao sentido da “shame culture”, mas tende a delinear uma “guilt culture”20, não a vergonha vinda da falta de sucesso na sociedade, 20

A contraposição entre a cultura da vergonha e a cultura da culpa foi apresentada, como se sabe, por Dodds em The Greeks and the Irrational (Berkeley CA, 1951).

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mas a vergonha de quem pensa que poderia e deveria ter se conduzido de modo diferente, independente da opinião dos outros. Indícios convergentes ligam a vergonha à incoerência, e Sócrates parece “inventar” novos fatores de risibilidade, logo, uma ideia inédita de excelência com base na qual, aos seus olhos, alguns comportamentos tolerados, ou até mesmo plenamente aceitos, tornam-se fonte de vergonha intolerável. Uma emoção e uma incoerência: uma ligação sutil, mas fundamental, torna o agir comunicativo socrático uma prática a favor do interlocutor, do seu pensamento e do seu estilo de vida. Na famosa passagem sobre a sofística de linhagem nobre, o estrangeiro de Eleia (Platão, Sofista 230 b2-e5) diz que a purificação obtida pela refutação acontece graças ao reconhecimento da contradição articulada à vergonha sentida diante daquela (e assim também, enfatizo bem, diante dos outros interlocutores). Agora, se admitíssemos um fundo maiêutico no método socrático, poderíamos dizer que a cura do interlocutor (e eu acrescentaria também dos ouvintes e da cidade) acontece pelo diálogo. Se nos servíssemos das categorias médicas da homeopatia21 e do placebo, em sua opinião, qual das duas seria mais adequada para descrever o método socrático? Bem, deixemos o placebo de lado, sim? A imagem da homeopatia também me causa reservas, antes de tudo pela evocação da doença e da cura. Eu não diria que Sócrates assume uma postura de médico de doentes. Eu diria que ele se esforça para beneficiar as pessoas consideradas substancialmente sadias, talvez pouco reflexivas, que seria bom que elas repensassem seus hábitos de vida (neste perfil, talvez, seja exceção Alcibíades, especialmente na representação feita por Ésquines de Esfeto). Se prestar atenção, verá que essa é a atitude que Kierkegaard chamou de otimismo excessivo.   21

Refiro-me ao interessante artigo de A. Larivée, “Socrate et sa méthode de soin homéopatique dans le Gorgias”, in M. Erler-L. Brisson (eds), Gorgias-Menon. Selected Papers from the Seventh Symposium Platonicum (Sankt Augustin, 2007), 317-324.

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De acordo, mas, em seu livro, o senhor descreve o método socrático com a expressão shakespeariana “I must be cruel just to be kind”. De um ponto de vista teórico, mas também prático, surge-me uma dúvida: como uma via negativa pode conduzir a algo positivo? Não gostaria de descobrir um Maquiavel em Sócrates. Eu traduziria assim: às vezes é necessário ser duro se se quer que alguém abra os olhos, mas vale a pena ser duro, pois não é impossível que esse alguém consiga, finalmente, abrir os olhos. Vale a pena tentar justamente porque a batalha ainda não está perdida. Então não seria um otimismo excessivo? Em minha opinião, não. Sabe, Kierkegaard perseguia a ideia de fé como risco existencial, como escolha criativa, mas que só ganha forma enquanto iminente fracasso, desespero. Por conseguinte, a referência a Sócrates era, naquele contexto, um elemento acessório, uma imagem e nada mais. Mesmo quando é evidente que alguém se movimenta e investe energias importantes em outra pessoa (por exemplo, o habitual Alci­bíades), espera-se que algo possa acontecer, isto é, confia-se na pessoa que se faz sofrer na ocasião. Se entendi bem, esta nossa conversa não pode continuar infinitamente. Proporia tocar em um último assunto antes de parar, a saber, a dissimulação. Explique melhor, por favor. Podemos dizer que Sócrates é sempre insincero? Se ele sabe ser cruel, tendo um bem como fim, quer dizer que até o fato de ser um pouco cruel (como com o Eutidemo nos Memoráveis IV 2) é uma pose. Mas se lisonjeia o interlocutor, quer dizer que dissimula. E se o interlocutor não sabe para onde o discurso está indo, enquanto Sócrates sabe, mais uma vez, isso quer dizer que dissimula. Podemos dizer isso? Se sim, pergunto ao senhor: que tipo de educação se pode alcançar pela dissimulação? Possivelmente seria necessário se desvincular do mito romântico da sinceridade total e absoluta: não é verdade que caminhamos tateando a todo instante, não é verdade que somos plenamente nós mesmos e 295

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totalmente espontâneos apenas se não sabemos o que faremos daqui a dez segundos. Não se é genuíno apenas se não se tem ideia do que se está fazendo. O gesto amoroso, por exemplo, não é menos genuíno pelo fato de ser desejado, intensamente desejado, e até mesmo preparado cuidadosamente. Concorda? Bem, mesmo sobre esses últimos pontos, que são de importância vital, creio que, socraticamente, temos que continuar a dialogar. Não porque não conseguimos apanhar algo verdadeiro, mas precisamente porque, eu diria, estamos no bom caminho. Mas proporia parar neste ponto. Agradeço pela extraordinária experiência dialógica. Espero que, conosco, os leitores também possam ter posto em movimento aquele dispositivo especial que é a pesquisa socrática. O que dizer? Compartilho plenamente desse seu pensamento.

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