Posse da Terra e Governança Justa na África Lusófona

May 31, 2017 | Autor: Alfredo Manhiça | Categoria: Natural Resource Management, Good Governance, Land Grabbing, Usurpação da terra
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE POSSE DA TERRA E GOVERNANÇA JUSTA NA ÁFRICA LUSOFONA PERSPECTIVA ESPIRITUAL A PARTIR DA ENCÍCLICA “Laudato Sì”.

Intervenção na Conferência Internacional Promovida Pelo Symposium of Episcopal Conferences of Africa and Madagascar (SECAM) para a África Lusófona – Beira 07.06.16 Alfredo Manhiça

Introdução Na sua célebre obra – Discurso sobre a origem das desigualdades humanas –, o filosofo francês do século XVIII, Jean Jaques Rousseau, observa que o primeiro homem que cercou um lote de terra e disse “isto é meu”, e encontrou pessoas suficientemente simples para consenti-lo, foi o verdadeiro criador dos maiores males para a sociedade, pois o Estado surge a partir de um contrato social, não para garantir o direito de todos, mas o direito daqueles que detém a propriedade privada, (Cfr, Rousseau, 1997, p. 132). Embora seja difícil fundamentar coerentemente as especulações de Jean Jaques Rousseau sobre a origem do poder político, certo é que a sua asserção indica a situação conflitual, permanentemente existente, entre o direito positivo e o direito natural, e antecipa a moderna questão sobre a redistribuição dos bens da terra e a necessidade de preservar os recursos naturais da terra incluídos o ar, a água, a terra, a flora e a fauna e especialmente amostras representativas dos ecossistemas naturais, de modo a serem de benefício para as gerações presentes e futuras (Cfr. Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, 1972, Princípio º 2). A Revolução Científica iniciada no século XVI convencera o Homem de que a natureza seria uma fonte inesgotável de riqueza e ele, valendo-se da ciência, poderia satisfazer, de forma ilimitada, os próprios desejos de conforto e consumo, dominando e colocando a natureza ao próprio serviço. Papa Francisco, apresenta a sua Carta Encíclica – Laudato sì – Sobre o Cuidado da Casa Comum (a Terra) como “um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta” (Laudato sì, 14). Esta urgência é justificada pelo facto que, não obstante, na mesma Encíclica, o Papa reconheça a existência de sinais evidentes do incremento do empenho da comunidade humana no melhoramento do relacionamento Homem-Meio Ambiente (Cfr. Laudato sì, 7 - 8), lamenta que “muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabem, com frequência, frustrados pela recusa dos poderosos e pelo desinteresse dos demais (Cfr. Laudato sì, 14). Ainda nas páginas introdutivas da sua Carta Encíclica, o Santo Padre invoca São Francisco de Assis e diz ter tomado o seu nome por guia e inspiração, no momento da sua eleição para Bispo de Roma, por aquele ser “exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral”. O Papa diz ainda que Francisco “era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo (Laudato sì, 10). Muito embora no nº 11, Papa Francisco se refira à crise representada pela degradação progressiva do Meio Ambiente como o motivo que o levou a escrever a Carta Encíclica, ao dizer que o relacionamento que Francisco de Assis tinha com a natureza “ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual ou um cálculo económico, porque, para ele, qualquer criatura era uma irmã̃, unida a ele”, o Papa quis, com certeza, convidar a humanidade, a rever o próprio relacionamento com a Terra, enquanto fundamento de todos os recursos necessários para a sobrevivência do Homem e de todas as outras criaturas. Eis porquê razão a Carta Encíclica – Laudato sì – é sobre o genérico cuidado



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da Terra, que Papa Francisco chama de “Casa Comum”. A criação da Terra e de tudo o que ela contém (inclusive a espécie humana) é apresentada no Livro de Géneses, simultaneamente, como um hino de louvor e uma profissão de fé no Deus eterno e transcendente que chamou todas as coisas à vida pelo poder da sua palavra. Papa Francisco diz que aquelas narrações “sugerem que a existência humana se baseia em três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra” (Laudato sì, 66). De facto, depois de os ter criado à sua imagem e semelhança, numa relação (criou-os homem e mulher, Gen 1, 27), Deus (o Criador que não foi criado) colocou-os no Jardim para o cultivar e guardar (Gen 2, 15); dominando sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu , sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra (Gen 1, 26). O domínio que Deus delegou ao Homem sobre as outras criaturas não deve, no entanto, ser de tipo despótico ou imprudente; pelo contrário, sobre o Homem pesa a responsabilidade de “cultivar e guardar” (Gen 2, 25) os bens criados por Deus, como um fiel administrador. Portanto, cultivar a terra significa não abandoná-la à própria sorte; exercer domínio sobre ela significa cuida-la como um rei sábio cuida do seu povo e um pastor do seu rebanho (Cfr. Compandio della dottrina social della Chiesa, 255). Este tipo de domínio exige que se preste contas quer a Deus, na sua qualidade de Criador, como a cada um dos entes criados, na sua qualidade de beneficiários da tutela confiada à acção humana. A não observância dos ditames estabelecidos pelo Criador, no cuidado e domínio da criação, acarreta a ruptura da comunhão com Deus que, por sua vez, provoca uma ruptura de união interior da pessoa humana, da relação de comunhão entre os Homens, e da relação harmoniosa entre a pessoa humana e as outras criaturas (Cfr. Gaudium et spes, 13). A narração do pecado original (Gen 3, 1-24), descreve a tentação permanente, da parte do Homem, de querer exercer o domínio sobre a terra, não segundo o desígnio do Criador e, simultaneamente, a situação consequencial de desordem na qual a humanidade se encontra, depois do pecado. O reconhecimento, da parte do Homem, da gratuidade de Deus na criação do universo, deve corresponder a um dever de ser sinal visível e instrumento eficaz da mesma gratuidade divina, em relação às outras criaturas, no jardim em que Deus o colocou como cultivador e custódio da criação. Um outro aspecto que a teologia do “Hino ao Criador” do Livro de Génesis saliente é que o direitodever da pessoa humana de dominar a terra, derivante do seu ser imagem de Deus, cabe a todos, não só a alguns. Ao afirmar categoricamente a pertença divina da Terra (Levíticos 25, 23), a Sagrada Escritura contrapõe-se à antiga civilização egípcia, onde a terra pertencia ao faraó e os camponeses eram seus servos e sua propriedade; e contrapõe-se também à civilização babilonesa, onde vigorava uma



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estrutura feudal: o rei entregava as terras a troco de fidelidade e serviços. Em Israel, a terra é de Deus que a dá a todos os seus filhos. A afirmação do direito comum da posse da terra faz derivar consequências precisas na vida concreta do povo de Deus: em primeiro lugar, a ninguém é lícito privar da posse da terra a pessoa que a tem em uso, de outro modo violar-se-ia um direito divino; nem sequer o poder político o pode fazer. Emblemático a este propósito é o episódio da vinha de Nabot (1Re 21). Em segundo lugar, é negada qualquer forma de posse absoluta e arbitrária da terra, exclusivamente para vantagem própria: não se pode fazer o que se quer dos bens que Deus deu a todos. Foi à luz desta visão da propriedade que os profetas como Isaías, 5, 8 e Miquéias 2, 2, condenaram severamente as prevaricações dos ricos, que obrigam os pobres e os camponeses a ceder os seus terrenos familiares. O Pontifício Conselho “Justiça e Paz” observa que, a Doutrina Social da Igreja, não obstante afirme a exigência de assegurar a todos os seres humanos, sempre e em qualquer circunstância, o gozo dos bens da terra, apoia também o direito natural à apropriação individual destes bens, enquanto conferem a cada um a extensão absolutamente necessária à autonomia pessoal e familiar, e devem ser considerados como um prolongamento da liberdade humana (Cfr. Para uma melhor distribuição da terra, 29). Todavia, o mesmo Pontifício Conselho salienta que a propriedade particular, quaisquer que sejam as formas concretas das suas instituições e das suas normas jurídicas, é, na sua essência, um instrumento para a realização do princípio da destinação universal dos bens (Cfr. Ibdem). O direito à propriedade particular, válido e necessário por si mesmo, deve ser circunscrito dentro dos limites de uma substancial função social da propriedade. O limite ao direito de propriedade particular é posto pelo direito de cada ser humano ao uso dos bens necessários para viver. O tema que reúne as Comissões de Justiça e Paz dos Países da África Lusófona, aqui na cidade da Beira - Posse de terra e governança justa na África lusófona -, encontra a sua pertinência no fenómeno, cada vez mais extensivo, da expropriação ilícita de terras aos camponeses, por parte das empresas multinacionais, não só na África lusófona, mas em todo o continente Negro. Quer pela procura de matérias prima para alimentar as indústrias, quer pela caça às terras aráveis, observou-se, nas últimas décadas, um renovado interesse pela África, da parte das antigas potências coloniais, e um aumento progressivo de interesse por partes dos novos actores mundiais. A este propósito, alguns estudiosos dos fenómenos políticos internacionais, como Pádraig Carmody e Franca Roiatti, já falam respectivamente de “New Scramble for Africa” e de “Nuovo colonialismo”, indicando a intensidade com a qual nas últimas décadas registou-se (e contínua a registar-se) a expansão das várias formas de actividade econômica baseadas no uso dos recursos naturais em direção das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos autóctones. Este fenómeno se integra no grande designo da globalização da economia mundial que, segundo os seus promotores, é destinado a trazer, no longo prazo, o bem estar para todos.



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Estranhamente, todavia, na maioria dos casos, a difusão das grandes empresas agrícolas, a realização de empreendimentos hidro-eléctricos, a exploração dos recursos minerais, do petróleo e das madeiras das florestas nas áreas de expansão da fronteira agrícola são planificadas, decididas e implementadas pelas empresas multinacionais, com o consentimento das classes dirigentes locais, sem nenhuma consultação das populações locais, cujos direitos naturais são completamente ignorados. Mesmo se se conferisse um voto de confiança à boa fé dos paladinos da globalização, a verdade é que, no xadrez global, nem todos partem da mesma posição e, por isso, nem sempre os resultados que se obtêm são do tipo “win-win”. Existem, muitas vezes, os vencedores e os vencidos, no jogo global. A crise dos refugiados que atravessam as fronteiras regionais da África e, por fim, atravessam o Mediterrâneo à procura de fixação nos outros continentes, é reflexo de muitos equívocos do fenómeno da globalização, entre outros, a questão da posse da terra. Na opinião internacional tem-se preferido associar a crise dos refugiados com as guerras civis ou tribais, com o terrorismo, ou com a fome, evitando desse modo abordar a questão da posse da terra. Aparentemente, a expropriação das terras às populações locais, em favor dos megaprojectos das empresas multinacionais, acontece no âmbito da legalidade. Mas, de facto, o que se considera direito de propriedade sancionado pela lei, está em conflito com o direito ao uso do solo derivante de uma ocupação e de uma pertença cujas origens se perdem no tempo. Para fazer valer o direito positivo que não respeitou o direito natural, as companhias multinacionais, e os outros usurpadores de terras, instauram o clima de terror para vencer a resistência das populações locais consideradas, ironicamente, “invasores” nas próprias terras. O estabelecimento preciso dos direitos das partes em conflito, e a determinação justa das compensações destinadas às populações locais, no caso de uma expropriação necessária e finalizada para um bem maior, são tornados impossíveis pelas deficiências na administração da justiça em quase todos os Estados africanos e, em particular na África lusófona, pela indiferença em relação aos instrumentos jurídicos internacionais relativos ao respeito dos direitos humanos, e pela difusa prática da corrupção ao alto nível. O silêncio da lei ou a não identificação precisa da pessoa ou da entidade que a deve fazer observar, abre o espaço para uma gestão danosa dos recursos da terra, e o consequente enriquecimento ilícito de muitos homens e mulheres sem escrúpulos, que trabalham na administração dos vários recursos da terra. Depois de observar que nos nossos tempo, “crentes e não-crentes estão de acordo que a terra é, essencialmente, uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos”, Papa Francisco nota que “para os crentes, isto torna-se uma questão de fidelidade ao Criador, porque Deus criou o mundo para todos” (Laudato sì, 93). Mais adiante, citando o nº 19, da Carta Encíclica Laborem exercens, de João Paulo II, Papa Francisco salienta que “o princípio da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens e,



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consequentemente, o direito universal ao seu uso é uma ‘regra de ouro’ do comportamento social e o ‘primeiro princípio de toda a ordem ético-social’” (Laudato sì, 93). Mas esta “regra de ouro do comportamento social” é um programa de vida, como era programa de vida a instauração do Reino anunciado por Jesus durante o seu percurso de Galileia a Jerusalém. O Reino se instaura só com a Morte e a Ressurreição. A encarnação do princípio do direito universal do uso dos bens da terra, que Papa Francisco e São João Paulo II chamam “regra de ouro do comportamento social” exige, como diz Bento XVI, a “transformação da teologia em pastoral, isto é, num ministério pastoral muito concreto, no qual as grandes visões da Sagrada Escritura e da Tradição sejam aplicadas à acção dos bispos, dos sacerdotes [e de todos os cristãos] num tempo e num lugar determinados. O principal desafio da Igreja em África é – como bem disse Bento XVI – ser o sal da terra e luz do mundo (Cfr. Africae Munus, 6), iluminando a vida sociopolítica e económica pela Boa Nova de Jesus Cristo. Alfredo Manhiça



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Bibliografia Papa Francisco (2015). Carta Encíclica “Laudato sì” sobre o cuidado da casa comum. Maputo, Moçambique: Paulinas. Papa Bento XVI (2011). Exortação Apostólica Pós –Sinodal Africae Munus. Maputo, Moçambique: Paulinas. Roiatti, F. (2010). O novo colonialismo = Il nuovo colonialismo: Caccia alle terre coltivabili. Milano, Italia: Università Bacconi Editore. Rousseau, J. J. (1997). Discursos sobre as ciências e as artes; sobre as desigualdades entre os homens = Discorsi sulle scienze e sulle arti; sull’lorigine della disugualianza fra gli uomini. Tradução de Rodolfo Mondolfo. Milano, Italia: Biblioteca Universale Rizzoli. Carmody, P. (2012). A nova corrida para a África = The New Scramble For Africa. Cambridge, UK: Polity Press. Gaudium et Spes (1992). In Concílio Ecuménico Vaticano II. (11ª ed.). Braga, Portugal: Editorial Apostolado da Oração, pp. 345 - 418. Pontificio Consiglio della Giustizia e della Pace (2004). Compêndio da doutrina social da Igreja = Compendio della dottrina sociale della Chiesa. (3ª ed.). Citá del Vaticano, Italia: Libraria Editrice Vatican. Pontifício Conselho de “Justiça e Paz”. (1997). Para uma melhor distribuição da terra. Recuperado em http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc _19980112_distribuzione-terra_po.html. Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano – 1972 (Declaração de Estocolmo). Recuperado em http://www.apambiente.pt/_zdata/Politicas/DesenvolvimentoSustentavel/1972_Declaracao_Estocolmo.pdf.





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