Possíveis diálogos entre educação musical etnomusicologia e novas tecnologias

September 26, 2017 | Autor: Márcio Miranda | Categoria: Music, Education, Educação e Novas Tecnologias
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POSSÍVEIS DIÁLOGOS ENTRE EDUCAÇÃO MUSICAL, ETNOMUSICOLOGIA E NOVAS TECNOLOGIAS. Márcio Antônio de Miranda RESUMO O presente trabalho procura discutir sobre como podemos utilizar as novas tecnologias na educação musical tendo como suporte a etnomusicologia. O educador musical enfrenta inúmeros desafios em sua profissão. Desde a falta de infraestrutura das escolas públicas até a ausência de uma legislação específica que determine a formação musical como fator primeiro para lecionar em escolas públicas. Com a revolução tecnológica, novos desafios são postos a todos nós, em especial aos professores e, neste caso, ao professor de música: o educador musical. As tecnologias mudam nossos hábitos, mudou nossa forma de ouvir música, de produzir música, de ler livros e revistas, de nos comunicarmos e possivelmente modificará nossa forma de ensinar música. Para que possamos compreender essas mudanças e ser agentes delas na educação musical, faz-se necessário uma reflexão a respeito de como essas novas tecnologias devem e podem nos auxiliar na educação musical.

PALAVRAS-CHAVE: educação musical, etnomusicologia, tecnologia.

2 A casualidade dos encontros nos surpreende a todo instante. Para o educador musical essa casualidade pode se apresentar como um desafio a ser superado, uma possibilidade para novas soluções que serão movidas pela “... inventividade particular, desenvolvida pela reflexão de cada educador-inventor sobre

sua realidade

única.”(NAVEDA, 2006). O ambiente da escola onde fomos encaminhados para iniciarmos os trabalhos como bolsistas do PIBID/CAPES, é um ambiente escolar “padrão” das escolas municipais da cidade de Belo Horizonte: prédios paralelos, pátio central, quadra de esportes, biblioteca, cantina, sala dos professores, estacionamento. Não há um local específico para aulas de música, o que não é uma característica única do município, sendo que esse fato pode ser - em parte - creditado ao impacto da lei Lei 5.692/71, durante o período militar, que empreendeu uma reforma educacional gradativa e aos poucos fez com que o ensino de música nas escolas deixasse de existir. Isso faz com que pensemos, enquanto educadores, de que maneira a Lei Nº 11.769/2008 - que estabelece a obrigatoriedade do ensino de música nas escolas de educação básica - pode implantar esse ensino atendendo suas necessidades básicas de infraestrutura, quais as orientações pedagógicas e qual a formação dos professores que trabalharão nesses espaços. Para trabalharmos a educação musical em um cenário tão impactado pelas políticas de educação como o nosso, e em face ao momento em que novas tecnologias surgem diariamente com a crescente demanda por novidades que o avanço tecnológico nos proporciona, é necessário que reflitamos a respeito da onipresença de certos equipamentos em sala de aula, seu constante uso em nosso cotidiano, e de que maneira podemos utilizá-los no ensino de música. O avanço tecnológico mudou, muda e mudará nossos hábitos. O que anteriormente era distante, agora nos parece próximo. A simultaneidade das informações e com ela o aumento de fluxo dessas informações nos auxilia, angustia e confunde. O professor hoje precisa lidar com as facilidades com que se obtêm informações, conteúdos, referencias e mesmo aulas. Há tempos que a maneira de obtermos informações não se restringe mais aos jornais, bibliotecas e TV. Há um mundo de canais de informação, trocas de arquivos, vídeos, blogs, sites, sites de vídeo etc. O aprendizado hoje não se restringe mais aos livros físicos, CDs, aos muros da escola, nem depende unicamente da curadoria do diretor de TV ou da figura do professor. Ouvimos música, assistimos vídeos, divulgamos nossos trabalhos, nossas vidas, nossas convicções, fotos, romances, poemas, artigos, resenhas etc. em redes sociais e tantos outros canais de

3 informação. Para fazermos todas essas “simples” operações, precisamos apenas de um equipamento que está presente em nosso dia a dia, em todas as casas, em todos os lugares, inclusive nas salas de aula: o Smartphone. O primeiro smartphone foi projetado pela IBM e vendido pela BellSouth (anteriormente parte da AT & T Corporation) em 1993. Ele possuía uma interface touchscreen2 para acessar seu calendário, agenda de endereços, calculadora e outras funções. Como o mercado amadureceu e os componentes dos computadores tornaram-se mais baratos ao longo da década seguinte, os smartphones se tornaram mais semelhantes aos computadores, e serviços mais avançados tais como acesso à Internet, tornaram-se possíveis. Serviços avançados tornaram-se onipresentes, com a introdução da chamada terceira geração (3G) das redes de telefonia móvel em 2001. Antes do 3G, a maioria dos celulares podia enviar e receber dados suficientes apenas para chamadas telefônicas e mensagens de texto. Usando 3G, a comunicação ocorre em altas taxas de bits, suficiente para enviar e receber fotos, vídeos, arquivos de

música,

e-mails,

e

muito

mais

(HOSCH,

2012,

,

Vários estudantes da rede pública de ensino nunca tiveram contato direto com instrumentos musicais ou acesso à educação musical. A esse fato podemos relacionar a política educacional e econômica desenhada ao longo da nossa história e tê-la como determinante para que tais dificuldades de acesso ao ensino de música existissem. Ao contrário do contato com a música que esteve e está

sempre presente em nosso

cotidiano em maior ou menor grau. Com a estabilidade econômica brasileira desde os anos 90 e os avanços tecnológicos na área da informática e telefonia, a massificação do uso desses equipamentos é patente. Tanto que eles passam a fazer parte da formação do sujeito moderno, como relata Carly Shuler (SHULER, 2009), no trabalho Pockets of Potential, onde , segundo a Kaiser Family Foundation (EUA), a quantidade de tempo que crianças a partir de oito anos de idade passam na escola é equivalente à que elas passam entretidas com “diferentes telas” (celulares, computadores, tablets, TV, games, etc). Isso seria bom ou ruim? Shuler evidencia a importância dessas tecnologias na formação do indivíduo moderno, e destaca o programa de TV estadunidense do fim da década de 60, Sesame Street (Vila Sésamo no Brasil), que tinha forte engajamento pedagógico no seu conteúdo. Carly Shuler acredita que nossos modernos celulares - Smartphones - têm um papel semelhante ao da televisão naquela época, e que a sociedade

deve considerar esses aparelhos como

4 ferramentas pedagógicas. Destaca também a importância de haver um olhar criterioso por parte dos governos, com ações de incentivo à criação e desenvolvimento de aplicativos voltados para o público infanto-juvenil que tenham finalidades pedagógicas e/ou de cunho sociocultural. Diante do desenvolvimento tecnológico e a facilidade de acesso a esses equipamentos, mais a onipresença dos smartphones em sala de aula, nos parece pertinente e oportuna sua utilização para fins estéticos, expressivos, pedagógicos, socioculturais e artístico-musicais.

Para falarmos da utilização destes equipamentos para promovermos a educação musical de forma abrangente sem ignorar o sujeito, seu meio, seu comportamento e particularidades, precisaremos do suporte da etnomusicologia e para isso falaremos do pensamento de dois estudiosos. O primeiro, Alan Merriam, em seu trabalho The Anthropology of Music (1964) propõe estudar a música sob uma perspectiva ampla de base tri-partite em que o estudo do fenômeno musical deverá ser feito em três pilares fundamentais que interligam o som, conceito e comportamento; esses níveis dependem e interferem um no outro. Segundo Merriam, entender a música como uma construção sociocultural onde o contexto dessa construção está ligado à produção do som, faz com que o pesquisador seja obrigado “ver” além das estruturas sonoras. Ver além das estruturas sonoras faz com que o pesquisador não trate essas estruturas sonoras como meros fenômenos acústicos. Esse entendimento, segundo Merriam, seria uma das características principais da etnomusicologia. O segundo, John Blacking, frequentemente citado nos estudos de educação musical, em seu livro How Musical is Man? (1973), propõe uma análise da música na cultura e na sociedade, e também da sociedade e da cultura na música, afirmando o quão fundamental é a relação sociocultural para criação do som enquanto música. John Blacking acredita que o etnomusicólogo precisa estar atento aos fatores “não sonoros” presentes na geração de música. Com base no pensamento desses dois autores, relataremos a experiência vivida em sala de aula com uma turma de adolescentes com idades entre 14 e 17 anos em uma escola municipal da cidade de Belo Horizonte. Durante o período de três meses de trabalho em uma escola pública da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, como bolsista do PIBID/CAPES, pude perceber a insuficiência de equipamentos e ausência de espaço apropriado para o ensino de música na referida escola. Tanto inexistência de espaços apropriados para o ensino de música

5 quanto a insuficiência de equipamentos para este fim, são reflexos da política educacional do nosso país, do nosso estado e do nosso município. Não se trata de uma particularidade da escola. Como também não é uma particularidade dessa escola o forte uso de outros equipamentos: os celulares. Pude perceber que a utilização de Smathphones é comum, quase orgânica, sobretudo entre adolescentes, com os quais tive a oportunidade de trabalhar em sala de aula e que relato essa experiência agora. O nossos encontros para o estudo de música geraram muitas expectativas. Para a maioria esse foi o primeiro contato com o estudo de música e possivelmente será o único em uma escola municipal de ensino regular, já que estão concluindo o ensino médio. Para conhecê-los e para que me conhecessem também, começamos por conversar a respeito do prazer em ouvir música, prazer em cantar, em dançar. Conversamos a respeito de gosto musical, de hábitos. Começamos a identificar quais os estilos preferidos por eles, quais os menos preferidos, onde ouviam música, de que forma ouviam música e quais músicas eram ouvidas em casa. Quais músicas eram ouvidas pelos pais, ouvidas por eles na infância, quais brincadeiras continham música e como se relacionavam com essas atividades. Percebendo um certo distanciamento entre eles, uma certa vergonha e receio de se expor, propus que fizéssemos um aquecimento corporal em um grande círculo. Passaríamos a fazer esse exercício de aquecimento e entrosamento e quase todos os nossos encontros. Esse aquecimento corporal tinha o objetivo de, além de nos aquecermos, promover a integração entre nós. Fizemos exercícios rítmicos com os pés, com as mãos, nos alongamos e relaxamos. Voltamos a conversar a respeito de música e estilos. Como eram muitos os estilos preferidos, e como não dispunha de um acervo tão vasto assim, perguntei à turma se havia algum meio de nos mostrarem, exemplificarem seus gostos musicais. Sugeri que cantássemos. Minha sugestão não foi acatada, estavam ainda muito tímidos para tanto. Propus que falássemos mais sobre nossas preferências. Aceitaram a proposição e optaram por exemplificar suas músicas preferidas utilizando o telefone celular -smathphone – como equipamento. Neste momento apareceram vários celulares com inúmeras músicas e pudemos conhecer o gosto pessoal de alguns alunos. Ao ouvirmos algumas músicas, procuramos identificar nesses exemplos alguns indícios e contextos em que elas teriam sido compostas, o que representam. Começamos a imaginar se a música era urbana ou rural, se soava moderna ou antiga. A música em questão era da banda estadunidense “Red Hot Chilli Pepers” e chama-se “Californication”. Chegamos a conclusão que tratava-se de uma música urbana e sua sonoridade não nos parecia antiga. Identificamos

6 batidas que nos remeteram ao funk, ao rock e ao rap americano. Conversamos a respeito da origem do rap e do funk americano e percebemos que ambos estilos musicais são urbanos, de origem negra e desenvolvidos em contextos sociais carentes de recursos financeiros, educacionais. Percebemos que outras músicas e estilos musicais foram desenvolvidos em situações parecidas, em “paisagens sonoras” parecidas, mas únicas. Falamos do funk brasileiro, do samba, do sertanejo, da música religiosa, da música erudita... Propus que em nossos encontros procurássemos ouvir as músicas dos colegas procurando identificar indícios que nos remetam às condições propícias para a produção ou geração daquele som, como nos sugere John Blacking.

Percebi que muitos

fundamentos musicais como grave, médio e agudo, já estavam sedimentados e, por se tratar de adolescentes, meu trabalho com educação musical deveria ser desenvolvido levando em consideração essa particularidade além de todo o contexto em que estávamos inseridos. Especificamente nessa turma, minha atenção foi direcionada para o fato de que a forma de se ouvir música hoje e a forma de interagirmos com música nos dias atuais mudou definitivamente. A utilização dos Smathphones em salas de aula fez com que eu procurasse trabalhar a educação musical de outra forma, principalmente com a turma de adolescentes em questão. Passei a propor que compuséssemos nossas canções, nossas bases rítmicas, nossas letras. Propus que passássemos a “olhar” atentamente ao nosso redor para percebermos quais sonoridades fazem parte do nosso cotidiano e de que forma esses sons podem fazer parte dos nossos estudos, já que fazem parte do nosso dia a dia. A experiência que tive com esse trabalho, esse encontro com a turma de adolescentes, abriu meus olhos e ouvidos para duas questões que merecem reflexão: ouve-se música hoje da mesma forma que ontem? As novas tecnologias devem ser ignoradas ou reprimidas no ambiente escolar? Essas dúvidas motivaram esse breve relato e esse artigo. Acredito que tivemos uma boa experiência e acredito que a educação musical pode se beneficiar das novas tecnologias, para tanto se faz necessário que pensemos em formas, conteúdos apropriados e direcionados para este fim. Tratando a música como algo mais significativo que um “mero fenômeno acústico”, como nos diz Merriam, dedicando atenção aos fatores “não sonoros” presentes na geração de música, a etnomusicologia nos oferece um rico suporte teórico que pode dialogar com a educação musical e novas tecnologias. O ensino de música nas escolas brasileiras de ensino básico, embora obrigatório (Lei Nº 11.769/2008), permanece sem o apoio material necessário para sua efetiva implantação. As escolas

7 públicas carecem de estruturas mínimas necessárias para promoção do aprendizado musical. Em outras palavras, somente a lei que torna obrigatório o ensino de música nas escolas não é suficiente para permitir e promover este ensino. O desenvolvimento tecnológico que presenciamos diariamente parece não ter a mesma rapidez dentro dos equipamentos públicos. Enquanto esse desenvolvimento não ultrapassa os muros das escolas, e as necessidades de infraestrutura não são atendidas, cabe aos educadores musicais desenvolver alternativas para promover o ensino de música. Para tanto é urgente o desenvolvimento de estudos que promovam o diálogo entre diferentes áreas do conhecimento. Os avanços tecnológicos, principalmente na área de telefonia e internet, nos oferecem grandes possibilidades para o desenvolvimento de alternativas pedagógicas que possam nos auxiliar na educação musical. Essas ferramentas, que não substituem a utilização de instrumentos musicais, mas que dispõem de recursos que permitem interação com o fazer musical, podem nos auxiliar e mesmo ampliar o alcance deste fazer

musical para construirmos uma

“educação musical” que dialogue com seu tempo e novas tecnologias com suas possibilidades e recursos. Para tanto é de extrema urgência que educadores e poder público fiquem atentos. É necessário que tomemos frente na produção e desenvolvimento de conteúdos e ferramentas (softwares, aplicativos) pedagógicas. Entendendo que música não é somente música, e atentos aos fatores “não sonoros” que envolvem a geração de som, como nos fala John Blacking, podemos desenvolver técnicas de ensino-aprendizado que promovam a expressividade e criatividade dos estudantes de música. Essa expressividade, o ambiente sonoro em que estão inseridos, a vivência musical de cada aluno ou grupo de alunos, nos fornece material indispensável para o entendimento de nossa história sonora, nossa paisagem sonora Shafer (1989) onde estamos inseridos. O ensino de música deve fundamentar-se em estudos que levem em consideração o desenvolvimento amplo do fazer musical. Esse desenvolvimento se dá simultaneamente com o desenvolvimento histórico, social, cultural e tecnológico. É possível que estejamos em um momento propício para refletirmos a respeito de algumas questões: onde o sujeito está inserido na produção musical em um contexto urbano hiperconectado? Não seria negligência ignorar as novas tecnologias ou subestimá-las? Qual o papel do professor em um mundo hiperconectado? Qual o papel do educador musical em um mundo hiperconectado?

Acreditamos que estes

equipamentos podem ser poderosos aliados para o desenvolvimento do aprendizado. As tecnologias são desenvolvidas para nos auxiliar no dia a dia e tem o poder de mudar

8 nossos hábitos e nos identificar. É este o caminho que o artista, o educador musical, o educador-inventor percorrerá. Caminho repleto de desafios onde sua “...inventividade particular, desenvolvida pela reflexão de cada educador-inventor sobre sua realidade única.”(NAVEDA, 2006) será decisiva para prosseguir.

REFERÊNCIAS

BLACKING, John, How musical is man? Seattle: University of Washington Press,1973. HOSCH, William L. Smarthphone. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2014. MERRIAM, Alan P. The Anthropology of Music. Northwestern University Press,1964. NAVEDA, Luiz Alberto Bavaresco de. Inovação, anjos e tecnologias nos projetos e práticas de educação musical. Revista da ABEM, Porto Alegre, V.14, 65-74, mar. 2006. O FUTURO DO APRENDIZADO MÓVEL: IMPLICAÇÕES PARA PLANEJADORES E GESTORES DE POLÍTICAS. Brasília: UNESCO. 2014. Anual. ISBN: 978-85-7652-188-4. SCHULER, C. Pckets of pottential: using mobile Technologies to promote children’s learning. New York: The Joan Ganz Cooney Center at Sesame Workshop, 2009. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2014. SCHAFER, Raymond Murray. O ouvido pensante. Tradução de Marisa T. O. Fonterrada, Magda R. G. Silva e Maria Lúcia Pascoal, São Paulo: Editora UNESP, 1991.

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