\"Pra quê rimar amor e dor?\": Compreensões iniciais acerca da análise do discurso.

May 29, 2017 | Autor: Angelo Ardonde | Categoria: Clarice Lispector, Lingüística, Análise do Discurso, Michel Pêcheux
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Angelo Gabriel Uehara Ardonde, graduando em Letras pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 22/08/2016.

"PRA QUÊ RIMAR AMOR E DOR?": COMPREENSÕES INICIAIS ACERCA DA ANÁLISE DO DISCURSO
Ao longo deste breve texto, algumas considerações serão traçadas em relação a propostas e conceitos centrais à análise do discurso. Paralelamente, tais reflexões serão desenvolvidas e melhor exemplificadas a partir de trechos referentes a duas músicas — uma de Caetano Veloso e outra de Belchior — bem como a uma obra literária de Clarice Lispector.
Pretendo, a partir dessa abordagem, valorizar a abertura para que tais teorizações linguísticas não fiquem restritas a uma esfera acadêmica hermética e distanciada de nosso cotidiano enquanto falantes; para que assim, enquanto sujeitos de linguagem, possamos compreender em exemplos na música e na literatura os princípios constitutivos da estrutura linguística e, consequentemente, não fazer do espaço das discussões acadêmicas um lugar de estranhamento em relação a nossa própria língua.
Com a análise do discurso, teóricos da linguagem como Michel Pêcheux se propuseram a desenvolver uma releitura estruturalista sem, com isso, nortear a compreensão da língua à ideia de um sistema fechado e dissociado da história. A análise do discurso é, nesse sentido, uma teoria herdeira da linguística que inova ao inscrever-se a uma filiação epistemológica materialista; assim ela anuncia que, por se definir como a língua em funcionamento na história, nenhum discurso é neutro. Desse modo, na contramão de uma tradição formalista, a estrutura linguística passa a ser afirmada como um sistema simbólico aberto à polissemia e, imprescindivelmente, no interior de embates sociais e ideológicos.
Para salientar tal caráter polissêmico que é constitutivo à língua, PÊCHEUX (2008) cita as seguintes afirmações formuladas por J. Milner: "nada da poesia é estranho à língua" e "nenhuma língua pode ser pensada completamente, se aí não se integra a possibilidade de sua poesia" (p. 51). A possibilidade de criação poética, nesse sentido, diz respeito à abertura característica da estrutura linguística que — tomando como referência não necessariamente o âmbito dos significados — nos permite relacionar seus termos a partir de múltiplas possibilidades associativas.
Trata-se, assim, de uma ressignificação dos seus sentidos preponderantemente estabilizados, de forma a quebrar a relação de aparente transparência que o senso comum estabelece entre a palavra e seu respectivo significado. Disso decorre que as palavras não significam por si mesmas — no sentido de uma essência acima do plano social — mas a partir de uma tensão entre a unidade/diversidade que constitui a língua como tal em seus diferentes espaços. Nos termos de PÊCHEUX (2008, [1983]),
o objeto da linguística (o próprio da língua) aparece assim atravessado por uma divisão discursiva entre dois espaços: o da manipulação de significações estabilizadas, normatizadas por uma higiene pedagógica do pensamento, e o de transformações do sentido, escapando a qualquer norma estabelecida a priori, de um trabalho do sentido sobre o sentido, tomados no relançar indefinido das interpretações (p. 51).
Permitir e emergência da poesia: tal característica fundamental à língua é levada em conta por Caetano Veloso quando, na música Mora na filosofia, ele indaga repetidas vezes se haveria um motivo para associarmos os termos amor e dor. Assim ele clama ao longo da música: "pra que rimar amor e dor?". Teriam esses dois sentimentos significados em comum? Seria a relação entre eles de afinidade ou de oposição? Ou, talvez, a associação possível de se estabelecer entre essas duas palavras não representaria nada mais que a rima, uma mera similaridade fonética?
Com a análise do discurso, o que podemos salientar a partir dessas perguntas é que as possibilidades de significação para amor e dor são várias, bem como as interpretações sobre os parâmetros comparativos que as relacionariam. A partir de perguntas, não depreendemos respostas — no sentido de fatos e soluções verdadeiras ou falsas — mas interpretações que se relacionam e se confrontam com outras possibilidades de entendimento.
No entanto, não se pode afirmar que toda e qualquer interpretação seja válida, uma vez que as possibilidades interpretativas se circunscrevem no interior de horizontes delimitados pela história. Desse modo, a partir de uma perspectiva materialista, tanto discurso como sujeito devem ser entendidos no interior de contextos sócio-históricos: o discurso a partir de suas determinadas condições de produção (as que possibilitam e sustentam os sentidos na história) e o sujeito — aquele responsável pela interpretação do mundo — sempre delimitado pela materialidade das determinadas posições sociais em que ele se insere.
Trata-se, portanto, de um sujeito descentralizado; conceito fundamental a se levar em consideração na análise do discurso. Em oposição a uma noção idealista de sujeito que tudo pode, fonte de seu próprio discurso, a perspectiva materialista afirma na noção de sujeito — como aquele que não é dono de seus próprios passos — a existência de processos sociais e ideológicos que o delimitam no interior de relações de força e que não podem ser desconsiderados.

"Qualquer canto é menor que a vida de qualquer pessoa": incompletudes.
No sentido de uma releitura estruturalista — como foi mencionado anteriormente — a análise do discurso retoma o conceito saussureano de valor para pensar as relações que se estabelecem entre discursos e diferentes produções de sentidos que, no campo das relações sociais, disputam constantemente seus lugares por prestígio e legitimação. SAUSSURE (1979) afirma que
quando se diz que os valores correspondem a conceitos, subentende-se que são puramente diferenciais, definidos não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente, por suas relações com outros termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros não são (p. 136).
Desse modo, inseridas em um sistema linguístico aberto e constitutivamente caracterizado pela incompletude, as múltiplas leituras do mundo traduzidas em discurso são colocadas em contraposição — em uma comparação pautada nas diferenças (no não-dito) — em relação a outras possibilidades de atribuição de sentido. Através de uma perspectiva de leitura influenciada pela análise do discurso, nesse sentido, os textos terão muito a dizer a partir de seus silêncios.
Um discurso que é dito sempre o é em detrimento de outros omitidos. Isto retoma o princípio que determinamos anteriormente, de como não há discurso que seja neutro, com a noção adicional de que nunca se pode reduzir toda a multiplicidade de vozes a falarem sobre o mundo em um único discurso; é nesse sentido que a análise do discurso postula a incompletude constitutiva da linguagem.
Tal característica fundamental à língua pode ser explicada, com um vocabulário menos academicista, através da música Como nossos pais, em que o cantor Belchior anuncia como "qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa". Ou seja, não há discurso (canto, poesia, solução religiosa ou científica) que dê conta de explicar toda a experiência humana; pois viver ultrapassa qualquer tentativa de entendimento. Inclusive, o nosso reconhecimento disso se inscreve em uma formação discursiva anterior a esse texto; ele retoma, por exemplo, a afirmação de Clarice Lispector sobre como, referindo-se à protagonista de um de seus romances,
"não entender" era tão vasto que ultrapassava qualquer entender – entender era sempre limitado. Mas não entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao Deus (...). Mas de vez em quando vinha a inquietação insuportável: queria entender pelo menos o bastante para ter consciência daquilo que ela não entendia. Embora no fundo não quisesse compreender. Sabia que aquilo era impossível e todas as vezes que pensara que compreendera era por ter compreendido errado. Compreender era sempre um erro – preferia a largueza tão ampla e livre que era não entender.
Nesse trecho, na mesma afiliação das reflexões propostas pela analise do discurso, o entendimento é compreendido como um meio de tender à homogeneidade — isto é, à eleição de conhecimentos verdadeiros, legitimados como tal em detrimento de outros — consequentemente apagando ou reduzindo a pluralidade dos demais discursos em constante circulação nas sociedades e na história.
De fato, a perspectiva materialista — à qual filia-se a análise discurso — salienta a consideração de como sujeito e mundo se inter-relacionam mutua e continuamente: o mundo impõe aos sujeitos uma demanda interpretativa (a inquietação insuportável que Clarice descreve) e esses, por sua vez, olham para o mundo através de uma estrutura linguística que, no interior de seu jogo de significações, engloba discursos produzidos a partir de diferentes posições de sujeito, através de vozes mais ou menos preponderantes socialmente.
Para concluir (ou melhor: para não concluir), lanço-me a parafrasear Clarice: entender é sempre limitado; não entender, na contramão das amarras de tal limitação, coloca-nos frente a frente com o infinito. Isto é, não nos prendermos inflexivelmente a teorias e certezas leva-nos a tomar consciência sobre a incompletude da linguagem — sobre como o mundo não se reduz a tudo o que já se disse e que ainda poderá ser dito sobre ele — na direção de um sem-fim para todas as tentativas de atingirmos uma conclusão definitiva.

Bibliografia:
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem, ou, O livro dos prazeres: romance. 6. ed. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 1978. 175 p.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. 5. ed. Campinas, SP: Pontes, 2008. 68 p.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 9. Ed. São Paulo, SP: editora Cultrix, 1979. 279 p.
Músicas mencionadas:
Belchior: Como nossos pais, do álbum Alucinação (1976).
Caetano Veloso: Mora na filosofia, do álbum Transa (1972).


LISPECTOR (1978), p. 42-43.

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