Pragmatismo e Retórica na Política Externa Brasileira do Governo Lula

Share Embed


Descrição do Produto

FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO ESCOLA PÓS-GRADUADA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Celbi Vagner Melo PEGORARO

PRAGMATISMO E RETÓRICA NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DO GOVERNO LULA

SÃO PAULO 2010

FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO ESCOLA PÓS-GRADUADA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Celbi Vagner Melo PEGORARO

PRAGMATISMO E RETÓRICA NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DO GOVERNO LULA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola Pós-Graduada da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Política e Relações Internacionais. Orientador: Profº Doutor Moisés da Silva Marques

SÃO PAULO 2010

PEGORARO, Celbi Vagner Melo. Pragmatismo e Retórica na Política Externa Brasileira do Governo Lula / Celbi Vagner Melo Pegoraro. – São Paulo: 2010. 61 f.; 30 cm. Coordenação Flávio Rocha de Oliveira; Orientação Moisés da Silva Marques. Trabalho de conclusão de curso (Especialização) em Política e Relações Internacionais - Escola Pós-Graduada em Ciências Sociais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, 2010. Inclui referências bibliográficas. 1. Política externa. I. Título.

FOLHA DE APROVAÇÃO

Autor: Celbi Vagner Melo Pegoraro

Título: PRAGMATISMO E RETÓRICA NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DO GOVERNO LULA

Conceito: 10,0

Banca examinadora:

Orientador: Profº Doutor Moisés da Silva Marques

Assinatura:_________________________________

Coordenador: Profº Doutor Flávio Rocha de Oliveira

Assinatura:__________________________________

Prof.(a): Assinatura:___________________________________

Data da Aprovação:____/____/____

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos meus pais, Celina Beu Melo Pegoraro e João Carlos Pegoraro. À minha mãe pelo total apoio moral e financeiro na realização do curso e ao meu pai pelas discussões em torno dos temas desta pesquisa.

AGRADECIMENTOS

Agradeço inicialmente, e com grande respeito, ao Prof. Dr. Moisés da Silva Marques por ter aceitado meu convite para orientar-me e pelas valiosas sugestões e instruções para a elaboração desta pesquisa acadêmica, tornando possível uma maior compreensão dos aspectos formadores da política externa brasileira.

Agradeço ao coordenador do curso de pós-graduação em Política e Relações Internacionais da FESPSP, Prof. Dr. Flávio Rocha de Oliveira (também ministrante das disciplinas Teorias das Relações Internacionais e Segurança Internacional) pelo empenho em manter a alta qualidade docente e da grade curricular, e pelo diálogo franco com os alunos.

Os agradecimentos se estendem também ao excelente corpo docente do período 2008-2009: Prof. Ms. Renatho José da Costa (História da Ordem Internacional e Segurança Internacional – módulo: Terrorismo), Prof. Dr. Paulo Luiz Miadaira (Economia Política Internacional), Prof. Ms. Igor Fuser (Política Externa Brasileira e América Latina Contemporânea), Prof. Dr. Paulo Roberto Loyolla Kuhlmann (Segurança Internacional – módulo: Segurança e Defesa na América Latina), Prof. Ms. Marcelo da Silva Sobrino (Direito Internacional), Prof. Ms. Carlos Alberto Cordovano Vieira (História Econômica), Prof. Dr. Thiago Moreira de Souza Rodrigues (Geopolítica do Narcotráfico), Prof. Dr. Petronio Di Tilio Neto (Ecopolítica Internacional) e novamente ao Prof. Dr. Moisés da Silva Marques (BRIC e Unasul).

Agradeço também pela convivência com os colegas que tanto colaboraram com discussões referentes ao curso, e às questões de importância para o Brasil nos intervalos das aulas e durante os almoços divertidos. Pela dinâmica da formação das turmas, sempre em mudança, cito aqui alguns nomes que representam meus agradecimentos por todos: começando pelo grande colega e amigo Plínio Teodoro, Maria José Lobo, Damaris Giuliana, Carina Urbanin, Fabio Simões, Joilson Silva, Giovani Eduardo, Jacira Werle, Marília Melhado e Roberto Brasileiro Prado.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIEA – Agência Internacional de

MERCOSUL – Mercado Comum do

Energia Atômica

Sul

ALBA – Alternativa Bolivariana para as

NAB – New Arrangement to Borrow

Américas

NAFTA – Tratado Norte-Americano de

ALCA – Área de Livre Comércio das

Livre Comércio

Américas

NIC – Newly Industrialized Countries

ALC-UE – Cúpula América Latina e

OCDE – Organização para Cooperação

Caribe - União Europeia

e o Desenvolvimento Econômicos

BID – Banco Interamericano de

OMC – Organização Mundial do

Desenvolvimento

Comércio

BNDES – Banco Nacional de

ONU – Organização das Nações Unidas

Desenvolvimento Econômico e Social

PAC – Programa de Aceleração do

BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China

Crescimento

CGC – Conselho de Cooperação do

PD – Países Desenvolvidos

Golfo

PEB – Política Externa Brasileira

COI – Comitê Olímpico Internacional

PED – Países em Desenvolvimento

ET – Empresa Transnacional

PEI – Política Externa Independente

EUA – Estados Unidos da América

PIB – Produto Interno Bruto

FHC – Fernando Henrique Cardoso

PIIGS – países com problemas de

FIFA – Federação Internacional de

dívida pública: Portugal, Irlanda, Itália,

Futebol Associado

Grécia e Espanha

FIP – Força Internacional de Paz

TNP – Tratado de Não-Proliferação

FMI – Fundo Monetário Internacional

Nuclear

GATT - Acordo Geral sobre Tarifas e

TRIMS – Trade Related Investiment

Comércio

Measures

IBAS – Fórum de Diálogo Índia-Brasil-

TRIPS – Trade Related Aspects of

África do Sul

Intelectual Property Rights

IED – Investimento Estrangeiro Direto

UE – União Europeia

IIRSA – Iniciativa para Infraestrutura

UNASUL – União de Nações Sul-

da América do Sul

Americanas

RESUMO

Nos últimos 8 anos, o Brasil ganhou importante poder político e econômico na América Latina e se tornou um ator importante nas relações internacionais. A política externa geralmente se baseia nos princípios do multilateralismo, da resolução pacífica de controvérsias, e da nãointervenção nos assuntos de outros países. A política externa do Brasil reflete seu papel como potência regional e como emergente potência mundial, planejada para proteger os interesses nacionais do país, metas ideológicas, prosperidade econômica e segurança nacional. Sob a presidência de Lula da Silva (2002-2010), a política externa do Brasil focou na busca por maior equilíbrio e diminuição do unilateralismo, ampliação das relações bilaterais e multilaterais tendo em vista o aumento do peso do Brasil nas negociações políticas e econômicas em um nível internacional, e incluído a ênfase na coordenação política com os países em desenvolvimento e emergentes. Todas as ações da política externa brasileira combinaram pragmatismo e retórica com relativo sucesso. Palavras-chave: Política Externa – Relações Internacionais – Governo Lula – Brasil – Globalização

ABSTRACT

In the last 8 years Brazil gained significant political and economic power in Latin America and is a key player in the world politics. Brazilian foreign policy has generally been based on the principles of multilateralism, peaceful dispute settlement, and non-intervention in the affairs of other countries. Brazil's foreign policy reflects its role as a regional power and a potential world power and is designed to help protect the country's national interests, ideological goals, economic prosperity and national security. Under the presidency of Lula da Silva (2002-2010) Brazil´s foreign policy focused toward the search for greater equilibrium and attenuate unilateralism, to strengthen bilateral and multilateral relations in order to increase Brazil's weight in political and economic negotiations on an international level, and implied emphasis on political coordination with emerging and developing countries. All the actions of Brazilian foreign policy mixed pragmatism and rhetoric with relative success. Keywords: Foreign Policy – International Relations – Lula administration – Brazil – Globalization

SUMÁRIO

Introdução ....................................................................................................................02 I - Política Externa Brasileira como estratégia e seus aspectos formadores ..........05 1.1. Autonomia e submissão na trajetória da Política Externa Brasileira (PEB) ..........05 1.1.1. Padrões de conduta na PEB ................................................................................05 1.1.2. Os quatro paradigmas da PEB ............................................................................07 1.2. A PEB durante os governos FHC e Lula ...............................................................08 II - Polêmicas e Desafios atuais da PEB ...................................................................13 2.1. Brasil e a integração latino-americana ...................................................................13 2.2. Política Externa Brasileira e a África .....................................................................20 2.3. Brasil e o Oriente Médio ........................................................................................23 2.4. Candidaturas em Organismos Internacionais .........................................................27 III – “Brazil takes off” (O Brasil Decola) ..................................................................31 3.1. Brasil e a Globalização Financeira..........................................................................31 3.1.1. Crises e Ajustes ...................................................................................................31 3.1.2. Inserção Internacional e vulnerabilidade brasileira..............................................34 3.2. G-20s e Reforma do FMI .......................................................................................37 3.3. BRIC........................................................................................................................43 CONCLUSÃO...............................................................................................................48

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................51

INTRODUÇÃO

Este trabalho busca analisar o papel atual do Brasil no cenário político internacional, partindo das ações de política externa do governo Lula como a tentativa de finalização da Rodada Doha, o fim da ALCA e o andamento das discussões entre União Européia e Mercosul em 2005, até as resoluções de questões polêmicas e pragmáticas. As três prioridades atuais parecem ser a extensão do Mercosul na América Latina, ainda a finalização da Rodada Doha da OMC e a candidatura a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. A pesquisa parte da ideia de que toda política externa tem elementos ideológicos, dogmáticos e pragmáticos. Por isso, é necessária a diferenciação entre política externa de Governo da política externa de Estado. No caso brasileiro atual, grande parte dos analistas encontra muitos aspectos críticos que poderiam, se tomados em conjunto, caracterizar um relativo “fracasso” da Política Externa de Governo1. Entretanto, existem sucessos evidentes oriundos de posturas mais pragmáticas e orientadas para um mundo em mudança. Nesse sentido, acredito que qualquer análise da Política Externa Brasileira precisa considerar o que é “core”, o que é manobra dissuasória e o que é prático. Se considerarmos esse mix, é possível verificar que a polêmica é estéril, vez que retórica e pragmatismo sempre caminharam juntos na Política Externa Brasileira. Toda Política Externa é uma mistura criativa de ideologia e pragmatismo, mas o que fica são os resultados. O Capítulo I apresenta a Política Externa Brasileira como estratégia e seus aspectos formadores. Com base na Constituição de 1988, o artigo 4º apresenta os princípios da PEB (Política Externa Brasileira) em que a “República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; nãointervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; concessão de asilo político”. 1

Política externa com ditaduras africanas, a posição no golpe em Honduras e as relações com o Irã são exemplos críticos da diplomacia brasileira.

2

Uma descrição da evolução da PEB ilustra as diferentes frentes de atuação na relação retórica vs. prática ao observarmos o pêndulo entre o americanismo e o universalismo ao longo da história recente do Brasil. Um outro modo de abordar a linha de atuação da PEB são os quatro paradigmas analisados por Amado Cervo: a-) liberalconservador: ligado à origem do país como nação; b-) desenvolvimentismo pós crise de 1929; c-) Estado “Normal” ou neoliberal ligado aos fluxos intercambiais; e d-) Estado Logístico mais atual. Por fim, será feita uma comparação com a Política Externa dos EUA mais atual, partindo das diretrizes da doutrina Bush mostrando como a resposta americana ao terror é intrinsecamente associada aos aspectos formadores da sociedade norteamericana. E numa análise da política externa no governo Obama é possível também observar a questão ideologia vs. pragmatismo em sua relação com o Oriente Médio e com as políticas para a América Latina, este último analisado a partir do documento A New Partnership for the Américas em plena campanha presidencial. O capítulo II está focado nas Polêmicas e Desafios atuais da PEB. Entre as discussões pertinentes estão a necessidade de inúmeras viagens presidenciais, o papel protagonista do Brasil, e a ampliação da presença brasileira em territórios até então dados com pouca ou nenhuma importância – caso da política externa focada na África. Há também a polêmica em relação ao Irã e a questão nuclear, além do grande salto na relação comercial com o Oriente Médio pouco levado em conta pela mídia. O Brasil não teve sucesso nas candidaturas em organismos internacionais. Ainda luta pela vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU, mas candidatos brasileiros (ou indicados pelo Brasil) foram derrotados na Organização Mundial do Comércio (OMC) e no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Outras questões importantes são o denominado viés “antiamericanista” da PEB atual, a questão partidária (políticas de governo e não de Estado) e os altos investimentos no Plano de Defesa Nacional, além das discussões em torno da Estratégia Nacional de Defesa. Discussões técnicas e políticas se misturam na hora de escolher em qual projeto investir – a questão mais delicada é a compra dos caças militares na concorrência entre França, EUA e Suécia, com nítida preferência governamental pela parceria francesa. O projeto visa transferência de tecnologia e fomento da indústria bélica nacional. O Capítulo III – “Brazil Takes Off” (O Brasil Decola) apresenta os resultados práticos e as conseqüências da PEB. É nítido o desenvolvimento econômico 3

do Brasil nos últimos anos e a incrível capacidade que o país teve de suportar a crise ao longo de 2009. Não só reforçou a confiança de um potencial e contínuo crescimento econômico como um dos BRIC2, como também a figura do presidente Lula ajudou no protagonismo brasileiro em reuniões de cúpula internacionais, como dos G-20s. O Brasil também obteve grandes resultados na Bovespa, queda do risco-país e aumento do IED (Investimento Estrangeiro Direto) - na conta de capital. O IED somou US$ 1,6 bilhão em novembro de 2009. Não só as empresas transnacionais e investimentos externos apresentam números positivos como Vale, Petrobras e Gerdau são exemplos de multinacionais que foram capazes de prosperar neste ambiente. Na conclusão, espera-se uma reflexão de que ideologia e pragmatismo sempre estiveram e continuarão presentes, assim como as linhas da PEB do americanismo e universalismo são duas vertentes transversas e permanentes. Como citado pela revista The Economist, o Brasil caminha para ser a quinta maior economia do mundo, ultrapassando Inglaterra e França, mas tem pela frente pendências e desafios internos importantes e tem como maior risco a prepotência. De qualquer modo, o Brasil parece estar no caminho certo.

2

Grupo de países que se destacou no cenário mundial pelo rápido desenvolvimento das suas economias em desenvolvimento, formado por Brasil, Rússia, Índia e China. O acrônimo foi elaborado pelo economista Jim O´Neill da Goldman Sachs.

4

I - Política Externa Brasileira como estratégia e seus aspectos formadores A política externa de um Estado em relação aos demais Estados e organizações do cenário internacional deve ser vista inicialmente com a diferença entre a política em si (ligada a uma ação) e a diplomacia (forma de ação). Desse modo, a política externa contempla as esferas da diplomacia, a força militar (em caso de guerra ou ameaça de guerra), e a política econômica externa, também podendo auxiliar na resolução de políticas domésticas que tenham influência no exterior – esse interesse nacional bate de frente com o poderio hegemônico, que não propriamente depende de força para exercêlo.

1.1. Autonomia e submissão na trajetória da Política Externa Brasileira (PEB) Dentro da política externa adotada pelo Brasil, é possível observar características importantes na relação com os outros atores do cenário internacional. O contexto da Política Externa Brasileira (PEB) se dá em confluência de dois fatores: os objetivos e capacidades nacionais somados às condições e à posição do País no sistema internacional. Ao contrário da maioria países vizinhos, a PEB possui elementos de continuidade e renovação históricas. A execução cabe ao Itamaraty com um corpo burocrático com formação técnica adequada que faz a diferença na hora de articular interesses e alianças com outros atores no cenário internacional.

1.1.1. Padrões de conduta na PEB O Brasil tem como metas históricas na PEB a autodeterminação dos povos, o princípio de não-intervenção (cada país deve resolver os seus problemas) e a solução pacífica de controvérsias. Para CERVO (2002), na América do Sul, há países satisfeitos como o Brasil, mas há os revisionistas como Bolívia e Chile com disputa territorial sobre a saída para o oceano Pacífico, e a Argentina e seu conflito pela posse das ilhas Malvinas. O Brasil ainda não possui capacidade de projeção estratégica devido a uma estrutura militar ainda deficitária. O Brasil observa a região sul-americana como pacífica, daí o viés pacífico da diplomacia. Ainda assim, a postura do multilateralismo é uma maneira educada de dizer 5

que o Brasil precisa se posicionar contra os EUA em algumas questões, por razões políticas de não-alinhamento automático preservando sua autonomia regional. Há um jurisdicismo no que diz respeito às leis, em que o Brasil considera todos os acordos sendo tratados ao pé da letra, caso dos tratados de limite territorial com os países vizinhos, acordos de não-proliferação nuclear e signatário de convenções referentes aos direitos humanos. Outra postura é a ação cooperativa – mesmo sendo contra uma união militar, o Brasil faz parcerias estratégicas que possam trazer contribuições duradouras para o comércio, tecnologia e investimentos. Exemplos dessas cooperações podemos ver na comunidade dos países de língua portuguesa, no IBAS, BRIC e G-20. CERVO (2002) explica que o pragmatismo faz parte da PEB desde o século XIX, sempre muito voltado para objetos concretos, observando todas as possibilidades de ganhos. A PEB é hostil a cada nova proposta inovadora que insira o Brasil mediando conflitos e disputas, caso das territoriais na América Latina. De acordo com Cervo e Bueno (2002), a partir da transição do império para a república, a análise da PEB passa por duas vertentes: a do americanismo e a do universalismo. O americanismo data da transição entre o império e a república no Brasil. Foi criado pelo Barão de Rio Branco com apoio de Joaquim Nabuco – e mais tarde consolidado e modificado pelo Oswaldo Aranha já na era Vargas, observando que a ideia da hegemonia norte-americana é tão notória e avassaladora que o Brasil não tem nada a ganhar afrontando, e sim ganhando em posição subordinada buscando os benefícios dessa aproximação. O universalismo, surgido a partir da década de 1930, era associado ao desenvolvimentismo da era Getúlio Vargas. Era associado à autonomia pela diversificação de parcerias. Partiu-se para o pragmatismo. Não importava mais se as relações eram com países com ditaduras, sejam de direita ou esquerda, e sim o custo benéfico dessas relações. As duas vertentes são transversas e permanentes. Numa análise mais atual, o governo Fernando Henrique Cardoso representou em seu primeiro mandato um viés mais ligado ao americanismo, seguido por um segundo mandato mais intermediário, e o primeiro mandato de Lula já ligado ao universalismo (VIZENTINI, 2003).

6

1.1.2. Os quatro paradigmas da PEB Segundo CERVO (2002), há quatro paradigmas principais da PEB. O primeiro é a liberal-conservador, ligado à origem do país como nação, vista como periférica dentro de uma divisão internacional do trabalho – exportador de bens primários – seguindo a teoria das vantagens comparativas, onde cada país deveria se concentrar no que faz melhor e obter os demais produtos por meio das trocas comerciais. A favor do Brasil estavam o clima e a geografia e, contra, a ausência de tecnologia e capital. Até 1930 essa posição não era uma imposição externa, tendo o Brasil admitido por si uma vocação agrícola de celeiro do mundo. O segundo paradigma é o desenvolvimentista. Ao longo da década de 1930 com Getúlio Vargas, o Brasil fez jogo duplo (a chamada política do ziguezague) em relação aos Estados Unidos e a Alemanha no período que antecede a Segunda Guerra Mundial. Porém, ao fim da década de 1930, o Brasil abandonou a relação pragmática em favor da opção norte-americana não só pelas condições inseguras da Alemanha, mas influiu também o lastro histórico de longos anos de relacionamento entre Brasil e Estados Unidos. O período foi marcado também pelo acirramento da rivalidade militar entre Brasil e Argentina, ainda que suas relações diplomáticas e comerciais fossem boas. Com Jânio Quadros (1961) e a política externa independente (PEI), o Brasil retoma a diplomacia observado o surgimento de novos atores ou a modificação de alguns, além de ser uma reação nacionalista a hegemonia norte-americana (VIZENTINI,2003, p. 23). A interrupção da PEI ocorreria com a derrocada do regime populista no Brasil. Durante o governo Figueiredo (1970-1985), aplicou-se a política externa do universalismo (VIZENTINI, 2003, p. 62), reforçando o papel autônomo do Brasil num cenário desfavorável, além de continuar com o Pragmatismo Responsável e mantendose no grupo das nações Não-Alinhadas (ainda que não como membro pleno). Com a chegada de Fernando Collor e Itamar Franco (a partir de 1990), o projeto de soberania nacional foi abandonado em favor de uma nova ordem neoliberal e globalizante. Há um grande afastamento da diplomacia anterior de vista mundial e multilateral. Desmontaram-se iniciativas ligadas ao “Brasil potência”, como projetos nucleares e de informática.

7

Com Fernando Collor, e ainda mais latente com Fernando Henrique Cardoso, surge o terceiro paradigma – o Estado “Normal” (ou neoliberal) – segundo HAAG (2006), buscando a abertura e novos parceiros, maior integração de fluxos intercambiais e menor interferência do Estado. Há também a adesão do Brasil a diversos tratados internacionais, sendo o mais discutido deles o TNP, que é discutido neste trabalho mais adiante. O período é marcado pelas parcerias internacionais em diversas áreas e a prioridade no plano regional, com a integração platina e sul-americana (Mercosul), além de relações bilaterais com demais países do continente. Isso é reforçado no governo FHC, somado ao multilateralismo (ligado a OMC), e aos esforços de elevar o Brasil a condição de potência internacional – como pleitear uma vaga no Conselho de Segurança da ONU. O quarto paradigma é o do Estado Logístico, que parte da idéia do Estado “Normal”, mas recupera ideais do desenvolvimentismo. O Estado passa a ter um papel importante na economia em parceria com grandes empresas. Esta conduta eleva a importância de empresas como a Petrobrás, Embraer, entre outras. Segundo Vizentini (2003), “o país desenvolverá uma postura mais incisiva em negociações multilaterais como na OMC, defendendo a nossa economia e privilegiando a atração de investimentos produtivos, em lugar de capitais especulativos”. Enfim, nem ruptura nem continuidade absolutas, mas o aprofundamento de uma mudança que já teve início e colocará o Brasil no centro das atenções.

1.2. A PEB durante os governos FHC e Lula O governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) foi calcado na estabilização monetária do Plano Real e num projeto neoliberal bastante ligado ao Consenso de Washington. Segundo VIZENTINI (2003, p.94), Fernando Henrique esvaziou o Itamaraty de suas funções, uma vez que o órgão representava um foco de resistência do projeto nacional-desenvolvimentista. O Ministério das Relações Exteriores, sob o comando inicial de Luiz Felipe Lampreia (e depois por Celso Lafer – 2001-2002), ocupou-se dos aspectos técnicos e burocráticos das iniciativas políticas e econômicas, e servir de bode expiatório por “não saber negociar”. Para CERVO (2002), as linhas prioritárias da política externa no governo FHC foram: avançar no caminho da integração regional aprofundando o Mercosul; estimular 8

a estratégia de diversificação de parceiros nas relações bilaterais; insistir junto às organizações econômicas multilaterais, em particular a OMC, no ideal de multilateralismo, sempre sustentado pelo país; e concentrar esforços para elevar a condição de potência internacional do Brasil, tornando-se membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Entretanto, o próprio presidente chegou a declarar que preferia aprofundar a integração regional e fazer parte do G-7 do que do Conselho. As relações bilaterais foram marcadas por relações com vários pólos, com prioridades para o Mercosul, NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio) e com a União Europeia, e em menor escala com os Tigres Asiáticos e África austral. Nos anos 1990, os EUA fizeram acordos bilaterais com os países latinos e iniciavam as negociações para implantação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas). O projeto da ALCA seguia o padrão do NAFTA ao invés do criado para a União Européia. Tratava-se de um acordo comercial ligando o Alasca à Patagônia com livre circulação de mercadorias, serviços e de capitais, mas não uma integração econômica e política como na Europa. No caso da União Européia, foi criado um sistema compensatório e de fluxo de renda para os países mais pobres como forma de investimentos. Portugal é um bom exemplo de país que recebeu uma grande injeção de recursos para se equilibrar ao bloco econômico. Houve um grande racha no Brasil, onde uma parte da classe política e intelectual achava que ALCA valeria a pena. Aos poucos, foi se consolidando uma visão negativa e contrária a ALCA. A Argentina também mudou de ideia com a eleição dos peronistas em 2001 (o então presidente Eduardo Duhalde). Pesava também o fato de que alguns países já possuíam acordos bilaterais de livre-comércio com os EUA – caso do Chile, Colômbia e Peru. Além da falta de apoio da maior parte dos países da América do Sul, outros motivos resultantes para o fracasso da ALCA foram: 1-) aprovação nos EUA, durante o governo George W. Bush de uma lei em 2003 chamada Farm Bill ressaltando a proteção de subsídios de produtos agrícolas; 2-) a pá de cal foi uma votação no Congresso Americano do TPA (Lei de Preferência Comercial) também conhecida como Fast Track. Antes eram necessários reuniões com cada setor incluindo empresários e sindicatos americanos, e cada setor tinha uma votação no congresso americano. Porém, os acordos perdiam seu valor metodicamente. O então presidente dos EUA, Bill Clinton, pediu ao Congresso uma autorização para o Executivo fechar as negociações, e assim um pacote de ações seria votado no Congresso, que poderia ser aprovado ou rejeitado. Foi desse modo que o 9

NAFTA foi aprovado. A proposta do TPA para a ALCA foi negada. A partir daí, os mesmos setores favoráveis a ALCA no Brasil voltaram atrás devido ao protecionismo. A ALCA estabelecia em pé de igualdade todas as empresas que estão no mesmo bloco (viés comercial). A proposta seria evitar um “tratamento de nação mais favorecida”, evitando-se restrições ao conteúdo nacional. Por exemplo, a Renault ganha benefícios para construir uma fábrica no país, mas precisaria comprar 10% de componentes nacionais (isso não seria mais possível); ou a mesmo o fomento da construção de petroleiros no Brasil para ativar a economia – a Petrobrás não poderia dar preferência ao petroleiro nacional no caso do país ser parte integrante da ALCA. O governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) foi marcado por diversas crises internacionais3 que testaram a estabilidade da moeda brasileira que resultaram no colapso do projeto neoliberal. No campo diplomático, o Brasil se transformou em referência mundial na luta pela inclusão dos temas sociais, ambientais e democráticos, com destaque para os debates em torno das patentes dos medicamentos contra o HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana)/ AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), resultando em acordo em junho de 2001. Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) foi eleito sob uma crise cambial, instabilidade de mercados e grandes empréstimos do FMI (Fundo Monetário Internacional), em parte pelas especulações em torno da mudança de governo. Como este trabalho analisa, o Brasil dará mais atenção a territórios e campos não explorados por governos anteriores. Segundo POMAR (2009), secretário de relações internacionais do PT (Partido dos Trabalhadores), os objetivos da política externa do governo Lula são: a) desenvolvimento nacional, integração regional e redução das vulnerabilidades externas; b) fortalecimento do papel do Estado, inclusive em termos de defesa das fronteiras 3

1994: Crise no México – desvalorização do Peso mexicano causou solvência de bancos e aumento da taxa de juros no Brasil. 1997: Crise dos Tigres Asiáticos – as exportações brasileiras foram atingidas pela baixa demanda da Ásia, causando fuga de investimentos e paralisando o crescimento. 1998-99: Crise da Rússia – altas taxas de endividamento, desemprego e inflação e baixos índices de crescimento econômico [PIB] resultaram em desvalorização do Rublo e na declaração da moratória e a renegociação da dívida externa. No Brasil, causou pânico na Bolsa e fuga de mais de US$ 15 bilhões na primeira semana. O câmbio é liberado e o Real é desvalorizado. 2001-2002: 11 de setembro, Bolha da internet, crise da Argentina, eleição de Lula – o Brasil sofreu economicamente com a retração causada pelos efeitos dos atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York, e com o estouro da bolha das empresas de internet (o fenômeno de supervalorização das empresas pontocom e de suas ações) nos EUA. Em 2002, a Argentina em recessão entra em grave crise. O resultado da moratória da dívida externa de US$ 132 bilhões foi a queda acentuada do PIB, desvalorização do Peso argentino, a ruína da classe média, e desconfiança internacional. As especulações em torno da eleição do presidente Lula levaram a uma crise cambial, aumento da taxa de juros e aumento de 12,5% na inflação.

10

marítimas e terrestres; c) ampliação do papel internacional do país, consolidando relações com outros grandes Estados periféricos, evitando acordos subalternos e investindo fortemente na integração regional. Um dos pontos mais debatidos da política externa do governo Lula é o antiamericanismo, que estaria ligado a uma plataforma ideológica. O embaixador Roberto Abdenur fez uma crítica em que defendia a diversificação de mercados, como reza a cartilha atual do Itamaraty, mas teme que isso seja feito em detrimento das relações com as nações ricas. O atual ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, comandou uma ampliação da abertura de embaixadas em países menos expressivos na América Central e África, e amplificou a posição do Brasil como mediador de conflitos internacionais. No início de seu primeiro mandato, Lula ganhou destaque em pronunciamentos internacionais sobre o combate a fome, tentando uma inserção na agenda internacional com resultados discutíveis. O tema ALCA passou a ser negociado de forma mais dura, sob a justificativa de que as discussões só prosseguiriam se as demandas brasileiras fossem atendidas. A crítica é até que ponto essa posição brasileira é pragmática ou pura provocação aos EUA e aos países dos “loiros de olhos azuis” como disse o presidente Lula na presença do primeiro-ministro britânico Gordon Brown. A base concreta é emergir no cenário internacional e obter apoio, especialmente para o Conselho de Segurança da ONU, mas a diplomacia brasileira enviou sinais controversos nos episódios do golpe de Honduras (não reconhecendo o novo governo eleito), das relações com o Irã e nas discussões pelo protocolo adicional do TNP. Com Lula, o Brasil aumentou até as relações comerciais com a Coréia do Norte4. Para Arinos (2010), não há conteúdo antiamericanista na política externa do governo Lula. É uma política independente mais preocupada em não parecer submissa. No caso das concessões feitas à Bolívia, Arinos diz que não houve submissão ao presidente Evo Morales. “O que há é a compreensão com a imensa pobreza do lado de lá. Por que o petróleo é nosso e o gás não é deles?” O Brasil tem como uma das metas diplomáticas ajudar os países vizinhos a superar problemas que impeçam seu desenvolvimento. O crescimento desses países é 4

As vendas brasileiras para o país comunista cresceram 106% entre 2007 e 2008, o último ano com dados divulgados. Ínfimo na pauta nacional de US$ 152 bilhões de vendas para o exterior, o comércio bilateral alcançou US$ 381,1 milhões. O Brasil está em quarto lugar no ranking dos parceiros comerciais nortecoreanos, atrás de China, Rússia e Índia. (RANGEL, Sérgio. Brasil tenta desbravar a fronteira comercial mais fechada do globo. Folha de S.Paulo. 23 abr. 2010.)

11

bom para o Brasil, ao mesmo tempo em que eleva a posição regional brasileira. Mas na prática, o Brasil está se dedicando menos em ações políticas na América Latina. Ao analisar pontos importantes da ação diplomática como o golpe em Honduras e as relações com a Venezuela, o Brasil precisa encarar que sua visibilidade internacional aumentou. O fato do governo Lula ter abandonado a autonomia pela participação do governo FHC, demonstra que é preciso superar a questão do antiamericanismo e decidir se iremos fazer negócios com o maior número possível de parceiros ou se é necessário distinguir com quem ter relações (como a polêmica negociação com o Irã), especialmente se o Brasil espera ter peso nos fóruns internacionais. Mas é fato que algumas das ações da diplomacia brasileira visam certa confrontação com os EUA como forma de impor seu papel emergente no continente.

12

II - Polêmicas e Desafios atuais da PEB

2.1. Brasil e a integração latino-americana Se a administração FHC privilegiou as relações com países desenvolvidos, especialmente EUA e União Europeia, o governo Lula passou a olhar também para as nações do Sul além dos benefícios materiais e comerciais. A nova política externa de “autonomia pela diversificação”, segundo VIGEVANI (2007), defende uma relação mais duradoura com os países em desenvolvimento, motivada por visões de mundo e pelas raízes ideológicas do PT, parcialmente coincidentes com a tendência existente em parte da diplomacia. O Brasil institucionalizou parcerias com Índia, África do Sul e China, em temas variando de segurança, comércio e tecnologia. Como veremos mais tarde, a formação do G-20 com países em desenvolvimento, foi formado para defender os interesses agrícolas sob a liderança brasileira. Tendo posto um fim na discussão da ALCA, os países do Cone Sul focaram suas atenções para o Mercosul. Desde 2006, a Venezuela depende de aprovação dos congressos nacionais dos quatro países da formação original para que sua entrada seja aprovada. O atual governo deu prioridade total ao Mercosul, com visitas oficiais do presidente Lula por toda a América do Sul. Como mencionado pelo chanceler Celso Amorim, a capacidade brasileira de influir no comércio internacional começa pela América do Sul. Não só promoveu a defesa do adiamento conjunto da proposta para a ALCA como defendeu a expansão do Mercosul além da questão comercial. O Brasil também colocou à disposição o BNDES para os chamados Convênios de Créditos Recíprocos, já utilizados por Argentina, Bolívia, Peru e Venezuela. Com muita propriedade, NYE (2010) explicou que o Brasil tem exercido positivamente seu soft power5 desde meados dos anos 1990 com a estabilização da moeda, combate a corrupção, queda da desigualdade e investimentos em educação. O Brasil tem se tornado mais atraente e irá utilizar essa qualidade para discussões

5

Soft power (poder brando) é um termo usado na teoria de relações internacionais para descrever a habilidade de um corpo político, como um Estado, para influenciar indiretamente o comportamento ou interesses de outros corpos políticos por meios culturais ou ideológicos. O termo foi usado pela primeira vez por Joseph Nye – professor de Harvard.

13

mundiais. O Brasil tem peso especial nas negociações reiniciadas entre União Européia e Mercosul. Após seis anos de interrupção, os comissários da UE aprovaram, em Bruxelas, a retomada das negociações comerciais para a criação de um acordo de livre comércio com o Mercosul. O projeto teve seu início em 1999, mas em 2004 foi suspenso diante dos desentendimentos entre os governos europeus e sul-americanos. Apesar da decisão positiva de relançar o processo, França, Irlanda e os produtores agrícolas continuam insistindo contra o projeto. A Cúpula América Latina e Caribe - União Européia (ALC-UE) tem sido utilizada como plataforma para discursos políticos de Chávez, Correa e Lula, que demonizam alguns e beneficiam outros. Alguns posicionamentos são controversos: Cuba faz parte do encontro desde que foi criado, enquanto Honduras agora é impedida de participar – como se houvesse alguma dúvida de qual dos dois países é uma democracia. Deveria haver um esforço para normalizar a posição de Honduras no continente americano e focar as discussões em assuntos urgentes, como os reflexos da crise europeia sobre o Brasil. A Europa é um parceiro importantíssimo do Brasil e de outros países latino-americanos. Se a economia do continente se retrai para evitar a crise, isso vai nos trazer sérias consequências. É preciso debater mecanismos de defesa para este choque. (ALBUQUERQUE, 2010)

Não há possibilidade de integração regional se não for fundamentada no comércio. Com todas as falhas do Mercosul, o investimento feito é gratificante, mas falta uma maior integração. Diferente da Unasul e demais organizações do continente americano, que se tornaram fóruns para discussões políticas que até o momento não levaram a nada. A posição do Brasil, no caso de Honduras, leva em conta posturas ideológicas e partidárias que resultam num paradoxo de sua diplomacia. Com esta partidarização na PEB, há uma contradição entre os interesses de Estado e os de governo e entre os discursos retóricos e realistas. O fato do Brasil defender a democracia em Honduras e se omitir no caso de Cuba, transmite uma posição truncada do Brasil no cenário internacional e atrasa negociações muito mais importantes e seguras. Enquanto internamente a política

14

defende a democracia e os direitos humanos, o Brasil não defente externamente os mesmos valores em nome dos interesses ideológicos e comerciais. Cabe a análise de dois fatores da política externa brasileira. O primeiro fator são as relações com os EUA. Fernando Henrique Cardoso focou sua política de estreitamento com os norte-americanos, com destaque para as relações pessoais entre o brasileiro e presidente Bill Clinton. Com as resoluções pós-atentados de 11 de setembro de 2001 (governo George W. Bush), o governo brasileiro passou a criticar o unilateralismo dos EUA, procurando firmar novas parcerias comerciais com grandes nações em desenvolvimento para equilibrar o comércio internacional que o Brasil possuía com os norte-americanos. A partir de 2003, Lula reconhece a importância dos EUA como potência (inclusive atendendo proposta dos EUA para o envio de tropas brasileiras em missão de paz ao Haiti e amenizando as críticas aos escândalos de direitos humanos em Guantánamo e Abu Ghraib), mas aprofunda suas relações com os países em desenvolvimento e mercados dentro da União Europeia. E aposta, como veremos adiante, no fortalecimento do Mercosul e da relação deste bloco com a União Europeia. Por este ângulo, o Brasil evitou choques com os EUA. O segundo fator é a política de integração latino-americana. Este tema já existe desde a retomada da democracia brasileira em 1985, mas nos anos anteriores à gestão Lula, era visto como instrumento com a qual o Brasil poderia disputar um espaço político e econômico maior no mundo. Ao contrário do pragmatismo do primeiro fator, aqui entra a retórica do discurso da integração, buscando um processo de união das nações (a partir da Comunidade Sul-Americana de Nações e posteriormente a IIRSA) com a ideia do equilíbrio nas relações e evitando possíveis conflitos. O Brasil começou a demonstrar o desejo de um papel protagonista na região e entre os países em desenvolvimento. O Mercosul enfrenta outros obstáculos nos últimos anos, o que dificulta uma integração regional com as características que formaram a União Européia: zona de livre comércio, união aduaneira (ter a mesma tarifa externa comum), livre circulação de pessoas e mercadorias (mercado comum) e integração monetária. Um desses obstáculos é a relação desproporcional do Brasil com os demais países devido a dimensão de sua economia, PIB e parque industrial. Mais de 90% de suas exportações para o Mercosul são de manufaturados, o que causa tensões especialmente com a Argentina – que reage periodicamente com barreiras aos produtos brasileiros (brinquedos, calçados, linha

15

branca). A disputa comercial, acentuada pela crise financeira, fez com que o mercado argentino fosse aberto aos produtos chineses, potencializando prejuízos ao Brasil. Outro problema é a cláusula de consenso que contrapõe países menores a maiores, com o Brasil fazendo o possível para auxiliar na manutenção e no crescimento de Paraguai e Uruguai – este último com uma população idosa e sem produção industrial significativa. As disputas entre os países prejudicam a evolução do Mercosul – como a controvérsia entre Argentina e Uruguai sobre a indústria de papeleras., falta de punição severas aos países contenciosos, pressões do Paraguai como no caso da venda de energia da hidrelétrica de Itaipu. O Mercosul tentou ser duas coisas ao mesmo tempo: uma zona de livre comércio e uma união alfandegária. Aquilo que a União Européia tentou em 30 anos, o Mercosul tentou fazer em menos de uma década. MAGNOLI (2010) afirma que a recente decisão do Congresso brasileiro em permitir a entrada da Venezuela de Hugo Chávez no Mercosul implicaria num veto total a acordos de livre comércio do bloco com outros blocos econômicos. Sobre o PT e possíveis desdobramentos em um eventual governo de Dilma Rousseff, diz que o governo Lula sempre utilizou uma retórica favorável ao Mercosul e na prática foi deixando tudo como estava, ou seja, a zona de livre comércio incompleta, a união alfandegária pela metade, e vamos tocando o barco e incluindo a Venezuela. Não há nenhum sinal de que Dilma Rousseff pense diferente disso. Do ponto de vista político, esta proposta tem a seguinte base: o Mercosul não foi criado por razões econômicas, e sim por razões políticas – um instrumento para acabar com antigas rivalidades entre Brasil e Argentina, cada um dos quais desenvolvendo inclusive programas nucleares secretos, imaginando uma hipótese de guerra um contra o outro no futuro. O Mercosul surgiu para acabar com esta rivalidade e conseguiu isso, com a desistência dos programas nucleares de ambos os países, que se tornaram aliados. Por outro lado, Argentina, Paraguai e Uruguai querem acesso ao mercado brasileiro. O Brasil tem condições de abrir a sua economia, abrir o seu mercado não só para os membros do Mercosul como também para todos os países da América do Sul, reduzindo violentamente e, em muitos casos, eliminando tarifas, porque a indústria, a agricultura e os serviços no Brasil são fortes o suficiente para ter a concorrência dos países, muito mais fracos economicamente, que são os vizinhos da América do Sul. Ao contrário do que se observava décadas atrás, em que o Brasil dava as costas para a América Latina, agora o processo é de uma integração total do continente sulamericano com a UNASUL. TAVARES (2010) considera a política externa brasileira 16

neste sentido completamente acertada: papel protagonista o Brasil já está tendo, estamos na Aliança Sul-Americana, estamos no BRIC, na aliança com África do Sul e África em geral, mas não temos capacidade de enfrentar como potência as outras potências de fato. A aliança Sul-Sul e a busca de novos parceiros comerciais são positivas para o Brasil. Apesar dos custos diplomáticos (embaixadas), a diversificação comercial é boa porque diminui os riscos da dependência dos negócios com a Europa e EUA. Mas é fato que a América Latina tem um potencial ainda não explorado, prejudicado em parte pela escassa infraestrutura e pelas disputas regionais, o que explica parte da não evolução do Mercosul. No Mercosul, esse problema é ainda maior nas disputas comerciais entre Brasil e Argentina e a dependência de Uruguai e Paraguai. Desse modo, vem sendo mais positivo e prático para o comércio internacional o Brasil se relacionar com outros emergentes como a China e a Índia, além de novos polos como a África do Sul. Essas relações dão peso à meta do Brasil de se mostrar como potência emergente sem precisar se envolver em polêmicas maiores no caso dos países latinos. Um aspecto positivo da integração é que na Europa foi e é muito difícil a integração política, porque foram mil anos de guerras uns contra os outros. Na América do Sul foram poucas guerras (a principal a do Paraguai) e de pouca extensão se comparadas as da Europa. A UNASUL já passou por um teste que divide a região, sobre o tema das bases militares norte-americanas em território colombiano. A reunião de setembro de 2009 terminou sem consenso com a Colômbia apontando a escalada militar do Brasil e principalmente da Venezuela (com acordos de aquisição de equipamentos militares russos). No caso específico do problema em Honduras, com a deposição do presidente Manuel Zelaya, o Brasil defende que Zelaya volte ao país para a retomada normal das relações. Mas para isso, seriam necessárias garantias jurídicas para que Zelaya retorne e torne um cidadão comum. O chanceler Celso Amorim afirma que o Brasil nunca deixou de reconhecer Estados como Honduras, senão o presidente Zelaya nunca poderia ter se abrigado na embaixada brasileira. Além disso, ao contrário do noticiado pela imprensa, o Itamaraty rejeita que foi pego de surpresa por este evento. A diplomacia brasileira encarou o abrigo como oportunidade para que houvesse negociações, inclusive dentro da embaixada com representante dos EUA. O problema é o reconhecimento do governo Lobo (que assumiu após eleições no período interino de Roberto Micheletti). A diplomacia brasileira nega que não reconheça o governo Lobo, mas confirma que a 17

intensidade das relações é menor, por espera um governo com maior legitimidade. Como não é possível voltar no tempo, o Brasil espera um processe de reconciliação nacional em Honduras para o retorno da normalidade nas relações. O Brasil teve papel importante na resolução da OEA para a aceitação de Cuba de volta à entidade continental, mas não patrocinou nenhum esforço para convencer os EUA a flexibilizar o embargo econômico. Se na política interna o governo continuou as políticas mais ligadas ao seu antecessor, na política externa abrigou algumas figuras mais expoentes da cartilha política de ideais mais antigos do PT – caso de Marco Aurélio Garcia e do secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães. Isso explica a aproximação do Brasil a regimes com implicações em violações de direitos humanos ou de liberdade de expressão (casos de Cuba e Venezuela) e suportaria a teoria do imperialismo ou antiamericanismo na diplomacia. Podemos analisar a retórica do discurso sobre a diversificação no seguinte trecho: Na execução de sua política externa, e sempre orientado por princípios constitucionais, o Brasil em um mundo profundamente desigual, arbitrário e violento tem que reagir às iniciativas políticas de Grandes Potências e especialmente da Superpotência, os Estados Unidos; o Brasil tem que articular alianças políticas, econômicas e tecnológicas com os Estados da periferia do sistema internacional para promover e defender seus interesses; o Brasil tem que transformar suas relações tradicionais com as Grandes Potências, historicamente desequilibradas. (GUIMARÃES,

2006):

Apesar do protagonismo regional, o Brasil não quer ser intermediário entre Cuba e EUA, apenas transmitindo algo que o Itamaraty considere que valha a pena. Amorim reiterou diversas vezes que o Brasil não toma iniciativas, embora naturalmente o tema Cuba tenha sido levantado nas conversas entre Lula e Obama, e entre Amorim e Hillary Clinton, mas tudo dentro de um processo normal. Para o Itamaraty, este assunto cabe aos EUA e a Cuba. Para o Brasil, nossa diplomacia foi peça chave para obter uma resolução da OEA que substituísse a antiga, típica da Guerra Fria – o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca. Cuba foi aceita na nova resolução e não retornou, o que não surpreendeu.

18

Questionado pelo embaixador Rubens Barbosa sobre o Brasil atuar com uma “diplomacia da generosidade” em relação aos vizinhos, o chanceler Celso Amorim afirmou que o Brasil precisa ter uma espécie de “diplomacia solidária” com países cujo grande ativo é quase único (Bolívia, Equador e Paraguai). Somado ao fato de que o Brasil está investindo fortemente em suas Forças Armadas, Amorim confirma que o smart power6 está em vigor na diplomacia brasileira. O Brasil pratica uma política em que um dos seus principais ativos é o peso econômico, sua população, seu território, e sua capacidade de resolver problemas – não problemas de fronteira resolvidos pelo Barão de Rio Branco, mas problemas atuais como o contrabando e o narcotráfico. Na questão da Bolívia, a posição brasileira foi muito criticada mas não faltou gás no Brasil, ao contrário de situações mais drásticas ocorridas na Europa entre Ucrânia e Rússia. O discurso brasileiro é de que o país precisa ter relações muito boas com seus vizinhos, entendendo que o Brasil não pode ser uma quase grande potência no meio de países muito pobres e miseráveis, o que não traz bom resultado e sai caro no futuro. O mesmo caso se aplica ao Paraguai e a questão da soberania energética envolvendo a usina de Itaipu. O Brasil tem sua segurança energética, mas se o Paraguai resolver construir indústrias e siderúrgicas vai começar a absorver mais energia, e pelo tratado assinado o Brasil não pode fazer nada. O tratado não contempla a venda da energia a terceiros ou a venda direto a clientes brasileiros sem passar pela Eletrobrás. Uma das saídas da diplomacia brasileira seria pagar mais pela energia como forma de compensação e/ou reforçar a confiança com a conclusão de obras previstas no tratado e maior equilíbrio na hierarquização entre brasileiros e paraguaios. Essa situação “compreensiva” e passiva na Bolívia, Paraguai, Equador e Venezuela poderiam resultar, dizem os críticos, em uma futura demanda maior dos interesses dos países vizinhos. O custo interno seria o aumento dos gastos e prejuízo das indústrias brasileiras. A política externa brasileira busca preservar os interesses brasileiros e as necessidades dos demais países da região, evitando confrontos e instabilidades. A força do Brasil na comunidade internacional tem como origem as excelentes relações do país com os vizinhos sulamericanos. Se a política externa é vista internamente como dividida e pró-governos com afinidades ideológicas como a Venezuela, é possível observar que o Brasil mantém em equilíbrio boas relações com todos os seus vizinhos, reforçada pela opinião do

6

Smart Power (poder inteligente) é uma terceira via entre o soft e o hard power (poder bruto ou material), que utiliza tanto o peso militar, quanto técnicas de persuasão.

19

chanceler Amorim de que para a integração sul-americana a ideologia não é vista como necessária.

2.2. Brasil e a Política Externa Africana Além da América Latina, a política externa brasileira deu um salto de atuação em várias partes do mundo. A ascensão do Brasil fez com que a presença do presidente Lula se tornasse importante em fóruns internacionais, negociações econômicas e até mesmo em polêmicas como no Oriente Médio, e candidaturas para instituições e eventos internacionais. Segundo levantamento feito pelo jornal Folha de S. Paulo em abril de 2009, Lula atingiu 348 dias no exterior, o que representa 15% do governo. Em oito anos, entre 1995 e 2002, Fernando Henrique Cardoso passou 347 dias em viagens internacionais. Repassando a Lula a fama de caixeiro-viajante, os 347 dias representaram 11,8% do mandato. Em 22 de abril de 2009, na Argentina, Lula acumulou 183 visitas ao exterior, incluindo as repetições. Nos Estados Unidos, por exemplo, Lula esteve dez vezes entre 2003 e abril de 2009. Em 1961, com o lançamento da Política Externa Independente, por Jânio Quadros e seu chanceler Afonso Arinos, o Brasil lançou uma política africana e tomou posição em favor do direito à autodeterminação dos povos coloniais, especialmente das colônias portuguesas, que iniciavam a luta armada (VIZENTINI, 2008). O auge da relação com o continente teve seu auge durante os governos militares (entre 1976 e 1985, a África chegou a representar 10% das exportações brasileiras. Caiu para 3% nos anos 1990). O governo Lula trouxe uma nova dinâmica à política externa com o continente. Seu antecessor deu mais destaque aos EUA e à União Europeia. Lula dedicou boa parte do seu primeiro mandato (2003-2006) a um roteiro de viagens por países que não eram olhados antes com atenção pela diplomacia brasileira. Até então, a proximidade era dada apenas por aspectos culturais e étnicos – "O coração nos une profundamente à África: o Brasil é o país com a segunda maior população negra do mundo", afirmou Lula reforçando a retórica da política externa. Houve um planejamento para diversificar mercados, abrir novas embaixadas, tornar o presidente Lula uma figura de peso no cenário mundial, e um novo tema: a referência a uma dívida histórica com a África, pelo fato de o Brasil ter importado escravos de lá durante quatro séculos. Por isso, o Brasil teria obrigação moral de ajudar os países africanos. Durante 20

as viagens, Lula assinou mais de quarenta convênios de cooperação para dar assistência a setores como formação profissional, saúde, agricultura e exploração mineral. Além do Brasil, China e Índia são os maiores interessados na África, especialmente por seus recursos naturais e matriz energética. O intercâmbio comercial entre o Brasil e o continente africano triplicou desde 2002. As exportações brasileiras para a África aumentaram mais de 487% no período que vai de 1996 a 2006, e o maior crescimento foi observado no período de 2002 a 2006 – 315% em quatro anos. No que se refere às importações, houve um acréscimo de 478% nos últimos dez anos, e as cifras saltaram de US$ 2,6 bilhões em 2002 para US$ 8 bilhões em 2006. A corrente de comércio nos dois sentidos passou de US$ 6 bilhões em 2003 para US$ 15 bilhões em 2006. Para RIBEIRO (2009), considerando estritamente o intercâmbio Brasil-África Subsaariana, África do Sul, Angola e Nigéria podem ser identificados como alternativas estratégicas para a diplomacia brasileira, uma vez que o potencial de crescimento e as demandas por investimentos podem beneficiar um grande número de empresas nacionais. Essa percepção também pode ser vista pela análise do intercâmbio comercial entre o Brasil e o continente africano, com destaque, nos últimos anos, às relações comerciais com Angola, Nigéria e África do Sul, que juntos representam em média 48% do total das exportações brasileiras para aquele continente e 53% das importações africanas para o Brasil. Para o continente africano, o petróleo, além do gás, também representa um triunfo econômico e tecnológico, cujas oportunidades de investimento têm atraído os grandes players internacionais, a exemplo de algumas empresas brasileiras, interessadas em participar tanto de projetos de engenharia do petróleo como daqueles voltados para a construção (ou reconstrução) de infraestrutura, mediante a exportação de serviços de engenharia. Se o discurso retórico funciona para as relações culturais e comerciais, o pragmatismo cerca as decisões do Brasil nas votações em torno das questões dos direitos humanos no continente africano. O Brasil não tem a pretensão da superioridade moral que certos países têm de dizer como os outros países devem agir, reforçando o principio da nossa política de não-intervenção. Mas se a medida de o que Brasil amplia suas relações e faz sua voz ser ouvida e espera maior legitimidade, crescem as cobranças externas e internas sobre como determinados processos são pensados e como se toma partido de assuntos internos de 21

outros países. A resposta da diplomacia é procurar se expressar apenas nos foros adequados e nos momentos adequados, mesmo não sendo esta a postura em que os EUA e alguns países da União Europeia enxergam as situações. AMORIM (2010) cita que há caso de um país que vem sendo condenado há 20-30 anos na comissão de direitos humanos da ONU, e às vezes até com o voto do Brasil – e a situação dos direitos humanos não necessariamente mudou nesse país. No caso do Sudão, em 2006, a União Europeia propôs uma resolução que condenava o país e montava uma comissão de investigação. O Sudão e a União Africana foram contra. O Brasil não apoiou e considerou que isso não levaria a lugar algum, porque haveria um isolamento crescente e impossibilidade de diálogo, portanto, abstendo-se em votações importantes do Conselho de Segurança. Seis a oito meses depois, houve uma sessão especial, apoiada pelo Brasil, na qual o resultado foi a criação de um grupo de peritos apoiado pela União Africana. Não se sabe se os problemas dos direitos humanos foram resolvidos devido à complexidade da questão, mas o Itamaraty prefere esse tipo de diálogo do que uma contestação e condenação de todos os regimes, afirmando que isso é o melhor para as pessoas que vivem nesses países. Para AMORIM (2010), o assunto direitos humanos é complexo porque há problemas com imigração e racismo em países democráticos. O Brasil lançou e defende (desde o governo FHC) uma resolução de que o racismo é incompatível com a democracia – e a maioria dos países europeus reagiu muito mal inicialmente, defendendo que esse tema era assunto dos países ricos, e que o Brasil e países do terceiro mundo, se quisessem, deveriam invocar os direitos sociais e econômicos. O Brasil se absteve em votações envolvendo questões de direitos humanos no Congo, Coréia do Norte e Cuba, lembrando que 90% das resoluções sobre temas são localizados na África. A diplomacia brasileira reitera que dar lição de moral e condenar não vai melhorar a situação. O que interessa é estabelecer um diálogo. Segundo este discurso, há coisas que são responsabilidade do governo, e outras de forças rebeldes. Amorim cita a Mauritânia, onde houve um golpe que fez o país ser suspenso da União Africana, desta forma legitimando que não é possível dizer que a união não procura a democracia. Não existe posição marcada, automática. Estabelecer resoluções, saber mais que os países em questão, não resolve seguindo a visão da PEB. O Brasil não tem alinhamentos automáticos nem com os países ditos nãoalinhados. Todas as questões levam em consideração assuntos geopolíticos. Observando 22

as questões dos direitos humanos, por exemplo, Japão e Coréia do Sul votam geralmente de maneira alinhada com os países ocidentais e principalmente os EUA e, no entanto, se abstiveram na resolução do Sri Lanka, por questões puramente geopolíticas. O chanceler deixa claro que na política internacional temos que ter e defender princípios, mas se não os defendermos com o mínimo de pragmatismo, então é melhor ficar em casa – “se formos nos reunir apenas com pessoas virtuosas, talvez nem precisemos nos reunir”7. Outro exemplo foi o Zimbábue, que recebeu a visita diplomática do Brasil em um momento delicado, em que todos os países ocidentais achavam que não podia haver nenhum diálogo com um governo de união nacional que há até então estava a beira da guerra civil. A vizinha África do Sul não enfrentou o Zimbábue e considerou o governo de coalizão a melhor saída para evitar uma crise. Se a África do Sul pensa assim, o Brasil pensa que não é um país do outro lado do oceano que vai dar uma lição diferente.

2.3. Brasil e o Oriente Médio Em continuidade a diplomacia da diversificação e a inserção do Brasil em um papel mais protagonista, Lula também conseguiu feitos inéditos em sua política com o Oriente Médio. De 2001 a 2009, o intercâmbio comercial entre o Brasil e os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) cresceu consideravelmente, saltando de US$ 2,4 bilhões para US 6,3 bilhões. Em 2009, o Brasil exportou US$ 4,6 bilhões para o CCG, e importou US$ 1,7 bilhão. Em 2009, Brasília recebeu três dos principais atores nos conflitos do Oriente Médio: Mahmoud Ahmadinejad do Irã, os presidentes israelense, Shimon Peres, e o palestino, Mahmoud Abbas. Em março de 2010, o presidente Lula fez uma viagem ao Oriente Médio com visitas a Israel, ao território palestino da Cisjordânia e à Jordânia, com o objetivo de reforçar as relações bilaterais e impulsionar a paz. A viagem fez de Lula o primeiro chefe de Estado brasileiro em visita oficial a Israel e o primeiro que viaja à região desde que o Imperador Dom Pedro II visitou a Terra Santa em 1876, ainda que a viagem do monarca não tenha sido oficial8. Lula disse que pretende fazer do Brasil um dos possíveis mediadores para tentar impulsionar o complexo processo de paz no Oriente Médio. NYE (2010) explica 7 8

Programa Roda Viva. TV Cultura. 07 de jun. 2010 CHACRA, Gustavo. D. Pedro II ''desbravou'' Oriente Médio. O Estado de S. Paulo. 22 nov. 2009.

23

que o soft power do Brasil pode ser usado de modo positivo na questão entre Israel e a criação do Estado palestino, mas diz que pode ser negativo se envolver na questão das armas nucleares no Irã. Em mais uma tentativa de se mostrar como potência emergente, a diplomacia brasileira negociou junto ao Irã desde 2009 a possibilidade de um acordo em torno do enriquecimento de urânio. O resultado foi uma viagem cercada de expectativa onde Lula foi ao Irã em maio de 2010 para fechar um acordo. O presidente Lula teve reunião com o líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, que afirmou que o Brasil adotou posições independentes contra as "políticas arrogantes" dos EUA. Segundo a agência de notícias oficial iraniana IRNA, o aiatolá disse que o Irã "acolhe" a ampliação da cooperação mútua com o Brasil no nível internacional. Na missão comercial estavam alguns dos maiores grupos nacionais, como a Brasil Foods (fusão de Perdigão e Sadia), as empreiteiras OAS e Andrade Gutierrez e a Parmalat. O Brasil exporta por ano US$ 1,2 bilhão ao país, em alimentos e bebidas, e importa US$ 14 milhões, em minerais e produtos (como tapetes). Sobre o acordo proposto pelo Brasil, ALBUQUERQUE (2010) comenta que o presidente Lula transformou sua viagem ao Irã em ícone e quer comprovar a nova capacidade do Brasil de interferir nas questões internacionais, de uma maneira que pretende ser decisiva. O governo brasileiro prometeu ser bem sucedido em algo que o mundo todo tem fracassado: até agora, o sexteto (membros do Conselho de Segurança e a Alemanha) não conseguiu chegar a um acordo com o Irã. Evidentemente, é uma grande jogada. Sobre o protagonismo brasileiro no Oriente Médio, o embaixador RICUPERO (2010) cita que a política nuclear iraniana é bastante profunda e tem relação com a própria identidade do regime do país, sem qualquer condição de mudança de posição porque vem um homem simpático e barbudo que dá uns tapinhas nas costas. Se fosse verdade que o Brasil tem uma vocação incoercível para levar a paz a todos os pontos conturbados do globo, por que não levantamos um dedo na questão que dividiu o Uruguai da Argentina a respeito dos únicos investimentos que o Uruguai conseguiu que eram duas usinas de papel? Se há um país que nós conhecemos, que é ligado ao Brasil, e até descende de brasileiros é o Uruguai. E o governo brasileiro não fez nada. Se tínhamos esse comportamento porque achávamos que não era um assunto nosso, como é que vamos levar a paz para uma região em que nem os EUA, que possui todos os

24

instrumentos, não conseguiu nada? Tecnicamente a influência diplomática é próxima do zero. Com ajuda da Turquia, o Brasil chegou a um acordo com o Irã em 17 de maio de 2010. Pelo combinado, o Irã aceita entregar 1.200 kg de urânio enriquecido a 3,5% à Turquia; no prazo de um ano, os iranianos receberiam de volta 120 kg de urânio enriquecido a 20% para uso em reatores para fins médicos e de pesquisa. Com isso, em tese, o Irã não poderia enriquecer seu urânio para fabricar uma bomba atômica. Mas há um detalhe importante. O acordo é semelhante ao feito pelas potências ocidentais em outubro de 2009. A diferença é que, na época, 1.200 quilos eram todo o material nuclear que o Irã dispunha. Hoje, acredita-se que os iranianos tenham ao menos um terço a mais em estoque, ou seja, mesmo entregando o montante combinado, o Irã ainda terá urânio para enriquecer a 90%, quantidade suficiente para fazer uma bomba atômica. Para o presidente brasileiro e para o premiê turco, Recep Erdogan, o acordo significa uma afirmação de suas importâncias na diplomacia internacional. Mas as potências receberam o acordo com cautela e ceticismo. A reação americana foi a mais perceptível. A secretária de Estado Hillary Clinton comentou que a diplomacia brasileira estava sendo ingênua e que o Irã planeja é ganhar tempo atrasando a implantação de novas sanções e assim continuam enriquecendo urânio. O ceticismo foi ainda maior quando o Irã afirmou que continuará enriquecendo urânio mesmo entregando os 1.200 quilos. O jornal New York Times destacou que o acordo pode atrapalhar os planos dos EUA de garantir apoio internacional às sanções que buscava implementar contra o programa nuclear iraniano. A China e a Rússia, que vêm relutando em aplicar as novas sanções, poderiam se basear no acordo para declarar as conversas sobre punições encerradas. O presidente dos EUA, Barack Obama, teve em suas mãos uma decisão importante. Se ignorasse o acordo, poderia emitir sinais de que está rejeitando termos muito parecidos aos que se dispôs a aceitar há oito meses, quando o Irã acabou rejeitando a proposta na última hora. Por outro lado, se aceitasse, muitos dos assuntos urgentes que deveriam ser discutidos com o Irã nos próximos meses, a maioria relacionados às suspeitas de produção da bomba atômica, teriam que ser colocados de lado por pelo menos um ano ou até mais. A saída foi apressar as novas sanções. Os EUA negociaram desde fevereiro de 2010 a nova rodada de sanções ao programa nuclear iraniano. Para tal, precisam do voto dos outros quatro membros permanentes do Conselho – Reino Unido, França e as 25

relutantes Rússia9 e China. Para ALBUQUERQUE (2010), o acordo atrapalhou o esforço dos EUA em colocar o programa nuclear do Irã dentro da linha. Isso vai prejudicar as soluções diplomáticas e jogar para o campo militar. O governo Lula ganha em exposição com a aparente vitória diplomática. Mas os principais parceiros ocidentais tiveram uma reação de menosprezo. A posição dos franceses de forma contundente contra. Mais otimista, o diário liberal britânico Financial Times comentou em editorial que o acordo nuclear turco-brasileiro com Teerã, independentemente de seu resultado, prova que o Brasil tornou-se uma "ponte" entre o Ocidente e "os emergentes". A Turquia, do outro lado, serviu de elo entre os ocidentais e o "mundo islâmico". Brasil e Turquia são países em posições semelhantes -com grande extensão territorial, processos recentes de redemocratização, crescimento econômico e abrindo novas embaixadas em áreas ainda não exploradas por suas diplomacias. Com as negociações no Irã, ambos os países quiseram demonstrar seus papeis de líderes entre os emergentes, com capacidade de colocar uma pauta menos burocrática e mais simpática do que as impostas pelas potências centrais. O resultado foi positivo, ainda que os EUA, mais céticos, negociassem lateralmente os votos necessários para impor novas sanções independentemente do resultado do acordo entre Brasil, Turquia e Irã. O governo brasileiro deixou claro, em Teerã, que não atuava como mediador entre o Irã e as potências ocidentais. O chanceler Amorim afirmou que não negociou em nome de ninguém e nem pediu mandato – o objetivo era discutir com os iranianos, ao lado dos turcos, o plano proposto em outubro de 2009 e definir zonas que permaneciam sombrias da proposta. Exigências das potências foram levadas em conta, como a reclamação americana da constante mudança de discurso por parte dos iranianos. O acordo prevê que a posição de Teerã seja submetida, por escrito, à AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica). Mas qual o custo-benefício do Brasil em se envolver na questão do Irã – tão distante e com interesses limitados? O discurso é que mesmo sendo um membro nãopermanente do Conselho de Segurança, de acordo com a Carta da ONU, o país participante deve tratar da paz e segurança internacional, e não apenas da sua região ou de assuntos diretamente ligados ao seu próprio país. O Brasil, seguindo a retórica de Amorim, tem interesse no tema por possuir uma grande comunidade de origem árabe e 9

Segundo a imprensa americana, os EUA derrubaram as sanções unilaterais contra agências militares de vendas de armas russas e concordou em não vetar a venda de baterias antiaéreas russas ao Irã.

26

judaica com ligações fortes a Israel. Desse modo, qualquer tema no mundo de uma maneira direta ou indireta afeta ao Brasil. O Brasil não fez uma proposta de paz e sim uma proposta de entrada para que negociações mais consistentes fossem discutidas para evitar o isolamento do Irã e uma resolução bélica. É importante frisar que o Brasil não se alinhou automaticamente ao Irã como fez a Venezuela, e não se declarou contra os EUA – ainda que parte da imprensa e críticos argumentem que a ação promoveu um antagonismo aos EUA. E por outro lado, China e Rússia, membros do conselho de segurança, apresentam inúmeras vezes posição dúbia, visando a manutenção de suas hegemonias regionais. Como ressalta OLIVEIRA (2010), ao empreender uma ação mediadora juntamente com a Turquia, aliado dos EUA, o Brasil envia um recado para a comunidade internacional: defenderá seus interesses ativamente, negociando mesmo sob condições desfavoráveis. Desse modo, superando o ceticismo norte-americano, o Brasil arca com uma ação calculada para demonstrar que poderá tomar posição frente a temas controversos. Ao contrário dos críticos que especularam que diante de um voto favorável as sanções ao Irã por parte de China e Rússia, restaria ao Brasil abster-se para “salvar a cara”, o Brasil tomou a decisão (a contragosto do presidente Lula) de assinar favoravelmente a resolução de sanções ao Irã. A resolução não atinge grande parte dos negócios brasileiros, mas a diplomacia brasileira foi absolutamente contra as sanções unilaterais dos EUA e União Europeia, por considerar que seu alvo será a população pobre do Irã. A assinatura do decreto em agosto de 2010, aprovando as sanções, ocorreu pela tradição da defesa do multilateralismo. Fora o fato do temor de que a recusa dos iranianos a proposta brasileira de receber uma iraniana sentenciada a morte por apedrejamento poderia repercutir mal em plena campanha presidencial, em caso de uma ação contrária de Lula em relação às sanções.

2.4. Candidaturas em Organismos Internacionais Um dos pontos de maior insucesso da diplomacia brasileira no governo Lula são as candidaturas aos organismos internacionais. Em maio de 2009, a OMC rejeitou a candidata brasileira Ellen Gracie Northfleet, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, para o posto de juíza da entidade. O eleito foi o advogado mexicano Ricardo Ramirez. A OMC informou ao Itamaraty que avaliou que Ellen Gracie não conhecia a matéria que teria de julgar: comércio. O Brasil ainda não contou com o voto americano, 27

nem o chinês. Foi mais uma derrota numa longa lista de campanhas frustradas. O Itamaraty foi informado por fontes nos bastidores que, para governos latino-americanos, a estratégia era a de não deixar o Brasil permanecer de forma indefinida no cargo máximo do tribunal da OMC. Um brasileiro já havia estado por oito anos no posto e, se Elle Gracie fosse eleita, significaria que o Brasil teria 16 anos no cargo. Antes de sua indicação para a OMC, a ministra Ellen Gracie, que sinalizava disposição para deixar o STF desde que saiu da presidência da corte, em abril de 2008, havia cogitado ir para a Corte de Justiça Internacional de Haia. Mas o governo brasileiro já tinha candidato – Antonio Augusto Cançado Trindade. Trindade foi eleito em novembro de 2008, desbancando o forte candidato colombiano Rafael Návea, apoiado pelo governo dos Estados Unidos. Uma rara vitória para uma lista de candidaturas frustradas. Em maio de 2005, o embaixador Luiz Felipe de Seixas Correia perdeu a eleição para o francês Pascal Lamy para direção geral da OMC. Em outubro do mesmo ano, o ex-ministro e ex-secretário da cultura de São Paulo João Sayad foi derrotado pelo representante da Colômbia, Alberto Moreno, à presidência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). O Brasil abriu mão da candidatura do brasileiro Márcio Barbosa, para apoiar o ministro da Cultura do Egito, Farouk Hosny ao cargo de diretor geral da Unesco (organização para educação, ciência e cultura). Este último caso foi emblemático. Mesmo com dois brasileiros no páreo, o Brasil apoiou oficialmente o egípcio Farouk Hosny, sendo preteridos o diretor-adjunto da Unesco, Marcio Barbosa10 – que tinha boas chances de ganhar a eleição, e o senador Cristovam Buarque (PDT-DF). Hosny desagradou não apenas à comunidade científica por declarações antissemitas, mas a parceiros importantes, como EUA, Rússia, México, Argentina, França, Índia, França e China, que já teriam declarado apoio ao brasileiro Barbosa. A justificativa do Itamaraty e do chanceler Celso Amorim para o apoio infeliz ao egípcio seria uma possível ampliação da participação do Brasil no processo de paz no Oriente Médio e o apoio da região ao Brasil por uma vaga no Conselho de Segurança da ONU. O apoio também tem base na aproximação do Brasil e as relações comerciais com os países árabes e da África.

10

Oficialmente, Amorim comentou que Barbosa não foi lançado oficialmente à disputa ao cargo da Unesco. O Brasil teve dois pré-candidatos não-oficiais, o outro sendo o senador Cristóvão Buarque.

28

Desde o início de seu primeiro mandato, em 2003, o governo Lula busca apoio para o ingresso do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU - uma reivindicação antiga de ex-presidentes brasileiros. O que motiva o Itamaraty a insistir na candidatura é o prestígio internacional que entrar para o clube daria ao país, pois aumentaria seu peso como interlocutor nas questões globais. Além do Brasil, estão na fila Japão e Alemanha, que assumem hoje uma posição bastante relevante na comunidade internacional. Para ARINOS (2007), o esforço do Brasil para conseguir uma cadeira permanente não é um erro, e que a grande resistência contra nós é do México e da Argentina. O Brasil de língua portuguesa nunca terá apoio para representar esses países de língua espanhola como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Toda a nossa força está na possibilidade representarmos a América Latina, e isso os países latinos não aceitam. Para ALBUQUERQUE (2010), o Brasil não ganha nada com esse “samba de uma nota só” - repetir esse assunto em todas as viagens seria totalmente inútil. Mesmo porque, qualquer mudança na estrutura do Conselho está bloqueada, devido ao veto da China - que quer evitar a entrada do Japão, candidato dos EUA, no grupo. As negociações não vão avançar. Ainda assim, o Brasil tem apoios, como do novo governo britânico do primeiro-ministro conservador David Cameron, e seu vice, o liberal-democrata Nick Clegg. Em política externa, um dos pontos que eles claramente defendem é a reforma do Conselho de Segurança e tal mudança incluiria o Brasil como membro fixo. Lula defende ainda mais poder para a FAO (Organização da ONU para a Agricultura e Alimentação), que considera pouco aparelhada para combater a miséria na África. Na Europa, três líderes endossam a postulação de Lula para secretário-geral da ONU: o presidente de governo da Espanha, José Luis Rodríguez Zapatero, o premiê de Portugal, José Sócrates, e o presidente da França, Nicolas Sarkozy. Diversos presidentes da América do Sul já sugeriram a Lula seguir esse caminho, de Hugo Chávez (Venezuela) a Cristina Kirchner (Argentina). O Brasil continua com o objetivo de reformar o Conselho de Segurança da ONU, torná-lo mais representativo, mas o chanceler Amorim reforça que só vale a pena participar se for possível expressar sua opinião, usar seu julgamento – participar só para dizer “sim” a uma potência hegemônica não vale a pena. Esta ideia reforça a tese de que parte dos esforços em negociações internacionais (caso do Irã) resulta no Brasil querer mostrar aos membros do Conselho de Segurança e aos países em desenvolvimento que a

29

diplomacia brasileira tem capacidade de participar das reuniões e negociar em nome da paz. O Brasil acredita na necessidade da reforma do Conselho de Segurança para que as decisões tenham maior legitimidade, pois não corresponde mais a realidade de hoje. O mundo precisa perceber o conselho como representativo – precisa sofrer um processo como houve com o G7 em relação ao G20 nos assuntos financeiros, mas é difícil os membros permanentes, sobretudo os EUA, a uma mudança. A “campanha” pode ser vista ativamente com a diplomacia brasileira sempre levantando o tema nas viagens presidenciais e na abertura (em vários casos, reabertura) de 36 embaixadas em países que poderiam influir na ONU. Independentemente da reforma ocorrer ou não, a voz do Brasil está sendo mais ouvida. Outro ponto importante foi o afrouxamento do antiamericanismo no início do segundo mandato de Lula (2006-2010). Se com as ações do Brasil no Haiti, a diplomacia esperava um sinal de apoio norte-americano ao ingresso brasileiro no Conselho de Segurança, isso foi descartado quando os EUA decidiram nem discutir a reforma. Com a saída de George W. Bush, o Brasil perdeu uma figura que servia de contraponto ideológico para as manifestações de nossa diplomacia a diversos regimes políticos criticados. Com a posse de Obama, deu-se lugar para uma retórica contra os EUA, como visto nas duras críticas sobre o uso das bases militares colombianas pelas Forças Armadas norte-americanas, e no apoio precoce na vitória obscura de Ahmadinejad nas eleições iranianas.

30

III – “Brazil takes off” (O Brasil Decola)11 3.1. Brasil e a Globalização Financeira A Globalização financeira caracteriza-se pelos aumentos de fluxos (de produtos e capitais). Os mercados tornaram-se cada vez mais interdependentes. Essa competição levou a políticas nacionais, regionais e políticas globais, que não necessariamente se compatibilizam. Um exemplo disso é a política norte-americana que levou a uma bolha resultando numa crise no sistema econômico internacional. O Brasil passou por mais um teste em sua economia devido à diversificação de sua política externa (leia-se: balança comercial; parcerias estratégicas e regulação do setor financeiro)

3.1.1. Crises e Ajustes Os três processos distintos que interagem na globalização financeira podem ser descritos como; primeiro, a aceleração dos fluxos financeiros internacionais, o que incluem empréstimos, financiamentos e investimentos de portfólio. Segundo BAUMAN (2004, p.221), houve uma extraordinária expansão dos fluxos de capital em todos os mercados do sistema financeiro internacional. O segundo processo é o acirramento da concorrência internacional, manifestando-se pela maior disputa por transações financeiras internacionais envolvendo, de um lado, bancos e de outro, instituições financeiras não bancárias; as empresas transnacionais que passam a atuar mais diretamente com instituições financeiras próprias; e os investidores institucionais, que adotaram estratégias de investimento com bases geográficas. Além disso, os chamados "mercados emergentes" passaram a ter centros financeiros importantes para a aplicação ou intermediação de recursos. Esses centros estão em todos os continentes, passando por Hong Kong na Ásia, cidades do Leste Europeu, e até América Latina.

11

A revista britânica The Economist dedicou sua capa e 14 páginas à ascensão econômica do Brasil. Intitulado “Brazil Takes Off” (O Brasil Decola, em tradução literal), o editorial afirma que o país parece ter feito sua entrada no cenário mundial (14 nov.2009)

31

O terceiro processo é a maior integração dos sistemas financeiros nacionais. Desse modo, a globalização financeira corresponde à ocorrência simultânea dos três processos citados. O sistema financeiro internacional tem riscos específicos que configuram instabilidade ao sistema e volatilidade dos fluxos de investimento nacional, resultando em vulnerabilidade externa. Os riscos são de crédito, onde há a incapacidade do devedor em cumprir com suas obrigações; riscos de mercado, onde as perdas são decorrentes de queda nos preços de ativos; riscos de liquidação, onde a contrapartida de uma operação não ocorre; riscos de liquidez, onde há falta temporária de recursos; risco legal, resultado de imperfeições nos mecanismos jurídicos e institucionais que balizam as transações; riscos operacionais, onde há falha de controle; e risco sistêmico, onde o sistema financeiro tem seu funcionamento paralisado por um evento desestabilizador grave. O aumento dos fluxos, a competição entre os mercados e a interação entre eles irão resultar na questão da tecnologia, no pensamento neoliberal do papel da desregulamentação, liberalização e desintermediação. GILPIN (2004) explica que uma das fontes das crises financeiras recorrentes desde a década de 1960 é o capital financeiro desregularizado a partir dos acordos de Bretton Woods. Houve uma mudança nesse processo desde a privatização, queda de arrecadação, desemprego e a perda no setor produtivo. Atualmente pode ser dito que estamos vendo uma crise da visão neoliberal ou um rearranjo como ocorreu no passado com a crise do laissez-faire. Como a economia ficou extremamente financeirizada pela integração e interdependência, está levando o sistema à desfinanceirização - desalavancagem (ninguém conseguirá voltar a financeirização que levou a esta alavancagem). O chamado sistema monetário internacional entra em crise com a falta de liqüidez, o que gerou a falta de confiança. CHESNAIS (2005, p.38) diz que os processos de desregulamentação monetária e financeira, a descompartimentalização dos mercados financeiros nacionais e a desintermediação (abertura das operações de empréstimos) interagem profundamente entre eles. Há a liberalização dos mercados de câmbio, abertura do mercado de títulos públicos aos operadores estrangeiros e abertura da Bolsa às empresas estrangeiras. A desintermediação ainda permitiu que as instituições financeiras não-bancárias tivessem acesso ao mercado como emprestadoras. E foram estas últimas que mais se privilegiaram e tiveram crescimentos espetaculares desde o início da desregulamentação 32

financeira. Abriu-se caminho para criação de novos produtos financeiros (“inovação financeira”) como os derivativos. Existem algumas variáveis inclusas na questão da desregulamentação. Uma delas é da parte tecnológica. KRUGMAN (2001) comenta que a tecnologia está centrada no processo de industrialização e globalização. Há também a questão do progresso técnico, dos gastos sociais e infra-estrutura, gasto bélico, demanda externa (balanço de pagamento e investimento externo) e a distribuição de riqueza e renda. A liberalização e desregulamentação foram feitas a largos passos sob a direção do FMI e do Banco Mundial, e sob pressão dos EUA. Os mercados emergentes foram abertos ao capital financeiro a partir dos anos 1990 criando-se novas praças financeiras. Uma das causas para as crises são os choques financeiros causados diretamente pelas retiradas brutais dos investidores estrangeiros que propagam-se de forma contagiosa, atingindo funções essenciais do sistema financeiro como o mercado de crédito e a esfera de produção. Esses choques ocorrem tendo como origem o papel financeiro do dólar como moeda “virtual” de referência internacional. Mesmo sem paridade fixa e com o aumento vertiginoso da dívida pública norte-americana (que serve como lastro de segurança aos mercados financeiros mundiais), o dólar dentro do sistema de câmbio funciona como peça fundamental do sistema atualmente desregulado. As organizações internacionais como o FMI têm cada vez mais papel secundário no gerenciamento ou supervisão das finanças globais. Hoje tendem a ter um papel mais político, tendo os EUA não demonstrado interesse em abrir mão do seu poder econômico. Expectativas, instabilidade, risco e incerteza formam o conjunto que marca um período de crises, que normalmente não se sabe quando começa ou termina. Um dos problemas em relação às crises cambiais estarem associadas às crises financeiras desde o final do século XX é não apenas pelo dólar ser a moeda-padrão aceita internacionalmente, mas pela busca de maior segurança ser a liquidez (ou seja, dinheiro). As pessoas deixam ativos e partem para o dinheiro. Bolsas e outros ativos oscilam aleatoriamente. Não existe expectativa das bolsas de valores subirem ou caírem na próxima semana, devido ao grau de incerteza, por estarem sempre nas mãos dos agentes e de seu humor. O que gera a falta de liquidez é a bolha com base nas expectativas. Segundo BELLUZZO (2007, p. 36), os detentores da riqueza são obrigados a tomar decisões que podem dar origem a situações de equilíbrio múltiplo ou a dinâmicas 33

auto-referenciais que culminam na exuberância irracional, na decepção das expectativas e na desvalorização da riqueza. Atualmente essa exuberância irracional contamina quatro mercados: bônus, imobiliários, commodities e os de moedas de países emergentes. Quanto aos riscos de inflação na última crise, a presença de forças que se movem em sentido contrário, de um lado a tendência deflacionária dos preços dos produtos manufaturados, por conta do excesso de capacidade à escala global; e de outro a demanda chinesa e as taxas de juros, ainda baixas, favorecendo a formação de posições especulativas altistas nos mercados de commodities. As atuais políticas monetárias têm conseguido apenas empurrar para frente o problema para controlar os mercados e o crescimento da economia globalizada.

3.1.2. Inserção internacional e vulnerabilidade externa brasileira O crescimento da exportação de bens primários é a variável fundamental que diferenciou o desempenho da economia brasileira a partir de 2003 (governo Lula). A redução dos indicadores de vulnerabilidade ocorre diretamente pelo resultado favorável das exportações. Permanece a adoção do modelo anterior (vinculado ao ciclo do comércio

internacional),

podendo

criar

variáveis

de

vulnerabilidade

como:

aprofundamento do padrão de especialização retrógrada, que se caracteriza pela reprimarização das exportações; perda de dinamismo da indústria de transformação, com a especialização em setores intensivos em recursos naturais e desarticulação das cadeias produtivas; ausência de progresso na estrutura produtiva implica na consolidação de um padrão de inserção na periferia do sistema mundial de comércio; aumento da dependência do crescimento do PIB em relação à demanda externa, tornando o país estruturalmente vulnerável; e estrutura produtiva brasileira presa às commodities, o que leva à vulnerabilidade porque a demanda depende do crescimento de economias externas. Os dólares que ingressam do exterior (via IED – Investimento Estrangeiro Direto) para o setor produtivo contribuem para financiar o crescimento da economia brasileira. Os investimentos no parque industrial aumentam a produção, criam empregos e geram demanda por fornecedores e serviços locais. Os recursos também ajudam a cobrir o déficit em transações correntes gerado por maior gasto dos brasileiros no exterior, remessa de lucros para o exterior e pagamento de juros. 34

O investimento internacional é formado pelo comércio internacional (bens e serviços), o IED (substituição ou complementaridade) e a relação contratual de transferência de ativos (muitas vezes tecnologias e patentes). Há ainda o portfólio (papéis, ações na Bolsa de Valores) que formam o sistema financeiro. A relação comércio internacional (fluxo de mercado) e IED resultam na internalização – a empresa estrangeira produz ela própria o bem ou serviço. A externalização ocorre quando o agente de produção for um não-residente (estrangeiro na economia nacional). Isso funciona através de um contrato com metas, preços e prazo para utilização de uma marca, técnica ou patente pagando royalties. Por exemplo, técnicos exploram petróleo na África utilizando tecnologia brasileira. A Petrobrás recebe os royalties, mas não está presente. Nos anos 1960, os europeus tinham alergia ao IED, pois enfraqueciam a economia nacional. Entretanto, o IED fica concentrado nos países centrais. Em 2007, 80% do IED (cerca de US$ 1,2 trilhão) permaneceu na Europa. Os outros 20% (US$ 300 milhões) foram para países em desenvolvimento no Leste Europeu, América Latina e China. O IED mantém capital no país hospedeiro e transfere lucros e dividendos para o país de origem. Mas em caso de crise, as empresas transferem o capital aplicando em países em desenvolvimento para cobrir o “buraco” no país de origem. Tem-se então a fuga de dólares e aplicações. As políticas devem ser repensadas para não serem nem passivas (que se baseiam nas condições macroeconômicas do país, que podem ser suficientes para atrair empresas cujo objetivo é a busca de mercados e recursos naturais), nem ativas (se orientam pela busca de empresas que perseguem a eficiência da produção de bens e serviços para exportação, e que podem gerar benefícios adicionais como a criação de cadeias produtivas), e sim políticas integradas – a melhor forma de aproveitar os benefícios do IED é integrar as políticas de atração dos investimentos com a política de desenvolvimento. Quando ambas estão coordenadas e integradas, permitem que uma parte do país se potencialize e gere condições para se fazer atrativo para os investidores e, ao mesmo tempo, aproveitar ao máximo os benefícios potenciais do IED. As empresas transnacionais (ETs) são os principais locais de acumulação e poder econômico a partir de seu controle de ativos específicos (capital, tecnologia, capacidade gerencial, cultural, organizacional e mercadológica). No contexto de globalização, empresa transnacional é identificada como um grupo econômico ou corporação com ativos em pelo menos dois países, respondendo por quase a totalidade 35

do IED no mercado. As ETs têm como características principais a organização em rede, foco externo, estilo flexível, estrutura independente, recursos bancados no conhecimento, operações integradas, produção em massa (customizado) e alcance global. Os investimentos estrangeiros diretos para o setor de serviços no primeiro trimestre somaram US$ 2,9 bilhões, com leve alta em relação a 2009. Os ingressos voltados para agropecuária e extração mineral – US$ 1,3 bilhão – quase dobraram em relação a 2009. Entre compras e vendas de ações, os investidores estrangeiros aplicaram R$ 3,150 bilhões na Bovespa (Bolsa de Valores de São Paulo) no mês de março de 2010. Trata-se do maior saldo desde os R$ 4 bilhões registrados em setembro de 2009. Os números de março confirmam a influência do capital externo para impulsionar o mercado brasileiro de ações. Em março de 2010, os investidores estrangeiros responderam por um quarto do volume financeiro total e nesse período, o índice Ibovespa, que reflete as oscilações dos preços das ações mais negociadas, teve valorização de 5,82%. A balança comercial fechou com superávit de US$ 668 milhões em abril de 2010. No ano anterior, o resultado da conta comercial havia ficado positivo em US$ 1,757 bilhão. Um dos maiores investidores do Brasil é a Espanha. O Brasil foi também favorecido pela queda do risco-país12. Em 1995, a desvalorização do peso mexicano detonou uma onda generalizada de descrença sobre as economias emergentes. O Brasil sofreu as consequências: o risco-país bateu em 1.689 pontos em março daquele mesmo ano. No ano seguinte, sem crises globais, o país conseguiu atrair investimentos externos, domando a inflação e tentando controlar gastos públicos. O risco-país, por sua vez, recuou de 910 pontos em janeiro para 523 no final de 1996. O pior resultado que o risco-país já atingiu (recorde de alta) foi a pontuação de 2.436 pontos, no dia 27 de setembro de 2002, pouco antes da eleição Lula para presidente. Essa pontuação foi registrada logo depois do FMI ter liberado um empréstimo de US$ 30 bilhões para socorrer a economia brasileira. A evolução positiva da economia brasileira com uma política fiscal e monetária mais organizada e estável, e 12

O risco-país é visto como um "termômetro" informal da confiança dos investidores globais em país de economia emergente. O indicador mais visado pelo mercado é o EMBI+, sigla em inglês para "Emerging Markets Bonds Index", isto é, Índice de Títulos da Dívida de Mercados Emergentes. É calculado pelo banco JP Morgan tanto para o Brasil e outras economias emergentes. Quando um país apresenta um riscopaís baixo, como em cerca de 100 pontos para os emergentes, abre portas para investimentos mais sólidos e para empréstimos mais baratos para o governo.

36

com uma democracia consolidada resultou em um processo de queda do risco-país (ver gráfico 1), facilitando a entrada de investimentos.

Gráfico 1: Fonte: JP Morgan

A atual crise na Europa desencadeada pela Grécia resultou em ligeira alteração do risco-país brasileiro. Como os mercados financeiros estão interligados, o Brasil também sofreu. Seu risco-país subiu 23,5%, para 153 pontos, entre os dias 3 e 7 de maio. Pode parecer muito, mas é a situação mais confortável, tanto em nível de pontos, quanto em valorização, entre todos os PIIGS, países europeus que vêm dando sinais de cansaço na caminhada econômica: Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha.

3.2. G-20s e Reforma do FMI O Brasil participa ativamente das discussões globais, como a rodada Doha (OMC). Tendo o termo “terceiro mundo” caído em desuso, o mundo passou a ser dividido entre países em desenvolvimento (PED) e países desenvolvidos (PD). Os PED buscam o aumento das exportações agrícolas, vários têm interesses em proteger mercados agrícolas e buscam proteger seu desenvolvimento industrial. Já os PD buscam acesso aos mercados dos PED (especialmente os do sul) e dos outros PDs, sobretudo nos mercados de manufaturados e serviços. Uma parte desses PDs procura proteger seus próprios mercados agrícolas, caso de EUA, França e Austrália. Com a Rodada Uruguai, cujas conversações duraram sete anos (1986-1993), houve um período de forte hegemonia dos países ricos. Os países em desenvolvimento estavam falidos devido à crise das dívidas externas. Em 1987, o Brasil declarava moratória, pois não tinha dinheiro para pagar a dívida. Na rodada Uruguai, os PED

37

abriram seus mercados, enquanto os PD prometiam maior abertura, incluindo de produtos têxteis. Os países concordaram em reduzir as cotas de produtos manufaturados. Houve também abertura dos serviços – especialmente bancos, seguradores e na área de comunicação. Na área de propriedade intelectual, houve a discussão do acordo TRIPS (Trade Related Aspects of Intelectual Property Rights)13. Os PED, em bloco, aceitaram assinar os acordos referentes a patentes e ao copyright. A rodada trouxe resultados desiguais e desfavoráveis para o bloco latino-americano visto que no lugar de cotas, foram criados tarifas agrícolas – por exemplo, o arroz paga imposto de 550% para entrar no Japão. Por sua vez, os PD (especialmente a União Européia) fazem política de subsídios agrícolas. Não houve liberalização da área agrícola e sim apenas de manufaturados. Criaram-se as tarifas seletivas – abrindo brecha de uma abertura maior para certos produtos manufaturados. Os subsídios agrícolas resultam numa invasão dos produtos agrícolas dos países mais poderosos (o maior exemplo disso foi o México que, mesmo fazendo parte do NAFTA, enfrentava a concorrência do milho dos EUA – mais barato). O acordo TRIMS (Trade Related Investiment Measures) travava mais de investimentos do que de comércio. Buscava impedir a criação de cotas de exportação pela entrada de empresas multinacionais. Outra regularização foi o julgamento e punição pela Organização Mundial do Comércio (OMC), especialmente ao dumping. O dumping é caracterizado quando um produtor coloca um produto a um preço muito abaixo do mercado para quebrar a concorrência. Um país pode sobretaxar outros produtos se outro país não respeita determinada regra de mercado. Nesta época, 90% dos países não tinham profissionais com know-how para negociar. O Brasil é uma exceção e tem vencido várias batalhas14 na OMC. A segunda fase da rodada Doha, em Cancún (México) em 2003 no início do governo Lula, foi um fracasso nas negociações após quatro dias de discussões que foram focadas em agricultura, produtos manufaturados, comércio de serviços e normas alfandegárias. O debate resulta na criação de um grupo de países em desenvolvimento e

13

Com o acordo TRIPS, houve enorme transferência de renda dos PED para os PD com pagamento de royalties e patentes que antes não eram pagos. Com a regulamentação, por exemplo, a champagne passou a ser somente o produto produzido na região de Champagne na França. Os remédios, que eram alvo de pirataria (inclusive no Brasil) foram regularizados com as patentes. 14 Dois exemplos de vitórias do Brasil na OMC foram a ação contra os subsídios do algodão nos EUA, e uma ação favorável à Embraer em uma disputa internacional com a canadense Bombardier.

38

industrializados – o G20 (ou Grupo dos 20)15. Mesmo não tendo membros fixos, o grupo tem como destaque o G4 (China, Índia, Brasil e África do Sul), que respondem juntos por 65% da população mundial, 72% de suas fazendas, 22% de sua produção agrícola e 26% das exportações agrícolas. O Brasil liderou o grupo G20 durante as negociações. A divisão Norte-Sul tornou-se ainda mais evidente na rodada de 2008 em Postdam (Alemanha) com a recusa dos PED nos acordos referentes aos subsídios agrícolas da Política Agrícola Comum da União Européia e do governo dos EUA. Por sua vez, os países desenvolvidos tentaram abrir concessões em troca de um grau maior de abertura para os produtos manufaturados e serviços nos países em desenvolvimento. Para o Brasil, essa abertura era favorável, mas entre os PED surgem ressalvas: nas áreas agrícolas, vários países queriam criar salva-guardas – África do Sul, Argentina, Bolívia e Venezuela reclamavam de que se houvesse uma ampla liberalização haveria uma invasão de produtos dos países desenvolvidos por preços baixos. A criação do mecanismo de salvaguarda estaria condicionada a uma importação de mais de 10% de produtos agrícolas em um ano. O Brasil surpreendeu ao negociar sozinho uma abertura aos produtos industrializados apostando numa liberalização agrícola. A atitude foi interpretada pelo governo argentino como traição e como perigo para a estabilidade do Mercosul, o que resultou em um estremecimento no G20. Com as rodadas de Doha, o Brasil abandonou uma postura defensiva, esperando apenas receber, típica dos países menos desenvolvidos. A postura reflete a mudança de um perfil mais protecionista do século XX, para uma posição de reconversão de sua economia. Tornando-se uma potência emergente ao lado de Rússia, Índia e China, ficaria a dúvida que até que ponto o Brasil estaria disposto a pagar o custo por ser o líder da América do Sul. A liderança global verificada na OMC e no G20, por exemplo, e até regionais como a Unasul e o Conselho de Defesa Sul-americano, esbarram com problemas com os vizinhos. São questões de dívidas e de investimentos no Equador, de tarifas energéticas com o Paraguai ou de falta de coordenação comercial com a Argentina.

15

O G-20 tem uma vasta e equilibrada representação geográfica, sendo atualmente integrado por 23 Membros: 5 da África (África do Sul, Egito, Nigéria, Tanzânia e Zimbábue), 6 da Ásia (China, Filipinas, Índia, Indonésia, Paquistão e Tailândia) e 12 da América Latina (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Cuba, Equador, Guatemala, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela).

39

AMORIM (2010) reitera que a discussão de Doha não será abandonada e terá que continuar e ser concluída, mas independentemente desse aspecto do fortalecimento do multilateralismo, que é absolutamente essencial no comércio, como também em outras áreas, o Brasil conseguiu nesse período algo notável em matéria de diversificação de suas relações econômicas e comerciais. E também conseguiu fortalecer seu mercado interno e outros fatores que ajudaram na projeção do Brasil no mundo. Mas essa diversificação foi muito importante para o Brasil enfrentar a crise. O México, segundo o presidente Calderón, sofreu por sua imensa dependência em relação ao mercado norteamericano. O Brasil sempre teve um comércio diversificado e hoje é ainda mais. E o papel dos países em desenvolvimento, que são os mercados mais dinâmicos a médio e longo prazo – quando o Brasil começou a dar ênfase a esses mercados houve muita crítica, de que isso seria um risco e deveria se investir nos mercados tradicionais – Europa e EUA. Hoje quem sugere isso é o presidente do Banco Mundial, dizendo que a resposta para os países em desenvolvimento é o mercado interno e o comércio Sul-Sul. E o Brasil começou esse processo de forma mais intensiva em 2003. Atualmente o Brasil possui um comércio expressivo com a China e a Índia e ampliou suas relações com a África. A África (antes considerada perda de tempo ou um grande risco) hoje, se considerarmos o continente como um país para ilustrar, seria o quarto mercado do Brasil abaixo da China, dos EUA e a da Argentina, estando acima da Alemanha e do Japão. Para a nossa diplomacia, o potencial comercial é imenso mas falta ousadia dos empresários e das companhias de aviação (não existe ligação aérea entre Brasil e a África por empresas brasileiras). Os EUA não enxergam mercado grande ou pequeno, enxergam simplesmente um mercado. O Brasil está no processo de trabalhar em cima dessa visão, deixando de ignorar territórios. Com a mesma importância, o Brasil participou de discussões em outro G-20, também conhecido como “G20 Financeiro”. O G-20 Financeiro16 é um grupo formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do

16

O G-20 Financeiro visa a favorecer a negociação internacional, integrando o princípio de um diálogo ampliado, levando em conta o peso econômico crescente de alguns países, que juntos compreendem 85% do produto nacional bruto mundial, 80% do comércio mundial (incluindo o comércio intra – UE) e dois terços da população mundial.

40

mundo17 mais a União Europeia.

Foi criado em 1999, após as sucessivas crises

financeiras da década de 1990. A primeira reunião ocorreu em 15 de novembro de 2008, onde foram iniciadas discussões para a cooperação e consulta para assuntos do sistema financeiro internacional. Entre os objetivos está a discussão de questões importantes da economia global, muitas delas ligadas a política do Acordo de Crescimento Segurado aprovado em 2004, oriundo de uma linha política neoliberal que incluía a eliminação de restrições no movimento de capital internacional, a desregulação, a flexibilização das condições de mercado de trabalho, privatização, garantia de direitos de propriedade intelectual e direitos de propriedades privadas, favorecimento do IED e liberalização do comércio global. O Brasil entra no grupo em uma dinâmica favorável graças a uma continuidade da política ortodoxa com equilíbrio das contas e pagamento de dívidas. Segundo NYE (2010), o G20, que aos poucos substituirá o G8, se tornará um dos mais importantes mecanismos de discussão da economia mundial, já que é muito difícil discutir matérias no âmbito da ONU com 192 nações opinando, haja visto a problemática da Conferência do Clima de Copenhagen e a atual conferência do TNP. “O G8 morreu!”, frase de efeito do chanceler Amorim, explica que a forma de governança mundial necessita legitimidade (porque só reproduz os países ricos) e eficácia (porque não engaja os países em desenvolvimento). O G8 não tem ambos. O G20 tem muito mais legitimidade, ainda que tenha seus problemas. Nenhum assunto complexo deveria estar limitado a um determinado grupo de países – a ONU certamente seria o melhor local. O G20 serve para um debate mais aprofundado. É necessário para termos uma forma de governança um equilíbrio entre o viável (no caso dos 20 países) e o que é mais legítimo (uma discussão na Assembléia geral da ONU). Em setembro de 2009, a reunião do G20 em Pittsburgh (EUA) discutiu não apenas resoluções para contornar a crise financeira global, mas também reformas no FMI e do Banco Mundial devido a pressões de países emergentes (como o Brasil) que desejam mais poder de decisão nas instituições internacionais. No FMI, a estrutura passa por uma mudança na divisão de cotas, com a transferência de 5% das cotas de países ricos "super-representados" no Fundo para países "sub-representados". Em junho de 2009, o ministro da Fazenda Guido Mantega anunciou que o Brasil emprestaria US$ 10 bilhões ao FMI18, passando a ser credor da instituição de 17

África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coréia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia.

41

crédito internacional pela primeira vez.

O Ministério da Fazenda informou que a

contribuição faz parte de um "esforço" para a mobilização de recursos para o FMI atender a outros países em dificuldades. Além do Brasil, a China comprará US$ 50 bilhões neste tipo de novo bônus, e a Rússia outros US$ 10 bilhões. A mudança realça a participação dos BRIC (grupo de países formado pelo Brasil, Rússia, Índia e China) com mais de 15% na linha de crédito do FMI conhecida como NAB (New Arrangements to Borrow) e uma injeção de US$ 80 bilhões para suplementar o FMI19. Com essa participação, estes países terão direito a veto na linha de crédito. Para emprestar os valores ao FMI, o Brasil comprará os "Direitos Especiais de Saques", que passarão a compor as reservas cambiais do país no lugar de outras aplicações. A importância da reforma do FMI pode ser vista com a atual crise da Grécia com efeito dominó pela União Européia resultando em desvalorização do euro. Mesmo com o pacote de ajuda de 110 bilhões de euros destinado à Grécia pelo (FMI) e pela União Europeia, as perspectivas para o euro continuam incertas. Segundo Maílson da Nóbrega20, a missão do FMI na América Latina era resolver problema de balanço de pagamento. A situação do Brasil em meio a crise financeira internacional não foi grave como se especulava. A crise atual tem uma implicação muito profunda para o debate econômico. Os governos dos países em crise salvaram os bancos, as grandes empresas, em parte os empregos, mas não conseguiram salvar foram a si mesmos. E agora os bancos precisam salvar os governos, com os dois lados da história entrelaçados. O quadro a seguir mostra como são problemas diferentes em cada país. A Grécia, por exemplo, não é por si um problema muito grande devido ao PIB que não é muito grande, seguindo próximo do patamar de Portugal. O problema é quando analisamos Itália e Espanha, com mais de US$ 2 trilhões e US$ 1 trilhão de PIB respectivamente. A situação da Espanha é que ela tem uma dívida pequena, mas o déficit anual é muito grande e o crescimento é muito baixo (o mesmo problema da Itália).Então cria-se um ambiente de dúvida sobre como conseguirão pagar suas dívidas com pouco crescimento. A saída serão medidas drásticas e pouco populares. O primeiro ministro de Portugal, José Sócrates, anunciou que o 18

Em novembro de 2009 o empréstimo subiu para US$ 14 bilhões. A China e a Rússia também fizeram anúncios de empréstimo ao FMI, de US$ 50 bilhões e US$ 10 bilhões respectivamente. 20 Entrevista ao CBN Meio Dia – rádio CBN. 28/04/2010. 19

42

governo pretende cobrar impostos de renda extraordinários de até 1,5%, elevar o imposto sobre valor agregado em 1 ponto percentual e impor taxação de 2,5% sobre os lucros de grandes companhias e bancos.

CRISE NA EUROPA E A SITUAÇÃO BRASILEIRA PIB (US$ bi)

Déficit (% do PIB)

População (milhões)

Grécia

342,2

12,8

10,7

Portugal

222,4

9,3

10,7

Itália

2.114

5,3

58,1

Espanha

1.466

11,4

40,5

Brasil

1.499

3,3

198,7

Tabela - Fonte: FMI, CIA Factbook – Jornal da Globo (04/05/2010)

Observando o quadro acima, a situação do Brasil é bem diferente – com o PIB maior que o da Espanha, mas com déficit muito menor. No mesmo dia da divulgação dos dados completaram-se dez anos da Lei de Responsabilidade Fiscal no Brasil, e o efeito agora pode ser conferido – as contas públicas estão bem organizadas e o país vive mais do mercado interno do que do externo. Nos quatro primeiros meses de 2010, as contas do governo registraram o maior superávit primário em dois anos – de R$ 24,69 bilhões ou 2,30% do PIB, o que representa um aumento de 26,5% contra o resultado positivo apurado em igual período de 2009 (R$ 19,52 bilhões). No ano anterior a arrecadação caiu por conta da crise financeira internacional, o que levou o governo a baixar a meta de superávit primário.

3.3. BRIC Nos últimos anos a moda é falar do Brasil e de alguns países emergentes que possuem características bastante específicas como grandes territórios e/ou recursos naturais em abundância. O acrônimo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) foi criado pelo economista Jim O´Neill, chefe de pesquisa em economia global do grupo financeiro Goldman Sachs em 2001, em um relatório chamado Building Better Economic BRICs, escrito para investidores que desejavam arriscarem países diferentes. A escolha foi feita com base na teoria das vantagens comparativas de SMITH (2009), 43

em que cada país deveria se especializar no que faz melhor. Brasil e Rússia são ricos em energia e produção de alimentos. O Brasil é um gigante exportador de grãos e carnes, e tem um enorme potencial petrolífero com a descoberta da camada Pré-Sal do litoral sudeste, e a Rússia é o primeiro produtor de gás (Gazprom) e exporta essencialmente petróleo e minerais. China e Índia são fortes em tecnologia e serviços. A China tem uma relação custo e benefício que compensa e a Índia se tornou especialista em desenvolvimento de software e callcenters. Por conta disso, os BRIC são uma grande aposta para o mundo em transformação e fundamentais para o mercado internacional. Calcula-se que no ano 2040 os quatro países terão 45% da população mundial, 25% do PIB mundial, além de 25% de área territorial. Para ZAKARIA (2008), os EUA estão deixando de ser a força econômica de antes. De cada dez novos shoppings em construção no mundo, nove estão fora dos EUA. De cada dez arranha-céus, nove estão no exterior. Os EUA só sobrevivem se fizerem alianças. Ainda que a ideia não fosse a formação de um grupo formal, os países BRIC decidiram se unir – em 16 de junho de 2009, os líderes dos países realizaram sua primeira reunião, em Ecaterimburgo (Rússia), e emitiram uma declaração apelando para o estabelecimento de uma ordem mundial multipolar. O´NEILL (2008) escreveu novo artigo ainda mais otimista, revisando a previsão dos BRIC de 2040 para 2027, chamando atenção que em caso de crise estes países podem se voltar para o mercado interno – com exceção da Rússia que, dentre os quatro, sofre com o decréscimo demográfico. Mas a própria configuração do bloco pode ganhar flexibilidade. Alguns imaginam o BRIMC incluindo o México ou o BRICS com o “S” representando a África do Sul. Entre as vantagens do Brasil está um forte planejamento para investir em obras de infraestrutura através do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). O problema é promover a inclusão social, que é um obstáculo grave para Brasil e Índia, em menor escala na China e bem menor na Rússia. O Brasil precisa investir mais em educação, em infraestrutura, formar mão-de-obra especializada, e aplicar reformas tributária e trabalhista, diminuindo também a burocracia. O presidente da General Motors para o Brasil e Mercosul, Jaime Ardilla, comentou em março de 2009 o custo do trabalhador e o peso dos impostos na produção de automóveis. Um trabalhador nos EUA custa US$ 65, no Brasil custa entre US$ 8 – 10 com 40% de impostos. O trabalhador chinês custa US$ 2 com 6% de impostos.

44

O Brasil, por sua perspectiva, é o mais irresistível dos BRIC por uma série de fatores: é o mais democrático e mais ocidentalizado; é o mais estável economicamente (a China mantém controle de câmbio estatal e não pagam royalties porque outras criações chinesas não são pagas); tem um crescimento populacional equilibrado (China e Índia têm população em excesso, e a Rússia tem crescimento negativo); tem produtividade alta de produtos agrícolas; possui atualmente cerca de US$ 250 bilhões em reservas internacionais (acima do valor da dívida externa) – a China possui US$ 1,3 trilhão. Nos últimos vinte anos, as relações do Brasil com a China resultaram em exportação de soja e recursos minerais em maior parte, e importação de eletrodomésticos e tecidos. A balança comercial, de ordem de US$ 36 bilhões registra um déficit brasileiro de US$ 4 bilhões. A maior preocupação é a entrada dos produtos piratas. A China vem investindo muito no Brasil em infraestrutura: ferrovias, portos e parcerias com siderúrgicas. Na véspera da conferência dos BRIC este ano, empresas brasileiras e chinesas assinaram contratos no valor total de US$ 432 milhões. Os negócios contemplam investimentos, prestação de serviços, e exportação e importação de produtos. Com a Índia, o Brasil tem parcerias de saúde e tecnológicas. A Rússia tem uma grande força com sua produção de minerais estratégicos, gás, petróleo e vodka. Entre os problemas da Rússia está a população em declínio, dependência de produção de poucos produtos e pouca margem de manobra. A economia é menos diversificada e há poucos acordos com outros países. Na América do Sul, fechou um único acordo com a Venezuela. Já com o Brasil, há uma perspectiva histórica de que parte das mazelas enfrentadas pelo Brasil entre as décadas de 1930 e 1950 são devido a influência da União Soviética. Assim como a China, a Rússia é membro do Conselho de Segurança da ONU e há uma desconfiança de que os então soviéticos teriam vetado a entrada do Brasil no grupo. Em 2004, o Brasil recebeu pela primeira vez a visita de um chefe de Estado da Rússia e, em 2008, foi o Ano do Brasil na Rússia. O comércio entre os dois gigantes dos BRIC cresceu US$ 6,8 bilhões em 2008, mas caiu para US$ 4,6 bilhões no ano seguinte devido à crise financeira mundial. O governo brasileiro espera que o comércio entre Brasil e Rússia possa superar US$ 10 bilhões em 2010. A Segunda cúpula do BRIC aconteceu nos dias 15 e 16 de abril de 2010 em Brasília. Foram discutidos – pela primeira vez – oportunidades de negócios e investimentos para setores de energia, tecnologia da informação, infraestrutura e 45

agronegócio. A África do Sul também foi uma das participantes. A Rússia anunciou demandas para investimentos em rodovias e aeroportos; e o Brasil, em ferrovias, aeroportos, hidrovias e estrutura urbana. A China sugeriu a troca de informações para a segurança alimentar, ou seja, a troca de informações para evitar grandes altas nos preços dos alimentos. Não faz sentido que o G-7 ainda tenha mais peso que os BRIC, já que, individualmente, são maiores do que o Canadá, que faz parte do bloco dos mais ricos – deveriam pensar em um novo G-7 composto pelos quatro países do BRIC, mais Estados Unidos, Japão e União Europeia. Quanto a possível eliminação da Rússia dos BRIC, O´NEIL afirma que o país merece continuar no bloco, embora tenha tido um desempenho ruim na crise. Na última década, seu crescimento do PIB, em termos absolutos, foi maior que o do Brasil. Em 40 anos, a Rússia terá um terço da população atual, e precisarão resolver o problema do mercado interno. Os BRIC já tiveram uma atuação importante, em relação ao dinheiro adicional ao FMI, onde todos os membros têm poder de veto em conjunto. É um fator inédito. Na cúpula ambiental o Brasil trabalhou mais no grupo no BASIC (Brasil, África do Sul, Índia e China), porque a Rússia ficou classificada dentro dos países desenvolvidos, até porque os russos têm críticas em relação as reformas ambientais. O baixo preço do Dólar21 desagrada exportadores brasileiros – o saldo da balança comercial caiu em 2010. A valorização do Real prejudica a indústria de bens de capital com perda de competitividade. No acumulado de 2010 (até maio), a balança registra um saldo de US$ 4,18 bilhões, uma queda de 50% em relação aos US$ 8,43 bilhões registrados no mesmo período (até maio de 2009). Para alguns analistas, o problema não está no câmbio e sim no custo da competitividade brasileira – com sérios problemas de infraestrutura com deficiências em rodovias, ferrovias, portos e aeroportos. Para enfrentar a concorrência, empresas brasileiras criam fusões e formam empresas mais fortes, caso da Brasil Foods (fusão entre a Sadia e Perdigão), e da Companhia de Bebidas das Américas (AmBev) – uma empresa de capital aberto nascida da fusão entre a Antarctica e a Brahma. A revista britânica The Economist, publicou em novembro de 2009 uma edição especial destacando o avanço do Brasil entre os emergentes. Segundo o especial Brazil takes off (O Brasil decola) , o verdadeiro milagre para o sucesso brasileiro foi o

21

Câmbio R$ 1,00 - US$ 1,86 no dia 24/05/2010.

46

Plano Real, que resultou no controle da inflação, na estabilização da economia e na adoção de metas de responsabilidade fiscal pelo governo federal e pelos estados. Lula manteve e ampliou a política iniciada por seu antecessor Fernando Henrique Cardoso, algo raro no Brasil – e que contradiz boa parte do discurso de “herança maldita” do início do mandato em 2003. Sobre os BRIC, o Brasil supera as demais nações do grupo em alguns pontos. Ao contrário da China, é uma democracia. Ao contrário da Índia, não tem insurgentes, conflitos religiosos ou étnicos ou vizinhos hostis. Ao contrário da Rússia, exporta mais do que petróleo e armas e trata os investidores estrangeiros com respeito. A economia brasileira está crescendo a uma taxa anual de 5% e deve ganhar mais velocidade nos próximos anos com as grandes descobertas de petróleo do Pré-Sal. Assim como seria um erro subestimar o novo Brasil, também seria encobrir suas fraquezas. Algumas são deprimentemente conhecidas. Entre os problemas, temos o crescimento acelerado dos gastos públicos, a violência, problemas na educação e infraestrutura, que deixam o Brasil ainda atrás da China e Coréia do Sul. A revista The Economist conclui sua análise alertando ao Brasil sobre o que pode pôr tudo a perder. É o pecado da “hubris”. A húbris remonta à mitologia grega – cometia o pecado da húbris aquele que desafiava os deuses – ou seja, arrogância, prepotência, falta de humildade são características que o Brasil não pode adotar como ator no cenário internacional.

47

CONCLUSÃO Como descrito por LAFER (2004), podemos dividir as relações internacionais em três áreas: o campo dos valores, o campo econômico e o campo da paz e da guerra. O campo dos valores é a temática dos direitos humanos e da democracia. O Brasil atuou no caso do golpe em Honduras não sendo bem sucedido, mas o impacto de sua atuação é relativo – a diplomacia pode ter sido pega de surpresa durante a crise, mas soube aproveitar a situação para negociar a crise. No campo econômico, o Brasil atua muito no G-20 e teve sucesso no processo do algodão na OMC contra os EUA. No campo da paz e da guerra, sobretudo no capítulo nuclear, estamos vivendo uma situação limite onde as armas nucleares podem destruir a humanidade e cria-se muita tensão no mundo – e o Brasil se envolveu de maneira inédita na discussão. O Irã é o país da qual mais se desconfia, e a ele o Brasil emprestou sua credibilidade. O presidente Lula foi a figura principal da mudança de percepção do Brasil no cenário internacional. O jornal Le Monde, assim como o jornal espanhol El Pais, escolheram o presidente Lula para homenagear como "o homem do ano de 2009". Em maio de 2010, a revista americana Time o incluiu como uma das personalidades mais influentes do mundo. Em editorial, o Le Monde diz que Lula encarna um Brasil em plena forma, elogia o chanceler Celso Amorim e destaca que o eixo econômico do mundo se deslocou para o Sul. O Brasil tem todo direito de reclamar uma representação maior no Banco Mundial, no Conselho de Segurança da ONU, além de reforçar seu papel no G-20. E apóia a possível candidatura de Lula como Secretário-Geral da ONU em 2012. Parafraseando NAÍM (2010) – do Centro Carnegie de Pesquisas (Washington), Lula encarnou uma faceta multi-ideológica ao longo de seu governo. Teve grandes conquistas que merecem aplausos e algumas condutas polêmicas. A parte positiva está na grande emergência do Brasil internamente e externamente – dez milhões de brasileiros alcançaram a classe média entre 2004 e 2008, o índice de pobreza caiu de 46% em 1990 para 26% em 2008, a desigualdade diminuiu, a hiperinflação foi domada e a dívida externa foi contornada. Graças ao seu peso, o Brasil se tornou presença indispensável

nos

fóruns

internacionais

sobre

finanças,

comércio,

energia,

desenvolvimento, clima, proliferação nuclear e demais temas mundiais. A parte negativa seria a “pouca generosidade” de Lula, como dividir o sucesso de seu governo com os pontos positivos de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, 48

que deixou para seu governo uma economia reformada e novas política sociais que foram depois ampliadas (o Bolsa Família é o melhor exemplo). Lula manteve, ampliou e defendeu as políticas sociais já existentes. De forma ambígua, o presidente exsindicalista parece manter laços com idéias socialistas quando se alinha nos fóruns com líderes “revolucionários” como os Castro (Cuba) e Hugo Chávez (Venezuela). Ao mesmo tempo, Lula foi dos presidentes mais pró-mercado e pró-setor privado e investimento estrangeiro que o Brasil já teve. Infelizmente não foi possível ainda contornar o problema da corrupção e não conseguiu fazer várias das reformas profundas necessárias – casos da tributária e trabalhista. A parte ambígua nas relações internacionais pode ser vista também na visão de que Lula não foi tão bom assim com os vizinhos latino-americanos. Ao mesmo tempo que a “diplomacia solidária” ajudou a Bolívia e o Paraguai nas questões da venda de energia, o Brasil evitou se envolver em conflitos envolvendo Argentina e Uruguai e é reticente com governos que desafiam os princípios democráticos. A legitimidade internacional dada por Lula a governos como o da Venezuela resulta em maior impunidade dentro desses países. A questão não é de falta de ação e sim do silêncio brasileiro em torno dos temas espinhosos, talvez até por uma proximidade ideológica. Esta ambiguidade e incoerência na política externa podem ser vistas também na negação do Brasil em legitimar um presidente eleito por Honduras após o golpe, e ao mesmo tempo afirmar que Mahmoud Ahmadinejad ganhou as eleições iranianas de forma limpa (quando as grandes potências apontavam indícios de fraude), e que milhares de iranianos estavam se portando como torcedores quando o time perde uma partida de futebol. Enquanto isso, o Irã condenava à morte vários desses manifestantes. Com Lula, a política climática deixou de ser defensiva, obtendo uma visão de mundo. O Brasil ganhou uma posição protagônica devido a sua matriz ambiental e energética. Com a participação no acordo com o Irã, o Brasil mexeu com o privilégio específico de poder decisório das grandes potências mundiais, resultando em maior visibilidade internacional. O passo final da política externa de Lula serão as discussões em torno da assinatura dos protocolos adicionais do tratado de não-proliferação nuclear. Do ponto de vista político, a assinatura do TNP no passado, por seu viés pacifista, foi vista internamente (especialmente no meio militar) como ceder um parte de sua soberania a troco de nada. A Índia, por exemplo, não assinou e ainda obteve um acordo vantajoso com os EUA no campo nuclear. Ainda assim, o Brasil pode enriquecer urânio a 20% 49

exatamente por ter assinado o tratado. Mas podemos avançar no processo. A posição diplomática precisa ser clara. O Brasil quer a bomba atômica? A partir do momento em que você investe nisso o país passa a ser um alvo em potencial. O Brasil dá sinais truncados na esfera interna com as declarações do vicepresidente José Alencar e do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães sobre a possibilidade do Brasil querer uma bomba atômica. A política externa, por tratar de valores e interesses da sociedade nacional, não pode sofrer interferência de doutrinas partidárias ou de ideologias que não refletem o interesse maior do governo. A sociedade cobra cada vez o governo por sua postura na política externa. Por mais que as decisões contrárias e neutras em discussões polêmicas possam angariar votos para o apoio ao Conselho de Segurança, a decisão pragmática pode resultar em problemas na esfera interna da política nacional. A relação Brasil e EUA sofreu uma pequena turbulência com a discussão das sanções e do acordo com o Irã, observando que o resultado brasileiro pode não dar em nada – um voluntarismo de mediação sem bases sólidas levam a suspeitas – e causam erosão da credibilidade. Entretanto, as relações Brasil e EUA chegaram a um ponto em que não há como haver perdas devido a importância do Brasil no hemisfério. E o Brasil deixou como legado que pode encarar outras situações de mediação na política internacional. Em comparação a PEB no governo FHC, Lula prosseguiu entre discursos retóricos e pragmáticos com elementos de “mudança dentro da continuidade”, não se afastando dos princípios históricos da diplomacia brasileira, de que é um instrumento para o desenvolvimento econômico e para a conseqüente preservação e ampliação da autonomia do país. Em síntese, o Brasil precisa evitar a húbris para continuar em seu processo de crescimento como país emergente, planejando de forma cautelosa suas ações diplomáticas retóricas e/ou pragmáticas, do mesmo modo como a política externa brasileira atua historicamente.

50

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, José Guilhon. (entrevista). Jornal da Globo.TV Globo. 17 de mai. 2010. AMORIM, Celso (entrevista). Programa Canal Livre. TV Bandeirantes. 28 de mar. 2010. _________________________. Programa Roda Viva. TV Cultura. 07 de jun. 2010. _________________________. Programa Roda Viva. TV Cultura. 22 de jun. 2009. ARDILLA, Jaime (entrevista). Programa Roda Viva. TV Cultura. 16 mar. 2009. ARINOS, Afonso (entrevistado). CARTA CAPITAL. Diplomacia Autônoma. vários autores, reportagens na edição 433 de 28 de fev. 2007. BAUMAN, Renato; CANUTO, Otaviano; GONÇALVES, Reinaldo. Economia Internacional: teoria e experiência brasileira. Rio de Janeiro: Elsevier. 2004. BELLUZO, Luiz Gonzaga. A Gênese das crises: O Capitalismo engendra comportamentos irracionais, como o pânico. Carta Capital. São Paulo. pp.36-37. 2007. BRAZIL TAKES OFF (reportagem especial). revista The Economist. 14-20 de nov. 2009. CARTA CAPITAL. A idéia da Independência. vários autores, reportagens na edição 433 de 28 de fev. 2007. ________________. Diplomacia Autônoma. vários autores, reportagens na edição 433 de 28 de fev. 2007. CERVO, Amado Luiz, e BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Editora UnB, 2002. CHESNAIS, François. A Finança Globalizada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo. 2005. FOLHA ONLINE. Lula já supera FHC em número de dias de agenda no exterior. 22 de abr. 2009. Disponível em acesso em 18 de abr. 2010. GILPIN, Robert. O Desafio do Capitalismo Global. Rio de Janeiro: Record. 2004. GLOBO NEWS Painel (tema: Plano de Defesa Nacional). Participação do Cel. Geraldo Cavagnani, Gustavo Heck e jornalista Roberto Godoy. 03 de abr. 2010. ___________________. (tema: Política Externa no governo Obama). Participação do embaixador Rubens Barbosa, Sergio Fausto e Norman Gall. 27. mar. 2010. 51

GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Los tres años del gobierno del presidente de Brasil Luiz Inácio Lula da Silva. La Onda Digital, n. 277, 2006. Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 2010. HAAG, Carlos. Os ossos do Barão - Política externa é hoje motivo de discussão acalorada e séria. Revista Pesquisa Fapesp. Edição Impressa 129 - Novembro 2006. KRUGMAN, Paul R., OBSTFEELD, Maurice. Economia Internacional: Teoria e Política. 5ª edição. São Paulo: Pearson Education. 2001. LAFER, Celso. A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa. São Paulo. Ed. Perspectiva. 2004. LE MONDE. Le Brésil de Lula sur tous les fronts. 24 de mai. 2010. MAGNOLI, Demétrio. O Inimigo Americano (artigo).O Estado de S. Paulo. 24 de dez. 2009. ___________________. (coluna). Rádio Band News FM. 27 de abr. 2010. MAIA, Viviane. Mundo deveria ter um novo G-7, com os países do BRIC, diz Jim O'Neill. Época Negócios. 15 de abr. 2010. MILANESE, Daniela. Brasil decola e pode ser a 5ª economia, diz Economist. O Estado de S. Paulo. 12 de nov. 2009. NAÍM, Moisés. Lula: lo bueno, lo malo y lo feo. El País. 5 de mai. 2010. NYE, Joseph (entrevista). Programa Roda Viva. TV Cultura. 10 de mai. 2005. O´NEILL, Jim. BRICs could point the way out of the Economic Mire, Financial Times, London, 28 de Set. 2008, pp. 28. OLIVEIRA, Flávio Rocha de. A política externa e a questão iraniana: recalibrar o debate. 29 de mai. 2010. Disponível em . Acesso em 06 de jun. 2010. PEIXOTO, Fabrícia. Lula visita Líbia em meio a debate sobre pragmatismo na política externa.01 de jul. 2009. Disponível em acesso em 14 de jul. 2010. POMAR, Walter. Ahmadinejad no Brasil: O que de fato está em jogo: Época. Rio de Janeiro. 2009. Disponível em: Acesso em: 25 abr. 2010. 52

PRATES, Daniela Magalhães. A inserção externa da economia brasileira no governo Lula. in CARNEIRO, Ricardo (org). A supremacia dos mercados e a política econômica do governo Lula. São Paulo: Editora Unesp. 2006. RIBEIRO, Claurio Oliveira.

RIBEIRO, Cláudio Oliveira. A Política Africana do

governo Lula. Revista Tempo Social. Volume 21 número 2. nov. 2009. RICUPERO, Rubens (entrevista). Programa Roda Viva. TV Cultura. 22 de mar. 2010. SCIARRETTA, Toni. Bovespa fecha 2009 com saldo recorde de capital estrangeiro. Folha Online. 05 jan. 2010. Disponível em Acesso em 26 de maio 2010. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: Uma Investigação Sobre a Natureza. São Paulo: Editora Madras. 2009. TAVARES, Maria da Conceição (entrevista). Globo News Documento. TV (Globo News). 25 de abr. 2010. THE ECONOMIST. Revista. Brazil Takes Off. Edição volume 393 nº. 8657. 14 nov. 2009. VIGEVANI, Tullo; CEPALUNI, Gabriel. A política externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia pela diversificação. Contexto int., Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, Dec. 2007 . Disponível em: . acesso em 10 de jul. 2010. VIZENTINI, Paulo Fagundes. Relações Internacionais do Brasil - De Vargas a Lula. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003. VIZENTINI, Paulo. PEREIRA, Analúcia. A política africana do governo Lula. Artigo do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais. UFRGS. 2008 ZAKARIA, Fareed. O Mundo Pós-Americano. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.

53

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.