PRÁTICA ETNOGRÁFICA DA DANÇA CONTEMPORÂNEA EM MAPUTO: TRABALHO DE CAMPO. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS.

July 14, 2017 | Autor: Marília Carneiro | Categoria: Dance Studies, Contemporary Dance, Dance ethnography
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PRÁTICA ETNOGRÁFICA DA DANÇA CONTEMPORÂNEA EM MAPUTO: TRABALHO DE CAMPO. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS.

Marília Clemente Gomes Carneiro Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) [email protected] Tema: Metodologia de pesquisa etnográfica na Dança RESUMO: Gostaria de apresentar a organização metodológica conceitual elaborada a partir de um estágio de pesquisa no Doutorado em Estudos e Práticas das Artes (Universidade do Quebec em Montreal) e a prática etnográfica da dança contemporânea que realizei como trabalho de campo de doutorado em Maputo, Moçambique, África Austral. Pensada como a primeira aproximação física/corporal ao terreno, o principal objetivo era fazer uma coleta de dados etnográficos experimental da prática artística ‘dança contemporânea’. O planejamento metodológico incluía participação observadora em aulas técnicas, processos de criação de obras coreográficas, fóruns de discussão, apreciação de espetáculos, convivência dialógica com artistas, produtores e estudiosos, e performance. A postura de dançarina foi minha escolha como porta de entrada para o terreno. O estudo comporta também um interesse em paralelo: sobre o ato de pesquisar no campo da Arte em geral e da Dança em particular. O trabalho de campo foi permeado por uma conversa institucionalizada com a Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane. Apresentarei brevemente o caminho da construção do problema de pesquisa, a escolha de Maputo como espaço político de investigação de campo, a tematização da dança contemporânea e a urdidura armada em torno do método etnográfico na Dança enquanto disciplina. PALAVRAS-CHAVE: Método etnográfico, Pesquisa em Dança, Dança Contemporânea, África, Moçambique.

Maputo, esta imensa varanda na beira do Índico! (Mia Couto1) Escolhi Maputo por uma confluência de fatores. Primeiro o crescente interesse de vários campos em África como tema e como espaço geográfico de atuação. Depois, a discussão sobre o eixo geográfico do Atlântico Sul e o papel do Brasil como potência do empreendimento cultural entre a América Latina e a África. Também a existência da Comunidade de Países da Língua Portuguesa, que agrupa Brasil e Moçambique sem entrar nas contraditórias questões linguísticas. O financiamento para a pesquisa e para outros tipos de trabalhos no continente africano está em alta, o que não deixa de ser uma relevância. Em 2011, a declaração do interesse do circuito de festivais brasileiros de dança contemporânea (DC) pelo que acontece no continente africano em termos de criação coreográfica definiu a pertinência social do projeto. Não tinha nenhum interesse específico em estudar África, Moçambique ou Maputo, mas já tinha feito o campo do estudo de mestrado em um local longínquo2 e há muitos anos sou amiga de antropólogos que fazem campo em Moçambique, de forma que a ideia não parecia tão esdrúxula. Não sou africanista, não quero discutir identidade, nação, tradição, movimentos sociais ou cultura. Ao começar, há 4 anos, esta jornada pesquisatória de cinco anos, meu interesse era o de adentrar na Dança como campo do conhecimento autônomo. Para tanto quis informar meus estudos inserindo-me em uma cidade na qual eu nunca tivesse estado antes, seguindo as pistas do que quer que fosse o mundo da DC ali atualizado.                                                                                                                 1 2

 

Escritor moçambicano. São Gabriel da Cachoeira, Amazonas.

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Um dos pilares que configura o problema inicial do projeto é o método etnográfico como estratégia para a produção de dados, matéria da análise, inescapável tarefa da pesquisadora. A formulação do problema do estudo partia do meu desejo em relação ao método. Queria enveredar numa pesquisa empírica, que me colocasse no mundo em relação com as pessoas, digamos assim. Em termos de método, isto parecia se traduzir por método etnográfico. Interessava-me a experiência de trabalho de campo mundano; o compartilhamento do tempo com as pessoas (Fabian, 2006); e tomar o corpo e seus sentidos como instrumentos de coleta de dados (Sklar, 1991, 2000, 2001; Dils & Crosby, 2001; Dantas, 2008; Fortin, 2005, 2009; Davida, 2001). Interesses que parecem ganhar sentido se pensamos o trabalho de campo etnográfico como performance. Se é performático, estamos em cena, se estamos em cena, tem que pensar a preparação do corpo, a utilização dos sentidos. Também tem que estar em relação. Maningue cena a do trabalho de campo. É melhor estar preparada. Lembremos da moça que teve uma hérnia de disco porque não percebeu que seu corpo não dava conta de acompanhar as atividades das mulheres moçambicanas na roça e foi removida deitada de volta ao Brasil. Também tinha claro que não queria, como técnicas principais, fazer entrevistas e transcrevê-las, não queria analisar um autor, não queria vasculhar arquivos históricos, não queria fazer análises estatística, de discurso, de conteúdo e bem outros procedimentos que podem constituir uma pesquisa acadêmica. Tinha em mente também que a construção do projeto de pesquisa que seria levado a cabo era delicada em termos de definir as experiências com as quais estaria envolvida nos anos que viriam.

 

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Eu tinha duas hipóteses que me impulsionavam ao esforço de definir com precisão o método: (i) de que eu, sendo dançarina, poderia circular como insider (Davida, 2011) nas atividades da paisagem da DC profissional em Maputo, ou seja, trazia a percepção de uma prática transnacional, supra fronteiriça, onde eu poderia circular e construir diálogo informado, mesmo que nunca ali estivesse estado antes; (ii) de que mesmo que eu não tivesse um recorte teórico absolutamente delimitado, um bom planejamento metodológico me faria entrar, circular e sair do terreno de pesquisa com informações que poderiam configurar o trabalho final. O que percebo é que a busca pela formulação do método poderia ser ela mesma o objeto da tese. Como ponto de partida mais óbvio, refiz uma aproximação à etnografia antropológica para entender o método etnográfico, e percebi que, a partir de minha formação em dança, que eu queria colocar em evidência, não poderia alcançar o que se espera de uma etnografia antropológica. Não sem praticamente fazer a graduação em ciências sociais e depois o mestrado na área. Seria torturante interromper minhas atividades no meio da dança para me dedicar a infinitas horas de leituras até dominar o corpus manejado pela disciplina que estuda a cultura. Além disto, nunca foi minha intenção explicar a cultura de um grupo social, objetivo inerente aos estudos antropológicos. Mas foi aí que encontrei uma discussão sobre o ensino da etnografia, pensada como design, e passei a adotar a ideia de desenhar a abordagem etnográfica ao terreno e de estar preparada para realizar as atividades nucleares. Na revisão bibliográfica no meio da Arte rapidamente encontrei o termo “etnografia das práticas artísticas” (Fortin, 2009; Dantas, 2008; Weber,  

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2010). Eu experimentava o que Marcus chama de ansiedade metodológica e procurava um ansiolítico. Sylvie Fortin (2009), em um de seus artigos, comenta sobre um dado etnográfico particular no caso do pesquisador ser também um dançarino, a “reação somática do pesquisador”. A sugestão de Fortin desta especificidade de um dado relacionado à formação em dança foi o que me fez adentrar na discussão sobre o habitus (Bourdieu, 2002, 2007; Wacquant, 2002, s/d) forjado na dança e seus conhecimentos incorporados (DOWNEY, 2010) como recorte para o trabalho de campo. Adotei a ideia da bricolagem metodológica (Fortin, 2009), cujo princípio é a montagem de um método singular a partir do estudo de variadas metodologias. Também o raciocínio estrutural das pesquisas científicas, envolvendo procedimentos de coleta e de registro de dados, obrigando à reflexão sobre o que seriam os dados possíveis para a pesquisa a que me propunha, afinal. Tive uma bolsa da Fapesp e fui fazer um estágio no Doutorado em Estudos e Práticas das Artes, ao pé da profa. Sylvie Fortin, em Montreal, no Canadá, e desde lá iniciamos a organização de três diferentes discussões que podem ser levadas a cabo numa pesquisa etnográfica de práticas artísticas feita por artistas. A primeira é quanto a escolha da postura de entrada no terreno, cuja definição é muito útil para elencar as atividades concretas que serão realizadas. Pode-se avantajar a faceta de artista ou de pesquisadora e é possível transitar de uma ponta a outra, trocando mesmo de posições (Cazemajou, 2011).

 

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A segunda, uma reflexão sobre os procedimentos de coleta e registro de dados, e sobre o que é o “dado” em questão, levando à definição do que é o terreno da prática artística que investigo neste doutoramento: aulas práticas, onde circulam diversos níveis de informações, bem como espaço de encontro e interação com os profissionais; espetáculos em circulação sob a etiqueta DC; fóruns de discussão de artistas e estudiosos; minhas próprias aulas de improvisação em dança; criação e ensaios de obras coreográficas minhas; espaços acadêmicos das Artes da Cena. E a terceira, uma discussão sobre os estados corporais para a escrita da tese, numa busca por uma escrita atravessada por um “tempo de dança”, que seria a sensação de perda da linearidade temporal que acontece em experiências práticas de dança, entendido como o que Sklar (SKLAR, 2000) chama de “qualidade de tempo”, aspecto sobre o qual não me debruçarei. Estando em campo, adotei um critério para definir DC: se quem está fazendo, diz que é, não serei eu a dizer que não é. Não vou discutir o sexo dos anjos. Não estava pesquisando um bailarino, nem um coreógrafo, nem uma companhia, nem um programa de formação, nem um evento específico, nem uma técnica corporal, mas sim a prática social da DC naquela parte mundo, atravessada pelas minhas possibilidades, enquanto artista da dança em atividade de pesquisa, de circular nos espaços, desenvolver conversas e participar das atividades. A noção mediadora para estudos de práticas sociais chamada de habitus (Bourdieu, 2002, 2007; Wacquant, 2002, 2004) parece ajudar na costura de sentido. O habitus de dançarina contemporânea é um recorte para

 

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a produção dos dados, fazendo com que toda a discussão que poderei fazer seja um esforço de objetificar o familiar, pois considero que estudo a prática artística de dentro, do ponto de vista de praticante, ainda que seja estrangeira em Moçambique e que seria inevitável viver situações de estrangeirismo. Um dos aspectos que destaco da formação do habitus de dançarina é o conhecimento incorporado3 (DOWNEY, 2010; PARVIAINEN, 2002) em relação ao uso dos sentidos e sensibilidades, amplamente desenvolvidos nas práticas de educação somática que povoam as aulas técnicas de DC (WEBER, 2003). Tomo os sentidos corporais segundo o método Body-Mind CenteringR : olfato, visão, audição, gustação, tato e movimento. Pelo menos três diferentes dados podem ser anunciados tendo em vista a observação destes conhecimentos incorporados: (i) a Reação Somática do Pesquisador; (ii) a experiência cinestésica, experiência mesmo de dançar (DANTAS, 2008; DILS; CROSBY, 2001; SKLAR, 1991, 2000, 2001); (iii) a empatia cinestésica na aoreciação de obras de dança (DEE REYNOLDS, 2013). Também derivado da adoção do habitus de dançarina é a adoção da realização de Experimentos Cênicos Ciclados, conceito em elaboração desde 2008, que mantém sempre aberta a pergunta sobre como a pesquisa organiza um discurso cênico, aberto para a performance estética (SILVA, 2005)? Periodicamente as informações são organizadas em termos de artes da cena, abrindo a pesquisa para performance pública, friccionando a teoria e a prática de uma pesquisa artística em meio acadêmico.                                                                                                                 3

 

Embodied knowledge.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, Pierre. Le bal des célibataires. Crise de la société paysanne en Béarn. Paris: Éditions Seuil, 2002. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz (português de Portugal), 10a edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. CAZEMAJOU, Anne. Shifting positions: from the dancer's posture to the researcher's posture. In: DAVIDA, Dena (Ed). Fields in motion: Ethnography in the worlds of dance. Canadá: Wlu Press, 2011. p. 19-28. DAVIDA, Dena. Alive in the movement: An ethnographic study of meaning in two Montréal "nouvelle danse" events. Projeto de tese, Doutorado em Estudos e Práticas das artes, Universidade do Quebec em Montreal, 2001, mimeo. DAVIDA, Dena. A template for Art world dance ethnography: the Luna "nouvelle danse" event. In: DAVIDA, Dena (Ed). Fields in motion: Ethnography in the worlds of dance. Canadá: Wlu Press, 2011. p. 29-46. DEE REYNOLDS (Org.). Watching Dance: Kinesthetic Empathy. Disponível em: . Acesso em: 27 abr. 2013. DILS, A.; CROSBY, J. Dialogue in dance studies research. Dance research journal, v. 33, n. 1, p. 62-81, 2001. DOWNEY, G. “Practice without theory”: a neuroanthropological perspective on embodied learning. Journal of the Royal Anthropological Institute, v. 16, p. S22–S40, maio 2010. PARVIAINEN, J. Bodily Knowledge: Epistemological Reflections on Dance. Dance Research Journal, v. 34, n. 1, p. 11, 2002. SILVA, Rubens Alves da. Entre "artes" e "ciências": a noção de performance e drama no campo das ciências socias. Horiz. antropol., Porto Alegre, v. 11, n. 24, Dec. 2005 . Available from . access on 06 July 2012. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832005000200003. SKLAR, D. On Dance Ethnography. Dance Research Journal, v. 23, n. 1, p. 6-10, 1991.

 

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SKLAR, D. Reprise: On dance ethnography. Dance Research Journal, v. 32, n. 1, p. 70–77, 2000a. SKLAR, D. Toward Cross-Cultural Conversation on Bodily Knowledge. v. 33, n. 1, p. 91-92, 2001. WACQUANT, Loïc J.D. Esclarecer o habitus. Tradução de José Madureira Pinto e Virgílio Borges Pereira. 6 páginas, mimeo. WACQUANT, Loïc J.D. Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Tradução de Angela Ramalho. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. WEBER, S. Metodologia de inspiração etnográfica em pesquisas de práticas corporais artísticasAnais do VI Congresso de pesquisa e pós graduação em artes cênicas. Anais...2010

 

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