Práticas alimentares de sertanejos cearenses no Séc. XX (1920-1970)

June 2, 2017 | Autor: Francisco Aragão | Categoria: História Oral, Alimentação tradicional, Cultura comensal
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II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 1 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 PRÁTICAS ALIMENTARES DE SERTANEJOS CEARENSES NO SÉCULO XX (1920-1970) FEEDING PRACTICES OF WORKERS CEARÁ INLANDERS IN THE TWENTIETH CENTURY (1920-1970) Francisco José Alves de Aragão - Aluno do curso de História (Lic.) da UFC; bolsista CNPq; membro do grupo de pesquisa AgostoS. [email protected] Áquila Matheus de Sousa Oliveira - Aluno do curso de Gastronomia (Bach.)da UFC; bolsista CNPq; membro do grupo de pesquisa AgostoS. [email protected] José Arimatea Barros Bezerra - Professor Dr.(FACED/UFC), orientador; coordenador do grupo de pesquisa AgostoS-Alimentação, Gostos e Saberes. [email protected] GT 01 - A Produção e o Consumo de Alimentos Tradicionais nos Territórios Rurais e Urbanos

RESUMO A presente pesquisa encontra-se em andamento e conta com os dois bolsistas que ora a subscrevem para a coleta, análise e interpretação dos dados. Investiga-se o cotidiano alimentar dos sertanejos cearenses no período especificado, tendo em vista a caracterização das suas vivências alimentares, suas práticas, técnicas, produção, armazenamento e conservação, modos de fazer, rituais, consumo e comida. Também se procura, ademais, os significados conferidos ao alimento e à comida. Apresentamos alguns dados colhidos até o presente momento, e que nos levam a crer que a realidade alimentar do sertanejo cearense não é marcada somente pela escassez, pela fome, mas também pela inventividade e criatividade, fartura e riqueza de significados. A metodologia que se está utilizando é a da História Oral, com base em entrevistas abertas/ não estruturadas, meio de acesso direto à memória desses informantes (pessoas que viveram até o final da década de 1970 na área rural do sertão cearense, praticando a agricultura familiar). Palavras-chave: Alimentação Tradicional. Cultura Comensal. História Oral

ABSTRACT This research is ongoing and includes the two fellows who prays to subscribe for the collection , analysis and interpretation of data. Investigates the feeding routine of Ceará sertanejos the specified period , in view of the characterization of their food experiences , practices , techniques and instruments of production , storage and preservation , ways of doing, rituals , techniques and artifacts , and food consumption . Also , moreover , seeks the meanings conferred to food and food. Here is some data collected to date , and that lead us to believe that the reality of Ceará backcountry food is not only marked by scarcity and famine , but also the inventiveness creativity , abundance and richness of meanings . The methodology that we are using is the oral history , based on open / unstructured interviews , through direct

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 2 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 memory access these informants (people who lived until the late 1970s in rural Ceará hinterlands , practicing agriculture family) . Keywords: Traditional Food. Eater culture. Oral history 1 INTRODUÇÃO

O que se conhece sobre as práticas alimentares cearenses até a primeira metade do século XX é pouco ou quase nada, principalmente sobre a vivência alimentar da população sertaneja pobre, agricultora, que vivia para além dos casarões das fazendas. Esses sertanejos sempre estiveram, por razões diversas, à margem da historiografia oficial do Ceará e muito pouco presentes nos relatos dos memorialistas, romancistas e folcloristas. Tal fato pode ser atribuído, em parte, pela visão de uma História "positivista", que só evidenciava os grandes feitos e os grandes heróis. A presente pesquisa, ainda em andamento, tem como meta inventariar vivências alimentares de populações do sertão cearense, a partir de relatos orais, dentre outras fontes, tomando como recorte temporal o período que vai de 1920 a 1970. A alimentação é concebida por Santos (2007, p. 15) como um gênero de fronteira, verificado no cruzamento do biológico com o cultural e o histórico, do social e do político, da economia e das tecnologias. Torna-se necessário, portanto, explicitar as concepções de alimento, alimentação, comida, cultura alimentar, habitus e práticas alimentares, para dar conta de situar e discutir o objeto alimentação em sua complexidade. Destarte, o levantamento dos dados aqui expostos têm como base a História Oral, complementada por documentos (fotos, receitas, filmagens), onde o objeto de estudo é recuperado e recriado por meio da memória dos informantes. Segundo Thompson (1988, p. 44) a História Oral é construída em torno da pessoa, admite heróis vindos da maioria desconhecida do povo e extrai a História de dentro da comunidade. Temos, então, a tarefa de tentar caracterizar o cotidiano das vivências alimentares desses sertanejos cearenses, evidenciando suas práticas em relação à produção, preparo e consumo dos alimentos, seus rituais de consumo, suas técnicas e artefatos. Para além disto, desvendar os mais variados significados que atribuíam ao alimento e à comida, em termos de valoração, distinção e interdições.

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 3 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 Somente de posse desses dados poderemos empreender algum sentido, alguma interpretação acerca da realidade objeto do presente estudo. Não obstante ainda estejamos no meio do caminho, com entrevistas e transcrições por realizar, podemos apresentar à comunidade acadêmica (pesquisadores e estudantes) alguns dados já colhidos e transcritos. A principal hipótese a ser verificada diz respeito à desconstrução de uma realidade alimentar presente em um imaginário popular acerca do sertanejo cearense, que dá conta apenas de escassez, fome, interdições tabus e superstições. Longe disto, quer-se aferir o quão inventiva, criativa, robusta e farta de significados é a sua realidade alimentar. Passemos à transcrição de alguns relatos e comentários.

2 COM A PALAVRA OS SERTANEJOS E SUAS PRÁTICAS ALIMENTARES

O presente projeto tem previsão para coleta de relatos de oito pessoas, quatro homens e quatro mulheres, que tenham vivido até o final da década de setenta do século passado em área rural do sertão cearense, praticando a agricultura familiar. Até o presente momento foram realizadas cinco entrevistas, sendo três de homens e duas de mulheres, no perfil exigido. As transcrições estão sendo realizadas (concluídas apenas quatro), mas já podemos visualizar algumas respostas dessas pessoas, de modo a empreender alguma interpretação acerca de suas memórias. A literatura dominante demonstra que o discurso sobre alimentação dessa população não é desarticulado de suas outras vivências cotidianas, como saúde, doença, trabalho, fome, fartura; de valores como interdições, superstições, tabus; de condicionantes estruturais e naturais, como secas, enchentes, astros, pobreza, riqueza; de inventividade e técnicas no trato com a alimentação, como plantio, armazenagem, conservação, preparação e consumo. Então, propomos ir comentando paulatinamente acerca de cada quesito questionado e, em razão das respostas trazidas à baila por nossos entrevistados, aclararmos o percurso teórico e metodológico da pesquisa, suas eventuais divergências e convergências acerca de dados, hipóteses, tudo com base no confronto com a realidade emergida dos relatos até aqui colhidos.

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 4 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 A primeira formulação ou questionamento, portanto, direcionado a essas pessoas fora acerca da sua memória alimentar em tempos pretéritos, desde a infância, desde a adolescência e, se dessas lembranças, alguma prática alimentar já não existiria mais, se extinguira, ou mudara, se reformulara o modo de fazer, de preparar. Isso nos levaria a confrontar um aspecto muito relevante, que é a hipótese de que há indícios de descontinuidade das práticas alimentares tradicionais dessas populações, a partir do final da década de 1980, quando se institucionalizou a aposentadoria especial do trabalhador rural, bem como um pouco mais adiante quando, vieram as políticas de assistência à saúde, de transferência direta de renda. Por opção própria de mais rápido deslinde e facilidade de entendimento, elencaremos logo e conjuntamente todos os trechos interessantes e que apontam para a diretiva formulada, para em seguida tecermos comentários. Vejamos então as primeiras respostas:

Rapaz era feijão, pão de milho, peixe, caça, avoante e da mata ainda, era essa coisa mesmo, agora do roçado era melancia, jerimum, pepino, maxixe [...] a mamona lá nós ‘num’ plantava, mas plantava algodão, dava, nessa época pra trás, mas hoje em dia ninguém planta mais[...] naquelas época Tinha a galinha caipira, o capote né? hoje em dia porque nós ‘mora’ na cidade, ‘num’ pode criar essas coisas, e essas galinha de granja eu ‘num’ como não, de jeito nenhum, eu nem como essas galinha de granja, nem esses ovo de granja, eu num como não, ‘num’ tem quem faça eu comer não [...] o que eu gosto mais mesmo, é o feijão, uma carne, uma caça, peixe também, uma pescada, que eu sou pescador, tenho minhas linhas muito ‘boa’[...] o milho eu gosto muito também, a gente faz a canjica ,faz o cuscuz, faz a pamonha, tudo isso é do milho...o milho é muito bom [...] às vezes eu planto na minha várzea a macaxeira, a macaxeira é muito boa, eu até tenho uns pés lá [...] o feijão, ‘ocê’ sabe, a gente comia só ele cozido mesmo, é bom demais [...] às vezes eu crio porco, mas é só pra gente comer mesmo, mas nem posso mais criar aqui dentro da cidade, ‘ocê’ sabe, pois é proibido, meu menino tinha um, uma dia aí matou, foi bom pra nós (risos), mas ‘ num’ pode não, é proibido [...] o peixe nós ‘gosta’ de comer cozido, assado, de todo jeito, é bom demais, eu gosto mais cozido porque a gente cozinha um peixe bem cozidinho, com a nata a gente faz um pirão escaldado, ‘né’? é muito bom, agora assado fica um peixe mais duro, né? mas tem muita gente que gosta muito de um peixe assado, aqui nós ‘tem’ o cará, cará-lapa, cará-dourado, pescada, cangati, sardinha, piau e cará-preto. Todo peixe tem aqui, tucunaré também tem, bodó, aqui tudo tem (grifo nosso) (in: FERNANDO ALVES PINHEIRO, 73 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce)

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 5 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014

Eram comidas boas, farinha de torrado, você conhece farinha de torrado? fubá de milho, fubá de milho vocês conhecem, mas é essa massa de milho de hoje, empacotada, ‘né’? a gente chamava fubá de milho era o milho torrado, pisado no pilão, isso é uma das alimentações mais saudáveis que a gente já comeu no sertão, com rapadura, além dela ser boa, ela é forte, ‘ né’? comia com leite, com feijão, fazia merenda com rapadura [...] além do fubá de milho e da farinha de torrado, tinha a pipoca, a pipoca também, que a gente comia muito, plantava o milho e fazia [...] você conhece cará inhame do mato? tem o cará inhame que você planta nas hortas, nas hortaliças, ‘né’? este é uma rama, hoje em dia você já vai no mercado e você encontra, é uma fruta que vinga numa rama, mas tem o cará inhame brabo do mato, que é uma batata ‘né’? no sertão agora quando chover, dá [...] essa alimentação existe ainda, só que hoje devido as mudanças, as novas tecnologias, as facilidades dos governos, com os programas sociais, então ela tá mais esquecida, mas nós que vivemos no sertão a gente ainda tem essa tradição, quando chove a gente vai lá e arranca, pra que os ‘garoto’ novos comam ‘né’? não é mais assim executado como a gente executava antigamente, mas ainda existe [...] a gente pega uma panelada de batata de cará do mato e vai botar no fogo, só que os ‘filho’ não querem mais comer, querem comer é pão, é ‘xilito’, é bolacha, essas coisas, ‘num’ querem mais comer aquilo que a gente comia, dizem ‘ah isso daqui é batata braba, ninguém vai comer isso daqui não!’ (grifo nosso) (in: JOSÉ MARIA BARBOSA, 60 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce)

Pra mim não mudou, eu continuo comendo minha rapadura, meu feijão, meu grolado com cará torrado, assado na brasa[...] na parte da manhã a gente fazia nosso cafezinho com tapioca, ao meio dia tinha um feijaozinho, às vezes com um franguinho, que a gente comia sempre com uma farofa, esse era o nosso almoço[...] no jantar a gente comia também uma tapioquinha ou um grolado, com côco, que a gente fazia e comia com café[...] tinha sempre leite de cabra também [...] minha mãe pescava, pegava peixes como cará, piaba, traíra, carapicu [...] no lagamar[...] nosso carapicu nós ‘comia’ no almoço, porque não era todo dia que a gente podia comer um feijão, que a mamãe podia matar um pinto ‘né’ [...] então o papai ía pescar de noite, chegava com uns uruzinhos ‘cheio’ de carapicu, aí a gente sentava no chão, botava aqueles pratos todos arrodiados no chão, um prato de pirão, com uns quatro ou cinco carapicus, com um caldinho gostoso (grifo nosso) (in: AMÉLIA SALES FREITAS ARAÚJO, 55 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Na casa de meu pai era feijão todos os dias, às vezes não tinha nem ‘mistura’, era só farinha mesmo, quando nós ‘chegava’ do roçado, vinha com fome, era isso que a gente comia[...]

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 6 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 eu fui criada desse jeito, na minha infância a gente criava galinha, matava uma, comia; frango ou galinha a gente fazia com pimenta do reino e alho; se criava um bode, matava, comia, que carne era difícil[...] ía pescar cará, piaba-doida[...] tinha um ‘pão-de-milho’, um feijãozinho, caça era um mocó, um preá, uma nambu, um Tejo[...] ainda hoje tem tudo isso, tem muita caça, mas hoje o IBAMA não deixa mais caçar como antigamente (grifo nosso). (in: MARIA DAS GRAÇAS VITAL DE CARVALHO, 61 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Repare-se que, desses breves e poucos relatos (apenas quatro), percebemos emergir uma verdadeira riqueza alimentar. Como visto, podemos enumerar os seguintes alimentos: VEGETAIS/FRUTAS: feijão, milho (pão de milho, canjica , cuscuz, pamonha, pipoca, farinha de torrado), cará inhame do mato, macaxeira (farofa, tapioca, grolado, pirão, farinha), melancia, jerimum, pepino, maxixe, algodão, rapadura, côco ; ANIMAIS: caça (avoante, mocó, preá, nambu, tejo), galinha caipira, frango, capote, bode, cabra (leite), porco, peixes como cará, cará-lapa, cará-dourado, pescada, cangati, sardinha, piau e carápreto, tucunaré, bodó, piaba, traíra, carapicu. O que chama a atenção é que, para os entrevistados no geral, toda essa base alimentar não tem mudado muito, mesmo com as inserções da alimentação industrializada que vem de longe, mesmo porque eles não gostam desse tipo de alimentação, como p. ex., a galinha de granja, o ovo de granja. É preferível a galinha caipira e seu ovo. Em um depoimento apenas aponta-se para uma mudança de costume em relação à criança, aos mais jovens, que gostam de comer coisas como pão, bolachas e xilitos, mas as pessoas de mais idade não vêem gosto nesse tipo de comida. Em complemento a essa questão foram feitas outras duas, mais a frente, sobre se alguma coisa havia se alterado na alimentação do sertanejo depois do programa de aposentadoria para o trabalhador rural, bem como se a introdução dos produtos industrializados, pré-prontos, melhoraram ou pioraram essa questão alimentar do homem do campo. Os entrevistados assim responderam ao quesito "alimentação pós-aposentadoria do trabalhador rural":

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 7 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 Melhorou muito, ora (estalando os dedos,) quem ‘num’ tem rapaz, tá sofrendo, quem ‘num’ é aposentado tá sofrendo, porque tem muita gente aí que ‘num’ dá certo, que ‘num’ tem documento, sei lá, ‘ num’ pretendeu a vida pra futurar, ‘né’? e pra muita gente melhorou, porque muita gente ‘num’ quer trabalhar, aí fica mais fácil pra ele, ‘né’, mas pra quem ‘veve’ do trabalho ‘num’ liga com essas coisas não[...] mas agora tá bom demais, graças a Deus a gente tem esse aposento, ‘tá’ vivendo com felicidade. (in: FERNANDO ALVES PINHEIRO, 73 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce)

Melhorou muito a nossa alimentação, graças a meu bom Deus, porque hoje em dia a gente pode até cochilar ao meio-dia, coisa que a gente não podia[...] a gente passava o meio-dia no roçado, só ouvindo a cigarra cantar, ninguém podia dormir no meio do sol quente[...] a gente já não se preocupa mais com o que tem para comer, como antigamente a gente ficava pensando ‘meu Deus, o que vamos comer de tardezinha, vou ter que pescar, pegar um camarão’[...] a gente hoje tem até crédito nas bodegas[...] se aquele salário chegar a se acabar antes do mês, a gente tem crédito (grifo nosso) (in: AMÉLIA SALES FREITAS ARAÚJO, 55 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Melhorou muito, meu filho, porque a gente chega no comércio pode comprar um quilo de açúcar, um quilo de arroz, e tudo o mais, a gente tem crédito, não é [...] então a aposentadoria melhorou muito a nossa vida, graças a Deus e ao Pelé, que conseguiu essa lei aí pra gente se aposentar” (grifo nosso). (in: MARIA DAS GRAÇAS VITAL DE CARVALHO, 61 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Pelas respostas apresentadas até aqui, infelizmente (ou felizmente), ainda não há como inferir se houve uma certa descontinuidade das práticas alimentares dessa população. As respostas apontam mais para o acesso ao crédito e à facilidade em comprar gêneros alimentícios. A princípio, poder-se-ia dizer que tal fato faz com que essas populações descuidem do labor do campo, da agricultura e, assim, haja certa ruptura de alguma cultura alimentar, porém, como se denota, não é possível ainda afirmar, somente com base nesse quesito e nessas poucas entrevistas, se houve alguma descontinuidade em relação a algumas práticas alimentares. Até aqui, pelo contrário, elas continuam, como vimos, muito fortes e arraigadas no povo sertanejo.

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 8 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 Já sobre o questionamento "introdução dos produtos industrializados na alimentação do homem do campo", assim dissertaram nossos entrevistados: Mudou pra pior, quanto mais você come...a gente come é...comida enlatada , ali tem tóxico, aí é que ‘tá’ as ‘perdição’ de quem não conhece né [...] vai pra cima, acaba prejudicando a saúde, futuramente ‘num’ sabe se vai durar setenta anos, se vai durar cinquenta, sessenta [...] a realidade é essa [...] é diferente ‘duma’ comida natural, que ‘ocê’ vai lá no quintal e quebra uma espiga de milho verde, sem agrotóxico, sem nada, ‘ocê’ pega um bocado de milho, torra, pisa, faz uma farinha saudável, ‘né’[...] é diferente de comprar lá no mercado, que já vem na conserva, porque se ‘num’ tiver o químico, ela vai se vencer e vai arruinar ‘né’ [...] eles são preparados pra isso, pra melhorar a facilidade da venda, do mercado ‘né’[...] mas realmente existe uma diferença hoje, porque hoje você vai ‘pruma’ festa de aniversário, é bolo, é bebida, essas coisas[...] de primeiro não tinha geladeira, ‘num’ tinha energia, se fazia uma festa o que se tomava? O refresco, que é o suco puro ‘né’? hoje você toma suco gelado ‘né’? (grifo nosso) (in: JOSÉ MARIA BARBOSA, 60 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce) “Por uma parte prejudicaram, porque tem muita química, a gente adoece, ofende a gente[...] um feijão, por exemplo, quando você pulveriza ele, mata a lagarta, o bicho do feijão, mas quando a gente cozinha chega fica aquela mancha branca em cima” (grifo nosso) (in: AMÉLIA SALES FREITAS ARAÚJO, 55 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Eu não gosto desse tipo de comida, industrializada, dessas frutas importadas[...] veja, você planta no seu cercado, no seu roçado, um jerimum, uma melancia, é outro gosto, tem gosto; o milho tem outro gosto, é muito diferente (grifo nosso). (in: MARIA DAS GRAÇAS VITAL DE CARVALHO, 61 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Como se percebe, há uma unanimidade nas respostas acerca desse questionamento. O homem do campo, definitivamente, não gosta de gêneros alimentícios que contém conservantes, aditivos químicos, produtos industrializados. Segundo eles, esses alimentos não têm gosto algum, bem como prejudicam a saúde. Questionados, entrementes, se a mudança climática (inverno/ verão) influenciaria na alimentação, os entrevistados assim responderam:

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 9 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 Não, não, acho que não, porque gente faz uma coisa a gente guarda, ‘né’? durante o verão, ‘né’? quem faz guarda e quem ‘num’ faz compra (grifo nosso). (in: FERNANDO ALVES PINHEIRO, 73 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce) Muda sim, porque o agricultor no sertão vive do inverno, choveu, você plantou, com 60 dias você tem uma alimentação, tem um feijão, com 70 dias você tem milho, tem a melancia, tem o jerimum, ‘né’? então, quando não chove, o que vai acontecer? desfalque ‘né’ .(grifo nosso). (in: JOSÉ MARIA BARBOSA, 60 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce) Eu acho que no inverno tem muito feijão verde, muito milho verde; no verão o feijão fica mais seco, mais difícil de cozinhar. (grifo nosso) (in: AMÉLIA SALES FREITAS ARAÚJO, 55 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce) Eu acho que no verão a coisa fica muito difícil para o agricultor, fica tudo escasso, mas tendo inverno, aí a coisa melhora muito: chega o legumeverde, chega o jerimum, chega a melancia, chega o milho verde, chega o feijão verde, chega até um arrozinho, né! (grifo nosso) (in: MARIA DAS GRAÇAS VITAL DE CARVALHO, 61 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Certa divergência qualitativa aqui se verifica, mas mais pela questão de cunho econômico-doméstica, que vaticina: "guardar para a escassez do verão". Assim, não vai faltar. Contudo, é dominante a ideia de que tudo muda, tudo melhora para a alimentação do homem do campo, no inverno. Como bem diz um dos entrevistados: "[...]choveu, você plantou, com sessenta dias você tem um feijão[...]com setenta dias você tem milho, tem a melancia, tem o jerimum". Outro comenta: "[...]tendo inverno, a coisa melhora muito: chega o legume-verde, chega o jerimum, chega a melancia, chega o milho verde, chega o feijão verde". Se é verdade, como diz nosso entrevistado, que o agricultor, no sertão, vive do inverno, é verdade que no inverno sua alimentação é outra, de mais quantidade e qualidade. Por fim, os agricultores também foram questionados acerca da ritualística, dos costumes, de como era "a hora de comer", sobre as "interdições alimentares", se haviam "alimentos proibidos", "restrições alimentares", se havia "jejuns", sobre a "rotina da cozinha" e "a participação dos homens", sobre "como eram divididas as tarefas", enfim, questionamentos que pudessem trazer outros significados ao alimento e à comida.

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 10 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 Fizemos uma síntese desses relatos, pois são numerosos. Vejamos as respostas referentes ao questionamento sobre a hora de comer: Era todo mundo junto, mas não tinha mesa não, nem lugar marcado. De primeira, rapaz, as coisas ‘era’ muito difícil, nessa época eu morava nos patos, morei 16 anos nos patos, morava lá, minha família toda era pequenininha, difícil demais, um lugar muito ruim, muito difícil as coisas, perto da serra do Sr. Manoel Dias, ‘ocê’ sabe que num tinha nem esse negócio de mesa, não, a gente botava era um surrãozinho estendido, um uruzinho no chão, um surrãozinho, aí era todo mundo arrodeado e comia ali mesmo assentado, né, todo mundo junto, às vezes tinha um que tava por fora e quando chegava comia, mas tava tudo junto [...] a gente passa, a gente conta, num faz vergonha não[...] (grifo nosso). (in: FERNANDO ALVES PINHEIRO, 73 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce) Sempre que a gente fazia uma refeição no sertão era na cozinha ‘né [...] a mãe fazia o almoço e lá mesmo, na cozinha, cozinha na casinha de taipa, a gente sentava numa esteira no chão, colocava a panela encostada e os prato ali pra todo mundo ‘né’ [...] ali era dividido e a família quase toda naquela rodinha ali [...] era ‘numa’ esteira feita de palha de carnaúba, ‘chama-se’ as esteiras.(grifo nosso). (in: JOSÉ MARIA BARBOSA, 60 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce)

Hoje é diferente, mas quando eu era pequena era assim: era nós todinhos sentadinhos numa esteira, no chão, e meu pai na ponta, minha mãe assim do lado, aí os mais velhos, em ordem de idade, era desse jeito e naquela hora certa, todos tinham seu lugarzinho, porque as crianças não se misturavam com os adultos. (grifo nosso) (in: AMÉLIA SALES FREITAS ARAÚJO, 55 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Era todo mundo sentadinho no chão, em cima de um surrão! (grifo nosso) (in: MARIA DAS GRAÇAS VITAL DE CARVALHO, 61 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Parece que o costume dominante acerca da maneira de comer dos sertanejos cearenses era no chão, em cima de um surrão (esteira feita da palha da carnaúba). Havia hora certa para comer e, em alguns casos, lugar marcado de sentar, conforme a idade do comensal. Parecenos que tal costume advém da herança cultural indígena, que aqui nos legou vasta cultura, não somente alimentar, mais de modos e costumes diversos. E sobre os "jejuns" e "restrições alimentares", assim se manifestaram:

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 11 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014

Tinha, tinha, o jejum, é o seguinte: a gente bem cedo ‘num’ podia merendar nada, e só almoçava 12h, e isso era na semana santa, ‘ né’? dois dias, quinta e sexta, hoje me dia quase que ‘num’ tão mais ligando nisso, ‘né’? ainda tem gente que faz isso, mas é pouco . (grifo nosso) (in: FERNANDO ALVES PINHEIRO, 73 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce)

O jejum, eu sempre gosto de dizer, o homem do campo, quem nasce no sertão, as vezes é jejuado de nascença, porque as vezes você não tinha alimentação toda hora na sua mesa pra você se alimentar, então você já vinha jejuando, mas tem o jejum, tem uma tradição da igreja na semana santa, e os pais primeiro ‘ensinava’ aqueles dias de jejum[...] hoje a ‘negrada’ não usam mais, você vai pra uma mesa de refeição na época da semana santa, tem lá no café da manhã o queijo, e sei mais lá o que, tudo tem ali ‘né’[...]ali pra fazer o jejum, uma ceia né? [...] de primeira não, você tomava o café amargoso de manhã e só ia almoçar 12h, e dali só as cinco ou seis horas, sempre existiu[...] hoje tem uma tradição, mas é longe do que a gente já passou[...] as coisas modificaram muito, ‘né’, as religiões vem sendo ‘criada’ de outras formas, o próprio papa tá aí mostrando hoje como pode se viver pra não passar fome, então as coisas mudaram muito.(grifo nosso). (in: JOSÉ MARIA BARBOSA, 60 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce)

Jejuar em sempre jejuo, quando faço meus votos com Deus, todo santo dia até às 09:00h da manhã[...] Se eu tomasse um café, e tivesse uma manga, um cajá, a gente não comia não. (grifo nosso) (in: AMÉLIA SALES FREITAS ARAÚJO, 55 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

A gente jejuava sempre na quaresma e na quarta-feira de cinzas.(grifo nosso) (in: MARIA DAS GRAÇAS VITAL DE CARVALHO, 61 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Aqui não há grande novidade. O sertanejo é religioso por essência, beirando muitas vezes ao messianismo, como nos lembrou Ribeiro (1995, p. 354-355), em seu ensaio sobre o povo brasileiro. Acerca dos questionamentos sobre a divisão de funções e participação nas tarefas de cozinha, os entrevistados responderam assim:

A gente (homem) também prepara, eu pelo menos, ‘num’ tendo jeito, minha comida eu faço [...] (grifo nosso)

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 12 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 (in: FERNANDO ALVES PINHEIRO, 73 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce)

Eram somente as mulheres, homem não varria uma casa, não varria um quintal, nem participava na cozinha não[...] hoje você já se admira quando vê um homem passando um pano numa casa[...] era só a mulher mesmo naquele tempo, cuidar de trabalhador, ir deixar comida no roçado, era uma luta cruel da pobre mulher, além de cuidar dos filhos também.(grifo nosso). (in: AMÉLIA SALES FREITAS ARAÚJO, 55 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Eram somente as mulheres, mas me lembro que caso tivesse um casal com filho pequeno, a mulher ‘tando’ doente ou ‘de resguardo’, o homem tinha de ajudar na cozinha também.(grifo nosso) (in: MARIA DAS GRAÇAS VITAL DE CARVALHO, 61 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Vê-se que as respostas apontam, em sua maioria, para o maior trato da mulher no tocante ao ambiente de cozinha, preparação de alimentos, deixar comida em roçado e, além de tudo, cuidar também dos filhos. Não obstante, para dois entrevistados, em casos extremos, em que a mulher não pudesse laborar na cozinha, o homem certamente tinha que ajudar nessas tarefas. Porém, essa era uma exceção, uma raridade. Foram-nos transmitidos também, nesses relatos, alguns modos de fazer, de como preparar alguns alimentos tradicionais. Assim podemos perceber alguns aspectos relacionados à preparação e ao consumo da comida. É o que veremos no próximo tópico.

3 RELATOS DE PREPARAÇÃO DE ALGUNS ALIMENTOS TRADICIONAIS

A título de identificarmos alguns rituais e técnicas de preparação e consumo da comida dos nossos entrevistados, perguntamos qual seria o tipo de alimentação tradicional, dentre aquelas respondidas, que ele(a) gostava mais, e pedimos que nos relatasse como era feito o preparo de tal alimento, se possível desde o plantio até à mesa, em forma de comida, de "prato". Assim ouvimos o "passo-a-passo" dos seguintes alimentos até agora: pão de milho; farinha de torrado de milho; grolado e; frango com pimenta do reino e alho. Vejamos:

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 13 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 Sobre o pão de milho, conta-nos o Sr. Fernando Alves Pinheiro: Bom é o seguinte, a terra sendo boa, é 5 ‘caroço’ de milho, mas sendo uma terra fraca, é só 4[...] feijão é 3 ‘caroço’, num precisa mais, aí a largura é de um metro (medindo no braço), um metro ‘duma’ carreira pra outra, aí o camarada planta o feijão junto com o milho tudo numa cava só, se ele quiser, se ‘num’ quiser planta no meio da carreira, aí depois a gente vai capinar, pra ‘num’ ter o mato, ‘né’?[...]depois, pra fazer o cuscuz, a gente molha a massa, bota o sal, aí mexe ela bem mexidinha, aí bota na cuscuzeira e cozinha, ‘né’? pronto, é só comer com leite, feijão ou uma carne mesmo, ‘né’?” (grifo nosso). (in: FERNANDO ALVES PINHEIRO, 73 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce)

Sobre a farinha de torrado de milho, falou-nos José Maria Barbosa:

As mães, as donas de casa faziam, ainda hoje mesmo as pessoas fazem no sertão, trazem e saem vendendo aqui pra gente, a gente compra aqui, mas qualquer um pode fazer [...] é ir pra uma pedra de fogão, com uma panela, botar um bocado de milho dentro, e torrar, e tira, e aqui acolá pisa [...] qualquer pessoa faz, eu mesmo se for preciso eu ainda faço.(grifo nosso). (in: JOSÉ MARIA BARBOSA, 60 anos; entrevista em 30/01/2014, em Miraíma/Ce)

Sobre o "grolado" dissertou a Sra. Amélia Freitas:

O grolado é o seguinte: você pega a goma, desmancha, rapa um pouquinho, molha, pega uma frigideira grossa, aí coloca sem estar muito quente, para não queimar, vai colocando fininha, e passando a colher, e ela vai enrolando, é o grolado[...]a gente come com cará, com carapicu [...] a borra, no caso, é o que fica entre a goma e a água, você tira a água todinha, fica uma borra, um caldo grosso, roxo, tira essa borra e coloca dentro de uma cuia ou bacia, e ali a água vai secando por si, a borra [...] tinha vez que a gente comia fresquinha, mas muita vez o papai torrava [...] tem que lavar ela bem lavada que ela é muito azeda [...] precisa de uma frigideira ou de uma panela grossa [...]. (grifo nosso) (in: AMÉLIA SALES FREITAS ARAÚJO, 55 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

E sobre o "frango com pimenta do reino e alho", assim disse a Sra. Maria das Graças:

O frango com pimenta do reino e alho era nossa comida preferida, e a gente fazia assim: primeiro, óleo não existia, então ou a gente fazia na gordura do porco ou no óleo de batiputá, temperava o frango com a pimenta do

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 14 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 reino e o alho e fazia torrado, depois fazia uma farofa, mais um feijão, ô almoço !, podia também botar um cheiro-verde, rapar um coco, colocar dentro do feijão, e bebia o caldo com rapadura”. (grifo nosso) (in: MARIA DAS GRAÇAS VITAL DE CARVALHO, 61 anos; entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce)

Apesar da rusticidade de técnicas apuradas e de artefatos simples, a comida sertaneja é, sem sombra de dúvidas, objeto de uma culinária regional apurada e reconhecida, que remonta as suas origens indígenas e perpassa por inúmeras gerações de pessoas que a aperfeiçoaram e introduziram melhorias qualitativas. O fato é que, diante das limitações naturais, adversidades climáticas, em uma economia assentada em um modelo produtivo caracterizado historicamente pelo grande engenho e fazendas de gado, onde a maioria da população foi excluída da posse da terra, o sertanejo desenvolveu uma agricultura de subsistência e, mesmo assim, sobressaiu-se com grande inventividade e criatividade em relação às práticas alimentares e culinárias.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS, AINDA QUE PARCIAIS

Assim, chegamos ao final desta escrita, que não traz conclusões, mas tão somente algumas percepções advindas dos relatos dos nossos entrevistados, porquanto a pesquisa encontrar-se em andamento. Primeiramente, assentamos a certeza da real contribuição da presente pesquisa para o fomento dos registros acerca do cotidiano alimentar sertanejo, tão carente de estudos sistemáticos; depois, verificamos pelo percurso empreendido até aqui, uma realidade alimentar marcada pela inventividade, criatividade, robustez, fartura e riqueza de significados em relação ao alimento e à comida, por parte dos sertanejos cearenses durante o século XX. Normalmente, a literatura dos estudos sobre a seca expressam uma realidade de fome, de embrutecimento do homem pelo consumo de alimentos bárbaros, transformando-o em bicho, criatura desumanizada pela boca e pelo estômago, o que não traduz a verdade, pelo conjunto dos dados colhidos, merecendo ser tal noção desconstruída. Em realidade, apesar das adversidades, a população sertaneja se caracteriza pela riqueza de práticas culturais, alimentares e culinárias, sendo uma de suas marcas a mesa farta, apesar

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 15 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 de tudo. De seus produtos básicos (feijão, milho e mandioca) realizou-se uma verdadeira riqueza de pratos e preparações que, com as contribuições das culturas européia e africana, no dizer de Cascudo (1983, p. 431), traduz-se em " verdadeiro melting pot culinário". É o que se traduz também dos relatos colhidos na presente pesquisa. Continuaremos com a coleta de dados da presente pesquisa, de modo a buscar mais e mais a caracterização do cotidiano das vivências alimentares dos sertanejos cearenses, contribuindo efetivamente com os estudos de natureza antropológica, sociológica e histórica sobre a cultura alimentar tradicional no nordeste brasileiro. Evidenciamos que há um crescente reconhecimento da importância do alimento para a compreensão de tudo o mais na história, pois nada importa mais que a comida para a maioria das pessoas, na maioria das culturas, pela maior parte do tempo. Os alimentos representam, assim, a ligação mais primitiva entre natureza e cultura, fazendo parte da raiz que liga um povo, uma comunidade ou um grupo à sua terra, à alma de sua história.

4 REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Amélia Sales Freitas. Entrevista concedida em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce. Projeto: PRÁTICAS ALIMENTARES DE SERTANEJOS CEARENSES, SÉCULO XX. Edital PIBIC 01/13 (2013-2014). UFC - Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação. BARBOSA, José Maria. Entrevista concedida em 30/01/2014, em Miraíma/Ce. Projeto: PRÁTICAS ALIMENTARES DE SERTANEJOS CEARENSES, SÉCULO XX. Edital PIBIC 01/13 (2013-2014). UFC - Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação. CARVALHO, Maria das Graças Vital de Carvalho. Entrevista em 11/03/2014, em Itapipoca/Ce. Projeto: PRÁTICAS ALIMENTARES DE SERTANEJOS CEARENSES, SÉCULO XX. Edital PIBIC 01/13 (2013-2014). UFC - Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação.

CASCUDO, Luis da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo, SP: Global, 1983. PINHEIRO, Fernando Alves. Entrevista concedida em 30/01/2014, em Miraíma/Ce. Projeto: PRÁTICAS ALIMENTARES DE SERTANEJOS CEARENSES, SÉCULO XX. Edital PIBIC 01/13 (2013-2014). UFC - Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação.

RIBEIRO, DARCY. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

II Seminário Sobre Alimentos e Manifestações Culturais Tradicionais 16 I Simpósio Internacional Alimentação e Cultura: aproximando o diálogo entre produção e consumo Universidade Federal de Sergipe 20 a22 de maio de 2014 SANTOS, Carlos R. A. A alimentação e seu lugar na História: os tempos da memória gustativa. in: História: questões e debates. História da alimentação. Curitiba, PR: UFPR, JAN/JUN 2005, n. 42, p. 11-31. THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. 3a Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1988. UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ. Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação. Projeto: PRÁTICAS ALIMENTARES DE SERTANEJOS CEARENSES, SÉCULO XX. Edital PIBIC 01/13 (2013-2014)

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