Práticas de letramento e leitura na empresa

July 25, 2017 | Autor: Egon Rangel | Categoria: Literacy, Letramento Crítico
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PRÁTICAS DE LETRAMENTO E LEITURA NA EMPRESA EGON DE OLIVEIRA RANGEL (LITTERIS / PUC-SP), ANA LUIZA MARCONDES GARCIA (LITTERIS / PUC-SP), MAURÍCIO ERNICA (LITTERIS / FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL).

Resumo O trabalho expõe uma proposta de organização de práticas de letramento e de leitura em contexto empresarial, nascida da demanda de uma empresa brasileira. Tal demanda ocorreu como um desdobramento da aplicação, na empresa, de um teste de conhecimentos sobre normas de segurança aplicado a funcionários. Diante dos resultados surpreendentemente negativos, os responsáveis chegaram à conclusão de que os funcionários, mais que desconhecer normas básicas de segurança, não teriam desenvolvido a contento habilidades de leitura requeridas para compreender os questionários utilizados como instrumentos do teste. Em consequência, suas respostas não testemunhariam adequadamente o conhecimento ou o desconhecimento das normas. Formulou–se assim um projeto de intervenção voltado para o letramento e o desenvolvimento de competências leitoras de funcionários interessados em melhorar seu desempenho em leitura e em aprofundar suas relações com o trabalho. Isso implica, certamente, o ensino de habilidades específicas, como identificar informações explícitas, inferir informações implícitas, identificar o objetivo de um texto, compreender descrições, argumentos, explicações, instruções etc. Contudo, essas habilidades só poderão ser efetivas se se incorporarem às práticas cotidianas, respondendo a demandas pessoais e cumprindo funções culturais, sociais e pessoais autênticas. O que se objetiva na proposta, portanto, são transformações pessoais vinculadas a transformações do próprio ambiente de trabalho, em especial das formas de interação nesse contexto. As atividades propostas visam a promoção de grupos de funcionários a patamares superiores de letramento e de proficiência em leitura, o que implica um conjunto de iniciativas destinadas a transformar o ambiente de trabalho numa espécie de comunidade leitora, definida quer pelas relações pessoais de seus membros com a leitura, quer por suas demandas comuns de leitura profissional. Em resumo, trata– se de expor um projeto específico para a formação de leitores em contexto de trabalho, formulado a partir dos pressupostos teóricos da área do letramento (Soares, 1998). Palavras-chave: letramento, adultos, empresa.

Práticas de letramento e leitura na empresa Egon de Oliveira Rangel – Litteris/PUC-SP Ana Luiza Marcondes Garcia – Litteris/PUC-SP Mauricio Érnica – Litteris/Fundação Tide Setubal

1. Introdução

O presente trabalho expõe um projeto de organização de práticas de letramento e de leitura nascido da demanda feita por uma grande empresa brasileira para o Litteris – Instituto de Assessoria e Pesquisa em Linguagem, uma organização não governamental sediada em São Paulo e voltada para a assessoria e a pesquisa em linguagem. Congregando profissionais de formação variada — lingüistas, literatos, cientistas sociais, psicólogos, psicanalistas, fonoaudiólogos —, o Litteris atua em áreas e/ou projetos

em que a

linguagem

requer

um

tratamento

técnico

especializado. A demanda por um projeto desta natureza deu-se como um desdobramento da realização de um teste de conhecimentos sobre normas de segurança no trabalho que

a

empresa

aplicou

em

seus

funcionários.

Diante

dos

resultados

surpreendentemente negativos, os responsáveis chegaram à conclusão de que as respostas dadas não testemunhavam de forma adequada o conhecimento que os funcionários tinham das normas básicas de segurança da empresa. Assim, atribuíram os maus resultados ao fato de que os funcionários, na verdade, não tinham desenvolvido a contento as habilidades de leitura requeridas para ler e compreender os questionários utilizados como instrumentos do teste. Como resposta possível para a situação, a empresa solicitou ao Litteris uma intervenção que foi proposta como um projeto voltado para o letramento e o desenvolvimento

de

competências

leitoras

de

funcionários

interessados

em

melhorar seu desempenho em leitura e em aprofundar suas relações com o trabalho. Interessa-nos expor, aqui, os pressupostos de trabalho então assumidos pelos profissionais do Litteris e as diretrizes que pautaram a proposta, assim como o desenho desse projeto, estruturado para a organização sistemática de práticas de leitura em contexto empresarial. Na medida em que o projeto destina-se ao desenvolvimento tanto dos tipos e graus de letramento quanto da proficiência em leitura de jovens e adultos trabalhadores, o domínio em que nos inscrevemos é o da educação não escolar de jovens e adultos. E, em particular, o da formação em serviço.

2. Considerações teóricas

Como fundamentos teóricos, partimos de pressupostos bakhtinianos (Bakhtin, 1953), no que diz respeito às questões do discurso, de pressupostos vigotskianos

sobre processos de ensino-aprendizagem (Vigotsky, 1925, 1934 e 1978) e de pressupostos oriundos das pesquisas sobre leitura e letramento no Brasil, como as de Lajolo & Zilberman (1991 e 1996), Kleiman (1995), Soares (1998) e Masagão (2003). Muito resumidamente, isso significa que: •

assumimos uma concepção discursiva de linguagem; e que tomamos os gêneros do discurso como unidades básicas quer para a reflexão teórica responsável pela concepção de todo o projeto, quer para a organização das oficinas e a elaboração das atividades propostas;



assumimos que os sujeitos são formadas historicamente a partir das interações

sociodiscursivas

que

elas

estabelecem

ao

participar

das

atividades da vida social. Por isso, as práticas que visam o desenvolvimento de funções psicológicas devem dar destaque para o modo como se estruturam os meios sociais a partir dos quais os sujeitos se formam e se transformam. •

concebemos as práticas de ensino-aprendizagem não como um conjunto de atividades voltadas para a transmissão/assimilação de conteúdos e/ou procedimentos, mas como um processo de interação entre sujeitos centrado na construção conjunta de conhecimentos (relativos à língua escrita e à leitura) e na formação de leitores;



encaramos a língua escrita e a leitura do ponto do vista dos discursos que ensejam, das funções e significados sociais que envolvem e do papel que podem desempenhar na formação dos sujeitos, especialmente no caso de profissionais em serviço.

Assim, o conceito central que sustenta o presente trabalho é o de letramento, isto é, o “estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita” (Soares, 1998: 18). Em particular, apoiamo-nos na concepção que dá ênfase à dimensão social do letramento, pois “letramento é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais.” (Soares, 1998: 72). É a partir da participação nessas práticas sociais que os indivíduos podem desenvolver

capacidades

de

ação,

capacidades

de

linguagem,

formas

de

reconhecimento social e auto-representações. Por isso, como afirma Soares (1998),

o letramento traz uma série de consequências no modo de viver das pessoas, consequências “sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas” (Soares, 1998: 17). Trata-se de um fenômeno que extrapola o mundo da escrita tal qual ele tem sido tradicionalmente concebido pela instituição que se encarrega de introduzir os sujeitos, de maneira formal e sistemática, nesse universo: a escola. Por meio da escolarização, as pessoas podem se tornar capazes de realizar tarefas escolares de letramento, mas podem permanecer incapazes de lidar com os usos cotidianos de leitura e escrita em situações não escolares (Soares, 1998). Considerando que os funcionários da empresa para a qual o projeto em questão foi formulado possuem, em sua grande maioria, o ensino médio completo e, mesmo assim, não teriam chegado a desenvolver a contento as habilidades de leitura requeridas para ler e compreender os questionários utilizados como instrumentos do teste, a concepção que dá ênfase à dimensão social do letramento pareceu-nos ser a mais adequada para dar sustentação teórica ao trabalho a ser proposto.

3. Diretrizes do trabalho

Partindo de tais pressupostos teóricos, definimos as seguintes diretrizes para o projeto: •

atender, prioritariamente, os funcionários de manutenção, os operadores de produção e os líderes de seção, por sua posição estratégica em relação às questões de segurança e ao bom funcionamento do trabalho;



organizar-se, basicamente, como um conjunto de atividades dinâmicas e não-escolarizadas, tanto para evitar as práticas escolares provavelmente coresponsáveis pelo mau desempenho no teste quanto para motivar e envolver os interessados;



fazer sentido para os participantes, de forma a evitar o envolvimento compulsório e a propiciar uma efetiva adesão às preocupações em jogo;



ter por objetivo desenvolver tanto capacidades gerais de leitura — válidas também para outras dimensões da vida — quanto, mais especificamente, sua proficiência em leitura de textos relacionados à vida profissional.

4. Objetivos do projeto

O projeto teve como objetivo, portanto, propor aos funcionários interessados um conjunto articulado de práticas de letramento e leitura capazes de, em situações reais de uso da escrita, sensibilizá-los para o papel da leitura na construção de sua própria identidade, como pessoa e como profissional. Para tanto, pretendeu-se fortalecer as relações individuais dos participantes com a cultura letrada, ou seja, com os diferentes usos da língua escrita, sobretudo aqueles que estão diretamente relacionados à esfera pública. Paralelamente, pretendeu-se também desenvolver a proficiência em leitura dos participantes, em especial no que diz respeito a gêneros de texto da vida profissional.

5. Desenho do projeto e atividades previstas

Considerando tais objetivos, o projeto foi formulado de modo a estender-se por ao menos 1 ano, recorrendo a diferentes etapas e a diferentes formas de atuação, articuladas entre si e convergindo no sentido de promover a autonomia progressiva dessa comunidade em relação a suas demandas de leitura. Etapa 1 - Diagnóstico Duração: 2 a 3 meses Objetivo: aprofundar a compreensão da queixa geradora da demanda e qualificar o diagnóstico informal. Essa etapa compreende: •

análise geral de textos que fazem parte da vida profissional e do cotidiano dos participantes;



descrição, análise e discussão das práticas e das capacidades de leitura esperadas pela empresa de seus funcionários;

Atividades envolvidas: •

recolher e analisar textos da vida profissional;



descrever a analisar as práticas de letramento da vida profissional (reais, desejadas e possíveis);



compreender o perfil dos funcionários (experiência escolar e práticas de letramento);



recolher e analisar textos lidos cotidianamente pelos profissionais envolvidos no projeto;



desenhar as etapas seguintes em parceria com a empresa.

Etapa 2 - Oficinas Gerais Início: imediatamente após a Etapa 1 Duração: 2 meses Objetivos: •

sensibilizar os participantes para o papel da leitura tanto na construção da subjetividade quanto no exercício da profissão;



envolvê-los em práticas de letramento e leitura conscientes e refletidas, capazes de instigar cada participante em relação às questões em jogo;



permitir que os participantes se reconheçam como leitores e possam falar e conversar sobre suas relações com a escrita;



apresentar a leitura como um modo de construção de si e como um meio de interação e participação social;

Atividades envolvidas: •

leitura e discussão de textos motivadores em oficinas de leitura;



elaboração oral e escrita de memórias da formação pessoal como leitor;



discussão sobre usos da escrita na vida contemporânea;



escrita de diários pessoais de leitura.

Etapa 3 - Oficinas Específicas Início: imediatamente após a Etapa 2 Formato: diferentes tipos de oficinas de leitura, cada uma delas voltada para a leitura de um conjunto homogêneo de gêneros relacionados ao mundo do trabalho. Duração: 2 meses cada uma, distribuídas ao longo do período previsto para a realização do projeto. Objetivos: desenvolver habilidades de leitura vinculadas a gêneros de textos específicos. Atividades envolvidas: •

leitura e discussão de textos vinculados a gêneros específicos.



atividades de fortalecimento das práticas de leitura e dos usos e funções sociais da escrita;



reflexão coletiva e pessoal sobre a comunicação interna pela escrita em contextos de trabalho.

Etapa 4 – Práticas de letramento na empresa Início: após o fim da Etapa 1 Duração: atividades permanentes Objetivos: explicitar e fortalecer o papel da escrita na cultura institucional; fomentar situações de uso da escrita no cotidiano da empresa. Atividades previstas: •

rodas de leitura e de conversas sobre leitura, apoiadas por bibliotecas com acervo circulante.



conversas

com

profissionais

da

escrita

especialmente

convidados,

envolvendo esferas discursivas e gêneros os mais diversos: literatura, jornalismo, publicidade, comunicação empresarial etc.; •

elaboração e circulação de jornal mensal (eletrônico e/ou impresso) com resenhas, indicações de leitura e histórias de leitores;



organização de feiras de livros e outros impressos usados (troca e compra), pelos próprios participantes.

Etapa 5 – Manual de comunicação escrita na empresa Início: a partir do final da Etapa 3 Duração: cerca de 6 meses Objetivos: elaborar, com base na experiência até então acumulada das diferentes etapas do projeto — e particularmente das oficinas previstas pra a Etapa 3 — um manual de comunicação escrita na empresa, destinado a orientar os responsáveis pela área na empresa a respeito de padrões discursivos e de legibilidade lingüística a serem observados pelos textos institucionais da empresa. Ementa: A escrita e suas funções sociais. As funções da escrita num ambiente de trabalho. Gêneros da comunicação institucional e empresarial. Orientações gerais sobre a forma e o conteúdo dos textos institucionais da empresa. O gráfico a seguir resume o desenho geral do projeto: Mes

1

2

Etapa 1 (Diagnóstico) Etapa 2 (Ofic. Gerais) Etapa 3 (Ofic. Especificas - 2 meses cada uma) Etapa 4 (Práticas de Letramento) Etapa 5 (Manual)

3

4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 a 18

6. Observações finais

Com base nos pressupostos teóricos assumidos e considerando a demanda que nos foi feita, parece-nos que um projeto específico para a formação de leitores num contexto de trabalho deve assumir a perspectiva geral da promoção de práticas de letramento e leitura, isto é, da promoção de saberes, de valores, de imagens de si e de hábitos que possam motivar e desenvolver usos mais complexos da língua escrita. Isso implica, certamente, o ensino de habilidades específicas, como identificar informações explícitas, inferir informações implícitas, identificar o objetivo de um texto, compreender descrições, argumentos, explicações, instruções etc. Contudo, a nosso ver, essas habilidades só podem ser efetivas se se incorporarem

às

práticas

cotidianas,

respondendo

a

demandas

pessoais

e

cumprindo funções culturais, sociais e pessoais autênticas. A perspectiva que se desenha, portanto, é a de promover transformações pessoais vinculadas a transformações do próprio ambiente de trabalho, em especial das formas de interação nesse contexto. Pode-se, portanto, dizer que a promoção de grupos de funcionários a patamares superiores de letramento e de proficiência em leitura implica um conjunto de iniciativas destinadas a transformar o ambiente de trabalho numa espécie de comunidade leitora, definida quer pelas relações pessoais de seus membros com a leitura, quer por suas demandas comuns de leitura profissional.

7. Bibliografia

Bakhtin, M. 1953. “Os gêneros do discurso”. In: ___ . Estética da criação verbal. Tradução do francês de Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira, São Paulo : Martins Fontes, 1992. p. 275-326. (Ensino superior) Bronckart, J.-P. 1979. Atividade de linguagem, textos e discursos. São Paulo : EDUC, 1997. Gnerre, M. 1986, Linguagem, escrita e poder. 3 ed. São Paulo : Martins Fontes, 1991. Kleiman, A. B. Org.. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas : Mercado de Letras, 1995.

Kleiman, A. B. Oficina de leitura; teoria & prática. Campinas : Pontes; Ed. da Unicamp, 1993. (Linguagem; Ensino) Lajolo, M. & Zilberman, R. 1996. A formação da leitura no Brasil. São Paulo : Ática. Lajolo, M. & Zilberman, R. 1991. A leitura rarefeita; livro e literatura no Brasil. São Paulo : Brasiliense. Osakabe, Haquira. “Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita”. In: Zilberman, R. org. Leitura em crise na escola. Porto Alegre, : Mercado Aberto, 1982. Rangel, E. de O.; Machado, A. R.; Magalhães, M.C.C. & Garcia , A. L. M. 2001. “Cultura da escrita: um projeto para a universidade, suas utopias e sua problemática”. Anais da III Conferência de Pesquisa Sócio-cultural. Campinas : Unicamp. Rangel, E. de O. 1990. “Um posicionamento diante da linguagem”. In: Osakabe, H. org. Caderno de textos do projeto ‘O leitor infinito’. São Paulo : Secretaria Municipal de Cultura. Ribeiro, V. M. org. 2003. Letramento no Brasil. São Paulo: Ed. Global. Soares, M. B. 1998. Letramento; um tema em três gêneros. Belo Horizonte : Ceale /Autêntica. Souza-e-Silva, M. C. P e Faïta, D. orgs. 2002. Linguagem e trabalho; construção de objetos de análise no Brasil e na França. São Paulo : Cortez. Vigotsky, L. S. 1925. “La conscience comme problème de la psychologie du comportement”. In: ___ . Conscience, inconscient, émotions. Paris: La Dispute, 2003. Vigotsky, L. S. 1934. A construção social do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Vigotsky, L. S. 1978. [Org. Michael Cole] A formação social da mente. São Paulo : Martins Fontes.

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