Práticas e Discursos Midiáticos: representação, sociedade e tecnologia

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Descrição do Produto

Organizadores: Adair Caetano Peruzzolo Fabiano Maggioni Laura H. Wottrich Patrícia M. Pérsigo

Universidade Federal de Santa Maria Centro de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Ciências da Comunicação Curso de Comunicação Social - Produção Editorial

Reitor: Felipe Martins Müller Diretor do CCSH: Rogério Ferrer Koff Chefe Depto. Ciências da Comunicação: Ada C. Machado da Silveira Coord. Curso Com. Social-Produção Editorial: Maria Ivete T. Fossá Capa, diagramação e revisão: Acadêmicas: Letícia Guimarães Ferreira Ramos, Luiza Betat, Marina Smidt Mainardi, Marina Machiavelli e Thuyla Azambuja de Freitas. Orientação dos professores:

Práticas e discursos midiáticos

Fabiano Maggioni, Laura H. Wottrich e Patrícia M. Pérsigo

representação, sociedade e tecnologia

FACOS - UFSM

FACOS - UFSM

Av. Roraima nº 1000 - Cidade Universitária –

Santa Maria RS

Prédio 67 - Bairro Camobi - Santa Maria/RS

2012

CEP: 97105-900 – Brasil

Sumário 6 10

Apresentação Prefácio



Mídia e Identidades Contemporâneas

Capítulo 1 14 Identidade, um fenômeno comunicacional: a necessária con- templação da esfera midiática em estudos sobre identidade, Fabiano Rocha Flores e Ada Cristina Machado da Silveira

Capítulo 2

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O discurso jornalístico e os sentidos (re)velados na articulação entre consumo e simplicidade, Gisele Dotto Reginato e Márcia Franz Amaral

Capítulo 3 64 Envelhecendo com a telenovela: para pensar a recepção na velhice, Laura H. Wottrich e Veneza Ronsini Capítulo 4 88 Mídia, identidade e representação: uma análise da publicidade televisiva da cerveja Polar Export, Leandro Stevens e Ada Cristina Machado da Silveira Capítulo 5 112 A telenovela pela perspectiva das receptoras: representações do feminino em Passione, Renata Córdova da Silva e Veneza Ronsini

Mídia e Estratégias Comunicacionais Capítulo 6 138 A construção do sentido na charge: uma análise da significação plástico/discursiva, Fabiano Maggioni e Adair Caetano Peruzzolo Capítulo 7 160 Estratégias emergentes de legitimação do jornal Zero Hora no Twitter, Luciana Menezes Carvalho e Eugênia Mariano da Rocha Barichello Capítulo 8 188 Narrativa transmídia no jornalismo: a interferência da audiência na circulação da história Cablegate a partir do Twitter, Maurício Dias Souza e Luciana Pellin Mielniczuk Capítulo 9 214 Entre a crise e a notícia: estratégias organizacionais da Air France e a construção do acontecimento ‘voo 447’ pela mídia impressa brasileira e francesa, Patrícia Milano Pérsigo e Maria Ivete Trevisan Fossá Capítulo 10 236 Hipertexto e linkagem: apontamentos sobre aspectos constituintes de uma linguagem digital, Silvana Copetti Dalmaso e Luciana Pellin Mielniczuk

Apresentação

Adair C. Peruzzolo: Pós-doutorado pela Universidad Autónoma de Barcelona, Doutorado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atua como professor no Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFSM. Leciona, estuda e pesquisa na área de comunicação com ênfase em Teorias e Estratégias da Comunicação e da Significação. E-mail: [email protected]

A proposição de discussões de temas, análises, palestras, estudos, reuniões, é sempre o intuito de fazer o pensamento encontrar os sentidos e valores da existência humana, de fazer as ações da cultura fazerem sentido, isto é, é a proposta do enriquecimento significativo, do que se oferece, em vista da realização e aperfeiçoamento dos modos de ser humano. É por isso que um encontro tem duas linhas de promoções: o que ocorre no auditório (palestras, questões, debates...) e o que sucede, no dizer vulgar, nos bastidores (reencontros, negociações, trocas de favores, convites, orientações...). É assim que um evento científico-cultural justifica a academia. São as dimensões de interlocução dos participantes que fundam o sentido de um evento acadêmico, pois, pensar o fenômeno das interações humanas sob o aspecto de sociedade midiatizada é pensar o sentido do viver humano num dado tempo e espaço, situado numa cultura. A humanidade chega, nessa primeira década do século XXI, à Idade da Mídia, para usar a denominação do que já aparece na imprensa. A especificação ‘mídia’ coloca as formas tecnológicas da comunicação no âmago da cultura da sociedade contemporânea. Não porque o que importa sejam as tecnologias e, sim, porque o fazer comunicacional do homem assumiu o caráter de controle e guia do seu fazer-se, quer dizer, o viver do homem passou a depender das suas habilidades de comunicação. O comunicar, portanto, tendo entrado definitivamente no jogo do sobreviver e do realizar-se humanos. O impulso para a comunicação não é um instinto; é, sim, uma necessidade. “O instinto não é senão a lógica da anatomia”, explica Piaget; entretanto, a necessidade é da ordem da natureza do vir a ser do ser. Por isso, afirma Bakhtin que “ser é comunicar”. Assim, a comunicação, primeiramente, serve para viver, fazendo a aproximação das pessoas, tornando o viver uma dependência das formas de comunicação, sejam estas gestos, palavras, imagens, sons, textos, celulares, telas... na rua, no recinto dos lares, na escola nas lojas, nos escritórios, no carro... ou nos livros. Apesar das extensas ambiguidades em sua concepção e definição, o fato é que nos comunicamos e, mais que isso, a cada dia vemos que, mais e mais, ela é um fenômeno inseparável do nosso fazer e do nosso existir. Por que? Qual a necessidade que 7

temos da comunicação? Tanto no homem quanto nos animais dotados de percepção e capacidade de representação, a comunicação aparece como relação buscada para a conservação de si e, consequentemente, da espécie. Em termos humanos, a busca efetiva, intensa e extensamente, de relacionamentos sociais incide na construção e realização dos indivíduos e das sociedades. É a tensão existente entre o desejo imediato e a satisfação mediata que leva o ser humano ao exercício da comunicação, pelo que ele representa de valor nessa relação. Nesse sentido, a eficácia da comunicação vem dada pela eficácia das relações estabelecidas e pela qualidade dessas relações. Pelo que a comunicação é um fato que se faz no tempo e no espaço, mas cujo sentido está na relação, porque a relação de comunicação parte do desejo e da necessidade de se comunicar com o outro, de forma primordial, para sua sobrevivência e afirmação do ser. Compreende-se, então, que a comunicação constitui o fundamento de toda a sociedade humana e de toda relação social. Fazendo alusão, mesmo que rapidamente, ao presente tempo da comunicação social, em que hoje vivemos, salientamos a extensão e a onipresença planetária dos Meios de Comunicação Social, com sua lógica de entretenimento, leveza e rapidez, procurando oferecer uma fala a todos os públicos, incomodando a poucos e sendo agradáveis (e bajuladores) com todos, tudo estando certo para o ponto de vista de cada um. Tais constantes de ação tornam a organização social e a proposição de valores de ordenamento sociocultural uma tarefa difícil, pela pluralidade e polissemia dos valores de convivência, cooperação e respeito, que instituem como padrão das relações sociais. A preocupação e análise do comportamento e dos textos da mídia – objetos básicos de análise no Mestrado em ‘Comunicação Midiática’ – têm o intuito de estudar e compreender tais proposições enquanto articuladores de intercâmbios socioculturais e agenciadores de sentido do vir-a-ser humano. Refletir e 8

analisar o fenômeno das interações humanas sob o aspecto de sociedade midiatizada é ocupar-se do sentido do humano na cultura. Assim que a presente obra reúne as reflexões dos mestrandos das duas linhas de pesquisa do Mestrado em ‘Comunicação Midiática”: Mídia e Identidades Contemporâneas; e, Mídia e Estratégias Comunicacionais. Os diferentes olhares e objetos mostram os devires aparalelos dos pensadores engajados nas observações do fazer-se midiático. Não que eles queiram estabelecer a verdade dos fatos analisados. Simplesmente buscam encontrar o sentido e o valor do que acontece no seu meio de vida, quer dizer, cada pesquisa revela a pluralidade do fazer-se humano como um mundo de sentido, isto é, o fazer-se humano do sentido de viver. Adair Peruzzolo Gerir o projeto de um livro digital concomitante à docência e demais trabalhos, inicialmente apresentou-se como um desafio, tanto para nós professores, quanto para os alunos envolvidos. No entanto, a experiência de planejarmos, organizarmos e executarmos algo que se apresenta como um meio de comunicação entre a produção do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFSM e seus demais públicos, mostra-se de grande relevância ao nos depararmos com um produto de tamanha qualidade. A conclusão deste livro digital tornou-se possível pela cooperação e colaboração de diversas pessoas. Primeiramente agradecemos ao Departamento de Ciências da Comunicação e à Coordenação e professores do Curso de Produção Editorial desta universidade pelo apoio e oportunidade viabilizada por meio do LAPPE (Laboratório de Pesquisa e Produção Editorial), local onde foi possível darmos os primeiros passos desse projeto. Também fazem parte desta caminhada os autores dos capítulos deste E-book, que aqui compartilham seus estudos enriquecendo ainda mais o campo da pesquisa em Comunicação. Por fim, destacamos a dedicação das acadêmicas Luiza Betat, Marina Machiavelli, Marina Smidt Mainardi e Thuyla Freitas. A todos vocês, muito obrigada! Fabiano Maggioni, Laura H. Wottrich e Patrícia M. Pérsigo 9

Prefácio

Eugenia Maria Mariano da Rocha Barichello é Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada II da UFSM e coordenadora o Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Instituição. É bolsista em Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisa (PQ2 CNPq), líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação Institucional e Organizacional (CNPq) e vice-coordenadora do GT Comunicação em Contextos Organizacionais da Compós. Autora de quatro livros, é membro do Comitê Científico da ABRAPCORP e integrante do Conselho editorial dos periódicos científicos INTERIN, Animus e Culturas Midiáticas. E-mail: [email protected]

O Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria iniciou suas atividades em setembro de 2005. A obtenção do conceito 4 na avaliação trienal da CAPES, em 2010, significou o reconhecimento da consolidação do Programa. Em 2011, o envio da proposta de implantação de um curso de Doutorado representa a afirmação do posicionamento da UFSM como uma universidade que busca a excelência em todas as áreas do conhecimento, aspecto que sempre caracterizou a sua história. Aliás, o importante aspecto da interiorização da PósGraduação foi sinalizado pela COMPÓS ao demonstrar que, embora a área tenha crescido 260% entre 2000-2010, persistem desequilíbrios intra e inter-regionais e existe uma concentração de programas nas capitais, sendo que quase 70% do total dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação estão nelas localizados. A área de concentração do Programa da UFSM compreende o estudo da ação midiática implicada na estrutura do espaço público, na visibilidade e legitimação das instituições e na configuração das identidades contemporâneas e suas atividades distribuem-se em duas linhas de pesquisa. A Linha de Pesquisa Mídia e Identidades Contemporâneas referese ao estudo da incidência da esfera midiática na conformação das identidades contemporâneas com ênfase na construção de representações e significados. Envolve estudos teóricometodológicos sobre o papel da Comunicação Midiática na construção de dinâmicas sociais, matrizes identitárias, experiências de interação e processos de consumo/apropriação, que passam pela mediação do trabalho discursivo das linguagens midiáticas. Já a Linha de Pesquisa Mídia e Estratégias Comunicacionais refere-se às estratégias que agem como promotoras da articulação e de organização entre a esfera midiática e os demais campos sociais. Envolve estudos teórico-metodológicos sobre as relações do campo das mídias com os demais campos, especialmente as estratégias que aciona, ou dele são tomadas por empréstimo, para construir o 11

espaço público, assegurar a presença das instituições nesse espaço e a instituir vínculos entre as instituições e os usuários de suas ofertas. A proposta deste livro é apresentar artigos derivados de 10 das 37 dissertações já defendidas no Programa em suas duas linhas, disponibilizando o resultado do trabalho e incentivando o diálogo e o debate com os pares, em nível, regional, nacional e internacional. Na linha Mídia e Identidades Contemporâneas, Fabiano Rocha Flores, orientado por Ada Cristina Machado Silveira, aborda a identidade como um fenômeno comunicacional e argumenta a favor da necessária contemplação da esfera midiática em estudos sobre identidade. Gisele Dotto Reginato, orientada por Márcia Franz Amaral, aborda o discurso jornalístico e os sentidos (re) velados na articulação entre consumo e simplicidade, para entender as relações pré-construídas e os discursos “outros”, embutidos na busca pelo estilo de vida simples. Laura H. Wottrich, orientada por Veneza Mayora Ronsini, sob o titulo Envelhecendo com a Telenovela: para pensar a recepção na velhice, busca compreender as configurações da recepção da telenovela na velhice, a partir da análise da interação cotidiana de receptoras idosas com a trama. Leandro Stevens, orientado por Ada Cristina Machado Silveira, aborda a temática Mídia, Identidade e Representação, com uma análise da publicidade televisiva da cerveja Polar Export, que investiga quais as competências discursivas do processo de identificação que vinculam a publicidade televisual da cerveja Polar ao público gaúcho. Renata Córdova, orientada por Veneza Mayora Ronsini, estuda a telenovela pela perspectiva das receptoras com o objetivo de refletir sobre a forma como mães e filhas, das classes populares, elaboram a sua noção do feminino a partir da telenovela. Na linha Mídia e Estratégias Comunicacionais, Fabiano Maggioni, orientado por Adair Peruzzolo, investiga a construção do sentido na charge: uma análise da significação plástico/discursiva, utilizando pressupostos da Teoria da Imagem, para os aspectos plásticos, e a Análise do Discurso, para aspectos semânticos. 12

Luciana Menezes Carvalho, orientada por Eugenia Mariano da Rocha Barichello, analisa a emergência de estratégias de legitimação institucional na utilização do Twitter pelo jornal Zero Hora (Porto Alegre-RS), a partir do pressuposto de que as mídias sociais da internet potencializam processos de desintermediação e deslegitimação do campo institucional do jornalismo. Maurício Dias Souza, orientado por Luciana Mielniczuk, investiga a narrativa transmídia no jornalismo. Utiliza a noção de espalhamento, um dos operadores da narrativa transmídia (NT), concepção utilizada por Jenkins (2009a, 2009b) para explicar o padrão de contar histórias com o uso combinado de diferentes plataformas midiáticas, aliado à participação ativa da audiência na produção e na circulação do conteúdo. Patrícia Milano Pérsigo, orientada por Maria Ivete Trevisan Fossa, aborda as estratégias de uma organização em situação de crise na construção do acontecimento jornalístico em uma sociedade midiatizada. A partir do método da análise de conteúdo (BARDIN, 1977), adota como objeto empírico a crise enfrentada pela Air France com a queda do voo AF 447 nos jornais Folha de São Paulo e Le Monde. Silvana Copetti Dalmaso, orientada por Luciana Mielniczuk, traz a questão do hipertexto e sua lógica dispersiva, intertextual, conectiva e associativa (LANDOW, 1992), que estruturam os processos de escrita digital, influenciando nas práticas de escrita de sites e blogs que divulgam conteúdos jornalísticos. Nesse contexto, os blogs, assim como os links, são exemplos de espaços dinâmicos que incorporam as características da linguagem digital, ampliando a rede de informação das mensagens. A inserção da maioria dos egressos do Programa em cursos de doutorado e a sua inserção como docentes de Instituições de Ensino Superior atesta a qualidade do trabalho realizado. Confira os textos e dialogue com a nossa proposta.

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Mídia e identidades contemporâneas

Identidade, um fenômeno comunicacional: a necessária contemplação da esfera midiática em estudos sobre identidade1

Fabiano Rocha Flores é Mestre em Comunicação - Área de Concentração Comunicação Midiática - pelo PPGCOM/UFSM; Bacharel em Comunicação Social - Habilitação Publicidade e Propaganda - pela UFSM; Bacharel em Psicologia - Habilitação Formação de Psicólogo pela UFSM; e, atualmente, cursa graduação em Direito também na UFSM. E-mail: [email protected] Ada Cristina Machado da Silveira é Pós-doutora na Université de Paris III com estágio pós-doutoral na Sorbonne III (La Nouvelle). Realizou Doutorado em Periodismo na Universidad Autonoma de Barcelona (Espanha). É. Professora Associada II (UFSM) e atual Chefe de Departamento de Ciências da Comunicação na Instituição. Pesquisadora do CNPq, coordena o NP de Políticas e Estratégias da Comunicação (Intercom) e integra o Conselho editorial da Revista Animus (UFSM). Atuou como avaliadora ad hoc no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais-INEP. E-mail: [email protected]

Resumo: O artigo que aqui apresentamos diz respeito a uma articulação, efetuada a partir de pesquisa bibliográfica, entre teorias da identidade e teorias da comunicação que tem por objetivo explicitar a necessária contemplação da esfera midiática nos estudos sobre identidade. Este artigo destina-se a justificar a perspectiva de inclusão do objeto de pesquisa Identidade como de pertinência (não-exclusivista) ao campo de pesquisa da Comunicação. Pelo lado da identidade, os autores e os conceitos apresentados e debatidos foram diversos, sendo a teoria de referência adotada a perspectiva dos Estudos Culturais, da identidade como diferença; já pelo lado da comunicação, utilizamos, basicamente, a “Antropológica do Espelho”, teoria da comunicação de Sodré, acrescida de elementos isolados da teoria da “Comunicação como Encontro”, de Peruzzolo. Palavras-chave: Midiatização; Identidade; Mídia. Resumen: El artículo que aquí se presenta se refiere a una articulación, a partir de la literatura, entre las teorías de la identidad y las teorías de la comunicación que tiene como objetivo enfatizar la contemplación necesaria de la mídia en los estudios acerca de identidad. Este artículo está destinado a justificar la perspectiva de inclusión del objeto de investigación Identidad como pertinente (no exclusivo) al campo de investigación de la Comunicación. Por el lado de la identidad, los autores y los conceptos presentados y discutidos fueron diversos, siendo la teoría de referencia adoptada la perspectiva de los Estudios Culturales, de la identidad como diferencia; ya por la parte de la comunicación, utilizamos, básicamente, la "Antropológica do Espelho", teoría de la comunicación de Sodré, acrescida de elementos aislados de la teoría de la "Comunicação como Encontro" de Peruzzolo. Palabras-clave: Mediatización; Identidad; Mídia.

Este texto referese a um fragmento da dissertação Do Problema das Identidades na Pós-Modernidade, por mim defendida no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Maria, em 02 de março de 2011, sob a orientação de Ada Cristina Machado da Silveira.

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Mídia e identidades contemporâneas

Mídia e identidades contemporâneas

Introdução Gostaríamos de, aqui, brevemente, com objetivo de facilitar um mapeamento do trajeto que trilhamos, adiantar o percurso que traçamos à frente. No segmento Comunicação como relação: identidade é um objeto comunicacional, iniciamos apresentando algumas utilizações da noção de identidade no campo comunicacional; o entendimento da noção de identidade suscitará a necessidade de conhecimento de outras noções (significado, papéis, cultura, representação), as quais, de uma forma mais reduzida, comentamos. Feito isso, passamos, à apresentação da abordagem de entendimento da noção de identidade dos Estudos Culturais, da constituição de identidade a partir da diferença, a qual utilizamos em função de (1) a considerarmos como um dos entendimentos mais simplificados da noção de identidade e por (2), em função dessa simplificação, que resulta em simplicidade, considerarmos esse como um dos entendimentos mais representativos dos fundamentos básicos comuns entre os demais entendimentos de tal noção no pensamento ocidental. Prosseguimos, então, com a exposição de parte da teoria da comunicação de Peruzzolo, a qual entende a noção de comunicação como, fundamentalmente, uma relação com a alteridade. Finalizamos essa primeira parte com a proposição argumentativa de uma relação lógica possível de ser estabelecida entre as posições que apresentamos: o entendimento da constituição de identidades a partir da diferença e a perspectiva da comunicação como encontro com o outro. Tal proposição argumentativa afirma que o objeto Identidade é pertencente, entre outros campos, também ao campo epistemológico da Comunicação. No segmento Comunicação como tecnointeração: as identidades midiatizadas são um objeto da comunicação midiática, apresentamos a “Antropológica do Espelho”, teoria da comunicação de Muniz Sodré na qual em muito nos baseamos para nossas elucubrações. Como resultado delas, debatemos as conseqüências do surgimento 16

das neotecnologias de informação, que introduzem as categorias “tempo real” e “espaço virtual”, as quais nos conduziram a outros regimes de visibilidade pública. Derivam daí as noções de medium, ethos midiatizado e 4º bios, que produziram a tecnocultura, base para que nossa sociedade possa ser definida, agora, como midiatizada. Finalizamos essa segunda parte, e com ela este trabalho, com a expansão da proposição que anteriormente tínhamos feito. A adição das noções da teoria da comunicação de Sodré, baseada na emergência do fenômeno da midiatização, nos possibilita afirmar a atual pertinência do objeto Identidade ao subcampo epistemológico da Comunicação Midiática. Comunicação como relação: identidade é um objeto comunicacional Podemos entender identidade, através de um viés semiológico, como o conjunto de marcas que estrutura o modo como os indivíduos são e, ao mesmo tempo, o conjunto de senhas pelas quais esses mesmos indivíduos se deixam identificar e se identificam; dessa forma, define-se identidade tanto no intercâmbio entre as crenças e construções simbólicas quanto na dinâmica das trocas (BARICHELLO, 2002). Castells (2006, p. 22-23) entende identidade como “o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda, um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de significados”. E, significado, como “a identificação simbólica, por parte de um ator social, da finalidade da ação praticada por tal ator”. Baseada nesse Castells, Barichello (2002) afirma que são possíveis identidades múltiplas, para um indivíduo ou para um ator coletivo, e que essa multiplicidade é uma fonte de tensão e contradição; logo, identidades múltiplas podem ser vistas em ações sociais ou em auto-representações. Observa, ela, que Castells, em função disso, diferencia identidade e papel, propondo iden17

Mídia e identidades contemporâneas

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tidade como fonte de significado de maior importância, em função do processo de autoconstrução e individuação que envolve: identidades organizam significados e papéis organizam funções. Para Castells (2006, p. 23), os papéis “(por exemplo, ser trabalhador, mãe, vizinho, militante socialista, [...]), são definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações da sociedade”; já identidades, “constituem fontes de significados para os próprios atores, [são] por eles originadas, e constituídas por um processo de individuação”. Ele afirma que, de um ponto de vista sociológico, “toda e qualquer identidade é construída”, e também que, a construção de identidades vale-se da matéria prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de espaço/tempo (CASTELLS, 2006, p. 23).

Trabalhamos com a idéia, no presente texto, no âmbito do que coloca Castells acima, de uma crescente importância da mídia na construção de identidades hodiernamente. Temos a impressão de estar havendo uma suplantação, uma sobrepujança da mídia em relação a esses referenciais mais tradicionais que Castells enumera. Desse pressuposto, que é a identificação de um novo panorama, derivam algumas conseqüências, as quais serão expostas no decorrer deste texto. São elas que possibilitam e/ou sustentam o argumento geral que aqui estamos propondo: de que identidade é um objeto de pesquisa pertencente ao campo da comunicação, em especial ao subcampo da comunicação midiática; que, se não é exclusivo a esse campo, também não pode ser estudado, contemporaneamente, sem que se considere questões relativas a ele 18

– ao domínio midiático. Entretanto, por hora, julgamos necessário aprofundar algo mais a noção de identidade, para que somente então venhamos a levantar argumentos favoráveis a tal afirmação. Ronsini (2007) afirma que, quando se fala de identidade, normalmente, se oscila entre falar de identidades sociais, quando é usada a perspectiva de Cardoso de Oliveira; de identidades culturais, quando se usa a perspectiva de Stuart Hall; e de falar de identidades através de noções gerais de cultura e identidade, como fazem Renato Ortiz e Nestor Garcia Canclini. Cultura e identidade são categorias conceituais que, em uma certa perspectiva teórica, podem ser tomadas como muito próximas, uma vez que cultura engloba o conjunto dos processos de significação. Canclini (2004, p. 34) define cultura como o “conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social”, onde identidades podem ser entendidas como as organizadoras dos significados. Nesse mesmo sentido, mas em um âmbito mais específico, Silveira (2001, p. 42) [grifo da autora] afirma ser responsabilidade da(s) identidade(s) “produzir significados a partir de concreções retidas enquanto representações.” Temos, acima, a introdução de duas noções, cultura e representação, bastante amplas, uma vez que admitem diferentes definições a partir da linha teórica pela qual sejam abordadas. Julgamos que devem ser feitas breves considerações sobre elas, para avançarmos além do entendimento no nível do senso comum. Laraia (1986, p. 60-63), baseado em Keesing, separa as teorias modernas que tentaram definir o termo cultura em dois diferentes conjuntos: as teorias que consideram a cultura como um sistema adaptativo e as teorias idealistas da cultura, que por sua vez se subdividem em três diferentes abordagens: a que considera a cultura como um sistema cognivo, a que considera a cultura como sistemas estruturais e a que considera a cultura como sistemas. Segundo Laraia (1986, p. 63-64), Geertz afirma que a cultura não se define por “um complexo de comportamentos concretos, mas por um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas; 19

Mídia e identidades contemporâneas

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regras, instruções (que os técnicos de computador chamam programa) para governar o comportamento”. Metaforicamente, “todos os homens são geneticamente aptos a receber um programa, e este programa é o que chamamos cultura”. Mais à frente, exemplifica dizendo: “uma criança está apta ao nascer a ser socializada em qualquer cultura existente. Esta amplitude de possibilidades, entretanto, será limitada pelo contexto real e específico onde de fato ela nascer”. Já para Schneider, ainda segundo Laraia, “cultura é um conjunto de símbolos e significados. Compreende categorias ou unidades e regras sobre relações e modo de comportamento”. Quando estabelecemos uma relação entre as noções de identidade e cultura, podemos observar que, segundo Ronsini (2007), tais noções apresentam como semelhança os fatos de ambas serem construções simbólicas, ambas falarem de um pertencimento em relação a um referencial, e de ambas estarem imbricadas com a vida cotidiana e com a estrutura social. Essa mesma autora afirma que podemos fazer a seguinte relação entre essas noções: a cultura organiza identidades e identidades organizam os significados. Dessa forma, ela define identidade como os processos simbólicos de pertencimento em relação a referentes variados como cultura, nação, classe, grupo étnico ou gênero. Tais referentes dizem respeito a aspectos objetivos como posição do sujeito na estrutura social e a aspectos subjetivos ou discursivos que os atores utilizam para incluírem-se/excluírem-se na estrutura social (RONSINI, 2007, p. 65-66).

Entendemos aqui, no contexto da noção de midiatização, que fala de um Homem e de uma sociedade midiatizados, que a mídia cada vez mais atua como um referencial para o indivíduo que calca sua identidade. A mídia apresenta, para o indivíduo, de forma incontestável, o estado-de-ser dos outros referenciais. Ela assumiu a posição de maior propagador da cultura para a esmagadora maioria dos sujeitos, nos dias de hoje, em função de 20

sua inserção no cotidiano de todos. O processo de propagação de cultura outrora dependia em grande parte da interação presencial entre as pessoas, mas, a partir de certo momento, praticamente a dispensa, pois conta com esse poderoso instrumento de irradiação. É a mídia quem expõe as características que poderão ser reproduzidas; é ela quem apresenta os diferentes modos-de-ser no mundo, alguns dos quais, serão “escolhidos” pelo sujeito para compor sua identidade. Estamos dizendo que a mídia opera como um referencial secundário, pois seu modo de operar é expor ou possibilitar que se exponham1 todos os outros (primários), caracterizando-os, dentro de certos limites, à sua maneira. Dessa forma, talvez, possamos pensar esse referencial secundário como o mais poderoso de todos, em função de a legitimação dos outros referenciais todos passar necessariamente por ele, pela esfera midiática. Logo passaremos a debater em maior profundidade essa idéia; contudo, aqui, continuamos a questionar a noção de identidade. Para pensarmos a noção de identidade, acreditamos que é muito importante que se precise, na medida do possível, o que se quer dizer com representação, uma vez que a tentativa de definição da noção de identidade, da forma como ela foi historicamente abordada no Ocidente, passa necessariamente pela tentativa de definição dessa outra noção. Pesavento (1998, p. 19) coloca que, para entender o que se quer dizer com representação, é preciso tomar como pressuposto que esse termo comporta uma relação ambígua, entre presença e ausência, pois, representação, “é a presentificação de um ausente, que é dada a ver por uma imagem mental ou visual que, por sua vez, suporta uma imagem discursiva”. Então, a representação enuncia algo distante no tempo e no espaço, e estabelece uma relação de correspondência entre o que está ausente e o que está presente, que é diferente do mimetismo puro e simples. Ou seja, as representações do mundo social não são o reflexo do real nem a ele se opõem de forma antitética, numa contraposição vulgar en-

No sentido de tornar público.

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Mídia e identidades contemporâneas

Mídia e identidades contemporâneas

tre imaginário e realidade concreta. Há, no ato de tornar presente ou ausente, a construção de um sentido ou de uma cadeia de significações que permite a identificação. Representar, portanto, tem o caráter de anunciar, ‘pôr-se no lugar de’, estabelecendo uma semelhança que permita a identificação e reconhecimento do representante como representado (PESAVENTO, 1998, p 19).

Chartier (1990), numa forma de pensar por nós considerada positivista, uma vez que aparentemente tenta dar um caráter objetivo para algo que em essência é subjetivo, argumenta que, para poder identificar o modo como, em diferentes lugares e diferentes momentos, uma determinada realidade social é construída, pensada ou lida, são necessárias classificações, divisões e delimitações que organizem a apreensão do mundo social em categorias fundamentais de percepção e apreciação do real. Essas categorias fundamentais são variáveis conforme a classe social ou meio intelectual e são produzidas pelas disposições estáveis, e partilhadas, próprias do grupo. Essas classificações, divisões e delimitações são os esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras com as quais o presente adquire sentido, o outro torna-se inteligível e o espaço pode ser decifrado. Essas figuras são as representações do mundo social e essa organização da realidade é a forma como elas se constroem: elas aspiram à universalidade. Contudo, sempre são determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam, não são discursos neutros, pois delas derivam estratégias e práticas sociais. A noção de representação [...] permite articular três modalidades de relação com o mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma

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posição; por fim, as formas institucionalizadas e objectivadas graças às quais uns «representantes» (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou comunidade (CHARTIER, 1990, p. 23).

Dessa forma, poderíamos dizer que a(s) identidade(s) parte(m) de um sistema articulado de idéias e imagens de representações coletivas, estabelecendo uma existência social distinta que se afirma no plano do imaginário, a qual se traduz em práticas sociais efetivas, legitimadoras dessas representações. Ela é um processo ao mesmo tempo individual e coletivo, onde cada um se define em relação a um “nós”, em detrimento de um “outros” (PESAVENTO, 1998). Pertinente também é a noção proposta por Silveira (2002, p. 11-13), ao falar especificamente de representações midiáticas2, quando introduz a noção de representação no interior do campo midiático, caracterizando as representações como uma forma atual de difundir e fixar a memória. Formações culturais sintéticas que são, as representações midiáticas são conseqüências dos mecanismos que as tornam concretas. O termo midiáticas indica que estão acessíveis a todos, em função da grande inserção que os meios de comunicação de larga escala possuem. A origem da representação está na ação transitiva de um sujeito que, ao perceber um objeto, dele constrói uma imagem. Silveira pondera que tanto o processo (a ação de criar uma imagem, de produzir uma reprodução de um original, ou seja, sua qualidade imediata) quanto o produto (a imagem em si, a reprodução mesma, ou seja, sua qualidade mediata) de tal ação são chamados de representação. Assim como Pesavento (1998), Silveira (2002, p. 16) entende que as representações buscam substituir a presença na ausência; contudo, vai além e propõe que também buscam “recuperar e instaurar uma ordem vinda do passado, o que tem implicações na representação do porvir”. Baseada em Henry Lefebvre, Silveira (2002, p. 20) afirma que “o mundo das

2 As quais são as que efetivamente interessam nos termos do que este trabalho se propõe a fazer.

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Secundário apenas no sentido de seu mecanismo de funcionamento, mas não quanto a suas possibilidades de ação.

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representações substituiu todos os referentes das tradições através da linguagem e do discurso”. Não podendo deixar de se considerar que, no ocidente, “as representações vêm prevalecendo sobre os mitos e símbolos e, inclusive, sobre as lendas religiosas”. Reforça-se o que dissemos anteriormente, pois, ainda nas palavras de Silveira (2002, p. 20), “as igrejas, assim com as outras instituições clássicas (a família, o Estado-Nação, a escola), têm perdido a função que tiveram antigamente”. Entendemos tal fato como uma conseqüência do modo de funcionamento da mídia enquanto referencial secundário3 a partir de onde calcamse as identidades. Consideramos que as instituições clássicas têm perdido o privilégio que tiveram na função específica de oferecer as matrizes identitárias para a identificação e conseqüente estabelecimento de identidade para uma instituição em particular, a mídia. As identidades continuam a ser calcadas nesses referenciais clássicos, mas eles não são mais percebidos diretamente, como dissemos acima, agora o são indiretamente, por intermédio da mídia, e estão suscetíveis à caracterização que essa lhes impõe. Trazemos à cena, então, algumas categorias que possibilitam operacionalizar o funcionamento da noção de identidade, pois, afirma Ronsini (2007, p. 66), em relação a uma identidade coletiva, grupal, que se pode dizer que as identidades têm um modo de operar, o qual pode ser entendido através do conhecimento de quatro de suas características: (1) As identidades são políticas, “os processos sociais envolvidos na formação e manutenção da[s] identidade[s] são determinados pela estrutura social (Berger e Luckmann, 1994, p. 228), de forma que quanto mais subalterno é o grupo, maior é a dificuldade em legitimar ou expressar sua[s] identidade[s]”; (2) as identidades são contrastivas, elas “não pode[m] ser definida[s] em termos absolutos, mas pela relação contrastiva com outros grupos, a definição de um ‘nós’ implica o contraste com ‘outros’ (Cardoso de Oliveira, 1976, p. 5)”; (3) as identidades são circunstanciais, elas são utilizadas “pelo grupo ou pelo indivíduo

nas relações sociais de modo a preservar certos interesses em jogo”; e, (4) as identidades são discursivas, elas envolvem “um conjunto de representações, ideologias e estigmas que são narrados e imaginados”. No âmbito do objetivo que temos aqui, gostaríamos de destacar a segunda característica atribuída por Ronsini (2007), a partir dos autores que podem ser vistos no parágrafo acima, às identidades: serem contrastivas. Esse atributo nos permite pensar sobre sua constituição. Nesse sentido, é interessante considerar a proposição de Silva (2000, p. 74): a de que identidades estabelecem-se na diferença. Afirma ele que identidade parece ser simplesmente aquilo que se é, “uma positividade ('aquilo que sou'), uma característica independente, um 'fato' autônomo”. Sou gaúcho, sou homem, sou mulher, “sou brasileiro”; por exemplo. Já a diferença, em oposição, igualmente aparece como uma característica independente: “aquilo que o outro é”. Ele é carioca, ela é mulher, ele é homem, ela é brasileira; por exemplo. Identidade e diferença, se assim concebidas, hipotetiza Silva, aparentam, cada uma, ter apenas ela mesma como referência a si, apresentando-se como auto-contida, auto-referente, algo que só remete a si, que simplesmente existe. Não é difícil, contudo, entender a relação de estreita dependência que existe entre elas, afirma Silva (2000, p. 74-75), proposição que evidencia a impropriedade da perspectiva anterior. É “apenas a forma afirmativa como expressamos identidades que tende a esconder essa relação”. Quando dizemos, por exemplo: “sou brasileiro”. Há a aparência de que “estou fazendo referência a uma identidade que se esgota em si mesma”. Todavia, tal afirmação só necessita ser feita pela razão de que outros não são brasileiros. Reforça Silva: “Em um mundo imaginário, totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não fariam sentido”. Como exemplo, o autor traz a raridade das vezes que precisamos afirmar que somos humanos. Afirmar ser brasileiro faz parte, na realidade, de uma longa cadeia de negações, “de expressões negativas de identidade, de 25

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diferença”; pois, no interior da afirmação da brasilidade, podemos entender: “'não sou argentino', 'não sou chinês', 'não sou japonês' e assim por diante, numa cadeia, neste caso, quase interminável”. Assim, “Sou brasileiro” funciona como uma simplificação para evitar pronunciar todas as negativas que essa pequena oração comporta. O mesmo vale para as afirmações sobre diferença, elas “só fazem sentido se forem compreendidas em sua relação com as afirmações sobre identidade”. “Ela é chinesa”, “ela é japonesa” ou “ela é argentina” fazem subentender que “ela não é brasileira”, ou seja, “que ela não é o que eu sou”; o que possibilita dizer que: “as afirmações sobre diferença também dependem de uma cadeia, em geral oculta, de declarações negativas sobre (outras) identidades”. Dessa forma, identidade e diferença mostram-se inseparáveis. Em resumo, geralmente, consideramos a diferença como um produto derivado da identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a referência, é o ponto original relativamente ao qual se define a diferença. Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos. Por sua vez, na perspectiva que venho tentando desenvolver, identidade e diferença são vistas como mutuamente determinadas. Numa visão mais radical, entretanto, seria possível dizer que, contrariamente à primeira perspectiva, é a diferença que vem em primeiro lugar. Para isso seria preciso considerar a diferença não simplesmente como resultado de um processo, mas como o processo mesmo pelo qual tanto a identidade quanto a diferença (compreendida, aqui, como resultado) são produzidas. Na origem estaria a diferença – compreendida agora como ato de diferenciação (SILVA, 2000, p. 75-76).

Gostaríamos de enfatizar que na perspectiva de Silva, mais comumente conhecida como a perspectiva dos Estudos Culturais, já está presente o entendimento de que a noção de 26

identidade minimamente comporta dois elementos, a partir de onde se dá, segundo ele, a diferenciação. Acrescentamos a essa perspectiva o seguinte entendimento: já que a diferenciação, para a conseqüente identificação, sempre envolve, como referência, um outro, diferente de si, o reconhecimento desse outro como tal (como diferente de si), ocorre (só pode ocorrer) por meio da relação de Comunicação, forma através da qual há troca de sentidos entre duas pessoas. Entendemos que a Comunicação é, antes de tudo, uma relação. Assim igualmente a entende Peruzzolo (2006, p. 44), em quem nos apoiamos. Para ele, o fenômeno da comunicação deve ser entendido como “uma relação no jogo de encontro com a alteridade”, onde, “a comunicação se faz por um meio, que é justamente representar aquilo que se quer comunicar”. Portanto, a representação, que se dá através da linguagem, é que marca a especificidade da relação de comunicação: nem toda relação é comunicação, mas toda comunicação é relação. A relação tem uma amplitude lógica maior que a comunicação. Essa relação de comunicação tem um componente específico que é ser operada por uma matéria, que subentende as representações dos comunicantes. […] Comunicar, no nível humano, é estabelecer uma relação entre uma pessoa e outra através de um meio material, comumente chamado mensagem, que subentende as representações do sujeito comunicante. Logo, o que faz com que uma relação seja relação de comunicação é representar como meio de comunicar (PERUZZOLO, 2006, p. 44-45).

De tais concepções, Peruzzolo (2006, p. 45) pondera que a mensagem configura-se como “um pacote de representações”, o qual cumpre a função “de ponto de passagem para as significações sociais”, ao que completa: essas materializações são o meio de comunicar, um fluxo, que faz a relação de dizer, de projetar, de ver, de gesticular, etc. e subentender as representações dos comunicantes, isto é, uma relação

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com aquilo que se mostra e com aquele que se mostra. Então, no nível da representação, eu me relaciono com a linguagem que é o meio de representar; linguagem essa que organiza e representa aquilo que quero mostrar para chegar ao outro, mas que também constrói o outro como termo da relação de comunicação.

Este é um entendimento da comunicação enquanto processo relacional, que atenta mais para o indicativo de seu fluxo do que para sua definição e que é anterior ao processo técnico a partir do qual frequentemente a vemos ser abordada. É um entendimento do fenômeno da comunicação em função da formulação mínima, mas essencial, do que é comunicação, entendido no limiar do cultural (PERUZZOLO, 2006, p. 52). Conclusão Parcial Ora, se, como defende a perspectiva de entendimento dos Estudos Culturais, a constituição de identidade se faz a partir da diferença (enquanto processo, enquanto diferenciação), o que necessariamente envolve um outro (diferente de si) onde é percebida, reconhecida, constituída essa diferenciação, e, se a comunicação é uma relação no jogo de encontro com a alteridade; então, a comunicação é uma condição necessária à constituição de toda e qualquer identidade, pois é através da relação de comunicação que o próprio processo de diferenciação ocorre. Dessa forma, podemos dizer que na base da constituição de uma identidade está a comunicação. Por essa razão, igualmente podemos afirmar que Identidade é um objeto de pesquisa possível de ser estudado no interior do campo epistemológico da Comunicação. Dissemos, entretanto, quando expusemos nossos objetivos, que evidenciaríamos a pertinência desse objeto a um subcampo epistemológico específico da Comunicação: o da comunicação midiática. Estabelecer essa pertinência é o que nos dedicaremos a fazer a seguir. 28

Comunicação como tecnointeração: as identidades midiatizadas são um objeto da comunicação midiática Intimamente relacionado ao que dissemos acima, atualmente podemos pensar que a mídia faz surgir uma nova qualificação da vida, pois ela cria uma outra eticidade (os costumes, as condutas, as cognições e os sensorialismos), estetizante e vicária. Ela cria um bios (um gênero de existência) virtual. Um novo tipo de formalização da vida social, que implica uma outra dimensão da realidade, novas formas de perceber, pensar e avaliar o real. Possibilitadas pelos avanços da ciência, as “neotecnologias da informação” inserem as categorias do “tempo real (comunicação instantânea, simultânea e global) e do espaço virtual (criação, por computador, de ambientes artificiais e interativos)”, que tornam “‘compossíveis’ outros mundos, outros regimes de visibilidade pública” (SODRÉ, 2002, p. 16). As informações que antes eram representadas ao receptor “numa forma isenta da sua dinâmica ou de seu fluxo original”, tinham como “principais recursos de linguagem a palavra e o discurso”. Essas mesmas informações, com a constituição do campo do audiovisual, passaram então a ser reapresentadas ao receptor, e esse passou a acolher o mundo em seu fluxo por meio de, segundo Sodré (2002, p. 16), uma simulação de um tempo vivo ou real, na verdade uma outra modalidade de representação, que supõe um outro espaço-tempo social (imaterialmente ancorado na velocidade do fluxo eletrônico), um novo regime de representação social e, por certo, um novo regime de visibilidade pública. Fala-se, por conseguinte, de simulação, quer dizer, da existência de coisas ou de fatos gerados por técnicas analógicas (ondas hertzianas, transmissão por cabo).

Com o advento do computador, a simulação digitaliza-se e daí decorre a conformatação que se pode ver hodiernamente na tecnocultura, “uma cultura da simulação e do fluxo, que faz da 29

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‘representação apresentativa’ uma nova forma de vida”, onde, “saber e sentir ingressam em um novo registro, que é o da possibilidade de sua exteriorização objetivante, de sua delegação a máquinas” (SODRÉ, 2002, p. 17-18). Essa mudança produz um enorme impacto sobre o “mundo do trabalho e sobre a cultura”, ela transforma “velozmente a vida das pessoas”. Nesse sentido, é largo [...] o espectro das transformações sociais. Muda, por exemplo, a natureza do espaço público, tradicionalmente animado pela política e pela imprensa escrita. Agora, formas tradicionais da representação da realidade e novíssimas (o virtual, o espaço simulativo ou telerreal da hipermídia) interagem, expandindo a dimensão tecnocultural, onde se constituem e se movimentam novos sujeitos sociais (SODRÉ, 2002, p. 19) [grifo nosso].

Pensamos que é preciso refletir mais sobre essas afirmações: A sociedade contemporânea é regida pela midiatização, uma tendência à virtualização (telerrealização) das relações humanas, a qual está presente tanto na articulação do variado funcionamento institucional quanto em certas pautas individuais de conduta para com as tecnologias da comunicação. A elas (às novas tecnologias de informação) se deve a multiplicação das tecnointerações setoriais. A midiatização é uma ordem de mediações sociais, onde a comunicação é entendida como processo informacional, influenciada pelo mercado, que tem como principal tipo de interação a tecnointeração, “caracterizada por uma espécie de prótese tecnológica e mercadológica da realidade sensível, denominada médium” (SODRÉ, 2002, p. 21). Sodré afirma que o espelho é a prótese primitiva que mais se assemelha ao medium contemporâneo, pois ele traduz reflexivamente (espelha, retrata) o mundo sensível; ele fecha, em sua superfície, tudo aquilo que reflete. O médium contemporâneo simula o espelho, mas não simulará nunca um reflexo puro, uma vez que é um condicionador ativo daquilo que deseja refletir. Sodré (2002, p. 21-22) afirma que 30

o médium é um “dispositivo cultural historicamente emergente”, neste momento em que “o processo da comunicação é técnica e industrialmente redefinido pela informação”, num regime “posto quase que exclusivamente a serviço da lei estrutural do valor, o capital, e que constitui propriamente uma nova tecnologia societal (e não uma neutra ‘tecnologia da inteligência’) empenhada num outro tipo de hegemonia ético-política”. Medium, tomado como prótese (extensão), [...] não designa algo separado do sujeito, à maneira de um instrumento manipulável, e sim a forma tecnointeracional resultante de uma extensão especular ou espectral que se habita, como um novo mundo, com nova ambiência, código próprio e sugestões de conduta. Isso equivale a dizer que essa fórmula é que não se pode instrumentalizar por inteiro, isto é, objetivá-la socialmente como um dispositivo submetido a um sujeito, por ser uma entidade capaz de uma retroação expropriativa de faculdades tradicionalmente atinentes à soberania do sujeito, como saberes e memória (SODRÉ, 2002, p. 22).

Dessa forma, as próteses midiáticas devem ser agora tomadas como uma “metáfora intelectiva” de um novo ordenamento cultural da sociedade, onde não mais são “reflexos e máscaras de uma realidade referencial”; são agora “simulacros auto-referentes, embora político-economicamente a serviço de um novo tipo de gestão da vida social”. Na representação (no espelhamento) de parte da mídia tradicional, “linear”, como o cinema e a televisão, “há ainda um efeito irradiado do referente externo”, agora, nos ambientes digitais da nova mídia “o usuário pode ‘entrar’ e mover-se, graças à interface gráfica, trocando a representação clássica pela vivência apresentativa” (SODRÉ, 2002, p. 21-22). O espelho midiático constitui-se, assim, não como uma simples cópia, reprodução ou reflexo, pois implica nova forma de vida, pois implica “um novo espaço e modo de interpelação coletiva dos indivíduos”, o que provoca “outros 31

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parâmetros para a constituição das identidades pessoais”; ele dispõe de “um potencial de transformação da realidade dos indivíduos”. O espelho midiático é uma “forma condicionante da experiência vivida, com características particulares de temporalidade e espacialização”, mas o espelho midiático somente condicionará na medida em que estiver aberto a “permeabilizações e hibridizações com outras formas vigentes no real-histórico” (SODRÉ, 2002, p. 22, grifo nosso). De fato, trata-se

Aristóteles, a exemplo de Platão, distingue três gêneros de existência (bios) na Polis, a vida contemplativa, a política e a prazerosa. Cada qual é um gênero qualificativo, um âmbito onde se desenrola a existência humana, segundo Sodré (2002). A vida de negócios não constituía nenhum bios específico, pois era, no entender de Aristóteles, motivada por algo a mais (além do Bem e da Felicidade), o que a caracterizava como violenta. Mas, examinando as práticas dos dias de hoje, a partir da classificação aristotélica, a midiatização pode ser pensada como uma “tecnologia de sociabilidade ou um novo bios, uma espécie de quarto âmbito existencial, onde predomina a esfera dos negócios, com uma qualificação cultural própria, a ‘tecnocultura’” (SODRÉ, 2002, p. 25).

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[...] de uma afetação de formas de vida tradicionais por uma qualificação de natureza informacional [...] cuja inclinação no sentido de configurar discursivamente o funcionamento social em função dos vetores mercadológicos e tecnológicos é caracterizada por uma prevalência da forma (que alguns autores preferem chamar de ‘código’; outros, de ‘meio’) sobre os conteúdos semânticos (SODRÉ, 2002, p. 22).

Então, temos, atualmente, uma mediação social tecnologicamente exacerbada: a midiatização. Sodré (2002) afirma que, desde o pós-guerra, alterações nos costumes, crenças, afetos e, até mesmo, na estruturação das percepções vêm ocorrendo; e que, agora, esse processo está se perfazendo com a integração entre os mecanismos clássicos da representação e os dispositivos do virtual. O conceito de midiatização refere-se, especificamente, à hibridização entre as múltiplas instituições (formas até certo ponto estáveis de relações sociais vinculadas a objetivos humanos globais) e organizações de mídia (fazeres com objetivos unicamente mercadológicos e tecnológicos). Ele implica um novo modo para o sujeito de estar-no-mundo, em uma qualificação particular da vida, um bios especifico (tomando como referência a classificação de Aristóteles para as formas de vida).4 Sodré (2002) afirma que a linguagem não tem como única função designar a realidade, ela principalmente a produz. E, a mídia, a exemplo da antiga retórica, é uma técnica política de linguagem,

politizada para requalificar a vida social, atingindo desde atitudes e costumes até crenças religiosas, a serviço da tecnologia e do mercado. A tecnocultura, constituída por mercado e meios de comunicação, [...] implica uma transformação das formas tradicionais de sociabilização, além de uma nova tecnologia perceptiva e mental. Implica, portanto, um novo tipo de relacionamento do indivíduo com referências concretas ou com o que se tem convencionado chamar de verdade, ou seja, uma outra condição antropológica (SODRÉ, 2002, p. 27).

Progredindo com o raciocínio, observamos que o próprio indivíduo torna-se suscetível de converter-se em realidade midiática. Ele é o núcleo de muitas tecnointerações e acaba por tornar-se “imagem e médium (análogo ao self-médium da realidade virtual) e investe-se, por uma espécie de imersão virtual na esfera significativa, das regras do código de visibilidade pública vigentes no momento, tornando-se boa ‘cara de vitrine’”. A imagem pública, aqui, não é a representação técnica audiovisual de um referente humano, é “um simulacro verossímil ou crível. É a realidade tecnocultural de uma aparência, de uma sombra” (SODRÉ, 2002, p. 37). Então, ser uma imagem pública, um signo icônico, significa para o indivíduo realizar-se como uma forma acabada e abstrata da relação humana, mediada pelo mercado, ou seja, existir como um indivíduo irreal, reles suporte para signos que representam uma realidade instituída somente como mercadoria (SODRÉ, 2002). Nesse contexto, julgamos ser interessante trazer à cena o conceito de ethos que diz respeito ao “espaço disposto para a realização ou para a ação humana, forma organizativa das situações cotidianas”. O ethos é o objeto da ética, dele ressoa o sentido de habitar, pois é a morada das condições, das normas, dos atos práticos que o sujeito frequentemente executa e aos quais se acostuma; dele também se apreende o sentido do termo caráter, a imagem moral que o orador constitui discursivamente para o público (SODRÉ, 2002, p. 45). De uma forma ampla, o 33

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ethos é a consciência atuante e objetivada de um grupo social – onde se manifesta a compreensão histórica do sentido de existência, onde têm lugar as interpretações simbólicas do mundo – e, portanto, a instância de regulação das identidades individuais e coletivas. Costumes, hábitos, regras e valores são os materiais que explicam a sua vigência e regulam, à maneira de uma ‘segunda natureza’ (como estatui um aforisma popular a respeito do hábito), o senso comum (SODRÉ, 2002, p. 45) [grifo nosso].

Intimamente relacionado ao conceito de ethos está o de eticidade, a ética social imediata, a forma de vida de um grupo social específico, a prática do ethos. Entendemos que Sodré (2002) pensa o ethos de uma pessoa ou grupo como a forma como agem, a ação rotineira a qual implica continência, que por sua vez define a vida por um jogo aletório de carências e interesses; faz oposição ao que se apresenta como necessário, como dever-ser. Sobre a eticidade midiática que vemos hoje, o mesmo autor afirma que a midiatização da sociedade oferece a perspectiva de um eticismo vicário ou paralelo, atravessado por injunções da ordem de ‘ter de’ e ‘dever’ e suscetível de configurar uma circularidade de natureza moral, fundamentada pela tecnologia e pelo mercado (SODRÉ, 2002, p. 50).

Essa eticidade injuntiva exalta o desejo individual com objetivo de capturá-lo “em nome da qualificação existencial orientada pelo mercado”, onde “consumo e moralidade passaram a equivaler-se” e, “chamar a atenção, atrair e manter sobre si mesmo o olhar do outro, converte-se em valor moral” (SODRÉ, 2002, p. 50-51). O espelho midiático, repleto de técnicas de verossimilhança naturalista “([como, por exemplo] a clonagem do mundo, seja por imagens cinematográficas e televisivas, seja pela visualidade computacional das redes) é, em si mesmo, gerador de um novo tipo de controle moral, publicitário-mercadológico” (SODRÉ, 2002, p. 52-53). Contudo, essa prescrição moral-midiática é difusa, 34

sem linearidade discursiva ou regulamentação explícita. É uma situação carente de regra de juízo estável, incapaz de solucionar um problema, no dizer de Lyotard, citado por Sodré (2002, p. 5354). A prescrição moral-midiática apresenta “semelhanças a uma lógica não-seqüencial ou caótica”, no dizer de Sodré (2002, p. 54). Sodré (2002, p. 54), recorre a Verón para caracterizar como indiciário o regime semiótico da mídia, uma vez que o índice “é um signo que não apresenta um significado universal e abstrato (lingüístico), mas uma situação apropriável no interior de um processo dinâmico de significação”. Nessa ordem, [...] os conceitos ficam em segundo plano – logo, o discurso argumentativo –, dando lugar a posicionamentos subjetivistas caucionados por uma atmosfera sensorial, um gosto, oriundos do imaginário social e induzidos pela interpretação situacional dos índices (SODRÉ, 2002, p. 54).

A moral da eticidade mercadológico-midiática é hedonista e sensualista, ou seja, nela, fica claro que, mais do que os juízos, são os afetos e as sensações que presidem os jogos discursivos da moralidade (SODRÉ, 2002, p. 60). A eficiência [...] da generalização dessa eticidade na sociedade tradicional é assegurada pela ilusão simulativa (nesta, tem-se a ‘sensação’ de estar informado, por exemplo, pelo fato de estar ‘quase-presente’ ao acontecimento veiculado pela imagem) e pela retórica repetitiva, simplificadora e veloz das mensages. O emocionalismo infantil daí decorrente confunde-se com a informação classicamente definida pela transmissão de conteúdos pertinentes à compreensão da realidade histórica (SODRÉ, 2002, p. 60).

Mas, para que não caiamos em uma perspectiva apocalíptica5, é importante esclarecer que não defendemos que a mídia determina a realidade social e cultural, pensamos que ela a prescreve, ou melhor, que ela a ilumina. E, “à luz dessa iluminação estetizante, que leva ao

Pensamos que, aqui, é conveniente pontuar que não pretendemos nos inscrever na ordem dos juízos de valor. Não há intenção de classificar como “boa” ou “má” (ou outra posição que dessa dicotomia derive) qualquer das asserções que venhamos a fazer.

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agendamento eticista, pode-se entender as flutuações da ‘opinião pública’ diante de situações conjeturais” (SODRÉ, 2002, p. 61). Pensamos que é interessante agora introduzir a noção de eticismo, proposta por Sodré (2002, p. 66-67), a qual refere-se à regularidade de injunções e diretivas jornalísticas, publicitárias e ficcionais que, rotineiramente ocupam o tempo e o espaço, e assim configuram a repetição contingente do costume. Tais diretivas são moldadas pela mídia, discursivamente, a partir de “insumos ‘intertextuais’ oriundos de outras esferas de representação da vida social, como o Estado, os partidos políticos, os sindicatos, os educadores, os especialistas, etc. Pode-se falar em negociações estratégicas para essas modalizações”. Nos moldes do que chamamos anteriormente de referenciais primários e secundários. Dessa forma, a mídia “faz nascer” aquilo mesmo que ela ilumina, pois “a produção/reprodução imagística da realidade não se define, portanto, como mera instrumentalidade, e sim como princípio (ontológico) de geração de real próprio” (SODRÉ, 2002, p. 74). É daí que decorre socialização vicária realizada pela mídia, a qual pode ser caracterizada por sua [...] capacidade de permear os discursos sociais e influenciar moral e psicologicamente a forma mental do sujeito metropolitano. O que emerge das ruínas da velha identidade ‘moderna’ é uma nova identidade adaptável ao ethos contingente da tecnocultura (SODRÉ, 2002, p.74) [grifo nosso].

Onde predomina um universo democratizante, o qual se baseia em critérios de prazer e felicidade individual, um estímulo ao autocentramento egóico, característico do individualismo moderno; e uma redefinição da(s) identidade(s) pelos múltiplos espelhos da tecnocultura. Uma ação individual conveniente está na dependência do que acontece na mídia, ou seja, do reconhecimento narcísico no espelho.

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Conclusão Geral Acreditamos que, com o incremento da concepção de entendimento sobre a Comunicação acima apresentada, podemos, então, estabelecer as conexões que cumprem os objetivos que propomos. Antes, provisoriamente concluímos, a partir das perspectivas explicitadas, que a comunicação é uma condição necessária à constituição de toda e qualquer identidade, pois é através de um fenômeno de comunicação que o próprio processo de diferenciação ocorre, o que nos possibilitou afirmar que Identidade é um objeto de pesquisa possível de ser estudado no interior do campo epistemológico da Comunicação. Agora, ao agregarmos a tal conclusão a teoria da comunicação de Muniz Sodré, que propõe a midiatização (uma mediação social tecnologicamente exacerbada) como característica da cultura (tecnocultura) atual, o que provoca o surgimento de outros parâmetros para a constituição de identidades pessoais, somos obrigados a afirmar que, um estudo sobre identidades, para alcançar uma abordagem adequada da noção, necessariamente precisa contemplar em sua análise o subcampo da comunicação midiática. Dessa forma, o objeto de pesquisa Identidade pertence, mesmo que não exclusivamente, à subárea epistemológica da comunicação midiática. Não estamos com isso dizendo que um estudo sobre identidades deva restringir-se ao domínio da esfera midiática. Consideramos identidade uma noção muito ampla e complexa, o que impossibilita que seja alocada em um único campo epistemológico ou abordada com uma única fundamentação teórica. Outros campos de pesquisa igualmente possuem legitimidade quanto à pertinência epistemológica dessa noção. Parece não restar mais dúvidas quanto à obrigatoriedade de uma abordagem que movimente distintos saberes, oriundos de diferentes campos do conhecimento, para uma aproximação o mais íntima ou verdadeira possível da noção de identidade. 37

Mídia e identidades contemporâneas

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Mídia e identidades contemporâneas

O Discurso Jornalístico e os Sentidos (Re)Velados Na Articulação Entre Consumo e Simplicidade

Gisele Dotto Reginato é jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui experiência na área de Telejornalismo e Assessoria de Imprensa.Tem interesse de pesquisa nas linhas de linguagem e produção de sentidos, jornalismo especializado e rotinas de produção, especialmente no que tange às teorias do jornalismo, da notícia e do discurso. E-mail: [email protected] Márcia Franz Amaral é Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Mestre em Extensão Rural pela UFSM. Docente do mestrado em Comunicação da Instituição, atua como tutora do Programa de Educação Tutorial do Curso de Comunicação Social. É coordenadora do Projeto Testemunhos e experts nos acontecimentos das catástrofes ambientais (CNPq), e líder do Grupo de Pesquisa Estudos de Jornalismo (UFSM/CNPq). E-mail: [email protected]

Resumo: Este artigo pretende problematizar a relação entre consumo e simplicidade no discurso da revista Vida Simples, publicada mensalmente pela Abril. A partir da identificação dos sentidos da revista, buscamos compreender o modo pelo qual o discurso jornalístico se apropria dessas temáticas e a articulação entre consumo e simplicidade existente na sociedade hoje. Para tanto, utilizamos debates sobre o indivíduo na sociedade contemporânea, bem como reflexões acerca da crise ambiental, da relação entre ação individual e ação coletiva, da articulação (não dicotomia) entre público e privado. Assim é possível entender as relações pré-construídas e os discursos “outros” embutidos na busca pelo estilo de vida simples. Palavras-Chave: Discurso. Consumo. Simplicidade. Abstract: This paper sets out the relationship between consumption and simplicity in the discourse of Vida Simples magazine, published monthly by Abril company. After identifying the senses of the magazine, we understand the relationship between consumption and simplicity that exists in society today and the way in which media discourse appropriates these themes. The study uses discussions about the individual in contemporary society, as well as reflections on the environmental crisis, the relationship between individual and collective action, the joint (no dichotomy) between public and private. So it is possible to understand the relationships pre-built and "other" speeches embedded in the search for a simpler lifestyle. Key words: Discourse. Consumption. Simplicity.

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Introdução As reflexões apresentadas neste artigo são produto de uma pesquisa mais ampla que, a partir do aporte teórico-metodológico da Análise de Discurso de linha francesa, buscou compreender a articulação entre simplicidade e consumo no discurso da revista Vida Simples (Editora Abril). O público-alvo da revista é urbano, de classe média e média alta, com elevado nível cultural – a maioria com Ensino Superior completo. A revista aposta nos ideais de que é possível ter uma vida mais sábia, gentil e equilibrada; que todos podem ajudar a transformar o ambiente nas cidades, em lugares mais humanos, solidários e menos poluídos. Entendemos, contudo, que a proposição da revista de divulgar um estilo de vida alternativo e mais simples também passa pela temática do consumo e mais, articula as dimensões do individual e do coletivo num projeto que tem por base a reflexividade. Esse tensionamento entre simplicidade e consumo existente no discurso da Vida Simples é, na verdade, observado em grande parte das mensagens jornalísticas que tratam de como burlar a pressa e o ritmo acelerado de vida nas cidades, em que é comum haver uma oposição entre essa temática e o consumo. No entanto, a busca pela simplicidade implica inevitavelmente no equacionamento da questão do consumo. Afinal, o consumo parece determinar se o sujeito vai ou não levar uma vida mais simples, com todos os valores de sustentabilidade e de cuidado interior que estão associados a esse estilo de vida. Entendemos, assim, que simplicidade e consumo não são demarcados de forma opositiva, mas sim se interligam. Portanto, a partir da identificação dos sentidos da Vida Simples, buscamos com este artigo compreender a relação entre consumo e simplicidade existente na sociedade hoje e o modo pelo qual o discurso jornalístico se apropria dessas temáticas. Explorar esse fenômeno torna-se relevante em função de que a busca pela simplicidade tem sido um valor nos dias atuais. Basta olhar, por ex42

emplo, campanhas de bancos que dizem estar repensando o seu papel em uma sociedade de consumo e de empresas enfocando a importância da responsabilidade social e ambiental, que demonstram o quanto somos interpelados por esse ideal de simplicidade, sem que saibamos exatamente onde estão espalhados esses discursos. Não queremos dizer com isso que a vida simples é uma invenção social contemporânea, pois em outras épocas ela já foi valorizada. Mas essa temática vem sendo abordada atualmente porque está sendo apropriada de outra forma, a partir de uma necessidade intencional das pessoas de reduzir o ritmo acelerado em que vivem, buscando, assim, reinventar as formas de viver com mais simplicidade. Identificação dos sentidos É dentro da moldura teórica da Análise de Discurso francesa (AD) como método de pesquisa de textos jornalísticos que trabalhamos na identificação dos sentidos do consumo e da simplicidade na revista Vida Simples. O mapeamento se inicia a partir do próprio texto, no movimento de reconhecimento das formações discursivas (FDs), considerando com Benetti (2008a) que a FD é uma espécie de região de sentidos, circunscrita por um limite interpretativo que exclui o que invalidaria aquele sentido – esse segundo sentido, por sua vez, constitui uma segunda FD. Já que o discurso é opaco, não transparente e pleno de possibilidades de interpretação (BENETTI, 2008a), o analista de discurso trabalha buscando as regularidades dentre certo número de enunciados espalhados num sistema de dispersão ao longo dos textos. No corpus de análise da pesquisa (edições de janeiro, março, maio, julho, setembro e novembro de 2009 da revista Vida Simples), encontramos 314 sequências discursivas (SDs) referentes à nossa problemática. Essas sequências foram recortadas de 114 textos, nos quais as reiterações de sentido – construídas num movimento de paráfrase ao longo das SDs – são agrupadas em oito famílias 43

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parafrásticas (FP). As famílias parafrásticas, englobadas, indicam a constituição de três formações discursivas: “FD1: Visão individual do consumo”, “FD2: Visão ambiental do consumo” e “FD3: Visão politizada do consumo”. Dessa forma, entendemos que os discursos da Vida Simples estão tensionados entre a incitação a um consumo individual, a um consumo que considera o ambiental e a um consumo politizado. Ou seja, as três FDs representam formas de compreensão da simplicidade e do consumo mais ou menos politizadas, havendo disputas ideológicas que se materializam no discurso. A partir do nosso objeto discursivo, procuramos articular as FDs e relacioná-las com a formação ideológica que rege essas relações. Esses “sentidos nucleares” funcionam como gradações de um tensionamento entre o individual e o coletivo que compreende a ideia de Portilho (2010) de que as propostas de consumo sustentável restritas à esfera individual são limitadas, limitantes e desagregadoras; já as ações de caráter coletivo podem ampliar as possibilidades de politização das relações de consumo, contribuindo para a construção da sustentabilidade e para a participação na esfera pública. A “FD1: Visão individual do consumo” abarca as reiterações de sentido de um consumo pela visibilidade, para distinguirse. Os signos dessa distinção social estão nas sacolas retornáveis, na alimentação frugal, nas roupas customizadas, nos objetos transformados, nas casas estilizadas, nos roteiros peculiares de viagens. Segundo Portilho (2010), as mercadorias pós-fordistas são caracterizadas por sua natureza orientada pelo cliente (customizada), além da pressão por um estilo exclusivo. A exclusividade pode ser entendida com base em que o consumo é mais distintivo quanto mais raro for (BOURDIEU, 1994) e, assim, os demarcadores desse estilo de vida existem para ser reconhecidos pelos outros. Para o arquiteto Beto Faria, que já transformou casas com mais de 50 anos de idade em lofts sob medida para a vida contemporânea, é importante avaliar, além da localização e, por que não?, do charme do imóvel, a qualidade de seus materiais con-

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strutivos. Tijolos maciços e janelas de pura madeira, por exemplo, valem a pena ser recuperados. (SD88, T26) Moda – Ética, sustentável ou customizada. Porque se vestir é uma forma de autoexpressão. Conheça marcas, lojas, cursos e sites cheios de estilo. (SD241, T88) Puxadores são peças interessantes, que às vezes sobram da reforma de um criado-mudo que foi dos nossos avôs ou da penteadeira antiga da família. Que tal reutilizá-los de uma maneira um tanto quanto inédita? Fixe-os na parede do quarto e – voilá – crie um cabideiro totalmente personalizado. (SD275, T91)

Na FD1, mesmo quando o recorte discursivo aponta para uma via da sustentabilidade, o objetivo é que isso traga estilo (sempre em sintonia com o contemporâneo), saúde ou conforto – o que significa, em termos simbólicos, distinção - e não melhoria para o ambiente. As duas SDs abaixo demonstram proposições em que a revista ensina o leitor a “dar o ar de” transformação aos produtos, pois, na verdade, é um estilo advindo de um consumo que não é transformador. Não tem 30 taças de vinho? Misture as que tiver com outros copos. Se for alugar, escolha de formas e tamanhos diferentes para dar o ar de “abri o armário e peguei”. (SD190, T67) Caso não tenha nenhum puxador antigo ou em desuso em casa, você pode encontrá-lo em lojas de materiais para construção e até mesmo em feirinhas de antiguidades, que têm vários tipos sortidos para vender. (SD276, T91)

A “FD2: Visão ambiental do consumo” abarca reiterações de sentido que promovem produtos, serviços e campanhas que encorajam um consumo com preocupações ambientais. A FD2 apresenta elementos pontuais de ruptura quando reiterações de sentido subvertem a lógica da sociedade de consumo mas, mesmo nesses momentos, a questão ambiental não aparece como um conflito de interesses e não abarca as disputas ideológicas exis45

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tentes. É um consumo restrito ao comportamental, filiado a um discurso empresarial que educa os consumidores, que é imediatista, reformista, em que o mundo institucional desaparece. O objeto de modificação é o “planeta” ou “a natureza”, num discurso um tanto disperso e distante das relações sociais concretas, em que as responsabilidades estão privatizadas ao indivíduo. Você pode reformar o que quiser. Esse é o slogan de um grupo de designers de Amsterdã. Os caras querem acrescentar um quarto “R” ao trio já manjado de atitudes sustentáveis “Reusar, Reduzir, Reciclar”. (SD121, T37) [...] Já que os produtos de hoje não são feitos para durar como antigamente, todos nós temos que arregaçar as mangas e aprender a consertá-los – na verdade, outro hábito que foi se desgastando com o tempo. Criaram até um manifesto incentivando todos a colocar em uso o bom e velho kit de ferramentas e reparos para consertar o pé da mesa que quebrou, o vaso que trincou, o taco que descolou. (SD122, T37) Casa de cachorro com madeira de reflorestamento – Com 47 ou 75 cm de altura. [...] R$249 (pequena). (SD308, T110)

A “FD3: Visão politizada do consumo” apresenta reiterações de sentido que envolvem projetos coletivos e criticam a sociedade de consumo, enfocando a politização no sentido de caracterizar as práticas de consumo que transcendem as ações individuais, na medida em que articulem preocupações privadas e questões públicas (PORTILHO, 2010). Então, o sentido é o de apresentar a relação do social com a história e a política. A expressão “consumo político” ou “politizado” vem sendo usada para mostrar que o consumo é uma arena de tomada de decisão carregada de potenciais conflitos de valores e desejos, de capacidade política e de restrições socioeconômicas (PORTILHO, 2009). [Tecnologia social] é um conjunto de técnicas e metodologias de diversas áreas [...] que visa a redução das desigualdades sociais

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e a melhoria das condições de vida das pessoas, solucionando problemas relativos à alimentação, saúde, saneamento, habitação e meio ambiente e autonomia de deficientes, entre outros. Exemplos de tecnologias sociais são as cisternas para a captação de água de chuva no semi-árido brasileiro ou o soro caseiro, que evita a desidratação de crianças carentes. (SD13, T7) Aos poucos, evoluímos para modelagens mais amplas, tecidos de toque mais agradável, peças que parecem existir para o conforto, como um tênis – mas que coexistem com saltos agulha, jeans justíssimos e bolsas enormes. Será que entendemos que as roupas e os acessórios que vestimos podem gerar mais ou menos saúde? Ou a busca pela beleza e o frisson pelo consumo das últimas tendências sempre falam mais alto? (SD19, T10) “Comida fresca não dá dinheiro para a indústria alimentícia. Então, a única maneira pela qual eles podem fazer dinheiro é adicionando algo pelo qual se tenha de pagar, como uma embalagem atraente. Veja os flocos de milho. As empresas ganham muito mais vendendo cereais matinais do que vendendo milho. Então, quanto mais nós discutimos e aprendemos sobre isso, pior é para a indústria. Não vale a pena para eles informar o consumidor”. (SD104, T28)

A partir dos números de SDs que compõem cada FD3, é possível vislumbrar que a “FD1: Visão individual do consumo” é dominante em relação à “FD2: Visão ambiental do consumo” e à “FD3: Visão politizada do consumo”. Isso demonstra, primeiramente, que os sentidos referentes a escolhas de consumo enfatizando práticas individuais foram mais reiterados pela Vida Simples, no corpus selecionado, e que os sentidos tangendo aos aspectos politizados do consumo foram menos materializados. Assim, convive na Vida Simples uma tensão discursiva (e ideológica) de um sentido hegemônico de consumo - numa relação de acomodação, reprodução e adaptação - com um sentido contra- hegemônico (minoritário, mas existente) de uma relação crítica de transformação e libertação.

A FD1 é composta por 161 SDs; A FD2, por 107; a FD3, por 50.

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E, mais do que tal diferença quantitativa em relação aos sentidos, a análise trouxe inúmeras problematizações advindas dos deslizamentos e entrecruzamentos de sentido, o que nos levou ao entendimento de que as três FDs têm origens diferentes, mas não necessariamente se opõem, visto que, por vezes, a saída do indivíduo é enxergar-se numa coletividade. Elas também não podem ser consideradas totalmente opositivas porque mesmo a formação ideológica da FD3 não propõe um enfrentamento radical da sociedade do consumo. Torna-se importante avaliar, pois, nesse gesto interpretativo, que há uma formação ideológica hegemônica na revista Vida Simples, que se ancora numa ideologia dominante na nossa época: a de que o indivíduo é a medida de tudo, numa condição sob a qual os sujeitos estão cada vez mais individualizados. Sentidos, muito aquém e além da Vida Simples Em sintonia com o aporte teórico-metodológico utilizado, entendemos que o tensionamento entre ações individuais e ações coletivas percebido na revista está contido num contexto de produção de sentidos muito aquém e além da Vida Simples. Tal tensionamento é típico do sujeito contemporâneo e buscamos articulá-lo com reflexões acerca do indivíduo e da reflexividade pensada por Giddens (1991, 2002, 2007, 2010). Isso nos ajuda a entender as formações ideológicas que, mesmo existindo anterior e exteriormente ao objeto pesquisado, acabam ancorando as FDs identificadas no texto da revista. Até porque o panorama e os dilemas delineados pela Vida Simples – mas que se estendem a outros produtos jornalísticos - se harmonizam com os relatos teóricos sobre a dinâmica social atual. Hoje em dia, ao invés de líderes (agindo como intermediários entre o bem individual e o “bem de todos”), temos conselheiros, cujo esforço é justamente não sair da área privada. Segundo Bauman (2001), os conselhos que os conselheiros oferecem se referem “não à Política com P maiúsculo” e às ações que podem 48

ser feitas em conjunto, mas sim à política vida, ou seja, ao que as pessoas podem fazer elas mesmas e para si próprias. Política vida substitui a esfera pública: o que conta é a sua autorrealização e o seu estilo de vida, o qual se tornou importante na definição das identidades. Engajados na política vida, somos seres reflexivos, enfocados no self, raramente satisfeitos com nossos resultados e sempre prontos a corrigi-los. Giddens (1991) entende que o conhecimento não é mais como no sentido antigo, em que conhecer era estar certo; hoje, refletimos sobre a natureza da própria reflexão: refletimos sobre os sistemas de pensamento que utilizamos no diaa-dia, num processo de encontrar-se a si mesmo que as condições sociais da modernidade impõem a todos nós (GIDDENS, 2002). A realocação da referência do indivíduo de líderes para conselheiros de que fala Bauman (2001) e a reflexividade de que trata Giddens (1991) enfatizam a privatização, a qual se tornou a marca registrada da sociedade atual. Por aí entendemos que, na Vida Simples, o social tem espaço mais em textos de “terceira pessoa”. É o Marcos que se tornou fazendeiro de produtos orgânicos. É a Vitória que está desenvolvendo programas sociais. É o Eduardo que faz denúncias a favor dos caminhantes. Ou seja, o social aparece em exemplos de quem conseguiu atrelar a preocupação ambiental ao seu anseio de vida e se dedica a projetos ou campanhas voltadas a incentivos sociais. Nesses textos, se critica a falta de coletividade. Porém, nas matérias que se dirigem ao leitor, que o tratam por “você”, o foco majoritário é o de mudanças a nível individual. Portanto, as escolhas são reflexivas, privatizadas ao sujeito e as alternativas de consumo são totalmente individualizadas, sendo de responsabilidade da pessoa o tipo de vida que deseja levar, como resolve vivê-la e os tipos de escolha que faz para que seu projeto se concretize: “culpe a si mesmo, e a ninguém mais, se tudo isso não resultar na felicidade que você esperava” (BAUMAN, 2008, p. 113). Assim que, na cultura de consumo, como aponta Featherstone (1995), o estilo é transformado num projeto de vida, que 49

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manifesta sua individualidade e senso de estilo na especificidade do conjunto de bens, roupas, práticas, experiências, aparências e disposições corporais destinados a compor um estilo de vida. Para Slater (2002), um lado negativo de a escolha do consumidor ser um ato privado - que se restringe à família, à domesticidade, ao mundo das relações privadas - é que “não consumimos com a finalidade de construir uma sociedade melhor, para sermos pessoas melhores e viver uma vida autêntica, mas para aumentar os prazeres e confortos privados” (p. 35). Ele entende que a privacidade da escolha individual parece contradizer a solidariedade, a autoridade e a ordem social. Assim, o discurso voltado para o presente, para o que o leitor pode fazer “agorinha mesmo” para ser mais tranquilo e feliz, individualmente, está desconectado da sociedade. As montagens discursivas da revista A premissa da sociedade de consumo “compro, logo existo” não parece ser, em primeira análise, o que direciona a busca por uma vida mais simples, pois esse estilo de vida prega o consumo consciente, que abarcaria as necessidades essenciais das pessoas e levaria a uma filosofia ecológica. No entanto, como já apresentamos, existe um tensionamento na relação entre simplicidade e consumo, no qual o que parece uma contradição se transforma numa relação de mútua interferência: a revista propõe uma vida simples, que preconiza uma redução do consumo, mas, de outra forma, a maneira que a sociedade oferece para ter uma vida mais simples é através do consumo como forma de construção de identidades. Portanto, entendemos que Vida Simples apresenta a reflexividade, questionando e autoconfrontando o pensamento sobre o qual se pensa, mas de forma tensionada: há uma tensão permanente entre o consumo consciente e o consumo “hegemônico”. Por trás de um aparente consenso sobre a incitação a um consumo simples, há uma complexificação e negociação 50

de dizeres, que se ancoram numa filiação de sentidos de um estilo de vida que prega mudanças de consumo pessoal, mas silencia visões políticas do consumo. Trata-se da importância de andar de bicicleta, mas não de um sistema público alternativo. Fornece-se espaço para produtos naturais, mas não para discutir uma legislação que regule o uso de agrotóxicos e de conservantes. Enfocam-se plantações orgânicas, mas não segurança alimentar contra adubos. Tal relação é importante para pensarmos nos sentidos interditados em relação ao consumo sustentável na mídia hoje. Assim, incita-se o consumo sustentável, mas sem radicalismos ou militância, na medida em que se torna chique e moderno usar os símbolos distintos da lógica sustentável: roupas customizadas, móveis exclusivos, comidas orgânicas, tecidos alternativos, design vintage. Considerações do relatório do Programa das Nações Unidas para o meio ambiente visando ao consumo sustentável na América Latina e Caribe (MASERA, 2001) ajudam nesse entendimento, quando enfocam que a mensagem do consumo verde nos países desenvolvidos não é consumir menos, mas consumir melhor, não resultando em nenhuma mudança significativa de comportamento de consumo, além da preocupação ocasional com as consequências ambientais e de saúde relacionadas às decisões de compra. Ou seja, a aclamação pública à preocupação com o meio-ambiente não se traduz necessariamente em mudanças sustentáveis no comportamento do consumidor. Entre a política do eu e o espaço público Segundo Giddens (1997), há uma nova agenda hoje composta tanto pela relação entre as decisões do dia-a-dia e os resultados globais quanto pela influência das ordens globais sobre a vida individual. O autor compreende que, em consequência disso, coletividades e agrupamentos de todos os tipos, incluindo o Estado, não desaparecem, mas tendem a ser reorganizados ou reformula51

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dos. Indo a esse encontro, Beck (1997) avalia que, se por um lado está se desenvolvendo um vazio político das instituições tradicionais (partidos e sindicatos), por outro há um renascimento não institucional do político. Ele critica, assim, que se pense que o processo de individualização só faz esvaziar a consciência social. Isso acontece, mas há também uma nova dimensão do político, que abre possibilidades para compromissos e obrigações sociais. Ao se afastar das antigas instituições, o indivíduo migra para novos locais de atividade e identidade, mesmo que isso aconteça “de maneira pouco convicta, com um dos pés, [...] enquanto o outro está ainda apoiado na velha ordem” (BECK, 1997, p. 33). Há, assim, no campo teórico, diferentes percepções em relação ao modo como as mudanças do projeto da modernidade têm influência nas questões políticas. Para alguns autores, tais mudanças ocasionam o declínio da política; outros entendem que elas geram a emergência de novas formas políticas. Nesse sentido, Carvalho (2000) identifica, pelo menos, três ênfases predominantes: os que destacam o aspecto da decadência política na situação contemporânea (como Hannah Arendt, Erick Hobsbawn e Richard Sennett); os que concordam com o diagnóstico de crise da política, mas argumentam sobre possíveis saídas através da repactuação das relações entre público e privado (reflexões como as de Jürgen Habermas e de Zygmunt Bauman) e os que preferem ressaltar os aspectos promissores dos novos espaços emancipatórios nas mudanças da cultura política contemporânea (como Anthony Giddens, Boaventura de Sousa Santos e Theodore Roszak). Entendemos que, ao invés de uma posição fixa diante desses dilemas teóricos, devemos manter a abertura da reflexão já que a compreensão entre público e privado é bastante complexa e necessita desse diálogo. Compreendemos que as novas configurações da contemporaneidade, em um projeto reflexivo, individualista, enfocado no self, geram um esvaziamento da esfera pública e da preocupação com o coletivo. Apesar disso, assumimos uma perspectiva 52

otimista diante das possibilidades de resposta do individual, como uma esfera ativa e que comporta reações, mas que precisa atuar em conjunto com o social. Estamos de acordo com Portilho (2009) em que há um consumo político no enfoque dos atores sociais não organizados e difusamente politizados, que se situam entre as preocupações da esfera privada e a vontade de participar de uma esfera política mais ampla. Assim, concordamos com Santos (2005) que o futuro é uma questão pessoal, mas afirmamos que é necessário que os sujeitos, mesmo interpelados pessoalmente, estejam engajados coletivamente. Ou seja, pode-se recuperar a dimensão coletiva dos problemas individuais, havendo a possibilidade do surgimento de novas formas de ação política – e, portanto, de reconstrução da cidadania - a partir da esfera privada (PORTILHO, 2010). Ao inserir o consumo nesse quadro que tensiona o público e o privado, ele fica ainda mais complexo. Afinal, “consumir é participar de um cenário de disputas pelo que a sociedade produz e pelos modos de usá-lo” (CANCLINI, 2005, p. 62). Então, como nos instiga à reflexão Carvalho (2000): de que forma será possível consolidar o espaço público a partir de atividades cotidianas como as práticas de consumo, a partir de uma política do eu? O engajamento em termos de consumo se mostra bastante complexo e Canclini (2005) tenta entender como as mudanças na maneira de consumir alteraram as possibilidades e as formas de exercer a cidadania: “vamos afastando-nos da época em que as identidades se definiam por essências a-históricas: atualmente configuram-se no consumo, dependem daquilo que se possui, ou daquilo que se pode chegar a possuir” (p. 30). Portilho (2010) nos dá pistas para o entendimento dessa relação do público e do privado, quando entende que o deslocamento da crise ambiental da produção para o consumo tem sido visto por duas maneiras antagônicas: a) como fortalecimento dos mecanismos de desintegração social e política, reduzindo os vínculos de solidariedade e participação na esfera pública e b) como uma potencial força agregadora e emancipatória que fortalece a 53

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participação individual e coletiva nos dilemas e decisões políticas cotidianas, trazendo a questão ambiental para a agenda pública. Na sociedade hoje, a questão ambiental tem, pois, força politizada e despolitizada. Politizada porque traz para o centro do debate um novo ator social preocupado com questões ambientais – o “consumidor responsável” – que teria um importante papel ao modificar suas escolhas individuais e diárias de consumo, exercendo pressão sobre o sistema de produção (PORTILHO, 2010). Despolitizada porque favorece a apropriação privada dos bens naturais e o surgimento de “mercados verdes elitizados” (PORTILHO, 2010, p. 34), sendo uma força desagregadora. Ora o enfoque é ao consumidor, preocupado com a esfera privada; ora é ao cidadão que, como ator social, dá a ênfase à esfera pública. É a convivência desses dois discursos que se dá na revista Vida Simples e em grande parte da mídia. Pagando bem, consumo sustentável tem É fundamental problematizar que a estratégia baseada em ações individuais motivadas por preocupações éticas pelo meio ambiente pode resultar - e já o faz, em muitas medidas - em submercados e estilos de vida elitistas. O discurso da autossustentabilidade atravessa revistas dirigidas a públicos de diversas classes sociais e, no entanto, o contemporâneo retratado pelas publicações parece deixar lugar para apenas certo tipo de leitor “ocupar”, tendo em vista que os artefatos indicados para se inserir no estilo de vida contemporâneo e sustentável exigem alto investimento e demarcam signos de distinção. Como analisa Benetti (2008b, p. 13), “é contemporâneo preocupar-se com o meio ambiente, ainda que esta seja uma alimentação vetada a quem não pode pagar por ela”. Tal interpelação que serve para apenas parte da audiência se identificar é, na verdade, construída fora do discurso, ou seja, é determinada cultural, social e historicamente. Portanto, buscar uma 54

vida simples tem implicações não em consumir menos, mas em consumir determinados produtos, só acessíveis a parte da população. Diz Canclini (2005): “pela imposição da concepção liberal de globalização, na qual os direitos são desiguais, as novidades modernas aparecem para a maioria apenas como objetos de consumo, e para muitos, apenas como espetáculo” (p. 42). A partir disso, avaliamos que o modo como a mídia vem tratando os produtos e as ações para inserção em uma vida sustentável faz com que eles sejam objeto de consumo para as classes média e média alta, e apareça apenas como espetáculo para os demais. Ou seja, o saber em torno da sustentabilidade tem sido distribuído e atribuído a classes mais elevadas, gerando para a nossa época, se nos basearmos no conceito foucaultiano de vontade de verdade, um regime desigual de verdade. Afinal, “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas [...]” (FOUCAULT, 2009, p. 37). Com base nisso, entendemos que as regiões em torno do discurso sustentável hoje não estão abertas e não são penetráveis e, então, por mais que haja a vinculação do consumo com a cidadania, como aponta Canclini (2005), há evidências – que o próprio Canclini ajuda a desvendar - de que o consumo tenha também acirrado as desigualdades, tanto de acesso aos bens sustentáveis quanto de acesso aos discursos sobre a sustentabilidade. Aos “consumidores verdes profundamente comprometidos”, segundo Portilho (2010, p. 131), é conferido o score de estilo de vida mais alto, não atingível por todos os membros da sociedade. Então, ao escolher um estilo de vida simples, com um consumo ecologicamente correto, o sujeito não tem um anticonsumo, mas na verdade um “metaconsumo”, pois tem o privilégio de recusar a ostentação e passar à discrição, e se distingue por seu estilo e sua maneira de consumir (BAUDRILLARD, 1998). A questão ambiental se tornou um bem, não acessível a todos. 55

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Os sentidos cristalizados e os sentidos possíveis A partir do exposto, entendemos que a natureza transformase em política, torna-se um projeto social, uma utopia que deve ser reconstruída, ajustada e transformada (BECK, 1997). E qual o papel do jornalismo nesse contexto? Ramos e Ramalho (2002) avaliam que a mídia tornou o tema ambiental uma moda, porém colaborou muito modestamente na educação ambiental e na promoção da sustentabilidade. O jornalismo deve estar comprometido em vislumbrar as possibilidades da ação política através da atuação dos cidadãos. E o discurso é o palco em que se dão essas permanentes negociações, construções, reconstruções e desconstruções de sentido, por isso a importância de o jornalismo abrir a possibilidade de sentidos referentes ao consumo. Até porque, por estarmos tão submersos em sua lógica, torna-se difícil perceber outra forma de vida social que não seja organizada a partir do consumo de mercadorias produzidas em massa (PORTILHO, 2010). As disputas ideológicas que envolvem a temática são insuficientemente exploradas e parece haver pouca controvérsia quando se trata de identificar os problemas ecológicos, pois todos consideram inquestionável a existência de um processo de degradação ambiental. No entanto, as controvérsias são muitas. Ao jornalismo, então, para que cumpra seu papel social, são necessários enquadramentos que contemplem o jogo de interesses da pauta ambiental, demonstrando as tensões ideológicas (e não um consenso) ao tratar da temática. No geral, as pautas jornalísticas distribuem discursos sobre “pequenos atos” de mudança no cotidiano sem, na maioria das vezes, considerar questões políticas, sociais e econômicas. Só que, como enfatiza Giddens (2010, p. 88), sustentabilidade implica que, ao lidarmos com problemas ambientais, estejamos em busca de soluções duradoras e não de “jeitinhos” a curto prazo. Ao jornalismo, é necessário refletir sobre formas de interpelar 56

o público de diferentes classes sociais para que, no processo da interpelação-identificação que produz o sujeito no lugar deixado vazio (PÊCHEUX, 2009), as posições definidas no discurso permitam criar novos sentidos referentes ao consumo sustentável. A fim de conceber uma inversão dos enunciados cristalizados e reintroduzir um novo sentido a essa discussão, é preciso que o discurso jornalístico sobre o consumo sustentável não deslize no enfoque ao indivíduo, à responsabilização e à culpabilização do “eu”, tampouco circule apenas numa enunciação tão ampla e idealizada abordando o “planeta” e promova um apagamento do social, já que trata de interesses difusos, que são de todos e, assim, tornam-se de ninguém. A análise demonstra a necessidade de compreender o consumo como uma possibilidade de luta política e simbólica e de produzir um discurso articulado entre as dimensões históricas e sociais dos sujeitos (que é onde se situam as relações de poder e, então, de resistências), entendendo os sujeitos como politicamente capazes de significarem-se em suas histórias nos confrontos entre o político e o simbólico. Em nossa proposta de compreensão dos sentidos pela AD, podemos afirmar que outros sentidos em relação ao consumo parecem estar interditados socialmente e, por sua vez, permanecem “sucateados” (MEDEIROS, 2010, p. 167) pela mídia. Sendo assim, Vida Simples evolui porque, apesar de apresentar uma base ideológica representativa da maneira pela qual os sujeitos são interpelados através do consumo atualmente, podemos observar que, mesmo em menor proporção, há sentidos que constituem outros já-ditos em relação ao consumo, o compreendendo como passível de ser simplificado e feito de forma consciente. A revista traz sentidos do consumo que estão silenciados socialmente, mesmo que deixe tantos outros sentidos ainda silenciados, não só porque sempre haverá um não-dito em todo dito, mas sim porque algumas coisas parecem que não podem ser ditas, em função das suas condições de produção. Vida Simples se apresenta como disposta a apresentar lógicas contra-hegemônicas mas, por ser uma revista 57

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comercial – inserida em uma indústria cultural, que trabalha com a informação mas também com a criação de consumidores –, não lhe é permitido que construa sentidos do consumo que possam contrapor integralmente o próprio sistema que lhe dá sustentação. Considerações finais A busca de ferramentas preferencialmente individuais para se alcançar o estilo de vida que traga mais segurança pode ser uma tentativa do indivíduo de se livrar das armadilhas pregadas pelo mundo contemporâneo, marcado por sentimentos de desorientação. A questão que se coloca é que esse leitor está inserido em uma sociedade e, ao pensar mais (e às vezes apenas) nas problemáticas individuais, contribui para perpetuar o individualismo. Para Bauman (2001), o outro lado da individualização é justamente a corrosão e a lenta desintegração da cidadania, a incapacidade de hoje se decidir as coisas em conjunto. Esse pensamento se assemelha ao de Slater (2002), para quem a privacidade da escolha individual parece contradizer a solidariedade e a ordem social, porque serve apenas para aumentar os prazeres e confortos privados. Além disso, tais tarefas que são empreendidas individualmente vão de encontro ao consumo sustentável. Alguns sentidos em relação à sustentabilidade na mídia estão tão cristalizados que não se abrem possibilidades para outros sentidos. Segundo Orlandi (1996, p. 5), na maior parte das vezes se fala da relação entre o homem e a natureza em termos de formação de uma consciência ecológica e se chega a usar a referência à preservação ambiental para se falar de cidadania sem, no entanto, preencher de sentido a cidadania em sua dimensão histórica e social. Isso acontece porque, no modo de funcionamento ideológico da linguagem, passamos sem refletir sobre o fato de que há um recobrimento entre a ciência, a tecnologia e o governo (ORLANDI, 2003). A ab58

ertura estaria justamente em se tematizar a questão estrutural como parte de um processo político. Segundo Orlandi (1996), esses casos são raros, mas são exemplos em que a cidadania é bem colocada. Trazendo para nossa área de estudo, é necessária a reflexão acerca da relação da mídia com esse tensionamento, visto que o jornalismo de revista, ao chamar a subjetividade e tematizar soluções, traz o social para o privado, o coletivo para o individual (TAVARES; SCHWAAB, 2009). O leitor convocado se torna, pois, um “iniciado em um aprendizado em valores de consumo, que se lança ao mundo para tornar-se ‘mais eu’, um você s/a empreendedor de si mesmo” (PRADO, 2009, p. 3). Esses resgates nos ajudam a compreender o contexto de produção de sentidos da Vida Simples e como se situa o consumo e a constituição dos estilos de vida na sociedade hoje. Ajudam-nos a compreender, como nos instigam Douglas e Isherwood (2006), que o consumo deve ser vislumbrado a partir de fios de um véu que disfarça as relações sociais que cobre. Assim, entendemos que, ao mesmo tempo em que o jornalismo cria espaços para a proliferação e revelação de discursos sobre o consumo sustentável, ele deixa também velados muitos outros sentidos.

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Envelhecendo com a Telenovela: Para Pensar a Recepção na Velhice Laura Hastenpflug Wottrich é publicitária e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui experiência em redação e concepção publicitária e em assessoria de comunicação integrada. Entre seus temas de interesse, estão pesquisa em publicidade, comunicação popular, estudos de recepção e as representações midiáticas da velhice. E-mail: [email protected] Veneza Mayora Ronsini é Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, com bolsa-sanduíche na University of Califórnia. Atua como professora da Universidade Federal de Santa Maria, onde coordena o grupo de pesquisa Mídia, Recepção e Consumo cultural. É pesquisadora do CNP e vice-coordenadora do Mestrado em Comunicação da UFSM. Membro do conselho editorial das revistas Animus (UFSM), Fronteiras (Unisinos), Revista contemporânea (UFBA), Formas e linguagens (UNIJUI) e da E-Compós (Brasília). E-mail: [email protected]

Resumo: Este artigo busca compreender as configurações da recepção da telenovela na velhice a partir da análise da interação cotidiana de receptoras idosas com a trama. Teoricamente, baseia-se na perspectiva dos estudos culturais, nas reflexões latino-americanas sobre as mediações realizadas por Martín-Barbero e nas intersecções entre estudos sobre velhice e mídia. O estudo de recepção da telenovela foi realizado com seis mulheres idosas, entre 63 e 76 anos, de classes populares residentes em Santa Maria- RS. A pesquisa configura-se uma etnografia crítica da recepção. As técnicas utilizadas foram observação do espaço doméstico com registros no caderno de campo, assistência da telenovela junto a quatro entrevistadas, realização de entrevistas exploratórias e entrevistas semi-abertas/fechadas. Os resultados apontam para a existência de especificidades importantes na dinâmica de recepção por idosos, que merecem ser aprofundadas. Palavras-Chave: Estudo de recepção, telenovela, velhice. Abstract: This paper aims to understand the settings from reception of telenovela by elderly from the analysis of everyday interaction of elderly women with the plot. Theoretically, it is based on cultural studies, on Latin-American reflections about mediation proposed by Martín-Barbero and on intersections between studies about elderlihood and media. Reception is studied through six elderly women, among 63 to 76 years old, from popular classes, living in Santa Maria-RS. Such study is a critical ethnography of reception. Observation of the domestic space, with registers in the field journal, were used as techniques, along with watching telenovela together with four of those women, exploratory interviews and semi-structured/closed interviews. Results point out to the existence of important specificities on the dynamics of reception by elderly, which should be deepened. Key words: reception studies, telenovela, elderlihood.

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Introdução

Consideramos idosos indivíduos com sessenta anos ou mais, conforme caracterização do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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Entre os estudos que abordam a temática da representação da velhice na mídia, citamos os elaborados por Soares (2009), Bezerra (2006), Agra do Ó et. al (2010), Palácios (2004), Neri (2006), Debert (2003), Côrte, Gomes (2006), Côrte (2009) e Côrte, Mercadante, Gomes (2006).

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A dissertação “Envelhecer com Passione: a telenovela na vida de idosas das classes populares” foi defendida pelo Programa de PósGraduação em Comunicação da UFSM, em março de 2011, sob orientação da prof. Dra. Veneza Mayora Ronsini. 3

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Falar de velhice nos dias de hoje é tratar de um tema bastante atual, ainda mais se o foco recai sobre as relações entre velhice e mídia. Basta observar com um pouco de atenção as matérias, campanhas publicitárias e programas televisivos para constatar um aumento na tematização da velhice nos meios de comunicação, em compasso com as novas configurações que atravessam esse período da vida. Se para os estudiosos é consenso que a mídia possui um papel fundamental na construção social da velhice, o fato parece ainda não ter encontrado ressonância nos artigos científicos, nas páginas das teses e dissertações do campo da comunicação. Neste, a relação entre idosos e mídia é ainda pouco estudada. Isso se torna compreensível pela recente atenção que a velhice adquiriu como foco de pesquisa, principalmente no Brasil. As estatísticas embasam o que gerontólogos e demais pesquisadores problematizam: a expansão da população idosa1 no país, o crescimento do campo de teorizações sobre a velhice, as novas formas de vivenciar essa fase da vida transformam os modos como ela é vista e representada socialmente, assim como as percepções e vivências dos próprios idosos.  Quando se propõe a abordar a velhice a partir dos estudos de comunicação, as perspectivas são diversas. A partir da revisão dos estudos da área, percebemos a existência de pesquisas dedicadas a produtos midiáticos, sobre as representações da velhice, do indivíduo idoso ou do envelhecimento veiculadas pela propaganda e pelo jornalismo2. Contudo, poucas pesquisas dedicaram-se a compreender a circulação dessas representações a partir do olhar daqueles que cotidianamente as ressignificam em suas vivências: os receptores. Esse se tornou o objetivo da pesquisa3 mais ampla, da qual este texto é um recorte. Alinhada à proposta dos estudos culturais latino-americanos e, mais especificamente, aos estudos de recepção brasileiros, buscou-se investigar as re-

lações entre as representações da mídia (no caso, as veiculadas pela telenovela do Horário Nobre) e suas apropriações por mulheres idosas na conformação de suas identidades. Um dos enfoques – o que é relatado nestas linhas - foi compreender as especificidades da recepção na velhice, ou seja, entender como as receptoras se relacionavam com a telenovela em seu cotidiano, como eram construídos os usos sociais da trama e que trajetos de leitura se poderia observar a partir de suas condições e contextos de vida. Como a intenção é problematizar a recepção em relação aos idosos, naturalmente essa dimensão da existência – a velhice - mais se sobressaiu na análise, em articulação com as dimensões de gênero e de classe social (pois além de idosas, eram receptoras pobres e das classes populares). Ou seja, os modos de leitura da trama são atravessados por essas dimensões. A telenovela foi escolhida como objeto porque se configura no produto cultural massivo de maior expressão no país e mantém uma relação estreita, ainda que desconhecida, com o público idoso. A preferência pelos folhetins é endossada por pesquisa divulgada no Anuário 2009 do Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva. Nele, os receptores com 50 anos de idade ou mais figuram como o principal público da telenovela, com 29,7% e 30,7% da audiência (em relação às telenovelas Duas Caras e A Favorita, respectivamente). Para o público jovem de 18 a 24 anos, para realizar um contraponto, a percentagem de assistência dessas telenovelas foi de 10,2% (LOPES, OROZCO GÓMEZ, 2009, p.133). Já a preferência pela TV é confirmada em pesquisas realizadas pela Fundação Perseu Abramo (NERI, 2007), nas quais assistir televisão figura como primeira opção de lazer entre os idosos brasileiros, com 93% da preferência. O estudo teve foco em uma telenovela específica, Pas4 sione . Estudamos a relação desta trama com as vidas de seis mulheres5 idosas residentes em bairros populares da cidade de Santa Maria – RS: Vânia, 65 anos, cozinheira aposentada e viúva; Tarsila, 69 anos, serviços gerais aposentada, casada; Car-

Veiculada no horário nobre da Rede Globo de maio de 2010 a janeiro de 2011, a trama é de autoria de Silvio de Abreu com colaboração de Vinicius Vianna, Sergio Marques e Daniel Ortiz e direção de Carlos Araújo, Luiz Henrique Rios, Natalia Grimberg, Allan Fiterman e André Câmara.

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Os nomes das receptoras foram trocados por outros escolhidos por elas no percurso da entrevista. As pessoas citadas por elas nas falas expostas nesta pesquisa também tiveram seus nomes modificados.

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men, 63 anos, divorciada, empregada doméstica aposentada; Dani; 64 anos, viúva e cuidadora de idosos; Maria, 69 anos, viúva, dona de casa e Célia, 65 anos, viúva, também dona de casa. Para explorar a recepção, no período de um ano foi realizada observação indireta, entrevistas exploratórias, entrevistas semi-abertas/fechadas junto às receptoras e observação direta, acompanhados pelos registros e anotações no diário de campo. A assistência da telenovela junto a algumas delas também foi importante para observação do espaço doméstico, ambiente primário da recepção e as dinâmicas de leitura das tramas. Entende-se que esses métodos no estudo junto às receptoras convergiram para uma etnografia crítica da recepção, definida pelo

(GEERTZ, 1989). O mundo que dá sentido à recepção é atravessado por estruturas de significados socialmente estabelecidas (a cultura). O “dito”, o comportamento das receptoras são textos culturais, significados tecidos por elas que se tenta fixar num discurso pesquisável. O gesto de interpretação consiste em buscar as estruturas de significação desses textos e entender sua base social, sua importância. Relacionando com a mídia, a etnografia da recepção torna-se a base para entender o significado que as receptoras tecem sobre a telenovela e de que modo as tramas adquirem sentido em suas vidas. Os resultados desse esforço são relatados nas linhas a seguir.

[...] conhecimento construído a partir da descrição do contexto espacial e temporal que determina a apropriação dos meios de comunicação, isto é, a apreensão do sentido possível que os atores sociais dão às práticas sociais e culturais produzidas na relação com os meios de comunicação de massa (RONSINI, 2003, p.42).

O pequeno e portátil aparelho de TV, carregado por entre as peças de casa; a primeira televisão comprada e guardada de lembrança; as conversas travadas sobre os capítulos; as tramas, personagens e atores de preferência; os sonhos e reflexões suscitados pelos programas assistidos: foram essas algumas das questões levadas em conta quando investigamos a interação cotidiana das receptoras com a telenovela. Sobre o consumo dos meios de comunicação em geral, o rádio e a televisão são os mais consumidos, confirmando o que a pesquisa realizada pela fundação Perseu Abramo diz em relação às pessoas acima dos 60 anos. Independente da classe, entre os pesquisados, 93% revela ter na televisão sua primeira fonte de lazer e em segundo lugar, com 80%, o rádio (NERI, 2007). Talvez a importância da TV e do rádio em suas vivências possa ser relacionada à origem rural da maioria delas (Dani, Vânia, Célia e Tarsila), conjugada ao baixo nível de escolaridade que possuem (elas não concluíram o ensino primário). Esses meios são preferidos em relação à leitura de revistas, jornais e livros. Tarsila, Dani e Maria comentam gostar de ler. Delas, apenas Maria relembra e cita nomes de livros e autores. As outras não recordam de obras, autores ou gêne-

A etnografia é “crítica” porque visa entender os processos de negociação (dominação, resistência) da mídia, e não render-se à constatação da passividade ou atividade dos receptores frente aos meios (ou, quando há atividade, celebrá-la como sinônimo de resistência). A escolha da etnografia como método descritivo do cotidiano e da cultura das receptoras idosas, revelou-se importante por viabilizar um estudo mais aprofundado, que nos auxilia a “descrever com mais acuidade as trajetórias de vida e visões de mundo, ou, em outras palavras, a reconstituir o cotidiano como é vivido e sentido” (RONSINI, 2004, p.60). Além disso, as idas em suas casas, conversas nas paradas de ônibus, visitas aos grupos de idosos freqüentados por algumas delas, assistência compartilhada da telenovela e convívio com os familiares foi fundamental para perceber um pouco dessa lógica informal da vida real, sobre a qual a análise cultural se debruça 68

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ros de sua preferência, mencionando apenas que “lêem de tudo”. Para as outras entrevistadas, a falta de hábito e os “olhos cansados” para as páginas foram alguns dos motivos dados. Nenhuma das receptoras, a exceção de Maria que têm assinatura da revista Seleções, assina ou compra jornais ou revistas para ler. A filha de Maria assina um jornal local e repassa diariamente para a mãe olhar. O hábito de leitura de livros é presente nas vidas de Tarsila, Maria e Dani, que costumam pegar emprestado com suas amigas e conhecidas. Entre os títulos, os escolhidos são principalmente os romances, livros de autoajuda, espíritas e bestsellers. Parece-nos que o contato com a TV e o rádio é mais próximo: dos atores, apresentadores, emissoras e programas elas recordam e os citam com mais facilidade. O rádio é um meio de comunicação importante em suas vidas, seu companheiro cotidiano, que lhes acompanha enquanto realizam as atividades domésticas. Tarsila, Maria e Célia têm uma relação menos estreita com a programação radiofônica, costumando escutá-la mais pela manhã. As outras entrevistadas raramente desligam o rádio, costumam deixá-lo sintonizado durante todo o dia. O aparelho de TV, só adquiriram quando constituíram seus próprios lares, já casadas. Carmen lembra ter ganhado sua primeira TV do marido, um aparelho grande, marca “Colorado”, quando o primeiro filho tinha dois anos de idade. É também a lembrança de Dani e Vânia: já com os filhos nascidos, tiveram a possibilidade financeira de adquirir o aparelho. Tarsila assistiu aos primeiros programas ainda criança, quando começou a trabalhar como empregada doméstica na casa de uma família na cidade onde morava. Sobre esse tempo, ela relata: Na década de 1960 e nós morava no interior ainda... e tinha os conhecido, as pessoa que conheciam a família e iam buscar os filho, sabiam da família, né, que era uma família de pessoas boas, pessoas de confiança, pessoas honesta, e iam buscá pra trabalha. Aí eu tinha 10, 11 anos e a gente vinha trabalhar, aí que eu conheci televisão. Eu fazia, corria, terminava meu serviço bem

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ligeiro, aí diziam assim “vem olhar, vem olhar”. Aí eu olhava, né. Ah, eu gostava muito. Só que assim, a gente não podia comprar, não podia, né (Tarsila)

Foi em 1979 que adquiriu seu primeiro aparelho: uma TV à bateria, na qual gostava de assistir aos noticiários, telenovelas e especialmente filmes no domingo, com a família reunida. Ela tem o aparelho até hoje, guardado em uma “caixinha” em casa, como lembrança da primeira televisão da família. Seu desejo de adquiri-la desde o primeiro contato com a programação televisiva era compartilhado, quando jovem, com a mãe de criação. Ela rememora um pouco de suas conversas: Eu pensava “ah, um dia ainda eu vou ter uma televisão, vou trabalhar pra comprar uma televisão”. Aí ela dizia pra mim “ah, mas como tu gosta de pensar alto!” E eu dizia “Mas é bom, né, mãe, é bom ter uma televisão. Imagina eu trabalhar, chegar de noite, sentar e poder olhar uma televisão, não é bom isso?” E ela dizia, “é bom” (Tarsila)

Hoje em dia, todas têm na televisão um meio de manterem-se informadas e de distraírem-se. O número de televisores e as horas de assistência à programação por cada uma delas é variado. Elas passam de 1h a 7h diárias com a TV ligada, seja acompanhando os programas, seja deixando o aparelho “conversar” na casa. Os programas de preferência são as telenovelas (especialmente as tramas das 18h e 21h) e os telejornais, mas também programas de auditório (Célia, Maria e Carmen), os reality shows A Fazenda6 e Big Brother Brasil7 (Vânia) e programas sobre bem-estar e qualidade de vida (Dani). As primeiras gostam de assistir ao Programa da Hebe8, Programa do Ratinho9 e Domingão do Faustão10, e Dani acompanha o Vida & Saúde11 e Globo Repórter12. O canal mais assistido é a Rede Globo, unanimidade entre as entrevistadas, seguido por menções ao SBT, Rede Record, Bandeirantes, TVE e TV Pampa. A assistên-

Reality show exibido pela Rede Record. O programa coloca à prova um grupo de artistas a realizar tarefas do campo, havendo somente um vencedor no final.

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Reality show veiculado pela Rede Globo desde 2002 no Brasil.

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Programa de auditório apresentado por Hebe Camargo, com veiculação toda segunda-feira no horário nobre do SBT. Conta com realização de entrevistas, apresentações musicais e atualidades.

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Programa de auditório exibido pelo SBT. Exibe reportagens informativas, por vezes apelativas. Também promove reencontro de parentes que não se viam há décadas e testes de DNA para reconhecimento de paternidade.

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Programa dominical de auditório brasileiro  exibido pela Rede Globo. 10

Programa sobre bemestar e qualidade de vida veiculado na RBSTV (afiliada da Rede Globo no RS) todos os sábados, às 8h. 11

Programa jornalístico semanal brasileiro, produzido e exibido pela Rede Globo, que vai ao ar nas noites de sextafeira a partir das 22h 12

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cia da novela é complementada pela leitura de revistas especializadas, das sinopses nos jornais e pela assistência de programas como TV Fama e VideoShow, especializados nos bastidores das tramas. Vânia conta com dois aparelhos em casa, um em seu quarto e outro na cozinha. Costuma assistir à televisão mais no quarto, sozinha ou na companhia de seu companheiro. Tarsila tem uma TV, situada na sala da casa, onde costuma assistir com seu marido. A casa de Carmen também conta com um aparelho, pequeno e portátil, que costuma carregar para a peça da casa onde sente vontade de assistir. Célia tem três aparelhos, na sala, cozinha e quarto. Assiste aos programas sozinha ou às vezes na companhia da sua vizinha da casa dos fundos. Maria conta com dois televisores, na sala e em seu quarto, e costuma assistir à programação sozinha. A residência de Dani é a mais equipada: tem quatro aparelhos: um em seu quarto, um na cozinha, outro no quarto do filho e outro portátil, usado principalmente quando deseja assistir à programação na sala da casa. Seu local preferido de assistência é o quarto, onde costuma ver sozinhas os programas. Contudo, mais do que o tempo despendido na assistência ou o número de aparelhos, importa observar o significado social que esse tempo assume na vida das receptoras, que tipo de relação elas estabelecem com a telenovela (MARTÍNBARBERO, 1992). De início, as formas de assistência da TV pelas entrevistadas incitaram a problematização da visão tradicional da recepção nas classes populares, cuja assistência compartilhada da TV seria um dos traços marcantes. A escassez de recursos materiais, a precariedade de opções públicas de lazer aliadas a um ambiente de alta sociabilidade, levaria os mais empobrecidos a compartilhar mais a assistência das tramas com a família. Nesta pesquisa, a única a seguir esse comportamento é Tarsila. Ela assiste às novelas com seu marido e às vezes com os netos e filha, que moram na casa ao lado. As outras entrevistadas costumam ver normalmente sozinhas, em meio às atividades domésticas, trabalhos manuais e antes de dormir. 72

Possivelmente essa seja uma característica mais específica da recepção na velhice. As transformações que atravessam esse período da vida também mudam os modos de entender a recepção na dinâmica familiar. A saída dos filhos do lar e a mais freqüente viuvez das mulheres idosas (que geralmente vivem mais que seus maridos) faz com que muitas delas residam sós. Além disso, para as mulheres acima de 60 anos, que acompanharam o surgimento e explosão dos meios de comunicação massivos, a TV é um companheiro cotidiano, prestigiado diariamente. A audiência naturalmente varia de entrevistada para entrevistada, mas mesmo aquelas que têm uma assistência mais esparsa, no caso desta pesquisa, costumam ser fiéis a determinados programas e horários, como a telenovela. Elas oscilam entre manter uma audiência mais focada nos programas (Maria, Célia, Dani e Carmen) e combiná-la com outras atividades, como trabalhos manuais e lida doméstica. Em alguns momentos, a chegada de visitas em casa na hora da novela era alvo de reclamação, pois, mesmo que quisessem assistir junto, as entrevistadas tinham que dar atenção às pessoas e não podiam ater-se às tramas. A assistência hoje individual e contínua da telenovela não invalida a importância da família para pensar a recepção. Nos estudos, a dinâmica familiar é usualmente considerada uma dimensão-chave, pois, além de se constituir o primeiro espaço de socialização dos indivíduos, é o espaço cotidiano imediato de assistência da telenovela. Se hoje assistem às tramas sozinhas, são freqüentes os relatos das receptoras sobre sua história de vida, em que a assistência das novelas – ou ainda das radionovelas – era compartilhada com filhos e esposos. A novela faz parte da vida de Maria e Célia antes de adquirirem a televisão, através das revistas e do rádio. Célia começou a acompanhar as tramas pelas fotonovelas, que seu marido trazia da cidade. Diz que começou a ler e pegar gosto pelas histórias. Ela também costumava ouvi-las no rádio: Célia e Maria se lembram de reunir a família e os vizinhos em volta do aparelho 73

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para acompanhar as tramas. Célia conta que chegava a escutar nove novelas por dia quando era jovem, enquanto fazia a lida doméstica. Eu me casei com 16 anos... e quando dava Irmãos Coragem... nós morava lá em São Pedro, lá fora. Que eu me lembro que dava às duas da tarde. Eu varrendo os terreno com o radinho perto, escutando a novela. E depois nós fomo pra São Pedro... e tinha a vizinha, nós morava numa casa grande e era repartido. E ela era doente, ela era, por novela. Mas aquilo eu me apeguei, sabe? Com as novela, porque nós assistia. E daí o meu marido trabalhava com bateria, e aas vezes apagava a luz! Menina, aquelas mulher iam tudo correndo lá pra casa, porque nós botava a bateria no rádio pra escutar. Eu chegava a escutar nove novela! Acredita, ia fazendo meu serviço... mas o rádio não atrapalhava pra fazer o meu serviço. Tinha Direito de Nascer, que... eu já nem me lembro mais da história, só lembro bem do nome da novela agora. E passava às 9h30 da noite. Aí nosso quarto a gente dividia uma parede. E daí nós ia deitar [...] Aí chegava na hora que ia começar a novela, ela pegava o chinelo e batia, batia pra mim deitar na hora... aí eu ligava o rádio pra ouvir a novela. E tinha às 9h, às 8h, de manhã, de tarde.. e assim se ia (Célia)

Na televisão, também só passaram a assistir depois do casamento, pois tiveram condições financeiras suficientes pra comprar o aparelho. Os maridos de Célia e Vânia não gostavam que elas assistissem às tramas, mas elas não lhes davam ouvidos e sempre “deram um jeito” de acompanhar. Todas as entrevistadas relataram gostar de telenovela e assistir às tramas ao longo de suas vidas. A dura rotina de trabalho enfrentada especialmente por Tarsila, Vânia e Carmen as impedia, muitas vezes, de ter uma assistência regular das tramas. Tarsila comenta que quando ainda não tinha TV em casa, buscava acompanhar o que acontecia nas tramas através de uma colega de trabalho, que lhe contava diariamente os capítulos. Para Dani, os impedimentos eram de outra sorte. Seu marido não gostava que ela assistisse às telenovelas e não a deixava 74

acompanhar a trama. Era na casa da filha, que mora nos fundos da sua, onde costumava assistir quando possível. O marido de Célia também reclamava de seu gosto pelas tramas, mas ela conta que nunca deixou de acompanhar os capítulos. Hoje em dia elas costumam acompanhar o folhetim, seja de forma mais regular, seja de modo esparso. Tarsila, Maria e Célia parecem assistir mais cotidianamente aos capítulos. Dani, Vânia e Carmen têm uma assistência mais ocasional: dia sim, dia não, quando os compromissos e atividades de lazer as permitem estar em casa no horário. O formato seriado, repetido e redundante da telenovela parece ser algo que lhes agrada, pois em suas matrizes de leitura, formatos acelerados e interrompidos de programação não são bem aceitos. Durante a assistência da novela ou de outros programas em suas casas, percebeu-se que elas não costumam trocar de canal durante o programa ou nos intervalos comerciais, mantendo uma assistência mais contínua, ininterrupta. A assistência da novela na casa de quatro receptoras (Dani, Tarsila, Vânia e Célia) ajudou a esclarecer esses aspectos mais cotidianos e sutis de suas relações com as tramas. O gosto pelas atrizes, para além das personagens, é notório. Elas relacionam as tramas de hoje e do passado a partir dos atores, num ir e vir constante entre ficção e realidade. Parece que a boa imagem de Fernanda Montenegro para Tarsila, por exemplo, faz com que ela goste ainda mais de Bete, e o fato de Célia não gostar de Francisco Cuoco, com que ela não simpatize com Olavo, seu personagem em Passione. Não raras foram as vezes em que, ao falar da personagem, elas citavam o ator ou atriz, dizendo que os personagens mudam de novela para novela, mas que os atores elas sabiam os nomes há muitos anos. Algumas vezes era difícil distinguir se a admiração por determinada personagem era devido ao seu papel na ficção ou à atriz. Essa relação com os atores torna-se também um motivo da preferência pela telenovela. Vânia e Dani assistem às tramas para ver os artistas. Gostam de ver os atores em cena, de comentar 75

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suas atuações e acompanhar suas trajetórias. Sobre isso, Vânia comenta: “Gostava bastante das história delas [das atrizes]. Eu pensava assim... bãi, ele é casado e a esposa ta olhando ele fazer essa cena com as outras atrizes... Eu ficava pensando naquilo... gostava de olhar. Não conhecia, fiquei conhecendo só... Eu quase não saia, né? Só trabalhava.” (Vânia). Para Tarsila e também para Vânia, algumas telenovelas trazem informações, novidades e assuntos interessantes. Tentam “tirar alguma coisa de bom” (Tarsila) dos capítulos e assuntos abordados. Carmen e Maria, diante de universo de opções restrito na programação da TV aberta, consideram as telenovelas a melhor alternativa: “Não tem outros programas... tem programa só de morte, só de coisa ruim, né. Só briga, morte, assalto... então a novela, a única coisa que eu olho é a novela nesse horário” (Carmen). A falta de opções na programação televisiva é também o motivo dado por Maria. Célia gosta de ver o desenrolar das histórias nas tramas, sentese curiosa pelo desfecho dos personagens. Apesar de seu gosto pela novela, ressalta que hoje as tramas estão piores que antigamente: Sabe que agora as novela deixa a gente meia triste, porque já não é novela como antigamente. Eu não sei, eu comecei lendo, o tempo que eu lia... meu marido vinha de Santa Maria e me levava duas revista, do tempo que tinha as fotonovela nas revista, né. Ai, eu disse... como ler desenvolve a gente, né? Eu lia! Ali que eu comecei a pegar gosto pelas novela, pelos enredo das novela, os drama, né? Antigamente as novela eram mais boa. Agora em partes eles fazem mais um pouco na vida real, né? Ah, porque eles dizem, é novela, é novela mas a gente ta vendo em família o que dá, né? Uma coisa que eu não admito essas coisas que fazem criança tão pequena namorando, isso eu não gosto (Célia)

A ideia “a telenovela de hoje já não é como antigamente” foi repetida pelas entrevistadas durante a pesquisa. Além de Célia, Dani, Tarsila e Maria dizem que hoje as tramas não são tão 76

boas, principalmente pela rapidez com que as histórias se desenrolam e pelo mau-caratismo dos personagens. É esse o motivo de Tarsila para não ter gostado muito de Passione. A relação entre realidade e ficção para ela é estreita: diz que, apesar de saber que se trata de uma história inverídica, através da trama se dá conta que o ser humano tem a coragem de fazer trambiques do modo como é mostrado, e isso a incomoda muito “Eu fui criada assim, eu sou assim... eu não gosto quando tem injustiça. Quando ta assim eu paro de olhar” (Tarsila). Ela também acredita que as vigarices mostradas incentivam a população a fazer o mesmo: Se eu tivesse um computador, se eu soubesse...eu ia pegar e passar umas mensagens pra esse autor dessa novela. Já basta o que o povo já tem, a maioria do povo já age assim, ensinando mais vai fazer mais sacanagem com o povo, com o próximo. Se quer, tem vontade, ta mais aprendendo, né? (Tarsila)

Essa associação entre ficção e realidade também foi feita por Dani. Para ela, Passione não poderia ter mostrado a cena em que Fátima procura meios ilegais de realizar um aborto do filho que espera de Danilo, pois isso ensina e incentiva outras jovens a fazerem o mesmo. O mau-caratismo dos vilões Clara e Fred também a incomodam. Ela diz não gostar de assistir a “coisas ruins”, pessoas tentando prejudicar as outras. Não queria que Totó caísse nas armadilhas de Clara e diz ter sentido quando Saulo boicotou o lançamento do novo modelo de bicicletas na fábrica da mãe, prejudicando a família. Por razões dessa ordem, achou a telenovela chata. Esse desconforto de Dani, Maria, Célia e Tarsila para com as tramas atuais talvez se relacione às suas matrizes de leitura, edificadas durante o longo período de suas vidas como telespectadoras da novela. Segundo Junqueira (2008), os mais velhos usam muito mais as chaves de leitura dadas pelas matrizes originais das tramas, enquanto os mais jovens costumam aceitar melhor os desdobramentos mais recentes. Essas matrizes originais são visões de mundo ou padrões lógico-perceptivos-sentimentais preponderantes, adotadas pelas 77

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Para um detalhamento dessa perspectiva, ver Junqueira (2008, p.81).

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tramas desde o início de sua exibição. Junqueira (2008) cita dois: o romantismo-oitocentista (baseado na literatura romântica) e o modernismo-personalista, fruto do movimento literário modernista. O primeiro é marcado pela emoção, subjetivismo, egocentrismo, espiritualismo, liberdade formal, apego à cultura popular, cristianismo, idealização do feminino, amor interno, paixão, etc13. Um bom exemplo seria o enredo de Escrava Isaura (1976). Na trama, há a mocinha virgem, o herói romântico que tenta salvá-la, o anti-herói, bruto e cruel e a exposição de emoções primárias como o amor, ódio, desejo, vingança e redenção. O modernismo- personalista é caracterizado de forma geral pela busca da realidade social brasileira, pelo regionalismo e denúncia da pobreza. Um exemplo marcante seria a novela Beto Rockfeller (1968-1969), ambientada no cotidiano das cidades e campos nacionais, com personagens mais próximas ao brasileiro e tendo um anti-herói como personagem principal. Essas matrizes originais se mesclam e desdobram em várias outras, acompanhando a expansão da teledramaturgia no país. O desenvolvimento do campo de produção das telenovelas torna as tramas bem diferentes, com histórias mais aceleradas, extensão e complexificação dos personagens, aproximação com a realidade do brasileiro e trato de temas cotidianos, muitas vezes por um viés social. Em Passione os personagens são complexos, não podem ser considerados na dicotomia bem X mal. Ao contrário de uma matriz romântica, não necessariamente os vilões têm um fim catastrófico e os mocinhos triunfam. Além disso, a trama problematizou os padrões de moralidade e ética da sociedade. Para o autor, Silvio de Abreu, mostrar situações em que a vilania e o mau-caratismo prevalecem parece ser uma forma de crítica social, de confrontar os telespectadores com a falta de ética e a condescendência para com as atitudes torpes. Passione também trouxe à discussão temas polêmicos como a perversão sexual, gravidez na adolescência, exploração de menores e vício do crack, aproximando a ficção do cotidiano do brasileiro.

As receptoras, audiência das tramas desde a década de 60 ou até mesmo anteriormente à telinha, com as radionovelas e fotonovelas, parecem ler as tramas atuais com as chaves de leitura das matrizes originais, o que as fazem muitas vezes desgostar das novelas de hoje. Para realizar um contraponto, Célia, Maria, Tarsila e Dani acompanhavam também A História de Ana Raio e Zé Trovão, novela veiculada às 22h pelo SBT, reexibição da trama veiculada pela extinta Rede Manchete entre 1991 e 1992. De autoria de Marcos Caruso e Rita Buzzar, a história conta a busca de Ana Raio (Ingra Liberato) pela filha que lhe foi roubada por Canjerê (Nelson Xavier), capataz da fazenda onde o pai de Ana trabalhava, que a estuprou na adolescência. Ana torna-se uma peoa de sucesso e percorre o Brasil em rodeios, quando conhece Zé Trovão (Almir Sater), com quem tem uma história de amor. Entende-se que essa novela se aproxima da matriz romântica das tramas, em que a caracterização do herói, anti-herói e a busca por justiça e o amor romântico são traços marcantes. A relação desta novela com as matrizes de leitura aprendidas pelas receptoras talvez explique a diferença de suas falas em relação à Passione. Algumas delas parecem gostar mais da reexibição do que da trama da Globo, pois consideram esta última um pouco confusa, rápida e com a exibição de muitas maldades, conforme exemplificado pelas falas mais acima. O desconforto das receptoras em relação à falta de ética e injustiça mostrada em Passione, além de aludir a essa matriz romântica de leitura, também diz algo da própria conformação da telenovela. O melodrama e sua adaptação para as rádionovelas, teleteatros e depois telenovelas, torna-se um espaço de resistência da cultura popular (MARTÍN-BARBERO, 2008). Quando sofrem com as maldades feitas por Clara, não se conformam com a injustiça sofrida por Candê e indignam-se com os trambiques de Fred, as receptoras desejam que a justiça prevaleça. Se seus contextos de vida são penosos e desiguais, na trama elas podem se permitir “encenar suas emoções” (IDEM, p.64) e reivindicar um final feliz e justo. Todas acompanhavam a trama das 21h e consideravam a história realista, mesmo que considerassem exagera79

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das as vilanias apresentadas nos capítulos. Célia e Tarsila dizem ficar nervosas com algumas situações que a novela mostra: Mas olha, uma coisa que eu pouco entendo, entendo assim de olhar, essas coisas. Sabe assim que ontem eu fiquei nervosa... porque eu achei assim como é que a pessoa só faz errado, errado, errado como o Fred faz, pegou todo o dinheiro deles e agora vai deixar eles pobre por que, se o pai dele era um baita dum sem vergonha, jogador, que botava o dinheiro deles fora também, né. No fundo, no fundo eles [a família Gouveia] são vítima dele. Porque como a mãe dele disse, eles são vítima... que teu pai não merecia, ele não merecia o que fizeram lá pra ele. Mas teu pai não é tudo o que tu pensa. Que na percepção dele, ele era pequeno, ele acha que o pai dele se matou por causa deles. Mas o pai dele se matou porque devia, jogava, o que ganhava botava fora em jogo. Ele acha que não ganhou a indenização, mas agora a Bete pagou pra ela a indenização, o valor, ela mandou ver todo o valor. E eu acho que é errado, e nem isso, é porque ele é mau caráter, bandido mesmo (Tarsila)

Quadro que existe desde 2008, no programa Domingo Legal (SBT), apresentado antes por Gugu Liberato, atualmente por Celso Portiolli 14

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Célia também cita Fred e a outra vilã da trama, Clara, como personagens que não gosta. No desenrolar da trama, Clara finge regenerar-se perante a audiência, mas seu caráter inescrupuloso é descoberto em um dos capítulos, quando trama a morte de Totó com Diogo. Essa reviravolta foi motivo de desapontamento para Célia, que estava acreditando no bom-caráter de Clara. As imagens, programas e possibilidades mostradas pela telinha se tornam sonhos para algumas entrevistadas. A precariedade da moradia de Tarsila, que corre o risco de ruir, levou-a a enviar uma carta para o quadro Construindo um Sonho14, que tem por mote a reforma em residência de pessoas em situação de dificuldade. Depois de inúmeros apelos aos órgãos públicos – prefeitura, câmara de vereadores – sem ser sequer atendida, parecem ser os programas televisivos a maior esperança de Tarsila para melhorar sua situação de vida. Em um outro momento, ela recorreu a

um programa de rádio da cidade para conseguir uma caixa d’água nova, pois a sua tinha furado e ela não tinha recursos para comprar outra. Ela foi ao programa e fez o pedido ao vivo, que na mesma semana foi atendido. A mídia torna-se um recurso frente a um Estado que poucos direitos efetivamente garante à sua família. Vânia e Dani também tiveram sonhos suscitados pela TV. Vânia gostaria de um dia poder viajar de avião e ir visitar São Paulo, em especial ir a um espetáculo circense produzido pelo ator Marcos Frota. Dani também gostaria de viajar, visitar o Santuário de Aparecida que viu uma vez em um programa de televisão. Os sonhos suscitados pelas receptoras trazem traços do popular como memória (MARTÍN-BARBERO, 1984). A religiosidade, a disposição gregária e abnegada, as características populares que as fazem gostar de determinadas personagens carregam traços dessa memória, uma forma de resistência ao discurso dominante. Frente à hegemonia da abstração mercantil, de uma cultura massificada onde a matriz popular é muitas vezes negada15, elas buscam expressar – e, de certo modo, preservar essa identidade. Conclusões

A negação da cultura popular pode se dar por diversas vias: a classificação do mau gosto das audiências populares, a deslegitimação da cultura dos gêneros narrativos apreciados pelos mais empobrecidos e a rechaça à expressividade popular no momento da recepção. Emoção, tumulto e ruídos são vistos como ausência de gosto, cultura e de educação (MARTÍNBARBERO, 1995).

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Estudar o cotidiano da recepção e os distintos trajetos de leitura da telenovela por receptores idosos auxilia a compreender a relação desse público com as tramas. Apesar da grande audiência e da relação íntima que mantêm com a TV e a telenovela, compreende-se que essa faixa da população é ainda pouco tematizada e pesquisada. Um indício desse fato é a classificação da audiência apresentada pela Rede Globo. As faixas de público são divididas em 04 a 11 anos, 12 a 17, 18 a 24, 25 a 50 e 50 anos ou mais. O público idoso, considerado cronologicamente como aqueles acima dos 60 anos de idade, é desconsiderado em detrimento de uma classificação que toma aqueles com 50 anos ou mais como uma faixa homogênea da população. 81

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Entre elas, podese citar as realizadas pelo Instituto GfK (2007), Instito Somatório (2009), Nielsen (2008), FEA/USP(2010) Instituto Sodexho (20004), Quorum Brasil (2008) e BIP/ Rede Globo (2009). 16

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Um movimento em busca do entendimento desse público foi percebido em uma matéria apresentada pela Rede Globo em 2009, em seu Boletim de Informação para Publicitários (BIP) (REDE GLOBO, 2009). No texto, um amplo perfil de consumo na velhice era traçado, com enfoque para as vivências positivas e gratificantes dessa etapa da vida e possíveis oportunidades de consumo para esse mercado em expansão. Observa-se claramente que o enfoque dado é apresentar o idoso como público consumidor potencial para os anunciantes da telenovela. É o que também apontam muitas outras pesquisas16, que, valendo-se de projeções demográficas e índices socioeconômicos, constroem uma imagem positiva do idoso como consumidor. Acredita-se que a tendência é uma tematização cada vez maior da velhice na mídia e na telenovela, à medida que o crescimento do contingente de idosos se evidencia, a expectativa de vida se alarga e a qualidade de vida melhora, o que proporciona modos renovados e plurais de envelhecer. Contudo, vale refletir se a atenção da telenovela à velhice refere-se apenas a uma positivação dessa etapa da vida com vistas no aumento do consumo ou se há uma atenção real aos velhos como sujeitos e cidadãos. No contexto atual, em que as representações midiáticas tornam-se a pedra de toque do estímulo de uma vivência positiva da velhice e descortinam novas possibilidades de integração e reconhecimento social (DEBERT, 2004, 2008; SILVA, 2008; PALACIOS, 2004), não é possível eximir a telenovela desse papel. Com este estudo, conclui-se que a relação entre idosos e telenovela possui especificidades importantes, especialmente quando se pensa interação cotidiana com a trama. A relação próxima com os meios de comunicação massivos; a assistência contínua dos folhetins ao longo de suas vidas; a ligação íntima entre as receptoras e as personagens/atrizes que interpretam os papéis, configurando uma recepção para além da ficção e a presença de matrizes originais de percepção das tramas são alguns indícios que se conseguiu apreender

nestas linhas. Espera-se que seja um passo, ainda que tímido, para que os estudos de recepção não façam coro à invisibilidade da velhice em sociedade e se aprofundem no estudo junto a esses receptores.

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Mídia, Identidade e Representação: Uma análise da publicidade televisiva da cerveja Polar Export

Leandro Stevens, Doutorando do Programa de PósGraduação em Comunicação e Informação pela UFRGS. Mestre em Comunicação Midiática e Graduação em Comunicação Social, habilitação Publicidade e Propaganda e Administração pela UFSM. E-mail: [email protected] Ada Cristina Machado da Silveira é Pós-doutora na Université de Paris III com estágio pós-doutoral na Sorbonne III (La Nouvelle). Realizou Doutorado em Periodismo na Universidad Autonoma de Barcelona (Espanha). É. Professora Associada II (UFSM) e atual Chefe de Departamento de Ciências da Comunicação na Instituição. Pesquisadora do CNPq, coordena o NP de Políticas e Estratégias da Comunicação (Intercom) e integra o Conselho editorial da Revista Animus (UFSM). Atuou como avaliadora ad hoc no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais-INEP. E-mail: [email protected]

Resumo: A publicidade televisual apropria-se das características do meio, buscando promover, através de seus discursos, uma identificação com o público. O uso intensivo de recursos técnicos da linguagem audiovisual busca converter os telespectadores em consumidores de seus produtos, lançando mão, muitas vezes, das culturas regionais. Este artigo é um recorte da dissertação homônima e pretende levantar quais são as competências discursivas do processo de identificação que vinculam a publicidade televisual da cerveja Polar ao público gaúcho. A justificativa do trabalho centra-se na crescente importância dos estudos das identidades contemporâneas e na relação desta com as mídias e suas práticas comunicacionais, especialmente a publicidade televisiva. Os resultados revelam que a identidade gaúcha aparece como o elemento responsável pela identificação do público por representações cuidadosamente planejadas através de uma construção verbal e não-verbal da publicidade televisiva por meio de expressões, planos, falas e personagens, na qual se destaca: o regionalismo gaúcho, a masculinidade, o apego a terra e às tradições e a constante exaltação do que é próprio do Rio Grande do Sul. Palavras-chave: Mídia; Identidade; Representação; Publicidade Televisiva; Cerveja Polar. Abstract:The televisual advertising appropriates the characteristics of the environment, to promoting, through their speeches, an identification with the public. The intensive use of technical resources of the audiovisual language seeks to convert viewers into consumers of their products, relying often of regional cultures. This article is an excerpt of the same name dissertation and aims to raise what are the discursive powers of the identification process which bind the Polar Beer televisual advertising to the gaúcho public. The reason for this study focuses on the growing importance of the studies of contemporary identities and in this respect with the media and their communicative practices, 89

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especially television advertising. The results show that the gaúcho identity appears as the element responsible for identifying the public representations by means of a carefully planned construction verbal and nonverbal television advertising by means of expressions, planes, lines and characters, which stresses: regionalism, masculinity, attachment to land and the traditions and the constant excitement of what is proper of Rio Grande do Sul Key-words: Media; Identity; Representation; Television advertising; Polar Beer.

Estudos Culturais e Representação Midiática A mídia, como um espaço de lutas simbólicas e de reapropriações a partir de uma experiência particular do cotidiano, promove suas representações – seus textos, seus discursos, suas imagens – relacionados-as diretamente aos significados que permitem aos sujeitos interpretar, conhecer, reconhecer, contestar e agir no mundo social, constituindo e modificando, constantemente, as noções de consumo cultural, recepção e usos sociais dos bens simbólicos produzidos pelos meios de comunicação. A publicidade, como parte desta mídia, exprime em seus discursos os modos de ser, fazer, sentir, pensar, crer. Atualmente são criticáveis no fenômeno da comunicação midiática, não tanto os seus conteúdos, mas os próprios meios como instrumentos de expressão. Como argumenta Peruzzolo (2006, p.157) “é a forma da relação de comunicação assumida e institucionalizada que condiciona a mensagem”, em outras palavras, é o lugar que ocupam na produção dos sistemas simbólicos, da cultura. O que se espera é que as representações midiáticas possam configurarse como o lugar de construção de discursos, oportunizando um ambiente social diversificado, com variedade de experiências e riqueza cultural (no sentido de variedade das trocas simbólicas). Em termos de influência das condições capitalistas de produção e do mercado de massa sob as mercadorias culturais, 90

é evidente a necessidade de se pensar tanto o contexto cultural da produção do discurso, quanto o da leitura pela recepção, que também produz, afinal, seu próprio sentido. É por essa condição de análise que se pode questionar, por exemplo, o quanto um discurso publicitário que faz uso de uma representação da identidade regional (de acordo com o que o produtor acredita ser a representação da identidade regional) corresponde realmente à concepção de identidade regional sob o ponto de vista desse público. A publicidade enquanto representação midiática nasceu estrategicamente como solução à necessidade de aprimoramento das transações comerciais, não apenas diminuindo a resistência dos consumidores, mas também motivando e fazendo circular na sociedade os desejos de consumo de diferentes grupos sociais. E conforme foram se aperfeiçoando e diferenciando as sociedades e seus valores, também a publicidade precisou se transformar – aprimorando suas técnicas. Crescendo e se fortalecendo na intenção de modernizar e, permanentemente, reestruturar suas estratégias de identificação com seus públicos, a publicidade pode conceber identidades (para idealizar perfis de consumidores para seus produtos/serviços e marcas) ou se apropriar daquelas existentes, mas, invariavelmente, seu produto cultural é resultado da reordenação de signos já dispostos pelos diferentes grupos sociais e seus bens simbólicos. Para conseguir falar com seu público o anunciante deve compreender o consumidor e o seu universo de identificações, fazendo com que o discurso publicitário chegue até ele da maneira mais oportuna possível. Todo discurso publicitário é necessariamente construído de acordo com as intenções mercadológicas planejadas pelo anunciante que, por sua vez, estão de acordo com as intenções de consumo – com os interesses sociais e simbólicos – de um determinado grupo social, designado como o público-alvo desse anunciante (dos seus produtos/serviços ou marca), com o qual ele se identifica de alguma maneira. As intenções do discurso publicitário podem ser compreendidas pelo público visado, resultando assim na persuasão deste, conforme sua percepção/interpretação. 91

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A representação identitária do regionalismo no Rio Grande do Sul (RS), evidenciada pelo discurso publicitário traz uma leitura própria de cada anunciante, de acordo com cada público-alvo. A questão identitária permeia ativamente a vivência humana, seja subjetivamente, seja nas trocas sociais. Neste sentido, é dentro da mídia que as identidades buscam e definem espaços, relacionando-se com os mais diferentes temas, como classe social, cultura, raça, etnia, seita ou religião, língua, ideologia política, sexualidade, entre outros. Identidade e Cultura Regional Gaúcha A cultura é como o homem e a sociedade que o cerca organizam os modos de vida e, assim, suas diversas práticas e significados. “É o processo de utilização da linguagem para construir significados, que se dá por meio de sistemas de representação, que são a forma como os homens representam o mundo” (HALL, 1997, p.35). A representação, portanto, é como construímos os significados, sendo a identidade como nos representamos aos outros. Essa identidade, nesse jogo de pertencimento, possuidois lados: de um lado a identidade globalizante com a padronização de produtos e padrões e, de outro lado, as culturas locais, promovendo um constante deslocamento para o que é próprio (“pertence”) a um detrminado local/região. Entender esta relação nos auxilia na compreensão das práticas midiáticas. A cultura gaúcha é heterogênea, baseada em heranças e apropriações de povos que fizeram e continuam ajudando a fazer a história do Estado que, apesar de assumir características diferenciadas de acordo com a região e os diferentes grupos étnicos que aqui habitam, a idéia popularizada de cultura gaúcha é baseada na figura hegemônica do gaúcho, conforme Silveira (2003). Ela é elaborada a partir de elementos emblemáticos (o passado rural e a figura do gaúcho) onde fica clara sua conformação como demarcadora e legitimadora da representação cultural sul-riograndense. Conformação essa que, como em uma 92

via de mão-dupla, ao mesmo tempo em que se viu fortalecida através de sua incorporação pelos discursos midiáticos, alcançou uma consagração relativamente forte, coagindo certas tentativas de homogeneização discursiva desse campo. Ou seja, o fortalecimento identitário regional – apoiado por textos provenientes de diferentes mídias – estabelece que em determinados momentos se fale aos gaúchos de uma maneira que necessariamente só se fala aos gaúchos. Em síntese, não somente o conteúdo do discurso, mas também a maneira como ele é dito, dado, apresentado, como são dispostos seus elementos argumentativos – enfim, a forma pela qual é realizada a sua ordenação – é absolutamente fundamental na construção dos sentidos pretendidos pelo emissor da mensagem. Segundo Jacks (2003) no contexto da indústria cultural gaúcha e do resgate da identidade regional, a publicidade desempenhou um papel bastante importante, na medida em que se utilizou fortemente da linguagem regional em suas campanhas. Seguindo a mesma perspectiva, a que acredita que os meios de comunicação em geral podem construir ou consolidar identidades culturais, trata-se aqui a publicidade como um dos vetores desse segmento que pode desempenhar esse papel. Assim a “publicidade gaúcha [pode] ter influído, ou pelo menos participado do movimento de afirmação da identidade regional, através da incorporação de valores culturais e regionais para vender produtos ou serviços de seus clientes”. A gauchidade constitui-se, pois, como uma identidade de concepção tipicamente moderna. Ou seja, um regionalismo – sob a doutrina mítica do gaúcho, em função do seu caráter localizado, adequado ao contexto sul-riograndense, toma frente do papel identitário político que a alegoria nacionalista não conseguia – e ainda hoje não consegue – cumprir satisfatoriamente. Segundo Lisboa Filho (2009), o sufixo “(i)dade” designa qualidade, enquanto o sufixo “ismo” acrescenta a palavra um novo sentido, além de representar movimentos políticos, sociais e econômicos. Assim, concordamos com este autor em utilizar o primeiro 93

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sufixo para investigar as qualidades enquanto comportamentos, valores e as diversas formas discursivas de representação gaúcha. Publicidade Televisiva A televisão como meio de produção, circulação e consumo de imagens audiovisuais funciona como uma máquina discursiva com infinitas possibilidades de seleção, combinação de estratégias com objetivos de mercado, o que despertou – e segue despertando – grande interesse da publicidade. Além disso, “é fácil perceber que a mídia TV atinge praticamente a totalidade da nossa população com mais de 15 anos, de todas as classes sociais. Sob o ponto de vista comercial, não há nenhum outro meio de comunicação com tamanha abrangência e cobertura” (FREITAS, 2007, p.12). Pensando então na publicidade como uma ação de estimulação de desejos. É evidente que a junção publicidade/televisão tem conseguido resultados insuperáveis: um produto anunciado em horário nobre, em uma emissora de grande audiência, atinge, com velocidade a instantaneidade, 90 milhões de brasileiros, o que nenhuma outra mídia consegue com tanta eficiência (CASTRO, 2007, p.125-126).

A televisão cria condições para trocas desterritorializadas, produzindo um campo de experiências culturais muito específicas. O próprio desenvolvimento das funções disponíveis nos aparelhos dá possibilidade de novos usos e apropriações no interior do lar e sua relação com o cotidiano da família. Ela é meio publicitário eficiente, pois concentra um grande número de pessoas e, além de ter uma rápida difusão com uma programação diversificada que atrai diversos públicos, ela dispõe de diversas estratégias de discurso devido a sua materialidade. Ou seja, tem um forte papel no contexto social e cultural, além de possuir uma linguagem visual e sonora, dando a possibilidade a discursos 94

mais complexos: “A televisão tem uma riqueza simbólica com as características da interação face a face: os comunicadores podem ser vistos e ouvidos.” (THOMPSON, 2002, p.85). Televisão e publicidade sempre estiveram juntas no Brasil. No início com as garotas-propaganda na televisão ao vivo e depois em comerciais gravados, chamados de video-tape ou VT. A verossimilhança trazida pela TV despertou o campo da publicidade. E, mesmo que o tempo representado não seja o atual, seu poder de referencialidade foi uma grande contribuição para a propaganda. Para Rocha (1995, p.26) “a publicidade retrata, através dos símbolos que manipula, uma série de representações sociais sacrilizando momentos do cotidiano. [...] Aí, nesse jogo de representações, o cotidiano se faz vivo, se faz sensação, emoção, mágica. [...] Faz do consumo um projeto de vida.” O consumo é entendido aqui como “o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e o uso dos produtos” (CANCLINI, 2005, p.53). Através de suas imagens e texto cuidadosamente elaborados para um fim específico, aliam-se a questões sociais, culturais e econômicas, sendo que o discurso transita por elas. “Pela publicidade um produto múltiplo e impessoal se transforma em algo único, nomeado, particular, próprio de cada consumidor” (ROCHA, 1995, p.60) dando ao produto nome e sobrenome. Assim, os diversos produtos realizam o que Rocha (1995) chama de “jogo de diferenças e contrastes”. Cada produto semelhante enquanto funcionalidade, busca valores, atribuições para promover a diferença e o contraste. A cerveja, por exemplo, além de ser um produto bastante segmentado, dando poucas condições para a mudança de valores, deve procurar estratégias de diferenciação dentre a tantas concorrentes. Estudar os produtos televisivos como a publicidade em relação aos processos culturais demonstram como se apresenta a identidade nas representações midiáticas. “Las cuestiones relatuvas a la identidad han pasado a ocupar un primer plano en 95

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el ámbito de los estudios culturales, la televisión, como forma suprema de la comunicación en las sociedades occidentales, es una de sus preocupaciones más antiguas.” (BARKER, 2003, p.20). Assim, a publicidade é um agente de desconstrução e reconstrução das identidades culturais. Barker argumenta que as identidades são construções sociais que não podem existir fora das representações e da cultura. Essas identidades são também construções discursivas que podem operar no global e no local. Mercado Consumidor Gaúcho Num mercado que busca pelo novo e pelo diferente, a comunicação é o motor de inserção de localidades ou uniformidades, mediadas pela mídia, causando uma revolução nas identidades. Assim, a publicidade, adequando-se as estratégias de suas empresas idealizadoras, termina por ser a ponta deste fio, a parte com a qual o consumidor tem contato. Assim, esta disputa entre localidade e globalidade ocorre nas diversas relações onde o espaço local está conectado globalmente com o mundo, principalmente por empresas que buscam uma produção de bens e produtos homonêgenos e que chegam a utilizar a temática local, somente se necessário, para atrair e conquistar o novo. Segundo a Revista Veja (PAULIN, 2009), na reportagem “O Marketing da bombacha: Para uma empresa fazer sucesso no Rio Grande do Sul, ela tem de ser gaúcha ou, pelo menos, parecer gaúcha”, diversas empresas levaram em consideração a identidade e a cultura gaúcha para inserirem seus produtos e sua marca no RS e, conseguir uma aproximação com estes consumidores. De acordo com a reportagem, o orgulho que os gaúchos tem de sua terra e das tradições é um elemento identitário que não pode ser descartado na elaboração das estratégias comunicacionais. Segundo a matéria, o Magazine Luiza adotou esta estratégia de localização em 2004 ao comprar 43 filiais das Lojas Arno, 96

mantendo este nome. As pesquisas que haviam encomendado indicavam que precisavam fazer esta conexão para os clientes gaúchos e que, se mudassem de nome diretamente, correriam o risco de perder quase dois milhões de clientes. Já a rede de supermercados estadunidense Wal-Mart, que em três anos se tornou líder do mercado gaúcho, nem sequer cogitou, em 2005, em trocar de nome os mercados que havia adquirido: Nacional, Big e Maxxi Atacado. Por outro lado, as Casas Bahia que inauguraram em 2004 as primeiras filiais no RS, utilizando-se do mesmo modelo de marketing com o qual conquistaram consumidores em todo o Brasil. O fato de haverem tornado-se a maior empresa varejista de móveis e eletrodomésticos do Brasil, no entanto, não foi suficiente. De 27 lojas no Estado, em meados 2008, a empresa regrediu a apenas seis pontos e, a partir de janeiro de 2010 não possuía nenhum ponto de venda no RS. Depois de encomendar uma pesquisa para descobrir as razões do insucesso, apontou-se que a empresa deveria ter adotado estratégias locais para sua inserção no mercado gaúcho. Reiterando que nosso tema de pesquisa concentra-se na apropriação da identidade cultural em comerciais televisivos, fazse importante ponderar como o antropólogo Ruben Oliven (1992, p.47) a entende. Ele afirma que a cultura regional do Rio Grande do Sul é marcada pela “ênfase das peculiaridades do estado e a simultânea afirmação do pertencimento dele ao Brasil”. Segundo o autor, este é um dos principais suportes da construção social da identidade gaúcha. A posição singular em relação ao Brasil se deve ao isolamento geográfico do estado, à integração tardia, às características geográficas, à forma de seu povoamento, a sua economia e ao modo pelo qual se insere na cultura nacional. Todas estas características próprias e peculiares contribuem para a construção da identidade do Rio Grande do Sul, sobretudo na representação mitificada da figura do gaúcho, apesar da presença étnica de descendentes africanos, alemães, italianos, açorianos, índios e de uma minoria de outras etnias como poloneses, judeus, árabes e japoneses. 97

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O objeto de investigação: o comercial da cerveja Polar A escolha de nosso objeto de análise deve-se, primeiramente, a vontade de se estudar a identidade gaúcha e sua representação nos comerciais televisivos, logo o objeto deveria atuar no território em questão, ou seja, no Rio Grande do Sul. Como também queremos estudar a relação global/local da publicidade, este deveria ter propriedades nesta instância, e a cerveja Polar é um produto de uma empresa transnacional, a AmBev. Assim, escolhemos um comercial televisivo da cerveja Polar que acreditamos reunir todas estas características. Além disso, os comerciais deste produto diferenciam-se dos demais, não apenas por veicular apenas em um Estado da federação, mas por afirmar o regionalismo muitas vezes não compreendidos por outros públicos, por utilizar expressões gaúchas e contextos próximos aos habitantes sulistas além de serem produzidos estrategicamente para se identificar com o público a que se destina. Metodologia Nossa metodologia é composta por quatro etapas e tem no discurso publicitário a sua base. A primeira etapa é o levantamento dos dados do audiovisual para que se possa conhecer o objeto que se está investigando a que empresa pertence, qual o produto que representa etc. A segunda etapa é a decupagem em roteiro publicitário para que o leitor possa ter uma idéia da narrativa do comercial. A terceira é a utilização de um quadro de descrição de VT publicitário que possui cinco tópicos descritivos: visualidade, sonoridade, mobilidade, iconografia e cor e, por último, presença de marca. Por fim, a quarta etapa é a análise das categorias que estão baseadas nas apresentadas no percurso gerativo de sentido de Greimas e Courtés. São elas: temporalização, espacialização, actorialização, figurativização e tematização. Para uma análise mais completa adicionamos mais uma categoria: expressão sonora e verbal. 98

Análise do Objeto Como este artigo é um recorte da dissertação, utilizaremos apenas parte da análise de um dos comerciais analisados. 1 Dados do Audiovisual a)Anunciante: AmBev b)Título: Carioca c)Produto: Cerveja Polar d)Slogan: Polar. A melhor é daqui. e)Agência: AlmapBBDO f)Peça: VT 30” g)Data: 20061 h)Histórico da empresa/anúncio: Atualmente a cerveja Polar é uma marca de uma empresa global, a Ambev, mas que mantém a cerveja como um produto local. Com o nome de Cervejaria de Estrela/RS foi fundada em 10 de outubro de 1912. Já em 1945, a empresa foi incorporada por um grupo de santacruzenses e passou a denominar-se Polar S/A (SANTOS, 2010). Em 1972 a Polar S/A foi adquirida pelo Grupo Antarctica Paulista e, em 19 de abril de 2000, foi efetivada a mega-fusão das cervejarias Brahma e Antarctica (e da Polar, por consequência).

Disponível em:< h t t p : / / w w w. pixel2.com.br/ bembolado/?p=64> Acesso em: 15 ago. 2010

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2 Decupagem em Roteiro Publicitário

Quadro 01: Decupagem do comercial “Carioca” Fonte: Próprio autor.

3 Quadro de descrição de VT publicitário O quadro de descrição encontra-se nas próximas duas páginas, com descrição mais detalhada do plano 2 e do plano 9. 100

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4 Análise das Categorias A análise das categorias do comercial “Carioca” segue abaixo. 4.1 Temporalização Não há um tempo determinado ou uma data em que ocorre o fato. É, provavelmente, um dia de uma estação quente. A história deste comercial acontece em um bar e é bastante simples. São dois amigos que conversam informalmente sobre a qualidade da cerveja, exaltando-a. Outro homem que está próximo a eles também começa a falar sobre a qualidade da cerveja que bebe, mas este não está com eles, é uma pessoa desconhecida. Ao falar, com sotaque diferente dos dois amigos, ele revela sua intenção de levar a cerveja junto consigo para outro estado brasileiro. Neste momento, um dos amigos aperta um botão vermelho ao lado do balcão do bar, abrindo um buraco no chão no qual o homem cai e desaparece. Eles comentam sobre este homem dizendo que essa cerveja não sai daqui, ou seja, não sai do Rio Grande do Sul. O comercial intitulado “Carioca” possui uma única cena com 12 planos durante os seus 30 segundos de duração, totalizando 0,46 planos por segundo, o que demonstra ser um VT não muito dinâmico, com planos mais longos (geralmente isso ocorre devido a falas mais longas, como neste caso, que temos dois planos de mais de 7 segundos). 4.2 Espacialização Quadro 02: Quadro de descrição do comercial “Carioca” Fonte: Próprio autor. Imagens YOU TUBE.

Já que a cerveja Polar é vendida exclusivamente no Rio Grande do Sul, subentende-se que a história do comercial se passa em um bar do Estado e, pelo sotaque dos personagens, provavelmente se passa em Porto Alegre. A iluminação por sua vez procurou auxiliar na iconocidade fotográfica e, assim, a veracidade que esta normalmente representa. O cenário também auxilia na caracterização da jovialidade por registrar um bar e, assim, ser mais 103

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O ator se chama Diego Medina, nascido em 29/07/1977, é ilustrador, músico e garoto propaganda de “ceva” como coloca em seu site www.diegomedina.com.

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Seu nome é Ricardo Kudla,Ttmbém é músico e trabalha como baixista e vocalista de uma banda.

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Conhecido nacionalmente como Marcelo Madureira, nome artístico de Marcelo Garmatter Barretto, nascido em 24/05/1958.

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O programa Casseta & Planeta tem sua base na crítica à política, sendo que eles, geralmente, realizam suas piadas de grupos étnicos, religiosos, políticos, famosos ou grupos específicos (como bêbados, gaúchos, argentinos etc.) e sobre acontecimentos atuais.

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fácil de representar o tempo de descontração do jovem, auxiliando na identificação deste para com os personagens e o comercial. A ambientação refere-se ao típico bar brasileiro com mesas e cadeiras e uma bancada junto à copa. Essa contextualização situa melhor o público-alvo principal de cervejas no Brasil, os homens. A cerveja Polar acaba por delimitar este público para o homem jovem gaúcho. Assim, um ambiente com várias pessoas (jovens), sentadas, em pé, garçons, freezers, prateleiras etc. Aqui a publicidade também utiliza a ambientação para divulgar sua marca utilizando a frente dos freezers, os rótulos dos copos e das cervejas, o primeiro e último plano do comercial etc. Estas estratégias auxiliam na lembrança da marca e do nome do produto, assim como as cores que mais se destacam no comercial, em geral o amarelo. Estas representações tornam o espaço mais real e mais próximo de identificação daqueles que a assistem. Como o bar também é um local para conversar, encontrar os amigos e ter bons momentos, além de beber ou comer algo, é uma construção de amizade. Assim, todos aqueles que assistem os comerciais com este tema, reconhecem estes bons momentos de amizade. 4.3 Actorialização Neste comercial aparecem três personagens. Os dois primeiros que aparecerem é a dupla de garotos-propaganda da cerveja Polar. O primeiro deles é um homem de cabelo escuro, com barba não muito expressiva que aparenta ter entre 30 e 35 anos de idade. Seu linguajar, sua aparência e seu modo de agir configuram um personagem jovial, sem rugas, cabelos brancos ou roupas mais formais2. Já o outro é loiro e aparenta ser um pouco mais jovem3. Ambos realizaram diversos trabalhos no estado e são figuras, possivelmente, reconhecidas por jovens da capital gaúcha, já que ambos são músicos. Sua notoriedade serve também como testemunho ao produto que são garotos-propaganda. Como são gaúchos, seu testemunho

ganha peso e falam com os “estrangeiros”, no caso representado pelo carioca. Além disso, os garotos-propaganda representam o fenótipo branco que remete aos colonizadores europeus do Estado. A escolha do outro personagem4 é curiosa. Trata-se de um ator de um programa de TV da Rede Globo chamado Casseta & Planeta5. Neste programa todos os apresentadores criticam, ironizam e procuram tirar vantagem de pessoas das ruas, de artistas, políticos enfim, se utilizam do humor. Já no comercial o prejudicado é o próprio humorista, o que nunca acontece no programa de TV. Ou seja, o produto e a marca através dos garotos-propaganda conseguem o inusitado, o inesperado. Além disso, apesar de não ser carioca – o que muitas pessoas desconhecem – ele mora no Rio de Janeiro. Os personagens principais dos comerciais da cerveja Polar não são especialmente bonitos ou chamam atenção pelo físico, mas promovem uma grande empatia do público jovem pelos gestos, pela maneira de falar e agir e, principalmente por representarem o jovem gaúcho. O perfil dos personagens representa características pré-determinadas por quem as planejou para conseguir uma identificação rápida com o público, tanto que outros comerciais da cerveja Polar utilizaram bordões que acabaram sendo utilizados pelos jovens da capital. Os gestos dos personagens também ajudam bastante para intensificar o que é falado e, como o comercial tem apenas 30 segundos, deve-se utilizar diversos recursos para deixar a mensagem que se quer. 4.4 Figurativização A figura que representa a cerveja Polar e que é identificada pelo público-alvo do produto é o jovem, descontraído, informal, estudante ou em início de carreira, que gosta de se divertir, encontrar com os amigos, viajar, curtir a vida, conhecer pessoas, ou seja, o típico jovem gaúcho da capital (ou de cidades maiores) que tem o hábito de ir a bares para se divertir. O universo masculino é predominante, promovendo a legitimidade da cerveja que aqui 105

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também demonstra a legitimidade da figura masculina do gaúcho. Acreditamos que o público-alvo da propaganda (o homem, jovem e gaúcho) se identifica na personificação de personagens que têm no regionalismo seu maior apelo, acompanhado pela qualidade da cerveja e de sua masculinidade. Diferentemente de outras marcas de cerveja, a Polar não costuma se utilizar da beleza e da sedução feminina ou da festa na praia como a maioria dos comerciais destes produtos. Esta estratégia regional auxilia na diferenciação da marca e na aproximação com seu público-alvo. O objeto da propaganda, ou seja, da cerveja Polar, neste comercial representado pela garrafa e pelos copos de cerveja, aparecem diversas vezes, mas o que chama atenção é que eles aparecem no primeiro e no último plano com maior destaque. Essa é uma estratégia muito comum no meio publicitário para a memorização do produto. Assim, o produto é o primeiro a aparecer para que o consumidor saiba sobre o que está sendo falado, e é o último para que o mesmo fique com a imagem fixada, auxiliando na memorização da marca. O figurino auxilia no predomínio da cor do comercial que se quer, já que a maioria dos planos são próximos, o que acaba por contribuir para a caracterização dos personagens: dois jovens, “descolados”, roupas alegres e; outro mais velho, com camiseta cor rosa. São roupas coloridas, onde o vermelho e o azul podem representar os times mais conhecidos do RS: Internacional e Grêmio. Mas, o outro personagem utiliza uma camisa rosa, colocado, provavelmente, com o propósito de emprestar feminilidade do personagem, visto que o gaúcho, pela sua história, é o bravo guerreiro. 4.5 Tematização Como este comercial é um tipo de disputa entre pessoas, aqui representados por dois estados brasileiros, é de grande importância o repertório verbal de cada um. São as expressões que permitem a identificação dos personagens, já que o fenótipo dos três atores é se106

melhante. Assim, a tematização refere-se a uma conversa informal de bar, porém aqui o caráter de disputa pela cerveja Polar é o diferencial. O comercial demonstra os atributos da cultura gaúcha como a alusão à terra, ou seja, ao que é próprio do RS, aqui é representado pela cerveja Polar, que é propriedade exclusiva dos habitantes deste território; a luta pelos ideais, que aqui é representado por não deixar a cerveja sair do Estado; o guerreiro e a luta, aqui representado pelos garotos-propaganda que utilizam de seus meios para expulsar o forasteiro. Assim como na Revolução Farroupilha, o inimigo é a própria nação brasileira, antes representado pela Coroa e agora pelos indivíduos de outros estados que procuram “roubar” a cerveja Polar, apresentada como patrimônio gaúcho assim como o chimarrão e o churrasco. Os comerciais da cerveja Polar fortalecem o sentimento regionalista, motivando o público a manter este regionalismo, sendo esta uma estratégia de apelo local. 4.6 Expressão Sonora e Verbal O modo de falar do gaúcho é bastante peculiar, com diversas expressões e palavras provenientes da região dos pampas que compreende parte do Brasil, Uruguai e Argentina, que ora assemelha-se ao espanhol, ora português e por vezes da união destes, o chamado portunhol. Algumas expressões são bastante conhecidas (até por moradores de outros estados) e acabam por caracterizar os gaúchos como o “Bah” e o “Tri”, bem como abreviaturas mais recentes e modernas como “ceva” utilizadas principalmente pelos jovens. Estas expressões servem para demarcar cada um dos três personagens diferenciando os dois amigos do outro personagem “estrangeiro”. Por outro lado, o personagem carioca utiliza outras expressões para diferenciar dos gaúchos o que auxilia da diferenciação e na disputa de ambos.

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Considerações Finais Nos estudos de Hall, a identidade aparece como o elemento responsável pela contextualização dos indivíduos caracterizados, entre outros aspectos, pela história e cultura do grupo social em que vivem. Ao mesmo tempo, estes indivíduos negociam com novas culturas, através de um jogo de influências estimulados pelo processo de globalização. A representação, por sua vez, é aquilo que o indivíduo materializa do contexto que o cerca e de si mesmo, permitindo a constituição dessa identidade. As representações da mídia (como a televisão) e as identidades articulam, inseparavelmente, num labirinto de imagens e sons que promovem encantamentos em busca de seus objetivos de mercado. Assim, a publicidade televisiva exerce um papel de criar representações que negociam com as identidades dos indivíduos, o qual acaba por reconhecer-se nela num ciclo interminável, pois, quanto mais a vida social se torna mediada por imagens da mídia nos sistemas globais e locais de comunicação, mais estas identidades se tornam desvinculadas de certos aspectos da cultura e da história, tornando-se parte da própria publicidade. Muitas vezes as escolhas da publicidade, materializadas em suas representações, tornando a gauchidade em mercadoria. A indústria publicitária procura atrair seu público e dispõe de uma variada gama de estratégias para cumprir suas metas. Esta promove um jogo de influências sob a ótica capitalista buscando, através do contexto cultural e de uma cuidadosa produção de discurso, antecipar a leitura da recepção, maximizando a identificação do público-alvo com seu produto. Para isso utiliza-se de representações que acabam por utilizar a identidade regional ao seu favor, atendendo aos seus interesses mercadológicos. Quanto mais o anunciante consegue compreender o universo da identidade de seus clientes, melhor poderá utilizar as estratégias discursivas em suas representações e construí-las para que seus produtos atinjam as 108

intenções de mercado planejadas. Assim, os comerciais da cerveja Polar mostram-se como peças de grande identificação com o público gaúcho por diversas competências discursivas expostas acima, demonstrando que a publicidade se planejada conforme a cultura e as características do local onde atua podem trazer bons resultados, o que justifica a investigação dos estudos culturais, da publicidade televisiva como campo de estudo e da análise do discurso publicitário.

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A telenovela pela perspectiva das receptoras: representações do feminino em Passione

Renata Córdova é Jornalista formada pela UFSM e Mestre em Comunicação Midiática também pela UFSM. Atualmente, integra a equipe de Jornalistas da Assessoria de Comunicação da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – Diretoria Regional do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected] Veneza Mayora Ronsini é Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, com bolsa-sanduíche na University of Califórnia. Atua como professora da Universidade Federal de Santa Maria, onde coordena o grupo de pesquisa Mídia, Recepção e Consumo cultural. É pesquisadora do CNP e vice-coordenadora do Mestrado em Comunicação da UFSM. Membro do conselho editorial das revistas Animus (UFSM), Fronteiras (Unisinos), Revista contemporânea (UFBA), Formas e linguagens (UNIJUI) e da E-Compós (Brasília). E-mail: [email protected]

Resumo: Este texto tem o objetivo de refletir sobre a forma como mães e filhas das classes populares elaboram a sua noção do feminino a partir da telenovela Passione. A metodologia mescla a etnografia da recepção com o modelo encoding/ decoding de Stuart Hall. A partir das categorias trabalho, sexualidade e maternidade analisamos a narrativa da telenovela e as falas das entrevistadas a respeito do feminino. Os resultados apontam que a maternidade é a categoria cuja representação está mais presa a um imaginário socialmente aceito. É nessa categoria que a telenovela menos consegue propor novas possibilidades para o feminino e o pouco que propõe não é aceito pelas receptoras. Palavras-chave: Recepção. Telenovela. Representações. Feminino. Abstract: This text aims to reflect on how mothers and daughters of the working classes elaborate his notion of the feminine from the telenovela Passione. The methodology blends ethnography of reception with the model encoding/decoding of Stuart Hall. From the categories work, sexuality and motherhood we analyzed the narrative of telenovela and the words of the respondents about the feminine. The results suggest that motherhood is the category whose representation is more attached to an imaginary socially acceptable. In this category the telenovela can not offer new possibilities for women and the little that suggest is not accepted by the receivers. Keywords: Reception. Telenovela. Representations. Feminine.

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Passione estreou no dia 17 de maio de 2010, na Rede Globo, no horário das 21h. A trama foi escrita por Sílvio de Abreu e teve direção de Denise Saraceni. Passione uniu três gêneros característicos da obra de Sílvio de Abreu: o melodrama, a comédia e o policial. A história central da telenovela se desenvolveu em torno do drama protagonizado por Bete (Fernanda Montenegro) e o filho Totó (Tony Ramos), que ela acreditava ter morrido no parto. Cinquenta e cinco anos após ter enterrado o primogênito, Bete descobre que seu marido havia mentido durante todo o casamento. No leito de morte, Eugênio (Mauro Mendonça) confessou ter entregado o filho de Bete para um casal de italianos que trabalhava em sua casa. A revelação do segredo é presenciada por Clara (Mariana Ximenes), falsa enfermeira que toma conta de Eugênio. Clara é namorada de Fred (Reynaldo Gianecchini) e os dois planejam dar um golpe no filho de Bete para ficar com sua herança.

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A amostra da pesquisa foi composta por: Helena, 51 anos, divorciada, costureira, mãe de uma filha; e Luiza, 22 anos, solteira, atendente em uma loja de roupas, não possui filhos. Eleonora, 47 anos, casada, dona de casa, mãe de três filhos; e Fabi, 20 anos, casada, babá, mãe de um filho.Vera, 47 anos, casada, empregada doméstica, mãe de quatro filhos; e Julia, 19 anos, solteira, estudante, não possui filhos. Os nomes das entrevistadas foram trocados por pseudônimos que elas escolheram.

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Introdução A telenovela no Brasil possui características específicas, pois é uma forte indústria que movimenta uma gama de profissionais e proporciona grandes lucros às emissoras de televisão. Esse produto midiático é capaz de gerar tendências e pautar conversas devido a sua ampla difusão em todas as camadas sociais (ALMEIDA, 2003, p. 24). Além disso, a telenovela leva os receptores a lugares, mundos e narrativas diferentes, mas, ao mesmo tempo, faz com que eles se reconheçam nas histórias e dramas ali apresentados. Para Kellner (2001, p. 9), a mídia fornece “o material com que as pessoas forjam sua identidade”. As telenovelas, por exemplo, fornecem um arsenal de personagens passíveis de identificação que não são uma imagem única do feminino. Há diversas (e contraditórias) maneiras de se retratar a mulher, contudo algumas formas são culturalmente mais legítimas do que outras. O objetivo deste texto é refletir sobre a forma como receptoras das classes populares elaboram a sua noção do feminino a partir da telenovela. Os dados que ilustram o artigo foram obtidos a partir de uma etnografia da recepção realizada durante a exibição da telenovela Passione1 com três mães e suas respectivas filhas2 residentes na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. O percurso metodológico Para Clifford (1998, p. 20), a prática da etnografia produz “conhecimento a partir de um intenso envolvimento intersubjetivo”. Esse processo de longa duração de coleta e análise de informações mescla diferentes técnicas para que se estabeleçam relações, a amostra seja selecionada e os caminhos da pesquisa sejam delineados. Contudo, Geertz acredita que não são as técnicas que definem a etnografia, mas sim “o tipo de esforço intelectual que [...] representa: um risco elaborado para uma ‘descrição densa’” (1989, p. 15).

No contexto específico da recepção midiática, o pesquisador combina diferentes métodos como a observação participante, cadernos de campo, conversas informais e histórias de vida que permitam contextualizar a recepção de programas televisivos no espaço doméstico. Para La Pastina (2006, p. 32), “a compreensão de práticas individuais e comunitárias de consumo de mídia auxilia no projeto mais amplo de investigar o papel dos produtos culturais em um contexto global”. O momento de assistência revela a interação do receptor com o meio, seus gostos e formas de ler o conteúdo midiático. A convivência no ambiente familiar desvenda seus hábitos, memórias e a relação que é estabelecida com a telenovela. A classificação social das entrevistadas que fizeram parte deste estudo (classe popular: média baixa e baixa) foi definida mediante a metodologia da estratificação sócio-ocupacional, na qual a família é classificada a partir do membro melhor situado economicamente (QUADROS; ANTUNES, 2001). Consideramos a classe social não só como um fator socioeconômico evidenciado por indicativos como renda e escolaridade, mas também como um aspecto sociocultural. Seguindo Mattos, compreendemos que “o conceito de classe não está ligado tão-somente ao lugar que o indivíduo ocupa na produção, ou seja, a uma dimensão econômica, mas também a uma dimensão sociocultural que está relacionada a determinadas percepções de mundo” (2006, p. 162). Não estamos, contudo, negando a utilidade e importância da classe como índice socioeconômico para a classificação prática dos indivíduos em camadas sociais. Porém, acreditamos que para uma análise mais aprofundada de como a classe está diretamente ligada ao modo de vida das pessoas, seus gostos e hábitos, é preciso expandir o conceito de classe para além da dimensão econômica. Empregamos ainda o modelo encoding/decoding de Stuart Hall para a análise da telenovela Passione e para a análise das leituras das entrevistadas acerca da telenovela. Segundo esse modelo, a mídia apresentaria um discurso dominante e os receptores poderiam se

Chauí (2001, p. 23) entende ideologia como o “ideário histórico, social e político que oculta a realidade social com vistas a perpetuar/ legitimar/assegurar o poder econômico, social e político de uma classe dominante”. A autora considera que “através da ideologia, são montados um imaginário e uma lógica da identificação social com a função precisa de escamotear o conflito, dissimular a dominação e ocultar a presença do particular, dando-lhe a aparência do universal” (CHAUI, 2003, p. 20).

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mover em três posições em relação a esse discurso: dominante, negociada e opositiva. No entanto, diferentemente da perspectiva de Hall (2003), para o qual o texto televisivo é tomado predominantemente como a voz da ideologia3 dominante (CASSETI; DI CHIO, 1999), entendemos que por vezes a codificação pode também se mover entre posições negociadas e até mesmo opositivas, sendo mais freqüente a posição hegemônica, isto é, que mescla elementos dominantes e negociados (RONSINI et al, 2009). Para a análise de Passione, selecionamos intencionalmente um corpus composto por três capítulos de diferentes fases da narrativa – início, meio e fim – da telenovela. Além disso, houve o acompanhamento diário dos capítulos, a anotação de falas dos personagens e as situações de interação entre eles, a leitura dos resumos diários da telenovela e a seleção de algumas cenas de determinados personagens para serem revistas. Essas cenas em especial foram selecionadas a partir do trabalho de campo, ou seja, da fala das receptoras a respeito da telenovela. Concomitante à seleção do corpus para a análise, elegemos categorias representativas da identidade feminina na contemporaneidade a partir da literatura a respeito das relações de gênero, dos estudos precedentes sobre as representações da mulher nas telenovelas e do que era observado como importante para as receptoras que fazem parte desta pesquisa. Assim foram eleitas as categorias: trabalho, maternidade e sexualidade. Para cada categoria, estipulamos o que seriam codificações dominantes, negociadas e opositivas. Posteriormente, verificamos de quais posições o texto da telenovela a respeito de cada categoria se aproxima. A partir disso, comparamos o discurso da telenovela à leitura das receptoras para averiguar se elas tendem a realizar uma decodificação dominante, negociada ou opositiva a respeito da representação do feminino na telenovela. Neste trabalho, consideramos que uma posição dominante atribui ao feminino a obrigação da maternidade e do trabalho do116

méstico, além de vincular a sexualidade feminina exclusivamente ao amor e à reprodução. Por outro lado, uma posição opositiva concebe a autonomia feminina na escolha pela maternidade; na divisão do trabalho doméstico e na valorização da atuação da mulher no espaço público; e admite a sexualidade feminina ligada ao prazer. Posições negociadas mesclam elementos das posições dominantes e opositivas. Observamos que as receptoras podem apresentar visões de mundo que ora tendam a leituras dominantes, ora negociem sentidos e ora pendam para posições opositivas dentro das categorias propostas por este estudo. Assim, uma entrevistada pode apresentar uma visão negociada quanto à sexualidade, opositiva quanto ao trabalho e dominante em relação à maternidade, movendo-se entre as posições da decodificação, não sendo, portanto, obrigatório que as decodificações sejam fixas para todas as categorias. Gostaríamos de acrescentar ainda que o “tornarse mulher”, como diria Simone de Beauvoir, envolve uma série de complexidades que extrapola em muitos sentidos o que estamos tentando categorizar. Contudo, no contexto específico desta pesquisa, as categorias trabalho, maternidade e sexualidade foram as mais significativas para que entendêssemos a conjuntura de apropriação da telenovela pelas receptoras. O feminino em Passione O modelo de representação do feminino nas telenovelas sofreu algumas alterações ao longo dos anos, acompanhando em parte as conquistas das mulheres. Questões acerca do divórcio, da entrada da mulher no mercado de trabalho e de uma maior liberdade sexual foram em grande medida superadas. Contudo, ainda permanece vinculada ao feminino a obrigação da maternidade e a necessidade de um companheiro para que a mulher seja valorizada socialmente. Jéssica (Gabriela Duarte) é uma personagem, que com seu tom cômico, poderia questionar um pouco o papel da maternidade 117

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na vida da mulher. Contudo, suas atitudes são fúteis e passam a ideia de uma mãe displicente e desinteressada. Entre as outras mães da telenovela, Bete (Fernanda Montenegro) e Candê (Vera Holtz) trabalham, e apesar de serem bastante dedicadas aos filhos e à família, não ficam restritas ao espaço doméstico. Bete tem grande poder de decisão na família e na empresa que ela dirige. Candê é chefe de família. Agostina (Leandra Leal) também trabalha, mas não possui a autonomia de Bete e Candê. Já Felícia (Larissa Maciel) e Stela (Maitê Proença) não trabalham. O fato de não trabalhar restringe a vida social de Felícia e a aprisiona em um cotidiano de afazeres domésticos e cuidados com a família que não a realiza totalmente. No caso de Stela é diferente. Ela nasceu em uma família rica e aguentou a estupidez do marido, até o momento de sua morte, por querer manter a família unida. Aqui, percebemos como a questão de classe permeia o cotidiano das personagens. Felícia e Stela não trabalham, contudo Felícia está mais restrita ao âmbito doméstico do que Stela que tem uma vida social bastante ativa, freqüentando shoppings, exposições de arte e aparece marcando encontros com amigas, além de contar com a ajuda do mordomo Arthurzinho (Julio Andrade) na organização da casa. Arthurzinho é o único personagem homossexual da novela, o que reforça a idéia de que o espaço doméstico é uma atribuição feminina. A personagem Felícia é um exemplo de codificação dominante quanto ao trabalho, à sexualidade e à maternidade. A personagem inicia a trama extremamente restrita ao espaço doméstico. Ela não tem amigos, não tem um trabalho, não tem o direito de criar a sua filha e ainda ressente-se por não ter um namorado. Candê, por sua vez, reza para que a filha “arrume um homem”, como se a solução dos problemas de Felícia fosse encontrar um namorado. As primeiras cenas da personagem giram em torno dos afazeres domésticos, que estão todos sob sua responsabilidade, e a preocupação com a “irmã” Fátima (Bianca Bin). Ao longo da trama, Fátima descobre que é filha de Felícia. A revela118

ção reforça o comportamento maternal da personagem que desde o início da novela demonstrava um grande zelo pela “irmã”. No entanto, essa mudança não faz com que Felícia adquira autonomia em sua vida, ela continua a colocar toda a responsabilidade por sua felicidade na procura por um parceiro, restrita à esfera privada e sustentada financeiramente por sua mãe, na medida em que o seu trabalho foi apresentado na novela mais como um merchandising da marca Natura do que como um fato importante na história. Agostina é outro exemplo de codificação dominante quanto à sexualidade e à maternidade, mas negociada em relação ao trabalho. Ao contrário de Felícia, Agostina é retratada dedicando-se à profissão de restauradora desde o início da trama. No entanto, a personagem larga o trabalho para tentar encontrar seu marido que veio para o Brasil. Após a chegada da italiana no país, a profissão não ganha importância para Agostina. A família é o mais importante para ela e para mantê-la aceita a bigamia do marido. Quanto à sexualidade, o autor faz um jogo de elementos que compõem a relação de Berilo (Bruno Gagliasso) com suas duas esposas. Jéssica, a segunda mulher, é fogosa, enquanto Agostina é a típica mocinha ingênua e romântica, cuja sexualidade está totalmente ligada ao amor. Prova disso, é que durante o tempo em que Agostina ficou afastada de Berilo, após descobrir que ele mantinha Jéssica como sua amante, ela teve um relacionamento com Mimi (Marcelo Médici). No entanto, não houve nenhum contato sexual entre os dois, porque Agostina não o amava, mantendo-se fiel ao sentimento que nutria por Berilo. Jéssica é o contrário de Agostina. A personagem é dominante em relação ao trabalho, negociada em relação à maternidade e opositiva em relação à sexualidade. Jéssica não tem uma profissão e a única vez durante a trama que se interessou por um trabalho, na verdade, era uma desculpa para vigiar o marido. A personagem não demonstra vocação para cuidar do filho, nesse sentido apresenta elementos da codificação opositiva em relação à maternidade. No entanto, suas atitudes fúteis acabam endossando o valor da maternidade ao invés 119

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de questioná-lo, pois a personagem é apresentada como negligente no cuidado com o filho. Quanto à sexualidade, Jéssica é uma mulher que não mede esforços para sentir prazer, inclusive não se opondo ao fato de se tornar amante do ex-marido e até gostando da situação. Outra personagem que apresenta uma codificação opositiva em relação à sexualidade é Stela. Já quanto à maternidade e ao trabalho, a personagem é dominante. Stela não é uma vilã, pelo contrário, é mostrada como uma mãe preocupada e amorosa e uma esposa que, apesar do temperamento grosseiro do marido, faz o possível para manter seu casamento. No entanto, ao contrário do que normalmente se espera de uma mãe de família, Stela é sensual e infiel. Ao buscar o prazer no sexo e abusar da sua sensualidade sem ser ligada à vilania, Stela é opositiva. Contudo, ao se submeter aos destemperos do marido e dele depender financeiramente, torna-se uma mulher sem autonomia, principalmente na esfera do trabalho, categorizando uma codificação dominante. Ao longo da trama, Stela se apaixona por um dos rapazes com quem saiu. Mais tarde o mesmo rapaz envolve-se com sua filha. Ao abrir mão de viver um grande amor em nome dos filhos, Stela coroa a abnegação da maternidade. No desfecho da telenovela, ela permite-se ficar com Agnelo (Daniel de Oliveira), após a aprovação de todos os filhos, mas sentese culpada por estar feliz enquanto Danilo (Cauã Raymond), que se envolveu com drogas e tenta recomeçar a vida, “ainda não encontrou a felicidade”. Uma mãe feliz não é ainda mais capaz de ajudar os filhos a encontrar o seu caminho? Por que a realização de desejos próprios parece incompatível com a ideia da boa mãe? Em uma visão de mundo hegemônica a mulher é definida socialmente por ser mãe, mas ao tornar-se mãe ela nega os seus desejos de mulher. Diana (Carolina Dieckmann) é a típica mocinha moderna da telenovela. Atualmente, é comum que as mocinhas não tenham mais o padrão de moças ingênuas que são guiadas exclusivamente pelas emoções. A personagem representa uma codificação negociada quanto ao trabalho e à sexualidade, e dominante em relação à 120

maternidade. Diana é jornalista e inicia a trama cursando a pós-grauuação. Após concluir o curso é contratada para trabalhar na Assessoria de Imprensa da Metalúrgica Gouveia. Durante o tempo em que é funcionária da empresa, Diana se esforça para que seja reconhecida e mantida no cargo pela sua competência e não por namorar o diretor da metalúrgica. Cabe ressaltar também que nesse período, Diana é definida pela profissão, aparecendo na maioria das cenas no seu ambiente de trabalho. Contudo, ao mesmo tempo, confidencia a Cris (Gabriela Carneiro da Cunha), sua melhor amiga, que quando casar com Mauro (Rodrigo Lombardi) quer ser bem “mulherzinha, cuidar da casa e do marido”. Diana engravida, mas sua felicidade é interrompida pela notícia de que a gravidez é de risco. A moça passa então a ficar somente em casa sob os cuidados das amigas e de Mauro, que se revezam. Diana acaba morrendo após o parto da filha. Antes de morrer ela suplica ao médico que a sacrifique para salvar a filha, caracterizando uma codificação dominante em relação à maternidade. Melina (Mayana Moura) é um exemplo de codificação opositiva em relação ao trabalho. Apesar de ser apresentada como uma menina mimada que age, na maioria das vezes, em benefício próprio, tem prestígio como estilista. No final da novela, abre uma loja própria, adquirindo ainda mais autonomia ao desvincular-se da metalúrgica de sua família. Melina, quanto à sexualidade, representa uma codificação negociada. Durante quase toda a trama, ela é capaz de atos mesquinhos, egoístas e infantis para conseguir o amor de Mauro. Com isso, o feminino é ligado à falta de racionalidade como se as mulheres ficassem “loucas” de amor e em nome disso fossem capazes dos atos mais insanos, enquanto Mauro, que perdeu seu grande amor para o amigo Gerson, apenas queixa-se com o pai e enfrenta a perda com equilíbrio e discrição. Fica a imagem da mulher desequilibrada e do homem sóbrio e racional. No entanto, Melina, ao envolver-se com Fred (Reynaldo Gianecchini), um homem a quem ela não amava, desfaz um pouco a idealização em torno da sexualidade feminina. Ela mantém relações sex121

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uais com Fred antes e durante o casamento, desvinculando o sexo do amor. Além disso, é Melina quem fica com Mauro no final da novela. A mulher que se afasta das idealizações românticas, é bem sucedida profissionalmente e que reencontra o equilíbrio no trabalho ao mesmo tempo em que desenvolve um carinho maternal pela filha de Diana. O último capítulo da trama sugere que Melina e Mauro iriam criar a criança juntos, dividindo as atenções entre ela e as suas respectivas profissões, em igualdade de papéis, o que configura uma codificação opositiva quanto à maternidade. Candê e Bete também são exemplos de codificação opositiva em relação ao trabalho. Candê é definida pela sua profissão, sendo a responsável pelo sustento econômico de sua família. Bete, após a morte de seu marido, também se torna chefe de família, sendo responsável por todas as decisões importantes tomadas na Metalúrgica Gouveia e chegando a dirigir a empresa por um tempo. Além disso, temos Laura (Adriana Prado), jornalista que trabalha na Assessoria de Imprensa da metalúrgica e durante boa parte da trama é apresentada somente no seu ambiente de trabalho. Ela é respeitada na metalúrgica, sem que para isso tenha que adotar uma postura dura ou masculinizada. No lado oposto de Bete e Candê está Gemma. A italiana é dominante quanto às três categorias. Até poderíamos pensar em Gemma como uma mulher ativa que se define pelo trabalho doméstico e cuidado com a família, tendo optado por isso. No entanto, o que incomoda no núcleo familiar é a obrigação exclusivamente feminina com o ambiente doméstico. Totó tem uma postura paternalista em relação à irmã e Gemma questiona o fato de viver uma relação amorosa na sua idade, só aceitando vivê-la quando todos os seus “filhos” (Totó e os filhos dele) já não “precisam” mais dela porque casaram ou encontraram um amor. Passione certamente quebrou alguns tabus em relação à sexualidade feminina. Além de mostrá-la como algo natural em todas as idades, o discurso da telenovela foi enfático ao ressal122

tar a busca pelo prazer feminino no sexo. Brígida (Cleyde Yáconis) é um caso exemplar. Casada com Antero/Giovani (Leonardo Villar), sempre insinuou algum interesse pelo seu motorista Diógenes (Elias Gleiser). No final da trama, ela se divorcia de Giovani, casa com Diógenes e mantém um relacionamento com Nonno Benedetto (Emiliano Queiroz), irmão de Giovani, que após vir para o Brasil passa a trabalhar como jardineiro na casa de Brígida. Outro exemplo opositivo em relação à sexualidade é Clô (Irene Ravache). A Rainha do lixo e Olavo (Francisco Cuoco) mantêm o desejo em um relacionamento entre idosos, que ao lado da figura de Brígida, retratam um tema inexistente nas telenovelas até então. Além disso, Clô é uma idosa sensual sem ser apelativa ou vulgar. No entanto, quanto ao trabalho e à maternidade tanto Clô quanto Brígida são dominantes. Clô tem uma postura maternal em relação à Jéssica, inclusive mediando os conflitos entre pai e filha e se sacrificando para manter a família em harmonia. Além disso, não fica claro na trama se o fato de Clô não ter tido filhos biológicos foi uma escolha. Quanto ao trabalho, até a reta final de Passione Clô era retratada como uma perua que passava o dia em shoppings e cabeleireiros, apesar de em alguns capítulos ser ressaltado o trabalho que Clô realizava em casa, orientando os empregados e organizando a rotina familiar. Contudo, após protagonizar uma campanha da LEAR, Clô torna-se uma celebridade. Isso faz com que receba vários convites para eventos e ganhe dinheiro ao mesmo tempo em que reduz drasticamente o seu tempo em família. Olavo não aprova a situação. No último capítulo da trama, ao receber o prêmio de Celebridade do Ano, Clô reconhece que deve tudo a Olavo. Não fica claro no desfecho se Clô voltará a se dedicar exclusivamente à família, ou dividirá o seu tempo entre o marido e seus compromissos como celebridade. Passione sem dúvidas avança na representação do feminino. Contudo, o progresso da telenovela é observado nas esferas em que é mais comum que haja mudanças. É difícil imaginar uma telenovela, nos dias de hoje, em que as mulheres invadiram o mer123

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Para uma retomada da cultura do Personalismo em nossa sociedade e como ela influenciou diversos autores de telenovela, inclusive Silvio de Abreu, ver Junqueira (2009). Em 2004, a ABA (Associação Brasileira de Anunciantes) lançou a campanha publicitária “O melhor do Brasil é o brasileiro” cujo slogan era “Eu sou brasileiro e não desisto nunca”.

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cado de trabalho, que não tenha personagens femininas bem sucedidas profissionalmente. Além disso, é no terreno da sexualidade que os autores se atrevem a ousar mais em termos de liberação feminina. Parece posto que a esfera da sexualidade é um espaço de empoderamento feminino na atualidade. Pontuadas essas questões, é preciso reconhecer que Passione foi um marco em termos da autonomia e da sexualidade na velhice, sendo as mulheres protagonistas nesses aspectos, principalmente na figura de Bete (autonomia) e de Brígida (sexualidade). Foi nessas esferas que a telenovela mais contribuiu para desmanchar estereótipos e propor novas possibilidades para se pensar o feminino. Com a categoria maternidade acontece o oposto. A representação do feminino no âmbito dessa categoria é dominante. Melina e Jéssica não são personagens com fôlego para questionar o papel social da maternidade. Jéssica porque é retratada como uma mulher fútil e péssima mãe e Melina porque assume uma postura de vilã em alguns momentos da novela e sua mudança e possível compartilhamento de responsabilidades com Mauro no final da trama é sutil. É na esfera privada, nas negociações de poder dentro das famílias, quando são tocadas as bases históricas e sociais da dominação de gênero em nossa sociedade que a telenovela não consegue avançar de forma significativa. A idealização da maternidade faz com que as responsabilidades entre mães e pais, igualmente importantes no desenvolvimento dos filhos, não sejam compartilhadas, contribuindo para que as mulheres sejam mais facilmente ligadas ao âmbito doméstico, abdicando do trabalho produtivo ou tornando-se experts na conciliação de tarefas. As leituras das receptoras A mídia tem um papel importante na construção do que é ser mulher. Para a maioria das entrevistadas é comum associar as características que definem a brasileira a dois estereótipos utilizados na

teledramaturgia, no jornalismo e na publicidade para ilustrar não só as mulheres, mas os brasileiros em geral. O primeiro deles, e o mais comum entre as entrevistadas, está ligado à ideia do brasileiro forte, batalhador e que não desiste em meio às dificuldades do dia-a-dia4. O outro estereótipo ressalta a sensualidade da mulher brasileira. Em geral para definirem a típica mulher brasileira, as entrevistadas recorrem a personagens de telenovelas apresentadas no horário das 21h na Rede Globo de Televisão. Apenas uma entrevistada citou uma personagem de Passione. Eleonora reconhece em Bete (Fernanda Montenegro) as características da típica mulher brasileira. Ela é uma mulher e tanto (risos). Sabe assim...forte sem perder o jeito de mãe...ela é justa, correta e...sabe...é...uma rocha, sabe? Uma base...a família passa por um monte de coisa ruim e ela ta lá forte pra tomar as decisões difíceis e dar apoio (Eleonora, 47 anos).

A relação das entrevistadas com as personagens das classes populares de Passione, na maioria das vezes, não é de identificação. Capaz que a gente vá poder se metê na vida das patroa que nem elas (empregadas domésticas) fazem, não, não, parece que aquela mais engraçadinha (Guida) é amiga da Clô...não é assim [...]. E não aparece a vida delas (empregadas domésticas) fora da casa das patroas, da Olga até que aparece mais...mas elas são bem tratadas e as patroa parece que se, assim, se importa com elas, elas moram na casa das patroa, acho que comem lá também, então é bem diferente, eu acho que não tem nada a ver com o que é na verdade (Vera, 47 anos).

Outro ponto que causa estranhamento é o uniforme utilizado pelas empregadasdomésticas,umrecursotãocomumnastelenovelasparademonstraradistinçãoentreasclasses,masqueVeranãoreconhececomoverossímil. Em geral, é difícil para as entrevistadas se identificarem com uma personagem pela classe. Julia, por exemplo, não reconhece a pobreza na telenovela. 125

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Só os vilões reclamam da falta de dinheiro na novela. Daí eles passam por ambiciosos...só que tu acha que a Candê ía conseguir sustentar a Felícia, a Fátima e ainda adotar mais dois vendendo verduras? A Fátima não trabalha, só estuda, e a Felícia também nunca teve que trabalhar. E a Candê não reclama que tá faltando dinheiro...só os ruins reclamam! Pode ver!! É errado querer melhorar a vida? Por que não pode ter alguém que não seja vilão, mas tenha vontade de ganhar dinheiro? Acho que só a Clô que não era vilã e admitia que ser pobre é ruim, ninguém quer ser pobre, mas ela casou com um cara rico...foi pelo caminho mais fácil [...]. Por isso que eu gosto mais dos vilões, porque são mais reais. Claro que não precisa sair matando e mentindo porque a gente é pobre, mas tu não acha que pra se mostrar a pobreza tinha que mostrar a falta de dinheiro? Pra mim a Candê não é pobre. Claro, em comparação com a Bete, ela é pobre, mas é um pobre de novela, que não existe! (Julia, 19 anos).

Para Simões (2010, p. 5), “é a experiência que funda as representações, ao mesmo tempo em que estas podem proporcionar novas experiências aos indivíduos”. Em geral a tendência da maioria das entrevistadas é possuir uma postura mais conservadora do que a da telenovela, principalmente em relação às categorias sexualidade e maternidade. Fabi é a entrevistada que mais negocia sentidos na sua elaboração do feminino, contrapondo o cotidiano que a cerca e as representações que circulam na telenovela. Vera e Julia são as mais opositivas, fazendo-nos crer que em alguns casos a experiência individual e de classe tem mais força do que o imaginário coletivo. O trabalho feminino na telenovela é sempre visto como algo positivo pelas entrevistadas, mesmo pelas mães, que estão mais restritas ao ambiente doméstico. No entanto, algumas vezes, o trabalho só é considerado importante quando não impede a mulher de “cuidar bem” dos filhos. Esse “cuidar bem” é carregado de uma idealização da maternidade, que não está presente apenas nas falas de Vera, e pressupõe que a mulher dedique a maior parte de seu tempo aos filhos e não tenha atitudes “egoístas” e “em benefício 126

próprio”, já que quando a mulher torna-se mãe é preciso “se deixar um pouco de lado” em nome do cuidado das crianças. A autonomia de Bete é bem aceita, em parte, porque seus filhos já estão criados. Candê também é elogiada, mas o fato que mais chama a atenção das entrevistadas em relação à personagem é seu “grande coração materno”, disposta até a ir para a cadeia pelos filhos adotivos. Por outro lado, algumas personagens que não trabalham não são um exemplo em relação a essa categoria. Na classe alta, Clô, Jéssica e Stela são vistas como “madames” (Helena) ou “desocupadas” (Julia). Na classe popular, Felícia é tida como pouco esforçada (Fabi e Luiza). Em relação à Felícia e a categoria trabalho, durante boa parte da trama, as entrevistadas realizaram uma leitura opositiva. O fato da filha de Candê estar tão restrita ao espaço doméstico era algo que as receptoras questionavam, apesar dessa restrição ser a realidade de algumas, principalmente de Eleonora. No decorrer da trama, a personagem se envolve com Totó e no final casa-se com Gerson. Esses relacionamentos fazem com que Felícia passe a ter uma vida social e ganhe a simpatia das entrevistadas. Felícia permanece até o final da história sendo dominante em relação ao trabalho, mas a leitura das entrevistadas no decorrer da história muda. Felícia casouse e agora “precisa” se dedicar à família que formará com Gerson. A única entrevistada que permanece com uma leitura opositiva é Julia. Para ela, o trabalho é fonte de autonomia para a mulher. A Felícia deixou de ser escrava da mãe para casar e servir ao marido. Continuou sendo sustentada por alguém e sem poder decidir as coisas em sua vida [...]. É só em novela mesmo que encontrar um cara pra casar resolve todos os problemas (Julia, 19 anos).

Julia também é a única entrevistada que reconhece o trabalho doméstico que Felícia realizava em casa, embora o veja de forma negativa ao dizer que a personagem era “escrava da mãe”. Para as demais entrevistadas as ocupações domésticas de Felícia não eram um trabalho. Da mesma forma, Gemma também não 127

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era vista como uma trabalhadora, apesar de ter dedicado a vida a servir sua família, realizando todas as atividades domésticas. No âmbito desta pesquisa, consideramos que uma codificação opositiva em relação ao trabalho mostra mulheres que se definem pela profissão. A leitura das entrevistadas em relação a essa categoria vai ao encontro do que algumas autoras (BRUSCHINI, 2000; HIRATA, KERGOAT, 2007) já apontaram. O trabalho doméstico é desvalorizado e tido como uma ocupação eminentemente feminina. É comum que o trabalho doméstico seja considerado obrigação da mulher. Portanto, Gemma e Felícia não fazem mais do que a sua obrigação. A atividade doméstica só é valorizada quando ela não é feita da maneira e por quem deveria realizá-la. Como no caso de Fabi, que não gosta do trabalho doméstico e o realiza, nas palavras de sua mãe, de forma “desleixada”. Fabi o realiza porque foi educada com a ideia de que é da mulher a obrigação desse trabalho e ela sente culpa por não gostar de fazê-lo. Luiza tem uma posição negociada em relação ao trabalho feminino na telenovela. Passione é opositiva ao mostrar em Melina uma personagem que se define pela profissão e é exatamente esse aspecto que é questionado por Luiza. Ela identifica-se com a postura de Diana que durante boa parte da trama dedicou-se à profissão, mas no decorrer da história abdicou do trabalho. Em suas últimas cenas Diana aparecia como uma moça frágil, com uma gravidez complicada e que precisava de cuidados dos amigos e do marido o tempo todo. Melina termina a história criando a filha de Diana, finalmente conquista o amor de Mauro e dona de uma loja de sucesso. Luiza questiona se Melina será uma boa mãe para a filha de Diana, porque concorda com o fato da profissão ter tomado importância inferior na vida de Diana após a sua união com Mauro e a gravidez. Com isso, Luiza apresenta uma postura mais conservadora do que a da telenovela em relação ao trabalho feminino. Por outro lado, Fabi admira Melina e como a personagem, que abre sua própria loja, ela sonha em ter um salão de beleza. A menina ensaia certa autonomia, mas é freada pela atitude protetora de 128

sua mãe em relação aos homens da casa. O fato de morar com a mãe limita as tentativas de resistência de Fabi ao modo como se configura o casamento de seus pais. Fabi realiza uma leitura opositiva em relação ao trabalho, mas isso não significa que em seu cotidiano ela consiga fazer com que o marido apóie a sua ocupação, ajude nas tarefas domésticas e no cuidado do filho. Assim, uma leitura opositiva, que se caracteriza pela tomada de consciência da dominação de gênero, não significa necessariamente ação por parte das receptoras no que se refere à modificação das relações de gênero em seu cotidiano. Helena apresenta uma decodificação dominante em relação ao trabalho. Ela liga o feminino ao trabalho da casa e admira a postura de Gemma. A entrevistada sonha costurar menos para cuidar dos netos, quando os tiver. Para ela o trabalho de Gemma não era um trabalho, mas um lazer. Eu ía adorá ter a vida da Gemma. Imagina a casa cheia, a mesa rodeada de neto pra ti cuidar, fazê comida boa...é a coisa mais alegre que pode tê (Helena, 51 anos).

Outro indício da visão conservadora de Helena em relação ao trabalho feminino é a pouca aceitação da personagem Laura. Respeitada em seu ambiente de trabalho, Laura passa boa parte de seu tempo na Metalúrgica Gouveia. Como até a parte final da telenovela, a família da personagem não é apresentada, para Helena, Laura “não tem vida”. Já para Luiza, Laura é como Felícia, uma está presa no espaço privado e a outra no público, ambas sem um companheiro, um amor com quem compartilhar a vida. No final da trama, as duas personagens resolvem suas vidas amorosas, dando a impressão que seus problemas foram todos resolvidos. Vera, assim como Julia, não tem uma visão tão positiva dos relacionamentos amorosos e da valorização da vida familiar em detrimento da ocupação profissional. Em geral recorda-se de personagens para as quais a profissão é importante como Candê, Bete, Olga e Lurdinha. Chama a atenção o fato de Vera ser a única entrevistada que 129

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questiona a relação empregado-empregador na telenovela. Para ela, as empregadas domésticas não são retratadas de maneira realista em Passione. Por outro lado, considera que as secretárias da LEAR e as moças que trabalham na Cantina mais próximas da realidade. Em relação ao trabalho não foi possível observar uma tendência única na decodificação. Passione, apesar de ter apresentado muitos exemplos de personagens opositivas em relação ao trabalho, manteve alguns estereótipos como mais mulheres em cargos subalternos enquanto os homens dominavam os cargos de chefia e predominantemente as mulheres abdicam da sua vida profissional em nome da vida familiar. A conciliação de tarefas também é típica das mulheres, assim como o âmbito privado é feminino por excelência. Na recepção verificou-se que apenas Helena e Eleonora realizam uma leitura dominante a esse respeito. Fabi, Julia e Vera são opositivas em relação ao trabalho; e Luiza apresenta uma leitura negociada. É na sexualidade que a telenovela parece abrir mais espaço para uma representação do feminino opositiva. Na recepção, é o território em que as posições mais se dividem. Apesar da sexualidade envolver uma série de questões morais como a educação e as crenças religiosas, também está fortemente ligada à experiência pessoal. Helena e Luiza realizam uma leitura dominante, enquanto Eleonora e Julia tendem a uma posição negociada. Já Vera e Fabi são opositivas em relação à sexualidade feminina na telenovela. Eleonora sente falta de ter momentos de “mulher” ao invés de desempenhar exclusivamente o papel de mãe, que ela gosta, mas que não parece satisfazê-la totalmente. A relação desta entrevistada com a personagem Stela é ambivalente. Ela identifica-se com a sensualidade da personagem e também com o cuidado que Stela tem com os filhos, mas essa relação para a entrevistada é complicada, pois ela contrapõe o “mãe” ao “mulher”. Eleonora tem uma tendência a concordar com as atitudes de Stela, mas essa atitude é questionada por ela o tempo inteiro. Helena acha engraçada a relação de Clô e Olavo por não associar Clô a uma mulher “velha”. Ela condena Brígida, “é uma pouca vergonha uma mulher na idade dela fazer o que faz!”. Em parte, o 130

comportamento de Clô é aceito pela entrevistada porque a personagem somente se relaciona com o marido, já Brígida insinua ter um relacionamento extraconjugal, o que é confirmado no final da novela. Mas o que chama a atenção é que Helena, mesmo tendo apenas 51 anos, não se identifica com a idade de Clô e sim com a de Brígida e Gemma. Para ela, Brígida e Gemma são “velhas” como ela e Clô não. A vida religiosa de Helena é intensa e isso talvez explique a sua condenação explícita da vida sexual e afetiva para mulheres “de sua idade”. Luiza não concorda com a facilidade com que as mulheres cedem ao sexo na novela. Até mesmo a Diana não se valorizou muito no início, né. Tava com o Mauro aí já saiu com o Gerson, tudo muito rápido [...]. Mas a pior é a Jéssica...parece assim...como que eu vou dizer...que o sexo é a coisa mais importante do mundo, ela não faz mais nada! Não cuida do filho direito, só quer saber de sexo (Luiza, 22 anos).

Fabi, Julia e Vera não consideram que as mulheres da telenovela são mais liberadas do que as da vida real. Um aspecto interessante é que uma visão mais opositiva da sexualidade está presente em maior ou menor grau nas três entrevistadas. Vera e Julia estão mais livres de uma moral religiosa, pois uma diz que não tem religião e a outra que não acredita em Deus. No entanto, Fabi se diz evangélica e conheceu o atual companheiro na igreja e mesmo assim possui uma posição mais libertária em relação ao sexo. Vera aceita a infidelidade e a busca pelo prazer das personagens. Os relacionamentos da mãe de Julia foram permeados pela violência, e isso, de certa forma, contribui para que ela ache que toda “arma” que a mulher consiga usar para se defender e tornar a sua vida possível seja válida, como quando comenta a respeito de Saulo e Stela. Aquele home era ruim...ela não ía consegui se separá sem ele incomodá, então ía com os home jovenzinho pra podê agüentá a vida e protgê os filho, porque se ela fosse de casa, ele não ía sustentá os

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filho e ela não tinha como sustentá, não trabalha...a minha patroa fala disso, como é...fazendo mal, falando mal dela, mas o chifre é nada perto da vida ruim que ela tinha com ele, o ruim de tudo é ele (Vera, 47 anos).

Julia não condena, mas também não aceita a conduta de algumas personagens em relação ao sexo. Ela, em geral, não tem uma visão positiva da sexualidade. Compreende o fato de Clara odiar Totó. Julia justifica os atos da vilã Clara, mas não os de Fred. Ela identifica-se com a vilã porque sabe o que é sofrer maus tratos, abusos e assim aprender a evitar o envolvimento emocional. “Isso (maus tratos) deixa as pessoas frias”. Quanto à maternidade, a única entrevistada que apresenta uma leitura negociada é Vera, as demais tendem para uma postura dominante. No geral, elas concordam que o peso da educação dos filhos caia inteiramente sobre a mulher e as que são mães sentem-se culpadas pelos “erros dos filhos”, como Eleonora, que se culpou pela gravidez da filha Fabi. Passione apresenta uma codificação dominante no que se refere à maternidade. As entrevistadas, ao aderirem a esse discurso, realizam uma decodificação preferencial em relação a este aspecto da representação feminina na telenovela. Em geral, as personagens admiradas são “boas” mães, como Candê e Bete, sacrificam-se pela família, como Stela e Gemma, ou sonham em formar uma família e passar a se dedicar totalmente a ela, como Diana. O caso de Vera é enigmático. Ela não acha que tenha vocação para a maternidade, sua filha não a considera uma “boa” mãe, mas a visão que a entrevistada tem da maternidade é hegemônica na medida em que ela considera a maternidade uma obrigação da mulher. Ela não queria ter filhos, não queria ter ficado com as crianças que teve, mas foi mãe porque os maridos queriam filhos e ela, na visão que aprendeu a ter, cumpriu sua função social atendendo ao desejo dos maridos. Assim, compreendemos que a maternidade é a categoria cuja representação está 132

mais presa a um imaginário socialmente aceito. É nessa categoria que a telenovela menos consegue propor novas possibilidades para o feminino e o pouco que propõe não é aceito pelas receptoras. Considerações finais Para as mulheres que fizeram parte dessa pesquisa, a telenovela é um lazer, muitas vezes, o único. A partir do imaginário televisivo elas sonham, se reconhecem, conhecem outras realidades e partilham experiências. O processo de recepção é contraditório e complexo. Assim, o consumo de telenovela pode, ao mesmo tempo, fazer com que as receptoras assimilem e reproduzam modelos hegemônicos do feminino para determinados aspectos, e se contraponham a outros, tornando o ritual de assistência à telenovela no ambiente familiar um espaço de debate sobre os diferentes modos de ser mulher. O que encontramos neste trabalho não são posições fixas das receptoras, mas tendências que ora se movem em direção a uma postura mais opositiva e ora tendem a uma posição dominante, dependendo da categoria específica que estamos analisando. Quanto à telenovela, não podemos esquecer que ela está inserida numa lógica de produção, dentro de uma emissora de TV aberta/comercial que visa lucrar com os produtos que gera. Talvez para cobrarmos da telenovela algum tipo de representação opositiva sobre os grupos sociais, teríamos que pensar em uma mudança de sistema econômico. São mudanças mais profundas do que simplesmente exigir que as emissoras tenham a preocupação em “educar” ou propor novos comportamentos para a população. É na sexualidade que a liberação feminina é mais evidente na telenovela, apesar dessa liberação esbarrar em uma moral rígida que ainda permanece em nossa sociedade. Nesse sentido Passione inovou ao falar sem pudores do sexo na terceira idade. Contudo, na categoria maternidade a telenovela (e a sociedade) não consegue avançar, permanecendo o caráter idealizado da represen133

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tação do feminino neste quesito tanto na trama quanto para as receptoras. Em relação ao trabalho, Passione mostrou exemplos de mulheres bem sucedidas o que é admirado pelas pesquisadas, porém, o âmbito doméstico ainda é essencialmente ligado ao feminino no imaginário da telenovela. Talvez o que contribua para isso é, de novo, o caráter idealizado da maternidade. Quando nos deparamos com estudos como o de Braga (2008), percebemos que a questão da idealização da maternidade não está restrita a uma classe social, na medida em que as mulheres de classe média e alta, apesar de terem conquistado o sucesso profissional e poderem escolher se querem ou não permanecer no ambiente doméstico, sofrem ao conciliar a maternidade (idealizada) com a carreira. O peso da conciliação ainda cai quase que inteiramente sobre as mulheres. Além disso, muitas vezes o espaço doméstico é desvalorizado e não há na sociedade um movimento no sentido de estabelecer que a conciliação de tarefas não seja um problema exclusivamente feminino.

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A construção do sentido na charge: uma análise da significação plástico/discursiva

Fabiano Maggioni é Mestre em Comunicação pela UFSM, Especialista em Marketing pela ESPM-Porto Alegre e Graduado em Comunicação Social: Rádio, Tv e Vídeo pela UPF. E-mail: [email protected] Adair Caetano Peruzzolo é Pós-Doutor com estágio na Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha ) e Doutor em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Professor Titular nos cursos de comunicação social da UFSM durante 33 anos, atua no curso de Pós-Graduação em Comunicação da mesma Universidade.. Autor de cinco livros e outros editados em parceria, é pesquisador do CNPq atuando em três projetos. Leciona, estuda e pesquisa na área de comunicação com ênfase em Teorias e Estratégias da Comunicação e da Significação. E-mail: [email protected]

Resumo: Este trabalho se destina a analisar a charge jornalística pelos seus aspectos plásticos. Acredito que as estruturas significantes de tais discursos são sustentadas por significados plásticos e, logo em seguida e em consequência, significados semânticos. A dimensão plástica da charge será abordada pela configuração de seus elementos morfológicos, dinâmicos e escalares. Já sua dimensão semântica, será explicitada pelo interdiscurso e pela polifonia que apresenta. Para dar sustentação teórico-metodológica às análises e possibilitar a percepção de efeitos de sentido das duas dimensões significantes, são usados pressupostos da Teoria da Imagem, para os aspectos plásticos, e a Análise do Discurso, para aspectos semânticos. O esforço aqui consiste em mostrar a importância e colaboração primária dos elementos plásticos na elaboração de efeitos de sentido na charge. Desvelar quais são suas estruturas e desempenhos na construção do texto icônico de humor, e como tais elementos materializam a concepção semântica que é referida no desenho. Palavras-chave: Charge. Elementos plásticos. Imagem. Enunciação. Abstract:This paper aims to analyze the journalistic cartoon through its plastics aspects. I believe the signifying structures of these discourses are sustained by plastic meanings and, consequently, as a result, semantic meanings. The plastic dimension of cartoon will be discussed considering the configuration of its morphological, dynamic and scalar elements. The dynamic dimension of the cartoon will be discussed concerning its interdiscourse and polyphony. To sustain the theoretically and methodologically its approach and enable the perception of effects of sense of the two signifying dimensions, assumptions of Theory of Image are used to understand plastic aspects, and Discourse Analysis is used to understand semantic aspects. The effort is to show the importance and primary collaboration of plastic elements in the construction of effects of sense regarding the cartoon. Un139

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veiling what the structures and performance on the iconic humor text construction are and indicating how these elements materialize the semantic conception which is stated on the drawing. Key words: Cartoon, Plastic elements, Image, Enunciation. Considerações iniciais Ao produzir uma imagem, o ser coloca nela elementos de sua realidade, ambiente natural e cultural. Cria-se então um modelo de realidade que serve a este ser como um espelho das sensações ópticas reais. Este modelo porta valores de espaço e tempo reelaborados pelo observador da imagem no exercício que este faz de suas representações. A capacidade de expressar tais valores foi estudada pelo artista Wassily Kandinsky, que na escola alemã da Bauhaus já preconizava a necessidade de estudar o ponto, a linha e o plano, e suas relações, para entender os efeitos da composição artística. De suas deduções acerca destes elementos visuais, foram extraídos subsídios conceituais e analíticos. Pela abrangência analítica a que este estudo se propõe, Justo Villafañe adequou-se melhor à proposta da pesquisa, por ter este autor classificado os elementos visuais em materiais e de relação espaço tempo. Com isso, elencando elementos de uma teoria da imagem em morfológicos, dinâmicos e escalares, pode-se fracionar e classificar melhor os fenômenos plásticos e os efeitos que produzem, isolados e em conjunto, na imagem. Detenho-me também neste trabalho, a localizar a charge no seu nível icônico. Para tanto, abordarei a concepção de imagens produzidas e sua proximidade com o referente ou seu distanciamento do mesmo, a abstração. A natureza da charge requer este esclarecimento por trabalhar com linguagem caricata. Os pensamentos sobre a imagem, elaborados por Jacques Aumont, ajudam a construir esta abordagem. 140

Em um segundo momento será abordada a dimensão semântica da charge. O aspecto interdiscursivo que a mesma apresenta a torna um local de encontro de discursos sociais que, através da ação de elementos icônicos, tem seus sentidos acentuados. A imagem As reflexões sobre a charge, a que me proponho, têm foco conceitual principal, na Teoria da Imagem. O pensar a charge como elemento iconográfico produtor de sentidos requer pensála primeiramente como imagem. Entre tantas definições acerca do termo, que é comumente tomado como conceito ou definição subjetiva que o indivíduo forma para designar elementos de sua realidade social, imagem é um meio de materialização destas expressões subjetivas. “Representação visual, artística ou mental de um objeto”, como afirmam Barbosa e Rabaça (2001, p. 377). Pela imagem produzida, o homem apreende facetas de sua realidade, e os sentidos despertados pela ação resultante da relação dele com os demais de sua espécie, agora podem ser revividas, potencializadas, exploradas, ampliadas, arquivadas, etc. Este “fazer imagens” demonstra a impulsão humana por criar e estimular seus simbolismos, externar significados que, na relação de comunicação, buscarão o outro pela produção de valores em comum. E apesar da variação destes valores em imagens produzidas em mais icônicas ou mais abstratas, deles sempre brotarão sentidos que irão remeter a referentes da realidade (VILLAFAÑE, 2000, p. 30). O viver social pressupõe uma relação cercada de rituais e símbolos que remontam aos desenhos feitos em cavernas, para representar o habitat simples e primitivo do homem, estendendose até os tempos atuais, em que a humanidade consome, de modo frenético e irregrado, imagens dispostas por diversos suportes. Já a imagem do real, aquela que é percebida pelo homem da forma como é dada na natureza de seu habitat, é rica em códigos con141

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vencionados pelo próprio homem. Após, uma leitura dos mesmos, ele coleta informações importantes que garantem sua sobrevivência em tal espaço. Exemplifica-se, aqui, a sinalização de trânsito e a comunicação corporal. Veja-se que o homem é o único ser capaz de exercer a representação simbólica, ou seja, criar conexões e nexos das imagens percebidas a valores para, na busca de relações sociais, conseguir se comunicar produzindo mensagens com valores seus. No animal, a imagem percebida dentro de seus códigos de programação orgânica tem o objetivo único de informar este sobre os perigos e oportunidades do meio em que se encontra. A cor como elemento visual, neste caso, pode denunciar a aproximação do predador como pode indicar o local do alimento de tal espécie. O animal percebe o ambiente, e o interpreta, segundo sua memória biológica, adquirida e formada no código genético da espécie. Os sinais, imagens, vindos deste ambiente lhe darão pistas para sobreviver. No homem a imagem trabalha com a capacidade de projeção que o mesmo tem. Os símbolos encontrados em uma imagem agirão e formarão determinada cultura dentro das capacidades que este tem de qualificar e projetar os dados percebidos. Joly (1996, p. 13) traça um percurso da imagem no qual esta passa por alguém que a produz ou reconhece, podendo indicar algo com apenas alguns traços do visual ou com um grau de fidelidade maior do real. A imagem constitui um objeto fruto da representação de um outro, que esta tenta representar colhendo dele algumas particularidades. O homem primitivo ainda buscava formar e estabelecer uma linguagem verbal quando conseguiu se expressar pela imagem, reproduzindo o que enxergava. Ainda buscava uma formalização de sua comunicação e foi já desenhando em cavernas, desde a era paleolítica até se aproximar da modernidade. Esses sinais constituíam um esquema representativo do real. Mensagens que mostravam performances do próprio homem vivendo em seu ambiente natural e que se constituíram em uma das primeiras formas de comunicação (JOLY, 1996, p. 17). 142

Os mais antigos registros da história humana foram feitos em imagens, inclusive porque a fala não deixa traços. Esta forma, esta experiência visual, permite ao homem compreender mais simbolicamente1 o meio ambiente em que está vivendo e reagir a ele. Ver é uma experiência direta que permite ao homem organizar-se em seu modo de agir e reagir ao mundo, sociedade, onde está inserido. São impulsos rápidos e que não despendem gastos energéticos para o homem. Este acaba aceitando a capacidade de ver sem esforço como uma condição natural do ser, resultando muitas vezes em uma falsa percepção de que esta capacidade não pode nem necessita ser desenvolvida (DONDIS, 1997, p. 6). O homem necessita da imagem para que esta o auxilie a desenvolver uma cultura que será constantemente representada, em maior ou menor qualidade, por imagens escolhidas por esta mesma sociedade. É um processo que se retroalimenta, segundo Vilches (1988, p. 14), onde a imagem constitui significação por existir pessoas que se perguntam sobre seu significado. A escrita, as religiões e a arte encontraram na imagem sustentação em suas origens. Ela se assemelha ou confunde-se com o que representa, e dividiu filósofos. Platão e Aristóteles a combatiam e defendiam. Platão via nela o caráter imitador, enganoso. Aristóteles analisava sua dimensão educativa (JOLY, 1996, p. 19). Dondis (1997, p. 16) escreve sobre o alfabetismo visual preocupada com a naturalidade com que a imagem é percebida pelo homem, como já apontado aqui, e seu consequente desinteresse na busca por compreendê-la. Um dos fatores que auxiliou para este retardo na busca do alfabetismo visual foi a formação do campo da linguística como primeiro sistema de signos. Mais tarde a semiótica estenderia este campo levando a uma compreensão ampla sobre as significações do visual e como este produz sentidos. Desde as primitivas imagens fixas, onde as representações do real eram gravadas pela mão de artistas, até as atuais imagens formadas por suportes tecnológicos e que permitem a criação de

O processo de humanização, segundo Peruzzolo (2006, p. 35), se faz pelo sucessivo enriquecimento da faculdade de representação do homínida.

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É necessário deixar bem clara a conceituação pretendida neste trabalho referente à forças e energias. Kandinsky (2005) refere-se à forças resultantes de energias contidas no plano da representação e que atuam em relação do plano com elementos da imagem, como ponto, linha, plano. São experiências psicológicas, análogas às forças físicas, de quem observa a imagem, explica Arnheim (2000). “Perceptiva e artisticamente, são absolutamente reais” (ARNHEIM, 2000, p. 10).

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uma realidade fantasiosa capaz de dificultar a distinção entre o real e o virtual, que toma conta do imaginário, as sociedades produziram e consumiram infinitas quantidades de imagens. Hoje, vivese uma ecologia da imagem, como trata Villafañe (2000, p. 22). O termo imagem é capaz de remeter à mídia que reproduz imagens. Imagem virou sinônimo de televisão ou vice-versa, como atribui Joly (1996, p. 14). Além de suporte que é, a televisão é tida como produtora de imagens. A imagem da contemporaneidade. Essencialmente imagem. Isso resulta em atribuir somente à televisão a imagem da mídia. Esta analogia é errônea e exígua, pois mesmo na televisão são veiculadas imagens fixas, como fotografia e o desenho. Adotar imagem somente como sinônimo de televisão é desconhecer as características dinâmicas das imagens fixas e seu poder tensivo. Fato também apontado por Villafañe (2000, p. 147), que alega ser errado afirmar que uma imagem fixa não possui dinamicidade, movimento. Segundo ele, a tensão criada por elementos materializados no plano da representação, produz o sentido de movimento e conduz o expectador a elaborar a imagem além de seu plano representacional. Por exemplo, a linha desenhada a partir de um ponto na imagem, e que se lança até a borda da mesma, provoca um efeito de expansão de perspectiva na imagem. Este movimento gera energia2 no plano plástico fazendo com que a linha pareça continuar para fora do suporte material onde se encontra tal imagem. O universo tecno/virtual que se apresenta na sociedade moderna dominou com uma vastidão de estímulos os diversos sentidos humanos. O registro da imagem permite sua transformação e produção em larga escala por mediação. Quer dizer, muito além de perceber imagens do real, o ser está sendo exposto a uma avalanche de imagens mediadas, criadas e manipuladas que vão muito além das imagens percebidas da realidade. A frenética exposição de imagens e a facilidade com que se dá sua manipulação acabam por colocar o ser em um caos visual. Ao que explica Catalá (2006, p. 1), em sua teoria da imagem complexa, que atribui à novas tecnologias mudanças de grande en-

vergadura principalmente no que diz respeito à imagem, quando esta está sofrendo um deslocamento da região periférica das culturas ao núcleo das mesmas. Dondis (1997, p. 13) acredita que este fenômeno tende a intensificar-se uma vez que a cultura, dominada pela linguagem, está deslocada sensivelmente para o nível icônico. Catalá (2006, p. 2), por sua vez, afirma que a imagem, que também é texto só que icônico, está se sobrepondo ao texto verbal ou tomando-o e dando-lhe caráter de imagem, como no hipertexto. As pessoas estão concentradas no espelho da imagem e dando as costas à razão objetiva do texto verbal. Este texto matiza e racionaliza a imagem e esta, por sua vez, permite uma rápida visualização das complexidades daquele, coisa que a língua escrita não consegue acompanhar e gerir permitindo assim uma vastidão de sentidos pouco regrados. Ainda analisando a relação entre a escrita e a imagem, Catalá (2006, p. 6) expõe que a ilustração, primeira vinculação da imagem ao texto escrito, pretendia um clareamento, iluminação das idéias. Aqui a imagem cumpre função de ponte entre linguagem e realidade empírica. Este princípio, hoje exacerbado pelas mídias, evoluiu a ponto de tornar o texto mero ornamento da imagem, ao contrário da finalidade das primeiras ilustrações. Esta mutação de que fala Catalá (2006, p. 6), em que a imagem se adiciona ao texto da escrita e amplia suas possibilidades, não quer dizer que vá anulá-lo, mas sim que vai se converter na expressão de uma nova racionalidade. Esta nova expressão configura-se na imagem complexa capaz de ultrapassar os limites que a imaginação textual alcançou até hoje. Diante deste cenário, a necessidade de um olhar mais crítico e de uma ciência que se dedique ao estudo da imagem são imprescindíveis. Dondis (1997, p. 18) reclama que, de todas as formas de comunicação humana, o visual é o único que não estabelece um conjunto de critérios e metodologia definida para a expressão e para a compreensão de textos visuais. Fazendo uma analogia ao alfabetismo verbal, a autora diz que o consumidor atual de imagens não saberia distiguir um erro ou uma não concordância em uma mensagem visual tal como o seria com o texto verbal. 145

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Significação da imagem em sua materialidade

La naturaleza de las cosas. Lo permanente e invariable em ellas.

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Diccionario manual ilustrado de La Real Academia Española. Espassa-Calpe. Madrid. 1975, p. 677.

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É importante destacar o recorte pretendido nas análises das charges. O campo das significações da charge jornalística é vasto e seus aspectos permitem análises históricas, psicológicas, ideológicas, sociológicos entre outras. Aqui, atenho-me a dois pólos significativos próprios da Teoria da Imagem: o plástico e o semântico. O primeiro com maior enfoque, pois permitirá atingir os objetivos propostos para este trabalho. O segundo, não de menor importância, mas aqui tratado com menor profundidade, pois o campo semântico, onde desfilam vozes e entrecruzam-se discursos, dependerá sempre de uma estratégica materialização prévia para atingir seus objetivos. Para ilustrar, esta é a função da linha traçada horizontalmente no desenho dos olhos. Dependendo de seu grau de inclinação, comporá um rosto em fúria ou envergonhado, duvidoso, triste, entusiasmado, entre outros sentidos. Como foi exposto acima, depois da seleção da realidade, percepção, os elementos captados são identificados em sua significância compositiva; logo após, organizados para formarem significações mais complexas, o que corresponde à representação. O que se propõe a partir de agora, segundo a teoria da imagem em Villafañe (2000), é uma teorização sobre estes elementos plásticos identificados na imagem e que são base para a elaboração posterior de expressões icônicas. O estudo das significações da imagem vem carecendo de uma teorização. Villafañe enfatiza isso e propõe que um olhar específico seja lançado sobre o campo das imagens. “A natureza das coisas. O permanente e invariável nelas”3, com esta frase extraída do dicionário da Real Academia Espanhola4 Villafañe (2000, p. 23) chama a atenção para a natureza icônica da imagem e sua autônoma capacidade de significar. Esta natureza icônica trata dos processos e elementos básicos sobre os quais a imagem se fundamenta. Antes de uma charge

expressar uma crítica a um modelo de governo, o artista terá que se ocupar estrategicamente dos elementos que a possibilitem, valendo-se dos pontos, linhas, planos, cores, texturas, entre outros, para que este desenho possa elaborar crítica a um fato. Diferentemente do que expressa Romualdo (2000, p. 23), baseado num pensamento de Cagnin (1975, p. 33), para quem os elementos icônicos da charge como o ponto, as linhas e a massa, aqui possivelmente se referindo ao conceito de forma e cor, não podem ser tomados como unidades significativas ou representativas por si mesmas, dependendo do conjunto do desenho para gerarem significado. A afirmativa acima é corriqueira no estudo da charge que, pela riqueza e congregamento de significações que possui, seduz o analista a trabalhar seu campo semântico. Em estudos sobre o desenho de humor é comum que o analista passeie pela descrição da personagem ou do fato representado, ou mesmo conte a história narrada no desenho, dedicando pouco ou nada à profundidade analítica e ao foco dos objetivos a que se propõe em seu trabalho. Este encantamento é próprio desta narrativa que, apesar de tratar de trabalhar com humor, deve ser tomada como um fenômeno comunicacional como outro qualquer. Significações semânticas na charge Da constituição plástica, surgem os significados. Já se falou algo sobre aqueles específicos da natureza icônica da charge. Pode-se, agora, agregar outro grande campo de significações deste gênero de expressão jornalística, o campo semântico. Aqui analisados em segundo plano, mas não com menor importância, os significados semânticos contido na charge são de amplo espectro e variedade enunciativa. Sendo a charge um enunciado, cabe a ela congregar assuntos, discursos e sujeitos e alocá-los em uma narrativa. Como bem define Benveniste (2006, p. 83) sem enunciar, a língua é só uma possibilidade. Depois de enunciar, a lín147

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gua é transformada em instância do discurso. A correta apropriação dos elementos visuais torna a charge um excelente enunciado construído para comunicar para e em função do outro; assim como o locutor o faz ao assumir a língua e implantar o outro perante si (BENVENISTE, 2006, p. 84). Eis que enunciar é estabelecer uma relação apropriando-se de um meio, o enunciado, aqui visual. Cabe lembrar que no enunciado charge, os discursos que nela se envolvem são os mais variados; e na busca do humor, a produção semântica sofre uma transgressão ao que é aguardado pelo enunciatário. Este fato confirma o caráter polissêmico da charge. A polissemia trata de deslocar e romper o processo unitário de significação, por esta razão atua no aspecto da criatividade produtiva quando desloca e rompe sentidos esperados, estabelecidos. A polissemia produz sentidos diferentes por oferecer à linguagem o diferente, por deslocar regras. Estes atos afetam a relação dos sujeitos e dos sentidos com a história e a língua (ORLANDI, 2002, p. 37). Do número de fenômenos que esta narrativa é capaz de produzir devemos estabelecer um limite para atender os objetivos deste trabalho, sendo que o mesmo centra-se nos aspectos de significação plástica. Dado isso, as significações semânticas da charge jornalística serão analisadas no interdiscurso e na polifonia contidos nela. Sem dúvida uma das grandes características semânticas da charge é sua capacidade de reunir assuntos, de sintetizar situações, de aglomerar, chamar eventos para um mesmo enunciado. Esta capacidade lhe confere o caráter interdiscursivo como elemento chave para conduzir o enunciatário ao humor. Este jogo de relacionar fatos, por vezes postos em extremos editoriais pela mídia, como por exemplo política e futebol, causa no leitor uma surpresa. Esta surpresa, este modo de olhar o fato sob outro ângulo, é característica da charge e só é obtida por ela pelos recursos interdiscursivos do texto de humor. Romualdo (2000, p. 67), que analisa a charge pelo seu caráter intertextual e polifônico, destaca que a intertextuali148

dade, aqui tratada como interdiscurso, é muito usada em textos literários, mas é comum encontrar textos visuais que apresentam o mesmo fenômeno. O autor faz em seu estudo a análise do intertexto entre a charge e textos visuais e a charge com textos verbais, do jornal onde é veiculada. Percebe-se no trabalho de Romualdo (2000) claramente a capacidade da charge congregar discursos e remeter o leitor a eles dentro dos assuntos elencados do próprio jornal (quando a charge aborda o assunto de capa ou do editorial) a assuntos extra-jornal, em que o leitor irá formular sentidos pelos conteúdos que absorveu de outras mídias. Seguindo nesta perspectiva de Romualdo (2000), é interessante destacar como Orlandi (2002, p. 33) diferencia intertexto de interdiscurso, onde o intertexto relaciona o texto com outros textos, num sentido superficial da língua. Por sua vez, a autora define interdiscurso como sendo um conjunto de formulações feitas, e que já foram esquecidas, mas que conseguem determinar, influenciar o que é dito no presente. Isso graças à capacidade do interdiscurso de remeter a memórias do já-dito. Estas memórias, segundo Orlandi (2002, p. 30), chamadas de memórias discursivas, foram discursos produzidos antes ou em outro lugar. Este já-dito que interfere no que é dito fundamenta o funcionamento do discurso e faz compreender a relação de seus sujeitos com a ideologia (ORLANDI, 2002, p. 32). A autora, citando Courtine (1984), afirma que no interdiscurso fala uma voz sem nome. A noção de esquecimento, de Michel Pêcheux, é trabalhada por Orlandi (2002, p. 35), quando esta expõe a forma ilusória do sujeito de pensar em ser ele a origem do discurso, quando o discurso, na verdade, é remetido no nível do inconsciente à sentidos já existentes. Neste constante movimento remissivo de discursos ditos agora a discursos já ditos, Orlandi (2002, p. 36) estabelece dois processos básicos do funcionamento da linguagem, que achamos muito pertinentes para explicar o funcionamento do interdiscurso na charge, a paráfrase e a polissemia. Na paráfrase mantêm-se a 149

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A imagem aqui é expressa no sentido de uma construção social de significados, de que trata Orlandi (2002, p. 42). No caso, a imagem social, original e primeira, do político.

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memória, o pensamento que é consultado a cada ato discursivo. A paráfrase resguarda sentidos já constituídos e esperados e permite ao homem produzir o dizer a partir de processos já cristalizados (ORLANDI, 2002, p. 37). Já na polissemia, como já definido anteriormente, o recurso remissivo a sentidos estabelecidos é desviado, gerando assim uma quebra na expectativa do enunciatário. Esses movimentos de reportar-se ao sentido já estabelecido, paráfrase, e de criar outros sentidos, pelo desvio do sentido esperado, polissemia, são movimentos que causam surpresa no leitor da charge. Ao mesmo tempo em que ele é estimulado a buscar sentidos estabelecidos ao ver a caricatura de um político (homem público, sério, responsável, de caráter reto), é tensionado ao entender que esta imagem5 está associada a uma raposa espreitando um galinheiro (animal sorrateiro, traiçoeiro, predador). A capacidade de criatividade com o enunciado, no caso a charge, é melhor definida por Bakhtin (2003, p. 264) quando este estabelece gêneros ao discurso. Segundo o autor, o discurso secundário, de características complexas que compreende o discurso artístico, científico, sociológico, etc. ao ser elaborado incorpora e reelabora gêneros primários, estes definidos por Bakhtin (2003) como simples. Pelo caráter icônico, humorístico e polissêmico da charge ela pode ser enquadrada, segundo a delimitação de discurso proposta pelo autor russo, como gênero secundário. Por sua vez, as significações plásticas poderiam ser consideradas como de gênero primário, por darem condições de construção do conteúdo semântico, e este poderia se considerar de gênero secundário. Partindo do princípio de que os elementos plásticos da imagem têm capacidade autônoma de significação e que preparam estrategicamente toda estrutura icônica da charge para a posterior elaboração do sentido semântico, faz-se necessária a análise dos elementos plásticos da charge e os sentidos que estes são capazes de produzir, como afirmação deste projeto de Dissertação. Deixando clara a intenção metodológica deste trabalho, é necessário dar ênfase aos rumos que esta análise toma. Como

já se disse, tomam-se dois aspectos em uma charge, o plástico e o semântico, tal como se vem teorizando. Aqui a atenção maior é dada à riqueza de sentidos produzidos pelos elementos plásticos constituintes do corpus escolhido, isto é, as significações plásticas. Num segundo momento, porém não menos importante para a plenitude destas manifestações de humor icônico, está também a dimensão semântica delas que é abordada basicamente na consideração dos recursos polifônicos e interdiscursivos. É ainda importante destacar aqui, a estrutura definida por Villafañe (2000, p. 50) para as imagens. Segundo ele, toda imagem possui três estruturas básicas: espacial, temporal e de relação. Os elementos morfológicos (ponto, linha, plano, textura, cor e forma) e dinâmicos (movimento, tensão e ritmo) da imagem possuem predominância de caráter qualitativo e enquadram-se nas estruturas de espaço e tempo, enquanto que os elementos escalares da imagem (dimensão, formato, escala e proporção) possuem caráter quantitativo e são instrumentos de relação para os elementos já postos na imagem. Inicia-se esta análise pelo exame de elementos morfológicos, entre eles o ponto, a linha, o plano, a textura, a cor e a forma, bem como de elementos dinâmicos, por sua vez entendidos como o movimento, a tensão e o ritmo. Trataremos da análise da imagem pela sua materialidade, ou seja, pelos seus aspectos tangíveis. Os elementos morfológicos da imagem, classificados por Villafañe (2000, p. 97) dizem respeito diretamente a esta materialidade. São os únicos que dão condições para a imagem estruturar-se plasticamente, mas, enquanto linguagem, é essa estruturação que proporciona o jogo dos significados e sentidos. Efeito de sentido comum, que ocorre entre os elementos morfológicos textura e plano, é a profundidade. Nesta ampla e genial relação entre elementos plásticos, a proximidade ou distanciamento em uma imagem fixa dá-se pela ação do plano, que se vale da linha e das variações cromáticas, para estabelecer relação de escala aos objetos da imagem que ali se encontram. Desta capaci151

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dade espacial organizacional, o plano plástico é capaz de sugerir a terceira dimensão nas imagens fixas (VILLAFAÑE, 2000, p. 108). Vejamos um bom exemplo nesta charge de Lute, na Figura 1.

Figura 1 – Charge analisada 1 Fonte: Lute (2011).

Esta charge resume as duas dimensões que podem ser assumidas em uma imagem, pelo plano. Por apresentar uma horizontalidade predominante, base larga e três linhas horizontais que definem planos, a imagem tem uma capacidade narrativa maior. Kandinsky (2005) mapeou o plano original e a importância de seus quadrantes sendo que, atribuía a planos mais abertos (largos) natureza fria, calma e a planos mais fechados (estreitos) natureza quente, dramática. Dizia: “Os elementos separados são implantados, desde o começo, numa atmosfera mais ou menos fria ou quente”. Na charge de Lute, o leitor consegue lançar o olhar pela extremidade esquerda e lê-la como texto, só que este visual. Esta natureza narrativa, criada nesta charge, é possível pelo formato do plano 152

original, PO, como já mencionamos, que determina os limites espaciais do que será representado e, de antemão quando escolhido, prevê um grande número de relações entre elementos dentro da imagem. O texto verbal irônico: “Só até o quilômetro 3!” apresenta o discurso da extensa lista de material escolar que os pais precisam comprar para o reinício das aulas dos filhos. O valor predominante aqui tem relação com distância, tamanho. Ancorando este valor, o chargista colocou na charge três planos: primeiro, onde estão pai e filho; segundo, vislumbrado por uma casa à direita da imagem; e terceiro, prédios que completam uma paisagem urbana. Todos os planos estão demarcados por linhas que desenham relevo do solo, recurso iconográfico que faz a retórica da significação semântica embarcada na expressão “lista de material escolar”. A lista, elemento gráfico que está atrelado ao discurso do grande número de material escolar requisitado, se prolonga do primeiro até o terceiro plano e acaba por perder-se de vista na linha que limita o horizonte. Ao afastar-se do primeiro plano, ela fica mais estreita até tomar proporção fina ao longe. Esta distribuição entre os planos enaltece a idéia de extensão proposta pelo texto verbal que fica mais evidente em planos materiais mais abertos, horizontais. Kandinsky (2005, p. 134) depois de analisar o plano material, conclui que da relação do mesmo plano com os demais elementos visuais, resulta um plano material transformado em espaço indefinível, aumentando a noção de tempo. Ou seja, a profundidade que se produz através dos planos plásticos descentraliza o olhar da superfície da imagem e o leva para adiante, para o fundo, produzindo o sentido de tempo implicado no dizer do personagem representado à esquerda da imagem: “conseguiu comprar...?”. Os planos ao compartimentarem o espaço plástico da imagem, tratam de distribuir nele os objetos representados. Nesta distribuição, os objetos obedecem a uma perspectiva que acaba por determinar a orientação espacial de como são desenhados. Esta orientação pode afetar a percepção do objeto. Para nos atermos a este fenômeno é necessário analisar153

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mos o elemento morfológico forma e seus usos na charge. Por trabalhar com uma representação caricatural, a charge brinca com as formas de uma maneira especial. Organiza elementos da realidade em uma atmosfera sutil e leve. O efeito caricatural reflete-se tanto nas personagens quanto na paisagem desenhada. O sublime distanciamento do referente constitui a grande tônica da linguagem visual da charge. Através disso, o traço caricaturiza os fatos e os atores sociais por ela representados. Como se observa na Figura 2, que segue.

linhas tênues com contornos suaves, da representação da mulher e do próprio carro. Esse efeito constrói uma realidade fantasiosa no intuito de induzir seus discursos semânticos ao embalo da graça. Os traços não são detalhistas, basta olhar a representação do automóvel também feita de linhas de contornos suaves, arredondados e com poucos detalhes técnicos, facilitando o trabalho do mecanismo receptor humano, que prefere receber formas simples. A leveza das formas condiz com o tom leve que o discurso de humor propõe. A lembrança da imagem real é possível pela característica estrutural da forma, através da qual se preservam os traços, que possibilitam sua identificação, sua recordação. O êxito deste processo está diretamente ligado à qualidade do estímulo que se dá ao observador. Dependendo deste estímulo, o organismo visual humano organiza um padrão de objeto que lhe pareça mais simples. Sendo pois, a simplicidade a qualidade da forma que Villafañe (2000) mais destaca. É a lei básica da percepção, onde um padrão de estímulos é visto pela estrutura mais simples, que o observador consegue organizar segundo as condições que lhes são dadas (ARNHEIM, 2000, p. 55). Um traço simples requer um desprendimento dos detalhes, é o que acontece na charge de Lute. O desenho do casal e do carro, por possuir formas simples e de contornos arredondados, produz um efeito de sentido de carinho, graça. São formas que estão próximas do símbolo do que representam e tendem a representar plasticamente, uma atmosfera fantasiosa. Considerações Finais

Figura 2 – Charge analisada 2 Fonte: Jarbas (2011).

O ambiente, criado iconograficamente para fazer a narrativa (personagens, objetos e paisagem), é todo composto por formas similares, porém, distantes da realidade. O contorno do rosto da representação de homem sentado no carro segue o mesmo estilo, 154

Antes de atingir o nível dos sentidos, a charge estrutura-se por elementos plásticos que, ordenados de determinada forma, compõem linguagem. Quando colocada em circulação e consumo, assume caráter enunciativo. Neste momento, o envolvimento do enunciado com o enunciatário, acaba despertando neste, uma diversidade de sentidos, pré-elaborados em suas vivências sociais. Tal despertar se dá pela objetividade possibilitada no ato 155

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plástico. Nas charges analisadas, tais condicionamentos são perceptíveis ao considerarmos, por exemplo, o uso do elemento morfológico forma, para dar o tom caricatural à cena desenhada. A imagem representada na charge remete-se ao real, neste caminho porém, a forma torna agudos alguns sentidos através das distorções caricaturais que promove nos elementos desenhados. Neste exercício de remissão ao real, em que busca valores já reconhecidos na vivência humana, a imagem só consegue existir se condicionando à plasticidade.

Referências ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000. AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 2009. BARBOSA, Gustavo; RABAÇA, Carlos A. Dicionário de comunicação. 2ª Ed. rev. e atualizada. Rio de Janeiro: Campus, 2001. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística Geral II. 2ª Ed – Campinas, SP: Pontes Editores, 2006. CATALÁ, Josep M. La imagen y La representación de la complejidad. 2006. Disponível em: < http://www.mmur.net/teenchannel/era_digital/ponencies/j-Catala.htm> Acesso em: 20 abr. 2010. DONDIS, Dondis A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997. JARBAS. Disponível em: Acesso em: 22 jan. 2011. JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, SP: Papirus, 1996. KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte e na pintura em particular. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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______. Ponto e linha sobre o plano. São Paulo: Martins Fontes, 2005. LUTE. Disponível em: Acesso em: 20 jan. 2011. ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2002. PERUZZOLO, Adair C. A comunicação como encontro. Bauru, SP: Edusc, 2006. ROMUALDO, Edson Carlos. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia: um estudo de charges da Folha de São Paulo. Maringá: Eduem, 2000. VILCHES, Lorenzo. La lectura de La imagen: prensa, cine, televisión. Barcelona: Ediciones Paidós, 1988. VILLAFAÑE, Justo G. Introducción a la teoria de la imagen. Madrid-Spaña: Ediciones Pirámide, 2000.

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Estratégias emergentes de legitimação do jornal Zero Hora no Twitter Luciana Menezes Carvalho é jornalista, com especialização e mestrado em Comunicação Midiática (UFSM). É pesquisadora das mídias sociais digitais e atua como analista e gestora de mídias sociais na agência Gesttione de Comunicação e Marketing (Santa Maria-RS). Possui experiência como jornalista nas áreas de rádio, impresso, TV e assessoria de imprensa. E-mail: [email protected] Eugenia Maria Mariano da Rocha Barichello é Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada II da UFSM e coordenadora o Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Instituição. É bolsista em Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisa (PQ2 CNPq), líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação Institucional e Organizacional (CNPq) e vice-coordenadora do GT Comunicação em Contextos Organizacionais da Compós. Autora de quatro livros, é membro do Comitê Científico da ABRAPCORP e integrante do Conselho editorial dos periódicos científicos INTERIN, Animus e Culturas Midiáticas. E-mail: [email protected]

Resumo: O trabalho analisa a emergência de estratégias de legitimação institucional na utilização do Twitter pelo jornal Zero Hora (Porto Alegre-RS). Parte-se do pressuposto de que as mídias sociais da internet potencializam processos de desintermediação e deslegitimação do campo institucional do jornalismo; e que as organizações que dele fazem parte lançam mão de estratégias para legitimar seu papel social de mediação no uso dessas mídias. Para analisar a emergência dessas estratégias em Zero Hora, foi empregada metodologia híbrida, por meio de análise de conteúdo (AC), entrevista semi-estruturada com editores do jornal e observação participante na redação. A AC foi aplicada em corpora referente a duas coberturas jornalísticas no perfil @zerohora, no Twitter, em que foram identificadas quatro categorias principais de uso da ferramenta. A emergência de estratégias de legitimação, na prática informativa no Twitter e no dizer dos entrevistados, aponta para algumas rupturas no papel institucional de mediação do jornal. Palavras-chave: estratégias de legitimação; comunicação institucional; jornalismo; mídias sociais; Twitter Abstract: The paper analyzes the emergence of strategies of institutional legitimacy in the use of Twitter by the newspaper Zero Hora (Porto Alegre-RS). It starts from the assumption that social media internet potentialize processes of disintermediation and illegitimacy of the institutional field of journalism, and organizations that are part use strategies to legitimize their social role of mediation in the use of these media. To analyze the emergence of these strategies in Zero Hora, was employed hybrid methodology, using content analysis (CA), semi-structured interview with the newspaper editors and participant observation. The AC was applied to two corpora relating to news coverage in the profile @ zerohora, on Twitter, which were identified in four main categories of tool use. The emergence of strategies of legitimation, in practice information on Twitter and those interviewed say, points to some 161

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breaks in the institutional role of mediation in the newspaper. Key-words: legitimizing strategies; institutional communication; journalism; social media; Twitter Introdução Este trabalho parte de um contexto de transformações sociotécnicas que marcam a sociedade midiatizada, com seus processos de deslegitimação das instituições potencializados pelas características desintermediadoras das mídias sociais digitais da atualidade e seus impactos no jornalismo informativo. Entendemos que o jornalismo é uma instituição social, cujo papel central é a mediação informativa, legitimada em sua matriz hegemônica (informativa) através do discurso da objetividade, por meio de uma lógica de comunicação baseada no modelo massivo de transmissão e difusão de informações. Lógica essa que se vê em crise diante da atual ambiência midiatizada caracterizada por possibilidades de interação mútua e mediação descentralizada, envolvendo participação, conversação e uma lógica de fluxos em rede. Diante deste cenário, a questão central foi investigar as possíveis estratégias, visando à legitimação, adotadas pelo campo institucional do jornalismo por meio de suas organizações, diante dessas práticas desintermediadoras das mídias sociais digitais. Delimitamos a pesquisa aos usos dados pelo jornal Zero Hora ao serviço de micromensagens Twitter, onde nos propusemos a investigar as estratégias de legitimação emergentes no conteúdo das postagens referentes à cobertura de dois acontecimentos, com um intervalo de cerca de um ano entre um e outro. Ao mesmo tempo, realizamos observação participante na redação do jornal e entrevistas semi-estruturadas com dois editores de ZH. Os resultados das duas etapas de análise foram cruzados às entrevistas, revelando estratégias emergentes de legitimação na utilização do Twitter por Zero Hora. 162

Percurso metodológico A presente pesquisa, de caráter híbrido, é guiada principalmente pela metodologia de Análise de Conteúdo (AC) em sua vertente qualitativa. Segundo Herscovitz (2008, p. 123-124), “amplamente empregada nos vários ramos das ciências sociais empíricas, a análise de conteúdo revela-se como um método de grande utilidade na pesquisa jornalística”, ajudando o pesquisador a compreender a lógica da organização midiática nas mensagens analisadas. A AC foi aplicada em duas etapas, cada uma referente a um corpus de pesquisa. O primeiro corpus foi formado pelas postagens do perfil de @zerohora no Twitter publicadas entre 18/11/2009 e 18/12/2009, referentes à cobertura de um temporal que atingiu o estado do Rio Grande do Sul em novembro daquele ano e que ficou identificado pela expressão “#temporalrs”. Ao final de 2010, realizamos uma segunda etapa da AC, em que as categorias emergentes na primeira etapa foram aplicadas a um segundo corpus, seguindo os mesmos critérios de categorização. Essa segunda etapa constituiu a análise das postagens relacionadas a uma cobertura de trânsito nas estradas do Rio Grande do Sul no final do ano, com o corpus delimitado aos posts sobre o assunto entre 05/12/2010 e 05/01/2011 no perfil de Zero Hora no Twitter. Levamos em conta as características do Twitter e as principais apropriações apontadas pela literatura, além da natureza do problema e dos objetivos da pesquisa para a categorização. Java et al (2007) apontaram em uma amostra obtida da timeline da ferramenta os seguintes usos com relação à intenção dos autores dos tweets: falas diárias; conversação; compartilhamento de informação; e notícias1. Para nossa pesquisa, reformulamos as categorias de Java et al (2007) em função de nossa análise ser focada nas postagens de uma organização jornalística, e não em uma amostra aleatória. Realizamos nossa classificação a partir dos usos que apontamos como sendo os principais no Twitter atualmente,

Tradução da autora para as categorias “daily chatter; conversations; sharing information; e reporting news”, em inglês.

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e que emergiram dos casos analisados em Zero Hora. No Quadro 1, estão elencadas as categorias de análise e os critérios correspondentes que foram utilizados para a categorização.

Quadro 1: Categorias e seus critérios para a AC Fonte: Elaborado pela autora

. Primeira etapa da AC: cobertura do #temporalrs Para construção do corpus, primeiro selecionamos o conjunto de posts publicados pelo jornal Zero Hora em seu perfil oficial na ferramenta de micromensagens, no período de 18/11/2009 a 18/12/2009, intervalo de um mês após a primeira postagem sobre o acontecimento “temporal”. O número total de tweets no período foi de 194. Depois, selecionamos apenas os tweets relacionados ao acontecimento. A seleção utilizou um critério semântico, feita com base na presença de palavras e termos relacionados ao tema “temporal no Rio Grande do Sul” (chuvas, ventos fortes, temporal, “temporalpoa”, “temporalrs”, ao contexto das mensagens 164

(estragos causados pela chuva, falta de energia elétrica, problemas na infraestrutura urbana etc) e à questão da participação dos leitores na cobertura do temporal (com a presença de termos como “envie alertas”, “mande fotos”, “colabore”, “participe”). Assim, o corpus de análise ficou constituído de 81 tweets, correspondendo a 41% de todos os posts do período. Dividimos os 81 tweets que compõem este primeiro corpus conforme as categorias de análise expostas no Quadro 1. A categorização adotada revelou um uso predominante do Twitter por ZH para fins informativos, na cobrrtura do temporal ocorrido no Rio Grande do Sul em novembro de 2009, com 65% do total de tweets que constituem o corpus relacionado à categoria difusão de informações. Com 12 unidades (15% do total do corpus), em segundo lugar como uso mais corrente no caso analisado, apareceu a categoria participação, reuniundo os tweets destinados a solicitar a colaboração dos leitores na cobertura do acontecimento e sua participação em espaços interativos do jornal. O terceiro uso mais frequente de Zero Hora do seu perfil no Twitter, no acontecimento #temporalrs, diz respeito ao compartilhamento de informações recebidas de outros perfis (através do retweet). Também na terceira posição em termos percentuais, aparece a categoria conversação, reunindo os tweets que mencionam perfis específicos, incluindo respostas ou agradecimentos por parte do jornal aos seguidores. De modo geral, os resultados dessa primeira etapa da análise nos permitem inferir que, mesmo na ambiência da mídia social digital, em que predomina uma lógica de fluxos (CASTELLS, 1999), emissão descentralizada (LEMOS, 2004) e interações sociais do tipo mútua (PRIMO, 2007), o papel de intermediação do jornalismo (GUERRA, 2008) continua predominando nos usos dados pela organização. Por meio da difusão de informações, Zero Hora divulga manchetes, posta links para notícias em seu site e para os blogs dos seus colaboradores, enfim, utiliza a ferramenta como um suporte 165

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noticioso (KWAK et al, 2010). Ainda assim, enriquece essa atuação por meio da incorporação de funcionalidades da ferramenta. Por outro lado, entendemos que, mesmo que Zero Hora não faça uso, no conjunto de posts analisados (corpus 1), das possibilidades de conversação em sua potencialidade, conservando seu papel institucional de controle sobre a emissão no espaço do seu perfil no Twitter, os interagentes têm autonomia para se referirem a ela, e sua presença nesse espaço de algum modo mostra uma intenção de fazer parte da conversa. Eles em algum momento a mencionarão, positiva ou negativamente, e ela deve estar preparada para responder, sob pena de que uma crítica, por exemplo, ganhe uma dimensão incontrolável. Segunda etapa da AC: a cobertura do #transito A segunda etapa da análise de conteúdo teve como objetivo observar se, após um ano, haveria mudanças ou continuidades nos usos informativos dados pela organização à ferramenta. Para isto, foram adotados os mesmos critérios na categorização, para que a comparação com o primeiro corpus fosse possível. Em primeiro lugar, foi utilizado critério semântico semelhante na seleção do corpus. Desta vez, optamos por realizar a AC na cobertura sobre o trânsito nas rodovias gaúchas durante o final de ano, quando o assunto costuma pautar a mídia regional, especialmente os veículos do Grupo RBS. O ponto de partida para a constituição do corpus foi o início do veraneio, quando muitos gaúchos dirigem-se ao litoral, intensificando o tráfego nas estradas. Seguindo o modelo que adotamos no primeiro corpus, selecionamos um mês de postagens que pudesse congregar a cobertura sobre o tema escolhido. Assim, iniciamos a seleção dos tweets no dia 05/12/2010, encerrando no dia 05/01/2011. Neste período, Zero Hora postou em seu perfil um total de 849 mensagens (ou tweets). Deste total, selecionamos aqueles que se relacionavam à cobertura sobre trânsito no Estado, passando a constituir nosso corpus de análise, nesta segunda etapa da AC, um conjunto de 141 tweets. 166

A categorização dos posts, na segunda etapa da AC, levou em conta as mesmas categorias que emergiram da primeira etapa, quando foi analisado o corpus do temporal. Nesta segunda etapa de análise de conteúdo, aplicada ao corpus 2, a categoria com maior número de tweets foi a de compartilhamento, em que enquadram-se os retweets (RTs) dados por @zerohora, conforme critério estabelecido previamente e aplicado às duas etapas de análise. Um total de 92 tweets correspondeu a esta categoria, ou seja, 65,7% do corpus sobre trânsito no período de um mês. Uma primeira diferença em relação à primeira etapa (corpus 1), em que a categoria predominante foi a de difusão de informações e a de compartilhamento apareceu em terceiro lugar. A categoria compartilhamento apresentou, ainda, outra distinção em relação à primeira etapa da AC. Enquanto no corpus sobre o temporal (corpus 1), os retweets dados pelo perfil de @zerohora diziam respeito em sua maioria à replicação de informações dadas por perfis de jornalistas do próprio jornal ou do grupo RBS, ou ainda de organizações e assessorias (como da companhia de energia elétrica, a CEEE), no corpus sobre trânsito a categoria reuniu um grande número de RTs pelos quais o jornal replica informações dos leitores (seguidores de @zerohora), dado que não apareceu na primeira etapa da AC. Até mesmo em função de não ter emergido tal situação é que na categoria participação incluímos, na primeira etapa, os posts em que @zerohora solicita a participação dos leitores, e não a própria participação deles, que ficou diluída ou não representou um dado significativo naquele momento. Somente na segunda etapa da AC, com a análise do corpus 2, é que essa participação apareceu na categoria compartilhamento, enquanto que a solicitação de colaboração feita pelo jornal diminuiu, como veremos ao interpretar a categoria participação. Em segundo lugar em número de tweets, o corpus 2 apresentou a categoria difusão de informações, com 32 unidades correspondentes a 26,4% do total. No primeiro corpus de análise, ela apareceu 167

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em primeiro lugar, com 65% do total. Nesta categoria de difusão de informações, estão postagens simples do perfil de Zero Hora, em que o jornal apenas informa, sem mencionar outro perfil ou compartilhar por meio de RT alguma postagem de terceiros. Não percebemos distinções importantes em relação ao conteúdo dos posts dessa etapa na comparação com a primeira, como ocorreu com a categoria compartilhamento, descrita nos parágrafos anteriores. Em terceiro lugar em número de posts nesta segunda etapa, está a categoria participação, com seis tweets, ou 4,2% do total desse corpus. Em relação ao corpus analisado na primeira etapa, houve uma queda nesse tipo de uso do Twitter por parte de Zero Hora. Na primeira etapa, a participação representou 15% do total do corpus 1, como segundo uso mais frequente na ocasião. Como já mencionamos na análise da categoria compartilhamento, percebemos um deslocamento da participação e uma mudança de sentido desta categoria em relação ao primeiro corpus. Como a maior parte de tweets envolvendo a ideia de participação, na primeira etapa (corpus 1), dizia respeito à solicitação de colaboração dos seguidores por parte do perfil de Zero Hora, o critério para essa categoria foi a presença desse tipo de interpelação ao leitor. Como a segunda etapa deveria contemplar os mesmos critérios, para que a comparação fosse possível, mantivemos a categoria participação reunindo os posts desse tipo. No entanto, neste segundo corpus, a ideia de participação que se sobressaiu não contemplou esse mesmo critério, pois um número reduzido de tweets tinha como conteúdo a interpelação aos seguidores. A ideia de participação, neste caso, deslocou-se para a divulgação, por parte de @ zerohora, das colaborações enviadas pelos seguidores, que foram retweetadas e, portanto, entraram na categoria compartilhamento. Por último, em quarta posição em termos de uso do Twitter nesta segunda etapa da AC, ficou a categoria conversação, com cinco tweets correspondendo a 3,5% do total do corpus 2. No primeiro corpus, essa categoria apareceu em terceiro lugar, empatada 168

com a categoria compartilhamento, representando 9,87% dos posts sobre temporal (corpus 1). A categoria reúne menções do perfil de Zero Hora a outros perfis do Twitter, em geral respondendo dúvidas dos seguidores, o que se manteve nos dois corpora analisados. Estratégias emergentes de legitimação Embora a ideia de estratégia esteja relacionada à de planejamento, nem sempre as estratégias são deliberadas, planejadas pela alta diretoria de uma organização. Muitas vezes, os valores da empresa, sua cultura organizacional e o perfil de seus colaboradores fazem com que processos estratégicos ocorram de modo menos programado, por decisão de departamentos ou mesmo por iniciativas individuais que, pelos resultados, aprecem ligadas a um projeto maior da organização, aos seus valores e missão. Nesse caso, temos as estratégias emergentes, que se desenvolvem sem intenções ou apesar delas. As estratégias emergentes estão relacionadas com um padrão de comportamento e ação que pode surgir e ser reconhecido, identificado (MINTZBERG, 2006, p. 27). Elas se opõem às estratégias deliberadas, que são resultado de uma pretensão prévia da organização com sua implementação pensada em todos os passos a priori. Para Mintzberg (2006), a maioria das estratégias envolve os dois tipos ao mesmo tempo, refletindo aspectos deliberados e emergentes. Como mostra a figura 19, as estratégias emergentes são sempre realizadas, enquanto a deliberada pode se realizar ou não. Em um cenário de midiatização marcado por uma crise institucional, especialmente no papel de intermediação que se dilui na sociedade, as organizações pertencentes à instituição midiática não têm muitas vezes tempo de planejar suas estratégias nas mídias digitais. Mas isso não significa que elas não ocorram, que não se realizem. A organização tem suas aspirações estratégicas, sua visão de mercado e da tecnologia, que em geral estão alinhados aos 169

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seus valores; portanto “estratégias pretendidas” que, no entanto, podem não chegar a ser implementadas (MINTZBERG, 2006). Como são necessárias decisões rápidas e que ocorrem de modo descentralizado, aparecem as estratégias emergentes, que podem ser visualizadas nos produtos e ações das organizações; no nosso caso, no conteúdo informativo da mídia. Entendemos que a noção de estratégia emergente é adequada ao nosso objeto de estudo, caracterizado pelo seu tom de novidade para as organizações e para o público, embora as mídias sociais digitais estejam cada vez mais presentes nas empresas jornalísticas e nos produtos que elas desenvolvem. Sendo um tema que ainda está sendo mapeado pelo meio acadêmico, e analisado pelo mercado jornalístico, pensar em estratégias para a mídia social digital é lidar com possibilidades, nunca com certezas.

Figura 19: Estratégias deliberadas e emergentes Fonte: Adaptado de Mintzberg (2006, p. 25)

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Estratégias de legitimação emergentes na cobertura do #temporalrs Os resultados de nossa análise de conteúdo nas postagens de Zero Hora no Twitter referente ao acontecimento #temporalrs (corpus 1), cruzados com as afirmações dos entrevistados, permitem-nos afirmar a presença de estratégias visando à legitimação institucional da organização nos usos que faz do serviço de micromensagens. Entendemos que são estratégias emergentes, pois não nos propusemos a investigar as estratégias no âmbito do planejamento e operação para que fosse possível percebermos seu caráter deliberado (MINTZBERG, 2006). Além de emergirem no conteúdo a partir de nossa análise, são emergentes também por estarem relacionadas a questões que a organização utiliza em seus discursos institucionais como forma de promover o processo de sua legitimação em um período de transformações e incertezas na atual ambiência das redes digitais; ou seja, mesmo sem que tenham sido pensadas deliberadamente, aparecem nos produtos da organização. Quando o editor Ricardo Stefanelli utiliza seu editorial (STEFANELLI, 2009) para elogiar a postura da organização onde trabalha, na cobertura do #temporalrs, enfatizou a importância da promoção da agilidade, da interatividade, da participação do leitor na cobertura do jornal2. Em nossa perspectiva, naquele momento nos forneceu pistas para que pudéssemos compreender o que a voz institucional de Zero Hora considera fator de legitimação - aceitação, vínculo, justificativa de existência (BARICHELLO, 2004, 2009) na ambiência das mídias sociais digitais. São essas questões, então, que deveriam emergir nos usos do Twitter, para que além de se dizer interativo, participativo, aberto ao leitor, ágil na informação, o jornal também utilizasse tais fundamentos em suas práticas no microblog. As hjnp6afirmações do editor ilustram o caráter dinâmico do processo de legitimação pela qual a instituição jornalística, corpo-

A entrevista completa está disponível em Carvalho (2010).

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rificada neste caso na organização Zero Hora, atualiza-se ao mesmo tempo em que mantém as principais características que estavam lá no momento de sua institucionalização (BERGER e LUCKMMANN, 1985; RODRIGUES, 1999; THOMPSON, 2008; GUERRA, 2008). Ao dar pistas dos valores que considera importantes para a organização em sua atuação nas mídias sociais digitais, o editor está mobilizando o processo de legitimação institucional de ZH, reforçando o papel de intermediação do jornalismo e, ao mesmo tempo, indicando atualizações desse papel a partir do atual momento sociotécnico; ele o faz por meio de práticas autorreferenciais, gerenciando a visibilidade da organização (BARICHELLO, 2004). As características da mídia social digital que o jornal quer incorporar mostram, ainda, um alinhamento da organização ao atual momento da instituição do jornalismo informativo como um todo, confirmando a relação entre instituição e organização conforme pensada por Rodrigues (1999) e Guerra (2008), para os quais a organização é da instituição uma atualização, seu aspecto observável. A organização reflete, por meio de sua relação com seu público, a relação entre o jornalismo e a sociedade (GUERRA, 2008). A questão da interatividade e da participação voltou a ser mencionada pelo editor na entrevista que nos concedeu (STEFANELLI, 2010), quando reafirma que Zero Hora preza por esses valores e utiliza a tecnologia como forma de os implementar; ao dizer que o Twitter é uma forma de ampliar a pauta por meio das possibilidades de participação dos leitores e de escuta dos anseios da comunidade; quando afirma que “o jornal está onde o público está”. Stefanelli também confirma que a presença de Zero Hora no Twitter é institucional, estando ligada à história e ao “DNA” do Grupo RBS ao qual pertence, tanto que houve a preocupação em preparar os jornalistas para utilizar a ferramenta como modo de evitar constrangimentos; ele também afirma que a utilização do serviço deve estar guiada pelo Manual de Ética e Responsabilidade Social da empresa. Stefanelli (2009, 2010) mostra, ainda, a importância que a 172

organização dá hoje à interação com os leitores por meio das plataformas digitais, encarando essas possibilidades como uma forma de enriquecer a prática de intermediação do jornalismo informativo e estreitando a relação do jornal com a comunidade – relação que, na mídia de massa não chega a se concretizar a partir de processos interativos mútuos (PRIMO, 2007), ficando limitada ao contato que se dá entre as instâncias de produção e recepção por meio da mensagem. Embora os usos do Twitter por Zero Hora, em nossa análise de conteúdo, revelem que a face presente naquele espaço corresponde à redação, ou seja, à produção editorial, jornalística, nossa análise sob o aspecto institucional encontra eco nas falas dos entrevistados, como já mencionamos nas referências ao que nos disse o editor. A jornalista responsável pelas mídias sociais também entra nesse aspecto, ao dizer que tem noção de que o público “olha a Zero Hora no Twitter” não como a redação, mas como “a Zero Hora”, tanto que enviam para o @zerohora reclamações sobre assinatura, anúncios, dentre outros assuntos que não dizem respeito ao jornal enquanto “redação” (NICKEL, 2010). Ou seja, o jornal enquanto organização está presente em seu perfil no Twitter e o que faz ali também faz emergir seus valores organizacionais, sua “visão da internet” e do jornalismo. E essa percepção do aspecto institucional que leva, muitas vezes, o jornal a ser interativo e a tentar “atender” as questões apresentadas pelos seguidores. “Não dá para a gente querer fazer aqui uma coisa que não tem nada a ver com o perfil da Zero Hora”, afirma Nickel (2010), referindo-se ao “perfil” institucional da organização. Desse modo, o que Zero Hora faz no Twitter reflete visões estratégicas da organização. Se o Twitter de Zero Hora reflete o que pensa a organização e o Grupo RBS como um todo, então podemos falar em estratégias emergentes no uso dessa ferramenta (MINTZBERG, 2006). A questão institucional está relacionada, como podemos observar, à atuação do jornal enquanto veículo de informação, pela qual ele exerce seu papel de intermediação informativa. Con173

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forme resultados de nossa análise de conteúdo, com a categoria difusão de informações predominando nos usos do Twitter pelo jornal Zero Hora, o papel social que legitima o jornalismo - desde sua institucionalização a partir da hegemonia que adquiriu a matriz informativa (GUERRA, 2008) - é reforçado nessa ferramenta de mídia social por meio da distribuição de notícias, seguindo a lógica de transmissão que caracteriza a mídia de massa. A organização, enquanto representante da instituição jornalismo informativo, atualiza seu papel de mediação a partir desse uso do Twitter como mais um suporte midiático, sem que haja alguma ruptura em relação à lógica de transmissão pela qual o jornalismo tem se legitimado em sua matriz informativa. É um uso que caracteriza muito mais uma continuidade, nesse aspecto, do que uma ruptura em relação aos outros meios (PALACIOS, 2002). No entanto, ao mudar o suporte, muda também a ambiência (SODRÉ, 2002). A organização, ao priorizar a difusão de informações no Twitter – conforme demonstrou a análise do corpus 1, aproveita o crescimento do serviço como mídia informativa, dando aos seus seguidores (followers) aquilo que tem aparecido como mais importante entre os usos gerais da ferramenta, que é a troca de informações, sobretudo de interesse jornalístico (KWAK et al, 2010). Em nenhuma outra mídia social digital a informação de interesse jornalístico tem tanta importância quanto no Twitter, como já ficou demonstrado na cobertura de catástrofes e tragédias através do serviço de micromensagem. Com o fluxo de informações produzidas e disseminadas pelos próprios interagentes crescendo, as organizações jornalísticas passam a marcar presença nesses espaços em busca de legitimação de seu papel social de intermediação. Ao promover seu principal papel social na ferramenta, difundindo informações, Zero Hora reafirma sua importância como intermediário, assumindo a responsabilidade pela apuração, seleção, atestando a credibilidade das informações. É esse aspecto que o editor menciona ao falar da importância do papel de “filtro” do jornal, ao 174

legitimar por meio de sua credibilidade “de 50 anos” as informações no Twitter. “O papel do veículo e do jornalismo é iluminar isso como verdade ou desmistificar o boato”, afirma (STEFANELLI, 2010). Seria uma nova direção ao papel de intermedição do jornalismo, na medida em que o jornal assumiria nas mídias sociais digitais uma função de filtro, de mediador do público no sentido de contextualizar, apurar, personalizar as informações, e não simplesmente distribuílas (SAAD, 2008; BOYD, 2010). Há também uma transformação na medida em que não percebemos estratégias de mascaramento por parte da organização do processo de construção da notícia, como vinha sendo feito na mídia de massa quando a credibilidade era construída por meio de efeitos de verdade que visavam reforçar a ideia de transmissão (ALSINA, 1989; SODRÉ, 2009; AMARAL, 2002). A estratégia que emerge no conteúdo da maioria dos tweets do corpus 1 também é percebida na entrevista da editora de mídias sociais quando fala da importância de que sejam dadas no Twitter informações contextualizadas, apuradas pela redação, afirmando que “a função do jornal é informar”, “divulgar fatos relevantes” (NICKEL, 2010)3. Esse uso informativo do Twitter, no entanto, não obedece a uma lógica transmissionista da comunicação de massa. Ou seja, é intermediação informativa, mas atualizada, renovada pelas peculiaridades da mídia social digital. Surgem outras possibilidades de informar, como é o caso das informações de bastidores enfatizadas por Bárbara Nickel na entrevista, ampliando as informações que as pessoas podem ter do acontecimento, em um processo de abertura típico da midiatização (SODRÉ, 2002; BRAGA, 2006) A categoria participação, que ficou em segundo lugar em número de tweets na primeira etapa da AC (corpus 1), mostra uma potencialização (PALACIOS, 2002), no Twitter de Zero Hora, das possibilidades interativas da mídia digital no atual estágio da web 2.0, com o fortalecimento de seu aspecto “social”; ou ainda uma ruptura se pensarmos na possibilidade de inclusão do leitor no processo de produção da notícia que ocorre nas mí-

A entrevista completa está disponível em Carvalho (2010).

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dias sociais digitais na comparação com o modelo da mídia de massa, em que o leitor estava limitado ao consumo das informações. Com o uso das possibilidades participativas do Twitter, na cobertura de um acontecimento, ZH empodera o leitor, ainda que com limites, no processo de produção da notícia. Remete, ainda, ao que Boyd (2010) considera um desafio colocado pelas mídias sociais digitais aos intermediários, que se refere à disputa por atenção das pessoas nos fluxos da mídia em rede. Quando interpela os seguidores, solicitando sua colaboração, o jornal mostra que a participação é uma questão estratégica para seu processo de legitimação nessa ambiência midiatizada. A estratégia de legitimação emergente com a categoria participação está presente na entrevista de Stefanelli (2010) quando ele confirma o que já havia manifestado no editorial sobre a cobertura do acontecimento. Poder contar com a colaboração do leitor e dos interagentes das mídias sociais digitais é uma das principais questões apontadas por Stefanelli, que relaciona essa participação à “ampliação da pauta” (STEFANELLI, 2010). É, portanto, a voz institucional nessa organização informativa enfatizando o caráter estratégico da participação. Mostrar-se ou dizer-se aberto a essa participação é que mais nos parece refletir o aspecto da legitimação institucional nessa categoria. A busca da colaboração do leitor, quando a organização por meio do seu perfil no Twitter o interpela, como ocorre no corpus 1, reflete ainda um interesse em participar da cultura da convergência (JENKINS, 2008). Com relação à categoria conversação, que apresentou uma pequena amostra de tweets na AC aplicada ao corpus 1, acreditamos que ela tenha emergido muito mais por questões circunstanciais do que estratégicas. Bárbara Nickel considerou, na entrevista, que embora ocorra um processo de conversa e participação, ele depende da participação dos seguidores e da decisão subjetiva de um editor. Ainda assim, a conversação reflete uma transformação nos modos pelos quais o jornalismo vem se legitimando, subvertendo a lógica 176

transmissiva da mídia de massa. Trata-se, então, de uma potencialização, conforme a ideia de Palacios (2002), nas práticas jornalísticas da organização. Na internet, antes da popularização das atuais mídias sociais, eram restritas as possibilidades de interação direta entre leitores e organização, limitando-se a troca de e-mails e chats, ou seja, era preciso utilizar-se de outros suportes para que houvesse contato entre jornal e leitores (MIELNICZUK e SILVEIRA, 2008). Quanto à categoria compartilhamento de conteúdo que emergiu na categorização realizada no primeiro corpus de análise, a partir da apropriação pelo perfil de @zerohora da funcionalidade Retweet do Twitter, consideramos uma possível ruptura em relação à lógica massiva, conforme considerada por Palácios (2002). Isto porque, embora possa parecer uma apropriação trivial de uma funcionalidade do serviço de micromensagens, o compartilhamento de informações indica certa inversão de papéis no jornalismo informativo. O leitor está sendo usado como fonte de legitimidade, garantindo credibilidade à cobertura do jornal. Vale destacar que o discurso destoa de algum modo da prática na utilização das mídias sociais digitais pelo jornal. Enquanto predomina nos usos (práxis) a estratégia de legitimação pelo papel de intermediação (por meio da difusão de informações), na fala do editor (STEFANELLI, 2009, 2010), que representa o ethos do jornal, há uma estratégia maior de exaltação das funções interativas dessas ferramentas, embora ele não deixe de enfatizar a questão da credibilidade da organização pelo seu papel de informar. O que se destaca nas estratégias emergentes analisadas, é que não há uma preocupação com o tradicional discurso da objetividade, da transparência do jornalismo nas práticas do jornal no Twiter, por mais que seja dada prioridade ao uso informativo. A prática é objetiva na medida em que informa, mas a preocupação em prol da legitimação é ligada às potencialidades da mídia social digital, como vimos nas entrevistas (NICKEL, 2010; STEFANELLI, 2010). O efeito de verdade que pauta o jornalismo em sua matriz informativa 177

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por meio das mídias de massa, no Twitter poderia estar sendo buscado de modo mais complexo, através de efeitos de participação. Seria esse um sinal de transformação no processo de legitimação institucional da organização jornalística a partir das práticas desintermediadoras (LEVY, 1998) e deslegitimadoras (LYOTARD, 2000) que ocorrem nos fluxos das mídias sociais digitais. Estratégias de legitimação emergentes na cobertura do #transito A segunda etapa da análise de conteúdo, aplicada ao corpus 2, fez emergir novas questões sobre o uso informativo que Zero Hora faz do seu perfil no Twitter e sobre as estratégias de legitimação institucional que mobiliza nessa prática. As categorias que utilizamos para classificar os tweets desse segundo corpus não emergiram dos usos que encontramos, ao contrário do que ocorreu na primeira etapa da AC. Isso porque o objetivo, neste segundo momento, era testar a metodologia já aplicada na primeira etapa e confirmar resultados, ou refutá-los. O que emergiram foram novos resultados, apesar de ter sido possível encontrar as mesmas categorias nos principais usos do Twitter por Zero Hora, conforme já descrevemos. Uma das primeiras mudanças que percebemos de um corpus para outro foi o número de posts totais, indicando um aumento na frequência com que @zerohora é atualizado. Enquanto o corpus 1 foi constituído de 81 tweets sobre o temporal no período de um mês, o corpus 2 inclui 141 tweets sobre trânsito em um mesmo período de tempo, um crescimento de 74%. Não emergem maiores interpretações aqui, pois são assuntos diferentes que envolvem outras questões, portanto não seria possível inferir que se trata de uma mudança na utilização da ferramenta, servindo esses dados apenas como ilustração. As mudanças que nos interessam a título de análise estão 178

ligadas à categorização. Como podemos observar nos resultados da análise deste segundo corpus, houve uma significativa mudança, em comparação ao corpus 1, no uso predominante do Twitter. Enquanto no primeiro, o uso mais comum foi correspondente à categoria difusão de informações, indicando certa manutenção da mediação centralizada por parte do jornal na ambiência da mídia social digital, um ano após, na cobertura de trânsito, a preferência do jornal foi pelo compartilhamento de informações e, sobretudo, de informações geradas pelos seguidores. Ou seja, há uma indicação de que a organização, enquanto representante da instituição “jornalismo informativo”, começa a se apropriar de modo cada mais intenso das potencialidades interacionais da mídia social digital, chegando a sobrepor a participação do leitor à mera difusão de informações. Muitos dos posts de trânsito no corpus 2 dizem respeito a hashtag “#naestrada”, identificando uma cobertura colaborativa proposta por @zerohora. Assim, muitos dos RTs são postagens dos leitores, com textos e imagens, atendendo ao pedido do jornal para atuarem como repórteres na cobertura da movimentação do trânsito nas rodovias gaúchas durante o feriadão de Natal e Ano-Novo. As informações eram postadas em tempo real, indicando o uso do Twitter como plataforma jornalística colaborativa. Conforme o que afirmamos ao analisar as estratégias emergentes na primeira etapa, o compartilhamento de informações por si só representa uma possibilidade da mídia social digital que opera uma ruptura em relação à lógica de transmissão da mídia de massa, no sentido pensado por Palácios (2002). Quando colocado em primeiro lugar como uso do Twitter, o compartilhamento pode revelar que Zero Hora começa a valorizar as potencialidades oferecidas pela mídia social digital para além do papel de mediação do jornalismo, tão presente no processo de legitimação institucional no modelo de comunicação de massa. Nessa perspectiva, acreditamos que, a partir da análise do segundo corpus, fez mais sentido pensar em uma crise de legitimação institu179

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cional do jornalismo, com deslocamentos, na ambiência da mídia social digital, no papel central pelo qual ele sempre se legitimou. Ainda assim, não podemos ignorar o que já afirmamos sobre a primeira etapa da AC, que mesmo quando compartilha informação de outrem, a organização está reforçando, possivelmente, seu papel de intermediária. Trata-se, agora de modo mais intenso, de uma renovação nesse papel que legitima o jornalismo institucionalmente, com a inclusão do leitor (seguidor de @zerohora) em sua prática de informar. Inclusão do leitor que se dá de modo estratégico, conforme pensado por Saad (2008) e Boyd (2010), para garantir um discurso mais plural e em acordo com a lógica das mídias sociais digitais. A importância que continua tendo, nessa ambiência de participação, o papel de mediação informativa do jornalismo, é confirmada pela presença da categoria difusão de informações como o segundo uso mais freqüente do Twitter, nesta segunda etapa da AC. Ou seja, se também informa quando compartilha as informações enviadas pelos seguidores, mesmo que diminua as postagens em que difunde notícias do próprio jornal, Zero Hora continua exercendo seu papel de mediação informativa já desempenhado nas outras plataformas (impresso, site etc), promovendo, no entanto, atualizações no modo de informar, tornando-o mais participativo, conversacional, por contar com o leitor como um colaborador e fazer questão de tornar isso público (por meio do RT). A questão da participação, nesta segunda etapa da AC, vai além da interpelação de Zero Hora aos seguidores de seu perfil (como emergiu na primeira etapa), aparecendo, como já demonstrou nossa interpretação, no conteúdo dos tweets que entraram na categoria compartilhamento. Assim, não poderíamos inferir que a importância da participação diminuiu no corpus 2, pois estaríamos ignorando o que o conteúdo manifesta após uma análise mais global e aprofundada do corpus. Diminuiu, sim, o número de tweets que integram a catego180

ria participação, que assim foram enquadrados por utilizarmos os mesmos critérios usados na categorização do corpus 1; mas não diminuiu a ideia de participação no uso do Twitter por Zero Hora, como mostrou nossa análise dos posts que integram a categoria compartilhamento, a maioria formada por retweets para colaborações enviadas pelos leitores – ou seja, a ideia da participação cresceu com a inclusão do leitor na difusão de informações. Zero Hora parece ter se liberado do receio de perder o controle sobre a informação, embora continue controlando o fluxo informativo, mas de um modo mais aberto, que estrategicamente cria um discurso renovado de legitimação institucional da organização, mostrando-se cada vez mais participativa, por mais que essa participação seja controlada, filtrada editorialmente. A conversação, mais uma vez, manteve-se limitada a um número pequeno de posts, inclusive tendo diminuído no corpus 2 em relação ao primeiro. Acreditamos que não houve uma mudança nesse aspecto e que ele continua sendo pouco estratégico para Zero Hora, que parece “conversar” diretamente com os seguidores apenas em casos pontuais, sem uma preocupação em passar uma imagem de que está aberta ao diálogo no Twitter. Parece que a variação na porcentagem de tweets que integram essa categoria não interfere no resultado global da prática informativa de Zero Hora no Twitter. Assim como observamos no primeiro corpus, o segundo também faz emergir, em nossa interpretação, a conversação como uma categoria de uso da ferramenta que não é julgada estratégica pela organização, pois se ficar conversando com muitos seguidores na timeline do Twitter, poderá afastar a maioria, interessada, como acredita a editora de mídias sociais (NICKEL, 2010), mais nas notícias e informações que o perfil de Zero Hora possa passar de modo geral. A conversação, enquanto diálogo, no Twitter, ainda é pouco utilizada por @zerohora, sendo uma potencialidade talvez ainda em aberto, entendida como um meio para resolução de dúvidas e encaminhamento de reclamações que acabam sendo tratadas, 181

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atualmente, muito mais por meio de mensagens diretas (DMs, ou Messages) que não ficam disponíveis a todos os seguidores, do que de modo aberto. Talvez esteja aí uma outra estratégia de uso moderado da possibilidade conversacional do Twitter. Outras considerações A partir da primeira etapa do percurso teórico-metodológico realizado, tendo como foco a análise de conteúdo complementada pela realização de entrevistas e observação participante, constituindo uma macro-análise de cunho qualitativo, podemos compreender que o processo de busca por legitimação do jornalismo informativo nas mídias sociais digitais não representa uma ruptura radical em relação ao que ocorre no modelo da comunicação midiática de massa. Ocorrem tensionamentos entre as duas lógicas – do jornalismo informativo e da mídia social digital, que levam a esfera institucional de produção de notícias a apropriar-se de algumas características dessa ambiência de mídia social, sem perder o foco em seu papel central de intermediação. A segunda etapa da análise de conteúdo, aplicada ao corpus sobre trânsito, revelou algumas mudanças nos usos estratégicos do Twitter por Zero Hora, que reforçam algumas conclusões, e parecem modificar outras que a primeira etapa nos permitiu visualizar. Em relação às estratégias de legitimação emergentes, destacou-se o crescimento da importância dada pela organização jornalística, no período de um ano, a dois usos da ferramenta – o compartilhamento de informações e a participação do leitor na cobertura de um acontecimento. A inclusão do leitor (seguidor) na cobertura, sendo retweetado pelo perfil de Zero Hora, revela, em nossa avaliação, uma estratégia emergente de legitimação por meio do discurso da participação; discurso este que já estava presente no corpus 1, mas que se reforça na cobertura do corpus 2. Essa estratégia se sobrepõe à difusão de informa182

ções, que passou da primeira posição no corpus 1 à segunda no corpus 2. Entendemos que houve uma atualização importante do papel de mediação informativa, que deixou de ser tão centralizado pelo jornal, passando a dar mais espaço à colaboração dos leitores que seguem o perfil @zerohora no Twitter. A mudança que percebemos entre a primeira e a segunda etapa da AC mostra a presença mais forte da utilização estratégica do Twitter, a partir do reforço da inclusão do leitor na cobertura do jornal.

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