Práticas sociais e espaço urbano: diferentes cartografias e representações sobre o bairro Frei Damião

June 23, 2017 | Autor: A. Cordeiro Feitosa | Categoria: Urban Studies, Neighborhood Studies, Sociabilidade Urbana
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – UFPB CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA – PPGS

Antonio Lucas Cordeiro Feitosa

PRÁTICAS SOCIAIS E ESPAÇO URBANO: DIFERENTES CARTOGRAFIAS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O BAIRRO FREI DAMIÃO

João Pessoa-PB 2015

Antonio Lucas Cordeiro Feitosa

PRÁTICAS SOCIAIS E ESPAÇO URBANO: DIFERENTES CARTOGRAFIAS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O BAIRRO FREI DAMIÃO

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Sociologia. Orientadora: Dra. Teresa Cristina Furtado Matos.

João Pessoa-PB 2015

F311p

Feitosa, Antonio Lucas Cordeiro. Práticas sociais e espaço urbano: diferentes cartografias e representações sobre o Bairro Frei Damião / Antonio Lucas Cordeiro Feitosa.- João Pessoa, 2015. 147f. : il. Orientadora: Teresa Cristina Furtado Matos Dissertação (Mestrado) - UFPB/CCHLA 1. Sociologia urbana. 2. Territorialidades - bairros - periferias. 3. Movimentos sociais. 4. Redes sociais.

UFPB/BC

CDU: 316.334.56(043)

Antonio Lucas Cordeiro Feitosa

PRÁTICAS SOCIAIS E ESPAÇO URBANO: DIFERENTES CARTOGRAFIAS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O BAIRRO FREI DAMIÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Sociologia.

Aprovada em: 27 de fevereiro de 2014.

Aos meus pais, Vilani e Juvino, na esperança de que esteja aqui a criatura que criaram.

Agradecimentos

Esse trabalho acadêmico teve suas ideias gestadas, especialmente, por minha circulação entre pessoas. Agradeço

à

professora

Cristina

Matos,

pela

simpatia,

paciência

e

acompanhamento cuidadoso na orientação desse trabalho, pensando junto comigo. Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES pela concessão de bolsa de estudo durante o período integral do curso de mestrado. A temática tratada aqui nascera de pesquisa orientada pelo professor Roberto Marques, a quem agradeço pelo incentivo e contribuição para meu ingresso no curso de mestrado. Sua amizade também foi fundamental para maturação das ideias e persistência no curso, inclusive pelos constantes aconselhamentos e disposição em ajudar quando a ele recorri. A Aílton, dona Lourdes, Chico Gomes, seu De Jesus, dona Helena, Nininha, Santana Neto, Sebastiana, Suzana e tantos outros interlocutores em campo, agradeço pela disposição em pôr as cadeiras nas calçadas de suas casas e conversarem comigo durante longas horas. Sibéria e Francisco foram colaboradores importantes ao mediarem meu contato com alguns entrevistados. Sou grato a ambos. A Gracione e Carla, funcionárias da Biblioteca Padre Cícero, do Memorial Padre Cícero, agradeço pelo auxílio na pesquisa aos jornais. No Departamento de Arquivos da Câmera Municipal de Juazeiro do Norte, contei com a colaboração de Auxiliadora e Silvia na consulta de documentos. Agradeço-lhes pela disposição em ajudar. Agradeço as bolsistas do Laboratório de Ciência da Informação e Memória (LACIM/UFCA) e à secretária do Jornal do Cariri por disponibilizarem o acervo de jornais para consulta. Agradeço também ao Núcleo de Estudos Regionais (NERE/URCA) pelo acesso a bibliografia disponível na Sala de Leitura Lourival Luciano Filho. Agradeço às professoras Luciana Chianca e Patrícia Goldfarb por, ao ministrarem a disciplina Antropologia Urbana e do Cotidiano, durante o semestre letivo de 2012.2 do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPB, inquirirem os alunos sobre suas preocupações de leituras para a elaboração da dissertação e, diante do meu interesse pelos estudos de bairros, criarem uma seção temática específica sobre o assunto. A seção, então, agilizou meu contato com parte da literatura socioantropológica sobre bairro, com a qual trabalho aqui. Os debates ocorridos durante as aulas da disciplina, além de contribuírem para

a compreensão das pesquisas com as quais ora tínhamos contato, proporcionaram bons momentos e amizades duradouras que incluíram trocas afetivas com Anny Glayni e Regiane Caetano. As professoras Mónica Franch e Tereza Queiroz, junto com o professor Roberto Marques, fizeram considerações importantes, quando do exame de qualificação, que contribuíram para rever e aprimorar as interpretações deste trabalho. Agradeço-lhes pela leitura atenciosa, generosidade nas indicações e estímulo ao pensarem comigo. Agradeço às professora Geísa Mattos e Mónica Franch, e ao professor Roberto Marques, por aceitarem o convite para pensar este trabalho e se disporem em contribuir com ele e com minha formação acadêmica ao apresentarem sugestões e questionamentos. Agradeço a seu Hilário, dona Lourdes, Hidayane Gonçalves e Clarice Rosane por ajudarem a tornar Juazeiro do Norte habitável para mim. Agradeço a Ligia Muniz, que fora parceira importante nas atividades acadêmicas e confessora nos momento de angústia, além de amiga e colega de turma. Também colega, Eudivânia Silva me presenteou com sua amizade e convivência afetuosa, tornando a vida mais risível e calorosa. Agradeço-lhe também pela contribuição que dera ao auxiliar um aluno distante de João Pessoa. Agradeço a Cordeiro Neto por, além de cumprir com as atribuições de irmão, acumular, em vários momentos ao longo do mestrado, as funções de consultor prestativo, revisor meticuloso e financiador como poucos.

Resumo Adotando como campo de pesquisa o bairro Frei Damião, em Juazeiro do Norte-CE, esta dissertação reflete sobre a imagem de periferia, construída sobre o local, as práticas sociais dos seus moradores e seu espaço urbano. O bairro, o terceiro maior em número de habitantes da cidade, é definido pela Prefeitura Municipal como ocupando uma vasta área limítrofe com alguns municípios. Porém, os moradores e demais habitantes da cidade restringem o bairro a uma região de forma geométrica retangular, densamente habitada. Tomando essa última representação do território como locus da pesquisa, percebeu-se que essa região é dividia em três áreas diversas, seja pelos moradores do bairro e demais juazeirenses. Essas áreas constituem o que chamamos aqui de territorialidades, que são: Vila Real, Frei Damião e Baixa da Raposa. Além dessa segmentação, as redes sociais de relações que existem em torno das quatro capelas religiosas que há no bairro e dos jogos de futebol em campos de areia, os rachas, operam novas cartografias ao se espacializarem. A compreensão dessas áreas passa pelas características específicas de cada uma, pelas relações que existem entre elas, pelo entendimento do bairro como um todo e da relação deste com a cidade. Essas territorialidades são marcadas por fronteiras simbólicas e estratificações socioespaciais hierarquizadas, sendo constituídas por imagens e autoimagens diferenciadas, distinções de nomes, de origem histórica, de regime da intensidade da vida social, de distribuição de equipamentos públicos e privados e do padrão das habitações. Com isso, essas dinâmicas territoriais e sociais nos levam a problematizar a própria noção de bairro e pensar sobre as fricções entre diferentes cartografias e as práticas sociais dos moradores. Além disso, a origem histórica do bairro Frei Damião também nos ajuda a esclarecer essa dinâmica urbana e sua apreensão na e pela cidade, por constituir inicialmente a atribuição de periferia/favela de que ainda hoje é objeto. A estruturação do bairro, depois da ocupação urbana que o originou, foi planejada tendo-se em vista sua apreensão como periferia/favela. Isso acaba revelando formas de negociação da sua representação e suas implicações no espaço urbano local.

Palavras-chave: Bairro; Periferia; Territorialidades; Movimento Social; Redes sociais.

Abstract This work takes as field Frei Damião district, in Juazeiro do Norte city, Ceará, to reflect on the images of outskirts that has been built about this place, the social practices of its inhabitants and its urban space. The area of Frei Damião neighborhood is defined by the municipality as a wide area that makes boundary with others counties. However, residents and other inhabitants of the city restrict the neighborhood to a region of rectangular geometric shape, densely populated. Taking this last representation of the territory as research locus, it was realized that this region is divided into three different areas, either by neighborhood residents and other inhabitants of Juazeiro do Norte. These areas, called by us as “territorialities” are: “Vila Real”, “Frei Damião” and “Baixa da Raposa”. In addition to this segmentation, the social networks of relationships around the four religious chapels that are in the neighborhood and the soccer games played by young male men in improvised fields, the "rachas", operate new cartographies of the space. To understand these areas is necessary to know the specific characteristics of each one, the relations between them, the understanding of the neighborhood as a whole and the relations between the district and the city. These territorialities are marked by symbolic boundaries and socio-spatial hierarchical stratifications constituted by: images and self-images, nomination systems, historical origins, the regulation of social life intensity, distribution of public and private facilities and patterns. These territorial and social dynamics lead us to question the very notion of district and think about the friction between different mappings and social practices of the residents. of housing. In addition, the historical origin of the district Frei Damiao also helps us clarify this urban dynamics and its presentations in the city and by the city, assigning the district as a “slum” or periphery. The structuring of the neighborhood, after the urban settlement that originated it, was planned keeping in view his arrest as peripherals / slum. It turns out forms of trading of its representation and its implications on the local urban space.

Key-words: District; Periphery; Territorialities; Social movements; Social networks.

Lista de figuras

Figura 01: Imagens do bairro Frei Damião...............................................................................32 Figura 02: Mapa do bairro Frei Damião elaborado por seu Olavo...........................................34 Figura 03: Mapa do bairro Frei Damião segundo definição da Prefeitura Municipal..............46 Figura 04: Mapa do bairro Frei Damião elaborado por Ana Ruth de Melo..............................48 Figura 05: Jovens que participam dos rachas em distribuição pelos quarteirões......................54 Figura 06: Mecanismo de formação dos times para partidas subsequentes a primeira............56 Figura 07: Capela de Santo Expedito em noite de novena.......................................................59 Figura 08: Parque de diversão em noite de novena de Santo Expedito....................................59 Figura 09: Mapa do bairro Frei Damião com edição nossa......................................................63 Figura 10: Procissão com a imagem de Santa Edwiges............................................................65 Figura 11: Capela de Santa Edwiges em noite de novena........................................................65 Figura 12: Imagens de manifestações organizadas pelo MST em Juazeiro do Norte...............90 Figura 13: Imagens da ocupação das terras da igreja de Nossa Senhora das Dores.................92 Figura 14: Construção de abrigo na área ocupada pelo MST...................................................95 Figura 15: Imagem de casas na propriedade doada ao MST....................................................96 Figura 16: Paródia à música “A casa”, feita pelos alunos do CAIC.......................................108 Figura 17: Imagens das primeiras habitações no bairro Frei Damião.....................................137 Figura 18: Imagens de encontros dos membros do MST........................................................138 Figura 19: Imagem de poço onde se buscava água no bairro Frei Damião............................138 Figura 20: Territorialidade Vila Real......................................................................................139 Figura 21: Territorialidade Frei Damião.................................................................................139 Figura 22: Territorialidade Baixa da Raposa..........................................................................140 Figura 23: Capela de Nossa Senhora das Candeias................................................................141 Figura 24: Capela de Santo Expedito......................................................................................142 Figura 25: Capela de Nossa Senhora das Graças....................................................................143 Figura 26: Capela de Santa Edwiges.......................................................................................144 Figura 27: Circo Pop Star no bairro Frei Damião no ano de 2011.........................................145

Lista de tabelas

Tabela 01: Domicílios particulares permanentes por existência de banheiro ou sanitário e esgotamento sanitário no bairro Frei Damião (2010).............................................................146 Tabela 02: População do bairro Frei Damião segundo gênero e idade (2010).......................146 Tabela 03: Pessoas de 10 anos ou mais de idade e residentes no bairro Frei Damião segundo classes de rendimento nominal mensal (2010).......................................................................147

Lista de siglas CAGECE – Companhia de Água e Esgoto do Ceará CAIC – Centro de Atenção Integral à Criança CEB – Comunidade Eclesial de Base CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CPT – Comissão Pastoral da Terra CRAS – Centro de Referência de Assistência Social CSU – Centro Social Urbano CUT – Central Única dos Trabalhadores EJA – Escola de Jovens e Adultos ESF – Estratégia Saúde da Família FMI – Fundo Monetário Internacional GPS – Global Positioning System IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística LACIM – Laboratório de Ciência da Informação e Memória MSC – Movimento dos Sem Casa MST – Movimento dos Sem Teto MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra PJMP – Pastoral da Juventude do Meio Popular PROURB – Programa de Urbanização PT – Partido dos Trabalhadores SISAN – Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

Sumário

Introdução ................................................................................................................................. 14 Capítulo I – O bairro Frei Damião............................................................................................ 24 1 Enunciação de um objeto ....................................................................................................... 25 2 Bairro como categoria sociológica ........................................................................................ 40 3 O mapa: cartografia sem sujeito ............................................................................................ 44 Capítulo II – As práticas sociais e o(s) bairro(s) ...................................................................... 51 1 Os rachas................................................................................................................................ 51 2 As capelas .............................................................................................................................. 57 3 A noção de bairro .................................................................................................................. 69 Capítulo III – O bairro como projeto e processo ...................................................................... 78 1 O Movimento Social .............................................................................................................. 80 Capítulo IV – A inscrição do bairro na cidade ......................................................................... 99 1 A invenção da área de “risco social” ..................................................................................... 99 2 Sentidos da nomeação ......................................................................................................... 109 3 Estratificações socioespaciais .............................................................................................. 116 4 Formas de agenciar a imagem ............................................................................................. 125 Considerações finais ............................................................................................................... 127 Referências ............................................................................................................................. 129 Anexos .................................................................................................................................... 136

14

Introdução

A cidade de Juazeiro do Norte, situada na região sul do estado do Ceará, está dividida administrativamente em 36 bairros. Destes, há aqueles que adquirem visibilidade no município e na microrregião do Cariri cearense, da qual Juazeiro do Norte faz parte com mais sete municípios, a partir da consagração da pobreza e da violência como imagens exemplares de sua gente. Circunscritos pela imagística de favela e da periferia, produzida, sobretudo, a partir dos dois referentes apontados acima, esses bairros e seus habitantes alimentam o imaginário urbano, constituído por representações de espaços nobres e outros sombrios. É difícil o exercício de tentar elencar sobre quais bairros recai essa classificação de periferia e favela. Consideraríamos aspectos urbanos (saneamento básico, traçado das ruas, condição das habitações), sociais (educação, saúde, violência, rendimentos) ou históricos ao buscarmos julgar que bairros são ou não periferia/favela? Seriam nos moradores do próprio bairro ou naqueles que os julgam, nos quais encontraríamos o respaldo que ampara essas denominações? Nos limites deste trabalho, todavia, não pretendemos abarcar todos os espaços que em Juazeiro do Norte guardam a marca de periferia/favela. Resolvemos tomar um contexto específico. Trata-se do bairro Frei Damião, o terceiro maior bairro da cidade em número de habitantes. Sua classificação como periferia advém da atribuição de terceiros, da qual os moradores têm consciência, embora não estejam necessariamente de acordo com ela. Este trabalho toma como mote de reflexão geral a imagem de periferia do bairro Frei Damião. Ao nos determos a essa imagem, passamos a adotá-la tanto como ponto de partida, quanto como ponto de chegada. Isto é, partirmos da constatação de que o bairro Frei Damião é um dos espaços considerados no imaginário urbano de Juazeiro do Norte como periferia. Esta é uma imagem compartilhada pelos juazeirenses, pelas instituições públicas e pelos demais habitantes da região do Cariri, quando se trata daquele espaço. Os moradores do local percebem esse modo de ver a partir do qual são julgados. Por outro lado, não contentes em tomar a priori o bairro em questão como periferia, detemo-nos em compreender a gênese dessa imagística que o caracteriza. De modo geral, portanto, procuramos entender a constituição da imagem de periferia do bairro Frei Damião, as negociações das quais é objeto e suas implicações no espaço urbano local. A origem histórica do bairro, as nomeações diferentes de que foi alvo e as divisões internas de seu espaço urbano em áreas nomeadas de formas distintas, são elementos elucidativos para a compreensão da imagem de periferia do bairro e, logo, para o

15

entendimento do porquê e como os moradores respondem a essa imagística, inclusive no próprio espaço do bairro. Tais elementos permitem, portanto, entender a dinâmica social daquele lugar e de sua população, já que está, em muito, imbricada com a representação do local como periferia. A dinâmica a que nos referimos não é apenas interna, mas também externa, isto é, do bairro com seu em torno, ou seja, com a cidade. Além de entender o cotidiano do bairro Frei Damião a partir da visibilidade dele como periferia, procuramos entendê-lo também em si mesmo, isto é, a partir das práticas sociais de seus moradores. Ao abordamos tais práticas, interessa-nos também pensar na relação entre o espaço urbano e as relações sociais no bairro. Com isso, problematizamos seu entendimento como bairro urbano, ou seja, a própria noção de bairro ali aplicada, ao tempo em que discutimos sua produção social como lugar na cidade. Questionar, no ambiente e a partir desse lugar que adotamos como campo de pesquisa, a relação entre o espaço físico e as interações sociais nele engendradas nos ajuda a compreender suas formas espaciais de agrupamento humano, a significação do seu território e a dinâmica social de sua população. Desse modo, evita-se entender a forma material encontrada como dado, isto é, como pré-existente às interações sociais. Ao mesmo tempo, essa postura permite-nos pensar na intersecção desses dois fatores e de outros possíveis, e não na determinação de um sobre o outro, na produção, organização e vida dos grupos sociais ali presentes. Com isso, não tomamos o bairro exclusivamente a partir de sua dimensão material, isto é, apenas como espaço urbano, não o pensamos a partir de uma definição administrativa e tampouco como realidade autoevidente e indiferenciada. Percebemo-lo como território significado a partir da forma como ele é praticado por diferentes agentes. Logo, não nos restringimos a discutir a noção de bairro, ou melhor, ao discutirmos a noção de bairro, interessa-nos também pensar nas forças que o constituem como tal, como agrupamento humano. Esse exercício de fuga de uma fala panorâmica, de sobrevoo, que está materializada no mapa cartográfico, administrativo e oficial, nas imagens de satélite e em falas que tomam como eixo essencial(ista) a violência e a pobreza, para uma fala que imerge no local e se constitui a partir do olhar “de perto e de dentro” (Cf. MAGNANI, 2002), tem por bases práticas e locais sociais tais como o jogo de futebol em campinhos, os rachas, as novenas e as festas religiosas em capelas, a caminhada pelas ruas do bairro, os relatos/narrativas dos moradores e o ônibus em circulação no bairro e na cidade.

16

A atenção dada aqui a essas práticas revela-as como constituintes de espacialidades específicas no interior do bairro a partir das “múltiplas redes sociais” (FRÚGOLI Jr., 2013) de relações das quais são fruto e nutrem. Elegemos essas espacialidades-segmentos que emergem no interior do bairro a partir das práticas sociais e das narrativas dos moradores como sendo constituintes dele, do bairro, como sendo “outros modos de viver e conceber o espaço do bairro” (MATTOS, 2012, p. 21), como sendo modos de sedimentação e apropriação do espaço urbano. Ao tempo em que privilegiamos a circulação dos moradores no bairro Frei Damião para pensarmos o bairro, nos detemos também em analisar a tensão e a fricção entre diferentes elaborações cartográficas internas, e destas com a oficial. Ponderamos essas questões a partir de algumas peculiaridades existentes no bairro Frei Damião. Enquanto a prefeitura municipal, por meio do mapa da cidade, define uma ampla região como sendo o bairro, os moradores e outros sujeitos, incluindo instituições, limitam o bairro à sua região mais densamente habitada, uma área retangular com mais de três quilômetros de extensão. Ao mesmo tempo, os moradores dividem esse espaço em três áreas distintas, inclusive em termos de denominação, sendo elas: Vila Real, Frei Damião e Baixa da Raposa. Destas, a primeira se destaca como sendo um bairro à parte do Frei Damião e uma região nobre e, a última, como sendo a periferia por excelência do bairro. Ainda há as quatro capelas devotadas a santos católicos que existem no bairro e que operam outras quatro segmentações, a das comunidades religiosas. Seus limites são outros e as razões de existirem também. Ao atentarmos para essas dimensões da vida social no bairro Frei Damião, impõese um desafio, o de tentar esgarçar o território, o espaço físico e social local. Ao fazer isso, procuramos entender qual o significado do bairro para seus habitantes, procuramos entender o local a partir do seu quadro de interação, quando o percebemos de forma heterogênea. Essa abordagem sociológica sobre o bairro nos ajudou, inclusive, a percebê-lo como local importante das interações entre seus moradores, distante da ideia de isolamento social (da noção de gueto, por exemplo) e das teses, nutridas acerca de uma sociedade “pós-moderna”, globalizada, de descontextualização das relações sociais em vista dos fluxos globais, do fim do local como espaço de sociabilidade (Cf. COSTA, 1999, p. 493). É difícil seguir o raciocínio totalizador que por vezes se atribui a essas supostas sociedades pós-modernas, quando encontramos locais como o bairro Frei Damião, um espaço de forte sociabilidade entre seus moradores, de relações que se dão na rua, em festejos religiosos, em campos de futebol de areia (embora essas relações não se deem de forma homogênea em todo o bairro).

17

É difícil também quando encontramos sujeitos tendo de omitir, por vezes, o local de residência, no caso, a periferia, em situações de procura por emprego e de contato com espaços mais centrais da cidade. Essa omissão sugere que o local de moradia informa seus sujeitos. O local ainda importa para essas pessoas. Além de não nos atrair uma escrita de sobrevoo, uma fala sem sujeitos (Cf. WHYTE, 2005, p. 20) e uma narrativa que toma a violência e a pobreza como essencial para constituir uma compreensão do lugar, a leitura que aqui se empreende sobre uma periferia situada no Cariri cearense contrasta com o “núcleo usual” (MARQUES, 2004, p. 23) a partir do qual a região tem sido costumeiramente balizada. Ao esticar o território, ter falta de lugar e recompô-lo novamente, não nos deixamos encantar e suplantar as especificidades que encontramos no espaço que elegemos para nossa pesquisa pelas ideias de cultura popular, mandonismo local, religiosidade, família, mundo rural, comunidade e descrição de paisagem natural (MARQUES, 2004; 2011), signos que compõem o “núcleo usual” a partir do qual comumente circula o Cariri. A própria escolha por um espaço moralmente marginal está distante das preferências acadêmicas usualmente feitas no Cariri. Por outro lado, ao fazer um recuo temporal da reconstituição da gênese do bairro Frei Damião, trazemos à tona uma imbricada relação entre religião e política que se desenvolveu em Juazeiro do Norte a partir da segunda metade da década de 80 em torno da apropriação da cidade e do direito à moradia. Essas lutas políticas e simbólicas construíram importante movimento social, o Movimento dos Sem Teto (MST), que organizou a ocupação de uma propriedade pertencente à igreja católica local. A ocupação, realizada em 1990, dera origem ao bairro Frei Damião e sua representação como favela/periferia na cidade. As questões que aqui adotamos no campo de possibilidades analíticas do bairro Frei Damião surgiram a partir do retorno a resultados de pesquisas anteriormente desenvolvidas no local, e o acionamento de contatos de uma rede antes tecida. Tendo contato acadêmico com o bairro Frei Damião desde agosto de 2009, quando participei de pesquisa de iniciação científica sobre projeto de prevenção à violência pelo esporte ali implementado, passei a criar formas de acesso e comunicação com seus moradores por meio da prática de pesquisa. Do final do ano de 2010 ao início de 2012, tive contato com outra prática esportiva existente no bairro. Dessa vez, deixo o espaço institucional do projeto da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Cidade, executado por guardas municipais e em uma escola local, e adentro um pequeno campo de futebol em área arenosa. Em ambos os momentos, meu contato se dá, sobretudo, com jovens do gênero masculino. Mas é em um espaço específico, um campinho de futebol, ou somente campinho, como o chamam os meninos, onde encontro as

18

indagações que motivam a presente pesquisa. Retomando o caderno de campo da pesquisa “Agência e mediação em situações de „risco social‟: etnografia do futebol de várzea em Juazeiro do Norte”, encampei o bairro como objeto de estudo pensando sobre a relação entre seu espaço urbano e as relações sociais. Durante essas duas experiências de pesquisa, meu percurso no bairro se deu, sobretudo, em torno do Centro de Atenção Integral à Criança Dom Antonio Campelo de Aragão (CAIC), que fica localizado na área que no bairro é conhecida como Frei Damião. O acesso inicial ao bairro para desenvolvimento de pesquisas teve por base a escola CAIC, uma vez que o projeto objeto da primeira pesquisa era realizado na quadra poliesportiva da escola. Na segunda atividade de pesquisa, em que se tinha por objetivo realizar observações da prática esportiva não profissional, adotei a escola como espaço inicial para contato com interlocutores e, no decorrer da pesquisa, já em companhia de moradores locais, passei a circular em torno de suas proximidades. Logo, acabei conhecendo mais pessoas que residem próximo ao CAIC e, consequentemente, a caminhar com mais frequência na área de localização da referida escola. O que desejo deixar claro com essas observações é que eu tive/tenho um determinado pertencimento e trânsito no bairro, que, como procuro deixar claro agora e se poderá notar ao longo do trabalho, diz muito sobre minha circulação, meu mapa do bairro, minha rede de interlocutores, minhas limitações de interação e, logo, de levantamento de informações e análise e compreensão dessas informações. Procurando agregar ao meu percurso no bairro Frei Damião e, por fim, à pesquisa, mais práticas sociais, cheguei às novenas de Santo Expedito, realizadas em uma das quatro capelas existentes no bairro. Ali, durante o período de 11 a 19 de abril de 2013, foram realizados festejos e louvores todas as noites. Como se verá, essa não é a única capela existente no bairro, somam-se a ela mais três, a de Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora das Graças e Santa Edwiges. Além de falas de moradores enunciadas em situações informais de interação ao longo dos anos de pesquisa e de entrevista gravada com um dos participantes dos jogos de futebol realizados em um campinho, registrei, também, a partir de maio de 2013, algumas entrevistas. Nessas últimas situações, cerquei-me de moradores locais e de pessoas que, à época de surgimento do bairro, estiveram engajadas nos processos que resultaram no deslocamento e fixação de sujeitos na região onde hoje se encontra o bairro Frei Damião. Entrevistei também moradores que não participaram desses acontecimentos, alguns, inclusive, nasceram no mesmo ano de fundação do bairro, 1990.

19

O acesso a algumas dessas pessoas que estão ligadas ao surgimento do bairro foi possível a partir de levantamento de matérias de jornais publicados em Juazeiro do Norte ao longo da década de 1990 e de funcionários da Câmara Municipal de Vereadores, onde pesquisei documentos legislativos referentes ao bairro. Para entrar em contato com os moradores do local, recorri a contatos firmados no bairro desde 2009, e que indicaram e acompanharam-me até o encontro com essas pessoas. Das entrevistas com estas, ativou-se sua rede de relações no bairro, o que me permitiu ter acesso a possíveis interlocutores em campo a partir de sua indicação, técnica conhecida no meio acadêmico como “bola de neve”. Ao todo, reúno aqui falas de oito entrevistados. Tais entrevistas foram realizadas nas casas dos moradores do bairro e nos locais de trabalho e estudo dos demais entrevistados. Um breve perfil desses sujeitos nos ajuda a entrever suas falas e indicar os percursos empíricos aqui escolhidos. Aílton, que entrevistei em 2011, tinha na época 18 anos de idade e cursava a Escola de Jovens e Adultos (EJA), no Centro de Atenção Integral à Criança Dom Antonio Campelo de Aragão (CAIC), no bairro, os dois últimos anos do ensino fundamental. Aílton, ainda hoje morador do bairro, era um dos jovens participantes dos jogos de futebol no campinho. Dona Lourdes, 74 anos de idade, está no bairro há 21 anos e desde que chegou ali é engajada nas atividades da Capela de Nossa Senhora das Candeias e mora na mesma casa, na área denominada de Frei Damião (adiante, discutiremos a existência do que estou chamando por ora de área no interior do bairro). Dona Helena mora ali próximo, na “Primeira Rua”, ou melhor, na Vila Real. Dona Helena tem 63 anos de idade e cerca de 20 anos de residência no Frei Damião. Suzana, de 17 anos, cursa o ensino médio em uma das escolas do bairro, o CAIC, e mora na área do Frei Damião. Morando no bairro há 17 anos, seu De Jesus nos recebeu na calçada da sua casa e conversamos tarde adentro sobre sua participação nos acontecimentos que originaram o bairro. Dona Sebastiana, 74 anos de idade e moradora do bairro, também participou das mobilizações que deram origem ao local. Chico Gomes mora no Frei Damião há cerca de 19 anos, quer dizer, na área que a prefeitura considera como Frei Damião. Chico foi presidente do Movimento dos Sem Teto (MST), integrante do Partido dos Trabalhadores (PT) e, católico, sempre esteve vinculado às ações da igreja, sobretudo às Comunidades Eclesiais de Base (CEB‟s). Nininha, hoje membro da equipe local da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Cariri cearense, estava vinculada ao PT e as CEB‟s em 1990. Também era uma das integrantes do MST, do qual chegou a ser vice-presidente. Santana Neto, 52 anos de idade, ex-prefeito de Juazeiro do Norte (2008-2012) pelo PT, partido ao qual esteve engajado no ano de 1990, assim como ao MST.

20

Esses interlocutores, dentre outros com quem tive contato, dialogam entre si ao longo do presente texto a partir da análise que fazemos das suas falas. Esse diálogo se estabeleceu também durante o período de trabalho de campo, quando eu levantava, no curso da entrevista, determinadas questões que tinham sido abordadas por um entrevistado anterior. Após entrevistar outras pessoas, reencontrei-me com alguns entrevistados, o que me ajudou a criar audições intercaladas, a partir das quais pude costurar significados. Assim, o trabalho se tornava uma conversa informal, em que o gravador passava quase que despercebido, não fosse o momento de pedir autorização para gravar, de explicar o motivo do registro e de desligá-lo ao final da entrevista. Essas formalidades nas entrevistas foram, em certos momentos, desnecessárias. Depois de ter conversado informalmente com uma senhora que mora no bairro, voltei outro dia para realizar uma entrevista. Na calçada da sua casa, enquanto eu dizia, do modo mais simples que imaginava ser apropriado, qual era a finalidade da pesquisa e perguntar se poderia gravar, ela me interrompe e diz: “Eu sei, eu já trabalhei com comunidade”. Algumas conversas também foram instigadas a partir da apresentação de fotos dos momentos iniciais do bairro. Em algumas das vezes o próprio entrevistado pegava as fotos do seu acerco pessoal e noutras eu, com imagens disponibilizadas por alguém que foi entrevistado anteriormente, era quem as apresentava. Isso desencadeava narrativas significativas. Além dessas espontâneas artimanhas, meus interlocutores foram solícitos, recebendo-me agradavelmente. Alguns me cobraram o resultado do trabalho, pois não tinham nada escrito sobre o bairro e queriam passar para outros que se interessassem futuramente. Com isso, comprometi-me com meus interlocutores a retomar nosso contato para apresentálos a pesquisa concluída. Essa não foi uma decisão deliberada apenas por mim mesmo. Embora procurando desenvolver uma pesquisa guiada “em termos do princípio de reciprocidade interpessoal”, como definira Whyte (2005, p. 354), a reciprocidade foi acionada inicialmente por seu De Jesus. Cheguei à sua casa acompanhado por um jovem do bairro que o conhecia, o qual logo me apresentou ao dono da casa. Digo a finalidade do trabalho: a história do bairro Frei Damião. Rapidamente, seu De Jesus respondeu dizendo que não queria falar sobre essa história. Com voz já trêmula, diz que é uma história sofrida, que lhe traz lembranças que não tem mais disposição de recordar, além de, percebo, uma certa experiência que já tivera com pesquisas e de achar que não é reconhecido pelos moradores na história do bairro. Quem quis saber da última vez sobre a história do bairro Frei Damião não retornou com os resultados que prometera. Dou-me conta de que sempre se espera um retorno da oferta

21

despendida. As entrevistas são dispêndios e investimentos sentimentais. São, portanto, partes recordadas de si, muitas vezes com o mesmo calor e sofrimento que antes tivera quando de seu acontecimento, como no caso de seu De Jesus. São trocas espirituais, pois dá-se de si, não somente pela palavra que posteriormente será textualizada, mas dá-se de si ao relatar momentos vivenciados a outrem. Espera-se, então, que seu eu retorne. Espera-se que, posteriormente, seu eu seja compartilhado com outros que o procurem futuramente. É assim que seu De Jesus me diz dessa história. Tentando ser compreensível, perguntei se ele poderia indicar alguém com quem eu pudesse conversar. Relata, então, alguns nomes. Mesmo com seu primeiro recuo em relação à minha investida, seu De Jesus, muito receptivo, me chama para pôr as cadeiras na calçada da casa. Sentamos. A partir das cadeiras de plástico postas na calçada, tenho acesso a um ponto de vista e a vista de um ponto. Meio receoso e com voz suave, ele começa a contar fatos sobre o surgimento do bairro. Digo, novamente, que fique a vontade para não falar sobre a história do bairro, mas ele continua e parece que tenta contornar a história sofrida. Não consegue. Mesmo nas horas em que a voz parece querer calar diante dos momentos “sofridos”, quando conjugada com a voz trêmula parece advir lágrimas, mas suprimidas, seu De Jesus continua. Percebi, ali, que a história do bairro não era apenas a história daquele povoado, era também a história de seu De Jesus, de parte de sua vida. O roteiro elaborado para as entrevistas apresentava apenas pontos norteadores, que eu queria tratar/conversar com o entrevistado. Logo, o rumo da entrevista não era determinado rigidamente e previamente pelo pesquisador, o desenvolvimento da conversa e os elementos apresentados pelo entrevistado davam rumo à trama. Antes de realizar as entrevistas, fiz um levantamento dos jornais impressos publicados no ano de 1990 em Juazeiro do Norte. Recorri ao acervo disponível na Biblioteca Padre Cícero, no Laboratório de Ciência da Informação e Memória (LACIM) da Universidade Federal do Cariri e na redação do Jornal do Cariri. Também pesquisei documentos legislativos referentes ao bairro, na Câmara Municipal de Vereadores. Da pesquisa nos jornais, que eu escolhera o ano de 1990 por já saber que naquele ano ocorreu a ocupação das terras onde se localiza o bairro, encontrei uma única nota sobre o evento de 1990, talvez devido ao fato de que naquela época ainda eram poucos os jornais impressos existentes na cidade de Juazeiro do Norte, sendo boa parte transmitido por rádio. Entretanto, encontrei muitas publicações, a partir de 1999, sobre o movimento social que sucedeu o Movimento dos Sem Teto, que dera origem ao bairro. Nas reportagens sobre esse novo movimento, conhecido como Movimento dos Sem Casa (MSC), situava-se seu surgimento, o que abordava o MST e a origem do bairro

22

Frei Damião. Nos documentos legislativos, encontrei projetos que tratavam da alteração do nome do bairro, abaixo-assinado dos moradores contrários a essas modificações, leis que definiam os bairros da cidade, dentre outros. Foi com um repertório de informações, dúvidas e nomes de lideranças elencadas por estes arquivos, além do contato que já tinha com o bairro e com alguns moradores e das inquietações fomentadas por pesquisas anteriores no local, que dei início à realização das entrevistas. A associação de moradores do bairro Frei Damião não constitui uma instância de interlocução durante a pesquisa. Embora ela exista e esteja em funcionamento, ao me apresentar a seu presidente, após várias tentativas de agendamento, e expor a proposta da pesquisa (contar a história e o cotidiano do bairro Frei Damião), o mesmo não demonstrou interesse no desenvolvimento do trabalho e se adiantou em contar a história do bairro, que, como para muitos moradores, se resume à frase: surgiu a partir de uma ocupação de terras pertencentes à igreja, no ano de 1990. Durante algum tempo, ainda insisti em conversar com ele, fazendo agendamentos por telefone que nunca se realizariam. A Associação foi pensada como uma via de acesso ao bairro uma vez que eu, participando das reuniões de moradores e sendo apresentado pelo presidente da entidade, poderia lograr uma maior circulação no local, além do acesso a documentos que contassem a história do bairro. Entretanto, nada foi disponibilizado.

***

A presente dissertação está estruturada em quatro capítulos, além desta introdução e das considerações finais. Para ambientar o bairro Frei Damião, no primeiro capítulo descrevo-o tentando apanhá-lo em suas várias dimensões. Mas, reconhecendo as minhas limitações de apreensão/apreciação e de textualização, entendendo, portanto, que constitui não o Frei Damião como ele está lá, sequer ele está lá. Entendo, logo, que criei meu bairro Frei Damião. Mas o fiz com base nos relatos dos moradores locais, do material elaborado pelas instituições que programam ações ali, mediante as falas dos demais juazeirenses e das minhas andanças “espontâneas” pelas ruas do bairro. Esse capítulo também tem por objetivo, ao apresentar o bairro, tratar da enunciação do objeto de estudo a partir das questões que o circunscrevem. Dar vida ao bairro e consistência à pesquisa, enunciando-o em duplo sentido. A discussão apresentada também procura constituir bairro como categoria sociológica.

23

Definindo algumas escolhas analíticas, a última seção do capítulo procura reforçar, de modo breve, o argumento e as opções até então empreendidas. Prosseguindo com o posicionamento de dar corpo ao bairro a partir do corpo daqueles que o amparam, ou seja, do corpo dos seus moradores, descrevemos no capítulo dois duas práticas sociais a que nos detivemos no trabalho de campo. Falamos aqui do bairro que se pratica e como se pratica a partir dos jogos de futebol em campinhos, os rachas, e as novenas/festas das comunidades religiosas realizadas nas quatro capelas existentes no bairro. Ao final do capítulo, a partir dos elementos apresentados, procuramos erigir a noção de bairro possível de ser pensada no Frei Damião ao tempo em que nos distanciamos de autores com propostas de análises diferentes de acordo com seus contextos de pesquisa. No capítulo seguinte (capítulo III), assumimos uma abordagem processual (ELIAS; SCOTSON, 2000), reconstituindo o movimento social e os eventos que originaram o bairro Frei Damião, para depois, no capítulo IV, analisar as implicações de sua origem na inscrição do bairro na cidade. Aqui, nos detemos em analisar a imagem que se constituiu em torno do bairro desde sua origem, os significados que guardam as nomeações de que é objeto e as divisões operadas em seu interior. Nos anexos, incorporamos dados censitários complementares aos que foram apresentados de modo sintético no decorre do texto. Também integra os anexos um conjunto de imagens das ruas do bairro, das capelas e das primeiras habitações erguidas no local.

24

Capítulo I – O bairro Frei Damião

Para iniciar nossa discussão, é oportuno tentar apresentar uma descrição geral do bairro Frei Damião. É o que fazemos na sequência. Todavia, cabe notar que não concebemos a descrição como uma forma de circunscrever as relações a um dado ambiente, mesmo porque há possibilidade de experiências distintas sobre um mesmo ambiente. Não se trata de cercálas, uma vez que a paisagem também está em movimento. Os lugares estão mesmo presentes nas pessoas (Cf. MARQUES, 2009, p. 233), sem as quais eles nada seriam. Assim, as personagens são a forma de acessar e apreender as paisagens. Logo, descrever uma base material é descrever relações sociais que nela emergem e a dotam de sentido 1. Ponderemos, para que o leitor não crie a ilusão de que encontrará aqui o bairro em sua totalidade, que a descrição que segue é fruto, sobremaneira, da minha circulação pelo local. Reconhecemos esse trânsito do meu corpo (significado como pessoa naquele contexto) como instrumento da narrativa de mediação de dentro do bairro para quem dele esteja fora. Descrevendo uma caminhada pela área, pretendemos torná-lo, para o próprio pesquisador que realiza o percurso e para o leitor que ora o acompanha, cheio de sentidos, ou seja, intencionamos, por meio da caminhada, fazer do lugar que é o bairro Frei Damião um espaço, segundo as categorias de Michel de Certeau (1994b). Praticamos o lugar por meio da caminhada e da narrativa, tornando-o, assim, um espaço. Caminhando, ou mesmo narrando, como o fazemos também, rompemos a univocidade, a estabilidade, a ideia de próprio (CERTEAU, 1994b, p. 202) que o bairro como lugar possa ter inicialmente, que tem para o que está de fora. Como se pode notar, concebemos a caminhada como prática de significação quando ela permite a leitura dos elementos dispersos que compõe a cidade (ALBUQUERQUE Jr., 2011), de modo a ser uma aprendizagem até mesmo pelo exercício da repetição que pode proporcionar a apropriação (MAYOL, 2012). Assim, a experiência do deslocar do corpo por seu bairro dota a caminhada de diversos sentidos ao tempo em que deles se beneficia.

1

Inspira essas reflexões o trabalho de Marques (2009), sobretudo a seguinte passagem em que o autor, referindo-se a Jean Rouch, antropólogo-cineasta francês, considera: “Dessa forma, a cidade, a paisagem, o porto são lugares de compartilhamento da experiência humana captados pela experiência de um cine-transe etnográfico onde realizador e objeto fílmico performam uma „coreografia‟ (idem) produtora da verdade. Onde os personagens tornam-se a única possibilidade mediadora da apreensão das paisagens humanas da África de então” (Ibid., p. 233).

25

Entrelaçando, na e pela caminhada e narrativa, elementos dispersos e ainda não significados, encampamos o espaço físico como espaço social, o que evita, além de tudo, tomar o que fazemos como sendo determinismo ecológico. Ressaltamos também que não reificamos o urbano em questão, como se notara ao longo do texto e dos demais capítulos. Sempre procuramos entendê-lo considerando suas dimensões históricas e cotidianas, sem perder de vista, todavia, suas relações com acontecimentos e lugares mais abrangentes2. Caminhemos, então.

1 Enunciação de um objeto

Localizado na região sudoeste do município de Juazeiro do Norte, o bairro Frei Damião, ou Mutirão, como ainda é denominado por algumas pessoas, é limítrofe de outros dois bairros da cidade, São José, ao norte, e Jardim Gonzaga, a leste. Ao sul e ao oeste encontram-se, respectivamente, os municípios de Barbalha e Crato. O acesso ao bairro se dá, sobretudo, pelo lado leste, via rua Francisco Martins de Souza, que o delimita por esse ponto. A partir dessa rua, tem-se à frente uma imensidão de mundo, erigindo-se ao fundo (sul) o verde escuro da Chapada do Araripe. Caminhar pela rua Francisco Martins de Souza é percorrer lateralmente a área em que se adensam as habitações no bairro, com uma extensão de aproximadamente 3,3 km. Esse percurso no espaço não se dá sem descontinuidades, sem rasuras na história, sem marcas urbanas, sem diferenças sociais, como pretendemos assinalar ao longo do presente capítulo. Mesmo que a rua Francisco Martins de Souza seja alinhada e extensa, como também é a rua Manoel Tavares Lopes, a oeste, em um horizonte aberto, cerceado apenas pela Chapada do Araripe, que está posicionada já no município limítrofe, Barbalha, ela não é um continuum no plano social, embora o seja fisicamente. Acrescente-se a isso que transitar no bairro por ela e a partir dela é estar à margem do espaço onde se concentram as habitações no bairro, é, portanto, caminhar lateralmente ao bairro, ao seu interior, furtando-se aos seus meandros. As duas principais ruas por onde flui a circulação de pedestres e automotores no bairro, Francisco Martins de Souza e Manoel Tavares Lopes, formam um grande retângulo, 2

É exemplar dessa articulação entre narrativa e prática social na constituição do espaço urbano a pesquisa desenvolvida por Barreira (2012) nas cidades de Berlim, Lyon, Lisboa e Fortaleza. A partir das práticas de turismo e os guias turísticos, a autora fez sua opção: “Transformei, portanto, a tensão entre „cidade real‟ e „cidade imaginada‟ em tema de análise, considerando o fluxo das narrativas como elemento catalisador da coleta de dados” (BARREIRA, 2012, p. 16).

26

no interior do qual se concentram as habitações dos moradores. Essa formação ocorre uma vez que as mencionadas ruas estão distantes uma da outra por paralelas que cortam o interior do bairro, ligando-as. Estas têm, por sua vez, cerca de 200m de comprimento. Os moradores locais restringem o bairro a esse espaço mais povoado e o fracionam em três áreas distintas, como observaremos adiante. Exceto nesta área retangular, de 660 mil metros quadrados, no restante do território do bairro, sobretudo a oeste, há apenas algumas casas isoladas, loteamentos e pequenas vilas distantes, já próximas ao município de Crato. Situado na divisa com este município e o de Barbalha, há o que se denomina de Parque Industrial, uma área destinada a empreendimentos industriais na qual consta uma pequena concentração de fábricas. Ali próximo, além de haver um cemitério privado, está em construção a Praça da Juventude. A divisa com o município de Barbalha se dá logo ao final do bairro. No espaço a leste, onde se situa o bairro Jardim Gonzaga, há poucas habitações, sendo a área ocupada por uma vegetação rala. Nesse local, foram iniciados no ano de 2013 os trabalhos do Loteamento Conviver Juazeiro VII, por ora interrompidos. Outrora, ao lado das ruas Francisco Martins de Souza e Manoel Tavares Lopes, em áreas ocupadas por uma vegetação de arbustos baixos, encontravam-se, aproximadamente, vinte campos de futebol. Pequenos espaços com muita areia no solo e onde os jovens do local praticam o que denominam de racha3. No início do ano de 2013, esse número foi reduzido consideravelmente, uma vez que na área situada entre a rua Francisco Martins de Souza e o bairro Jardim Gonzaga iniciaram-se os trabalhos do Loteamento Conviver Juazeiro VII. Nessa mesma área onde estão os campinhos, a oeste e leste, é comum alguns poucos moradores plantarem pequenas roças e criarem bovinos e equinos (estes últimos utilizados inclusive em carroças de tração animal), cercando os espaços com arame farpado. Há acúmulo de lixo nessas laterais, o que, em anos anteriores, foi motivo de campanhas de limpeza urbana por parte da Prefeitura Municipal (SEMASP, 2011). Continuemos a caminhar no espaço. Como já foi dito, o acesso ao bairro se dá pelo lado leste, via rua Francisco Martins de Souza, uma vez que é a rota do ônibus, mas também porque é via de acesso mais rápido e usual ao centro da cidade. Além disso, esse ponto de acesso ao bairro está posicionado a poucos metros da Avenida Padre Cícero (Rodovia CE 292), que interliga as cidades de Juazeiro do Norte e Crato. Nessa área também 3

Em trabalho anterior (FEITOSA, 2012), discuti os rachas no bairro Frei Damião como espaços de sociabilidade espontânea e em contraponto à prática esportiva institucional empreendida no local pela Secretaria Municipal de Segurança Pública e Cidadania de Juazeiro do Norte. Entendi os rachas, também, como uma forma de acesso e compreensão da “periferia” para além dos canais comumente ativados e das questões tratadas, a violência e pobreza da população.

27

está situado o limite norte do bairro estabelecido pela Prefeitura Municipal, que é a linha de transmissão de energia elétrica que vai até Crato. É nessa região onde a Prefeitura Municipal, por meio da Lei 3.535, de setembro de 2009, localiza o ponto inicial e final do bairro Frei Damião, que são: cruzamento da rede de energia de alta tensão Juazeiro do Norte-Crato com a rua Francisco Martins de Souza. Para facilitar a descrição que aqui realizo, adoto esse ponto como sendo o início da área densamente habitada no bairro Frei Damião, a qual me detenho no presente estudo. Todavia, a maioria dos moradores do bairro, como se notará adiante, indicam a rua Poeta Vitoriano Vicente, também chamada de rua da Capela e Primeira Rua, como sendo o início do bairro. Essa área contigua ao início do bairro é caracteristicamente industrial, com instalações de empresas de distribuição de mercadorias e de produção de calçados a partir de material sintético, um condomínio vertical, além de uma loja de móveis e eletroeletrônicos e de outra, em construção, para venda de carros. A caminhada flui bem pelo bairro, visto não ser acidentada a topografia do terreno, embora a descrição (escrita/fala) aqui empreendida não consiga captar os passos. A descrição desliza no espaço, saltando-o, enquanto os passos marcam o espaço; as passadas são interrompidas para uma breve conversa, para uma compra básica, para saudar alguém; a descrição salta esses momentos, embora não os descarte. Do ponto inicial do bairro, o nível da área urbana desce para depois se erguer, erigindo uma colina que depois tende a rebaixar-se. A disposição das casas está organizada em cerca de 110 quarteirões situados entre as duas principais ruas locais, como assinalado anteriormente. Do ponto inicial até a rua Poeta Vitorino Vicente, os quarteirões são quase quadrados, de forma a existirem dois entre as duas ruas de delimitação. Após a mencionada rua, a figura dos quarteirões é de um retângulo. Sua disposição segue intercalada entre um conjunto formado por quatro quarteirões dispostos em horizontal e um conjunto de cinco, arranjados verticalmente. Essa distribuição é apenas interrompida pelo quarteirão ocupado pela Escola Mário da Silva Bem, Mário Bem, como chamam os moradores, e pelo Centro de Atenção Integral à Criança Dom Antonio Campelo de Aragão, usualmente CAIC. Fora esse quarteirão, segue-se a organização acima por todo o bairro, sendo retomado o arranjo inicial nos últimos quarteirões, no final da área urbana (ver figura 01, na página 32). Somam-se ao Mário Bem e ao CAIC mais duas escolas, que no conjunto ofertam educação da creche ao ensino médio. Há também no bairro uma instalação do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e três instalações para atendimento das equipes da

28

Estratégia Saúde da Família (ESF). Há uma unidade de abastecimento de água da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (CAGECE). Além de terem traçado alinhado, as ruas do bairro são largas, o que contrasta com a maioria das ruas da cidade de Juazeiro do Norte, estreitas e curvas. Também são bem arborizadas, como o são os quintais das casas. Assim, ao chegar ao bairro, o visitante se depara com uma paisagem verde, com mangueiras e coqueiros, afora a Chapada do Araripe, igualmente verde, no horizonte, distante. A dimensão ampla do espaço das ruas proporciona a caminhada por elas, saltando as calçadas. Permite brincadeiras, como andar de bicicleta e ensaiar jogadas com uma bola. Há inclusive um bar, o Boteco Chegue Mais, que toma parte da rua, em que fica situado, com suas mesas. As diferentes intensidades da vida social local podem ser sentidas pela/na rua. Assim, há um movimento intenso nas ruas em volta do CAIC e do Mário Bem durante a semana, seja dos alunos que vão à escola ou dela retornam, ou que estejam somente dando uma volta no entorno do CAIC, que tem um público mais adolescente, já que oferta ensino médio; seja das mães das crianças, que ora vão deixá-las, ora vão buscá-las no Mário Bem, com ensino voltado para um público infantil, e na creche que funciona no CAIC. Essa agitação se dá especialmente nos horários da manhã e noite. No período da tarde não há aulas no CAIC. À noite, todavia, a movimentação em volta das escolas é pouca, apenas dos alunos que lá estudam. São poucas as pessoas andando pelas ruas, embora nas calçadas das casas sempre haja pessoas sentadas. Ao chegar ao ponto inicial do bairro nesse turno, encontraremos as mesas de uma pizzaria postas na calçada de uma fábrica de calçados, que fica em frente ao estabelecimento, do outro lado da rua. Afora a movimentação em torno das escolas CAIC e Mário Bem, o bairro parece esvaziar-se nos dias úteis. Parece estar cheio no final de semana. Andar pelas ruas do Frei Damião no decurso da semana é deparar-se com um bairro. Fazer o mesmo no final de semana, notadamente a partir do sábado à tarde e nos feriados, é outra experiência. Essa variação na intensidade da vida social local é atestada pela lotação do ônibus. O fluxo no horário da manhã se dá em direção ao centro da cidade. Ao entardecer, o ônibus também volta lotado, em um retorno de quem passou o dia trabalhando fora do bairro. Embora quase sempre a maioria dos assentos esteja ocupada, é nesses dois horários que a condução fica lotada, a ponto dos passageiros, em pé no corredor, se espremerem. Exceto uns poucos professores ou profissionais da saúde que trabalham no bairro e não têm veículo próprio, a maioria dos passageiros do ônibus é constituída por moradores

29

do Frei Damião ou dos bairros próximos, visto que o ônibus os corta. Entretanto, os moradores destes últimos não chegam ao Frei Damião. Esse público específico do ônibus, formado predominantemente por moradores do bairro Frei Damião, se dá inclusive porque o bairro fica praticamente isolado de qualquer outro, com suas áreas de fronteira ocupadas por vegetação, sem habitações. Portanto, ninguém vai até ele com destino a lugar que não seja o próprio bairro. Aos domingos, a agitação no bairro é grande. Caminhando pelas ruas, do interior das residências ouve-se a voz do cantor Silvano Salles4. Alguém o escuta enquanto lava a casa. Adiante, uma moto passa com um som a reboque, com a música “Esse cara sou eu”, cantada por Roberto Carlos, ao fundo, divulgando as atrações que estarão ao vivo na pizzaria, à noite. Um carro faz a divulgação de uma loja de móveis do Centro da cidade. Um rapaz passa com uma caixa de som pequena, que cabe na palma da mão e na qual há um pen drive conectado, tocando algum forró novo. Envolvidas em uma conversa animada, garotas andam pela rua, em grupo. À frente, garotos ensaiam jogadas de futebol com uma bola desgastada. Pessoas sentadas em cadeiras de plástico conversam nas calçadas. Outras pessoas, que passam na rua, saúdam-nas ou param para trocar palavras com elas. Homens lavam carros e motos, ou fazem qualquer reparo, agachados próximos aos automóveis. Freneticamente, motos e carros, que são muitos no bairro, quase não havendo bicicletas, cortam as ruas em alta velocidade e com som ou barulho ensurdecedor. Dividem o espaço da rua com os transeuntes. Uma mulher, acompanhada de uma criança, vende salgados e frutas pelas ruas com um carrinho de madeira. No decurso da semana, esse movimento cessa significativamente. Como registrei em uma nota de campo em um sábado, do dia 20 de abril de 2013, quando estive no bairro às 16 horas: “Por tudo isso, o bairro toma uma nova paisagem ao final da semana, uma movimentação diferenciada, em que o espaço da rua é mais intensamente povoado pela dinâmica relacional dos transeuntes”. Mesmo que a passagem do ônibus que faz a linha para o bairro custe R$ 1,50 (na época dessa pesquisa); que o acesso ao Centro da cidade não seja tão difícil (embora seja demorado, sobretudo nos finais de semana, quando o intervalo entre os ônibus é dilatado); que parte dos moradores disponha de veículos automotores; que haja na cidade de Juazeiro do Norte ou na microrregião do Cariri múltiplas opções de lazer; que o Shopping Center local esteja a cerca de 2 km de distância; que a principal via urbana de interligação entre Crato e 4

Trata-se de cantor baiano que teve relativa repercussão no ano de 2012 e primeiro semestre de 2013. Com o slogan “O cantor apaixonado”, suas músicas são caracterizadas pelo estilo arrocha romântico ou brega (Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2014).

30

Juazeiro do Norte esteja a poucos metros; que a avenida Leão Sampaio (Rod. CE 060), que interliga Juazeiro e Barbalha, passe ali próximo; e que o bairro não disponha do que se denomina de equipamentos de lazer (praças, parques, dentre outros), a população do Frei Damião organiza suas próprias práticas locais de diversão, a exemplo dos campinhos onde se pratica o racha. Essa população parece permanecer no bairro, em sua maioria, aos finais de semana, ao contrário do que acontece nos dias úteis ou em outros bairros durante o mesmo período. Essa permanência no bairro encontra nos laços sociais presentes nas atividades que relatamos, uma outra motivação. Podemos agregar a esses elementos o fato de que, durante alguns dias do mês de abril de 2013, o Circo Pop Star se instalou no bairro, como também o fez em 2011. Contando com uma pequena estrutura (ver figura 27, em anexo), o circo cobrava R$ 2,00 de ingresso para apresentações cômicas e acrobáticas realizadas uma vez à noite. Também se instalou no bairro, em 2013, em dois locais diferentes entre os meses de agosto e setembro, o Circo Real Madrid. Acrescente-se, aos circos, um pequeno parque de diversões que esteve no bairro por um curto período de tempo durante o mês de outubro de 2013. Tal como outros aspectos, essa intensidade social diferenciada ao final de semana não se dá de forma homogênea por todo o bairro. Quase inexiste no início do bairro, isto é, na territorialidade que se denomina de Vila Real, como trataremos adiante. É em demasia acentuada nas demais territorialidades. Na primeira área, são poucos os moradores sentados nas calçadas e conversando em grupos. Aqui, encontramos as casas fechadas e um grande silêncio. Adiante, do Frei Damião pra lá, uma polifonia de sons irrompe na paisagem acompanhada do trânsito de pessoas pelas ruas. Cortando o céu, pipas coloridas. Nos terrenos baldios, os meninos nos campinhos às 15 horas jogando bola. Mesmo que pareça um labirinto5, como podem sugerir a descrição da disposição dos quarteirões e as imagens de satélite (ver figura 01, página 32), que seja resolvido por um mapa oficial/administrativo (o olhar de fora), o bairro só é compreendido internamente. Assim, ao tempo em que nos beneficiamos das imagens panorâmicas, que com ferramentas como o Google Maps e Google Earth se tornam cativantes, delas nos distanciamos dada a ausência de sujeitos nas imagens e ausência de interação entre quem olha e quem é observado. 5

A imagem de um labirinto que aqui tenho em mente está mais próxima da de uma vasta área desprovida de significação cultural (ausência de pessoalidade com o local) e onde o espaço é organizado de forma que os quarteirões (unidade de divisão territorial no bairro) estejam alinhados entre si. Ao pensar na figura do labirinto no bairro Frei Damião, não nos referimos a uma rede caótica de becos emaranhados, como poderia se supor, uma vez que esta é uma topografia distante daquele ambiente, como descrito acima. Mais informações sobre a organização espacial encontrada no bairro serão tratadas nos capítulos III e IV.

31

Essa ausência de sujeitos e de contato entre eles, elimina a possibilidade de significação do território e de seu entendimento por parte do observador. Logo, a imagem de sobrevoo não consegue mediar significados. Daí que elegemos o corpo do pesquisador e seu trânsito no bairro Frei Damião como forma de, possivelmente, preencher essa lacuna. O mapa aqui relativizado, ressalto, não leva à afirmação da diferença a partir da construção de mundos à

parte, acabados em si e

para

si. Os mundos se

interceptam/interpenetram. Tão logo adotemos esse raciocínio, ele nos leva a entender o bairro não como substância essencial, nem como contrastivo e relacional – o que poderia levar à exaltação da diferença6 –, mas como ponto de intersecção entre os mundos que comporta internamente e destes com a cidade. A imagem de um labirinto é também fundada na minha caminhada por aquele espaço. Caminhada diferente da de um morador. Ainda não consigo me localizar bem no espaço, mesmo que todas as ruas tenham seus nomes indicados por sinalização. Não sem dificuldades, sigo o trajeto recomendado por alguém, o que já fora impossível e levava-me a lançar mão do celular para informar ao interlocutor onde me encontrava e pedir orientação.

6

Reflexões inspiradas em Zaluar (1993, p. 144).

32

Figura 01: Imagens do bairro Frei Damião. Sentido norte-sul da esquerda para direita. Fonte: Google Earth (2013).

Estranho essa cartografia, que parece já inscrita nos moradores em uma espécie de mapa mental sedimentado por seus passos. Eles simplesmente dizem, ao ser solicitada uma informação: “Você segue por esta rua, depois vira à esquerda, depois desce, segue pela

33

direita, e anda até o terceiro quarteirão, onde na esquina tem um orelhão”. Seus passos não vacilam. Não hesitam em seguir pela rua adiante. Não pensam/elaboram o percurso. Lembrome como seu De Jesus reagiu ao ser solicitado quanto à localização de determinada rua por um entregador de material de construção. Meu interlocutor foi abordado enquanto o entrevistava na calçada de sua casa. “Vai querer saber o endereço aí, viu” – disse seu De Jesus ao perceber a aproximação lenta do carro. A resposta vem à tona rapidamente: “Se eu não estiver enganado, o senhor indo aqui, quando chegar, desce na avenida, chegou no canto do colégio Mário Bem, aqui a primeira rua, tem essa rua, na segunda do lado”. A resposta não é apenas dada verbalmente, ela é mediada e também toma conta do corpo de seu De Jesus. Para cada indicação, correspondia um gesto com o braço e as mãos. O bairro parece também residir ali, por tão incorporado que fora. Seu De Jesus se orgulha e se legitima em dar a informação: “Tá perguntando ao fundador do bairro”. Então, retoma a sua narrativa vangloriando-se de ter participado da medição dos lotes de casas no bairro. Foi ele, inclusive, quem atribuiu nomes às primeiras ruas do bairro. Surpreso com tal mapa cognitivo, ao chegar em casa eu resolvo consultar o mapa do bairro e vejo que seu De Jesus tinha sido certeiro ao indicar a rua. A dificuldade em se localizar no bairro não é apenas minha, como se notou acima. Também a sentem os entregadores de mercadorias, representantes comerciais e quem mais tenha de ir ao bairro a trabalho. Estes também recorrem, por sua vez, a um mapa do bairro disponível na Bodega do Seu Olavo (ver figura 02, a seguir), defronte ao CAIC. Seu Olavo, que este ano renovou o mapa, o fez com essa intenção. Outro mapa do bairro encontra-se disponível na sede da Associação de Moradores. Este é utilizado, por sua vez, pelos moradores e por proprietários de imóveis no local que não residem ali para saber da localização das propriedades antes da realização de negociações de venda, por exemplo, já que é a Associação de Moradores que tem o registro de cada lote e seu respectivo dono7.

7

No que compete a esse ponto, para mais informações, vide capítulos III e IV.

34

Figura 02: Mapa do bairro Frei Damião elaborado por seu Olavo. Foto: Antonio Lucas C. Feitosa, 2013.

A caminhada toma o espaço das ruas e sempre prossegue por estas, deixando as calçadas reservadas ao ambiente privado. Se os passos que acompanhamos são de um morador do local, do bairro Frei Damião, tão logo nos distanciamos do ponto de partida do percurso aqui adotado, passando por um conjunto de casas com fachadas recobertas por cerâmicas, pela lama e poças de esgoto que tomam contam da rua, lateralmente às fábricas, a uma das unidades de atendimento das equipes da Estratégia Saúde da Família, beirando a calçada de uma pizzaria e de oficinas mecânicas, ele indicará, ao nos aproximarmos da rua Poeta Vitoriano Vicente, que ali é a Primeira Rua ou Rua da Capela. A capela leva o nome de Nossa Senhora das Candeias. Até aqui percorremos o que os moradores denominam de Vila Real. No interior desse conjunto de casas há aquelas com dois pisos, com cerca elétrica, muros altos, garagem e outras tantas em construção. Em algumas ruas encontram-se fileiras de casas com o mesmo padrão arquitetônico. Há, inclusive, uma casa com piscina. São poucos os bares e vendas. A maior parte das ruas não está asfaltada, outras estão calçadas com pedras de formato irregular e muitas ainda na terra batida.

35

Adiante, descendo, estaremos no Frei Damião. Aqui percorreremos ruas ladeadas com mercadinhos pequenos e médios, sendo o de maior porte o Mercantil Irmãos Borges, que também dá nome à farmácia situada ao lado; de poucas casas com sobrado; a igreja Congregação Cristã no Brasil, estabelecimentos de acesso à internet, jogos digitais e xerox, inúmeros bares e vendas. Chegamos, então, ao Mário Bem e ao CAIC (Centro de Atenção Integral à Criança Dom Antonio Campelo de Aragão), à frente, a capela de Santo Expedito, ao lado desta, o prédio da Associação de Moradores, um pouco à frente, a sede da Associação Comunitária de Desenvolvimento do Bairro Frei Damião8. Na mesma rua, a feira livre realizada da quinta-feira a domingo pela Associação de Desenvolvimento e Abastecimento do Bairro Frei Damião. Daí em diante, enfrentaremos uma inclinação no terreno, uma subida. Ao topo, nos depararemos com a caixa d‟água 9, que surge cercada por um conjunto de casas. Ao longo desse percurso, encontraremos praticamente todas as ruas asfaltadas; passamos por bares, pequenos salões de beleza, uma academia de musculação, por duas igrejas Assembleia de Deus e uma Congregação Nova Jerusalém – Assembleia de Deus Seta. Avante, encontraremos uma descida, deixando para trás o Frei Damião. Daí em diante, até o final do bairro e no limite intermunicipal, teremos a Baixa da Raposa ou, como tem sido denominada recentemente, Baixa da Esperança. No fim do bairro, sobretudo, há muitas ruas esburacas, nenhuma está asfaltada; acúmulo de esgoto, formando poças; menor densidade de casas, havendo propriedades ociosas; casas com quintais cercados com arame farpado, o que permite avistar da rua a parte de trás da moradia; uma área reservada para lazer, mas praticamente abandonada; a capela de Nossa Senhora das Graças e de Santa Edwiges, esta última ainda em construção; uma das unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF) (a maior do município, com capacidade para receber até quatro equipes de ESF) e o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS); a Igreja Batista Regular Filadélfia; a Igreja Congregação Cristã no Brasil; o prédio para funcionamento de uma Cozinha Comunitária; uma escola de ensino fundamental e uma creche. Nessa área, a Baixa da Raposa, a camada de asfalto que até então acompanhou toda a rua Francisco Martins de Souza é interrompida, sendo o restante da rua recoberta 8

Esta Associação foi a responsável pela criação do Banco Comunitário Frei Damião, que funcionou de julho de 2012 a julho de 2013 com a moeda denominada de Dam (D$) (LIMA, C., 2012). 9 Tanto a Capela de Nossa Senhora das Candeias como a caixa d‟água da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (CAGECE) são utilizados pelos moradores como pontos de inflexão entre as áreas em que o espaço do bairro é dividido. Estas referências são destacadas no mapa elaborado por Seu Olavo (figura 02). Outros pontos destacados no referido mapa são o CAIC, o Mário Bem e, de forma improvisada, o que os moradores chamam de Delegacia da Mulher, um prédio abandonado que fora construído para sediar a Casa Abrigo à Mulher Vítima de Violência Beata Maria de Araújo.

36

apenas pelo calçamento. Embora o asfalto chegue até o final da rua Manoel Tavares Lopes, ele não a acompanha desde o início, começando apenas na altura da Primeira Rua10. Os moradores do bairro Frei Damião e de Juazeiro do Norte, ou quem mais conheça a cidade e seus bairros, bem como funcionários da administração pública e materiais de divulgação da Prefeitura, definem e se referem à Vila Real, especialmente, ao Frei Damião e à Baixa da Raposa como bairros à parte. Como se notou na descrição anterior, há pontos de inflexão que demarcam essas construções paralelas ao mapa oficial. São eles: a Primeira Rua ou Rua da Capela, ou ainda rua Poeta Vitorino Vicente, que assinala a divisão entre a Vila Real e o Frei Damião, e a caixa d‟água, que marca a passagem do Frei Damião para a Baixa da Raposa ou Baixa da Esperança. Nos primeiros anos de pesquisa no bairro, eu fiquei muito confuso e desorientado com essas divisões, principalmente quando procurava entendê-las a partir do mapa da Prefeitura, no qual não existem. Recorri, por várias vezes, ao mapa do seu Olavo, mas ele não ajudava muito. Para complicar um pouco mais, havia as variações no nome do próprio bairro, como se verá adiante. Somente hoje começo a compreender melhor aquele espaço. O bairro Frei Damião é tipicamente residencial. Com um total de 3.864 domicílios particulares permanentes em 2010 (IBGE, 2013a), sendo 99,90% constituídos por casas, a condição de ocupação desses imóveis se concentrava em próprios, que representavam 72,93% do total, e alugados, 20,83%, sendo a média de moradores por domicílio de 3,80 pessoas. Lembremo-nos que embora existam muitas mercearias no bairro, todas são de pequeno/médio porte e estão instaladas nas residências de seus proprietários, empregando mão de obra familiar. Há no bairro apenas um supermercado, Mercantil Irmãos Borges, de maior porte, que conta com um suprimento de produtos mais diversificado e número maior de funcionários. O percurso descrito acima pode ser realizado no ônibus, que segue, ao chegar ao bairro, pela rua Francisco Martins de Souza, passando para a rua Manoel Tavares Lopes, quando chega a Rua da Caixa D‟Água, início da Baixa da Raposa. Retorna ao ponto inicial do bairro pela rua Manoel Tavares Lopes, passando à rua Francisco Martins de Souza pela paralela Poeta Vitorino Vicente. Assim, o ônibus praticamente não adentra as ruas do interior, passando apenas nas laterais do bairro. Depois, segue pelos bairros próximos e, passando defronte ao Shopping Center e seguindo pela principal rua da cidade, rua São Pedro, chega ao 10

As ações de pavimentação asfáltica no bairro contemplaram a maioria das ruas somente a partir do final do ano de 2010 e dos primeiros meses de 2011. Inclusive, foi nesse período que as duas principais ruas foram asfaltadas.

37

Centro. Ao retornar ao bairro, o ônibus passa pela praça central da cidade, Praça Padre Cícero, e a loja Americanas, onde há uma parada. Depois, segue em direção ao bairro passando pela rua Padre Cícero e Rua José Marrocos. Notemos que os moradores da área denominada de Baixa da Raposa, ao se dirigirem a qualquer local da cidade de Juazeiro do Norte, necessariamente passam pelas demais territorialidades do bairro Frei Damião. Os que residem na área popularmente conhecida como Frei Damião atravessam somente a Vila Real, que já fica próxima das vias de acesso ao centro da cidade e mesmo para Crato. Isso ocorre pelo fato, como já dissemos, do ônibus seguir roteiro no sentido norte-sul e sul-norte, ou seja, Vila Real - Frei Damião - Baixa da Raposa e Baixa da Raposa - Frei Damião - Vila Real, mais também porque, como já observamos antes, afora a rua Francisco Martins de Souza, há apenas estradas vicinais, que são pouco utilizadas para sair ou chegar ao bairro. Por muitos dos moradores do bairro Frei Damião se deslocarem para outras áreas da cidade de Juazeiro do Norte utilizando o ônibus e por este ser o único meio que eu utilizei ao longo da pesquisa de campo para chegar ao bairro, o ônibus é concebido aqui também como um dos espaços de interação social entre os moradores do bairro, uma vez que seu público é constituído majoritariamente por estes. Mas, para além de um microespaço do bairro, o ônibus é uma das vias de circulação do bairro na cidade. É um momento de contato do bairro, digo, de seus moradores com a cidade e desta com aqueles. Pensar sobre esse ambiente de deslocamento e interação foi importante para a compreensão do bairro e de sua relação com a cidade, como abordaremos no capítulo IV. O deslocamento do ônibus e de seus passageiros não é apenas de ordem física, mas por também sê-lo, é deslocamento por situações distintas. Não é um deslocamento deslizante, como no surf ou na estratégia de leitura de textos conhecida como skimming11. Como a caminhada, este deslocamento por situações agrega e é agregador, pois há paradas, estabelecimento de contato com pessoas de outros lugares. Dentro do ônibus, já observei diálogos entre passageiros sobre o nome do bairro. Em um destes, uma senhora, que havia esperado o ônibus em uma parada no centro da cidade, comentava com outro passageiro que, certa vez um senhor aguardava a condução naquele mesmo local. Este, segundo ela, esperava o ônibus com a indicação do nome Mutirão. Como a indicação que consta em todos os veículos é “Parque F. Damião”, o senhor deixou de parar vários ônibus, passando muito tempo na parada. Ao relatar o caso para o passageiro, o mesmo indagou a senhora sobre os 11

Skimming é uma estratégia de leitura em que se procura explorar e identificar o texto. Para buscar informações, usa-se a scanning.

38

dois nomes, Mutirão e Frei Damião. Além de associar o primeiro à época em que o bairro era uma “comunidade” e o segundo ao bairro como o encontramos atualmente, a senhora comentou que as pessoas “acham ruim” dizer Mutirão dentro do ônibus. Em outra situação, em uma das paradas em um bairro adjacente ao Frei Damião, três garotos ficaram gritando “Baixa da Raposa, Baixa da Raposa, Baixa da Raposa!” para os passageiros do ônibus e diziam, ironicamente, ao motorista: “ah, vem da Baixa da Raposa, né?”. As palavras pronunciadas assumiam tom de provocação, de hostilidade. Não foram respondidas, a não ser pelo sorriso de cumplicidade do motorista. Mas que impertinência guardaria essa forma de denominação? Retomaremos a questão adiante, nos capítulo III e IV, a partir da fala de alguns moradores. De origem relativamente recente, datando do início da década de 90, o bairro Frei Damião é, segundo os dados do censo de 2010 (IBGE, 2013a), o terceiro maior bairro, em número de habitantes, de Juazeiro do Norte, com uma população de 14.677 habitantes12. Essa população corresponde a 5,9% da população total do município, que era de 249.939 habitantes em 2010 (IBGE, 2013b). A distribuição da população do bairro segundo gênero é quase que equitativa, sendo 50,1% (7.349) constituído por pessoas do gênero masculino e 49,9% (7.328) por pessoas do gênero feminino. O bairro tem uma população jovem, tendo, como faixa etária que mais concentra residentes homens (26,04%) e mulheres (23,91%), a que vai de zero a dez anos de idade. Esse percentual decresce sequencialmente para ambos nas faixas etárias seguintes (IBGE, 2013a). Mesmo sendo considerado no imaginário urbano local como periferia13, o bairro Frei Damião não apresenta indicadores sociais muito distantes dos demais bairros da cidade de Juazeiro do Norte que não são avaliados moralmente como periferia. Exceção disso é a taxa total de alfabetização da população do Frei Damião, que é de 78,3%, sendo de 78,9% para as mulheres e 77,6% para homens (IBGE, 2013a). Esse é o indicador, dentre rendimento, cor/raça, média de moradores em domicílio, situação de ocupação e tipo de domicílio, que

12

Até o censo demográfico de 2000, o IBGE contabilizava os dados do bairro Frei Damião juntamente com os do bairro Jardim Gonzaga, adjacente, uma vez que somente em 2009 é passa a ser considerado bairro (vide capítulo 4). Daí que não dispomos de dados anteriores ao ano de 2010, quando o último censo foi realizado. Entretanto, para se ter uma noção da população do Frei Damião em 2000, podemos comparar a população residente no bairro Jardim Gonzaga em 2000 e 2010, que era de 11.387 e 6.139 habitantes, respectivamente (IBGE, 2013a). 13 Como trataremos no capítulo IV, a percepção do bairro como periferia não se restringe apenas ao município de Juazeiro do Norte ou a microrregião do Cariri cearense, na qual Juazeiro está inserida juntamente com outros sete municípios.

39

mais se distancia em relação aos bairros próximos, como Jardim Gonzaga e São José. A taxa total de alfabetização nestes é de 84,2% e 87,4%, simultaneamente. No bairro João Cabral, o maior em número de habitantes da cidade, com 17.859 moradores, e também considerado pelos moradores da cidade como periferia, esse indicador é de 79,5%. No caso do bairro Lagoa Seca, adjacente ao Jardim Gonzaga e tido na cidade como bairro nobre, o indicador chega a 91,3%. Outro indicador que guarda valores diferentes no bairro Frei Damião quando contrastado com os bairros antes citados, é o de saneamento básico. Ao longo do percurso que acabamos de fazer no bairro, o esgoto líquido flui por entre pequenas valas expostas e entorno das calçadas, além de haver, sobretudo na Vila Real e na Baixa da Raposa, poças de esgoto. Essa é uma situação que pode ser encontrada em qualquer ponto de Juazeiro do Norte. Segundo dados que tomam como referência o ano de 2010 (BRASIL, 2012), da população urbana do município de Juazeiro do Norte, apenas 23,4% é atendida com rede de esgoto (para esse mesmo indicador, a porcentagem chega 22,5% para a população geral, isto é, urbana e rural). Já o atendimento com rede de água chega a 84,1% na zona urbana e a 80,9% na população total. Em consonância com esses valores, temos os dados de quantidade de ligações de esgoto, que é de 20.017, incluindo ativas e inativas, e de 19.032 ativas. A quantidade total de ligações de água é de 70.805, sendo 69.135 ativas. Porém, quando passamos a tratar especificamente dos resíduos sólidos, os dados do censo de 2010 (IBGE, 2013a) mostram diferenças na forma como cada bairro destina seus detritos. Do total de 3.864 domicílios particulares permanentes existentes no bairro Frei Damião em 2010, 86,96% (3.360) apresentavam banheiro de “uso exclusivo do domicílio”. Destes, 52,61% utilizavam fossa rudimentar em seus banheiros. No bairro João Cabral, 95,07%, de um total de 4.809 domicílios, tinham banheiro e destes 37,28% faziam uso de fossa rudimentar. No caso do bairro Lagoa Seca, a presença de fossa rudimentar chega a 41,59% dos 1.414 domicílios com banheiro exclusivo, representando estes 98,67% do total de domicílios existentes. Nos bairros contíguos ao Frei Damião, temos: São José: 37,80% com uso de fossa rudimentar dos 2.696 domicílios com banheiro (97,72% do total de domicílios) e Jardim Gonzaga: 42,31% com fossa rudimentar dos 1.468 domicílios com banheiro (89,62% do total de domicílios)14.

14

O efeito que se pretende aqui com a apresentação de dados de outros bairros é apenas de contraste, haja vista que qualquer comparação que se pretenda torna-se grosseira se não ponderar a diferença no número de habitantes.

40

No que diz respeito aos rendimentos mensais da população do bairro Frei Damião, os dados estatísticos do último recenseamento demográfico mostram que estes se concentram entre meio salário mínimo (16,02%) e mais de meio a um salário mínimo (29,57%) (IBGE, 2013a)15. O que significa que aproximadamente 46% da população recebe até um salário mínimo. Feita essa descrição e caracterização do bairro e de sua gente16, procuraremos, em sequência, tratar de bairro como agrupamento humano e categoria sociológica a partir do diálogo com autores das Ciências Sociais que estudaram povoamentos no Brasil e de opções analíticas que adotamos na presente pesquisa.

2 Bairro como categoria sociológica

É clássico às Ciências Sociais o exercício de tentar precisar o sentido das palavras utilizadas na compreensão dos contextos sociais. Na tradição sociológica, quando os autores dirigem um investimento a palavras comuns e correntes nas falas nativas, procuram pensar outras coisas a partir das mesmas coisas. No nosso caso, em que nos encontramos tratando da noção de bairro, para ser mais preciso, de bairro urbano, desejamos pensar, com esse vocábulo usual nas nossas falas corriqueiras, que relações sociais o caracterizam como tal, como bairro. Assim, não estamos nos referindo ao bairro apenas em sua concepção topográfica, administrativa ou equivalente, embora não descartemos tais dimensões ao estudo. Desejamos, sim, empreender a noção de bairro como categoria sociológica. Nesse sentido, nos detemos aqui a tratar de bairro. Para refinar tal noção, em um exercício de precisá-la e, diga-se, não somente literato ou de erudição, mas de dotá-la de características distintivas e que a tornem apreciável sociologicamente, empreendemos um diálogo com os estudos sobre agrupamentos humanos, situados, inclusive, em espaços considerados rurais.

15

O salário mínimo utilizado na época de realização do censo era de R$ 510,00. Consideram-se pessoas com rendimentos mensais aquelas com 10 anos ou mais de idade, que no bairro Frei Damião somava-se 11.422, segundo o IBGE (Nota do IBGE, 2013a). 16 Interessante destacar que o texto apresentado acima teve sua redação inicial elaborada no primeiro semestre de 2013, sendo que mudanças na paisagem descrita já aconteceram. Uma construção que estava em andamento e não se sabia do que se tratava, hoje se percebe que se trata de um posto de combustível, que já se encontra em funcionamento; as obras do Loteamento Conviver Juazeiro VII foram paralisadas por questões jurídicas envolvendo a posse da propriedade; as músicas mais comuns de se ouvir não são mais “Esse cara sou eu” e nem as de Silvano Salles, não havendo uma predominância de um som no momento.

41

O tratamento de conceitos é um exercício de também delimitar o campo de estudo, de definir um objeto e, claro, de criar formas de entendimento entre pares. Assim, no decurso desta seção, procuro deixar claras algumas das questões que competem à pesquisa. Se conceitos, noções ou categorias são encarnações de elementos da realidade reelaborada diante de sua complexidade, eles nos ajudam a pensá-la ao recortá-la, descrevê-la e explicá-la (BECKER, 2007; MAGNANI, 2010). Quando dissemos anteriormente que ao atribuir atenção a palavras êmicas, os autores, nas ciências sociais, desejam pensar outras coisas a partir da mesma coisa, dizemos, para esse caso, que não pensaremos bairro como o faz o bairrista (como local de residência, de trabalho, como local que está lá), embora este seja a base de nossa elaboração. Ao pensar bairro como conceito/categoria, suplantamos aqui a noção autoevidente que parece ser (metáfora) e o pensamos a partir de sua história e cotidiano, ou seja, como dado sociológico. Pensamos nesses termos, história e cotidiano, não como camadas tomadas separadamente, mas como conjugadas na criação da imagem do bairro. Além de descartamos a vista do bairro a partir do mapa administrativo e oficial, abandonamos também uma definição de bairro que poderia se instalar previamente à incursão à campo e que tem no modelo de mapa referido acima um referente. Trata-se de uma concepção de bairro que o pense como realidade autoevidente, indiferenciado (homogêneo), unidade continua e coesa. Mesmo que nos posicionássemos a priori distante dessa definição, ao partirmos de uma abordagem sociológica, foi, sobretudo, a pesquisa empírica no bairro Frei Damião que nos indicou outras linhas de interpretação para aquele contexto. Como é possível perceber na descrição geral do bairro Frei Damião, que realizamos anteriormente, seu universo social não é tão simples como poderíamos pensar a partir da definição de bairro apontada acima. O bairro apresenta dinâmicas que o problematizam internamente, como é o caso do fracionamento da área urbana onde se encontra, e aspectos específicos em cada área. A partir dos elementos apontados até aqui e dos que apresentaremos nos demais capítulos, compreendemos que o bairro Frei Damião está distante de um universo autoevidente, coeso e homogêneo. No processo de apreensão do bairro como noção sociológica, dialogamos com estudos de agrupamentos humanos em espaços rurais, foco de pesquisas pioneiras nas Ciências Sociais brasileira. Aparentemente, parece forçoso referir-se a tais estudos em se tratando de pesquisa desenvolvida em domínio urbano. Mas, ao pensar com eles e a partir deles, detenho-me à compreensão de seus autores quanto à forma pela qual se constituem os povoamentos

42

duráveis em espaços rurais. Além do mais, considero que as pesquisas sobre agrupamentos sociais na Academia brasileira apresentam nos estudos rurais sua expressão inicial. Assim, são clássicos e inovadores estudos socioantropológicos rurais tais como Os parceiros do Rio Bonito, escrito em 1954 por Antonio Candido; Bairros rurais paulistas, de Maria Isaura Pereira de Queiroz, publicado em 1973 e, de autoria de Ellen Fensterseifer Woortmann, Herdeiros, parentes e compadres, de 198817. Embora sejam estudos realizados em períodos distintos e de recortes teóricos diferentes, os trabalhos de Candido (2001), Queiroz (1973) e Woortmann (1995) apresentam confluências interpretativas que nos ajudam, ao se referirem à composição de agrupamentos humanos. Pode-se perguntar: para onde confluem esses três trabalhos? Encontramos em todos uma interpretação dos povoados estudados situada, sobretudo, em idiossincrasias internas, melhor, concentram-se em elencar elementos que dotam as pessoas do sentido de pertencer a um determinado grupo e que, assim, atribuem-no existência ao reconhecê-lo e ao se reconhecerem nele. Entendem o agrupamento a partir das relações de sociabilidade engendradas pelos habitantes. Poderíamos tomar tais pesquisas como ponto de partida para o estudo do bairro a que nos detemos aqui. Poderíamos, igualmente, formular hipóteses a partir dos elementos reunidos por esses autores para criar suas interpretações, afinal, nesses estudos não encontramos uma postura de tipificar e circunscrever o rural a partir das relações ali elencadas. Mas, apenas levamos em consideração a forma como estes trabalhos pensaram a constituição dos aglomerados estudados, ou seja, a partir das relações sociais estabelecidas entre seus moradores. O emprego dessa literatura poderia nos alinhar a comum percepção do Cariri como mundo rural (Cf. MARQUES, 2011). Assim, sendo a região do Cariri, onde o município de Juazeiro do Norte está situado, um mundo rural, o bairro em tela, como a cidade, seriam passiveis de igual caracterização.

17

Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida, tese de doutorado apresentada em 1954, foi publicado em livro no ano de 1964. A pesquisa foi desenvolvida entre 1947 e 1954 no interior do estado de São Paulo. O livro Bairros rurais paulistas: dinâmica das relações bairro rural – cidade reúne resultados de pesquisas iniciadas em 1962 no estado de São Paulo. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do Sul e sitiantes do Nordeste é fruto de tese apresentada em 1988. A pesquisa foi iniciada em 1981 junto a localidades situadas no estado de Sergipe e outras na região Sul do país, sendo que a autora ainda utiliza relatos de pesquisadores sobre agrupamentos em Pernambuco, Bahia e Piauí.

43

É verdade que o bairro Frei Damião se situa, desde o momento histórico que o inaugurou na cidade, entre aspectos rurais e urbanos. A área ocupada inicialmente pelo bairro, em 1990, era área de lavoura, à margem de um rio, à sombra de mangueiras, como abordaremos a partir do capítulo III. Naquele momento, como ainda hoje ocorre no bairro, os moradores empregavam práticas agrícolas, cultivando pequenas plantações nos espaços não habitados do bairro. Alguns, inclusive, têm antecedentes de ocupação em atividades campestres e de moradia no campo. Lembremo-nos que atualmente o bairro tem seus limites sul, leste e oeste ocupados por uma vegetação rala, sem haver densidade de habitações nesses locais. Essa imagem de mundo rural, todavia, não nos é suficiente. Estamos menos preocupados com a definição de rural e urbano do que com a compreensão das relações sociais existentes no contexto a que nos detemos aqui. Estamos mais inclinados para o entendimento de quais relações compuseram e compõem o bairro Frei Damião. Logo, poderíamos ter encontrado as relações tratadas por Candido, Queiroz e Woortmann em seus locais de pesquisa presentes também no bairro Frei Damião, embora esse não tenha sido o caso18. Esses autores, de toda forma, fortalecem nossa argumentação ao privilegiarem aspectos sociológicos internos aos contextos estudados. Pensando em possíveis aproximações das relações sociais encontradas nos agrupamentos estudados por tais autores e no contexto a que nos interessa aqui, localizamos na denominação dos povoados indicadores culturais diferentes. Em Candido temos Rio Bonito; em Woortmann, Lagoa da Mata, sem falar de outros estudos rurais, a que recorre a autora, em Sítios como Várzea Grande, Sítio Mocó, Zabelê. No caso desses dois últimos, referem-se, respectivamente, a um pequeno roedor que habita áreas rochosas e a uma ave típica do bioma caatinga. Aqui, os nomes estão sobremaneira identificados com a natureza. Sugerem, na verdade, a projeção do humano (cultura) sobre a natureza, seja em termos da linguagem (nomeação), seja na forma como a natureza é apropriada pelo humano (que também é da ordem da linguagem). 18

Marques tem tratado a localização corrente do Cariri como mundo rural a partir de espaços, momentos e práticas que tensionam a região em seu núcleo usual de interpretação, composto a partir de noções como cultura popular, mandonismo local, religiosidade, família, mundo rural, comunidade e descrição de paisagem natural. O autor pensa, por exemplo, em uma “gestão do anonimato” mesmo em um Cariri considerado rural, marcado pela pessoalidade e parentesco (Cf. MARQUES, 2013). Cito passagem que apresenta essa linha de raciocínio para um ambiente de festa de forró eletrônico: “As festas aparecem assim como uma possibilidade de gestão de si em múltiplos ambientes, produzindo não identidade, mas circulação a partir de múltiplos personagens. Para ser mais preciso: não somente a gestão de si em múltiplos ambientes como também a gestão de múltiplos ambientes/analogias pela gestão de si” (MARQUES, 2011, p. 172).

44

Inclusive, tanto Antonio Candido quanto Ellen Woortmann utilizam a noção de projeto para pensar a apropriação e significação da natureza pelo humano:

O meio se torna deste modo um projeto humano nos dois sentidos da palavra: projeção do homem com suas necessidades e planejamento em função destas – aparecendo plenamente, segundo queria Marx, como uma construção da cultura (CANDIDO, 2001, p. 36). Manoel Barreto chegou, então, a natureza pura e, não seria descabido dizer, sobre ela projetou cultura. Organizou aquele mundo, criando o espaço social do Sítio; transformou o mundo da natureza no mundus da sociedade – o mundo dos Barreto, separado dos outros por uma fronteira simbólica (WOORTMANN, 1995, p. 243).

No caso de Juazeiro do Norte, os bairros urbanos têm um sentido de nomeação distinto. Seus nomes, definidos pelo poder executivo e legislativo municipal, são referência a equipamentos urbanos, a personagens associados ou não à sua história e nomes de santos católicos. Assim, dos 36 bairros existentes atualmente na cidade, segundo dados do IBGE (2013a) e do mapa municipal, somente cerca de nove tem seu nome conexo à natureza, sendo mais específico, a plantas e áreas geográficas. Os demais apresentam nomes de santos ou de personalidades importantes do catolicismo popular e de personagens locais. Aqui, já percebemos uma diferença e quando observamos o bairro em tela, o Frei Damião, notamos de forma mais clara que a projeção da cultura sobre a natureza, nesse caso, é de outra ordem, como adiante trataremos no capítulo IV. Para além da relação com os aspectos naturais, cabe indagar que relações sociais constituem o bairro Frei Damião? Que trocas sedimentam o bairro? Antes de passarmos ao domínio das relações existentes no bairro urbano aqui em foco, é necessário problematizar a noção de bairro um pouco mais. Peguemos o mapa.

3 O mapa: cartografia sem sujeito

Já sinalizamos, anteriormente, que o bairro Frei Damião, como objeto de estudo, não se confunde com a definição operada pelos órgãos da administração pública (Prefeitura Municipal) e utilizadas por outras instituições, como, por exemplo, o IBGE. Relativizamos esse mapa porque o bairro Frei Damião, como objeto das práticas de seus moradores e dos demais juazeirenses e como objeto analítico deste estudo, não é equivalente com a concepção dele operada por tais órgãos. Logo, não se trata aqui da definição de bairro tal como é

45

empreendida pela administração municipal ou de uma possível correspondência, ou falta dela, entre essa definição e a dos habitantes, no que poderia ser uma busca pela verdadeira definição do real. Interessa-nos tão somente uma definição tecida a partir do trânsito operado pelos habitantes do local. O mapa aqui digitalizado é apenas ilustrativo e demonstrativo de como o bairro Frei Damião é definido pela Prefeitura Municipal (ver figura 03, a seguir). Ao mesmo tempo, mesclamos por vezes esse mapa e a definição do bairro Frei Damião usualmente feita por seus moradores ou por quem mais o conheça, isto é, a definição que limita o bairro à área densamente habitada. Sobrepomos em alguns momentos essas cartografias, como na descrição realizada anteriormente, mas destacamos que estamos cônscios disto e que nos interessa sobremaneira o espaço em que as habitações e sua gente se adensam.

46

Figura 03: Mapa do bairro Frei Damião segundo definição da Prefeitura Municipal. Fonte: Mapa do Município de Juazeiro do Norte, elaboração do engenheiro Mário Bem Filho (2011).

Dada a “confusão/imprecisão” que possa emergir daqui, sendo essa própria confusão objeto de análise desse estudo19, esclarecemos: é vasta a área que a Prefeitura Municipal define como sendo o bairro Frei Damião. Todavia, para os moradores do local e

19

A seguinte passagem de Pierre Bourdieu é esclarecedora para o tratamento que aqui damos à relação entre o espaço urbano e as relações sociais/estruturas espaciais e estruturas mentais. Diz o autor: “Efetivamente, o espaço social se retraduz no espaço físico, mas sempre de maneira mais ou menos confusa” (BOURDIEU, 2012, p. 160).

47

mesmo para os juazeirenses de um modo geral, o bairro se limita à área densamente habitada, como fica evidente no mapa elaborado por seu Olavo, apresentado anteriormente (figura 02, página 34). Dessa forma, para todos os fins, adotamos como sendo a área de estudo (o bairro) a região retangular com aproximadamente 3,3 km de extensão por cerca de 200 m de comprimento. Em parte, esta é a definição do bairro Frei Damião elaborada pelos moradores, uma vez que eles descartam o restante da área em que as habitações estão relativamente dispersas (área esta considerada pela Prefeitura como pertencente ao bairro), atribuindo-lhe definição de sítio, loteamento e conjunto. O retângulo densamente habitado, porém, é dividido em três áreas, todas contíguas, como observamos anteriormente. Esta divisão, presente na fala dos moradores do bairro Frei Damião, da cidade de Juazeiro do Norte, dos agentes institucionais que programam ações ali e em materiais de divulgação da Prefeitura Municipal, embora ausente no mapa da Prefeitura Municipal, complica ainda mais o espaço. As três áreas que compõem o retângulo que adotamos como sendo o bairro Frei Damião recebem as seguintes denominações: Vila Real, Frei Damião e Baixa da Raposa20. É nessa sequência que as encontramos ao chegar ao bairro pelo ponto que aqui adotamos como sendo seu início. Todavia, para a maioria dos moradores do bairro, o seu início se dá na territorialidade popularmente conhecida como Frei Damião, tendo a Primeira Rua ou Rua da Capela como marco. A territorialidade denominada de Vila Real não somente é excluída do bairro como se exclui dele, julgando-se ser um bairro à parte. A Baixa da Raposa ou, como tem sido denominada recentemente, Baixa da Esperança, pertence ao bairro de modo menos ambíguo. A área Frei Damião e Baixa da Raposa tem uma origem comum e distinta da Vila Real, como veremos adiante. Uma representação gráfica dessa cartografia nativa pode ser vista no seguinte mapa (figura 04, a seguir), elaborado por uma moradora do bairro para um trabalho acadêmico.

20

As companhias de fornecimento de água, energia elétrica e telefonia não fazem essa distinção nas faturas dos serviços prestados, como se poderia supor, indicando tão somente o nome do bairro, Frei Damião.

48

Figura 04: Mapa do bairro Frei Damião elaborado por Ana Ruth de Melo. Fonte: Melo (2013).

No mapa elaborado por seu Olavo, como se viu (supra), essa divisão não aparece, embora tenha destaque no seu mapa os equipamentos que demarcam as fronteiras, os pontos de inflexão, como chamamos a capela de Nossa Senhora das Candeias e a caixa d‟água. A capela também está sinalizada no mapa municipal. Interessamo-nos, todavia, também por essa fricção constante entre diferentes formas nativas de representação do território, além da tensão entre a cartografia interna e a estabelecida exteriormente, ou seja, a do mapa administrativo, oficial e imagens de satélite. No próximo capítulo, apresentaremos um novo mapa diante das dinâmicas espaciais a que nos deteremos. Em tal mapa, sobrepomos várias representações cartográficas a partir de distintos referentes. Essas três territorialidades encontradas no bairro, sendo uma delas, a Frei Damião, denominada pelo mesmo nome do bairro como um todo, apresentam idiossincrasias históricas e atuais que as distinguem e que criam, materializam e mediam essas diferenciações. Embora pareça, em um primeiro momento, prudente tratar das três áreas separadamente, acreditamos ser impossível separá-las e, portanto, resolvemos tratar das três em conjunto, isto é, como bairro Frei Damião, inclusive a Vila Real, que é distinguida pelos moradores, uma vez que a compreensão de cada uma envolve, necessariamente, as demais e sendo necessário, à compreensão do bairro como totalidade, pensá-las em interação e não a partir de uma territorialidade representativa das demais e do bairro. Como consideramos anteriormente, o bairro é um ponto de intersecção entre os mundos que comporta internamente, interceptando-se, e destes com a cidade. Nesse sentido, pensamos o bairro Frei Damião a partir do conceito de figuração elaborado por Norbert Elias

49

(2001a; ELIAS; SCOTSON, 2000), uma vez considerando as particularidades que cada territorialidade apresenta, o tipo de interdependência que cada territorialidade guarda com as demais e destas com a constituição do bairro como um todo. Em função dessas particularidades, descartamos o mapa administrativo e cartográfico, as imagens capturadas por satélite e passamos para as referências nativas, como as de seu Olavo e a que acabamos de apresentar acima (supra, figura 04), e aquelas relatadas oralmente nos momentos mais espontâneos, como foi observado no caso de seu De Jesus ao indicar ao entregador de material de construção a localização da rua que procurava. O mapa oficial/administrativo é a visão de sobrevoo. É o espaço sem sujeito. É o dado, visão naturalista e de pretensão absoluta, de totalidade. Quase o ponto de vista de um Deus, como considera o escritor literário francês Michel Houellebecq (2012). Não nos interessa esse não-lugar. Pensar o bairro a partir do mapa é pensá-lo como unidade, como todo homogêneo. Não é que o mapa seja falso e não tenha utilidade, é que ele organiza o território de tal forma que não nos interessa. Organiza o território a partir da ausência de sujeitos observadores e observados e da ausência de interação entre eles21. Assim, interessa-nos o mapa operado a partir da caminhada, em contraponto àquele do GPS (Global Positioning System), o mapa do bricoleur e não o do engenheiro, para pensarmos com Lévi-Strauss (1989, p. 32-33). O mapa sentimental e mental guardado na memória dos moradores. O bairro do qual se fala e pratica. Operamos, então, um deslocamento ao passarmos das “estruturas” às “ações”, tal como se propõe Michel de Certeau (1994b). Largamos o mapa e adentramos os meandros da realidade social, incluindo os moradores com suas práticas sociais e narrativas, sendo essas últimas também uma prática. Como considera Mayol (2012, p. 43): “A prática do bairro é desde a infância uma técnica do reconhecimento do espaço enquanto social [...]”. Essa é uma afirmação valiosa para nossa pesquisa, uma vez que nos interessa também pensar as formas como o bairro é

21

Como dissemos, não é que o mapa seja inútil, ele é também uma possibilidade da ciência, mas que tem lá seus limites e vantagens, uma vez que perde em detalhe, mas ganha em síntese (ALBUQUERQUE Jr., 2011). Por vezes, abandonamos o mapa pela perda de detalhes que ele implica. Em outras ocasiões, recorremos a ele como síntese a partir da qual conseguimos esclarecer melhor certos pontos, embora quando o tomamos como síntese, adicionamos a ele vários detalhes (vide capítulo II). A respeito do mapa, Michel de Certeau assim considera: “No mesmo plano o mapa junta lugares heterogêneos, alguns recebidos de uma tradição e outros produzidos por uma observação. Mas o essencial aqui é que se apagam os itinerários que, supondo os primeiros e condicionando os segundos, asseguram de fato a passagem de uns aos outros” (CERTEAU, 1994b, p. 206-207).

50

praticado, e assim produzido como tal, e a relação (“reconhecimento”) entre o espaço urbano e o espaço social do bairro. Analisemos, então, algumas notas de campo que são o verdadeiro germe para todas essas questões, além da descrição antes empreendida.

51

Capítulo II – As práticas sociais e o(s) bairro(s)

O presente capítulo aborda o bairro Frei Damião a partir de duas práticas sociais que revelam formas distintas de interação e organização socioespacial do local para além dos mapas de referência oficial e das territorialidades que evocamos no capítulo I. Encontramos, então, nelas outros bairros no interior de um bairro, ou seria mesmo dentro de outros bairros? As práticas sociais de que aqui tratamos são os rachas, as novenas e festas das capelas existentes no bairro. No caso da primeira prática, o material que utilizamos a seguir é fruto de pesquisa desenvolvida ao longo do ano de 2011 para o projeto Agência e mediação em situações de “risco social”: etnografia do futebol de várzea em Juazeiro do Norte. A interpretação desse material fora apresentada em 2012 na monografia Sociabilidade, lazer e violência: práticas esportivas e juventude no bairro Frei Damião (FEITOSA, 2012). Tanto o material como a interpretação dele são expostas parcialmente a seguir sem grandes alterações em relação ao formato anterior, embora com preocupações um pouco diferentes. No caso da prática religiosa, isto é, das novenas e festas promovidas em louvor aos santos padroeiros das capelas existentes no bairro, a pesquisa foi desenvolvida ao longo do ano de 2013 a partir do acompanhamento, por parte do pesquisador, do período de celebrações anuais devotadas aos santos em suas respectivas capelas. Como já mencionamos, no bairro Frei Damião há quatro capelas, a de Nossa Senhora das Candeias, a de Santo Expedito, de Nossa Senhora das Graças e de Santa Edwiges. Suas celebrações são comemoradas nos meses de janeiro, abril, novembro e outubro, respectivamente. Por ter passado a residir em Juazeiro do Norte no início do mês de março de 2013, não tive como acompanhar as celebrações em louvor à Nossa Senhora das Candeias realizadas naquele ano. No entanto, como demonstrarei a seguir, além de ter tido acesso à programação das novenas dessa capela, a estrutura dessas celebrações e a dinâmica de cada capela pouco difere entre as quatro, o que nos permite observá-las em conjunto. Iniciemos nossas observações a partir dos rachas.

1 Os rachas

Em um terreno não demarcado, a cerca de dez metros de distância das residências dos moradores, encontra-se um campo de futebol de areia, ocupando uma área de aproximadamente cinquenta metros quadrados e cercado por uma vegetação de arbustos baixos. Nesse espaço, situado na fronteira do lado leste do bairro Frei Damião, são realizadas,

52

ao findar do dia, ao longo da semana, partidas de futebol, das quais participam, em geral, aproximadamente quinze jovens do gênero masculino, de idades entre doze e vinte e três anos. Nessas ocasiões, formam-se dois times, tendo ambos regularmente de quatro a seis jogadores, havendo sempre em uma das laterais do campinho aqueles de prontidão a formar um novo time ou entrar em substituição a alguns dos jogadores que perderam a partida precedente. A formação de um novo time ou apenas a mudança de parte dos componentes se dá quando uma das partes que estava jogando marcar dois gols. Assim, inicia-se uma nova partida em que os vencedores permanecem quase todos em campo para a partida subsequente e sendo constituído um novo time, quando se tem um número suficiente de pessoas para tal esperando na lateral do campinho, ou apenas substituindo parcialmente os jogadores do time que perdeu a partida finalizada. Essas características descrevem o que os jovens frequentadores do campinho chamam de “racha”, o momento de jogo propriamente dito. No período da tarde, é em espaços como este que se pode encontrar os jovens do bairro. Para pensarmos sobre a relação dos rachas com a organização socioespacial do bairro, vejamos como se constituem os times. Destaco, aqui, o que chamo de mecanismo de formação dos times a disputarem a primeira partida da tarde – para o caso de partidas sucessivas à primeira, o mecanismo acionado é outro. Estando cerca de quinze jovens na área do campo, dois garotos entre eles, por iniciativa própria, se posicionam próximo um do outro, ao tempo em que os demais ficam em volta. Erguem um dos punhos cerrados até à altura do ombro. Um deles indaga ao outro: “Par ou ímpar?” ou, se preferirem: “Zerinho (0) ou um (1)?”. Quem se sair melhor começa a “chamar”, ou seja, começa uma seleção entre os presentes, chamando para seu lado os jogadores do time que deseja formar, sendo que esse processo é alternado, primeiro um tira um jogador, depois o outro tira o seu e assim sucessivamente, até atingir o número desejado de componentes em cada time, que, embora varie, dependendo da quantidade de pessoas no momento, chega no máximo a seis. Ao presenciar pela primeira vez esse momento, notei um impasse entre os jovens presentes: um deles queria formar os times a partir do “par ou ímpar?”. Outro garoto queria apenas “tirar”, ou seja, sem ser necessário recorrer ao mecanismo que define quem inicia o processo e daí em diante a vez de cada um tirar. Ao ser sugerido essa última opção de constituição dos times, outro rapaz fez o seguinte comentário: “Se não for tirando par ou ímpar os componentes de cada time são uma panelinha!”. A observação desse momento suscitou o seguinte questionamento: “Não sei se „panelinha‟ está aqui no sentido dos mesmos componentes de sempre e/ou é uma relação com as amizades mais próximas entre certos jogadores. Eles acabam tirando par/ímpar e vão

53

escolhendo, cada um na sua vez, seus jogadores” (Caderno de Campo, 15/04/2011). O que seria então a panelinha? A resposta vem de um interlocutor: Aílton: A panelinha é gente que sabe jogar e gente que não sabe jogar. Lucas: Eu pensei que panelinha também porque tem aquela ideia, panelinha são pessoas mais próximas, mais amigas. Aílton: Não, a maioria das vezes rola mais pra quem sabe jogar mais, porque ali é tudo amigo, tá entendendo. Lucas: Eu pensei que podia ser quem fosse colega do outro, fosse mais próximo... Aílton: É, também, também a gente leva isso também [em consideração], né? Lucas: É, mais de fato, ali tem pessoas que são mais amigas que outras, né? Aílton: Tem. Lucas: Então, como é que fica isso quando vocês formam o primeiro time? Aílton: Eu tiro mais os cara que é mais chegado a eu, que é mais forte e tudo, né? É dois quarteirão que joga ali, dois quarteirão, que é o da minha rua ali e o de cima. Aí eu tiro gente que é mais do meu quarteirão ali, da minha rua, aí eu tiro mais eles do que os outros das outras ruas. [...] Mais afinidade mesmo, eles sabem jogar, também.

Com essa fala de Aílton, entendo que a “panelinha” não se restringe somente a um time que é formado por jogadores que sejam mais habilidosos no manuseio com a bola, por uma questão de medo do adversário, mas também assinala o time dos “mais chegados a eu”, sendo o “eu” um daqueles garotos que formam os times e escolhem seus membros, como descrito anteriormente. Ser forte e ser chegado, elementos que informam quem pode estar no campinho, quem pode fazer parte de que time, elementos que acabam demarcando e mediando o racha. A figura do garoto que participa do processo de formação de um dos dois times é, assim, importante no que diz respeito à configuração do time22. Sua rede de relações com as pessoas presentes, sendo estas pessoas aquelas que ele irá chamar para compor o time, desenha as diferentes posições que cada um irá ocupar (se ficará como “time fora”, como goleiro, etc.) ou mesmo se ocupará alguma posição (não participar do jogo) 23. Essa turma dos mais chegados encontra-se no quarteirão e é transposta para o momento do racha. Portanto, se a panelinha são os “mais chegados a eu” e estes, por sua vez,

22

A preocupação é com a forma pela qual os times serão estruturados, uma preocupação com as relações ali presentificadas, tanto é que os mecanismos de formação dos times nada mais são do que um instrumento por meio do qual se procura equilibrar, minimizar ou neutralizar a possível incidência das relações no e sobre o momento. Há uma tentativa de que a formação seja objetiva(da), recorrendose à matemática. Nota-se, todavia, que o mecanismo tem um efeito apenas parcial, havendo ainda a incidência das relações sobre a constituição dos times. A “panelinha” nem sempre fica ausente. 23 Não ser chamado para se juntar às pessoas que estão sendo escolhidas por um dos jovens para formar um time é motivo de chateação, de irritação por parte de quem terá de ficar no “time fora”. Por isso, as falas de pedido ou que dizem que irão pertencer ao time de determinada pessoa são evocadas bem antes do início do processo de formação dos times. São negociações que se dão antes do jogo e que se estendem a ele. Ouvem-se vozes, já no percurso da rua ao campo, do tipo: “eu vou ficar em teu time”, “eu vou ficar no time de fulano”. Não atendê-las é chatear quem terá de ficar fora da partida.

54

habitam no quarteirão ou em adjacentes, então temos que no racha o quarteirão é enunciado, é reverberado. Sempre que perguntei aos meninos quem participava dos rachas no campo, escutei a mesma referência aos quarteirões, como também o faz Aílton. O quarteirão também atua como uma espécie de demarcador, definindo quem pode chegar até os campos, como se pode notar na figura abaixo (figura 05), onde localizamos o quarteirão em que os jovens que participam dos rachas residem.

Figura 05: Jovens que participam dos rachas em distribuição pelos quarteirões. Legenda: As letras representam os quarteirões e os meninos que moram nestes e que participam dos rachas, também indicam as escolas locais: A: Nanam; B: Cabeludo, Dunga, Alison (Pinto), David, Rafael, Walison, Agneson (Pinpo), Joãozinho; C: David; Daniel, Yuri; D: Aílton, Diego, Diogo, Cícero, Sarrafo, Samuel, Emanuel; E: Kelvin; F: Mário Bem; e G: CAIC. Fonte: Elaboração própria.

Como nos diz Aílton: Aílton: Assim que surgiu o campo pra jogar bola, nós tinha uma... não deixava os caba jogar de outro quarteirão, porque assim que surgiu foi um campão. Do lado [do campo em que jogamos] não tem o outro campão bem grandão? Aí só quem jogava ali era os caras grandão, que era de outra rua, aí nós eles não deixavam jogar. Foi que um dia nós nos ajuntemos. “_Cara, vamos fazer um campo só pra nós”, que é aquele que nós joga agora, aí se ajuntou eu, Kelvin, o povo de nossa rua ali, aí fizemos o campo e nós começamos a jogar, aí foi que o campo deles se acabou, não jogaram mais né, aí passou pro nosso lado. Lucas: Eles não deixavam vocês jogar por que vocês eram pequenos? Aílton: Era porque nós não era amigos deles, não tão chegados a eles, aí por isso que eles não deixavam.

O unidade básica de sociabilidade no bairro parece ser o quarteirão, as ruas e calçadas que o contornam e as esquinas que o tangenciam. O quarteirão apresenta uma

55

sociabilidade erguida a partir da rua (DAMO, 2007), mas também vinculada à casa. Confluem nessas interações laços de consanguinidade, coleguismo, camaradagem, vizinhança, vínculos de trabalho, de amizade. Ou seja, os rachas materializam redes de relações que adentram casas e afluem entre ruas a partir das possibilidades de trânsito. A constituição de uma relação com o quarteirão, de um sentimento de pertença à área urbana e à rede de jovens que frequentam o campo, nos ajuda a pensar um pouco mais. “Fica paia” 24, é como um dos garotos que participava de um dos rachas no campo descreve a situação de ir jogar em outro lugar que não aquele em que estávamos 25. Fica “paia”, para ele, em função de não conhecer os que estão ali, no outro campo. A afirmação veio quando comentei que em todas as partidas que já tinha presenciado naquele campo, sempre percebi a presença das mesmas pessoas, não havendo muitos desconhecidos. Disse ele ainda que ali todos se conhecem e que “lá [no outro campo] é pesado [o jogo], eles são amigos e não querem perder”. Em situações nas quais observei que não se permitiu a outros jovens participarem do jogo mediante a justificativa de que ali jogam sempre os mesmos garotos (“todo dia tamo jogando aqui só as mesmas pessoas”) e de que se os deixassem jogar “[iria] acabar dando confusão aí, chegando outras pessoas aí pra jogar”, vincula-se a ideia de “panelinha”, mas também a expressão “paia”, referida há pouco para descrever o caso de ir jogar em outro campo. Isso se explica em função de que participar de um racha é estar vinculado a redes de relações, é ter relações de pertença com aquela turma. Dessa forma, o conflito fica ameno nesse corpo de mesmos indivíduos, pois eles podem conhecer/reconhecer e compartilhar os códigos de lealdade, reconhecimento que presidem os rachas, embora, por vezes, entre eles mesmos se instaurem conflitos. Para aqueles da mesma turma, composta por cerca de vinte jovens, circunscritos por relações desenhadas no quarteirão, esse código que preside o racha está dado, incorporado, tornando-se tácito, ao contrário do que se observa para os de fora, de outros lugares do bairro, que o questionam. Esse código se manifesta no próprio reconhecimento de amigos no momento de formar times, no reconhecimento do dono da bola como autoridade permanente no jogo (os dois garotos que formam os times iniciais são importantes apenas nesse momento), tanto é que se diz em momentos de tensão entre os participantes: “Se eu fosse o dono da bola não deixava ele jogar”, “Se eu fosse o dono da bola queria ver se você pisava aqui”. 24

Palavra utilizada para descrever algo, situação, coisa desinteressante, sem animação, ruim. Ao conversar com outros garotos, eles disseram que jogam em outros campos também, embora frequentem com maior assiduidade o campo a que estou me referindo aqui. 25

56

Esse reconhecimento das regras que regem o racha também se manifesta no segundo mecanismo de formação dos times, acionado para o caso das partidas sucessivas à primeira. Nesse caso, os componentes do time que ganhou a partida, marcando em seu placar os primeiros dois gols, permanecem, quase sempre, em campo para a partida subsequente. Já o time derrotado, substitui parcialmente seus integrantes. Nessa substituição, quem deixa o campo nem sempre é quem jogou mal, inclusive alguns que saem tinham realizado lances consideráveis e marcado gols. Essa troca é operada por quem está como time fora, isto é, na lateral do campo, aguardando a oportunidade de entrar em uma partida. Ao retirar alguns dos componentes do time que perdeu a partida, o jogador considera as relações que tem com estes e com os que permanecerão em campo. Ou seja, quem permanece em campo tem relações de proximidade (“mais amigo desses dois aqui”, “mais chegado”) com o garoto do time fora que garante que eles mantenham suas posições. O contrário ocorre com os substituídos. A figura 06, abaixo, simplifica esse ponto:

Figura 06: Mecanismo de formação dos times para partidas subsequentes a primeira. Legenda: As setas com traçado reto indicam relações de proximidade, que sugerem a permanência dos Triângulos em campo pelos Quadrados. Já as setas curvas sinalizam que em relação aos Círculos, os Quadrados têm uma relação de proximidade inferior a que mantém com os Triângulos, o que não garante que participem da partida seguinte. Fonte: Elaboração própria.

Entendemos, então, que nos rachas há uma simbiose entre o saber futebolístico e o saber da relação, não bastando somente ter habilidades com a bola, embora ela não seja dispensada, mas também saber conhecer e reconhecer a rede de relações sociais existente no racha. Outra prática social existente no bairro Frei Damião e interessante para se pensar na sua configuração são as novenas celebradas nas capelas existentes no local. Deixemos por ora os campos e vejamos as novenas nas capelas.

57

2 As capelas

Como mencionado em momentos anteriores, no bairro há quatro capelas: a de Nossa Senhora das Candeias, a de Santo Expedito, a de Nossa Senhora das Graças e a de Santa Edwiges26. Como também já vimos, cada capela está situada em uma das três áreas em que o bairro é dividido. Assim, temos a capela de Nossa Senhora das Candeias na Vila Real, a de Santo Expedito no Frei Damião e as de Nossa Senhora das Graças e de Santa Edwiges na Baixa da Raposa. É interessante destacar que além de estarem situadas de acordo com as três territorialidades do bairro, Vila Real, Frei Damião e Baixa da Raposa, o santo de cada capela, a partir do seu trânsito no bairro, reforça27 essa segmentação e opera novos segmentos territoriais a partir da criação do que se denomina localmente de “comunidade”. Cada santo/santa tem sua respectiva comunidade, como adiante trataremos, o que acrescenta ao que estamos chamando de territorialidades mais alguns segmentos socioespaciais distintos e coexistentes. Afora a realização ocasional de batismos, primeira comunhão e preparação para a crisma, ações constantes de “apostolado”28 e celebrações mensais de missas, todas as capelas, em algum momento do ano, têm novenas, ou “festa”, como usualmente são denominadas. Realizadas em cada capela nos meses de janeiro, abril, novembro e outubro, respectivamente, as novenas, que acontecem à noite, iniciam de modo que o dia do santo ou santa padroeira/padroeiro coincida com o dia do encerramento das celebrações. No ano de 2013, a festa de Santo Expedito estava na sua 12ª edição, a de Nossa Senhora das Graças, na 13ª, e a de Santa Edwiges, na 10ª29.

26

Todas as capelas pertencem à mesma Paróquia, da igreja de São João Bosco, em Juazeiro do Norte, repassando a esta uma porcentagem do dízimo arrecadado. 27 Lembremo-nos que a capela de Nossa Senhora das Candeias é o ponto de inflexão entre as territorialidades Vila Real e Frei Damião. 28 Contou-nos Dona Lourdes, o apostolado é uma rede de famílias que “zelam” a imagem de determinado santo/santa. No caso de Dona Lourdes, ela faz parte do apostolado de Mãe Rainha. Fazem parte dessa rede cerca de 30 famílias e a imagem da Santa “vai passando de uma casa para outra”, sendo esse percurso realizado por um pequeno grupo de pessoas quando a família que irá receber a santa vai buscá-la na casa em que no momento se encontra. Segundo dona Lourdes, da Vila Real até o CAIC, existem nove grupos de apostolados de Mãe Rainha, logo, nove imagens da santa. Embora no bairro existam outros grupos, para cada comunidade corresponde uma nova Missionária responsável pelo apostolado e outras “zeladas” (as famílias, ou as donas da casa, que fazem parte da rede e ficam responsáveis pela santa durante os dias em que passa em sua casa). 29 No material de divulgação e nos momentos de celebração das novenas de Nossa Senhora das Candeias nos anos de 2013 e 2014, não observei esse sistema de datação.

58

Vejamos, então, como se dá a relação do santo/santa com a dimensão socioespacial do bairro. No decorrer do período das novenas, ao final da celebração da noite, o santo da capela é levado por uma família até a residência desta. Ali permanece até o horário da novena do dia seguinte, quando retorna à capela levado por tal família e algumas outras pessoas que vão à celebração. Ambos os momentos se dão com um pequeno cortejo durante o qual as pessoas acendem velas, cantam louvores, fazem orações. Nessas ocasiões, denominadas de “noitários”, cada santo circula apenas nas ruas e casas de sua respectiva “comunidade”, como detalharemos adiante. Já no último dia da festa, no encerramento, o santo, que se encontrara desde a noite anterior na casa de uma dada família, deixará, por volta das 17 horas e 30 minutos, esta residência em direção à capela da qual é padroeiro. O percurso, chamado de procissão, se dá com o santo posicionado em um andor decorado com flores. O andor, seja carregado no ombro de homens ou em moto, segue à frente da multidão, que canta, reza e solta fogos durante todo o percurso. Meu primeiro contato com as novenas no bairro se deu a partir da capela de Santo Expedito. No ano de 2013, a festa deste Santo foi celebrada do dia 11 ao dia 19 de abril. À frente da capela, que fica situada nas imediações do CAIC, há um mastro de madeira, ao final do qual foi hasteada a bandeira de Santo Expedito no primeiro dia de novena, inaugurando as comemorações alusivas ao santo. Na entrada da capela também há um “cruzeiro”, uma cruz grande fincada ao chão. O interior da capela é simples, com cadeiras e bancos de madeira, um pequeno altar, um teto metálico, portas de ferro. Durante o período das novenas, em um dos lados da capela, onde havia uma pequena área livre, mas sem calçada, instalaram-se duas barracas em que se vendiam comidas, cartelas do bingo a ser realizado na última noite de novenas, camisas e sandálias para angariar fundos para a capela. Ao lado dessa área, um carrinho com bombons e salgados prontos, uma barraca com salgados feitos no momento 30, outra com sorvete e uma outra com “espetinhos” (vide figura 07, infra). Na rua ao lado da capela, moradores colocaram comida à venda, como espetinhos e outros. Ao lado da sede da Associação de Moradores, onde há uma imagem de Frei Damião, fora montado um pequeno parque de diversão, que ali permaneceu durante todo o período de festa. O parque contava com roda-gigante, pula-pula inflável, dois brinquedos de carrinhos que giram em círculo e um tiro ao alvo (figura 08, infra).

30

Essa barraca pertencia a um casal que não reside no bairro Frei Damião, mas que ali tem vínculo de parentesco com alguns moradores.

59

Figura 07: Capela de Santo Expedito em noite de novena. Foto: Antonio Lucas C. Feitosa, 2013.

Figura 08: Parque de diversão em noite de novena de Santo Expedito. Foto: Antonio Lucas C. Feitosa, 2013.

Variado, o público das novenas é composto por mulheres e homens, crianças, jovens e idosos. Praticamente em todas as noites que fui às novenas, os assentos da capela estavam preenchidos e pessoas assistiam à celebração na área em volta do prédio. A movimentação de pessoas nas ruas ao redor da capela, as moças bem vestidas, com salto alto, roupas curtas e adereços agregados ao tecido, os rapazes parados no meio da rua com suas motos, as crianças em torno do parque, outras pessoas a cercarem as barracas com venda de

60

alimentos, dão o tom festivo à noite. Como nos diz Chico Gomes, ao comentar sobre a existência das quatro capelas no bairro:

Mas eu acho que a questão da abertura de capelas, assim perto de casa, foi mais por isso, Lucas, porque isso aí é, é facilitou mais a vida de quem quer tá ligado na religião, o povo gosta de comungar, o povo gosta de se confessar, o povo gosta de rezar o terço, aí depois vem a novena do padroeiro, aí tem uma quermesse, aí tem um bingo e o povo gosta dessas coisas. É, é a vida social da igreja que também, não resta dúvida, que passa um certa entretimento, lazer e satisfação, prazer de tá presente.

A ideia de que cada santo circula apenas no domínio do que se denomina localmente de “comunidade”, foi evocada por uma senhora que assistia as novenas de Santo Expedito. Quando perguntei a ela, no dia 18 de abril, qual seria o percurso do santo pelas ruas do bairro naquela noite, ela respondeu que seria até ali perto. Pergunto, então, até onde vai, se chega próximo à Vila Real. Como resposta, disse que não, porque “lá já é outra comunidade”. Nesse mesmo sentido, Dona Lourdes, que já participou da equipe de pessoas que prepara a festa de Nossa Senhora das Candeias, nos diz:

É quatro comunidade [que existem no bairro Frei Damião]. Essa daqui até no CAIC é Nossa Senhora das Candeias, do CAIC pra lá já é Santo Expedito, de uns certos meio pra lá já é Nossa Senhora das Graças e lá pra lá já é Santa Edwiges. É quatro comunidade.

Dona Lourdes está incluída na comunidade de Nossa Senhora das Candeias, mora nas proximidades da capela dessa santa, mas a rua em que habita pertence à territorialidade Frei Damião. Ao consultar a programação da festa de Santo Expedito, divulgada em um panfleto impresso, percebo que durante oito noitários31, de um total de nove, o santo permaneceu estritamente entre as famílias inseridas na sua comunidade. Na nona noite, o santo saiu da casa onde estava desde a noite anterior e se dirigiu à sua capela. Esse movimento foi realizado também apenas dentro da sua comunidade. Há uma exceção, a primeira noite de festa, quando a imagem saiu da comunidade de Nossa Senhora das Graças, juntamente com o pau da bandeira (mastro feito a partir do tronco de uma árvore onde se alça a bandeira do padroeiro), em direção à capela de Santo Expedito. No caso da festa de Nossa Senhora das Candeias, realizada de 22 de janeiro a 01 de fevereiro, a dinâmica apontada 31

Os noitários são identificados nas programações a partir da indicação da rua e dos nomes do casal donos da casa onde a imagem do santo passará até a celebração do dia seguinte.

61

acima também se manifestou. Todavia, houve exceção na primeira noite de novena, quando a imagem da santa saiu da capela de Santo Expedito em direção à sua capela. No caso dos noitários de Nossa Senhora das Graças e de Santa Edwiges, todos aconteceram dentro dos limites da territorialidade Baixa da Raposa, onde as capelas estão situadas, não se restringindo às comunidades religiosas das respectivas capelas. Todavia, no caso da procissão de encerramento de ambas as festas, as imagens saíram da capela de Santo Expedito e seguiram pela rua Manoel Tavares Lopes até as capelas das padroeiras. Procurando criar distinção e precisão no uso do termo comunidade, passaremos a adicionar a ele, que é uma referência êmica às capelas e seus santos, a palavra “religiosa”, assim, criamos a noção de comunidade religiosa. Esta noção difere de territorialidade, termo ético que já assinalamos anteriormente em relação à segmentação da região do bairro em três áreas distintas, que são: Vila Real, Frei Damião e Baixa da Raposa. Tanto comunidade religiosa como territorialidade implicam formas diferentes de relações dos moradores com o espaço urbano do bairro Frei Damião mediadas por referentes específicos, como tentaremos demonstrar ao longo do capítulo. Feita essa ressalva, continuemos a tratar das novenas. A noção de “comunidade” (religiosa) mencionada acima pela senhora que assistia à novena de Santo Expedito e por dona Lourdes, conflui com o diálogo que mantive com uma interlocutora em campo. Em outra noite da festa de Santo Expedito, fico sabendo que esta interlocutora, que mora nas imediações da caixa d‟água 32, na Baixa da Raposa, fez sua Primeira Eucaristia na capela de Nossa Senhora das Graças. Quando foi o momento de preparação para a Crisma33, ela se dirigiu para a capela de Santo Expedito, o que causou questionamentos por parte das organizadoras da Crisma na capela de sua área. Sua motivação para ir à capela de Santo Expedito, segundo indicou, foi o fato da sua “turma” de amigos estar se preparando para a Crisma nessa capela. Da mesma forma, ao questionar se Dona Lourdes não frequentava as outras capelas do bairro, ela me diz: “Nosso movimento é cá”, isto é, na capela de Nossa Senhora das Candeias. Como dito acima, Dona Lourdes reside próximo à capela de Nossa Senhora das Candeias, mas sua casa já se situa na territorialidade Frei Damião. Em termos de comunidade religiosa, seu pertencimento/filiação está ligado à “comunidade de Candeias”.

Lembremos que a caixa d‟água é o ponto de inflexão entre as territorialidades Frei Damião e Baixa da Raposa. No caso das territorialidades Vila Real e Frei Damião, esse ponto é representado pela Primeira Rua ou Rua da Capela (capela de Nossa Senhora das Candeias). 33 A Primeira Eucaristia e a Crisma são cerimônias católicas. No caso da primeira, se recebe pela primeira vez a hóstia, daí ser chamada também de Primeira Comunhão. Na Crisma, celebração subsequente à Primeira Eucaristia, o bispo unge com óleo (Crisma) o fiel. 32

62

Como se vê, os limites da comunidade religiosa de cada capela não correspondem às fronteiras das três territorialidades, embora com elas tenha corelação. Seguindo o sentido norte-sul de disposição das territorialidades, das capelas e das comunidades religiosas, podemos assim esclarecer (ver figura 09, a seguir): se a Vila Real se estende do início do bairro Frei Damião até a capela de Nossa Senhora das Candeias, a comunidade religiosa desta vai desse ponto inicial até a rua do CAIC. Se a territorialidade Frei Damião compreende o espaço da Primeira Rua ou Rua da Capela (rua Poeta Vitorino Vicente, onde se encerra a Vila Real) até a caixa d‟água, a comunidade de Santo Expedito é da rua por trás do CAIC até cinco quarteirões adiante, isto é, até a rua Francisco Wilson Bezerra, quatro quarteirões antes da caixa d‟água. Já a Baixa da Raposa abrange a região posterior à caixa d‟água (onde termina a territorialidade Frei Damião) até o limite intermunicipal. A comunidade de Nossa Senhora das Graças segue da rua Francisco Wilson Bezerra até a via Raimundo Marques da Silva. Daí em diante, até o final do bairro, temos a comunidade de Santa Edwiges. Note-se que em todos os casos a capela está situada no ponto intermediário entre o início e o fim da comunidade, não sendo sua localização espacial um delimitador natural do ponto onde começa e encerra a comunidade religiosa. Sobrepomos no mapa oficial apresentado a seguir a coexistência dessas distintas segmentações socioespaciais. O mapa revela, a um só tempo, o exercício que estamos procurando fazer na presente dissertação, deslocar-se de uma visão de sobrevoo, que vê o bairro como totalidade homogênea, para um olhar a partir de dentro que revele as idiossincrasias internas, visibilizando formas heterogêneas locais de relação e organização do espaço.

63

Figura 09: Mapa do bairro Frei Damião com edição nossa. Legenda: Do lado direito do mapa (ponto cardeal leste), as barras de cor azul circunscrevem a região que os moradores locais denominam de bairro Frei Damião. As linhas vermelhas indicam as três territorialidades em que o bairro é dividido, com duas linhas horizontais intercaladas entre elas como pontos de inflexão, que são: a Primeira Rua ou Rua da Capela (rua Poeta Vitorino Vicente e capela de N. Sr.ª das Candeias) e a caixa d‟água. Os retângulos de bordas em cor verde marcam as comunidades religiosas dos santos e capelas.

64

Segundo dona Socorro, uma das responsáveis pela capela de Nossa Senhora das Graças, o mapeamento das comunidades religiosas foi ordenado pelas próprias coordenadoras das capelas, considerando-se “o contato das pessoas no bairro” e a doação do dízimo a determinada capela. Assim, o santo da capela congrega as pessoas que a ele estejam próximas, ou seja, inseridas na sua comunidade religiosa, tanto é que o público das novenas é formado predominantemente pelas pessoas das redondezas da capela. Chamamos a atenção, todavia, para a porosidade das fronteiras entre essas divisões. Ao mesmo tempo em que sinalizamos para o fato de haver comunicação entre esses espaços segmentares, cada um é dotado de dinâmicas próprias que os constituem. Segundo dona Lourdes, há a possibilidade de um santo ir até a comunidade de outro, caso alguém solicite:

Se tiver gente lá do Vila Real que preferir ela, quiser que leve, a gente leva para qualquer casa, sendo dentro do bairro, para qualquer canto que quiser levar, até mesmo se pedir lá em cima. Se um de lá de cima, de Santo Expedito, disser “eu quero que Nossa Senhora venha para minha casa, eu quero hospedar ela hoje aqui em minha casa”, aí vem falar com a coordenadora, a coordenadora dá o direito. Aí, quando é de noite, junta um bocado de gente, aí leva a santa lá.

Porém, essa é uma possibilidade prevista por dona Lourdes, mas que nunca foi concretizada porque não foi solicitada. Mas, “se pedir, vai”. Lembremo-nos, inclusive, que uma de minhas colaboradoras em campo deixou a comunidade religiosa em que estava até então filiada para se dirigir à outra. Esse deslocamento, feito a contragosto dos responsáveis por sua comunidade de origem, se deu também entre territorialidades distintas, uma vez que a primeira capela a qual estava vinculada se situa na Baixa da Raposa e a segunda, na territorialidade Frei Damião. No caso da procissão de encerramento da festa de Santa Edwiges, realizada de 12 a 16 de outubro de 201334, a imagem da santa saiu da capela de Santo Expedito, onde se encontrara desde a noite anterior. Ali, fora posta em um andor, decorado com flores, que por sua vez foi colocado sobre uma aparelhagem de som rebocado por uma moto. O cortejo seguiu rumo à rua Manoel Tavares Lopes e desta até as proximidades da capela de Santa Edwiges, quando deixou a extensa e alinhada rua e adentrou o interior do bairro rumo à

34

As festas de Nossa Senhora das Graças e de Nossa Senhora das Candeias foram realizadas, respectivamente, de 23 a 27 de novembro e de 22 de janeiro a 01 de fevereiro de 2013.

65

capela. Das caixas de som sobre as quais estava a santa, saiam músicas religiosas; senhoras, com velas acesas, rezavam alguma oração; um grupo de crianças fantasiadas de anjos levavam uma cruz à frente do cortejo; uma moça soltava fogos; também animava o momento um grupo de crianças dançando reisado e, por último, um carro de som com um animador que rezava o terço. No decurso da procissão, que tomava uma das faixas da rua, pessoas iam sendo agregadas, saindo do interior de suas casas e calçadas e acompanhando o cortejo.

Figura 10: Procissão com a imagem de Santa Edwiges. Foto: Antonio Lucas C. Feitosa, 2013.

Figura 11: Capela de Santa Edwiges em noite de novena. Foto: Antonio Lucas C. Feitosa, 2013.

66

Tratemos, agora, da relação entre a capela e as novenas nela celebradas e o público que a frequenta. Uma hipótese que surge é que essa relação capela-público pode ser estendida além da territorialidade e comunidade religiosa onde está sediada a capela, uma vez que as novenas são também um momento festivo, o que pode gerar, em função da festa, um trânsito diferente do público daquele operado pela imagem do santo, circunscrito à sua respectiva comunidade religiosa. Dependendo da festa, ela poderia agregar pessoas provenientes de locais diferentes como pares, mesmo que temporariamente? Quais limites seriam mais incisivos na definição dos frequentadores das festas, os da comunidade religiosa do santo/santa ou da territorialidade onde a capela se encontra? Eis algumas questões a serem pensadas. Como descrito acima, as novenas/festas têm uma organização simples. No caso da festa de Santo Expedito, a atração ao local se dava, entre outros elementos, pela presença de um pequeno parque de diversões e pelas barracas de alimentação. De qualquer forma, a aglomeração de pessoas se desfazia tão logo findasse a celebração, o que acontecia por volta das 21 horas. O bingo ou sorteio de rifa faz com que as pessoas permaneçam um pouco mais no local depois da cerimônia. Também atrai aqueles que estavam em suas casas até então. O bingo, com vários prêmios (ferro elétrico, fogão, celular, antena parabólica, dentre outros), geralmente acontece em um único dia, como foi na capela de Santo Expedito, mas também pode ser distribuído em mais de um dia de festa, como aconteceu na capela de Santa Edwiges. Além do bingo, pode haver alguma aparelhagem com som ou grupo de animação cantando. Na festa de Santa Edwiges, um grupo formado por homens e mulheres jovens, pertencentes à Renovação Carismática Católica, fazia a animação com músicas religiosas que antecederam ao bingo. Não há, portanto, uma festa propriamente dita após a novena da noite. O público rapidamente se dissipa, ao invés de se aglomerar para a festa. Uma parte, inclusive, segue o cortejo com a imagem do santo para determinada residência (o noitário) e os demais seguem seus caminhos rumo às suas casas. Inclusive em função dessas características, mas não somente, o público que frequenta a festa é, em sua grande maioria, oriundo da comunidade do santo que se festeja no momento. Não é em sua totalidade porque aqueles ligados à organização das atividades de outras capelas se solidarizam com a coordenação da festa que se celebra. Dessa forma, há participação do pessoal das demais capelas existentes no bairro, bem como da cidade de uma forma geral. Na procissão de encerramento da festa de Santa Edwiges, que saiu da capela de Santo Expedito, encontrei seu De Jesus, um dos meus primeiros interlocutores no bairro, que

67

compartilhou comigo a história do local. Enquanto aguardávamos o ônibus, após o encerramento da cerimônia na capela, eu, seu De Jesus e uma senhora ficamos conversando na parada. Ali, ambos, que moram próximo ao CAIC, portanto, na territorialidade Frei Damião e na comunidade religiosa de Nossa Senhora das Candeias, comentavam a procissão. A senhora, que guardara consigo uma das flores que adornara o andor da santa, comentava que convidou, à tarde, uma vizinha sua para ir à procissão. A amiga recusou. Na verdade, estranhou o fato, dizendo: “Tu vai praqueles mundos?”. Seu De Jesus complementa dizendo, meio surpreso, o fato de poucas pessoas das “redondezas” de sua casa terem vindo para a celebração, o que é confirmado pela senhora. Os dois ficaram sabendo da procissão a partir do anúncio, divulgado mais cedo, por meio de um carro que ficara circulando pelo bairro 35. O mesmo comportamento eu observei durante a estadia do circo Real Madrid no bairro. Entre os meses de agosto e setembro de 2013, o circo se instalou, inicialmente, na área de um campo de futebol situado do lado oeste da rua Manoel Tavares Lopes, defronte ao que os moradores chamam de Primeira Rua ou Rua da Capela, logo, na divisa entre as territorialidades Vila Real e Frei Damião. Posteriormente, o circo se deslocou para a Baixa da Raposa, mais uma vez ocupando um campo de futebol na lateral da rua Manoel Tavares Lopes, próximo ao que os moradores chamam de Delegacia da Mulher. Em ambos os momentos, o público das apresentações noturnas era oriundo das cercanias de onde o circo se instalara. Até mesmo em função disso, fora posicionado em dois locais diferentes no interior do mesmo bairro. Interessante notar que ao tempo em que o trânsito do/das santo/tas pelo bairro é organizado, sobretudo, mas não somente, segundo suas respectivas comunidades religiosas, os deslocamentos dos moradores do bairro Frei Damião são orientados pelas territorialidades. Mesmo que estejamos todos cientes do nosso direito civil de ir e vir, não podemos estar em todo lugar, sendo essa apenas uma possibilidade. Não sem surpresa, percebi, já em 2011, que parte dos jovens que eu conheci na época no campinho no qual desenvolvi trabalho de campo, residentes na territorialidade Frei Damião, nunca foi à Baixa da Raposa, embora estes sejam espaços contíguos. Também percebo isso ao tentar conseguir futuros interlocutores a partir da técnica conhecida como “bola de neve”. Ao solicitar a indicação de um morador que resida na Baixa da Raposa e com o qual eu possa conversar futuramente, meu entrevistado não consegue apontar ninguém se ele não for desse segmento do bairro.

35

Em função desse público restrito e comum tanto na cerimônia religiosa (a novena), quando no momento posterior de festa, estou utilizando, como utilizarei adiante, a forma novenas/festas.

68

Acredito não se tratar apenas de distâncias geográficas (lembremos que a extensão do bairro é de mais de três quilômetros), pelo fato de não haver motivações para frequentarem outras áreas ou mesmo pela localização da área e roteiro traçado pelo ônibus, como dissemos anteriormente. Dimensionar a questão somente a partir dessas referências e não contemplar o aspecto relacional é deixá-la incompreensível. Se não se pode estar em todo lugar, o que permite, no bairro estudado, que se esteja em lugares determinados? Aqui, as considerações que tecemos quanto ao que nomeamos para os rachas de mecanismo de formação dos times parecem se articularem com a dinâmica observada nas capelas. Em ambas as práticas se constituem comunidades, seja pelas relações de solidariedade existentes no grupo de garotos que estão no campinho e que moram em quarteirões contíguos, no caso dos rachas, seja a partir da circulação, material e simbólica, do santo por entre o território da comunidade religiosa, a qual determinados moradores são filiados, no caso das capelas. Todavia, há um diferencial entre os rachas e as comunidades religiosas. Enquanto que no primeiro há um mecanismo, o mecanismo de formação dos times, que pode ser o “par ou impar?” ou o “zerinho ou um?”, que objetiva equilibrar as relações comunitárias para o jogo, igualando os participantes antes diferenciados na rede de relações sociais tecida desde o quarteirão, nas comunidades religiosas não notei a existência de mecanismo similar, mas tão somente a presença daquilo que nos rachas se procura anular, a comunidade, a turma, nos termos de Dona Lourdes (já Aílton, como os jovens dos rachas, chamam de panelinha). Talvez essa diferença se dê porque estas são práticas distintas, uma sagrada outra profana. Em ambas as práticas, observemos, há uma porosidade dos territórios comunitários que elas criam. Assim, há a possibilidade de os garotos que jogam bola no campinho a que me detenho, irem para outro campo, onde os quarteirões das dinâmicas das redes sociais de relações são outros. Da mesma forma, nas comunidades religiosas, tanto o santo pode adentrar a comunidade de outro, como também pode haver um trânsito das pessoas por comunidades religiosas distintas, devido às novenas/festas. Lembremo-nos, contudo, que esses deslocamentos por outras comunidades não são tão frequentes. No caso dos rachas, chamei a atenção para o fato de que no campinho observado, depois de certo tempo desenvolvendo o trabalho de campo, eu comecei a notar que os garotos que jogavam bola ali eram quase sempre os mesmos, não havendo, depois de várias observações desses rachas em dias diferentes, estranhos para mim. Esses garotos constituíam um grupo/turma constante, e se alternavam, a partir de suas disponibilidades, no campo.

69

Depois eu passei a observá-los nos quarteirões adjacentes ao campo de futebol, nos locais onde moravam. Nas novenas/festas religiosas, a dinâmica é a mesma. O público é constituído majoritariamente pelos moradores da comunidade religiosa que está em celebração. Talvez por isso mesmo, seja tão reduzido, sobretudo se levarmos em consideração o número total de habitantes do bairro Frei Damião, que chega a mais de 14 mil. A partir das características do bairro que descrevemos no capítulo anterior, da dinâmica encontrada nos rachas e a manifestada nas capelas e suas novenas/festas que acabamos de tratar, podemos fazer alguns questionamentos norteadores para a próxima seção, que não necessariamente busca respondê-los, mas tão somente esclarecê-los, pensar na elaboração de procedimentos metodológicos e analíticos e nas implicações que apresentam para o tratamento de bairro como categoria. Qual o porquê da segmentação de uma mesma área? Como as fronteiras simbólicas se mantêm, mediam e organizam as interações entre os moradores do bairro Frei Damião? O que tais fronteiras dizem sobre a circulação das pessoas dali? Como compreender a dinâmica relacional em um espaço assim seccionado? Essas são algumas das questões pertinentes às próximas reflexões.

3 A noção de bairro

Acredito que a descrição do bairro Frei Damião, empreendida no capítulo I, dos rachas e das festas/novenas no bairro tensionam uma noção de bairro que o pensa como homogêneo, continuo, coeso, definido administrativamente. Nesse sentido, são também motivadoras as reflexões de Clifford Geertz (1999) acerca da “organização” da aldeia balinesa e os problemas que sua “forma” e “variação” colocam para as tipologias na antropologia. Para o autor, são duas as principais abordagens antropológicas sobre a elaboração de tipologias: o mínimo denominador comum e a unidade representativa. Mas, se ambas apresentam “resultados um tanto quanto estranhos se aplicados a Bali” (Ibid., p. 300), Geertz prefere, então, pensar que “[...] o significado tipológico geral em qualquer aldeia balinesa particular repousa primeiramente em suas idiossincrasias” (Ibid., p. 302). A consideração do antropólogo norte-americano é significativa aqui, uma vez que a pensamos diante das características do objeto de estudo em análise. Embora não tenhamos encontrado em cada territorialidade que compõe o bairro Frei Damião uma forma específica de arranjar/organizar o que Geertz chamou de “conjunto de planos de organização social” – a

70

partir dos quais cada aldeia (no nosso caso, territorialidade) é construída –, encontramos características próprias, como intensidade da vida social, equipamentos urbanos, estrutura de habitação, forma dos estabelecimentos comerciais e origem histórica (esta última abordada no próximo capítulo). São estas características próprias a cada territorialidade e irredutíveis às demais que nos fazem abdicar de uma escolha entre as três áreas (Vila Real, Frei Damião e Baixa da Raposa) para falar do bairro. Assim, não encontramos em nenhuma delas a tipicidade do bairro Frei Damião. Não podemos decantar o bairro como forma geral, seja da Vila Real, do Frei Damião ou da Baixa da Raposa. Ao mesmo tempo, não nos convém escolher aleatoriamente entre uma das três e nela se deter apenas como área, sem importar o bairro como objeto de estudo. Não nos contentamos com essa possível abordagem porque ela apresenta mais limitações do que contribuições para simplificar o complexo. Se separamos as territorialidades para pensar o bairro como um todo, é porque os moradores assim fazem. Mas, por outro lado, a separação que fazemos, em alguns instantes para fins de análise, é teoricamente arbitrária. Já apontamos no capítulo anterior que pensamos Vila Real, Frei Damião e Baixa da Raposa de modo relacional/inter-relacionado/interdependente, tal como pensou Elias e Scotson (2000) para o caso dos grupos que encontraram em Winston Parva. O campo empírico onde Norbert Elias e John Scotson desenvolveram a pesquisa que originou o livro Os Estabelecidos e os Outsiders, apresenta considerável aproximação com o contexto encontrado no bairro Frei Damião. Essa proximidade não é um privilégio do bairro estudado, mas já fora prevista pelos autores para diversos contextos sociais, afinal, eles já ponderavam: “[...] encontrava-se ali, nessa pequena comunidade de Winston Parva, como que em miniatura, um tema humano universal” (ELIAS, SCOTSON, 2000, p. 19) e recorrem a essa ideia ao longo do livro por meio de expressões como “constante universal” (Ibid., p. 20) e “paradigma empírico” (Ibid., p. 21). A partir dessa comunidade da periferia urbana, situada em uma pequena cidade da Inglaterra, com seus três bairros distintos, Elias e Scotson apresentam a seguinte formulação para a noção de figuração36:

Dizer que os indivíduos existem em configurações significa que o ponto de partida de toda investigação sociológica é uma pluralidade de indivíduos, os quais, de um modo ou de outro, são interdependentes. Dizer que as 36

Segundo consideram Bethencourt e Curto (1992, p. 6), as primeiras elaborações de Norbert Elias sobre o conceito de figuração surgem em A Sociedade de Corte e O Processo Civilizador: formação do Estado e civilização.

71

configurações são irredutíveis significa que nem se pode explicá-las em termos que impliquem que elas têm algum tipo de existência independente dos indivíduos, nem em termos que impliquem que os indivíduos, de algum modo, existem independentemente delas (ELIAS, SCOTSON, 2000, p. 184).

Antes, defenderam uma abordagem sociológica configuracional:

A análise sociológica baseia-se no pressuposto de que todos os elementos de uma configuração, com suas respectivas propriedades, só são o que são em virtude da posição e função que têm nela. Assim, a análise ou separação dos elementos é meramente uma etapa temporária numa operação de pesquisa, que requer a complementação por outra, pela integração ou sinopse dos elementos, do mesmo modo que esta requer a suplementação pela primeira; aqui, o movimento dialético entre análise e síntese não tem começo nem fim (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 58).

No nosso caso, acreditamos que não poderíamos abandonar duas das três territorialidades que compõem o bairro Frei Damião sem ter com isso consequências à compreensão da que selecionamos. É, inclusive, por cada área se diferenciar das demais que todas elas entram em interação. Ou seja, é por esse elemento que elas estão unidas e não poderíamos compreender cada uma e as relações que existem entre si se não ponderássemos com atenção que elas estão em um vínculo triplo, para parafrasearmos Elias e Scotson (2000, p. 32). Essa diferença existente entre cada área do bairro fica ainda mais clara quando tratamos da imagem de periferia que o bairro tem no imaginário urbano de Juazeiro do Norte e do Cariri, como abordaremos nos próximos capítulos. Pensamos que as práticas sociais que aqui elegemos para falar do bairro são “modos” diferentes de “viver e conceber o espaço do bairro” (MATTOS, 2012, p. 21). Diferentes tanto por escaparem das narrativas comuns sobre espaços julgados como marginais, como é o caso do bairro Frei Damião; como são os rachas e as novenas/festas e capelas também práticas sociais distintas que organizam e significam o bairro de formas diferentes tanto entre si quanto em relação ao modo oficial e administrativo. Como dito anteriormente, a área densamente habitada do bairro Frei Damião tem 3,3km de extensão por 200m de largura, formando um enorme retângulo, que para os fins deste trabalho consideramos como sendo o bairro Frei Damião, logo, a área a que me detenho. Porém, tal área é subdividida em três (Vila Real, Frei Damião e Baixa da Raposa) e tal divisão não consta no mapa oficial da cidade. Diante desse contexto, surge a questão: como os moradores locais operam, então, essa segmentação?

72

Aqui, a noção de caminhada parece ser significativa para o entendimento de tal questão. Desde o nosso primeiro contato com o bairro, digo, do primeiro capítulo, estamos seguindo uma noção de caminhada que se alinha à seguinte definição de Michel de Certeau: “[...] na caminhada, seleciona e fragmenta o espaço percorrido; ela salta suas ligações e partes internas que omite. Deste ponto de vista, toda caminhada continua saltando, saltitando, como a criança, „num pé só‟. Pratica a elipse de lugares conjuntivos” (CERTEAU, 1994a, p. 181). Assim, o ato de caminhar é uma elaboração mental de um percurso, escolhendo determinados locais em detrimento de outros, mas de forma quase que espontânea. Com isso, inscreve-se um mapa. Ou seja, a relação entre o plano cognitivo e o material pode ser estabelecida no próprio ato de caminhar. A caminhada não é, portanto, feita de modo aleatório, mas são passos significados de dada forma, logo, sendo portadora de sentidos (MAYOL, 2012). Esse tipo de mapa enunciado a partir da caminhada é totalmente distinto daquele elaborado pelo aparelho de localização por satélite (tipo GPS), uma vez que está implícito ao deslocamento no espaço um julgamento sobre o mesmo, não se passando por lugares que se julgam indesejados, por exemplo. Esse julgamento é o que dá sentido à caminhada e ao espaço, pois ele os organiza a partir da significação de elementos dispersos na paisagem. Logo, os rachas, as festas/novenas nas capelas, a caminhada são, de forma geral, agenciamentos sobre o espaço físico/material, sobre um plano pré-definido pelas instituições administrativas da cidade (o mapa oficial), sobre a própria maneira como os moradores concebem o bairro e seus limites. Matizemos um pouco mais essa relação entre espaço urbano e as práticas sociais. No bairro Frei Damião, entendemos que ao mesmo tempo em que estar situado em uma determinada territorialidade constitui uma sociabilidade, esta é também uma força fundante daquela. A apropriação e significação do seu espaço também está aqui contemplada. No bairro Lagoa Seca, onde residi brevemente ao retornar de João Pessoa 37, sempre estranhei o fato dos moradores não se sentarem nas calçadas, o que no bairro Frei Damião é muito comum. As pessoas põem as cadeiras nas calçadas ou sentam no piso mesmo, sempre escolhendo o lado da rua que esteja ao abrigo da luz do sol. Mas, na territorialidade Vila Real essa não é uma prática muito corriqueira de se observar. Dá para notar isso até mesmo nas imagens em anexo das ruas desse local.

37

Passei a residir em Juazeiro do Norte para o desenvolvimento da pesquisa de campo a partir de março de 2013, quando retornei de João Pessoa-PB depois de finalizados os cursos teóricos do mestrado. Inicialmente, residi no bairro Lagoa Seca, posteriormente me estabeleci no bairro Salesianos, mais próximo da região central da cidade.

73

A partir da análise que estamos tecendo e da descrição do bairro empreendida inicialmente, bem como dos rachas e das capelas, voltemo-nos para a compreensão de bairro como categoria sociológica. Diante do que temos desenvolvido até aqui, entendemos que o bairro não é apenas uma delimitação geográfica, mesmo que imprecisa; não se circunscreve com essa palavra uma dimensão administrativa; o bairro não é um espaço indiferenciado, como supõe o mapa. Como palavra tomada do seu uso corrente e pensada como categoria sociológica, apresenta-se como “configuração sociocultural singular” (COSTA, 1999, p. 119). Como já mencionamos, estamos interessados também na reflexão que trata da relação entre uma estrutura material e uma estrutura social nas divisões operadas no Frei Damião. Retomemos a esse ponto. Considerando-se a dinâmica urbana do bairro Frei Damião, as relações sociais são espacializadas, de modo a se reificarem no espaço, dotando-o de forma e sentido. Logo, também se verifica que esse espaço acaba por agenciar as relações. Trata-se, então, não de pensar em termos de causalidade (Cf. SIMMEL, 2005 [1903]), mas de entender tal processo a partir da relação entre ambos os fatores (MAUSS, 2003; COSTA, 1999), de forma a se compreender a constituição das fronteiras. Portanto, pensar, para o caso do bairro Frei Damião, a noção de bairro a partir da dinâmica interna parece importante. Entretanto, sua relevância, assim como seu entendimento, repousam sobre suas “idiossincrasias”. Daí ser necessário procurar as fontes com as quais o território é significado. Isto é, entender de que forma é construída e mantida a articulação entre o território e as relações sociais. Ao mesmo tempo, isso implica em saber que relações são essas, como se constituem e se mantêm – saber como as fronteiras nas três territorialidades antes referidas são produzidas e que objetos as amparam por sua circulação. Entendemos, logo, que é a partir das práticas sociais antes referidas que o bairro emerge como espaço social complexo. Aqui, a noção de “sociedade de bairro” parece relevante. Essa noção fora elaborada por Costa (1999) em estudo sobre o bairro de Alfama,

74

em Lisboa, e estendido e aplicado também ao bairro da Bica, objeto de estudo de Cordeiro (1997). Em publicação conjunta, os autores assim definem sociedade de bairro38:

[...] um tipo específico de configuração social [...]. Corresponde a uma acentuada sobreposição de parâmetros de estruturação social – morfológicos e simbólicos, de composição social e de contexto interaccional – redobrados ainda de formas marcantes de identidade cultural. Identidade cultural essa emergente da configuração social específica referida, e, por sua vez, factor decisivo da constituição enquanto, precisamente, sociedade de bairro. Sociedade de bairro como as encontradas em Alfama ou Bica surgem, pois, como casos de um tipo especial de configurações sociais, caracterizáveis pela redundância estruturante de um conjunto de dimensões interligadas: não só espaços residenciais mas também formas urbanas particulares, quadros sociais densos e multifacetados, sedes privilegiadas de sociabilidades, cenários de produção cultural própria e referentes de representações identitárias destacadas (CORDEIRO; COSTA, 2006, p. 73).

Os autores ensejam privilegiar um olhar que perceba o bairro como sociedade de bairro, ou seja, pensando nos aspectos idiossincráticos e nas intersecções de várias dimensões. Uma vez fruto da pesquisa desenvolvida por Costa (1999) e posteriormente aplicada por Cordeiro (1997) ao contexto de sua pesquisa, a noção de sociedade de bairro também está relacionada a aspectos que dizem respeito ao que é exterior ao bairro. Assim, ambos os autores estão pensando o bairro a partir de categorias binárias: exterior-interior, exógeno-endógeno, cidade-bairro. Esse tratamento está relacionado às características específicas aos bairros de Alfama e da Bica, objeto de estudo de António Firmino da Costa e Graça Índias Cordeiro, respectivamente. Pierre Mayol (2012) também pensa bairro a partir dessa lógica. No seu caso, no sentido público-privado e cidade-bairro. O mesmo autor se refere ao bairro valendo-se de termos como: “o pedaço de cidade” (Ibid., p. 41) e “o termo médio de uma dialética existencial entre o dentro e o fora” (Ibid., p. 42). Clifford Geertz (1999), como já observamos anteriormente, distancia-se de pensar uma aldeia balinesa típica ou média que possibilite, ao descrevê-la, significar o todo (Ibid., p. 279). Pelo contrário, o autor procura sistematizar e conceituar a estrutura das diversas aldeias 38

Em Costa (1999, p. 492), encontramos uma definição que chama a atenção para fatores endógenos e exógenos na constituição de uma identidade cultural e de uma sociedade de bairro do bairro: “Referese a um tipo específico de configuração social, observável em Alfama, e cujas características se procurou examinar. Corresponde a uma forte sobreposição de parâmetros de estruturação social – morfológicos e simbólicos, de composição social e de contexto interaccional – redobrados de uma vincada identidade cultural. Identidade cultural essa emergente, nas formas que ali assume, da configuração social específica referida, segundo uma articulação complexa de dinâmicas endógenas e exógenas, e, por sua vez, factor decisivo da sua constituição enquanto, precisamente, sociedade de bairro”.

75

existentes em Bali a partir “do cruzamento de planos de organização social teoricamente separáveis” (Ibid., p. 280). A lógica de Cordeiro (1997), por exemplo, é de pensar a cidade como sendo composta por bairros que a representam, que são sedimentos de sua memória, que são “típicos” em relação à cidade39. Conhecer os bairros para conhecer a cidade. Conhecer a parte para atingir o todo. A pesquisa de Cordeiro é sobre um bairro de Lisboa, a Bica. No nosso caso, além das particularidades já apontadas, o bairro Frei Damião é relativamente recente, com pouco mais de duas décadas, em uma cidade centenária. Assim, o nosso objeto em questão não é pensado por nós como alegoria (CLIFFORD, 2002) da cidade, (re)apresentando-a ou sendo sua síntese. Diante dessas questões e das opções que estamos fazendo em vista do campo empírico que aqui elegemos, cabe fazer um esclarecimento. Não o reservamos deliberadamente para esse momento, embora fosse nossa intenção que as descrições e exposições anteriores dessem conta da explicação que, caso não nos fizemos entender, cabe agora deixar clara. Refiro-me à noção aqui adotada de territorialidade. Recorri ao termo ao longo do presente texto para me referir às três áreas do bairro em questão: Vila Real, Frei Damião e Baixa da Raposa. Ao mesmo tempo em que me vali dela, utilizei simultaneamente termos correspondentes como área, subárea, localidade, secção. Estes foram empregados apenas para facilitar e agilizar a escrita. O outro, territorialidade, fora agregado com finalidades teóricas e analíticas. Autores que pesquisaram realidades semelhantes a que encontrei no bairro Frei Damião utilizaram termos como “zona”, no caso de Norbert Elias e John Scotson (2000) quando se referiam a Winston Parva; e “localidade”, no caso de Marcos Alvito (2006) ao se referir a Acari, para se referirem a cada uma das “áreas” de um espaço mais amplo40. Acredito que a noção de territorialidade nos auxilie por diversas razões. Primeiro (a), ela consegue materializar uma relação que nos é importante: a das pessoas e suas práticas com o espaço. Assim, ela nos diz muito sobre a espacialização da vida social. Segundo (b), territorialidade não implica noções que acreditamos serem impertinentes de aplicação à 39

Ao analisar o Edifício Estrela, no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, Gilberto Velho (1978, p. 9) considera: “O objetivo era não apenas o edifício, mas procurar ver, através dele, o bairro”. Já Irlys Barreira (2012) utiliza o termo metonímia para pensar a relação do bairro de Alfama com a cidade de Lisboa a partir das narrativas produzidas acerca do bairro. 40 A utilização da palavra “zona” por Norbert Elias e John Scotson não apresenta finalidades teóricas. No caso de Marcos Alvito, “localidade” é empregada como conceito. Ao utilizá-la, o autor o faz no sentido da definição elaborada por Anthony Leeds e Elizabeth Leeds em A Sociologia do Brasil Urbano, publicação de 1978.

76

realidade estudada, como “região moral”, gueto 41 ou mesmo comunidade (esta no sentido de totalidade isolada e autônoma (ALVITO, 2006)). Territorialidade não é sinônimo destas até mesmo porque (c) pensamos cada territorialidade do bairro Frei Damião como compondo e se inserindo em uma rede de relações com um espaço mais vasto, que é o bairro. Já dissemos entender o bairro em duas camadas que se imbricam, uma do cotidiano e outra da história. As territorialidades se inserem nessas camadas, as modificam e as agenciam, como se notará nos próximos capítulos. Não dotamos o bairro, nem as territorialidades de totalidade, tampouco as tratamos como unidades separadas. Por isso, recorremos à ideia de rede. Essa noção já foi empregada para pensar os rachas em termos de redes sociais de relações, contrapondo-se à noção de estrutura. Vale a pena retomá-la para os mesmo fins aqui. A noção de bairro, como espero ter deixado claro, não corresponde a um todo, a um arranjo. Se recorrêssemos a bairro dessa forma, estaríamos pensando-o como estrutura, estrutura que agrega e compacta especificidades que acabam por serem invisibilizadas. Dissemos, no capítulo anterior, que entenderíamos bairro como ponto de intersecção entre os mundos que ele comporta internamente e, ao mesmo tempo, o compõem ao interagirem entre si, e destes mundos com a cidade. Com isso, acreditamos preservar a relação que cada territorialidade mantém com as demais e de cada uma com a cidade, mas não menos de todas, como bairro, com a cidade. Temos aqui que as relações entre as várias territorialidades se interceptam, se (entre)cruzam tanto entre si quanto com o bairro, prolongando-se em relação à cidade. Não conseguimos localizar um centro irradiador, círculos concêntricos entre essas três áreas. Há, aqui, uma relação de complementaridade circular ou pressuposição recíproca (Cf. SÁ, 2012b). Aqui, encontramos outra vantagem do termo territorialidade: (d) ele nos ajuda a entender a relação entre cada uma das territorialidades, destas com o bairro e com a cidade, sem perder com isso os elementos idiossincráticos de cada uma. Ou seja, pensamos em termos de figuração (ELIAS; SCOTSON, 2000; ELIAS, 2001a) que preserva particularidades, mas também entende o significado a partir de processos de interdependência. Acreditamos, com tudo isso, que ao escaparmos à noção de estrutura e aplicarmos a noção de rede, conservamos um elemento importante para nossa pesquisa e para a noção de territorialidade: a noção de conflito. Se, tampouco, pensamos o território, o bairro, como

41

Sobre a noção de região moral, ver Robert Park (1973). Sobre a noção de gueto, ver Loïc Wacquant (2001; 2004).

77

unidade, indiferenciado e homogêneo, também não o entendemos como coeso. Insurgem nele exercícios de poder, relações tensas. Estes elementos não deixam de constituí-lo. Por fim, no caso do Frei Damião, em se tratando da compreensão da constituição das territorialidades e no que estas implicam nas relações entre os moradores, acreditamos ser necessário atentar mais para o bairro, tomado-o como realidade sui generis, mesmo considerando suas relações com a cidade. Por outro lado, o consideramos como totalidade, ao menos para fins analíticos, entendendo que sua complexidade reside nele mesmo. Depois de entendermos a dinâmica social do bairro, vejamos, a partir dos próximos dois capítulos, como se deu a sua origem e como esta apresenta implicações importantes que repercutem no local até hoje.

78

Capítulo III – O bairro como projeto e processo

Era final de tarde de uma quinta-feira, 27 de setembro de 1990. Em procissão, uma multidão formada por homens e mulheres deixa a casa de Chico Gomes, no bairro Santa Tereza, região central da cidade de Juazeiro do Norte. Entoavam cânticos e palavras de ordem. Levavam consigo Nossa Senhora da Conceição em um andor ornamentado e em formato de casa de taipa. Levavam também instrumentos de trabalho do campo, como enxadas, foices, facões e machados; e também domésticos, como panelas e potes. A caminhada segue pela rua Padre Cícero até atingir a linha férrea e passa a percorrer a rua paralela a esta. O grupo chegara a seu destino, uma área habitada por poucos moradores, próxima à Avenida Padre Cícero, ao lado do leito do Rio Salgado, com frondosas mangueiras, plantação de cana-de-açúcar e macaxeira. Depois de romper o cadeado que cerrava a cancela, foi anunciado à multidão que ali eram as terras de Nossa Senhora das Dores. Eram as terras da mãe de Deus, terras dos filhos também. Acamparam e pernoitaram. No dia seguinte, iniciaram a construção de barracos com lona de plástico, papelão e palhas de coco. Dali, foram transferidos para outra área, um pouco mais distante e do outro lado da Avenida Padre Cícero. Ali permanecem até hoje, como bairro Frei Damião. Essa é, de forma sintética, a origem do povoado que anos depois ficara conhecido como o bairro Frei Damião. A ação descrita acima foi empreendida pelo que se denominou na época de Movimento dos Sem Teto (MST). O objetivo do presente capítulo é apresentar o que foi esse Movimento. Ainda que procuremos reconstituir o MST, não é nosso intuito nos determos ao seu aspecto político, de movimento social em si, mas expor os elementos, que serão pensados a partir do capítulo subsequente, que apresentaram, e apresentam, consequências para a integração/inserção social do que hoje é o bairro Frei Damião na cidade de Juazeiro do Norte, a partir da vinculação com o seu surgimento. Assim, não desenvolvo, aqui, a discussão acerca da questão habitacional e dos movimentos/ações urbanas de reivindicação, o que já foi objeto de estudo de vasta literatura existente nas Ciências Sociais 42. Retomar o bairro a partir do momento do seu surgimento é uma operação relevante que não foi tomada aqui como ponto de partida, mas, ao contrário, como ponto de chegada. Foi por intermédio de conversas informais e de entrevistas com moradores que residem no bairro desde o seu início, que sentimos a necessidade de dar maior atenção a origem desse povoado. Inicialmente, estas entrevistas objetivavam tão somente ajudar a situar 42

Entre outros, Kowarick (1987), Durham (2004b [1984]), Valladares (1978; 2005), Burgos (2006 [1998]), Zaluar (2000 [1985]), Silva, L. (2002) e Rizek e Barros (2006).

79

temporalmente o lugar. Entretanto, nossos interlocutores sinalizavam que essa história dizia muito sobre a representação do bairro na cidade. Com isso, surgiram particularidades de cada área em que a região do bairro é dividida e elementos sobre o significado dessa estratificação, que é, inclusive, acompanhada por uma hierarquização, como analisaremos no próximo capítulo. Norbert Elias já sinalizara para a necessidade de atentar para os “processos” sociais. A questão que o autor coloca é como determinados eventos se entrelaçam de forma a confluírem na constituição de algo. Por exemplo, ao chamar a atenção para esse ponto em Os Estabelecidos e os Outsiders, escreve com Scotson:

Afirma-se, em geral, que as pessoas percebem as outras como pertencentes a outro grupo porque a cor de sua pele é diferente. Seria mais pertinente indagar como foi que surgiu no mundo o hábito de perceber as pessoas com outra cor de pele como pertencentes a um grupo diferente (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 46).

Então, “reconstituir o caráter temporal dos grupos e suas relações” (Ibid., p. 46), o processo coletivo que constitui o bairro Frei Damião, é uma via de acesso à compreensão das dinâmicas encontradas ainda hoje no local. Inclusive por fazermos esse resgate histórico, acreditamos que a pesquisa aqui apresentada contribui para a compreensão, em Juazeiro do Norte, das lutas políticas promovidas pelos movimentos sociais e das lutas simbólicas em torno da apropriação da cidade. Um pouco além, apresentamos outras dinâmicas religiosas e políticas que existiram com muito fervor em Juazeiro do Norte, mas que, em geral, ficam ofuscadas pelo caráter religioso da devoção ao Padre Cícero e sua conturbada/polêmica trajetória política. Esses aspectos políticos e religiosos podem ser acrescidos às comuns interpretações sobre a cidade ao abordarem o papel da Igreja Católica, vale dizer, de alguns de seus membros (padres, exseminaristas, simpatizantes do discurso que então era assumido pela igreja), na constituição de um “discurso popular” (Cf. KOWARICK, 1987), na sistematização desse discurso em organizações (as Comunidades Eclesiais de Base – CEB‟s e Pastorais) e, consequentemente, no fomento de movimentos sociais, especificadamente o de moradia. Se o movimento a que nos referimos, em sua dimensão política, não nasce espontaneamente, mas com a contribuição de parcela da Igreja, ele se desenvolveu também à revelia de uma outra parcela dessa mesma Igreja. É aí onde o engenho político das lideranças foi decisivo, como veremos, na persistência da organização, onde as demandas nascidas no âmbito de uma Igreja preocupada com os pobres reverberou em um partido de esquerda em ascensão no país de então.

80

A argumentação levantada no presente capítulo se beneficia, especialmente, das entrevistas e conversas que mantive com pessoas que estiveram engajadas no movimento descrito acima, na condição de sem teto e futuro morador do bairro, ou como liderança. Também abordo as questões a partir de entrevistas realizadas com atuais moradores do bairro que não participaram dos eventos que o originaram. Recorro a essas falas por diversos motivos, apoiando-me no que Abdelmalek Sayad chamou de “socioanálise” (1998). Valho-me dessas narrativas e as reproduzo em trechos por pensar que nossos interlocutores abordam o MST, por exemplo, não somente posicionando-se como participante/membros, circunscrevendo a fala no interior do movimento. Além de assim o fazer, os entrevistados falaram sobre os movimentos sociais urbanos no Brasil, sua participação em ocupações de terras, sua vinculação com a Igreja Católica, a participação de religiosos da Igreja Católica em movimentos sociais, como o debate sobre habitação surgiu em Juazeiro do Norte e se desenvolveu e como se deu a ocupação que originou o bairro Frei Damião. Nesses diálogos, há uma “compreensão prática” (SAYAD, 1998, p. 233) dessas questões a ponto de tornar a narrativa coerente, fluida e apresentar um grau de clareza, de consciência do vivido, de senti-lo e organizá-lo. Por exemplo, Chico Gomes, uma das principais lideranças do Movimento e que foi incluído no universo dessa pesquisa, é beneficiado com a experiência que teve, mas também não deixa de evocar o conhecimento teórico/intelectual que também tem, a ponto de me recomendar escritos de Ruth Cardoso sobre os movimentos sociais. Como seu De Jesus, o bairro também está inscrito no corpo de Chico Gomes, que hoje mora no local, quer dizer, na parte que a prefeitura inclui como bairro Frei Damião, mas que os moradores, como o próprio Chico Gomes, consideram à parte deste. Chico Gomes me apresentou, numa das vezes em que o entrevistei, uma síntese do surgimento do Movimento dos Sem Teto, razão pela qual, mais adiante, reproduzo aqui uma longa passagem dessa entrevista. Vejamos, antes, como foi constituída em Juazeiro do Norte a “questão por moradia”, como foi desenvolvida e estruturada em movimento social e, a partir deste, como desencadeou a ocupação de uma propriedade privada.

1 O Movimento Social

O surgimento dos debates sobre moradia e do Movimento dos Sem Teto (MST) em Juazeiro do Norte não se dá em um momento preciso, tampouco de forma associada. Assim, reconheço que a forma como foram organizados, no presente texto, os acontecimentos

81

relatados por diferentes entrevistados, que deles participaram e aos quais tive acesso, estabelece uma narrativa linear que não necessariamente é a mesma para todos os entrevistados. Isso se explica pelo fato de que, embora a maioria dos entrevistados abordasse basicamente os mesmos fatos em suas falas, alguns mencionavam determinados aspectos, enquanto outros não o faziam. Além do mais, os registros documentais que consegui levantar não cobrem toda a história do Movimento e da questão da “luta por habitação” em Juazeiro do Norte43. A discussão, em Juazeiro do Norte, sobre a questão da habitação foi introduzida pelo padre salesiano Pedro Lapo na sua atuação junto às Comunidades Eclesiais de Base (CEB‟s), que ajudou a constituir na cidade, na segunda metade da década de 80. Segundo Chico Gomes, que foi presidente do MST, para Pedro Lapo, as terras deixadas pelo padre Cícero44 para a Igreja Católica deveriam ser utilizadas pela “Igreja para amparar todos os pobres da região Nordeste, seja pra trabalhar na terra, porque era muita terra, tinha a zona rural, seja pra morar na cidade”. O patrimônio de Padre Cícero, incluindo propriedades rurais, fora constituído especialmente a partir de doações, como aponta Diathay Menezes (MENEZES, 1997, p. 9) no documento que apresenta, em versão restaurada, o testamento do padre. A última versão do seu testamento foi ditada por ele a um amigo, pois já se encontrava “molestado por achaques físicos” (MENEZES, 1997, p. 8). Escrito em 1923, 11 anos antes de sua morte, ocorrida em 1934, e quando tinha então 79 anos de idade, o texto listava os bens de posse de Padre Cícero e os destinava a pessoas, igrejas existentes em Juazeiro do Norte, como Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e Nossa Senhora das Dores, sendo esta última desde sempre a igreja matriz do município, e a Congregação Salesiana45, quando da sua morte. 43

Para tratar do MST, também utilizo o trabalho monográfico de conclusão de curso lato sensu elaborado por Raimunda Machado Lima. No seu trabalho, Lima (2001) organizou um conjunto de documentos em anexo, dos quais eu me beneficio para reconstituir a história do MST. 44 Padre Cícero Romão Batista foi um líder religioso e político de/em Juazeiro do Norte. Ganhou grande notoriedade, sobretudo, por ter protagonizado, juntamente com a beata Maria de Araújo, um dos episódios mais conhecidos da cidade e que a constituiu como um dos centros de romaria mais significativos do Brasil, dada a quantidade de devotos que afluem para a cidade todos os anos. O episódio a que me refiro ficou conhecido como “o milagre da hóstia”, em que a hóstia dada pelo Padre Cícero à beata Maria de Araújo, durante celebração ecumênica, se transforma em sangue. O evento, ocorrido em março de 1889, repetiu-se durante dois anos (PAZ, 2011), desencadeando as primeiras romarias à Juazeiro do Norte, que até hoje não cessam, e tornando o Padre Cícero um santo do catolicismo popular. Para saber mais sobre a biografia do padre Cícero e sua relação com a cidade de Juazeiro do Norte, veja-se, entre outros, Paz (2011), Della Cava (1976) e Lira Neto (2009). 45 A Congregação Italiana dos Padres Salesianos é uma organização pertencente à Igreja Católica, fundada por Dom Bosco na segunda metade do século XIX. Sobre a Congregação em Juazeiro do Norte, ver Nascimento Jr. (2014, p. 1).

82

Não encontrei no texto do testamento, talvez devido às confusas indicações de localização e mudanças nos nomes dos locais e propriedades, referência à propriedade onde hoje se localiza o bairro Frei Damião, que pertenceu ao patrimônio deixado à igreja de Nossa Senhora das Dores. O que há no testamento e que se articula parcialmente a colocação anterior que Chico Gomes atribui ao padre Pedro Lapo, é a seguinte passagem do item dois da listagem de bens: “E no caso de quem quer que seja encarregado da direcção do patrimonio de Nossa Senhora das Dores entender de vendel-os ou alienal-os passarão todos esses bens a pertencer a Congregação dos Salesianos” [Sic] (TJCE, 1997, p. 135). Vejamos, a seguir, como Chico Gomes situa a origem do Movimento:

Chico Gomes: Esse movimento de ocupação das terras aqui, ele se originou dentro da Igreja. As pessoas têm uma ideia equivocada que o Partido dos Trabalhadores foi quem deu, os partidos de esquerda, foi quem deram origem ao movimento aqui. Mas na verdade, o movimento começou com o padre Pedro Lapo, que tinha um trabalho muito progressista na época que incomodava muito os ricaços daqui de Juazeiro, os empresários e os políticos. Esse trabalho iniciou com as Comunidades Eclesiais de Base quando o padre Pedro teve aqui em Juazeiro e ele começou... Lucas: Ele não era daqui? Chico Gomes: Não. Italiano, salesiano. Ele começou a colocar ideias na cabeça das pessoas, das comunidades, nós chegamos a formar 72 grupos de CEB‟s. Lucas: Na região como um todo? Chico Gomes: Na região como um todo não, só na Paróquia Sagrado Coração de Jesus. Foi uma igreja muito viva, muito atuante naquele tempo. Então o que nos colocou essa ideia mesmo de entrar nas terras da Igreja, foi a partir da iniciativa do padre Pedro de questionar a Igreja que o Padre Cícero deixou as terras não pra Igreja vender, mas pra Igreja amparar todos os pobres da região Nordeste, seja pra trabalhar na terra, porque era muita terra, tinha a zona rural, seja pra morar na cidade. A orientação do Padre Cícero era que a terra não fosse vendida, mas que servisse pra amparar todos os que viessem de fora, a fim de que a cidade também crescesse, se desenvolvesse e melhorasse as condições das pessoas que aqui residiam. Como ninguém teve a coragem de iniciar o trabalho, o padre Pedro até tentou com as catequistas, o pessoal, mas um pessoal medroso, o povo tinha muito medo de polícia, de repressão. Lucas: Isso foi em que ano? Chico Gomes: 1975 até, acho que o padre Pedro ficou até 77 na Paróquia Coração de Jesus. Mas o momento forte mesmo de cutucar o povo pra entrar na terra, nas Comunidades Eclesiais de Base, o questionamento passou pelas CEB‟s em 1975, 75, 76, 77. Aí veio a questão do partido, começou a se consolidar, foi fundado o partido do PT por doutor Santana. Manoel Santana foi quem iniciou o PT com um grupo, um grupo também ligado à igreja, tinha algumas tendências do partido que faziam parte, a Causa Operária, a Corrente do Trabalho, eu fiz parte da Corrente do Trabalho. E nós começamos a nos organizar enquanto partido. Só que eu já tinha morado em São Paulo, tava chegando de São Paulo em, eu falei 75, foi 75 não, foi 85, com o padre Pedro Lapo. É, e nessa época eu tava chegando de São Paulo. É, eu cheguei em 84. Essa época de 70 foi lá no Sul. Pois muito bem, aí eu tava chegando de São Paulo e lá em São Paulo eu fazia parte do comando, eu trabalhava com contabilidade, eu trabalhava em escritório de contabilidade, mas tinha, eu fui

83

seminarista salesiano e tinha uma ligação muito forte com a Igreja e aí o padre, qualquer terrinha que tava lá dando sopa, o padre juntava o povo de madrugada e botava na terra. Eu fui seminarista em Recife, carpina, salesiano. Aí tudo bem, a gente aprendeu esses mecanismos de movimento social de entrar em terra e tudo e tal. Aí eu vim pra cá, aqui eu coloquei uma escolinha e comecei a trabalhar com criança até que um dia me apareceu Santana e o pessoal do PT e a gente uniu o útil ao agradável. Pegamos as Comunidades Eclesiais de Base, quem quis, muita gente veio das Comunidades Eclesiais de Base, nós não podemos negar que a Igreja na época ela teve um papel fundamental, a Igreja, o lado progressista da Igreja, que era alguns padres, algumas religiosas, jovens que nós temos aqui e o padre Pedro já maduro, com um incentivo maior do padre Pedro Lapo. Aí, nós nos organizamos enquanto partido e juntamos movimento com partido e os grupos de igreja. Aí, em março de 1990, eu participei de um congresso lá em São Paulo, da Corrente do Trabalho, e, apesar que eu já não era tão jovem, mas eu fiquei com os jovens. Aí, voltou tudo porque quando eu morei lá fazia parte do comando de favela, eu não era da favela, eu morava, eu tinha meu canto e trabalhava lá na igreja, mas era uma das lideranças que ajudava o povo, com o padre, a entrar na terra. Aí, era desse comando de favela lá. Aí, quando eu voltei lá e participei desse encontro, aí voltou todos os anos. Aí eu digo: “_Vamos fazer um negócio desses em Juazeiro”. Só que o padre Pedro já tinha saído daqui, ele tava no Rio Grande do Norte, tava no Rio Grande do Norte. Os bispos aproveitaram que ele foi visitar a mãe dele, que tava muito doente lá na Itália, e aproveitaram e apossaram o padre César, justo esse padre César que tá aí, tiraram Lapo que incomodava. Lucas: Lapo ficou aqui até quando? Chico Gomes: Acho que Lapo ficou até o finalzinho de 87 pra 88, foi por aí, eu não tenho bem certeza não. Aí tudo bom. Aí, eu fiquei no meio daquela juventude porra louca e eu não tinha juízo também. Aí, quando eu voltei, aí eu falei: “Não”, na reunião da Corrente do Trabalho, que era uma das tendências do PT, que eu fazia parte, Santana era do Trabalho [menciona pessoas e as relacionam as respectivas tendências] e o pessoal da juventude, tinha o pessoal lá do padre Murilo mesmo que fazia parte [padre Murilo era o responsável pela propriedade que futuramente seria ocupada pelo movimento e que resistiu ao mesmo]. [...] Aí as CEB‟s, com a saída do Lapo, se esfacelou, as CEB‟se esfacelaram. Aí pronto, aí nós fomos orar dentro do PT. Eu tinha minha casa, minha escola era grande, aí eu trouxe o PT lá pra casa, mas não pagava aluguel. E foi de lá que nós formamos o que doutor Santana chamava “o quartel general do movimento social”. Foi lá que nós nos organizamos pra entrar aqui. Lucas: A escola era de quê? Chico Gomes: Era escola de criança, de pré-escolar. Aí quando eu voltei de São Paulo com esse gás todo eu digo: “É agora que nós vamos colocar as histórias pra fora”. Aí, ficou as colocações do Lapo pra gente é que no testamento do Padre Cícero, ele deixou o testamento, os salesianos têm, é que essas terras elas não fossem realmente vendidas, mas essas terras fossem é colocadas a disposição da população pobre. Aí, quando eu cheguei que noticiei pro pessoal do PT, passei o informe como foi lá, lá eu não falei, deu um branco, eu só fiquei o tempo todo calculando. O pessoal: “Diga alguma coisa Chico”. Eu digo: “Eu não vou dizer nada, eu quero só ouvir vocês”. Aí, revivi tudo aquilo, quando nós chegamos aqui digo: “Olhe, nós vamos iniciar um movimento muito grande aí‟” Santana foi contra, Santana foi contra, Vieira Neto foi contra. Lucas: Mas por que eles foram contra? Chico Gomes: Porque achavam que em Juazeiro não acontecia, não ia acontecer. Eu digo, pois então tá bom, vou por minha conta. Aí, peguei uma professora minha, Neuma, que ela foi religiosa lá em Salvador [...]. Peguei Neuma, Valdênia, Neuma, Valdênia... e o pessoal

84

contra e começamos, até em um caderno grande, compramos um caderno e começamos relacionar as pessoas. E o pessoal dizia: “Pra que é?”. E eu dizia: “É pra lutar pela casa”. Lucas: Que pessoas eram essas? Chico Gomes: As pessoas que moravam nos quartins, casa alugada, todo mundo, fomos pegando o pessoal das vilas. Na época, hoje não, Juazeiro já tá... ainda tem os bairros mais... João Cabral, Pio XII, aqui Frei Damião tá bonitinho, mas na época era bicho feio, era favela... aqui não existia, mas o Pio XII, João Cabral, que foi mais onde a gente cadastrou famílias, do João Cabral partiu um batalhão sem tamanho de gente. Lucas: Quando vocês faziam esse cadastro, vocês se identificavam como? Chico Gomes: Movimento dos Sem Teto. É o Movimento dos Sem Teto, aqui vocês não sabem, mas lá em São Paulo o pessoal entra, só que lá não tem terra, aqui tem muita terra e nós vamos entrar e fomos construindo... não, mas nós não fomos só... nós não fomos gerando uma expectativa vazia, nós fomos criando um sonho, que a gente junta, a gente consegue, quanto mais gente, melhor, quanto mais gente, melhor. E isso foi crescendo. A primeira reunião nós juntamos 200 famílias. A segunda reunião já, a rua já tava lotada. Lucas: As reuniões aconteciam onde? Chico Gomes: Aconteciam no Centro Comunitário Dom Bosco, lá na Vila Dom Bosco. Aí, a terceira reunião ia ser justo no dia das mães, nós marcamos pra fazer no salão comunitário para abrigar todo mundo. Aí, o padre mandou tomar o microfone, tomaram o microfone das minhas mãos, quebraram o microfone. Assim que terminou a missa, eu peguei o microfone. O discurso do padre, esse padre César que tá aí: “Meus irmãos, vocês já têm terra garantida no céu, suas casas já estão garantidas no céu, não precisa lutar por casa na terra não, não vão na conversa desses aventureiros políticos”. Isso ficou até hoje. Aí quer dizer, como tomaram o microfone, era justo pessoas da minha família, que era quem liderava lá, comandava e fecharam, aí foi e gente demais, aí nós já tivemos de fazer na rua, não cabia no salão comunitário. Aí cresceu, aí quando cresceu aí foi que o pessoal do PT chegou, que eles não acreditavam que isso fosse acontecer. Quando Santana chegou, o movimento já tava forte [lista algumas pessoas que ingressaram no movimento, incluindo profissionais do Banco do Brasil, Receita Federal, etc.]. Aí Santana disse: „Mais Chico, eu não sabia que era assim não‟. Vieirinha foi, Vieira da Receita Federal, disse: “Não, Chico, não tem condições aqui não. Vamos puxar pra lá”. Aí puxamos. Aí, ficamos fazendo na rua Afonso de Melo, lá na escolinha [onde residia].

Não só Chico Gomes, mas também Nininha, que fora vice-presidente do MST, localiza a atuação do padre Pedro Lapo junto às CEB‟s como importante para a discussão sobre moradia na cidade:

Eu já fazia parte do Partido dos Trabalhadores e das Comunidades Eclesiais de Base, como movimento de juventude, comunidade. Então já existia na gente [antes da constituição do MST] essa história da luta social, da luta por moradia, da luta por terra. [...] Nós tínhamos a articulação das comunidades, via a Paróquia Sagrado Coração de Jesus, a paróquia de Juazeiro, a paróquia Sagrado Coração de Jesus na coordenação do padre Pedro Lapo que já tinha passado pela paróquia. Então já existia o movimento social. As Comunidades Eclesiais de Base têm em seu bojo a luta social, luta por terra, luta por casa, luta por toda a melhoria.

85

Chico Gomes e Nininha estiveram vinculados não somente à atuação do MST, mas igualmente engajados nas ações das CEB‟s e do Partido dos Trabalhadores de Juazeiro do Norte. O partido foi importante uma vez que congregou, com a transferência do padre Pedro Lapo da Paróquia Sagrado Coração de Jesus e a correspondente desestruturação das CEB‟s, as pessoas instigadas pelas ideias do padre. O PT, em Juazeiro do Norte, se consolida nesse período, tendo existido provisoriamente desde 1980 e oficialmente a partir de 1984. Se padre Lapo deixou a ideia de ocupar as terras que Padre Cícero repassou ao patrimônio de Nossa Senhora das Dores, a organização do Movimento que encaminhou essa ideia se deu na reunião de alguns membros das CEB‟s e do PT, sendo que os primeiros também participaram da constituição do partido. Havia um trânsito de pessoas por entre essas duas organizações, tanto é que diz Chico Gomes em outro momento das entrevistas: “A discussão do PT era a discussão da diocese. Os movimentos de esquerda andaram muito de mãos dadas com a Igreja”. Três outros marcos importantes nessa discussão sobre habitação estavam inscritos na biografia de Chico Gomes. Trata-se da sua participação em movimentos de “luta por moradia” na cidade de São Paulo, seu retorno a Juazeiro do Norte em 1984 e sua participação, em março de 1990, em um congresso da Corrente do Trabalho, da qual era membro no âmbito do Partido dos Trabalhadores. Ele localiza sua participação nesses eventos como importante na disseminação das ideias em torno da “luta por moradia” em Juazeiro do Norte e da organização do MST. Antes de 1990, lembremo-nos, já havia a atuação do padre Lapo junto às CEB‟s. Suas ideias eram difundidas, inclusive, em rádio comunitária que funcionava por sistema de autofalante no bairro Santa Tereza. No bairro, onde havia um canal aberto para escoamento de esgoto que era alvo de reclamações de seus moradores, morava Chico Gomes. As primeiras reuniões do movimento aconteceram em sua casa e congregaram cerca de 200 famílias. O número de pessoas foi aumentando à medida que se faziam novos cadastros e se propagava pela cidade a notícia da organização do movimento. Na sua análise do surgimento do MST, Chico Gomes também situa o debate sobre habitação promovido pelos movimentos sociais a partir da posição que a igreja adotou diante dessas questões. Assim, faz menção ao “movimento de Puebla”, como chamou a Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada na cidade de Puebla de los Ángeles, no México, no ano de 1979, onde, segundo ele, “os bispos na America latina fizeram a opção preferencial pelos pobres, principalmente pelos jovens pobres, criando assim pastorais específicas, Comunidades Eclesiais de Base, grupos de jovens específicos, a PJMP

86

[Pastoral da Juventude do Meio Popular]”. No que compete à Igreja Católica que representa o Nordeste, Chico faz a seguinte ponderação:

[...] teve um encontro intereclesial na Diocese do Crato, lá no Centro de Expansão rural, aonde foi reunido todos os bispos do regional Nordeste I e do regional Nordeste II da CNBB, da onde foi tirado um documento a nível do Nordeste dizendo que a reforma agrária tinha que começar, no Nordeste, nas terras da igreja e com o apoio do clero, dos padres, das religiosas, dos bispos. Mas uma coisa é o debate bonito, utópico, de um dia melhor, de uma vida melhor, de um sol que nasce e que brilha para todos, e outra coisa é a coisa na prática. O bispo pegar o microfone, naquela época, e dizer que a reforma agrária ela era importante, isso de certa forma dava um status de progressista, de avançado, de moderno.

Alguns outros fatores, inclusive nacionais, nos ajudam a situar melhor a emergência dessas questões em Juazeiro do Norte, sobretudo por se darem nos maiores centros urbanos do país, Rio de Janeiro e São Paulo, e se disseminarem por outras cidades. Lúcio Kowarick (1987), ao fazer uma revisão da literatura sociológica sobre os movimentos urbanos no Brasil, faz as seguintes considerações que ajudam a situar o contexto nacional, sobretudo em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, na década de 80, momento em que lideranças do MST, como Chico Gomes, tiveram contato com práticas dos movimentos urbanos nessas regiões do país:

Vale dizer que, com o acirramento da crise econômica do início dos anos 80, dois ensaios apontaram para um clima de "rebelião social", na medida em que se expandia a invasão de terras em inúmeras cidades brasileiras, que também passaram a ser palco de centenas de saques em lojas e supermercados (30, 52). Em relação a esta última modalidade de explosão popular, é importante fazer referência às análises que discutiram a questão da "transgressão da ordem", tendo em conta os massivos saques que durante três dias explodiram em São Paulo de 1983 (3, 56). Convém ressaltar também os estudos sobre o papel da Igreja Católica na retomada das mobilizações urbanas que começou a ocorrer, em pleno período autoritário, durante os início dos anos 70, de modo particular, o significado das Comunidades Eclesiais de Base. Nestas análises aponta-se para o esforço de resistência e oposição ao regime autoritário bem como analisa-se as modalidades de participação mais democrática não só no âmbito de sua organização e dinâmica internas, mas, sobretudo, na criação de um "discurso popular" que se contrapõe ao elitismo e mandonismo presentes nas relações sociais e nas estruturas de poder, a partir do que estariam emergindo novas formas de percepção crítica das causas e conseqüências de exclusão sócioeconômica e da dominação política (KOWARICK, 1987, p. 3).

87

Chico Gomes também fez menção ao contexto nacional na década de 80 e seu impacto nas camadas populares, o que ele associa ao acirramento dos movimentos sociais46. Pouco depois da ocupação das terras pertencente a igreja de Nossa Senhora das Dores, em setembro de 1990, ocorreu a ocupação da região conhecida como Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, na zona rural do município de Crato. A ocupação dessa área aconteceu em abril de 1991 e fora promovida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em propriedade que também pertenceu ao patrimônio de Padre Cícero e onde foi desenvolvida pelo beato José Lourenço a experiência comunitária conhecida como Caldeirão do Deserto, destruída pelo governo do estado do Ceará, em 1936. Embora impulsionados por ideais nascidos ou fomentados na e pela Igreja, o movimento social não se propaga inteiramente em seu interior e apenas com seu incentivo. Chico Gomes sempre se refere à Igreja Católica da época considerando a existência de uma ala conservadora, tradicional e outra progressista, que queria mudanças. Em função disso, o MST encontrou resistência por parte de um dos párocos locais ao desenvolver suas ações, como trataremos adiante. Entre reuniões e cadastros de famílias, surge o Movimento dos Sem Teto de Juazeiro do Norte. A partir de maio de 1990, o movimento já se encontra constituído e suas finalidades assim definidas no artigo segundo do seu Regimento Interno: a- Organizar todas as famílias de sem teto, para buscar soluções para o problema da habitação; b- Encaminhar ao governo Municipal, Estadual, Federal as reivindicações da comunidade, em forma de projetos alternativos;

46

Apesar de ter sido a década da redemocratização brasileira e da nova constituição, conhecida como constituição cidadã, a década de 1980 foi marcada por um cenário econômico bastante desfavorável, o que a fez ganhar o rótulo de década perdida, sobretudo entre os economistas. Foi a década na qual decresceu substancialmente o ritmo do crescimento industrial, acelerado durante boa parte das décadas anteriores. Além disso, os anos 1980 foram anos de fortes restrições externas em virtude da dependência em relação aos empréstimos externos, inicialmente para financiar projetos estruturantes na economia brasileira e depois para permitir a própria rolagem da dívida externa, processo que levou o Brasil, dada a desconfiança dos mercados internacionais e à escassez do crédito, a recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Desse modo, esse processo compreende uma crise fiscal, caracterizada pela acentuada deficiência do Estado em manter investimentos e outras ações estratégicas, com as contas públicas em crescente deterioração. Também foram anos de elevado desemprego provocado pela estagnação do setor produtivo e de grande crescimento inflacionário – corroendo o poder aquisitivo sobretudo nos grupos sociais menos favorecidos e agravando o problema das desigualdades sociais. Vale lembrar também as eleições presidenciais realizadas nos anos de 1989 e 1994. Em ambas, o candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, ficou em segundo lugar. Essas candidaturas ajudam a compreender a efervescência que o partido tinha na época, incluindo seu engajamento nas lutas sociais.

88

c- A defesa dos interesses públicos e de seus associados para a solução dos problemas de água, luz, saneamento básico, trabalho, educação, saúde, transporte, comunicação e segurança (LIMA, R., 2001 [anexos]).

Em julho do mesmo ano, o Movimento organiza a primeira manifestação pelas ruas da cidade. Entoando o lema “Trabalho, pão e moradia”, os manifestantes se dirigem à Prefeitura Municipal para reivindicar moradias ao prefeito. Na ocasião, apresentam ao prefeito e distribuem para a população da cidade o “manifesto” que denominaram de “Projeto alternativo habitacional da população de Juazeiro do Norte”. O projeto apresentava a seguinte justificativa: Cansados dos padecimentos e sacrifícios causados pelos baixos salários, pelo subemprego e desemprego; situação catastrófica em que o governo nos meteu, cansados de esperar por soluções prometidas pelos políticos da nossa cidade no decorrer de suas campanhas antes de assumir o poder; cansados das ameaças de despejo e expulsões dos especuladores imobiliários, Nós, as 3.500 famílias sem teto, elaboramos este projeto reivindicando soluções imediatas para a questão da moradia, desemprego e fome. Propomos o MUTIRÃO DA VIDA. 1 – O poder público municipal deverá ceder uma área de sua propriedade para a construção das casas. No caso das terras da Prefeitura serem insuficientes, a mesma deverá adquirir de particulares, desapropriando para o mutirão. 2 – Estas casas serão construídas em regime de mutirão pelas pessoas do Movimento dos Sem Teto que estiverem desempregadas, com material do poder público municipal, estadual ou federal. 3 – Os trabalhadores do Mutirão da Vida deverão receber um salário mínimo durante o período em que estiverem trabalhando na construção da moradia. 4 – Enquanto não for iniciada a construção das casas, os trabalhadores desempregados deverão receber uma cesta básica – feira de alimentos – que garanta sua sobrevivência até conseguir emprego. 5 – Após a conclusão das obras habitacionais, os trabalhadores devem ser utilizados para a construção de outras obras prioritárias, definidas pelas comunidades. 6 – Deverá ser escolhida uma Comissão de Supervisão – Sem Teto/Prefeitura, com objetivo de administrar e acompanhar tecnicamente o Mutirão. 7 – Propomos ainda a anistia das tarifas de água e luz para os que ganham até um salário mínimo. TRABALHO, PÃO E MORADIA DIREITOS DOS TRABALHADORES [Sic] (LIMA, R., 2001 [anexos]).

Embora a questão da moradia tenha constituído o núcleo central das reivindicações do MST, suas lideranças estavam preocupadas com temas relacionados, uma vez considerando-se o perfil dos integrantes do Movimento: “serventes, doméstica, sapateiros, ferreiros, funcionários públicos municipais, feirantes, comerciários, artesãos, enfim, empregados e desempregados” (Projeto alternativo... LIMA, R., 2001 [anexos]).

89

Na primeira reunião com o prefeito municipal, este se dispõe a comprar áreas para construção de habitações para as famílias cadastradas no MST e solicita que o movimento pesquise propriedades. Feita a pesquisa, o movimento retorna, no mês de agosto, à Prefeitura e apresenta o resultado do levantamento. Como exigência para verificar a viabilidade da compra, o prefeito exige a elaboração de uma análise da área e comunica que a resposta sobre a compra seria anunciada em outra audiência (LIMA, R., 2001). No encontro seguinte, já em setembro, o prefeito comunica que os recursos municipais disponíveis são insuficientes para a compra da propriedade. Nessas e em outras passeatas que ocorreram, eram muitas as pessoas mobilizadas, mais de mil, como contam os participantes. Todavia, não era essa a expectativa que se tinha na cidade diante do Movimento. “O pessoal assim: „eh, vocês vão é ser besta, vocês não vão ganhar é nada‟”, diz dona Joana sobre críticas feitas por comerciantes no centro da cidade aos participantes de uma passeata. Segundo Chico Gomes, uma das participantes das passeatas assim dizia aos comerciantes da rua São Pedro, nos dias de manifestação: “Aí, bocado de peste, vocês não disseram que o povo não vinha abecar o prefeito...?”. Faixas eram hasteadas com os dizeres “Trabalho, pão e moradia” e gritava-se: “O povo, unido, jamais será vencido. Olé, olé, olé, olé, queremos casa pra morar. Casa, pão, rodoviária não”.

90

Figura 12: Imagens de manifestações organizadas pelo MST em Juazeiro do Norte. Fonte: Acervo pessoal de Santana Neto, 1990.

Chico Gomes, após esse último encontro com o prefeito, direciona para sua casa as pessoas que permaneceram no pátio da Prefeitura depois do comunicado. Ali anunciou que, no dia 27 de setembro, ou seja, na semana seguinte, viessem todos à sua casa que no final da tarde daquele dia iriam para a “terra”. Para as lideranças do Movimento, havia três possibilidades de ocupação: uma seria na área em que a Prefeitura construiria a rodoviária municipal; outra era uma propriedade do bispo; e a terceira, eram as “terras de Nossa Senhora das Dores”. Entretanto, ponderou Chico Gomes ao escolher pelas terras de Nossa Senhora das Dores:

Aí eu tive que dar uma manobrada pra poder trazer o povo pra cá. Eu digo pra lá nós vamos, porque se a Igreja, na minha cabeça, for fazer violência em cima do povo, Murilo se suja e a Igreja é quem vai sair suja nesse processo. Então é melhor ir para lá. E eu não vou levar esse pessoal pra área da prefeitura [onde seria construída a rodoviária] que não dá pra fazer casa nem pra 50 famílias, quanto mais pra 3.500 famílias. Nós não vamos fazer do povo besta que eu não tô doido. Tudo isso em minha cabeça. E lá é a terra de Nossa Senhora, é a terra da mãe, é a terra dos filhos47.

Para Nininha: E aí foram levantadas algumas terras. E uma terra que foi levantada era uma terra de Nossa Senhora, Nossa Senhora das Dores e aí a gente viu que era essa terra mesmo, terra de Nossa Senhora, terra de Nossa Senhora a gente 47

Sobre Nossa Senhora das Dores ser considerada, em Juazeiro do Norte, como sendo a mãe de Deus, ver Barros (2008).

91

vai. Aí então... foi bom essa terra porque era terra de Nossa Senhora e no imaginário terra de Deus é terra do povo. Então, terra de mãe é de filho. Então, a gente usou muito essa questão do imaginário mesmo que é de religião popular. Mais do que justo.

No caso da primeira propriedade, além da área ser considerada insuficiente para abrigar as 3.500 famílias cadastradas no Movimento, sua ocupação causaria uma “polarização com o poder público”, já que estava destinada à construção da rodoviária, acreditava o presidente do MST. A segunda área já havia sido negociada e a última não se sabia de sua localização, mas apenas de sua existência, que já tinha sido mencionada por padre Lapo. Embora decidido a ocupar as terras da igreja de Nossa Senhora das Dores, o presidente do MST não sabia onde ficava situada a propriedade. Porém, é informado, por um morador que residia na propriedade, da localização do imóvel. Essa área é avaliada, pelo presidente, Chico Gomes, como viável à ocupação, até mesmo porque caso fosse empregada a violência contra o povo, a Igreja, ou seja, o padre responsável pelo patrimônio é que se comprometeria. Era final de tarde de uma quinta-feira, dia 27 de setembro de 1990. Uma multidão de mais de mil pessoas, saindo da casa de Chico Gomes, percorre uma estrada paralela à linha férrea. Levavam Nossa Senhora da Conceição em um andor em formato de casa de taipa. A “procissão” chegara a seu destino, “as terras de Nossa Senhora das Dores”. Ali acamparam e passaram a noite. Logo deram início aos trabalhos para construção dos primeiros barracos, feitos com lonas, palha, papelão e madeira.

92

Figura 13: Imagens da ocupação das terras da igreja de Nossa Senhora das Dores. Fonte: Imagens capturadas do vídeo em DVD “Mutirão da Vida: uma conquista popular”, preparado em 2006 para a campanha eleitoral de Manoel Raimundo de Santana Neto para o cargo de deputado federal pelo PT.

Em função da ocupação, as lideranças do movimento foram alvo de ações judiciais, seja por formação de quadrilha, invasão de propriedade, pelos danos causados à plantação de macaxeira que havia no local e que pertencia à Associação dos Plantadores de Macaxeira da Vila São José. Parte dos processos foi movida pelos arrendatários que moravam e cultivavam a terra, mas foram fomentados pela Prefeitura e Igreja, segundo Chico Gomes. Acusaram os participantes do movimento de “quadrilha dos bandidos da falange vermelha”, em associação à organização criminosa que existiu no Rio de Janeiro a partir de 1979 e que depois ficou conhecida como Comando Vermelho. Provavelmente, a ligação entre os crimes violentos cometidos pelo grupo carioca e o “crime de invasão de propriedade privada”, cometido pelos integrantes do MST, encontre uma síntese nas bandeiras vermelhas do Partido dos Trabalhadores. Com isso, tentou-se repreender o movimento e o partido. Além disso, o padre responsável pelas terras, padre Murilo de Sá Barreto, resistiu à ocupação e estabeleceu uma relação tensa com o movimento. Como nos diz Chico Gomes: “Ele chegou a dizer que quem permanecesse na terra não era romeiro da mãe de Deus, não era filho de Deus, não era filho da mãe de Deus. Chegou a dizer que as pessoas eram espírito de alicate, porque até as mangas verdes o povo tava comendo”. “Desordeiros do Padre Cícero invadem a terra da mãe de Deus”, falava o padre durante seu programa de rádio, segundo seu De Jesus. Apesar dessa resistência do padre local, o movimento persistiu e o bispo de Crato, onde se localiza o bispado da região, autorizou o pároco a doar as terras para o Movimento, o

93

que ocorreu em novembro de 1990. A área doada, onde hoje se situa o bairro, não corresponde à área ocupada. O local ocupado se situa no lado norte da Avenida Padre Cícero (Rodovia CE 292), importante via de ligação entre as cidades de Crato e Juazeiro do Norte, enquanto o bairro está situado no lado sul da referida avenida. Esse deslocamento no espaço se deu a partir das negociações realizadas entre membros do Movimento e a Igreja Católica. Na verdade, essa mudança de local era a condição para a Igreja fazer a doação. Isso ocorreu, segundo Nininha, que fora uma das organizadoras do Movimento na época, uma vez que se tratava de “terras privilegiadas, porque estavam na avenida Padre Cícero, Crato-Juazeiro, privilegiadíssimas, todo mundo via e [era] área já predestinada à venda pra grandes imóveis”. Por “não serem terras para sem teto”, pois “terras de visibilidade”, “o projeto era esconder mais, jogar esse povo para longe”, nos diz Nininha. Assim, chegou-se ao que os moradores denominam de Primeira Rua ou Rua da Capela, local onde foram construídas as primeiras habitações, distante cerca de um quilômetro da Avenida Padre Cícero. Essa propriedade, onde hoje se encontra o bairro, também pertencia à Igreja, uma vez que as terras de Nossa Senhora das Dores, como era conhecida a propriedade, se estendiam do local inicial da ocupação até a divisão com o município de Barbalha, compreendendo uma área de grande extensão em formato retangular. Tão logo a terra foi tomada, as pessoas improvisaram alojamentos e ali permaneceram por pouco mais de dois meses, quando tiveram de passar para a área doada, ainda em 1990. A partir daí, o Movimento organizou a transferência dos moradores, contratou engenheiros para fazer o planejamento urbano do local e estabeleceu, como dimensão padrão dos lotes, seis metros de largura (frente) por vinte metros de comprimento (fundo). Ao repassar o lote à família cadastrada, o Movimento recebia da mesma um pequeno valor em contrapartida para pagamento dos técnicos e engenheiros contratados. Como nos diz Chico Gomes: “O nosso lote padronizado é 6m por 20m, seis metros de frente por vinte de fundo, que a gente queria que ficasse assim pra num dar aquela conotação de favela”48. 48

Segundo seu De Jesus, essas dimensões foram propostas por ele em reunião dos coordenadores do Movimento. Assim ele disse ao engenheiro: “Seu Daniel [engenheiro], nós vem muito sofrido aqui por esse loteamento, movimento dos sem teto, o sem teto nunca possuiu uma casa para morar, possuir um pedacinho de chão pra fazer uma casinha para morar, aquele sem teto não tem condições de fazer uma fossa com um banheiro, com uma bacia sanitária e o chão 4 x 15 fica muito apertadinho pra fazer esse tipo de coisa em moradia. 6 x 20, se quiser deixar até uma área de fora a fora de um metro com o vizinho, fica uma área de um metro de fora a fora e constrói com cinco. Seu Daniel disse: „ah, opinião de seu De Jesus tá boa‟. Chico Gomes não achando bem bom, mas aceitou. Que hoje tá acontecendo, duas família morando em um terreno só, duas casas é três metros [de largura, frente, cada]. Ficou bom, não ficou?”.

94

A escritura da propriedade doada pela Igreja ficou no nome do MST, que depois de sua extinção foi repassada para a associação de moradores. Esse é o motivo de alguns moradores, ainda hoje, não terem o documento individual da posse da casa onde moram. Em outro momento da entrevista, quando está tratando de processo jurídico movido recentemente pela diocese local na tentativa de retomar, após venda “ilegal”, a posse do patrimônio de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e de uma área que pertenceu ao patrimônio de Nossa Senhora das Dores e que hoje é a territorialidade Vila Real, Chico Gomes diz:

Chico Gomes: Bom, na parcela do povo, o bispo não mexeu, por que, por que o bispo não mexeu? Porque o movimento foi um movimento ordeiro, um movimento correto, o movimento que procurou com todo sacrifício do mundo, buscou fazer com que não se tornasse um amontoado de casas, mas um bairro de gente pobre mas bem organizado. Nós temos aí uma planta da área importada da Argentina, os agrimensores nós contratamos os agrimensores pro povo pagar, eles pagavam uma parcelazinha, juntava tudo e repassava pra eles esse dinheiro pra eles medir, mas não era só pra medir o lote, porque só medir o lote qualquer um podia medir, é porque tinha que ter todo um trabalho abalizado por agrimensores, por técnicos, engenheiros pra que se nascesse um bairro e não uma favela. Lucas: E toda essa organização se deu a partir do Movimento? Chico Gomes: A partir do movimento. Aí tudo bem, o povo concordou, eles fizeram, a gente recolhia o dinheiro, por conta disso deu confusão de todo tamanho, levei nome até do diabo, mas não me importei porque na realidade não valia a pena a gente ter feito um trabalho desse porte, muita terra, 230 tarefas de terra, e hoje ter se tornado um bicho feio. A gente precisava era dum bairro de pobre, mas uma comunidade onde o povo se sinta digno.

Inicialmente, as primeiras habitações se estendiam do que os moradores chamam de Primeira Rua (início da área doada pela Igreja)49 até as proximidades do que hoje é o CAIC. Inclusive nas leis de nomeação das primeiras ruas do local, datando dos quatro primeiros meses de 1992, consta a seguinte indicação: “Nesta artéria [a rua que se denomina] já existem muitas residências”. Tais leis abrangem as ruas que estão três quarteirões ao sul das escolas CAIC e Mário Bem. Posteriormente, as residências atingiram o local onde hoje fica a caixa d‟água (ponto de inflexão entre as territorialidades Frei Damião e Baixa da Raposa), o topo de uma colina. Em função dessa ocupação gradativa, alguns moradores dividem o bairro em “primeira etapa” e “segunda etapa”, ambas incluídas na territorialidade que atualmente é conhecida como Frei Damião. Essa é uma divisão, portanto, espacial e cronológica. 49

Lembremo-nos que a Primeira Rua, ou Rua da Capela, é o ponto de inflexão entre as territorialidades Vila Real e Frei Damião.

95

Há também a “terceira etapa”, que corresponde à área que hoje os moradores denominam de Baixa da Raposa, de povoamento mais recente. Essa localidade, embora pertencente à propriedade doada pela Igreja ao MST, foi repassada à Prefeitura Municipal. Essa foi uma das exigências do prefeito municipal, que queria, com a área, abrigar as famílias cadastradas no Centro Social Urbano (CSU). Segundo Chico Gomes, o Movimento acabou aceitando essa exigência uma vez que as pessoas cadastradas no CSU também faziam parte do Movimento. Cedeu-se essa parte também como contrapartida à retirada de processos judiciais que foram movidos contra o Movimento. Nessa área, foram construídas algumas casas a partir de projetos habitacionais financiados com recursos públicos, como o Programa de Urbanização – PROURB, e destinadas a famílias que foram desalojadas de áreas de risco, como as do que se chamava de favela Alta Tensão, que existia sob rede elétrica de alta tensão. Além de terem de abandonar os barracos já construídos e passarem a habitar em um novo local, em um prazo de quarenta dias fixado pelo “contrato de doação”, as 3.500 famílias cadastradas no MST tiveram várias dificuldades, como conta Dona Sebastiana: “Então, ficamos nessa luta, meu filho, foi luta, foi luta. Olhe, veja, aqui não tinha água, aqui não tinha calçamento, a areia dava aqui no meio da canela, não tinha energia, não vinha ninguém dessas pessoas visitar a gente [...]”. Anos depois da construção das primeiras moradias, esses recursos foram estabelecidos inicialmente na primeira etapa do bairro, sendo gradativamente estendido ao restante da área.

Figura 14: Construção de abrigo na área ocupada pelo MST. Fonte: Imagem do vídeo em DVD “Mutirão da Vida: uma conquista popular”, preparado em 2006 para a campanha eleitoral de Manoel Raimundo de Santana Neto para o cargo de deputado federal pelo PT.

96

Figura 15: Imagem de casas na propriedade doada ao MST. Fonte: Acervo pessoal de Nininha.

Atualmente, na definição da Prefeitura Municipal, o bairro engloba três áreas: a que foi doada pela igreja ao movimento; uma área que pertencia à igreja, mas foi vendida em 1991, e uma propriedade particular adjacente. Todavia, é nas duas primeiras áreas que se concentram as habitações dos moradores, sendo que a primeira compreende as áreas que hoje os moradores denominam de Frei Damião e Baixa da Raposa e a segunda, a área nomeada de Vila Real. No caso da Vila Real, uma propriedade que fazia parte do patrimônio da igreja de Nossa Senhora das Dores, que estava adjacente à área doada pela Igreja ao Movimento e que se encontrava mais próxima da Avenida Padre Cícero, sua origem se dá a partir de uma procuração em que o padre responsável pelo patrimônio da igreja dá poderes a uma pessoa de sua confiança para fazer o loteamento e venda da área. Uma porcentagem dos valores arrecadados com esse negócio seria repassada ao padre e o restante ficaria com o procurador. Essa negociação, segundo Chico Gomes, infringiu o direito canônico uma vez que o bispo local não foi consultado para autorizar a venda do imóvel. A justificativa para a venda dessa parcela de terra que havia ficado de fora do patrimônio que fora doado ao MST, se dá pela possibilidade dos moradores do “Mutirão da Vida”, como foi denominado inicialmente o povoado, invadirem essa área, até porque era adjacente ao local em que moravam e pertencia ao patrimônio da igreja50. Essa negociação envolveu também, com participação do mesmo procurador do processo mencionado acima, o patrimônio da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ao lotearem essa área, nomearam-na de Vila Real II. 50

Nesse processo foi atribuído o nome de Vila Real ao local.

97

Nos dois casos, tanto em função de a venda se dar sem respeitar a autoridade do bispo e, depois da morte do padre responsável pelo patrimônio das duas igrejas, a procuração que concedia o direito ao procurador de apenas fazer o loteamento das áreas ser convertida, com auxílio do cartório em que fora registrada, em título de propriedade, o atual bispo de Crato moveu processo judicial na tentativa de reaver o patrimônio pertencente a igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e a área que hoje compreende a Vila Real e outra vizinha a esta e adjacente a Avenida Padre Cícero, mas que pertence ao bairro São José. No processo movido, a Igreja não procurou retomar, como indicou Chico Gomes em passagem anterior, a posse do patrimônio doado ao MST, ou seja, a parte onde hoje se localiza a territorialidade Frei Damião e Baixa da Raposa. Dada a quantidade de pessoas mobilizadas em torno do Movimento e a extensão das terras conquistadas, os organizadores do Movimento consideram que essa foi a maior ocupação em solo urbano do Cariri cearense. O movimento, que procurou divulgar a ocupação entre organizações da sociedade civil, chegou a receber apoio de lideranças da Central Única dos Trabalhadores (CUT), vindos de Fortaleza, e divulgação da realização da ocupação entre movimentos sociais nacionais como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que encaminhou ofício ao Prefeito Municipal solicitando atendimento as demandas dos reivindicantes (LIMA, R., 2001). É oportuno considerar que tanto o MST como a ocupação das terras de Nossa Senhora das Dores em Juazeiro do Norte não foram as únicas experiências que existiram no Cariri cearense. Antes, houve outras organizações e outras ocupações em cidades como o Crato (Cf. OLIVEIRA FILHO, CORDEIRO, 2010). Após a ocupação, as lideranças do MST sofreram processos, inclusive por formação de quadrilha, houve solicitação de reintegração da posse e tentativas, por parte da Igreja e do poder municipal, de corromper e fragmentar o movimento e distanciar os membros do PT, fomentando a criação de associações paralelas. A partir de julho de 1999, as lideranças do MST passam a utilizar uma nova sigla, MSC (Movimento dos Sem Casa). Além de ter por objetivo reforçar a candidatura de Irlis Tavares (coligação PT/PSTU) à prefeitura de Juazeiro do Norte nas eleições de 2000, o MSC, com o lema “Casa, trabalho e saúde” (LIMA, R., 2001), buscava “1- Escritura definitiva para os moradores do Bairro Mutirão da Vida (Frei Damião); 2- Casa para as famílias de baixa renda inscritas no MSC; [...]” (FOLHA DA MANHÃ, 1999, s. p.), dentre outros objetivos. Apesar de ainda estar relacionado ao bairro Frei Damião, o novo movimento passa a realizar reivindicações mais amplas, incluindo ampliação do atendimento médico no município, contratação, pela prefeitura municipal, de desempregados inscritos no MSC para construção

98

de casas e um projeto permanente de moradia para famílias carentes de Juazeiro do Norte. Em 1999, o MSC passa a promover constantes intervenções na cidade, com passeatas em prol de suas reivindicações e manifestações contra o governo estadual e federal da época que reuniam multidões (JORNAL DO CARIRI, 05, 08, 18, 27/08/1999 e 22/12/1999). Apresentado, mesmo que de forma muito limitada, o Movimento dos Sem Teto de Juazeiro do Norte e a origem do bairro Frei Damião, podemos agora pensar sobre as consequências que essa origem acarretou e acarreta ainda hoje para os seus moradores, no que repercute na constituição de uma imagística do bairro. Como se verá no próximo capítulo, as implicações históricas do surgimento do bairro Frei Damião recaem sobre todas as territorialidades existentes no bairro, mas há estratégias entre elas que procuram deslizar o “estigma” para a outra, constituindo imagens de si e do outro (MATOS, 2004; 2011), como se notará a partir da divisão do bairro e da atribuição de nomes diferentes a cada área. São norteadoras para as próximas reflexões as seguintes questões: como a história do bairro é alocada diante da sua imagem de periferia? Como se constitui a imagem elaborada de si e a imagem elaborada pelo outro entres as três territorialidades? Como a história participa da produção da autoimagem de cada uma das áreas do bairro? Como a história permite que a territorialidade seja significada e seus sujeitos informados?

99

Capítulo IV – A inscrição do bairro na cidade

No presente capítulo, a partir do material apresentado no capítulo anterior, trataremos dos acontecimentos que originaram o bairro Frei Damião como eventos que o inscreveram fisicamente e socialmente na cidade de Juazeiro do Norte. Essa inscrição se dá, inclusive, a partir da repercussão desses acontecimentos na criação da imagística do local, o que será também objeto de nossa compreensão. Assim, nos deteremos nas implicações e consequências que as ações organizadas e desencadeadas pelo Movimento dos Sem Teto originaram para a inscrição do bairro na cidade, no imaginário urbano, e na forma como essas implicações e consequências foram organizadas e negociadas e ainda o são, seja a partir das diferentes nomeações do bairro, seja por meio da relação que os moradores estabelecem com o espaço, segmentando-o em territorialidades e atribuindo nomes distintos a estas. Essas questões dizem respeito à possível relação interativa entre o acesso à moradia e o acesso à cidade nos termos colocados por Marluci Menezes (2013). Isto é, se for verdadeira a assertiva de que o acesso à moradia dá acesso à cidade, que lugar o bairro Frei Damião, vale dizer, seus habitantes, tem na cidade de Juazeiro do Norte? Que lugar foi criado para o bairro a partir do movimento social que o originou? Logo, nosso problema ecoa na seguinte questão: “[...] como as práticas coletivas originadas de determinados segmentos da sociedade (os favelados) e articuladas basicamente (mas não apenas) em torno da questão fundiária e da apropriação da cidade por seus moradores afetam o padrão de integração social e são por ele afetado?” (SILVA, L., 2002, p. 222). Ao colocarmos dessa forma o problema, alinhamo-nos à abordagem que propõe pensar as práticas dos movimentos sociais não somente em termos internos, mas externos também, ou seja, no que “resultam”, mesmo que de modo não intencional, e como “afeta[m] os padrões de sociabilidade e integração sistêmica” (SILVA, L., 2002, p. 222). Para tanto, nossa argumentação segue o seguinte encadeamento de ideias e elementos: a constituição da imagem de periferia do bairro Frei Damião, as diferentes nomeações que recebeu e recebe e a segmentação em áreas distintas da região do bairro. 1 A invenção da área de “risco social”

A produção social do bairro Frei Damião está associada à sua própria gênese. Seu espaço na cidade foi inventado na ocupação da área. Podemos retomar aqui o diálogo que estabelecemos, no capítulo I, com a literatura sobre comunidades rurais. Lembremo-nos que

100

tanto Antonio Candido como Ellen Woortmann recorriam à noção de projeto para pensar na significação da natureza pela cultura no processo de criação de povoados. Ali, temos como relações fundadoras dos bairros rurais os festejos lúdico-religiosos e os trabalhos de ajuda mútua (CANDIDO, 2001) e a descendência e um sistema de parentesco endogâmico e patrilinear (WOORTMANN, 1995). No caso do bairro em tela, a projeção da cultura sobre a natureza na criação de um povoado se dá a partir de uma ação política organizada. Os participantes são congregados em uma área tipicamente rural ao ensejarem o direito à moradia, sem antes terem formas de sociabilidade estabelecidas. A seguinte fala de Chico Gomes é emblemática desse tipo de projeto humano: Eu brincava com o povo: “Ó, o Padre Cícero colocou o nome Baixio das Almas [ao local onde hoje é o bairro Frei Damião] porque ele sabia que aqui ia se encher de alma”. Que aqui era deserto, deserto do Saara, só tinha areia, mas, ele sabia que ia se encher de alma, mas almas vivas e que lutam pra viver, entendeu.

Essa “luta”, essa ação política organizada, inscreveu fisicamente o bairro na cidade ao proporcionar a ocupação de uma propriedade privada e, assim, o inscreveu também socialmente ao ser o elemento inicial a partir da qual foram criadas representações sociais ao seu respeito. Cabe aqui compreender que imaginário foi criado em torno do bairro Frei Damião. Nesse ponto, tratamos da relação entre o bairro e a cidade, ou seja, da forma como a Cidade, sua ordem moral, pensa o bairro. Todo o processo anterior, de ocupação das terras de Nossa Senhora das Dores, teve ampla visibilidade na cidade de Juazeiro do Norte. As passeatas até o prédio da Prefeitura Municipal reuniam muitas pessoas e cruzavam as ruas centrais da cidade. A manifestação desse segmento da população, os “sem teto”, e as formas que elegeram para divulgar e pressionar a administração municipal eram inspiradas nas experiências dos movimentos sociais existentes em cidades como São Paulo. Lá, como aqui também, o perfil dos que se engajavam nas lutas sociais, e que com elas esperavam ser beneficiados, pode ser descrito como “classe popular”51. Oriundos dos recantos da cidade, morando em condições precárias, pagando aluguel e estando desempregados, esses sujeitos já eram prenunciados pelas condições 51

Pensando com Durham (2004a [1986]), utilizo o termo classes populares com finalidades mais descritivas do que analíticas e para indicar que, em parte, a análise está interessada no modo de vida das classes trabalhadoras e da população pobre.

101

econômicas e sociais em que se encontravam imersos, informados como “lupem, desempregadíssimo”, como os caracterizou Nininha. Com as manifestações que realizavam e com o desfecho do processo da ocupação, os participantes do movimento entraram na “história”. Dona Sebastiana nos diz que lugar ocuparam nessa “história”:

A nossa luta era por um teto, aí então ele [Chico Gomes] botou Mutirão da Vida, que a gente só pode dizer que tem vida, que tem lazer, que tem tudo quando tem uma casa. Aí ele botou. Aí, o povo começaram a achar o nome feio. Aí, mudou para bairro Frei Damião. Lucas: Por que o pessoal achava feio o nome Mutirão da Vida? Sebastiana: Eu não sei, achavam que... assim, eles achavam feio porque quando a gente chegou aqui chamavam os afavelados. O povo dizia... tinha medo do povo daqui. Quando uma pessoa chegava na rua era discriminado, que dizia que morava no Mutirão, aí o povo não queria conversa, num dava apoio não, nem olhava, tinha medo, porque nós somos discriminados, nós ficamos na história como vandalismo, como bandidos, como desocupados. Foi assim a imagem que Carlos Cruz [prefeito municipal à época do movimento] e a família passou pra mídia, pra sociedade. Nós somos discriminados, somos um povo que fomos afastado da sociedade. Nós sofremos aqui, sofremos humilhação, discriminação, nós sofremos muito. Mas quando eu chegava na rua que o povo dizia “onde você mora?”, eu dizia “no Mutirão”, eles olhavam pra baixo, eu dizia “o que foi, teve alguma coisa errada aí?‟ Aí, „Mutirão!‟, eu digo “nem roubo, nunca matei ninguém, nunca roubei e tô aqui, você tá vendo minha luta trabalhando e se existe alguém que você pensa que é desse tipo, foi da sua casa”. Eu falava logo assim. Se alguém existe ruim, nasceu da tua casa, tá morando lá porque tu botasse pra lá. “Aí, num sei o quê”. É assim mesmo meu filho, lá tem pessoa pobre, humilde, que não teve condições de construir sua casa aqui na rua. Então, Deus abriu essa porta e nós estamos lá e cada um está bem assituado, e vamos crescer lá, e vocês que tão discriminando aqui um dia ainda vão morar junto com nós. Já tem muitos aqui, muitos morando aqui dentro, muitos, muitos que vieram ter vida aqui dentro, que hoje tem sua mercearia, hoje tem seu ponto de negócio ali pra cima. Negócio de construção. Tudo tão bem aqui dentro.

“Ficaram na história”, pois ganharam notoriedade a partir do movimento que provocaram na cidade; porque geraram um conflito moral e social ao tomarem para si uma propriedade privada e nela habitaram sem a posse legal, ao rivalizarem com Igreja Católica e sua autoridade, o padre; porque foram motivo de processos jurídicos; porque encamparam um movimento político com forte presença de partido de esquerda e demandas da classe popular. Diz dona Sebastiana:

Aqui foi luta, meu filho, nós lutamos muito. Muitas das vezes eu queria fracassar por causa da pressão. Você não tem nada, porque a gente não comprou, ocupou, quando a gente tem a certeza assim aquele... Eu tinha aquele ressentimento, eu acho que eu não sou dona, porque eu não comprei.

102

A gente se sente mal, mas por a necessidade eu digo: “eu não comprei, mas também eu não tomei de ninguém”. Eu tomei de um dono que não precisa, então aqui é meu. Aí ficava, aí ia lutando. Mas a gente se sente acuado, chega um ponto que a gente fica num beco sem saída, é preciso ter muita coragem.

A construção dos primeiros barracos na área ocupada já era vista como favela pelos moradores dos bairros vizinhos: “Aí o povo dali não gostava por motivo de dizer que era uma favela, afavelados” (Dona Sebastiana). A propriedade da qual tomam posse também já fora predestinada, pelo Padre Cícero, aos pobres do Nordeste. Como diz Chico Gomes:

O que se salvou mesmo em cima do projeto de vida que o Padre Cícero tinha para Juazeiro, a cidade que seria santa, que seria a nova Jerusalém, aonde corre leite e mel, onde o povo vai ter uma vida em abundância com saúde e com paz e com democracia, o que salvou dessas terras que seriam para os nordestinos, não é nem pro povo de Juazeiro, mas para os nordestinos que aqui chegando não tinha para onde ir, esse era o sonho dele, salvou essa ocupação, são 230 tarefas e o restante da terra o padre Murilo negociou [comenta sobre a negociação].

Se hoje o lugar do bairro Frei Damião na cidade já está consolidado, tal lugar, que não é meramente físico/geográfico, mas também moral, não está desmembrado da sua história. Se estiver, não deixa de ser atualizado pela ideia de pobreza e violência, pelo perfil de classe popular dos seus moradores, localizando-o como espaço exótico, imoral, caracterizado pela carência/ falta, desordem e ilegalismo, violência e perigo, um fantasma no imaginário urbano (ZALUAR; ALVITO, 2006). Lembro-me que um de seus moradores, ao vagar à noite pelas ruas do bairro Lagoa Seca, situado próximo ao Frei Damião e onde eu, no início de 2013, me estabelecera a princípio em Juazeiro do Norte, foi identificado por uma moradora como “nego do cão”, alguém para quem não se deve abrir o portão de casa. Alguém “que alimenta a mitologia urbana” (ZALUAR; ALVITO, 2006) 52. Mais uma vez, a voz dos nossos entrevistados insurge:

É, tá ali ao lado do bairro mais nobre de Juazeiro, que é o Lagoa Seca. Então enfrentar isso também não é uma coisa bonita, porque “Nossa, como aquilo, perto de nós”. Lagoa Seca já era um bairro consolidado [à época da ocupação] (Nininha).

52

Essa produção social do bairro Frei Damião e, logo, de seu lugar moral na cidade, não está distante daquela comum indistinção entre bairro, comunidade e favela. Uma produção do lugar não é somente operada pelo outro, o da cidade, mas também pelo próprio sujeito do lugar em questão (Cf. SÁ, 2012a; LEITE, 2001; FREIRE, 2008).

103

Lucas: A ideia de esconder o bairro era esconder o quê? [Quando foi feita a remoção das pessoas da área inicialmente ocupada para onde hoje se encontra o bairro]. Nininha: Era esconder o povo mesmo, era esconder aqueles miseráveis, a ideia era isso. São marginais, não precisam serem visto. Então joga, esconde, mesmo porque lá vai ser uma grande favela. E eles apostaram nisso muito tempo, nem uma ajuda política estruturante pra li, ali é favelados e vai ser uma grande favela e é de bandidos, ainda hoje tem esse estigma. “É de onde? É do Mutirão? Ave Maria, Ave Maria três vezes”. Então assim, o Mutirão, como todos os bairros de Juazeiro e todos os bairros de periferia de nosso país, tem gente do bem e tem gente do mal. Essa dualidade existe e vai existir em qualquer canto, seja na Lagoa Seca, seja no Mutirão (Nininha). Na época [da ocupação] a imprensa, acho que incentivada pelo município, pela Prefeitura, que não tinha interesse, porque em tudo vai o interesse político, não tinha interesse que o Mutirão da Vida fosse adiante, porque era uma iniciativa que também tinha o dedo do PT, do Partido dos Trabalhadores, e tudo nessa vida vai a danada da política, aí chamavam de, apelidavam de a favela do bispo, a favela da santa, o pantanal. Tinha uma novela O Pantanal, aí chamavam lá de pantanal, que aí era um atoleiro, que aí só tinha gente que não presta. É, o atoleiro era de areia. Mas quando eles usavam a palavra pantanal era pra denegrir mesmo a imagem da comunidade (Chico Gomes)53.

Nos poucos jornais impressos publicados no segundo semestre do ano de 1990 que consegui pesquisar, encontrei apenas uma pequena nota sobre a ocupação das terras de Nossa Senhora das Dores. Com o título “PANTANAL JUAZEIRENSE”, assim dizia o texto:

A novena da invasão das terras da Paróquia de Nossa Senhora das Dores à margem da estrada Juazeiro/Crato ainda vai render muitos capítulos. O Padre Murilo diz que só negociará após a retirada dos invasores, enquanto que estes afirmam não arredar o pé do local. A Justiça deverá mandar expedir mandado de reintegração de posse à Igreja e a corda rebentará do lado do PT (FOLHA DE JUAZEIRO, 1990, p. 5).

Essa é a imagem que a “rua”, a cidade, seu centro, criou acerca do bairro. Retornemos aqui a ideia apresentada anteriormente no capítulo I, de circulação do bairro por meio do ônibus. Essa ideia nos ajudou a pensar na relação entre o bairro e a cidade, logo, entre seus moradores e demais habitantes de Juazeiro do Norte a partir do deslocamento dos primeiros por espaços e situações extrabairro. Essa circulação dos moradores não é tão fluida, lisa, como não o é também a caminhada e o percurso do ônibus. Mas não o é por motivos outros. Morador parece ser uma categoria que materializa no corpo seu pertencimento a determinado lugar, no caso, o lugar de moradia. Quando o corpo circula, circula também o 53

Pantanal foi uma novela transmitida pela TV Manchete em 1990. A trama se passava no Pantanal mato-grossense.

104

bairro. Circulando, interage com outras partes. Essas interações esbarram em julgamentos nem sempre benquistos pelos moradores, tornando a circulação um momento de fricção de percepções, valores e quadros cognitivos, inclusive de mapas e signos morais. Voltemo-nos às pessoas do bairro e suas interações, aos seus relatos de contato com a “rua”, o “lá embaixo”, “lá fora”, enfim, “no centro”:

Lucas: Como você define ser morador do Frei Damião? Suzana: É uma coisa boa, apesar que quando a pessoa chega em alguns locais que diz “Eu moro lá no Frei Damião”, “Ah, sim, Mutirão”. Aí eu: “É”. Aí: “Eita, como lá é perigoso”. Mas não, não é isso. Quem mora, quem convive com as pessoas daqui acha uma coisa totalmente diferente e eu gosto de morar aqui. Lucas: Mas já aconteceu com você a situação de chegar e dizer que mora no Mutirão? Suzana: Já. Quando eu costumo ir lá embaixo na casa de meus colegas, de minhas colegas, aí diz: “Ai, tu mora ali, eita como é longe, num sei o que”. Quando eu conheço alguém assim diferente, aí acontece isso. Lucas: Mas você usa qual dos nomes? Suzana: Frei Damião [ênfase]. Lucas: Tu acha que alivia um pouco mais? Suzana: Acho que sim, que Mutirão ficou para trás e tudo. E lá fora é todo mundo dizendo que aí só tem gente que não presta, que não sei o quê. E eu ando aí pra cima e para baixo só vejo boniteza (Chico Gomes). Às vezes acontece de quando nós estamos no centro o pessoal gosta de falar do bairro, agora não sei porquê. Eu digo “Minha gente, a pois ele é um bairro, eu acho que ele é um bairro como qualquer um bairro aí”. Só que o pessoal acha que o bairro Mutirão ele é mais, mais que todos os bairros. Eles acham que tem mais vândalos, de gente mau elemento que todos. Eu acho que todo bairro é assim, penso eu que é, não sei não. Agora dizer que tem..., tudo no mundo que acontece aqui é difícil acontecer com um pai de família direito trabalhador, só acontece mais é com os malandros (Dona Helena). É um dos bairros também mais violentos. Chegou a ser na cidade sinônimo, assim de, de... coisa marginal mesmo. Eu tava uma vez um negócio no hospital e acho que tava com alguém, não sei, e fiquei fora, na recepção, e vi uma pessoa. Chegou, aí disse... e eu sabia que era de lá o cara. „Tu mora onde?‟, ele disse outro canto. Eu saí e disse “tu não tá mais morando lá no Mutirão não?” “Não, Santana, eu tô, é porque eu tenho vergonha de dizer senão o pessoal pensa logo que a gente é bandido” (Santana Neto).

O relato de uma moradora elucida mais elementos nesse universo. Segundo ela, certa vez um entregador de botijão de gás chegou ao bairro para fazer uma entrega. Comentou com ela que quase não chegava ao endereço porque quem solicitou o produto indicou o bairro Lagoa Seca, para onde ele se dirigiu inicialmente, como endereço para entrega enquanto residia no bairro Frei Damião. Esses casos não são exceção, como já mostraram alguns dos nossos entrevistados. Nesse sentido, também considera dona Sebastiana:

105

Tem gente que pra arrumar emprego lá embaixo, tem gente que nem diz que mora aqui no Frei Damião, que o povo às vezes não quer. Diz que é ladrão. É dois nomes, com a licença da palavra, ladrão e rapariga. É o tratamento que a gente ganha aqui. É essa a palavra, desde o começo, que aqui só mora esses dois tipo de gente. E no final das contas nem é, tem tanta gente boa aqui.

Ao encontrar, nas festas de Santo Expedito, um rapaz com quem eu tinha mantido contato em 2011, o mesmo indagou onde eu estava morando. Como disse: “em Juazeiro mesmo”, ele rapidamente retrucou: “Mas aqui também é Juazeiro” e, irônico, continuou a conversar sobre pessoas que se referem ao bairro como se ele não fosse vinculado à cidade, só porque fica distante do centro, segundo ele. Segundo dados organizados por Pinheiro, Barbosa e Souza (2013), com base em documentos do Juizado da Infância e Juventude e da Cadeia Pública de Juazeiro do Norte, o bairro Frei Damião é um dos mais violentos, em termos de detenção e homicídios, do município. Em função disso e da relação com a pobreza, o bairro é alvo de ações pautadas no entendimento deste como “área de risco social”. Assim, o CAIC (Centro de Atenção Integral à Criança Dom Antonio Campelo de Aragão), por exemplo, é uma instituição criada pelo governo federal que visa, desde 1991, “[...] desenvolver ações integradas de educação, saúde, assistência e promoção social e dinamizar as políticas sociais básicas de atendimento à criança e ao adolescente” (SOBRINHO; PARENTE, 1995, p. 6). Tais ações objetivam “[...] reduzir os efeitos negativos da pobreza sobre as crianças e adolescentes que habitam as periferias dos maiores aglomerados urbanos do país” (Ibid., p. 6). Há também no bairro Frei Damião o projeto Atleta Cidadão, criado em 2009 pela Secretaria Municipal de Segurança Pública e Cidade e desenvolvido por Guardas Civis Municipais. Trata-se de ações que adotam atividades esportivas (futsal, jiu-jítsu, capoeira) e artísticas (apresentações cômicas, malabarismo, pernas-de-pau), como mecanismos de prevenção à violência entre jovens, sobretudo do gênero masculino. Outra ação da referida secretaria no local é a Base Comunitária Frei Damião, que realiza atividades de patrulhamento. Além desses serviços, temos alguns equipamentos instalados no bairro, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), o prédio construído para sediar a Cozinha Comunitária e, em construção, a Praça da Juventude. No caso da Cozinha Comunitária, que ainda não chegou a funcionar, trata-se de um equipamento público de alimentação e nutrição constituído a partir de financiamento do governo federal em parceria com o município. Esses equipamentos, que integram a Rede Operacional do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), são “destinados ao preparo de refeições

106

saudáveis, variadas e saborosas, que são distribuídas gratuitamente ou a preços acessíveis à população em situação de vulnerabilidade social, garantindo a esse público o Direito Humano à Alimentação” (BRASIL, 2013a). Já a Praça da Juventude é um projeto do governo federal “[...] destinado a comunidades situadas em espaços urbanos com reduzido ou nenhum acesso a equipamentos públicos de esporte e de lazer que alia saúde, bem-estar e qualidade de vida a atividades socioeducativas diversificadas” [Sic] (BRASIL, 2013b). Construída em uma área de no mínimo 7 mil m², é munida de uma variedade de equipamentos e conta com parceria do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), uma vez dada “[...] uma forte complementaridade entre esses dois programas quanto aos seus objetivos de educar, ressocializar e apoiar jovens em situação de vulnerabilidade social” (BRASIL, 2013b). Tanto o CAIC como o projeto Atleta Cidadão e a Praça da Juventude, são únicos em Juazeiro do Norte, não havendo experiências em outros bairros da cidade. Ainda há, no bairro, núcleos do projeto Segundo Tempo, do Ministério dos Esportes. Tal projeto objetiva “democratizar o acesso à prática e à cultura do Esporte de forma a promover o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens, como fator de formação da cidadania e melhoria da qualidade de vida, prioritariamente em áreas de vulnerabilidade social” (BRASIL, 2010). Lembremos aqui também do prédio que fora construído no bairro para abrigar a Casa Abrigo à Mulher Vítima de Violência, chamado pelos moradores de Delegacia da Mulher, mas que nunca foi utilizado e está abandonado. A presença e atuação dessas instituições dizem algo sobre o local e, portanto, o entendimento do bairro como área de “risco social” não se restringe ao âmbito local, mas também nacional, o que pode ser notado a partir de ações de organismos dessa abrangência. Exemplo do discurso corrente sobre o bairro Frei Damião são os trabalhos de Silva (2010) e Pereira (2009) que assim caracterizam o local sem antes apresentarem informações empíricas, como, por exemplo, estatísticas: “alto índice de desemprego”, “grande número de trabalho infantil”, “enorme incidência de prostituição, marginalização e grande parte da população desqualificada para o mercado de trabalho”, “as famílias dos alunos são pouco estruturadas, com muitos filhos, falta de convivência familiar e muitas mães adolescentes”, “comunidade carente”, “bairro considerado pela UNICEF como de risco para crianças e adolescentes” (SILVA, 2010, p. 6-7), “alto índice de roubos e furtos como também a violência urbana”, “evasão escolar que atingem altos índices no bairro” (Sic) (PEREIRA, 2009, p. 42; 45). Esse é, sobretudo, o imaginário que foi constituído a respeito do bairro e de seus moradores.

107

Essa avaliação moral do bairro e de seus habitantes não está ancorada, ou não encontra reflexo, em dados estatísticos. Não que para esse tipo de julgamento seja necessário tal materialidade. No capítulo I, ao tratarmos dos dados do censo demográfico de 2010 de alguns bairros da cidade, até o considerado nobre, vis-à-vis o Frei Damião, percebemos não haver contrastes significativos entre indicadores como o de rendimento e cor. Encontramos diferenças relevantes apenas no grau de alfabetização e no destino dos resíduos sólidos (utilização de fossa rudimentar). Já os dados que possibilitassem mensurar a violência não foram disponibilizados pelos órgãos competentes. Ainda no mesmo capítulo, tratamos da cartografia local, que está muito distante do tradicional aspecto urbano que guardam as favelas/periferias brasileiras (com ruas tortas, sem sinalização, em áreas de grande declividade, um verdadeiro caos) e mesmo em relação aos demais bairros de Juazeiro do Norte, construídos sem planejamento urbano. Desse modo, acreditamos mais ainda que esse imaginário de favela/periferia foi fundado inicialmente já no próprio projeto de criação de uma comunidade, ou seja, em torno do Movimentos dos Sem Teto, e posteriormente perpetuado ao redor do espaço físico e social que se conquistou. Isso nos leva a crer que a periferia é uma produção discursiva, não sendo sempre algo acima de um morro, próximo ao mangue, na área de risco. Como consideramos em trabalho anterior: A equação, ocupação – pobreza – violência – favela, resulta no que estou chamando de gramática do risco social 54. Um conjunto de discursos, de imagens, práticas, formas de pensamento, de apreensão e apreciação que condicionam e permitem a leitura do contexto a partir da recorrência a termos já exauridos, mas sempre acessados incansavelmente: “área periférica”, “bairro populoso”, “bairro violento”, “pobre”, de “risco social”, “vulnerabilidade social”, “bairro periférico”. Gramática esta que descreve e apresenta o bairro para todos (FEITOSA, 2012, p. 30).

Como notamos, a partir dos enunciados proferidos em referência ao bairro e das ações estatais ali implementadas estrategicamente, práticas discursivas e não-discursivas se

54

Ajuda a pensar nesses termos a seguinte consideração de Luiz Antonio Machado da Silva (2010, p. 93): “[...] o enquadramento coletivo de um problema deriva de e corresponde à produção de uma linguagem (uma „gramática‟) prática que contém um amplo repertório de variações possíveis”.

108

imbricam na constituição do bairro Frei Damião como favela/periferia 55. Nossos entrevistados, em falas como as transcritas acima, demonstram que os moradores nem sempre comungam com essa linguagem. Em paródia à música “A casa”, de Vinicius de Morais, alunos da nona série do ensino fundamental do CAIC elaboraram o seguinte texto no qual se nota o tom de contraponto às “críticas” de que o bairro é alvo.

Figura 16: Paródia à música “A casa”, feita pelos alunos do CAIC. Fonte: Disponibilizado pelos autores, 2010.

Cientes da possibilidade de serem associados à imagem de periferia, de favela, as lideranças do MST se esforçaram para que o bairro assim não fosse caracterizado. Prova disso é a organização espacial adotada no bairro, que não surgiu de modo espontâneo. A disposição 55

Como considera Albuquerque Jr. (2011, p. 34-35), em referência à região Nordeste do Brasil: “Tanto na visibilidade quanto na dizibilidade articulam-se o pensar o espaço e o produzir o espaço, as práticas discursivas e não-discursivas que recortam e produzem as espacialidades e o diagrama de forças que as cartografam. Definir a região é pensá-la como um grupo de enunciados e imagens que se repetem, com certa regularidade, em diferentes discursos, em diferentes épocas, com diferentes estilos e não pensá-la uma homogeneidade, uma identidade presente na natureza” (Ibid., p. 34-35. Grifos do original).

109

dos lotes de casas, os quarteirões e a dimensão ampla das ruas foi planejada meticulosamente antes da construção das habitações. Isso ocorreu para que futuramente o local não se tornasse uma periferia, como já foi observado anteriormente (vide capítulo três, supra) em falas como essa: “O Movimento procurou que não se tornasse um bairro de um amontoado de casa, mas um bairro de gente pobre, mas bem organizado” e houve “todo um trabalho para que se nascesse um bairro e não uma favela” (Chico Gomes). Quanto a esse aspecto, seu De Jesus, como também o faz Chico Gomes, enaltece a imagem de grandeza e organização do bairro a partir de elogios recebidos de ex-prefeitos municipais que o veem como cidade: “É, agora ali é uma cidade”, “Hoje o Parque Frei Damião é uma cidade, que Salviano disse: „deixe bagunçar o Mutirão da Vida não, que o Mutirão da Vida é uma cidade‟”. Como já se pode entrever, os moradores e o movimento social que originou o bairro procuraram escapar da imagem de periferia que por ventura viesse a ser associada a ele. Fizeram isso ao criarem um bairro planejado. Entretanto, se mesmo assim não conseguiram ser percebidos como “bairro” e sim como favela, resolvem enaltecer o bairro e o comparam com uma cidade. Não somente essas estratégias foram e são acionadas como negociação dessa imagística. Ela é administrada, já que não se consegue refutá-la, também a partir de nomeações diferentes e com sentidos diferentes do bairro Frei Damião. Ela é administrada também na segmentação do espaço físico e social do bairro e na atribuição de nomes distintos a cada um dos segmentos, uma vez que não se consegue afastar a periferia do bairro, se afasta de determinados espaços do bairro para outros, criando, assim, níveis de periferia no seu interior, periferias em um bairro de periferia. Vejamos os sentidos que guardam as diferentes nomeações que foram atribuídas ao bairro.

2 Sentidos da nomeação

Se a produção do bairro Frei Damião na cidade é relativamente recente, com pouco mais de duas décadas, sua produção social como bairro é mais recente ainda. Seu lugar na cidade sempre foi dúbio. Somente a partir de lei municipal do ano de 2009 (Lei 3.535) é que seu nome e seus limites estão definidos entre os demais bairros da cidade. Anteriormente, uma lei de 2000 (Lei 2.569) o denominava de Mutirão I e II e sua demarcação não estava clara. Antes dessa lei, havia a Lei 1.617, de 1991, que instituía os bairros da cidade. Nesta, o Frei Damião não estava listado, sendo sua área atual contemplada pelos bairros São José e

110

Jardim Gonzaga, atualmente adjacentes. Além de seu território de hoje estar associado a esses dois bairros naquele momento, sendo ora indicado pelo nome de um, ora pelo do outro, o que atualmente é bairro Frei Damião ainda recebia a denominado de Parque Mutirão da Vida, ou somente Mutirão e a referência a esse nome nos documentos legislativos sempre se dava tomando-o como bairro, mas sem mencionar a palavra, aplicando, em vez disso, o termo Parque. Os documentos oficiais o denominavam também de Parque Nossa Senhora das Dores e ainda houve tentativa, por parte do poder legislativo municipal, de denominá-lo de Parque Januário Macêdo. Quando a Câmara Municipal aprovou a denominação de Parque Januário Macêdo para o então denominado Parque Mutirão da Vida, em maio de 1993, a “Associação do Bairro Mutirão da Vida” elaborou um abaixo-assinado com 540 assinaturas de moradores e solicitou ao Prefeito Municipal não sancionar a lei. O ofício com o abaixo-assinado assim dizia:

Insatisfeitos com essa informação os moradores, em peso, como provam as assinaturas que estamos enviando, se dirigem a V. Exa. para lhe pedir que faça o que lhe fôr possivel para não deixar que cometam conosco essa barbaridade. Nós gostamos do nome que o nosso bairro tem, e achamos bonito e cheio de significado, e queriamos, de todo coração, que ele não fosse mudado nunca. E se os senhores Vereadores, que segundo nos informaram, é quem determinam essas coisas acham que isso não pode ser, que o nome é feio ou inconveniente é por isso tem que ser mudado, - nós embora com muita pena porque, como dissemos, achamos o nome bonito e queriamos ficar com ele,- pedimos que pelo menos seja colocado o nome de alguém que diga alguma coisa para nós e tenha alguma coisa quer ver com a nóssa vida. Por exemplo, DOM VICENTE ARAÚJO MATOS, ex.Bispo do Crato, que foi o doador do terreno em que habitamos e assim tornou possivel com sua generosidade pessoal, a formação da nossa comunidade. Esse nos poderiamos aceitar mais conformados. Mas um desconhecido total para nós, totalmente alheio à nossa vida, - por amor de Deus não! [Sic].

Como se nota nessa passagem, o nome Mutirão da Vida tinha uma simbologia positiva para os que na época habitavam o bairro, já que apreendia o local como projeto coletivo das camadas populares de Juazeiro do Norte, algo pensado no manifesto que propunha a constituição do local, como apresentado anteriormente (vide página 88). Januário Macêdo é irmão do atual prefeito do município, Raimundo Macêdo, que na época do movimento era deputado estadual. O prefeito do município naquele ano, Manoel Salviano Sobrinho, vetou a lei, justificando em ofício da seguinte forma: “[...] deixei de conferir-lhe expressamente a sanção, face a compreensão de que a população residente no referido Parque não foi consultada previamente”. Este argumento foi apresentado pelos próprios moradores ao encaminharem o abaixo-assinado. Todavia, não sei se o veto do

111

Prefeito foi anulado pela Câmara Municipal de Vereadores, uma vez que a lei de 1998, que atribuiu o nome de Parque Frei Damião ao bairro, revoga a lei anterior, de 1993, que nomeava o local de Parque Januário Macêdo. Foi em fevereiro de 1998 que houve a alteração do nome Mutirão para a sua designação atual de bairro Frei Damião. Mesmo com a mudança oficial, as duas denominações passaram a coexistir, sendo o local ora indicado como Mutirão, ora Frei Damião. A primeira ainda é muito usual e se refere, segundo uma moradora que explicava a diferença para um passageiro do ônibus, como comentado no primeiro capítulo, à época em que o bairro não tinha ruas calçadas, escola, posto de saúde. Como ela dizia: o nome “é da invasão”. Época em que o bairro era uma “comunidade”. Frei Damião, para ela, já se refere ao bairro, este tendo os equipamentos antes ausentes56. Essa reflexão da passageira do ônibus sobre bairro e comunidade, ou seja, Frei Damião e Mutirão da Vida, retoma o ponto tratado anteriormente, em que bairro toma um sentido oposto ao de favela (comunidade e Mutirão da Vida) ao significar uma área que fora planejada, inclusive, de modo a se distinguir de tal (“um trabalho para que se nascesse um bairro e não uma favela”). Já comunidade, logo Mutirão, está mais para favela, periferia do que bairro, do que Frei Damião. Articulada com essa percepção acerca do que seja um bairro, Chico Gomes, ao se referir às condições existentes hoje na Baixa da Raposa, diz: “Hoje tá todo [o bairro Frei Damião], quase todo asfaltado, tem alguns trechinhos de rua que ainda não tá asfaltado, todo asfaltado, até na Baixa da Raposa hoje tem uma estrutura de bairro, posto de saúde, colégio, creche, enfim, uma linha de ônibus que atende precariamente, mas tá atendendo”. Essa apreensão do local a partir da categoria bairro, portanto, não deve escapar à análise. A Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte demorou aproximadamente uma década, após o surgimento do local, para incluir o bairro Frei Damião na listagem geral dos bairros da cidade, o que ocorreu no ano 2000, embora ainda com o nome Mutirão da Vida. Dois anos antes, definira como Frei Damião a região que até então era alvo de distintas tentativas de nomeação. E, somente em 2009, portanto 19 anos após a ocupação e 11 anos depois da última alteração de nome, é que sua forma de denominação aparece nas leis da cidade. Se Frei Damião dá um sentido de bairro ao que até então era uma comunidade, estando essa palavra muito próxima de favela, essa passagem revela um deslocamento na forma de conceber e 56

A relação e alternância entre os nomes bairro, comunidade e favela é constatada de forma recorrente por alguns estudos sobre periferias. Veja-se, entre outros, Mattos (2012), Sá (2012a), Leite (2001), Freire (2008).

112

apreender o lugar. Porém, como observaremos adiante, mesmo constando como bairro e com um nome novo, a imagem de periferia que recai sobre o local ainda é comum. Mesmo diante disso, acreditamos que essas transformações redefiniram a cidade (embora o próprio movimento que deu origem ao bairro já tenha feito isso bem antes, em 1990), quando esta, a partir da Prefeitura Municipal, integrou o bairro ao seu espaço, atribuindo-lhe um território e um nome determinado. Os processos urbanos desencadeados em outras cidades brasileiras, embora tenham suas especificidades, podem ter influenciado na dinâmica apontada no bairro Frei Damião. No Rio de Janeiro, onde as favelas foram constituídas desde muito tempo, mas não sempre, como questão, elas passaram a constar nos mapas e cadastros da cidade, onde até então estavam ausentes, a partir do Plano Diretor de 1992 (BURGOS, 2006). Em outro momento, com o Programa Favela-bairro, constituído em 1993, o objetivo era “„construir ou completar a estrutura urbana principal (saneamento e democratização de acessos) e oferecer as condições ambientais de leitura da favela como bairro da cidade‟ (prevendo portanto um reassentamento mínimo); a „adesão dos moradores‟; e a „introdução de valores urbanísticos da cidade formal como signo da sua identificação como bairro‟” (Geap, 1993 apud BURGOS, 2006, p. 49). Essas mudanças no nome do bairro Frei Damião e a tentativa de modificar sua nomeação, por parte dos poderes legislativo e executivo, dão-se como ato e exercício de poder em que se procura sair do profano para o sagrado, revisitando o passado em relação ao presente e futuro. Como nos diz duas das nossas entrevistadas, sendo que a primeira participou do movimento que deu origem ao bairro e a segunda morando no local há cerca de 10 anos: [...] eles mudaram o nome, lógico que é um jogo político você tirar de Mutirão pra Frei Damião, é você mexer numa estrutura política de ideologia, né, as palavras elas têm um peso ideológico. Então, Mutirão você quer dizer um monte de gente que se junta, que se organiza, que são capazes e Frei Damião é um santo da cultura do povo, né, então assim, o povo é devoto de Frei Damião, é um frade capuchinho, muito sensível às questões sociais, muito missionário, tem uma relação com Padre Cícero, tem uma relação com a própria cidade e com o imaginário popular. Então a mudança não foi uma mudança porque o povo decidiu assim, não, foi uma mudança política, o conceito de..., um jogo de palavras que têm um poder ideológico muito grande né, você afirma, você cria um nome ideológico e você coloca um nome da crendice popular. Isso pra o povo não perceber, porque se mudasse o bairro pro nome do Prefeito, o pessoal logicamente, automaticamente não ia aceitar (Nininha).

113

Suzana: Eu acho que Mutirão no começo era porque foi um monte de gente, a partir de um monte de gente que veio morar aqui aí depois eu acho Mutirão ficou meio pra trás, ficou meio... já que tinha muita gente, então ficou Frei Damião [...]. Lucas: Quando as pessoas falam Mutirão, tu acha que elas pensam o quê? Suzana: É né? Ele ainda continua conhecido por Mutirão. Eu acho que elas [as pessoas] devem saber que é Frei Damião. Agora, não acho que elas sabem, agora não têm assim muita... não sei. Mas é meio chato porque a pessoa “Mutirão [dá ênfase ao pronunciar a palavra], sei lá, uma coisa de muita gente que faz bagunça. Lucas: Você acha que as pessoas veem assim? Suzana: Eu acho que é. Ah, é Mutirão, é perigoso, num sei o quê e tudo (Suzana).

Essa argumentação de Suzana conflui com a exposição de Chico Gomes sobre a alteração do nome:

Aí, Valmir Domingo, quando foi vereador a primeira vez, ele fez um projeto pra mudar o nome de Mutirão da Vida para Frei Damião, com a desculpa que Mutirão dá a ideia de, de greve, de coisa feia, de luta, de bicho feio, de bicho feio. Aí vieram me dizer aqui: “Chico, a gente tem que ir pra Câmara de Vereadores pra impedir que seja mudado o nome de Mutirão pra Frei Damião”. Aí a casa aqui cheia de gente, eu digo: “Vocês querem saber de uma coisa, Frei Damião foi um grande missionário franciscano, capuchinho, pra onde Frei Damião ia era um verdadeiro mutirão, era gente que só formiga, um puxava o cabelo, outro beliscava pra saber se ele era vivo ou se ele era um anjo ou o que que ele era. Então Mutirão da Vida e Frei Damião...” Eu digo: “Sabe o que vocês fazem, faz o seguinte, o importante é sua casa. Você tem alguma coisa contra Frei Damião?‟ “Não”, “Então deixa botar Frei Damião”. Porque tinha um projeto pra colocar o nome de um irmão de Raimundo Macêdo. Aí, aí a gente ia se meter, aí a gente ia se meter pesado, se fosse levado adiante isso aí. Orientou que o pessoal fizesse baixoassinado e fosse pra não colocar. Mas Frei Damião, Frei Damião, Frei Damião era sinônimo de multidão e quando nós entramos aqui foi uma multidão e ainda hoje é uma multidão 57. Pra você ter uma ideia, o primeiro nome daí, quem deu o nome daí foi o Padre Cícero, não registrado em cartório, mas... Lucas: Qual o nome? Chico Gomes: O nome daí é Baixio das Almas e lá a Baixa da Raposa. Aí eu brincava com o povo: “Ó, o Padre Cícero colocou o nome Baixio das Almas porque ele sabia que aqui ia se encher de alma”. Que aqui era deserto, deserto do Saara, só tinha areia, mas, ele sabia que ia se encher de alma, mas almas vivas e que lutam pra viver, entendeu. E lá Baixa da Raposa, é a parte que ficou com o governo. Quem é a grande raposa? A sabedoria do padre Cícero é uma coisa assim...

Todavia, Suzana admite que a mudança no nome do bairro não alterou a forma como as pessoas o veem. Ao perguntar-lhe que imagem as pessoas têm do bairro, ela diz:

57

Frei Damião (1898-1997) foi um frade italiano, da Ordem dos Capuchinhos. Chegou ao Brasil em 1931 e aqui faleceu. Devotou-se a evangelização com a realização de Santas Missões por todo o Nordeste, chegando a passar por Juazeiro do Norte. (Disponível em: . Acesso em: 27 jan. 2014).

114

É quem nem eu disse agora há pouco, que antes o povo via o bairro como Mutirão e via que era muito perigoso, ainda continua nisso, aquela visão de antigamente: “Aí é perigoso porque num sei o quê, porque tem isso”. E não é isso, porque em todo canto que você chegar vai ter sempre uma pessoa que faz o mal, outra pessoa que faz o bem e aqui tem isso, tem as pessoas que fazem o bem e as pessoas que fazem o mal. Lucas: Você acha que não mudou essa visão das pessoas? Suzana: Não.

Mutirão, lembremo-nos, é uma forma de mobilização e organização que fora adotada pelos movimentos sociais/classes populares, dentre outros grupos. Essa forma de trabalho cooperado foi empregada na construção de habitações em áreas de ocupação (Cf. RIZEK; BARROS, 2006). A intenção daqueles que pensaram o Movimento dos Sem Teto também era essa, de construir as casas em “regime de mutirão”, como está apontado no segundo item do “manifesto” intitulado “Projeto alternativo habitacional da população de Juazeiro do Norte”, como citado anteriormente (ver página 88). Em função disso, e como já apontam as análises de nossos interlocutores, as disputas em torno da significação do local a partir do nome a ele atribuído ou da apropriação (numa dimensão da linguagem em sentido simbólico e prático também) do bairro a partir de seu nome, procura, a um só tempo, mas com participação de agentes distintos e até mesmo antagônicos, visibilizar a história do local e de sua gente ou ocultar/negociar a condição de sua origem e de seu povo. Por um lado, temos, agindo, o Movimento Social que o originou, por outro, a Cidade, sua representação administrativa (a prefeitura). A aplicação do nome Mutirão da Vida tem a seguinte origem, como nos diz Chico Gomes:

Quando eu tava lá em São Paulo, tinha um movimento grande de duas mulheres nordestinas em Vila Nova Cachoeirinha que, o movimento moradia, né, e elas chamavam sempre de mutirão, mutirão, aonde tinha obras, quando era favela mesmo o povo, anoitecia o terreno vazio, quando era meia noite vinha os padres com todo mundo, madeirite e pá, pá, pá, jogava, é favela aí ninguém ia construir, já era aí na doida. Todo assentamento de moradia lá em São Paulo onde se construía as casas se chamava de mutirão. Aí aqui nós fizemos essa adaptação, Mutirão da Vida. Agora, a sociedade não gostou. Eu digo a sociedade, o poder executivo e o poder legislativo da época. Carlos Cruz era prefeito, foi prefeito, no ano seguinte teve eleição, foi quando doutor Mauro ganhou. Aí Carlos Cruz não gostou, a câmara, o executivo não gostou, vou tirar o nome das pessoas, o executivo não gostou da palavra Mutirão, o legislativo. Que Carlos Cruz também ainda hoje, ainda hoje Carlos Cruz, quando a gente conversa, ele chama é o Mutirão da Vida, Carlos Cruz, doutor Mauro, Salviano também sempre fala Mutirão. Mas a iniciativa foi mais do legislativo, a partir desse projeto de Valmir Domingos, porque Valmir Domingos morou um período aqui, ele fez a casa dele ali, ele veio do Romeirão pra cá, achou que o, fez

115

um plano funerário, achou que com esse plano funerário o povo ia reeleger ele vereador e não se reelegeu, aí se enfezou, vendeu a casa dele para seu Manoel taxista e foi simbora, fez apenas o favor de mudar o nome do bairro.

Essa definição do nome para o povoado, todavia, precede a própria ocupação da propriedade da Igreja, uma vez que surge primeiro em um manifesto entregue ao Prefeito Municipal, durante a primeira manifestação que realizaram pelas ruas da cidade, em julho de 1990. Após a entrega dos lotes às famílias, coube a estas a tarefa de realizar a construção, sem que atividades coletivas e organizadas para tal fim fossem programadas, como estava previsto no manifesto. Em alguns casos, pessoas se solidarizaram com a causa e doaram material para construção. Porém, muitas famílias não tiveram como construir imediatamente, o que acarretou, em alguns casos, em venda do lote e em apropriação indevida por terceiros. A prática do mutirão foi adotada na “terceira etapa” do bairro, ou seja, na área que corresponde à Baixa da Raposa, a partir de projetos habitacionais públicos desenvolvidos na gestão municipal compreendida no período de 1997 a 2000. De todo modo, Mutirão é uma nomeação que surge como sendo positiva ou neutra aos olhos de alguns moradores e participantes do MST e a outros negativa, acentuando a tônica do estigma. A palavra, assim, comporta uma ambiguidade para os moradores: por um lado, apresenta um sentido positivo ao encarnar uma história de luta e, por outro, a palavra é lida a partir de uma orientação moral, do que ela encarna como sendo essa luta uma demonstração de despossuídos, de invasão da propriedade alheia, do próprio conflito que resultou (Cf. FRANCH, 2008, p. 85). Se ainda é recorrente a utilização dos dois nomes, Mutirão e Frei Damião, é difícil especificar os motivos que levam os moradores a acionarem um em vez, ou mesmo, em detrimento do outro. Um recorte geracional pode ser atribuído, embora com certa cautela, uma vez que alguns dos residentes atuais no bairro não acompanharam seu surgimento ou não conhecem sua história. Se considerarmos dentro desse universo aqueles moradores que têm até 23 anos de idade, ou seja, que nasceram no mesmo ano em que o bairro teve início, 1990, estes representam 53,18% da população total. É ilustrativo desse aspecto geracional a paródia escritas por alunos do nono ano do ensino fundamental do CAIC (ver página 108) e a seguinte narrativa de Aílton, que tem 20 anos de idade, quando lhe perguntei sobre o que ele sabia da história do bairro: Começou por um padre, mesmo, que esse terreno aqui era tudo de um padre, isso daqui tudo era de um padre, não sei te falar como é o nome do padre, como é o nome da igreja, mas era de um padre que tinha umas pessoas que tavam loteando, roubando, não sei lá como era, loteando, sei lá, invadindo os terreno. Aí o padre chegou, chegou a conversar com esse povo, que era da

116

igreja também, e chegou a dizer: „oh, eu tenho uns terrenos em tal canto e tal e tal, vão lá que é seu, é de vocês‟. Aí começou por isso, tá entendendo? Esses terrenos aqui não têm..., „não essa casa tá em meu nome‟, a casa sim, do tijolo pra cima tá, mas o nome do terreno, não tem nome, aqui não tem nome de terreno não, tá no nome do padre esses terrenos tudo aqui. Não tem a escritura do terreno. Chegou a fundar mais por assim também, por as pessoas tá querendo terreno, o padre adiantou e tudo. Bom, o que eu sei é isso.

Como se vê, contada por Aílton, a história do bairro Frei Damião é menos institucionalizada, bastante distinta da história narrada pelas lideranças à frente do movimento social que fundou o bairro, desconhecendo fatos como o movimento que mobilizou a ação, o local onde se deu a ocupação e as relações nada fáceis com os líderes políticos e religiosos locais. Por outro lado, sua narrativa conflui com aquela fala de dona Sebastiana em que dizia como o povo que ocupou as terras da igreja de Nossa Senhora das Dores “ficou na história”. Ficaram “como vandalismo, como bandidos, como desocupados”. Aílton oscila entre “loteando, roubando e invadindo os terrenos” que pertenciam a um padre para sugerir que o bairro surgiu a partir de uma ocupação de terra. Acreditamos que o entrelaçamento entre tantas práticas, enunciados e eventos constituíram e perpetuam a imagem de periferia/favela na forma de conceber o bairro. A organização socioespacial do bairro Frei Damião em três territorialidades distintas também reflete essa imagística de periferia imputada ao local, como veremos a seguir.

3 Estratificações socioespaciais

Como demonstrado nos capítulos anteriores, sobretudo no primeiro, a área que elegemos para o presente estudo, como aproximadamente 3,3 km de extensão e 200 m de largura, é dividida no que denominamos de territorialidades. Ao todo, no bairro existem três: Vila Real, Frei Damião e Baixa da Raposa ou Baixa da Esperança. No capítulo I, apresentamos as características de cada uma e percebemos que o bairro Frei Damião como um todo não é homogêneo, uma vez que cada territorialidade apresenta dinâmicas próprias, ao mesmo tempo em que são diversificadas internamente. Vale considerar, um pouco além, que rejeitamos a homogeneidade a que nos referimos não apenas por ponderarmos esse elemento. Também não homogeneizamos o bairro ao considerarmos que não podemos criar uma fala sobre ele tomando como eixo a violência, como se faz correntemente no tratamento de regiões consideradas como periferia/favela. Aqui, consideramos necessário eleger outras formas para

117

tornar o bairro inteligível, no caso, as práticas sociais de seus moradores, relegando a violência como alegoria exemplar da periferia. Além das diferenças urbanas e do padrão arquitetônico das residências, das diferentes intensidades da vida social local, como se observou no presente capítulo, cada territorialidade têm uma gênese própria. A área conquistada pelo Movimento, bem como seu povoamento, tem início na territorialidade Frei Damião. Ali foram construídas as primeiras habitações dos cadastramos no movimento social, que vão se estendendo aos poucos pelo restante da propriedade. A Baixa da Raposa, que recebeu essa denominação há muito tempo, foi povoada posteriormente, inclusive a partir de projetos habitações executados pelo Estado. Além disso, essa área, embora estivesse inclusa no patrimônio de Nossa Senhora das Dores que fora doado ao MST, foi repassada à Prefeitura Municipal como exigência à doação das terras pela Igreja e em contrapartida à retirada dos processos movidos contra o Movimento. No caso da Vila Real, sua área nunca pertenceu ao Movimento, mesmo sendo do patrimônio da Igreja e estando adjacente à área doada aos sem teto. Seu espaço fora colocado à venda em 1991, uma vez que a Igreja temia que as pessoas do Movimento, que já habitavam na região doada, resolvessem tomá-la. Essa parte do patrimônio de Nossa Senhora das Dores não foi doada ao MST, uma vez que se encontrava próxima da Avenida Padre Cícero, logo, era imóvel valorizado economicamente pela especulação imobiliária. Daí que foi vendida. Essas particularidades dão margem a processos de diferenciação internas ao bairro. Mas estas diferenciações são produzidas também como negociação da imagem de periferia, tanto é que além de serem segmentos de uma mesma região, receberam nomes distintos e com isso, sentidos diferentes. Vale dizer que as pessoas se autodenominam como moradores seja da Vila Real, para os que lá residem, seja do Frei Damião e Baixa da Raposa, e o fazem se referindo a essas áreas como bairros. “Os outros se consideram mais Vila Real”, comentou Aílton. Esse ponto nos remete aos mapas elaborados pelos próprios moradores, como apresentado no primeiro capítulo. Confluindo com isso, temos também a indicação da localização da capela no material de divulgação das suas festas religiosas. No caso da divulgação da festa de Nossa Senhora das Candeias, temos: “Somos uma das onze capelas que compreende a Paróquia de São João Bosco, localizada na rua Poeta Vitorino Vicente entre os bairros Frei Damião e Vila

118

Real” (Sic). Dona Helena contou: “Aqui é a primeira Vila Real, daqui pra trás”, “A primeira Vila Real é onde eu moro”58. Especificamente sobre a Vila Real, observou Pereira:

Notadamente percebemos no bairro Frei Damião, uma divisão interessante, alguns metros antes da antiga capela, mas precisamente na rua Manoel Tavares até a rua Poeta Vitorino Vicente, local onde começou o povoamento do bairro, existe um loteamento onde as pessoas dizem que não moram no mutirão, e sim moram na “Vila Real”, mas nem o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e nem a secretaria de infra-estrutura, tem alguma coisa registrada com essa denominação, na realidade tudo não passou de uma jogada das imobiliárias, um caso comum de especulação imobiliária, pois surgiu depois que o bairro já estava estruturado com alguns equipamentos urbanos como, iluminação, água, calçamentos e transportes e etc. Prática comum entre as imobiliárias que funciona da seguinte forma: “a simples ocupação de alguns terrenos já faz aumentar o preço dos demais lotes valorizando o loteamento, esta é uma forma de ocupação programada, onde é também comum deixar-se lotes estrategicamente localizados para a instalação de serviços e comércios”. Rodrigues, (1989), mostra nesse loteamento é uma situação econômica por parte dos seus moradores um pouco melhor que o restante do bairro, que é percebida pelas estruturas das casas, que os habitantes possuem melhores condições (PEREIRA, 2009, p. 44-45). [Sic. Grifos meus].

A divisão da área do bairro não é apenas de ordem geográfica. A sucessão dessas secções representa, antes, clivagens diferenciadas de status sociais, apresenta fronteiras e estratégias de lutas simbólicas em que se procuram criar distinções e impingir, ao outro, símbolos de inferioridade, criando imagens de si e do outro (ELIAS; SCOTSON, 2000 [1965]; MATOS, 2004) entre as três territorialidades. Ou seja, as subáreas existem como uma escala de gradação, hierarquia de lugares – como apontado na citação acima por Pereira, na Vila Real “[...] as pessoas dizem que não moram no mutirão, e sim moram na „Vila Real‟” (Sic). Isso parece indicar fronteiras simbólicas que são postas em luta e disputa entre os moradores. Residir em uma ou outra dessas áreas é ser associado a níveis diferenciados de prestígio, de estados de pobreza. Assim, a Baixa da Raposa é “a favela” por excelência, local de bandidos, como me disse certa vez Aílton. Outro interlocutor em campo contou-me que ações assistenciais acontecem com mais frequência lá. “Essas coisas, só na Baixa da Raposa mesmo”, comentou o barbeiro enquanto cortava meu cabelo e assistia a uma reportagem sobre apreensão policial de drogas e armas na Baixa da Raposa.

“Primeira Vila Real” é uma distinção que dona Helena faz quanto à segunda Vila Real, localizada em propriedade antes pertencente ao Patrimônio de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. 58

119

Enquanto isso, a Vila Real seria o local mais nobre, aristocrático, como indica o próprio nome. Em relação a essa territorialidade, conversando com uma amiga que reside na Baixa da Raposa, a mesma ficou surpresa quando eu comentei que a Vila Real, no mapa da Prefeitura, integrava o bairro Frei Damião. Sabendo disso, disse que iria passá-la às amigas dela que residiam na Vila Real, o que me pareceu um comportamento de defesa às críticas feitas pelas amigas devido ao fato de ela morar na Baixa da Raposa e também para não deixar que a Vila Real seja eximida ou se exima de pertencer ao bairro Frei Damião. Como já se pode notar, a polarização manifestada nas falas dos nossos interlocutores reside, especialmente, entre a Vila Real e a Baixa da Raposa. A primeira é tida a partir das “casas boas”, “bem organizada”, onde “a situação econômica dos moradores é melhor” do que no restante do bairro, onde “as pessoas dizem que não moram no Mutirão”. Enquanto isso, a Baixa da Raposa é pensada como “baixa”, com moradores de “classe pobre”, onde “o povo diz que se juntou muitas pessoas que gostavam de pegar no que era dos outros, que vinha dos outros cantos, de São Paulo, desse mundo, e se escondia aqui”, onde a situação “é o pior”, com “gente considerado como mais ruim e tudo”, chamada de Baixa da Raposa porque “raposa é um bicho sabido”. Essas caracterizações surgem, muitas vezes, em contrates. Daí que nelas há um princípio relacional de complementaridade 59. A classificação, diferenciação espacial e hierarquização que encontramos no interior do bairro Frei Damião, manifestada claramente ao se atribuir nomes distintos, marcos de fronteira e características a cada espaço, é também uma classificação, distinção e hierarquização das pessoas que ali residem 60. Como indicado na descrição inicial do bairro, nas territorialidades os aspectos estéticos e de infraestrutura das residências dos moradores e a condição das ruas são decrescentes no sentido norte-sul, logo Vila Real - Baixa da Raposa (vide imagens das três áreas, nos anexos). Mesmo que essas mudanças sejam visíveis ao longo da extensão do bairro e que existam pontos de demarcação utilizados pela maioria dos moradores para dividir as áreas, essas fronteiras, às vezes, são borradas, seja a partir de práticas sociais que operam outras segmentações, como é o caso das comunidades religiosas de que falamos no capítulo II, ou das falas dos moradores, que oscilam as fronteiras.

Elias e Scotson assim consideraram para a comunidade de Winston Parva: “Sob muitos aspectos, a atitude e a visão dos estabelecidos e dos outsiders inelutavelmente aprisionados na interdependência de seus bairros, eram complementares. Tendiam a se reproduzir e a reproduzir umas às outras” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 164). 60 Aprendemos com Durkheim e Mauss (2001) que classificar coisas é classificar os humanos. 59

120

Essa imprecisão espacial (geográfica) e cognitiva (enunciado) pode ser entendida como uma forma de irmanar-se a um e rivalizar com outrem, criando e agenciando pertencimentos, erigindo fronteiras simbólicas, o que fica claro em relação à Baixa da Raposa quando os moradores se referem a ela como “lá pra cima”, “lá” e “lá em cima”. Essa dificuldade em criar limites precisos de fronteira ou o tensionamento desses limites se dá, sobretudo, entre a Vila Real e o Frei Damião, embora a maioria dos moradores utilizem a Primeira Rua ou Rua da Capela de Nossa Senhora das Candeias, como marco. Assim, parece haver um espaço em que a fronteira está borrada. A fronteira é mais clara entre o Frei Damião e a Baixa da Raposa, não somente porque tem a caixa d‟água como delimitação, mas também porque o asfalto, que até então acompanhava praticamente todas as ruas, dá espaço a calçamentos, quando existentes. A arquitetura e estrutura das casas também atuam como sinalizadores dessas diferenças sociais, como já indicara Norbert Elias (2001b). Não quero dizer com isso que não existam, na Baixa da Raposa, casas com o mesmo padrão das que há na Vila Real. O que destaco é que enquanto na Vila Real a predominância é de casas com muros altos, cerca elétrica, garagem e fachada recoberta com cerâmica, na territorialidade Frei Damião e, de modo mais acentuado, na Baixa da Raposa, esse padrão constitui quase que exceção. Assim, predominam na Baixa da Raposa casas de arquitetura mais simples, rudimentares até mesmo, sendo que algumas foram construídas a partir de programas habitacionais financiados com recursos públicos. Essa questão da flutuação, ocasional, dos limites entre as três territorialidades revela, mais uma vez, a fricção entre diferentes mapas nativos, inclusive a revelia do mapa oficial. Ao tempo em que há um consenso sobre onde se localiza o bairro Frei Damião, no caso, o retângulo onde as habitações dos moradores estão mais densamente concentradas, há, por parte de alguns, um desconhecimento, ou conhecimento, sobre o pertencimento ou não da Vila Real à área do bairro. Dois exemplos já foram apontados anteriormente. O primeiro diz respeito ao mapa do seu Olavo, apresentado no capítulo I (figura 02, p. 34). Ali, a Vila Real integra a região do bairro, e não tem, como as demais territorialidades, a indicação de seu nome, mas apenas dos pontos de inflexão. Já noutra cartografia nativa (figura 04, p. 48), a autora, Ana Ruth de Melo, distingue cada uma das territorialidades, porém, destaca a Vila Real como bairro, restando, portanto, apenas Frei Damião e Baixa da Raposa como áreas do bairro Frei Damião. Poderíamos considerar aqui, mais uma vez, o fator geracional, uma vez sendo seu Olavo um senhor de idade avançada, antigo habitante de Juazeiro do Norte e morador há mais

121

de uma década do bairro Frei Damião. Enquanto isso, Ana Ruth tem pouco mais de 20 anos de idade e mora no bairro há menos de uma década. Todavia, a aplicação desse recorte aqui também apresenta limites, como também já ponderamos para o caso do acionamento dos nomes Mutirão e Frei Damião para denominar o bairro. Se o primeiro mapa parece ser mais plausível diante do segundo (e inclusive corresponder parcialmente a definição oficial do bairro), tendo como base o provável conhecimento histórico acumulado pelo ancião que é seu autor, em contraponto a aparência juvenil de quem elaborou o segundo, a fala61, que segue abaixo, de seu De Jesus o descredencia. Seu De Jesus tem tanto idade equivalente a de seu Olavo, como esteve engajado, desde o início, nas mobilizações que originaram o bairro, ou seja, também é portador de um conhecimento histórico.

Aí foi e surgiu o loteamento, venderam para a imobiliária, a imobiliária loteou e nem cemitério [foi feito]. Hoje nem é Parque Frei Damião, lá chama Vila Real. Mas que a igreja Nossa Senhora das Candeias não é no Parque Frei Damião, é na Vila Real. Parque Frei Damião é da estrada, da rua Poeta Vitorino Vicente à estrema de Barbalha, Francisco Martins de Souza é o nascente e Manoel Tavares Lopes ao poente.

Diante dessas diferentes leituras e significações do bairro, cabe dizer, mais uma vez, que não é nosso objetivo encontrar um consenso sobre um bairro verdadeiro e real. Interessa-nos pensar o que essas diversas elaborações dizem sobre o local e sua gente62. Em vista dessa dinâmica de estratificação social e física do bairro Frei Damião, tomamos como base o pensamento de Pierre Bourdieu (2012) para indicar que ali são mesclados os espaços sociais e os espaços físicos. Assim, a escala hierárquica encontrada entre a Vila Real, o Frei Damião e a Baixa da Raposa é a expressão de modos de objetivação e subjetivação das posições sociais que se exprimem (“traduzem”, para utilizar a palavra empregada por Bourdieu) na e pela cartografia. Esse espaço é mapeado, tanto nas estruturas espaciais como nas estruturas mentais, a partir da distribuição dos agentes e da distribuição dos bens e serviços, privados ou públicos. É a relação entre essas distribuições que define o valor das diferentes regiões do espaço social reificado, ou seja, a distribuição do capital social (BOURDIEU, 2012). 61

O trecho apresentado trata da ideia que seu De Jesus sugeriu a presidente da Associação de Moradores de construir um cemitério próximo à capela de Nossa Senhora das Candeias. 62 As espacialidades são comumente objeto de deslocamentos fluidos. Em estudo realizado no bairro Palmeiras, em Fortaleza, Geísa Mattos (2012) assim considera: “Os limites do „bairro‟ durante a campanha [eleitoral] podem se alargar conforme os contextos de uso, pois o que está em jogo na campanha eleitoral é a legitimidade da representação política baseada na ideia de identidade comunitária” (Ibid., p. 156).

122

Se essa diferenciação se dá de acordo com a “distribuição dos bens e serviços, privados ou públicos” (BOURDIEU, 2012, p. 160), no caso dos recursos públicos existentes no bairro, estes se concentram nas territorialidades Frei Damião e Baixa da Raposa. São serviços especificamente destinados a localidades de “vulnerabilidade social”. Assim, encontramos o CRAS, o CAIC, a Praça da Juventude, as ruínas de onde funcionaria uma “delegacia da mulher”, o prédio construído para sediar a Cozinha Comunitária, o Projeto Atleta Cidadão e o Segundo Tempo, todos localizados nessas duas regiões do bairro. São, de fato, equipamentos, mas que carregam a marca de destinados especialmente para áreas de “risco social”. Acrescentem-se a essas distribuições que Bourdieu menciona, as práticas sociais de que tratamos no segundo capítulo, os rachas e as capelas com suas novenas/festas. A sedimentação de um mapa mental e espacial envolve, no bairro Frei Damião, essas práticas, o trânsito dos sujeitos (caminhada) e dos santos/santas (procissão e noitários). Essa perspectiva tem algo a acrescentar à abordada por Bourdieu, uma vez que contempla aspectos mais cotidianos/espontâneos, e não somente institucionais/formais, embora esses elementos possam constituir o que ele define como capital social. Essa estratificação do espaço físico revela também uma estratificação social. Tal dinâmica pode ser observada inclusive nas nomeações que as diferentes áreas recebem. O fundamento dessa lógica se dá, em muito, por contraste ao serem criadas formas, entre as territorialidades, de se eximirem da imagem de periferia e a remeter a outrem. Nessa dinâmica, a Baixa da Raposa acaba por ancorar a imagem de periferia do local. A estratificação do espaço revela, então, níveis diferenciados de ser periferia, já que o bairro como um todo é assim considerado. Ao mesmo tempo, a de se considerar que muitas vezes a Vila Real é apresentada como bairro separado do Frei Damião, como um bairro em si. Entendemos que essa distinção da Vila Real e sua “externalidade” 63. do bairro Frei Damião não se deve apenas a fatores materiais, como o patrimônio arquitetônico e a condição financeira de seus moradores, mas também está associada ao seu não pertencimento histórico e territorial ao bairro, ao contrário das demais territorialidades. Ou seja, a forma como surgiu, a partir da venda de parcela da propriedade que então pertencia a igreja de Nossa Senhora das Dores e não como fruto da O termo “externalidade” é utilizado por Márcia Pereira Leite (2001) para o caso da exclusão da favela do bairro, o que difere do nosso caso. Diz a autora sobre o bairro Grajaú, na cidade do Rio de Janeiro : “É recorrente a sua localização [das favelas] por uma referência de externalidade em relação ao bairro, isto é, como favelas do Grajaú; quase nunca no Grajaú. O limite é marcado com medo e preconceito” (LEITE, 2001, p. 94. Grifos do original). 63

123

ocupação liderada pelos membros do MST, reforça essa distinção. Assim, o que é “externalizado” do bairro não é a favela, mas a área nobre Como já afirmaram Elias e Scotson (2000, p. 27): “Com frequência, os próprios nomes dos grupos que estão numa situação de outsiders trazem em si, até mesmo para os ouvidos de seus membros, implicações de inferioridade e desonra”. Embora não tenham sido, no bairro Frei Damião, os “estabelecidos” que designaram as demais áreas, a forma como a designação para a região da Baixa da Raposa, em especial, é lida diz muito da estigmatização de que é alvo.

Um dos bairros mais antigos é esse daqui [Frei Damião] e Baixa da Raposa. Baixa da Raposa porque baixava, parecia uma baixa mesmo, só tinha gente mais assim, mais classe pobre mesmo, mais menino e tudo, chamava Baixa da Raposa. Aí foi crescendo e crescendo, aí findou Baixa da Esperança (Aílton).

O próprio nome do local, Baixa da Raposa, não é benquisto por seus moradores. Enquanto as demais territorialidades apresentam nomes tradicionais e mesmo aristocrático, esta está associada a um mamífero predador conhecido por ser astuto e matreiro em suas habilidades na caça. Temos então, em sentido figurado (e de forma pejorativa), a associação do animal que dá nome ao local com os moradores desta localidade:

Agora o povo diz que é porque lá se juntou muitas pessoas que gostavam de pegar no que era dos outros, que vinha dos outros cantos, de São Paulo, como foi pegado pessoas que vieram desse mundo e se escondia aqui, por quê... Aí vai discriminar as pessoas que tava aqui, não, eles vinham se esconder aqui porque sabiam que aqui era mais difícil de ser encontrado. Aí vinha e ficava no meio da gente. Aí chamaram lá de Baixa da Raposa porque raposa é um bicho sabido [risos], pois é, aí botaram esse nome, Baixa da Raposa. E a Vila Real começou... é nova, a Vila Real ela não tem dez anos de começo, se muito tiver é uns cinco. Mas ali só tem casa boa, bem organizada, não é, mais porque ali o rapaz que comprou colocou logo água, luz e ali o povo teve condições de construir e aqui nada tinha, mesmo que você tivesse condições de construir, cadê a água (Dona Sebastiana). Aílton: Aí o bairro chega a ser muito desconsiderado pela pessoas que não conhecem. Lucas: Tu acha que principalmente em relação à Baixa da Raposa? Aílton: Ah, a Baixa da Raposa é o pior. Oh, daqui de frente ao CAIC pra cima é tipo considerado como pessoas de bem e tudo. Mas oh, “aconteceu de trás do CAIC pra lá”, é mais gente considerado como mais ruim e tudo.

Em algumas situações, o nome é acionado de modo provocativo, ostensivo, como no caso em que alguns garotos ficaram gritando “Baixa da Raposa, Baixa da Raposa...” para

124

os passageiros do ônibus, em uma das paradas do percurso até o centro da cidade, como comentamos no capítulo I. Essa ironia e tom pejorativo que o próprio nome guarda, apresenta também uma projeção da natureza sobre o humano a partir da associação tanto ao animal raposa como ao perfil topográfico da área, uma baixa. Ressalte-se que essas nomeações, sejam depreciativas ou elogiosas 64 (se não é um elogio dizer de uma vila que ela é real), “[...] só fazem sentido no contexto de relações específicas entre estabelecidos e outsiders” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 27) e só funcionam pela existência de um desequilíbrio de poder (Ibid.). Acrescente-se a isso o fato de que, pelo aspecto relacional que as caracteriza, elas, as nomeações depreciativas e elogiosas, contribuem para a constituição da autoimagem de ambos os grupos, embora criando crenças distintas. Como diz Matos (2004, p. 239):

A auto-imagem condensa a um só tempo e, potencialmente, a pacificação e o conflito. Se o processo de estigmatizarão é eficiente, produz como resultado não apenas a crença na superioridade de seu valor por parte dos estabelecidos, mas também a crença na inferioridade por parte dos outsiders. Essa figuração irá traduzir-se em uma auto-imagem do nós e do nós ideal adequada a uma situação de poder diferenciada e desigual.

Essa relação de figuração e, portanto, de imagem e autoimagem, existente entre as três territorialidades do bairro, não é inerente a elas, mas se estende para além do domínio interior do bairro Frei Damião, uma vez envolvendo também o bairro como totalidade e a cidade. Essa ligação fica evidente quando os moradores do bairro Frei Damião se referem à cidade a partir de termos como: “rua”, “lá embaixo”, “lá fora”, “no centro”. Interessante notar como há no bairro múltiplas apropriações a partir dos nomes e seus significados, tanto em relação ao nome do bairro, como observamos anteriormente, como em relação ao nome da territorialidade Baixa da Raposa. Para alguns, como Chico Gomes, esse nome foi atribuído por Padre Cícero, como mencionado em passagem anterior. Para seu De Jesus, o nome advém do fato de haver no local um homem que caçava raposas.

Essa Baixa da Raposa tinha um senhor, um homem que ele vivia e ele tinha vontade de colher um negócio mais fácil, aí fez uns chiqueiros pra pegar raposa. E matava raposa e vendia o couro. Tinha um senhor de frente à Prefeitura, perto da Vencedora, que era comprador de couro, um galegão forte, a casa fedorenta, rapaz, que casa que vende couro fede, né? Aí ele matava as raposas..., botava um frango lá dentro do chiqueiro, a raposa 64

Uma referência às fofocas depreciativas e elogiosas de que tratam Elias e Scotson (2000) sobre Winston Parva.

125

entrava, o curral baixava, aí matava a raposa. Por isso que ficou o nome Baixa da Raposa.

De toda forma, o que nos interessa é como o nome é significado atualmente. Seu sentido de pessoas “sabidas”, estendido das habilidades do animal, soa como pejorativo. Tanto é que recentemente os moradores passaram a adotar o nome Baixa da Esperança, surgido a partir do discurso de um vereador que quis se promover no bairro nas últimas eleições municipais, realizadas em 2012. O novo nome já foi absorvido pelos moradores de tal maneira que fora utilizado no panfleto de divulgação das festas de Santa Edwiges, realizadas no ano de 2013. 4 Formas de agenciar a imagem

No presente capítulo, adotamos como mote de reflexão a imagem de periferia do bairro Frei Damião. Ao procurarmos compreender a constituição da imagem de perifeira do bairro, retomamos sua origem, ou seja, a atuação do movimento de luta por moradia em Juazeiro do Norte e a repercussão da ocupação das terras pertencentes à Igreja na cidade. Acreditamos que todo esse movimento/dinâmica que ocorreu no decorrer do ano de 1990 (o movimento social em si, o MST, suas reivindicações e passeatas pela cidade, a ocupação das terras pertencentes ao patrimônio de Nossa Senhora das Dores, o conflito político, moral e jurídico que daí resultou, a ilegalidade, inicial, da posse das terras) fundiu, inicialmente, a imagem de periferia do bairro. E é com essa imagem que o bairro se inscreve (ou é inscrito) na cidade, no imaginário urbano. Como observamos, há hoje no bairro, como na época mesmo da ocupação já estava presente, uma negociação dessa imagem de periferia do local. Inicialmente, essa negociação se apresentava a partir da organização/planejamento urbanístico do bairro, de forma que não parecesse uma periferia (alguns interlocutores falavam com orgulho que alguns prefeitos se referiam ao bairro como uma cidade), que tivesse seu traçado alinhado. A negociação também se dá nas variações do nome do bairro, três nomes chegaram a ser atribuídos, embora os agentes que fizeram isso sejam diferentes, por um lado, a Prefeitura, a ordem da Cidade e, por outro, o Movimento. E essa variação de nomes revela a tentativa de ocultar a origem/história do local, já que o nome Mutirão (primeiro nome) remete a uma forma de mobilização e organização própria dos movimentos sociais/classes populares. A negociação também se dá no cotidiano atual, na segmentação da área e na forma de nomear cada área de modo distinto (Vila Real, Frei Damião e Baixa da Raposa ou

126

Baixa da Esperança). Então, essa divisão apresenta implicações que a imagem de periferia tem no espaço urbano do local. Logo, essa divisão interna do bairro tem sua origem na imagem de periferia que foi atribuída ao local desde sua origem e, por outro lado, a divisão do bairro em três áreas é a manifestação da negociação dessa imagem (a Vila Real não pertence ao bairro Frei Damião, sendo que o próprio nome do local traz essa distinção). Lembremos também que cada uma dessas áreas tem características próprias, sejam urbanísticas, sociais e históricas. Como procuramos demonstrar, a origem do bairro, suas nomeações e divisões internas são elucidativas à compreensão da imagem de periferia do bairro e, logo, do entendimento do porquê e como os moradores organizam/agenciam essa imagística, inclusive no próprio espaço, segmentando-o. Essas “estratégias” de administrar e negociar a imagem estão traduzidas nas práticas sociais dos moradores, como abordado no capítulo II. Consideramos também, todavia, que tais práticas, os rachas e as capelas dos santos/santas, constituem, não apenas, meros meios a partir dos quais se procura agenciar os estereótipos, ao criar níveis diferentes de periferia. Acreditamos que essas práticas são algo em si, pois constituem formas específicas de conceber o bairro.

127

Considerações finais

Este trabalho procurou compreender o bairro Frei Damião como espaço social, apresentando-o a partir da descrição do seu interior, das práticas sociais mobilizadas pelos moradores e das suas falas, da origem histórica do local, e da forma como é concebido pela ordem da cidade. Nossa forma de narrar é também uma prática do espaço: “Todo relato é um relato de viagem – uma prática do espaço” (CERTEAU, 1994b, p. 200), pois se não estão imbricadas narrativa e experiência: “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores” (BENJAMIN, 1994, p. 198). Logo, procurei materializar minha experiência de percurso no bairro Frei Damião a partir do ato de narrar. Ao fazê-lo, considerei determinadas dimensões, encadeadas entre si e elegidas observando-se os percursos dos moradores, mas também o fiz em detrimento de outras tantas possíveis de serem enunciadas por um outrem. Como já dissemos ao longo do texto, não narramos o bairro para dizer a cidade, não depuramos a cidade a partir do bairro. Ao tempo em que procuramos dizer o bairro Frei Damião por si mesmo, mas sem jamais abandonar sua relação com os demais espaços, procuramos fundá-lo como categoria sociológica, problematizando-o. Após falar do bairro Frei Damião a partir de meu percurso e dos moradores, uma vez que eu incorporo em minha caminhada os passos dos moradores, acompanhamos a forma como o bairro é praticado a partir de práticas sociais localizadas. Foi com as capelas e suas comunidades religiosas e com os rachas que procuramos tensionar mais ainda o bairro como noção sociológica. Não somente a partir desses dois momentos ou eventos precisos percebemos a prática do bairro. Aglutinamos também as experiências dispostas logo no início do texto sobre os relatos dos espaços, sobre a caminhada, uma vez sendo estas práticas minuciosas, silenciosas, mas igualmente eficazes, porque disseminadas. Ao tempo em que procuramos entender o bairro como construção social por parte de seus moradores, pela forma como apreendem o local por meio de suas práticas sociais, ou seja, uma construção social no presente, fizemos um deslocamento temporal para entender o bairro como construção social histórica, remetendo a atenção ao passado. Ao procurarmos compreender a gênese do bairro, buscamos recompô-lo como processo, isto é, como sendo sua origem um entrelaçamento de eventos que possibilitaram seu surgimento. É então que localizamos no contexto nacional vivenciado na década de 80 alguns dos fatores que influenciaram o surgimento e organização da questão habitacional em Juazeiro do Norte, a constituição de um movimento social e suas ações em torno do direito à

128

moradia, de um projeto de comunidade, culminando na ocupação das terras que deram origem ao que hoje é o bairro Frei Damião. Esse processo foi importante também para entendermos a inserção do bairro na cidade de Juazeiro do Norte e a compreensão da imagem de periferia que o macula. Essa inserção, social e física, a um só tempo, se manifesta não somente com a imagem de periferia, mas em função dela, também a partir das alternâncias de nomes que se sucederam e se sucedem até hoje para o bairro e na constituição de segmentos espaciais classificados de formas distintas e hierarquizadas em seu interior. Esses elementos, como procuramos compreender, dizem muito sobre a relação entre o bairro e a cidade, da forma como esta última apreende o bairro. Acreditamos que a interpretação que conseguimos desenvolver aqui pode ser tratada a partir do modelo de figuração estabelecido–outsiders a que se referem Elias e Scotson (2000), como procuramos demonstrar. Assim, Winston Parva funciona como “paradigma empírico” (Ibid., p. 21) para dinâmicas semelhantes às encontradas pelos autores, como eles mesmos já previam. Se a presente pesquisa apresenta contribuições, não é menos verdade que ela tem seus limites. Embora tenhamos procurado reunir e analisar um diversificado material de campo65, demonstrar a forma como o bairro é apreendido, pela e na cidade, e o aspecto relacional estabelecido entre as três territorialidades do bairro não é tão simples. O prolongamento temporal do trabalho de campo e a extensão da rede de interlocutores talvez contribuísse para sentir e compreender melhor esses aspectos, esmiuçando-os mais, por exemplo, ao observar como se constitui e o que media as atribuições de valor inferior ou superior entre as três áreas do bairro, acentuando a percepção das diferenças nas relações sociais entre os moradores das três territorialidades, na caracterização espacial e social do interior desses espaços. Como não esgotamos as possibilidades de análise das questões a que nos detivemos aqui, seja pelas restrições de acesso, ou mesmo disposição de tempo, e pelos objetivos que nos propusemos, entendemos que há outros pontos a serem explorados. Esperamos que outros trabalhos possam fazê-lo, revelando dimensões outras dessa experiência urbana.

65

Tais como: documentos legislativos, matérias de jornais, redações de alunos, mapas e documentos elaborados no interior do bairro, entrevistas, observação participante, fotos, conteúdo de conversas informais, vídeos, produções acadêmicas, dados estatísticos.

129

Referências ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. Introdução. In: ______. A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 29-49. ______. História, cotidiano e linguagem. Campina Grande: Programa de Educação Tutorial do curso de graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande, 2011. Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2013. ALVITO, Marcos. Um bicho-de-sete-cabeças. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (Orgs.). Um século de favela. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 181-208. BARREIRA, Irlys. Cidades narradas: memória, representações e práticas de turismo. Campinas: Pontes Editores, 2012. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus. 2 ed. Fortaleza: Editora IMEPH, 2008. BECKER, Howard S. Conceitos. In: ______. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. BENJAMIN, Walter. O narrador. considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221. BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. Nota de apresentação. In: ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992. BOURDIEU, Pierre. Efeitos de lugar. In: ______. (Coord.). A miséria do mundo. 9 ed. Petrópolis: Vozes, 2012 [1993]. p. 159-166. BRASI. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Cozinhas comunitárias. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2013a. ______. Ministério do Esporte. Praça da Juventude. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2013b. ______. Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: diagnóstico dos serviços de água e esgotos – 2010. Brasília: MCIDADES.SNSA, 2012. ______. Ministério dos Esportes. Segundo Tempo. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2010.

130

BURGOS, Marcelo Baumann. Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (Orgs.). Um século de favela. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 34 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2001 [1964]. CERTEAU, Michel de. Caminhadas pela cidade. In: ______. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 4 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1994a. 1 v. p. 169-191. ______. Relatos de espaço. In: ______. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 4 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1994b. 1 v. p 199-217. CLIFFORD, James. Sobre a alegoria etnográfica. In: GONÇALVES, José Reginaldo Santos (Org.). A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 2002. p. 63-99. CORDEIRO, Graça Índias. Um lugar na cidade: quotidiano, memória e representação no bairro da Bica. Lisboa: Dom Quixote, 1997. CORDEIRO, Graça Índias; COSTA, António Firmino da. Bairros: contexto e intersecção. In: VELHO, Gilberto (Org.). Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. p. 58-79. COSTA, António Firmino da. Sociedade de bairro: dinâmicas sociais da identidade cultural. Lisboa: Celta Editora, 1999. DAMO, Arlei Sander. A rua e o futebol. In: STIGGER, Marco Paulo; GONZÁLES, Fernando Jaime; SILVEIRA, Raquel (Orgs.). O esporte na cidade: estudos etnográficos sobre sociabilidades esportivas em espaços urbanos. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2007. p. 51-70. DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joazeiro. Tradução de Maria Yedda Linhares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. DURHAM, Eunice Ribeiro. A sociedade vista da periferia. In: THOMAZ, Omar Ribeiro (Org.). A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2004a. p. 377-407. ______. Movimentos sociais: a construção da cidadania. In: THOMAZ, Omar Ribeiro (Org.). A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2004b. p. 281294. DURKHEIM, Émile; MAUSS, Marcel. Algumas formas primitivas de classificação. In: MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 399-453. ELIAS, Norbert. Introdução: sociologia e história. In: ______. Sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001a. p. 27-59.

131

______. Estruturas de habitação como indicadores de estruturas sociais. In: ______. Sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001b. p. 66-84. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000 [1965]. FEITOSA, Antonio Lucas Cordeiro. Sociabilidade, lazer e violência: práticas esportivas e juventude no bairro Frei Damião. 2012. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Departamento de Ciências Sociais, Universidade Regional do Cariri, Crato, 2012. FOLHA DA MANHÃ. “SEM Casa” vai ao prefeito por moradias. Folha da Manhã. Juazeiro do Norte, 09 ago. 1999. FOLHA DE JUAZEIRO. Pantanal Juazeirense. Folha de Juazeiro. Juazeiro do Norte, p. 5-5. nov. 1990. FRANCH, Mónica Gutiérrez. Tempos, contratempos e passatempos: um estudo sobre práticas e sentidos do tempo entre jovens de grupos populares do Grande Recife. 2008. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. FREIRE, Leticia de Luna. Favela, bairro ou comunidade? Quando uma política urbana tornarse uma política de significados. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 95-114, 2008. FRÚGOLI JR., Heitor. Relações entre múltiplas redes no Bairro Alto (Lisboa). Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 28, n. 82, p. 17-30, 2013. GEERTZ, Clifford. Forma e variação na estrutura da aldeia balinesa. Mosaico: Revista de Ciências Sociais, Vitória, v. 1, n. 2, p. 279-303, 1999 [1959]. GOOGLE Earth. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2013. GOOGLE Maps. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2013. HOUELLEBECQ, Michel. O mapa e o território. Rio de Janeiro: Record, 2012. IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA. Censo demográfico e contagem da população. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2013a. ______. Cidades@. Disponível em: . Acesso em: 10 de jul. 2013b.

132

JORNAL DO CARIRI. “Sem Casa” realizarão caminhada em Juazeiro. Jornal do Cariri. Juazeiro do Norte, 05 ago. 1999. ______. Líderes do MSC são recebidos pelo prefeito. Jornal do Cariri. Juazeiro do Norte, 05 ago. 1999. ______. Manifesto contra FHC em Juazeiro. Jornal do Cariri. Juazeiro do Norte, 27 ago. 1999. _______. Movimento dos Sem Casa promove manifestação em JN. Jornal do Cariri. Juazeiro do Norte, 08 ago. 1999. ______. MSC faz entrega de terrenos para pessoas sem moradia. Jornal do Cariri. Juazeiro do Norte, 22 dez. 1999. KOWARICK, Lúcio. Movimentos urbanos no Brasil contemporâneo: uma análise da literatura. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 1, n. 3, p. 38-50, 1987. LEITE, Márcia Pereira. Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens. Cadernos Metrópole, São Paulo, n. 5, p. 91-125, 2001. LÉVI-STRAUSS, Claude. A ciência do concreto. In: O pensamento selvagem. São Paulo: Papirus, 1989. LIMA, Chagas. Moeda própria incentiva comércio no bairro Frei Damião. Jornal do Cariri, Juazeiro do Norte, 24 jul. 2012. LIMA, Raimunda Machado. O Movimento dos Sem Teto: construindo uma história de Juazeiro do Norte 1990 a 1999. 2001. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em História do Brasil) – Departamento de História, Universidade Regional do Cariri, Crato, 2001. LIRA NETO. Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. MAGNANI, José Guilherme. Tribos urbanas: metáfora ou categoria? Disponível em: . Acesso em: 22 nov. 2010. ______. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, 2002. MARQUES, Roberto. O Cariri do forró eletrônico: festa, gênero e criação no Nordeste contemporâneo. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. ______. Comunidade sem portas: imaginando o Cariri a partir de um bar de fim de noite. Campus, Curitiba, v. 12, n. 2, p. 45-68, 2013. ______. Contracultura, tradição e oralidade: (re)inventando o sertão nordestino na década de 70. São Paulo: Annablume, 2004.

133

______. Paisagens musicais nas festas de forró eletrônico: pensando sobre as representações sonoras. In: GONÇALVES, Marco Antônio; HEAD, Scott (Orgs.). Devires Imagéticos: a etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro: 7 Letras/FAPERJ, 2009. p. 232-253. MATOS, Teresa Cristina Furtado. Rádios comunitárias: sintonia dissonante e autoimagem. Fortaleza: BNB, 2011. p. 27-55. ______. Notas sobre o conflito e a auto-imagem em Norbert Elias. Política & Trabalho, João Pessoa, ano 20, n. 20, p. 229-245, 2004. MATTOS, Geísa. A favor da comunidade: modos de viver a política no bairro. Campinas: Pontes Editores, 2012. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós. In: ______. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003 [1906]. p. 423-507. MAYOL, Pierre. O bairro. In: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar. 11 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012. 2 v. p. 37-45. MELO, Ana Ruth de. Jiu-jítsu como um espaço de formação cidadã no bairro Frei Damião. 2013. Texto apresentado para exame de qualificação de monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Departamento de Ciências Sociais, Universidade Regional do Cariri, Crato, 2013. MENEZES, Eduardo Diatahy Bezerra de. Padre Cícero e Floro: testamento e espólio (Apresentação histórica). In: Tribunal de Justiça do Estado do Ceará – TJCE (Org.). Execução do Testamento do Padre Cícero Romão Baptista e Inventário do Dr. Floro Bartholomeu da Costa: documentos em fac-símile. Fortaleza: Imprensa Oficial do Estado do Ceará, 1997, v. 1, p. 7-11. MENEZES, Marluci. Quando ter casa nem sempre significa alterar uma situação de periferia. Disponível em: . Acesso em: 24 set. 2013. NASCIMENTO JUNIOR, Joaquim Izidro do. O mundo no sertão do Cariri: processos sociais e simbólicos em dois grupos religiosos. Disponível em: . Acesso em: 30 jan. 2013. OLIVEIRA FILHO, João César Abreu de; CORDEIRO, Domingos Sávio de Almeida. As trajetórias dos movimentos sociais urbanos e a produção de espaços de moradia em cidades médias brasileiras. Observatorium: Revista Eletrônica de Geografia, Uberlândia, v. 2, n. 5, p. 134-151, 2010. PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, Octávio. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973 [1916]. p. 26-67.

134

PAZ, Renata Marinho. Juazeiro do padre Cícero. In: ______. Para onde sopra o vento: a Igreja Católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011. PEREIRA, Cícero Alcione Soares. Análise sócio-espacial do bairro Frei Damião: o Mutirão de Juazeiro do Norte-CE. 2009. Monografia (Especialização em Geografia e Meio Ambiente) – Departamento de Geociências, Universidade Regional do Cariri, 2009. PINHEIRO, Antonio dos Santos; BARBOSA, Wendell de Freitas; SOUZA, Dennys Helber da Silva. Juventude, violência e drogas: os desafios às políticas de segurança. Fortaleza: FUNCAP, 2013. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de Queiroz. Bairros rurais paulistas: dinâmica das relações bairro rural – cidade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1973. RIZEK, Cibele Saliba; BARROS, Joana da Silva. Mutirões autogeridos: construindo e desconstruindo sociabilidades. In: FRÚGOLI JR. Heitor; ANDRADE, Luciana Teixeira de; PEIXOTO, Fernanda Arêas (Orgs.). As cidades e seus agentes: práticas e representações. Belo Horizonte: PUC Minas/Edusp, 2006. SÁ, Leonardo Damasceno. Favela, comunidade ou bairro? A espacialização das relações sociais na perspectiva de jovens surfistas do Titanzinho. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2012a. ______. Querer falar mais alto: disparador moral no curso da ação simbólica na vida diária e precipitação de violência letal nas lutas faccionais armadas nas favelas à beira-mar em Fortaleza. Disponível em: . Acesso em: 26. nov. 2012b. SAYAD, Abdelmalek. Os filhos ilegítimos. In: ______. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998. SEMASP, Secretaria de Meio Ambiente e Serviços Públicos. Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte. SEMASP continua atuando no bairro Frei Damião. Disponível em: . Acesso em: 07 dez. 2011. SILVA, Luiz Antonio Machado da. A continuidade do “problema favela”. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi (Org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. ______. Violência, sociabilidade e ordem pública no Rio de Janeiro: uma tomada de posição. In: BARREIRA, César (Org.). Violência e conflitos sociais: trajetórias de pesquisa. Campinas: Pontes Editores, 2010. SILVA, Maria Jaqueline Ferreira da. O programa “Mais Educação” como uma política pública de inclusão social no CAIC – D. Antonio Campelo de Aragão. 2010. Monografia (Especialização em Gestão e Avaliação da Educação Pública) – Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juazeiro do Norte, 2010.

135

SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. MANA: Estudos de Antropologia Social, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 577-591, 2005 [1903]. SOBRINHO, José Amaral; PARENTE, Marta Maria de Alencar. CAIC: Solução ou Problema? IPEA, Brasília, Texto para discussão nº 363, 1995. TJCE, Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (Org.). Execução do Testamento do Padre Cícero Romão Baptista e Inventário do Dr. Floro Bartholomeu da Costa: documentos em fac-símile. Fortaleza: Imprensa Oficial do Estado do Ceará, 1997, v. 1. VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. ______. Passa-se uma casa: análise do Programa de Remoção de Favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. VELHO, Gilberto. A utopia urbana: um estudo de antropologia social. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978 [1970]. WACQUANT, Loïc. Que é gueto? Construindo um conceito sociológico. Revista de Sociologia Política, Curitiba, v. 23, p. 155-164, 2004. ______. Os condenados da cidade: estudo sobre marginalidade avançada. Rio de Janeiro: Revan/Fase, 2001. WHYTE, William Foote. Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005 [1943]. WOORTMANN, Ellen F. O Sítio: descendência e lugar. In: ______. Herdeiros, parentes e compadres: colonos do Sul e sitiantes do Nordeste. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Edunb, 1995. p. 241-256. ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 2000. ______. Relativismo cultural na cidade? In: Anuário Antropológico. Rio de Janeiro: Editora UnB/Tempo Brasileiro, 1993. n. 90. p. 137-155. ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos. Introdução. In: ______. (Orgs.). Um século de favela. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 7-24.

136

Anexos

137

Figura 17: Imagens das primeiras habitações no bairro Frei Damião. Fonte: Fotos do acervo pessoal de Nininha, 1990.

138

Figura 18: Imagens de encontros dos membros do MST. Fonte: Fotos do acervo pessoal de Nininha.

Figura 19: Imagem de poço onde se buscava água no bairro Frei Damião. Fonte: Fotos do acervo pessoal de Nininha.

139

Figura 20: Territorialidade Vila Real. Fonte: Google Maps com Street View, 2013.

Figura 21: Territorialidade Frei Damião. Fonte: Google Maps com Street View, 2013.

140

Figura 22: Territorialidade Baixa da Raposa. Fotos: Antonio Lucas C. Feitosa, 2013.

141

Figura 23: Capela de Nossa Senhora das Candeias. Fotos: Antonio Lucas C. Feitosa, 2013.

142

Figura 24: Capela de Santo Expedito. Fotos: Antonio Lucas C. Feitosa, 2013.

143

Figura 25: Capela de Nossa Senhora das Graças. Fotos: Antonio Lucas C. Feitosa, 2013.

144

Figura 26: Capela de Santa Edwiges. Fotos: Antonio Lucas C. Feitosa, 2013.

145

Figura 27: Circo Pop Star no bairro Frei Damião no ano de 2011. Fonte: Google Maps com Street View, 2013.

146

Tabela 01: Domicílios particulares permanentes por existência de banheiro ou sanitário e esgotamento sanitário no bairro Frei Damião, 2010. Existência de banheiro ou sanitário e Domicílios particulares Domicílios particulares esgotamento sanitário permanentes (Fr) permanentes (%) Total 3.864 100,00 Tinham banheiro - de uso exclusivo 3.360 86,96 do domicílio Tinham banheiro - de uso exclusivo do domicílio - rede geral de esgoto ou 474 12,27 pluvial Tinham banheiro - de uso exclusivo do 846 21,89 domicílio - fossa séptica Tinham banheiro - de uso exclusivo do 2.033 52,61 domicílio - fossa rudimentar Tinham banheiro - de uso exclusivo do 1 0,03 domicílio – vala Tinham banheiro - de uso exclusivo do domicílio - rio, lago ou mar Tinham banheiro - de uso exclusivo do 6 0,16 domicílio – outro Tinham sanitário 388 10,04 Tinham sanitário - rede geral de esgoto 19 0,49 ou pluvial Tinham sanitário - fossa séptica 31 0,80 Tinham sanitário - fossa rudimentar 325 8,41 Tinham sanitário - vala 6 0,16 Tinham sanitário - rio, lago ou mar Tinham sanitário - outro escoadouro 7 0,18 Não tinham banheiro nem sanitário 116 3,00 * A categoria “Tinham sanitário” inclui banheiro de uso comum a mais de um domicílio (Nota do IBGE). Fonte: dados do censo demográfico de 2010 (IBGE, 2013a).

Tabela 02: População do bairro Frei Damião segundo gênero e idade, 2010. Idade (anos) Masculino (Fr) % Feminino % Total 0-10 1.914 26,04 1.752 23,91 3.666 11-20 1.681 22,87 1.581 21,57 3.262 21-30 1.338 18,21 1.389 18,95 2.727 31-40 979 13,32 965 13,17 1.944 41-50 597 8,12 651 8,88 1.248 51-60 345 4,69 436 5,95 781 61-70 281 3,82 283 3,86 564 71-80 148 2,01 188 2,57 336 81-90 50 0,68 70 0,96 120 91 ou mais 16 0,22 13 0,18 29 Total 7.349 100,00 7.328 100,00 14.677 Fontes: elaboração própria a partir dos dados do censo demográfico de 2010 (IBGE, 2013a).

% 24,98 22,23 18,58 13,25 8,50 5,32 3,84 2,29 0,82 0,20 100,00

147

Tabela 03: Pessoas de 10 anos ou mais de idade e residentes no bairro Frei Damião segundo classes de rendimento nominal mensal, 2010. Rendimentos* Número de pessoas % 1.830 16,02 Até 1/2 salário mínimo 3.378 29,57 Mais de 1/2 a 1 salário mínimo 831 7,28 Mais de 1 a 2 salários mínimos 191 1,67 Mais de 2 a 5 salários mínimos 42 0,37 Mais de 5 a 10 salários mínimos 07 0,06 Mais de 10 a 20 salários mínimos Mais de 20 salários mínimos 5.143 45,03 Sem rendimento** 11.422*** Total 100,00 *

O salário mínimo utilizado na época de realização do censo era de R$ 510,00. A categoria Sem rendimento inclui as pessoas que recebiam somente em benefícios. *** Esse total representa a soma de todas as pessoas com dez anos ou mais de idade com algum tipo de rendimento ou sem rendimento. Fonte: dados do censo demográfico de 2010 (IBGE, 2013a). **

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.