Práxis e Formação na Educação Jurídica

June 28, 2017 | Autor: Regio Quirino | Categoria: Filosofia do Direito
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Revista Diálogos vol. 1. nº 1. ISSN 2446-6689

O ACESSO À JUSTIÇA E AO DIREITO A PARTIR DA POBREZA: EM ESPECIAL, O PAPEL DOS DEFENSORES PÚBLICOS NESSA PROBLEMÁTICA JURÍDICO-SOCIAL Nadinne Sales Callou Esmeraldo Paes1 Direito a ter direitos: uma prerrogativa básica, que se qualifica como fator de viabilização dos demais direitos e liberdades. Direito essencial que assiste a qualquer pessoa, especialmente àquelas que nada têm e de que tudo necessitam. 2

RESUMO A pobreza, fenômeno social complexo e multifacetado, repercute sobremodo na efetivação dos direitos fundamentais, dentre estes se destacando o acesso à justiça e ao Direito. Este direito fundamental será estudado no presente artigo a partir de um dos seus precípuos fundamentos, o princípio da igualdade. Serão demonstrados, ainda, os principais obstáculos à sua efetivação pelos mais pobres, oportunidade em que expor-se-ão os entraves de índole econômica, social e cultural que se opõem em face dos mais vulneráveis. A seguir, procederse-á à caracterização dos principais modelos desenvolvidos pelos Estados, perspectivando-os no tempo, para que, enfim, seja estudado o paradigma brasileiro de Defensoria Pública. Ao final, a citada instituição brasileira será qualificada como salutar ferramenta estatal para a implementação do acesso à justiça e ao Direito e dos direitos fundamentais em geral para as pessoas economicamente desfavorecidas. ABSTRACT Poverty, social complex and multifaceted phenomenon, greatly affects the enforcement of fundamental rights, among which stands out the access to justice and the law. This fundamental right will be studied in this article from one of its main foundations, the principle of equality. Will be shown, still, the obstacles to its realization by the poorest opportunity to be exposed nature of economic barriers, social and cultural opposed in the face of the most vulnerable. Then it will proceed to the exposition of the main models developed by states, envisaging them in time, so that, finally, is the paradigm studied Brazilian Public Defender. At the end, the aforementioned Brazilian institution will be classified as a salutary state tool for the implementation of access to justice and law and fundamental rights in general for the economically disadvantaged people. PALAVRAS-CHAVE direitos fundamentais – acesso à justiça e ao Direito – efetivação – pobreza – vulnerabilidade – Defensoria Pública

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Defensora Pública Estadual no Ceará, Professora de Direito Civil e de Direito da Infância e da Juventude da Faculdade Paraíso-Ceará, Especialista em Direito e em Processo Tributário (Faculdade Leão Sampaio), em Direito do Trabalho (Universidade Gama Filho) e em Ciências Jurídicas (Universidade do Porto, Portugal), Mestranda em Ciências Jurídico-Políticas (Universidade do Porto, Portugal). 2 Trecho de relato do Min. Celso de Mello na ADI 2.903 julgada em 01.12.2005 pelo Órgão Plenário do STF, DJE de 19.09.2008.

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1. INTRODUÇÃO Em estudos da ONU capitaneados por Leandro Despouy3 e dedicados à especial ligação entre direitos humanos e pobreza, concluiu-se que esta acarreta a negação não de apenas um único direito, ou determinada categoria de direitos, mas dos direitos humanos como um todo. Outrossim, quando da XIV Conferência Judicial Ibero-americana, que teve lugar em Brasília durante os dias 4 a 6 de Março de 20084, pesquisando-se especificamente o acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade, percebeu-se que a pobreza, junto a outras causas de vulnerabilidade5, repercute ainda, e de forma significativamente negativa, na efetivação do citado direito fundamental, irradiando seus efeitos não só no plano econômico, mas nos âmbitos social e cultural6. Asseverou-se, àquele azo, que esse fenômeno social complexo e multifacetado7 constitui “um sério obstáculo para o acesso à justiça especialmente daquelas pessoas nas quais também concorre alguma outra causa de vulnerabilidade.”8 Ao tempo em que essa problemática é apontada como causa da violação de direitos humanos (porque as pessoas pobres estão mais vulneráveis e suscetíveis a violações nos seus direitos), é, também, efeito da violação dos mais fundamentais dos direitos, porquanto “ao negar-se, limitar-se ou menoscabar-se ao ser humano direitos como ao trabalho, a um salário adequado, saúde, educação, vida digna, se está condenando à pobreza,”9 de sorte que esta promove e perpetua, em última análise, a negação de todos os direitos humanos. Ora, ao se perscrutarem as razões pelas quais existem os direitos fundamentais, é possível constatar que um dos fundamentos axiológicos dessa especial categoria de direitos é 3

Apud Leonardo Castilho (2008, p. 153). Aprovaram-se, naquele azo, cem regras sobre “Acesso à Justiça das Pessoas em condição de Vulnerabilidade”, as quais passaram a formar documento que, desde então, passou a ser conhecido como as “100 Regras de Brasília”, cujo texto foi elaborado, com o apoio do “Projeto Eurosocial Justiça”, por um Grupo de Trabalho constituído no seio da citada Conferência Judicial Ibero-americana. 5 Regra nº 3. Também foram apontados como motivos de vulnerabilidade para o exercício do acesso à justiça: a idade, a incapacidade, a pertença a comunidades indígenas, a vitimização, a migração e o deslocamento interno, o gênero, a pertença a minorias e a privação de liberdade. 6 Regra nº 15. 7 O conceito e alcance da pobreza foram especialmente maximizados a partir dos paradigmáticos estudos do chileno José Bengoa, à frente de comissão especial da ONU, ao defender que a extrema pobreza envolve problemas nas órbitas econômica (falta de renda), política (negação de direitos civis e políticos básicos), social e cultural (falta de oportunidades). (Apud CASTILHO, 2008, p. 157.) A partir do estudo da evolução histórico-conceitual que sofreu a pobreza, impõe-se a compreensão desta a partir de uma tríplice perspectiva, que transborda o aspecto puramente econômico para abranger, também, a privação de capacidades e a exclusão social. (Cfr. COSTA, 2008) 8 Regra nº 15. 9 Julieta Morales Sanchez (2011, p. 86). 4

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“a proteção dos mais débeis”10. A esse respeito, ensina Luigi Ferrajoli (2007, p. 363) que: “os direitos humanos e com eles todo o progresso na igualdade se afirmaram, cada vez mais, primeiro como reivindicações e depois como conquistas dos sujeitos mais débeis dirigidas a pôr término a suas opressões e discriminações.” Com efeito, para os economicamente hipossuficientes, a efetivação do acesso à justiça e ao Direito apresenta-se como “ponte” para a consecução da igualdade, na medida em que permitir que todas as pessoas invoquem os direitos fundamentais dos quais são titulares significa lhes deferir um igual respeito, do qual são merecedoras, simplesmente, pela sua condição de ser pessoa. Propiciar o acesso ao sistema de justiça por aqueles carentes de recursos econômicos representa, destarte, um imperativo de igualdade, compreendida esta nas suas perspectivas social, efetiva, material e concreta11. Nesse sentido, o insigne constitucionalista português Jorge Miranda (2008, p. 334), fazendo menção ao entendimento do tribunal constitucional do seu país quanto a essa ilação, sintetiza: “A igualdade dos cidadãos importa, no âmbito jurisdicional, quer a igualdade de acesso aos tribunais, quer a igualdade perante os tribunais, o que é dizer-se no decorrer do processo – igualdade de armas ou igualdade processual”12. No mesmo norte, trazem-se à tona as lições de Canotilho (2003, p. 501), que indica que o exercício do acesso à justiça deve ser informado materialmente pelo princípio da igualdade de oportunidades, o que também é seguido por Cristina Queiroz (2006, p. 197), ao invocar jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão: (...) os direitos fundamentais sociais podem não dizer respeito a todos os indivíduos da mesma forma. Podem dizer respeito exclusivamente a quem se encontra numa situação de desvantagem de facto, isto é, os sujeitos mais débeis. Neste sentido, os direitos fundamentais sociais exigem não uma ‘igualdade’ entendida como ‘universalidade’, mas uma ‘igualdade de oportunidades’. Uma igualdade cuja realização reclama por diferenças de tratamento justificadas ou impostas à luz do imperativo da superação ou da limitação das desvantagens de facto.

Afinal, condicionando-se o exercício dos direitos humanos à situação econômica das pessoas, atenta-se contra a mais fundamental característica dessa categoria de direitos, que é a universalidade13.

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A par deste fundamento, Luigi Ferrajoli (2007, p. 16) aponta, também, a promoção da paz, da igualdade e a proteção da democracia. 11 Conferir ensinamentos nesse sentido de Jorge Miranda (2008, pp. 241/249). 12 Ac. nº 497/96, Rel. Cons. Luís Nunes de Almeida, 2ª Sessão, julgado em 20.03.1996 (apud MIRANDA, 2008, 334). 13 Conferir, nesse sentido: Julieta Morales Sanchez (2011, pp. 85-94).

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2. OBSTÁCULOS AO EXERCÍCIO DO ACESSO À JUSTIÇA E AO DIREITO PELOS POBRES Para os pobres, acessar o sistema de justiça é tarefa sobremodo dificultada, não só em face de obstáculos econômicos, mas por conta de empecilhos outros, de índole social e cultural que contra esses vulneráveis, agigantam-se, na luta pela sobrevivência diária. Discorrendo especialmente sobre o obstáculo econômico, Boaventura de Sousa Santos (2010, p.168) constata uma “tripla vitimização” quando do exercício do acesso à justiça e ao Direito pelos pobres: i) porque a justiça civil, em geral, é cara, mas se apresenta especialmente dispendiosa para aqueles cidadãos economicamente mais débeis; ii) dado ao fato de que é justamente nas ações de menor valor (cujos protagonistas, normalmente, são pessoas desse público de que estamos tratando) onde a justiça se torna proporcionalmente mais cara e iii) considerando que o custo econômico adicional decorrente da lentidão do processo onera com especial gravame as pessoas mais pobres. Por óbvio, pessoas mais abastadas, podem, com mais facilidade, pagar para litigar, bem como suportar a demora para a solução do litígio. Os entraves que se opõem a que os pobres acessem o sistema de justiça, contudo, não se restringem ao “preço do litígio”14; há outras barreiras a serem suplantadas. Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, pp. 15-29), já identificaram os seguintes obstáculos: as custas judiciais, as possibilidades das partes e a problemática dos direitos difusos. Especialmente no que atine às possibilidades das partes, os citados pesquisadores do Projeto Florença (1988, p. 9) destacavam que, além do custo econômico, recai, sobre o exercício do direito fundamental ora estudado, um “custo social e cultural” considerável. Fala-se, aqui, em “pobreza no sentido legal”, assim entendida como a “incapacidade que algumas pessoas têm de utilizar plenamente a justiça e suas instituições.” A incidência desses obstáculos sociais e culturais é também explicada por Boaventura de Sousa Santos (2010, pp. 169-170), que os compreende como decorrentes do fato social de os cidadãos mais pobres estarem “mais distantes” da administração da justiça. Trata-se de fenômeno justificável, segundo o escritor português, por várias razões, dentre as quais se destacam: a falta de conhecimento por parte daqueles acerca dos direitos de que são titulares; a dificuldade de estas pessoas reconhecerem nos problema com que se deparam um cunho jurídico; a desconfiança e hesitação em recorrer ao judiciário e as experiências anteriores com a justiça, normalmente malsucedidas. A isso, acresce-se o temor de 14

Expressão manejada por Humberto Peña de Moraes e José Fontenelle T. da Silva (1984, p. 147).

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represálias,

sem

prejuízo

de

outros

complicadores

importantes,

a

exemplo

do

desconhecimento de advogados e da distância que medeia o local em que vivem os pobres em relação ao local em que, normalmente, situam-se os escritórios de advocacias. Com pertinência a esses fatores, Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, pp. 2324) explicam que a falta de “disposição psicológica para enfrentar o processo”, muitas vezes, decorre da desconfiança em relação aos profissionais da advocacia, da complexização dos procedimentos e do ambiente, sobremodo formal, em que se imiscuem os operadores do direito, tudo a resultar em que o “o litigante se sinta perdido, um prisioneiro num mundo estranho”. Seguindo esse mesmo raciocínio, Marta João Dias (2003, p. 143) esclarece que há custos não-econômicos consideráveis quando se exerce o direito de acessar o sistema de justiça, custos esses representados, por exemplo, pelo desgaste psicológico a que se submetem os envolvidos em situações de conflituosidade, pela exposição de suas vidas aos tribunais e pela morosidade na aplicação do Direito.

3. MODELOS DESENVOLVIDOS PELOS ESTADOS NA EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA E AO DIREITO PARA OS POBRES Esclarece Salvador da Costa (2008, p. 12) que não tem sido uniforme a forma de cumprimento pelos Estados da obrigação de facultar aos seus cidadãos o acesso ao direito e aos tribunais. O exercício do acesso à justiça e ao Direito para os pobres se deu, por muito tempo, através da atribuição de um munus honorificum aos advogados particulares. Nesse sentido, a prestação dos serviços advocatícios em relação aos hipossuficientes, por influência dos ideais cristãos, impunha-se a título assistencial e caritativo15, sem que houvesse o recebimento de qualquer contraprestação desses profissionais liberais pelo Estado (ALVES, 2006, p. 46). Considerando a história recente da humanidade, relatam Humberto Peña de Moraes e José Fontenelle T. da Silva (1984, p. 26) que, de forma salutar, a França, em 1851, converteu em direito aquilo que era só caridade16 através do precursor Código de Assistência Judiciária17.

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Em Roma, verbi gratia, a associação dos ideais de igualdade, de humanidade e de altruísmo à advocacia, contribuiu para consolidar o patrocínio gratuito deferido aos necessitados, inspirando, no Digesto, uma dupla previsão quanto a este aspecto (MORAES e SILVA, 1984, p. 21) 16 Decorrência também da laicização estatal após Revolução Francesa de 1789. 17 Trata-se do primeiro código de assistência judiciária de que se tem notícia, segundo (ALVES, 2006, p. 144).

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A ineficiência da advocacia pro bono, como meio exclusivo do desenvolvimento do direito de acesso à justiça para os economicamente mais débeis, demonstrou-se com o tempo e decorria, sobretudo, do próprio sistema econômico então reinante, onde os advogados mais competentes e experientes devotavam mais tempo ao trabalho remunerado (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 32). A isso se acresça o desestímulo que, fatalmente, acometia os profissionais que, por imposição estatal, atendiam aos pobres graciosamente. A visão da assistência judiciária como um “favor legal” vigeu por muitos anos 18, até que, conforme Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 33-34), na Alemanha (19191923), sob a influência do regime social-democrata, estabeleceu-se a obrigação de o Estado remunerar os advogados que prestassem assistência judiciária. Passa a se desenvolver, assim, o sistema Judicare, preconizando, num primeiro momento, o ressarcimento dos advogados pelos serviços prestados e, posteriormente, além do reembolso, uma remuneração pelo trabalho desempenhado (ALVES, 2006, p. 47). De acordo com esse novo sistema, haveria um órgão público incumbido de deliberar sobre quem deveria ser ou não beneficiado por essa prestação assistencial pelo Estado, podendo, contudo, o beneficiário escolher o profissional, em regra (ALVES, 2006, p.48). A finalidade do sistema judicare é proporcionar aos litigantes de baixa renda a mesma representação que teriam se pudessem pagar um advogado. O ideal é fazer uma distinção apenas em relação ao endereçamento da nota de honorários: o Estado, mas não o cliente, é quem a recebe. (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 35)

As críticas que se apontam a esse padrão residem, basicamente, na sua míope visão acerca do quê consiste e alcança o direito fundamental em estudo. Com efeito, pelo sistema Judicare é atacada e combatida com sucesso a barreira econômica em relação ao direito fundamental de aceder ao sistema de justiça, restando, entretanto, incólumes os demais obstáculos outrora identificados. Ademais, o pobre enquanto classe, é ignorado pela visão do sistema Judicare que, em síntese, confia àqueles “a tarefa de reconhecer as causas e procurar auxílio; não encoraja nem permite que o profissional auxilie os pobres a compreender seus direitos e identificar as áreas em que se podem valer de remédios jurídicos” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 38). Com a crise do financiamento do Welfare State, o Sistema Judicare foi sofrendo alterações na Europa (ALVES, 2006, 48) e as mudanças ocorridas no mundo, sobretudo nas décadas de 60 e 70 do século XX, tornaram patente a ineficiência do regime diante das demandas sociais, de maneira que ele foi sucedido, em alguns países, pelo Salaried Staff

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Remonta a essa época a utilização da expressão “beneficiário” da assistência judiciária.

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Model, padrão que teve, nos Estados Unidos, em meados da década de sessenta do século passado, a sua gênese mais aprimorada. O citado modelo estadunidense se insere num contexto social de “guerra contra a pobreza”, onde a efetivação do acesso à justiça e ao Direito passou a ser enxergada como uma importante ferramenta para a redução das tensões e das desigualdades sociais. Tratava-se de um sistema totalmente novo, que seguia estratégias próprias para combater os problemas jurídicos dos mais carentes economicamente, transbordando, assim, a concepção individual da pobreza outrora vigente (SANTOS, 2010, p. 172). A constitucionalista portuguesa Cristina Queiroz (2006, p. 30) rememora que o Tribunal Supremo dos EUA, nos anos 60 e 70 do século XX, interpretou as cláusulas do equal protection e do due process da constituição americana como obrigação de o Estado não discriminar os pobres, indo em alguns casos mais longe para declarar que o Estado tinha o affirmative duty (dever afirmativo) de prover aos pobres os recursos para o exercício do acesso aos tribunais: “numa palavra o tribunal colocou a eliminação da pobreza e a igualdade como ‘pré-condição’ da ‘democracia’.” As barreiras geográficas e de educação passaram, então, a também ser alvo de combate. Desponta, neste sentido, um registro quanto à localização dos escritórios de assessoria aos pobres, os quais passaram a ser instalados, estrategicamente, em sítios com maior número de potenciais assistidos. De outra sorte, o pequeno porte desses mesmos escritórios se propunha a atender a um apelo acolhedor e de informalidade, em contraponto à barreira social e cultural muitas vezes decorrente da própria estruturação (tradicional e formal por demasia) das profissões jurídicas. No mesmo passo, foi fomentada a educação jurídica desse mesmo público-alvo de assistidos, o que permitiu que Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 40) concluíssem: As vantagens dessa sistemática sobre a do judicare são óbvias. Ela ataca outras barreiras ao acesso individual, além dos custos, particularmente os problemas derivados da desinformação jurídica pessoal dos pobres. Ademais, ela pode apoiar os interesses difusos ou de classe das pessoas pobres.

É possível perceber, nesse sistema de advogados assalariados pelo Estado, uma bifurcação na sua forma de organização, de maneira que a remuneração suportada pelo poder público em favor desses profissionais pode se dar de forma direta ou indireta, normalmente, neste último caso, mediante a interposição de uma entidade não-estatal e sem fins lucrativos. Na primeira modalidade, a assistência jurídica aos necessitados é, genuinamente, pública e

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oficial, recebendo a nominação, normalmente, de Defensoria Pública 19. De outra sorte, sobretudo quanto à matéria não criminal, predomina, naquele mesmo país, a prestação da assistência jurídica aos pobres mediante a interposição de entidades não governamentais, as quais, normalmente, não perseguem intento lucrativo, mas recebem do Estado incentivos. Ensina Cleber Alves (2006, p. 49) que essas entidades recebem subsídios do Estado para contratar advogados, os quais estarão vinculados empregaticiamente àquelas, e não ao Estado subsidiador. Reporta-se, aqui, à experiência dos Neighborhood Law Offices, que grande sucesso tiveram na década de 60 do século XX no mesmo país. O modelo de matriz estadunidense serviu como parâmetro ao desenvolvimento da assistência jurídica gratuita aos pobres na grande maioria dos países do continente americano20.

4. O PARADIGMA BRASILEIRO DE DEFENSORIA PÚBLICA A criação da Defensoria Pública, no âmbito interno, pela Constituição Federal de 198821, veio ao encontro dos objetivos eleitos por este estatuto jurídico-político em relação ao Estado brasileiro22, o qual, democrático e de direito que é, proclamou a cidadania e a dignidade da pessoa humana como dois dos seus precípuos fundamentos23. Conforme o magistério de Ives Gandra da Silva Martins (apud DEVISATE, 2002, p. 286), a atual Carta Magna recolocou o Estado a serviço da sociedade, consolidando o perfil de “um Novo Brasil constitucional”, onde a Defensoria Pública se insere “para permitir que as promessas constitucionais, notadamente em tema de direitos civis, econômicos e sociais, não se torne proclamações vãs, retóricas e inconsequentes.24” Teleologicamente, essa instituição brasileira se justifica, ainda, em face dos seus objetivos, que são: velar pela primazia da dignidade da

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Constata-se exitosa experiência norte-americana nesse diapasão desde 1914, em Los Angeles, Califórnia (MORAES e SILVA, 1984, p. 63), onde profissionais, àquela época, já eram selecionados por concurso e tinham seus salários estipendiados pelo Estado para exercer esse tipo de mister. 20 Embora a Defensoria Pública só seja prevista na constituição de oito dos trinta e um estados da América Latina (a saber: Brasil, Honduras, Nicarágua, Paraguai, Venezuela, México, Panamá e Peru), trata-se de instituição presente na grande maioria dos estados americanos e caribenhos, a exemplo de Antigua e Barbuda, Argentina, Bahamas, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Estados Unidos, Guatemala, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Domicana, Trinidad Tobago, Uruguai e Venezuela. 21 Ressalta-se que, anteriormente a esta data, alguns estados da federação brasileira, valendo-se da sua capacidade de se auto-organizarem, criaram, no âmbito dessas unidades federativas, algumas Defensorias Públicas, a exemplo do Estado do Rio de Janeiro, onde a instituição já existe desde 1954. 22 Em especial, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos (art. 3º, I, III e IV, CFB) 23 Art. 1º, II e III, CFB. 24 Trecho de emblemático voto do Min. Celso de Melo prolatado no julgamento da ADI 3643-2 pelo STF (Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, julgada em 08.11.06).

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pessoa humana e pela redução das desigualdades sociais, afirmar o Estado Democrático de Direito, fazer prevalecer e serem efetivados os direitos humanos e garantir os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório25. A essa entidade – que compreende a Defensoria Pública dos Estados da Federação, a Defensoria Pública do Distrito Federal26 e a Defensoria Pública da União e dos Territórios27, foi confiado o mister constitucional de, com exclusividade, fazer com que as pessoas economicamente hipossuficientes acessem o sistema de justiça, tal qual realça o decano Min. do STF Celso de Mello28, em simbólico voto: De nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam – além de desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares – também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional (...), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas (...)

Sob esse ângulo, o acesso à justiça dos pobres é percebido não só como um tema das ciências jurídicas, mas, também, como problemática informada pelas contingências sociais. E, nesse sentido, a defensoria brasileira não foi concebida, apenas, direcionada à solução dos litígios dos pobres individualmente; há, outrossim, uma preocupação que transborda esse enfoque e almeja, a longo alcance, tocar o problema na sua raiz sociológica. A norma constitucional que dispõe sobre a Defensoria Pública29, de matriz aberta, conferiu ampla margem de regulamentação ao legislador infraconstitucional, de forma que este, ao disciplinar a carreira por lei, o fez com bastante amplitude. Em paradigmática manifestação do Min. Sepúlveda Pertence30 (apud SOUSA, 2011, p. 44), a assistência jurídica aos necessitados é, apenas, uma “atribuição mínima compulsória da DP”. Destarte, o dispositivo da Carta Magna funciona, apenas, como “mínimo constitucional”, não havendo, em consequência, “impedimento que os seus serviços se estendam ao patrocínio de outras

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Art. 3º da LC nº 80/94. Recentemente, a EC nº 69/2012 criou a DP do DF, desvinculando-a da União, como era anteriormente; dessa forma, hoje, a União apenas é responsável pela DP dos Territórios e pela DP atuante no âmbito da Justiça Federal, que compreende, por sua vez, a justiça federal comum, a eleitoral, a militar e a do trabalho. 27 Art. 134 §1º da CFB e art. 2º da LC nº 80/94. 28 ADI 2.903, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 01.12.2005, Tribunal Pleno, DJE de 19.09.2008. 29 Art. 134, CFB. 30 ADI 558-RJ, ainda pendente de conclusão do julgamento de mérito no STF. 26

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iniciativas processuais em que se vislumbre interesse social que justifique esse subsídio estatal” 31. À luz do diploma regulamentador da Defensoria Pública no Brasil, a LC nº 80/94, a par da atribuição típica tradicionalmente incumbida aos defensores públicos de prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus 32, estes agentes passaram a titularizar funções atípicas, de acordo com as quais o patrocínio defensorial se impõe independentemente da condição de hipossuficiência do beneficiado desse serviço público, como a que ocorre, verbi gratia, quando o defensor público funciona como curador especial, no âmbito civil33, ou como defensor dativo, no plano criminal34. Há que ser aduzido que a recente reforma perpetrada na aludida legislação organizacional35 ampliou ainda mais o feixe de atribuições da Defensoria Pública, passando a defini-la como “expressão e instrumento do regime democrático36”, alçando-a à condição de “uma grande agência nacional de efetivação da cidadania e dos direitos humanos, voltada exatamente para quem mais carece, na prática, de cidadania e de direitos humanos”, como esclarece José Augusto Garcia de Sousa (2011, p. 11). É assim que, hodiernamente, consoante o mesmo autor (2011, p. 11), a Defensoria Pública vem se ocupando de funções institucionais mais amplas e “tendencialmente solidaristas37”, encontrando-se, de igual sorte, comprometida com grupos vulneráveis e com pessoas vitimadas de formas graves de opressão e violência. Nesse norte, traz-se ao lume que são funções institucionais da Defensoria Pública a defesa dos direitos, individuais e coletivos, do consumidor38, da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado39, bem como a atuação na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas40.

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Em consonância com esse entendimento, a LC nº 80/94, ao listar as atribuições da DP (art. 4º), maneja a expressão “dentre outras”, o que referenda o condão exemplificativo do rol. 32 Art. 4º, I, LC nº 80/94. 33 Art. 4º, XVI, LC nº 80/94 combinado com art. 9º, II, CPC. 34 Art 265, CPP. 35 A LC nº 80/94 foi recentemente alterada pela LC nº 132/09. Trata-se de êxito consequente ao II Pacto Republicano, que estabeleceu, dentre seus objetivos, o fortalecimento da DP. 36 Art. 1º da LC nº 80/94 (com redação dada pela LC nº 132/09). 37 Capitulação proposta por José Augusto Garcia de Sousa (2011, p. 38). 38 Inciso VIII, art. 4º da LC nº 80/94. 39 Inciso XI, art. 4º da LC nº 80/94. 40 Inciso XVIII, art. 4º da LC nº 80/94.

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Nesse novo cenário, não é olvidada a relevante vertente da atividade transindividual da Defensoria Pública brasileira41, a quem tem sido atribuída a função de intervir, judicial e extrajudicialmente, em demandas de cunho coletivo42 onde reste envolvida qualquer pessoa economicamente hipossuficiente, conquanto seja apenas um, dentre vários atores dessa espécie de pleito, guardada a devida pertinência temática entre o interesse a ser tutelado e as finalidades institucionais da Defensoria43. Tudo isso reflete a marca da integralidade aposta sobre a prestação desse serviço público pelo constituinte de 1988, de maneira que, com base em José Augusto Garcia de Sousa (2008, p. 230), pode-se sintetizar defendendo que “o necessitado deve ter acesso, em termos de serviço jurídico, a tudo aquilo que o cidadão abastado ordinariamente usufrui, sem maiores concessões à reserva do possível”. Como esclarece Adriana Britto (2008, p. 22), esse é um “novo espaço institucional” representativo de atribuições “não tradicionais”, “ligadas ao Estado Contemporâneo, emergente a partir da década de 1970, pelo reconhecimento dos direitos de grupos que necessitam de ação conjunta por seus integrantes e pelas organizações legitimadas para a representação coletiva.” Com essa perspectiva, suplanta-se a ideia tradicionalmente reinante no processo civil de relevo aos interesses individuais para, em prestígio ao primado da socialidade, permitir o Direito imiscuir-se em searas de muito maior abrangência, a dos interesses coletivos lato senso. Tratando-se o litígio de forma molecularizada, pretende-se alcançar a máxima efetividade do dispositivo constitucional consagrador do direito de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados44. Impõe-se, aqui, um registro: Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 29), desenvolvendo visão nada perfunctória da problemática que envolve o acesso ao sistema de justiça para os desprovidos de recursos econômicos, na década de sessenta do século passado, já defendiam que isso passa, necessariamente, pela suplantação de um fator complicador, que é o descobrimento de como mobilizar os indivíduos para fazer valer os seus direitos45. Em

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Trata-se de possibilidade inaugurada pela Lei nº 11.448/2007 que, atentando para evolução doutrinária e jurisprudencial, alterou a redação do art. 5º da Lei nº 7.347/1985 para passar a prever a Defensoria Pública como uma das legitimadas à propositura de ação civil pública. A legitimação coletiva deflui, também, dos incisos VII, VIII e X do art. 4º da LC nº 80/94. 42 Utiliza-se a expressão “coletivo”, neste azo, no seu sentido lato, englobando os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. 43 A proposta de redação do art. 20, IV do anteprojeto de Código de Processo Coletivo Brasileiro sugerida pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual ao Congresso Nacional Brasileiro foi nesse sentido. 44 Art. 5º, inciso LXXIV, CFB. 45 A par disso, os mesmos autores incluem também “a ausência de vontade política” como outro elemento que dificulta sobremodo a suplantação dessa problemática.

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contraponto a essa barreira de índole organizacional vislumbrada pelos autores (1988, p. 27) as defensorias desincumbem-se de uma importante tarefa: a de, constatando a conveniência e oportunidade de uma estratégia comum entre vários litigantes (os quais, sozinhos apresentamse impotentes), instruí-los, organizá-los e uni-los, em um todo coeso, numa mesma demanda. Com efeito, legitimada coletivamente, a Defensoria Pública se posta como mecanismo de contrapoder, essencial à democracia atual. Segundo assevera José Augusto Garcia de Sousa (2008, p. 241): “Postulando a bem dos mais fracos, os defensores aproximam-se dos grupos cujos interesses restam frequentemente ignorados em outras instâncias decisórias, ganhando a instituição especial sensibilidade em relação a tais interesses.” Também com o escopo de assegurar a maior efetividade possível à norma consagradora da assistência jurídica46, integral e gratuita, aos necessitados, é prevista a atribuição extrajudicial à Defensoria Pública47. Com base nesta, os defensores públicos devem primar pela realização de conciliações, de transações e de mediações48 em detrimento do ajuizamento desmedido de ações, resultando, disso, maior agilidade na resolução dos conflitos, a par de louvável desobstrução do Poder Judiciário. Além disso, algumas funções institucionais da Defensoria Pública consubstanciam importantes ferramentas auxiliares ao almejado empoderamento dos cidadãos brasileiros. Realça-se, nesse diapasão, a vocação para a promoção dos direitos humanos, inclusive através da representação aos sistemas internacionais49 e da difusão e da conscientização desses direitos, o que vem ao encontro do quanto estabelecido internacionalmente50. Afinal, como leciona John Rawls (apud ALBUQUERQUE, 2011, pp. 305-306), “a democracia constitucional deve ter instituições políticas e sociais que efetivamente conduzam os cidadãos a adquirir o senso de justiça que lhes permita crescer e tomar parte na sociedade.”

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Impõe-se, aqui, um registro histórico: a Constituição de 1946, segunda constituição brasileira democrática, estabelecia ao Estado o dever de prestar aos economicamente desfavorecidos “assistência judiciária”. Com a CFB de 1988, o termo restritivo foi substituído pela locução “assistência jurídica”, o que foi responsável por autorizar os defensores públicos aturem em todos os âmbitos, judicial ou extrajudicial, individual ou coletivo, em favor de pessoas desprovidas de recursos econômicos. 47 Art. 4º, inciso II, LC nº 80/94. 48 Dados coletados pelo Ministério da Justiça do Brasil (III Diagnóstico da DP no Brasil, 2009, p. 156) revelam que, apenas no ano de 2008, foram realizados, no âmbito cível, 136.480 acordos extrajudiciais. 49 Art. 4º, inciso VI, LC nº 80/94. 50 Nesse sentido, registra-se o enunciado nº 16 do documento resultante da XIV Conferência Judicial Iberoamericana, que teve lugar em Brasília, durante os dias 4 a 6 de Março de 2008 (cfr. Parte II, Capítulo I).

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Decerto, a instalação da Defensoria Pública no Brasil e efetivação das prerrogativas desta, não se perfizeram perfeitas automaticamente, com o advento da Constituição Federal de 1988. É que: a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da Constituição – ainda quando teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada – subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem51

Entrementes, há que ser ressaltado que dados do último diagnóstico promovido pelo Ministério da Justiça (2009) “confirmam a tendência de evolução na estrutura da instituição e mais uma vez demonstram a importância da Defensoria Pública para a população52”; revelam, também, que, embora (ainda) poucos em termos numéricos53, os defensores públicos brasileiros têm conseguido, a cada avaliação, um incremento substancial na promoção do acesso à justiça no Brasil. Registra-se, verbi gratia, que, não obstante, no período de 2006 a 2008, apenas tenha ocorrido um incremento de 4,48% em relação ao número de Defensores Públicos: O número de atendimentos realizados pelas Defensorias Públicas aumentou em 45,17%. Com relação ao número de ações ajuizadas ou respondidas, o aumento no período foi de 66,59%. O número de audiências com a participação de Defensores Públicos nos últimos três anos, assim considerados os atos voltados para a instrução de um procedimento judicial ou administrativo, aumentou em 52,57%. Ainda nesse período, os acordos extrajudiciais que contaram com a participação de Defensores Públicos tiveram um aumento de 65,14%, e as prisões em flagrante comunicadas à Defensoria Pública tiveram um aumento de 129,96%. (...) Entre 2006 a 2008, o número de habeas corpus impetrados endereçado ao Superior Tribunal de Justiça, 54 por um Defensor Público aumentou 63,78% .

5. CONCLUSÃO Em razão dos argumentos expostos, restou demonstrado que a efetivação do acesso à justiça e ao Direito consubstancia problemática jurídica e social cujo enfrentamento representa imperativo de igualdade e premissa para a implementação de outros direitos fundamentais. Constatou-se, ainda, a existência de obstáculos consideráveis de índole econômica, social e cultural a serem suplantados pelos pobres quando do acesso ao sistema de justiça.

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STF, RE 147.776, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19.05.1998, Primeira Turma, DJ de 19.06.1998. 52 III Diagnóstico da DP no Brasil, 2009, p. 10. 53 Segundo o III Diagnóstico da DP no Brasil, apenas 41% das comarcas brasileiras contam com defensores públicos (2009, p. 126). 54 III Diagnóstico da DP no Brasil, 2009, pp. 261-262.

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Outrossim, em decorrência da indeterminabilidade do conteúdo do direito fundamental em comento, percebeu-se, ao longo da história, que há inúmeros modelos desenvolvidos pelos diferentes Estados. Efetivamente, foram caracterizados os três principais sistemas i) Caritativo ou de Advocacia Pro Bono; ii) Judicare e iii) de Advogados Públicos, malgrado não tenha sido descartada a existência de modelos híbridos, decorrentes da combinação de regras dos padrões citados. Restou assentado que o Salaried Staff Model – desenvolvido inicialmente nos Estados Unidos e, hoje, predominante na grande maioria dos países do continente americano, consubstancia salutar ferramenta estatal na promoção da almejada revolução democrática da justiça. Nesse diapasão, inseriu-se o estudo do paradigma brasileiro de Defensoria Pública, demonstrando-se a evolução histórica desta instituição, o alargamento das suas atribuições institucionais e a salutar contribuição que esse organismo estatal vem dando para a efetivação não só do acesso à justiça e ao Direito, mas dos direitos fundamentais em geral no território brasileiro.

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REFORMULAÇÃO DO PROCESSO CIVIL CLÁSSICO: A BUSCA POR UM PROCESSO CIVIL HUMANIZADO EM HARMONIA COM AS TUTELAS MATERIAIS PRÓPRIAS DO ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO.

Priscila Moreira Gouveia55 Resumo Tendo em vista que todo o ordenamento jurídico brasileiro é norteado pelos preceitos e princípios constitucionais oriundos da Constituição da República de 1988, o processo civil deve atender as demandas sociais e às tutelas materiais prometidas pelo legislador pátrio. Neste ínterim faz-se mister sua humanização através de uma substancialização da técnica processual. A presente pesquisa é, parcialmente, parte integrante de trabalho de conclusão de graduação em direito na Faculdade Paraíso do Ceará e objetiva abordar o processo evolutivo do direito processual civil brasileiro e a necessidade de a técnica processual estar voltada ao atendimento das demandas sociais, na forma das mais diversas tutelas materiais que podem ser pleiteadas em juízo. Para atender a tal meta, foi construído um trabalho de abordagem metodológica qualitativa, através de pesquisa do tipo bibliográfica, em que foi realizada revisão de literatura de diversos processualistas civis brasileiros e, principalmente, da obra do ilustre Luiz Guilherme Marinoni, marco teórico da recente investigação. Foi utilizado como método de abordagem o método dialético e como método de procedimento o analítico-descritivo. Diante do teor extremamente atual do epigrafado trabalho visualiza-se, por ora, que, de fato, para atender ao espírito da Constituição Federal de 1988 e ao caráter social do atual estado constitucional de direito faz-se imprescindível uma humanização do processo civil, devendo este ter por preocupação precípua atender aos princípios constitucionais-processuais utilizando-se da técnica processual que melhor se adapte as tutelas materiais pleiteadas em juízo. Palavras- chave: Processo Civil. Humanização. Tutelas judiciais. Abstract 55

Advogada. Subprocuradora-adjunta do Município de Juazeiro do Norte. Graduada pela Faculdade Paraíso do Ceará. Pós-graduanda em Direito Público pela Faculdade Paraíso do Ceará. 15

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Having in sight that all Brazilian juridical order is guided by constitutional principles born at 1988's Republican Constitution, the civil procedure must attend to every social demand and to material injunctions by the legislator. By this means, its important to proceed to humanization through a procedural technique. This research is partially piece of the Graduation's Final Paper of Law College "Faculdade Paraíso do Ceará". It intends to study the evolution of civil procedure in Brazil and the needs to have an procedural technic that look over social demands in the form of the most various material injunctions that can be argued at Judicial System. To proceed to this goals, it has been used an qualitative approach by bibliographic research in which it has been done literature review about the great Luiz Guilherme Marinoni's work. It has been used dialectic method to approach and analytic-descriptive method to proceed. It has been noticed that to attend the law's spirit of the 1988's Constitution the civil process must be concerned about attend to the constitutional principles using the technique that most correctly fits the protected rights. Keywords: Procedure. Humanization. Judicial Injunctions. Introdução

Diante da iminente aprovação de um novo código de processo civil, que trará inovação técnica e conceitual para o direito processual civil brasileiro, faz-se mister compreender de que forma o direito processual civil está inserido na sociedade, qual o papel fundamental que cumpre no contexto macroestrutural do ordenamento jurídico brasileiro e de que forma se relaciona com as mudanças sociais. Considerando a absoluta necessidade de humanização do processo civil para que, através de sua substancialização, esteja em consonância com as tutelas materiais oferecidas pelo direito, visualiza-se a possibilidade de obtenção da chamada prestação jurídica adequada, atendendo-se aos princípios e preceitos fundamentais da Constituição Federal de 1988 e ao espírito do atual Estado Constitucional de Direito. Fez-se oportuna, portanto, a produção da presente pesquisa acadêmica, que atendeu a uma metodologia de abordagem qualitativa, através de uma pesquisa bibliográfica, estruturada através de extensa revisão de literatura. Para sua constituição foi ainda utilizado o método de abordagem dialético e o método de procedimento analítico-descritivo. 16

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Para atender ao objetivo precípuo de compreender as mudanças de perspectivas teóricas que acompanharam o processo evolutivo do processo civil o presente trabalho foi dividido em quatro capítulos que tratam, nesta ordem, sobre a necessidade de transformação do código de processo civil e as sucessivas alterações às quais foi submetido, primeiramente; seguido de um segundo capítulo que descreve as peculiaridades do surgimento do estado liberal clássico; sendo este anterior a um terceiro capítulo que explica o rompimento do liberalismo e de seu positivismo e o surgimento do pós-positivismo característico do atual estado constitucional de direito; e como capítulo final: breve comentário sobre as tutelas materiais e o que elas representam em termos de inovação técnica para o direito processual civil brasileiro. Esta breve investigação consubstancia, parcialmente, parte integrante de trabalho de conclusão de graduação de direito e justifica-se na medida em que trata de tema de suma importância para o processual civil: a humanização do processo através da inovação técnica processual e sua importância para a sociedade. 1. Um processo em evolução e a necessidade de transformação Este é um tempo de mudança para o processo civil brasileiro. Um novo código de processo civil está a beira do nascimento e com seu surgimento vários conceitos do atual código serão reformulados, outros substituídos e alguns até desaparecerão. Desta iminente mudança é que surge a necessidade de conhecer ao máximo o código atual. Pois somente entendendo o código atual é que será possível compreender e apreender concretamente a nova perspectiva jurídica trazida pelo novo CPC e o significado real das mudanças que traga. Ademais, é sabido que o atual CPC sofreu inúmeras alterações, passando a ser chamado por diversos processualistas de “de colcha de retalhos”. Fato este que reforça a necessidade de entender o código. Entrementes, o código de processo civil não engloba a complexidade da matéria, somando-se ainda à doutrina processual, com todas as divergências e consensos dos mais ilustres doutrinadores. Isto é esclarecedor, porém também é perturbador, pois o processo não existe como um fim em si mesmo. Existe por uma razão social. Ele existe, pois há uma demanda social materializada. Neste sentido observe-se o pensamento do renomado professor Luiz Guilherme Marinoni (2012, 19):

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A tomada de consciência de que o processo deve servir plenamente àqueles que, dentro do círculo social, podem envolver-se em conflitos – sejam empresários ou trabalhadores, ricos ou pobres – fez com que o direito processual assumisse uma postura mais humana, ou mais preocupada com os problemas sociais, econômicos e psicológicos que gravitam ao redor de suas conceituações e construções técnicas.

Desta forma é possível compreender porque não haveria razão de ser da existência do processo civil se não houvesse a necessidade de se tutelar jurisdicionalmente um direito material. E esta premissa aplica-se tanto ao exercício da jurisdição voluntária, isto é, quando não há um conflito in casu, como também ao exercício da jurisdição litigiosa. O processo existe, portanto, enquanto instrumento de concretização do direito material, pois este não pode ser realizado sem um processo, devido e legal que seja capaz de viabilizar o alcance do direito pleiteado. Esta ideia, um tanto quanto vaga, no contexto jurídico brasileiro sofreu um acréscimo colossal desde 1988. Pois neste ano foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil e esta além de possuir características ímpares, como: ser uma das constituições mais prolixas e analíticas do mundo, possui uma característica primeira e essencial: deve servir de parâmetro para todo o direito brasileiro, ao mesmo tempo em que o limita, ou seja, toda e qualquer lei infraconstitucional deve estar de acordo com os preceitos constitucionais. Estes preceitos constitucionais, por sua vez, formam uma rede gigantesca de princípios, direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos. Este arcabouço de direitos fundamentais formado pela constituição, frise-se, é imodificável, exceto se for para estender, isto é, aumentar direitos e garantias. Fazendo a devida ilação percebe-se que o processo civil, como uma das formas de expressão do direito no mundo jurídico, deve obedecer à constituição, assim como também manifestar seus anseios e seu espírito, isto em relação ao direito material pela constituição protegido, como também em relação aos princípios fundamentais, trazidos pela constituição, que devem ser respeitados e empregados quando da confecção e execução do processo civil. Esta é uma das principais razões para tantas das alterações sofridas pelo CPC desde 1988 até os tempos atuais, assim como também razão suficiente para a confecção 18

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de um novo Código de Processo Civil, já que o Código atual não possui mais condições de suportar o contexto social atual. Note-se: o processo civil é extremamente complexo e deve obedecer a uma série de princípios, tais como o devido processo legal, a duração razoável do processo, a celeridade, a isonomia processual, entre tantos outros. Ademais de tais princípios, o corpo do processo civil é formado por uma série de elementos constitutivos, entre os quais se encontram as chamadas técnicas processuais. A técnica processual é um ponto basilar, se não o ponto fundamental do processo, pois a forma como é empregada é determinante no que tange ao sucesso na busca por um processo efetivo. Apesar da confusão conceitual sobre o que viria a ser efetividade processual, se seria a obtenção do bem da vida pleiteado, ou se a existência de um processo justo, ou um processo célere e econômico ou se um processo que agrade ambos os polos da demanda jurisdicional, mesmo sem este estabelecimento fixo do que vem a ser efetividade, trabalhar-se-á por hora com a ideia de que efetividade processual é uma prestação jurisdicional adequada56. Esta prestação estatal somente pode existir, somente pode tornar substancial o direito material se o processo for tecnicamente adequado. Neste sentido o pensamento de José Roberto dos Santos Bedaque (2006, p.20):

Como instrumento de solução das crises de cooperação existentes no plano substancial, espera-se que o processo cumpra seu mister. E a elaboração dos fundamentos, princípios e regras necessários a que esse escopo seja atingido cabe aos que se dedicam ao estudo das regras que compõe o direito processual. Analisá-lo cientificamente não pode significar apenas estabelecer as bases de sua autonomia. É preciso encontrar a técnica mais adequada a que o instrumento produza o resultado desejado. Dotar o processo de efetividade prática constitui preocupação não só do processualista, mas de todos os que têm consciência da importância da atividade jurisdicional para realização dos direitos.

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De acordo com as palavras de Luiz Guilherme Marinoni: A tutela jurisdicional quando pensada na perspectiva do direito material, e dessa forma como tutela jurisdicional dos direitos, exige a resposta a respeito do resultado que é proporcionado pelo processo no plano do direito material. A tutela jurisdicional do direito pode ser vista como a proteção da norma que o institui. Trata-se da atuação concreta da norma por meio da efetivação da utilidade inerente ao direito material consagrado. (2010, p. 113-114)

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A técnica processual surge para atender a demanda social e, no caso do Brasil, para atender também aos preceitos constitucionais. É justamente por isso que o processo civil evolui, é por isso que a legislação processual é alterada e, no caso do processo civil brasileiro, atualmente é chamada colcha de retalhos. É perceptível que os preceitos constitucionais trouxeram uma nova perspectiva jurídica, assim como também deu aos brasileiros um leque de direitos e garantias individuais e coletivos que lhes assegurou um maior acesso à justiça, havendo inclusive, em seu corpo, o artigo 5º, inciso XXXV, que diretamente deu vazão a existência da garantia fundamental de acesso à justiça, propriamente dita. E ai estava a determinação constitucional impondo que a lei não extirpe do poder judiciário a apreciação de lesão ou ameaça a direito, nos termos da própria constituição. Porém, como fazê-lo? A constituição garantiu ao pleiteante de direito que, atingidas as necessárias condições da ação, nos termos do código atual, quais sejam: legitimidade da parte, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido, qualquer um, com capacidade civil para pleitear em juízo, poderia ter acesso ao judiciário. Esta ‘permissão’ deu vazão a uma enorme busca pela atuação do estado jurisdicional. O problema é que o sistema judiciário não estava preparado para lidar com o estouro da demanda social. E aqueles que recorrem ao judiciário têm pressa. Querem retornar a um status quo, querem que sejam constituídas relações jurídicas, querem que sejam desfeitos vínculos jurídicos, querem ter seus títulos de crédito executados, querem ter obrigações contratuais cumpridas, obrigações de fazer cumpridas, querem que condutas ilícitas sejam inibidas, entre tantas outras formas de tutela, e quando da promulgação da constituição de 1988 não havia como se dispor de um processo célere, econômico e satisfatório. Aos olhos do ilustre José Roberto dos Santos Bedaque (2006, p. 22-23) vários são os fatores que condicionaram o despreparo do processo civil brasileiro e o evidenciaram como insatisfatório, conforme pode ser observado em trechos de sua obra transcritos abaixo:

(...) o grande movimento destinado a ampliação do acesso ao Poder Judiciário, representado pelas denominadas “ondas renovatórias” do processo civil, pode ser analisado por dois ângulos. Facilitou-se o ingresso e, 20

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em consequência, o número de processos aumentou de forma espantosa. Não foram adotadas, todavia, medidas visando adequar o Poder judiciário e a técnica processual a essa nova realidade. Além de a estrutura permanecer praticamente inalterada, são empregados métodos de trabalho ultrapassados. O quadro de juízes é também manifestamente insuficiente (...) Os litígios são em número muito superior à capacidade de absorção do Poder Judiciário – o que acaba comprometendo a tão almejada celeridade processual (...) Apontase o apego exagerado à forma – e a consequente desconsideração do direito substancial – como um dos fatores decisivos para o agravamento da crise neste setor estatal (...)

Somados a estes fatores o professor Bedaque (2006) ainda agrega uma certa indisposição por parte dos demais poderes estatais, em especial do poder executivo, assim como as alterações sofridas pelo próprio direito material, que em tese, exigiria alterações de igual calibre por parte do processo civil para que este fosse capaz de acompanhar o ritmo do direito material. Culminando, esta reunião de fatores, na notória morosidade processual. Observe-se que a morosidade é a consequência de uma série de variáveis desfavoráveis, isto é, a morosidade não é a causa dos problemas do sistema judiciário brasileiro, mas sim um efeito gerado por origens diversas.

2. O Estado Liberal Clássico Toda esta mudança no processo civil ocorreu porque o processo como existia anteriormente não era capaz de abarcar as situações da vida concreta, então foi se instrumentalizando o processo, modificando-o, tornado-o mais abrangente e conectado com a realidade. Entretanto, por que isso se fez necessário? Por que o processo como existia não abrangia as situações da vida cotidiana? A insensibilidade processual advém de sua origem e das razões e momento histórico no qual foi implementado, ou seja, a forma que o processo assume está de acordo com sua finalidade precípua. Observe-se, neste sentido, o pensamento do respeitável Luiz Guilherme Marinoni (2010, p. 54-55):

O processo, como instrumento, serve a um fim. De modo que a sua função e estrutura dependem de seu objetivo. Isso quer dizer que a função e estrutura do processo de conhecimento clássico são consequências da finalidade que 21

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lhe foi atribuída por aqueles que o moldaram. Assim a pergunta sobre a função do processo civil clássico exige, como antecedente lógico, a análise dos objetivos do Estado liberal e, assim, o simples retorno aos valores que o inspiraram. (...) o direito liberal clássico, além de eminentemente patrimonialista, era marcado pela preocupação fundamental de delimitar rigidamente os poderes de interferência do Estado na esfera jurídica dos particulares.

Esta forma de ser do Estado liberal clássico prezava por uma igualdade formal. Isto porque durante o liberalismo havia uma imensa preocupação em limitar ao máximo a interferência do Estado nas relações particulares e em seus vínculos jurídicos. Este comportamento tem sua origem na ideia de garantia da liberdade política das pessoas enquanto houvesse igualdade entre lei e julgamento, assegurar-se-ia dessa forma que o julgamento particular do magistrado não interferisse na certeza do direito. E é este pensamento que motiva Montesquieu a criar a expressão que trata o juiz como bouche de la loi (MARINONI, 2010). Deve-se ter em conta que o marco de seu surgimento é a Revolução Francesa. Este Estado surgiu em meio a uma crise. O absolutismo monárquico comandava a Europa continental e não havia uma dissociação clara entre o judiciário e a administração pública. Aquele agindo muitas vezes como extensão desta. A doutrina ensina que havia um enlace tão forte entre magistrados e o sistema feudal da época anterior a revolução francesa, que qualquer mudança legislativa que alterasse o regime era rejeitada de imediato e que para manter a rede de corrupção os cargos de juízes eram hereditários, estando, inclusive, à venda. Para aniquilar o sistema, o parlamento impôs-se sobre o absolutismo do rei e soberana passou a ser a lei. O principal princípio, portanto, deste Estado, era o da legalidade formal que, por conseguinte, impunha a existência de uma igualdade, também formal, para impedir que qualquer posição social possuísse influencia jurídica. Este absolutismo da lei também originou o caráter declaratório das sentenças legais e da própria atuação do sistema judiciário. Percebe-se, portanto, que sua intenção era o alcance de um direito certo estritamente vinculado a autoridade do qual emana. Faz-se oportuno observar que troca-se a tirania monárquica por uma tirania do poder legislativo que despreza totalmente a realidade das pessoas através da imposição de uma igualdade formal que busca acima de tudo o estabelecimento de segurança jurídica. Em nome da liberdade sim, mas que também não é capaz de alcança-la, justamente por desprezar 22

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as circunstâncias adversas concretas da vida e impedir qualquer interpretação por parte do magistrado. O renomado Carlos Luiz Strapazzon (2008, p. 75) comenta o pensamento de Cesare Beccaria e esmiúça esta ideia através do seguinte comentário:

Nesse século XVIII, em especial na França, o legítimo intérprete das leis não poderia ser o juiz. A cada delito que se apresentasse a um magistrado, seu papel seria realizar um perfeito silogismo aplicador da lei geral aos fatos para não “abrir as portas para a incerteza”. Em nome da segurança jurídica e da preservação das liberdades contra o arbítrio, o magistrado deveria se abster de pretender “consultar o espírito das leis”, coisa que, nessa visão, seria muito perigosa, pois abriria uma torrente de opiniões pessoais que não melhorariam em nada, diz Beccaria, a proteção aos direitos de liberdade.

E é neste Estado legalista que surge o positivismo jurídico. A partir deste breve relato histórico é possível então compreender o distanciamento entre o processo e a realidade social, posto que o direito brasileiro possui profundas influencias advindas do direito italiano, do direito francês e do direito alemão.

3. O Atual Estado Constitucional É verdade que hoje se vivencia um Estado Social Democrático de Direito, que por alguns doutrinadores é denominado de Estado Constitucional (MARINONI, 2008), e esta nova forma de ser do estado almeja a concretude de um pós-positivismo, de um neoconstitucionalismo, muito mais adequado ao espírito da constituição. A ruptura entre o positivismo jurídico clássico e o nascimento do póspositivismo tem como marco a segunda guerra mundial. Esta se tornou um parâmetro para reflexão pois todas as atrocidades contra a humanidade que foram ali cometidas, todas elas estavam embasadas na lei, isto é, havia autorização legal para torturar, para matar, para extirpar a dignidade de diferentes grupos sociais. A ideia de que a matança e tortura eram legalmente autorizadas fez inúmeros autores e intelectuais perceberem que a lei não podia ser valorada por si só, que não podia ser obedecida simplesmente por ser lei e por ter nascido de uma autoridade competente para confeccioná-la. Percebeu-se, portanto, que a lei tinha de possuir um conteúdo ético, pressupondo um retorno ao jus-naturalismo. Nascia então a união entre valor e norma. 23

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É exatamente neste raciocínio que se fundamenta a constituição da república atual, que possui como núcleo axiológico a dignidade da pessoa humana, e considerando-se que enquanto norma maior todo o direito deve a ela obediência, todo o direito brasileiro é limitado por este mesmo valor ético central. Desta forma, não faz sentido a existência de uma lei que despreze os valores inerentes à constituição. Estes valores estão contidos em cada um dos princípios e em todos os direitos e garantias individuais e coletivos trazidos pelo texto constitucional. Sendo assim, é possível entender porque a lei não é suficiente para reger o processo, porque o processo deve atender as mudanças da contemporaneidade e seus valores, porque é preciso considerar-se as peculiaridades da realidade social e porque o magistrado deve estar apto, através dos instrumentos corretos, à atender a demanda daquele que recorre ao sistema judiciário. Neste ponto cabe ressaltar que uma das razões que motivou a origem dos procedimentos diferenciados57 foi justamente a pretensão de atender a grupos diferenciados com demandas específicas. Entretanto, há um caráter paliativo em seu surgimento. Se a máquina do judiciário fosse capaz de atender em tempo hábil às necessidades sociais, não seria preciso uma especialização procedimental para realizar tal feito. E considere-se ainda que, conforme comentam inúmeros doutrinadores, alguns procedimentos diferenciados por vezes surgiram, não por uma justa e nobre causa, mas sim para atender a grupos e lobbys existentes nas castas das casas legislativas, descaracterizando totalmente o espírito democrático da constituição. O processo civil com bastante esforço técnico-científico destacou-se enquanto matéria autônoma do direito material. Talvez este destacamento tenha mitigado um pouco da sensibilidade da disciplina para com a vida cotidiana durante algumas décadas. O processo, afastado que estava das demandas do povo, foi sendo ramificado em procedimentos 57

Mais uma vez é preciso compreender a origem para entender a consequência. Entre as principais influencias do direito brasileiro estão o direito italiano, o direito francês e o direito alemão. A pandectística alemã, escola jurídica em que havia a preocupação de extrair do direito romano princípios e conceitos reformulados, e que orientou a ideia de codificação do direito civil alemão, simplesmente não se preocupava com a situação jurídica concreta. Luiz Guilherme Marinoni, em sua obra Teoria Geral do Processo, ratifica este pensamento: “A existência de obstáculos sociais que pudessem impedir a parte de participar efetivamente do processo ou a inexistência de normas capazes de conferir ao procedimento adequação à situação substancial carente de tutela evidentemente não constituíam questões capazes de interferir em sua elaboração teórica. A pandectística, do mesmo que o jusnaturalismo racionalista, tem em conta o “cidadão sem rosto”, expulsando a realidade concreta ao elaborar os seus “conceitos abstratos”. Era natural, assim, que o processo, como construção jurídica abstrata não preocupada com a realidade da vida, desprezasse o direito material e o caso concreto.” (MARINONI, 2008, p.418)

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que se adaptassem melhor as necessidades sociais, ou aos grupos lobbystas, em fim, procedimentos diferenciados. Entretanto, no atual Estado Constitucional, o processo é o procedimento em si, por mais estranha que pareça esta afirmação, pois que deve haver uma fruição de possibilidades entre as partes, o juiz, a situação de fato e os recursos jurídicos disponibilizados pelo legislador, ou seja, como no processo deve haver uma sincronia tal entre o processo, seus instrumentos e as necessidades sociais que o processo se mistura ao procedimento e estes passam a figurar como um só. (MARINONI, 2008) E é deste contexto harmônico entre as partes que compõe o processo, o julgador e os instrumentos jurídicos que destaca-se a importância das tutelas materiais, enquanto coração que impulsiona o processo. Este existe para fazer existir o direito prometido pelo legislador. Explicando melhor: Se no mundo dos fatos surge a necessidade de uma tutela preventiva de remoção de um ilícito ambiental é preciso que o processo dê vazão a concretização de tal direito para o Estado, como uma resposta a imanente necessidade social. Para tanto a designação de tais tutelas e as formas que por elas devem e podem ser assumidas devem estar claramente determinadas na doutrina. Para melhor entender tal temática, segue abaixo um breve comentário sobre as tutelas materiais no direito processual civil brasileiro.

4. Tutelas materiais O legislador somente pode disponibilizar ao sistema judiciário determinado recurso técnico quando é conhecida a necessidade de tal instrumento. Com a mudança crescente de mentalidade da doutrina processual brasileira e, por conseguinte, do legislador, foram sendo reconhecidas novas formas de tutela material. Frise-se que antes havia uma super valorização da tutela ressarcitória no Brasil, em detrimento das inúmeras variáveis que acometem a vida prática, entretanto o entendimento de que a tutela ressarcitória não é suficiente significou um salto intelectual para o pensamento processual. Primeiramente há de se ter em mente que por vezes não haverá dano a bem jurídico, porém haverá ato contrário ao direito e, portanto, cometimento de ato ilícito. Quando há um dano há clara obrigação de reparar, entretanto quando há ato contrário ao direito o que 25

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há para ser reparado? E considere-se ainda que nem todo direito tem conteúdo patrimonial, logo, às vezes simplesmente não faz sentido atrelar uma reposição em dinheiro

ao

estabelecimento de determinada situação. Observe-se ainda que as tutelas materiais representam o que acontece no mundo fático, isto é, as situações de fato que chegam até o judiciário e implicam numa determinada forma de expressão do direito. Esta forma de expressão do direito substancializase em diferentes formas de ação. Ressalte-se que há diferentes classificações das ações para diferentes autores. Há teorias que entendem existir somente três tipos de ações/sentenças, quais sejam: condenatórias, declaratórias e constitutivas, por outro lado há teorias que entendem existir cinco tipos distintos de ações/sentenças. O que diferenciaria tais ações seria sua carga de eficácia. Isto porque é realmente difícil imaginar que existam ações cujas sentenças sejam puramente condenatórias, puramente constitutivas ou puramente declaratórias. Visualiza-se, no entanto, que há cargas preponderantes de eficácia nos conteúdos materiais de tais ações e, consequentemente em suas ratio decidendi. Neste sentido, conforme as palavras do consagrado doutrinador Kazuo Watanabe (1987) no que tange a teoria das ações que melhor se adequaria as profícuas possibilidades representadas pelas diversas tutelas materiais existentes seria a teoria quinaria das ações de Pontes de Miranda, brilhantemente sintetizada pelo espetacular Kazuo Watanabe da seguinte forma (1987, p. 28): Pontes de Miranda classifica as ações segundo a carga de eficácia. Leva em conta a preponderância de uma das cinco pretensões de direito material, a cuja tutela são criados os remédios técnicos processuais. Tais pretensões são de condenação, de declaração, de constituição, de execução e de mandamento. (...) Adverte, porém, que a ‘classificação ganha em valor teórico e prático se formos mais rigorosos e atendermos ao fato de que a ação declaratória não é mais que a ação mais cheia de elemento declarativo do que as outras’ e a que as demais ações subclasses das ações de cognição ‘são ações em que o elemento de condenação, de constituição, ou madamento sobreleva, e que a própria ação executiva lato sensu é declarativa, no seu tanto’.

Conforme ensina o professor Kazuo Watanabe (1987) há uma relação intrínseca na teoria de Pontes de Miranda entre tutela material pleiteada e carga de eficácia da

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pretensão em juízo. Através da união destes elementos passa a ser muito simples entender o porque da tutela ressarcitória ser insuficiente para o direito brasileiro. O surgimento de uma tutela preventiva no direito processual civil brasileiro se deu exatamente para atender a estes dois pontos: primeiramente para atender a uma demanda situacional, pois era preciso tutelar o direito material ao prevenir ato contrário ao direito ou removê-lo. E, em relação ao tempo, para, através da união com a técnica de antecipação dos efeitos práticos de uma tutela material inibitória ou de remoção de ilícito, impedir em tempo hábil a conservação de uma conduta contrária ao direito ou preveni-la. Ambas constituem exemplos clássicos da evolução positiva do processo civil, na qual se observa uma tendência de horizontalização da técnica processual, isto é, um processo voltado eminentemente para a humanização através de um leque de instrumentos jurídicos direcionado para atender as demandas sociais. Esta evolução do direito não significa que as formas de tutelas já ofertadas eram ineficientes em seu conteúdo, mas sim quer dizer que eram inadequadas ao caso concreto por diversas vezes. Hoje o direito processual brasileiro dispõe de um rol realmente satisfatório de formas de tutela, tais como: tutelas pecuniárias (tutela específica e tutela pelo equivalente), tutelas preventivas (tutela inibitória e tutela de remoção do ilícito) e tutelas de urgência (tutela antecipada e tutela cautelar).

5. Conclusão

O direito processual civil brasileiro nasceu a partir de diversas influências estrangeiras e ainda as sofre. Passou por diversas mudanças que por vezes acompanhavam as tendências europeias em termos de processo civil. Hoje o processo civil brasileiro possui forma própria e inúmeras são suas peculiaridades quando comparado à doutrinas estrangeiras. O Brasil vive hoje um Estado Constitucional de direito, que possui toda a doutrina e legislação

pátrias

pautadas

nos

ditames constitucionais,

nos

limites

constitucionalmente impostos e, acima de tudo, orientado e determinado pelos princípios e preceitos da Constituição da República de 1988. Desta forma, o processo de forma geral, assim como todo o ordenamento jurídico brasileiro, obedece a Constituição da República e não pode estar em desacordo com seus princípios. Logo, o processo civil deve estar em conformidade com os princípios da 27

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duração razoável do processo, do devido processo legal, da harmonia entre as partes e da efetividade processual, entre tantos outros. Este processo civil, em conformidade com o Estado Constitucional, existe enquanto instrumento de realização do direito material e das tutelas materiais pelo legislador asseguradas e que estejam em acordo com os princípios e direitos fundamentais da constituição da república. O processo civil, portanto, evolui, em termos de técnica processual e em termos doutrinários para atender às necessidades sociais, pois a razão de ser existencial do direito processual civil é atender a esta demanda social, ser coerente e substancial em relação às tutelas materiais e sempre atender aos preceitos constitucionais.

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PRAXIS E FORMAÇÃO NA EDUCAÇÃO JURÍDICA Regio Hermilton Ribeiro Quirino58

SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................

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1. SER HUMANO, FILOSOFIA E PRÁXIS.................................................................

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2. A IDEIA DE FORMAÇÃO.......................................................................................

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3. EDUCAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL E FORMAÇÃO, UM EXEMPLO.................

08

4. CONCLUSÕES.........................................................................................................

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RESUMO Este artigo discute sobre a Educação jurídica a partir de dois conceitos fundamentais para a Filosofia antiga, práxis e formação, e como estes influenciam a prática jurídica hoje em dia. ABSTRACT This article discusses about on Legal Education from two fundamental concepts to ancient philosophy, praxis and formation, and how they influence legal practice today.

PALAVRAS-CHAVES Filosofia; Práxis; Formação; Educação jurídica;

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Mestrado em Filosofia Contemporânea pela Universidade Federal do Ceará (2004), graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (1999). Atualmente é Professor de Filosofia da Faculdade Paraíso/Ce nos cursos de Direito, Administração e Sistema de Informação.

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INTRODUÇÃO

Ao longo da estruturação da humanidade uma característica humana foi fundamental, a racionalidade. O desenvolvimento histórico sequencial, após o surgimento humano, demonstra que o ser humano construiu seu percurso através da “história das ideias”, que mesmo não sendo as mesmas ideias durante os vários períodos históricos, as ideias sempre estiveram presentes. Uma das formas mais significativas da manifestação da racionalidade humana se deu na Grécia antiga, em que tradicionalmente se compreende um salto de qualidade no pensamento humano pelo nascimento da Filosofia. A distinção entre Mito, Poesia e Religião feita pela Filosofia não significou a exclusão dessas outras formas de razão, já que todas são manifestações humanas, e, portanto, possuidoras de racionalidade, mas, transformou a forma de pensar da humanidade na maneira de investigar e responder a investigação. “A filosofia, pelo contrário, não é apenas algo racional, mas a própria guarda da ratio”. (HEIDEGGER, 1996) A forma da razão constituída pelos filósofos é marcada por uma natureza crítica, sistemática e rigorosa, não só servindo para eles mesmos, filósofos, mas como uma nova forma de vida espiritual do ser humano diante da natureza (cosmológico), de si mesmo (antropológico) e do sobrenatural (teocêntrico). Esta visão não se restringe a alguns aspectos da vida, mas coloca a própria vida, inclusive e principalmente a humana, e seus desdobramentos e dimensões em questão sejam do ponto de vista natural ou existencial. Por isso, a própria formação humana e especificamente a formação educacional e acadêmica deve ser questionada a partir do viés filosófico. Ao analisar o surgimento da discussão filosófica sobre as questões jurídicas de maneira autônoma ver-se-á que isto ocorreu na modernidade com a Filosofia do Direito. O pacto social da modernidade se organizou com uma especificidade marcante e a esfera jurídica assumiu uma posição social de destaque indelével fazendo com que a Filosofia se debruce sobre esta nova forma de pensar a Justiça e o Direito. Contudo, antes da autonomia da Filosofia do Direito na modernidade, não se pode esquecer que questões jurídicas já eram discutidas anteriormente, seja na medievalidade ou antiguidade filosófica, não sendo novidade na filosofia tratar da Justiça, só que este tema era visto de maneira holística, e não à parte como na modernidade. Esta relação de totalidade da filosofia pode ser expressa pelos conceitos de práxis e formação seja em que aspecto for. 30

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1. SER HUMANO, FILOSOFIA E PRÁXIS.

A humanidade, marcada pela racionalização compreendeu que o processo de humanização não ocorreu somente pelo aspecto biológico ou ainda de maneira sobrenatural, mas esse processo é endógeno e exógeno simultaneamente ao ser humano. Faz-se humano humanizando-se. Esta constatação se apresenta claramente pela diferença de comportamento do animal humano em relação aos outros animais. Ao tentar se compreender, o ser humano constrói uma análise comparativa, demonstrando já aí, sua diferenciação em relação aos outros animais, pois só ele pode e faz esta análise. Ao analisar o comportamento dos animais irracionais compreende-se a fixação, a rigidez e determinação pelo meio-ambiente desses animais. Existe uma pré-programação definida pelo resultado de situações de estímulo. ““Pré-programado” significa aqui: típico de uma espécie, não adquirido por experiência individual, funcionando compulsivamente”. (RABUSKE, 2003). Esta pré-programação não faz o animal não humano ser simples relação direta de estímulo e resposta, mas o coloca em uma situação limítrofe de impossível transposição. A limitação não se restringe somente ao aspecto físico-geográfico (meio-ambiente), apesar de ser um fator determinante, mas existe uma limitação qualitativa e estrutural da sua própria natureza. Desta forma, não há uma situação de possibilidades, mas ações preestabelecidas possíveis. O animal se especializa para determinadas condições de vida. “Apreende o meioambiente somente de modo imediatamente vital, ligado aos impulsos; só percebe conteúdos que tem uma significação instintiva, uma relevância biológica; o resto não existe para ele.” (RABUSKE, 2003). Ao não dar relevância àquilo que não é biológico, o animal fica marcado pelos instintos, atuando de maneira fixa e não tendo a condição de descobrir algo fora do plano material, do meio em que está inserido. Esta situação não chega ser uma deficiência, mas a demonstração da própria natureza do animal. Ao contrário, o ser humano apesar da sua natureza animal, não se restringe aos instintos, a fixação e a “pré-programação”. O ser humano pode por sua condição, transformar, superar e compreender as condições de vida na qual está inserido. Por exemplo, a relação estímulo-resposta não ocorre de maneira rígida, mas flexível. Esta condição humana faz com que o ser humano tenha relações com o meio-ambiente de forma transformável voluntariamente. Outra característica é a diversidade, a pluralidade de ações disponíveis ao 31

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ser humano de acordo com sua relação ao meio e com outros humanos, as possibilidades que se apresentam e as que se constroem. Toda esta diferenciação apresenta a condição humana, que só é possível pela racionalidade. Hanna Arendt, filósofa alemã de origem judia do início do século XX definiu muito bem a condição humana. “A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os seus autores humanos. Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e, até certo ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as suas próprias condições que, a despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição de existência humana.” (ARENDT, 2007)

A condição humana expõe o ser humano como um ser transcendente, ou seja, enquanto o animal está preso ao ambiente, o ser humano compreende-se, relação consigo mesmo (Sujeito), e compreende o que está ao seu redor (Mundo), e ao efetivar esta tarefa se “abre” para o mundo. A transcendência de maneira objetiva se constituiu de conhecimento racional. O conhecimento racional é fruto de um espantar (thaumazein) como diria os gregos antigos, exemplificado com excelência pela filosofia. O ser humano ao se “espantar”, qualidade que não é de medo, mas de admiração com sua própria condição busca objetivar-se e objetivar as coisas. É notório que o ser humano busca o conhecimento, isto se dá pelo sua própria condição humana, mesmo que todos não busquem do mesmo modo e o mesmo tipo de conhecimento. A filosofia possui excelência e expertise na busca do conhecimento, mas isso não significa que a filosofia se restrinja ao aspecto epistemológico. Filosofar não é uma técnica, um instrumento ou simples procedimento avaliativo. A filosofia é epistéme tís, uma espécie de competência, theoretiké, que é capaz de theorein, quer dizer, olhar para algo e envolver e fixar com o olhar aquilo que perscruta. E por isso que a filosofia é epistéme theoretik”(HEIDEGGER, 1996)”. E mais ainda, segundo Platão, no seu livro O Banquete: “Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio _ pois já o é _, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa.” (PLATÃO, 1991). A busca pelo conhecimento é eminentemente humana e envolvente, envolver é estar imerso em uma situação, em volta de. A condição humana não é uma situação de escolha, o ser humano está envolto nela, imerso, ela está em toda sua volta. A racionalidade 32

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humana, exemplo máximo da condição humana tem seu clímax na filosofia. Mas só aquele que reconhece o envolvimento pode atingir o filosofar, ou seja, a filosofia é um desenvolvimento objetivo da razão. Todo ser humano é racional, mas aqueles que reconhecem sua condição ainda como tarefa a ser realizada compreendem e procuram o filosofar. Observa-se que deste o início da filosofia, os primeiros filósofos pré-socráticos pretendiam encontrar o arché, o princípio de tudo. Sem detalhar cada pesquisa realizada pelos primeiros filósofos percebe-se que todos encontraram uma ordem, cosmos, seja única ou múltipla, que orienta tudo. O encontro dessa ordem participado pelo logos é o estabelecimento de sentido que todo ser humano busca primordialmente. É o espanto proporcionado pela condição humana. Compreende-se que as pesquisas realizadas não eram devaneios sobre a natureza, mas o reconhecimento de que é preciso saber sobre a natureza. O conhecimento realizado era sem dúvida especulativo e fazia parte de um processo, uma produção processual de elevação do cotidiano e das práticas da vida pela racionalização. O ser humano não mais passivo diante da natureza, mas contemplando-o. Contemplar para a filosofia significa ação de olhar atentamente, reflexão, meditação. Por isso, é significativo e simbólico o fato do ser humano poder ficar ereto, não ter mais unicamente a situação de enxergar o chão que pisa, mas poder contemplar o céu. Ele a partir deste momento pode refletir sobre si mesmo e sobre o seu mundo. A busca filosófica inicial pela natureza era a compreensão de sentido que o ser humano buscava anteriormente no mito, na poesia e religião, agora radicalizada na filosofia que se estrutura na argumentação rigorosamente racional, sem perder uma visão da totalidade. Por isso, a Educação, a Política, a Economia, a Ginástica e outros fatores a mais da vida humana nos gregos antigos não são meras atividades isoladas e separadas, mas, aspectos formativos do ser humano e da sociedade, que chamavam de Paidéia.59 A Paidéia grega situa o cidadão grego na perspectiva constante de ensinoaprendizagem, não estando vinculado somente ao ambiente acadêmico, mas torna o mundo e sua complexidade, seja jurídica, social, econômica ou política num espaço de desenvolvimento do conhecimento. Diferencia-se assim, o letramento, a codificação cognitiva curricular, do processo de formação, de educação, de Paidéia. Prepara-se o cidadão conhecedor, aquele que sabe “ler o mundo” e não aquele “técnico sobre o mundo” que não tem um saber autêntico, ou seja, originário e impregnado do próprio mundo que vive. 59

Segundo Werner Jaeger, era o "processo de educação em sua forma verdadeira, a forma natural e genuinamente humana" na Grécia antiga.

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Este processo de formação não pode ser confundido com um treinamento ou simples qualificação, tão pouco com uma racionalidade técnica e instrumental que não pode dar conta da formação humana, ou seja, à maneira integral e relacional como defendiam os gregos antigos. Somente uma racionalidade da práxis pode efetivar a Paidéia. A referência aos gregos não ocorre por uma nostalgia acadêmica ou por um idealismo vulgar que busca uma “idade de ouro” ocorrida no passado para “iluminar” com seu brilho a situação do presente e do futuro. Este retorno significa ir às origens do pensamento ocidental apresentando seus fundamentos. Ao formular o conceito de práxis, os gregos antigos têm como propósito apresentar um conceito diferente de prática. A prática esta ligada a ação, execução, exercício e mais ainda, maneira usual de fazer ou de agir. A prática não está ligada a uma teorização. Já a práxis possuí uma dimensão que é ativa, uma ação e uma dimensão de reflexão, uma explicitação conceitual. É claro que aqui não se quer dizer que a atividade prática está isenta de razão, portanto, seja um momento de irracionalidade, mas que a prática não se presta a desdobrar-se conceitualmente sobre si mesma pelo viés da razão. Já a práxis compreende a dimensão da busca de sentido conceitual do próprio ser do ser humano com suas manifestações históricas realizadas em prol desta busca. É na práxis que o humano se efetiva, pois não excluindo sua natureza humana (animal), ele busca conceituar o seu ser (racionalidade) conquistando assim sua humanidade e o mundo. “O homem, como ser da práxis, é ser da configuração do seu próprio ser e também configuração de seu mundo. Na decisão do homem, estão em jogo ele mesmo e seu mundo, a efetivação de si mesmo e do mundo; tanto ele como o mundo se apresentam-se como tarefas a se realizar. A especificidade do ser que é práxis se revela exatamente aqui: ele é responsável por si mesmo e por seu mundo. Assim, o homem como ser da práxis e seu mundo só podem ser entendidos a partir da liberdade, que, então, emerge, originariamente, como experiência do sentido fundamental de sua vida no contexto de sua experiência da totalidade.” (OLIVEIRA, 1995).

A racionalidade da práxis não é própria de uma categoria de pessoas ou profissões, mas é própria do ser humano, pois todo ser humano busca sentido, de si mesmo e do mundo. Como único ser que é doador de sentido, o humano tem tarefa constante e permanente, já que é ser histórico também. Configura-se assim um dever-ser da condição humana. A lógica deste dever-ser é práxis que se apresenta dialeticamente e historicamente. Dialeticamente por entender a situação processual em que o ser humano esta imerso nas construções de seu mundo. Historicamente porque as construções do mundo são contextualizadas no tempo e no espaço, no qual o ser humano também esta imerso. “A razão 34

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da práxis é a lógica dialética que reconhece contradições, paradoxos e aporias, buscando orientar a ação humana a partir de sínteses construídas pelos autores envolvidos em cada processo.” (CAMPOS, 2011). O ser humano é ser da práxis, isto significa dizer que a formação humana esta inexoravelmente ligada a esta equivalência, portanto pode-se aferir que na medida em que esta formação não acontece à práxis fica deficiente na sua própria natureza, e por consequência o próprio ser humano também. Constrói-se assim um ser alienado, aquele que não tem a possibilidade de ver além do aqui e do agora. Sem entrar no mérito e no detalhamento do conceito de alienação pensado por Marx, toma-se este conceito para se contrapor ao conceito de autonomia. Enquanto a práxis converge para a autonomia, o reconhecimento de si mesmo, a alienação é o processo pelo qual o homem se torna alheio a si, a ponto de não se reconhecer, e, portanto, não se formar humanamente pleno. 2 – A IDEIA DE FORMAÇÃO

A palavra formação contém uma significação antiga ligada a exterioridade, por exemplo, a formação dos membros superiores do ser humano ou de um acidente geográfico. Contudo, o conceito de formação atualmente está ligado ao conceito de cultura. “Formação integra agora, estritamente, o conceito de cultura, e designa, antes de tudo, especificamente, a maneira humana de aperfeiçoar suas aptidões e faculdades”. (GADAMER, 1999) Porém, ainda não é aquilo que se pretende mostrar a partir do classicismo alemão60 que auxiliou fortemente a fundamentação das ciências do espírito61, ciências estas que estão vocacionadas para a formação humana. Somente com a compreensão de que formação é algo muito mais interno para o ser humano do que externo é que formação começa a configurar como algo importante para as ciências do espírito. Interno se refere à compreensão. O externo se refere à estrutura física, anatômica. Esta mudança é bastante produtiva para as ciências do espírito. Neste sentido, formação se caracteriza como algo místico, como aconteceu na Idade Média quando se entendia, com base nas revelações bíblicas, que o homem possuía em si a imagem de Deus (GENESIS 1,26) e que deveria 60

Movimento desenvolvido na Alemanha no final do século XVII e início do século XVIII que defendia um retorno a antiguidade e o modo de ser dos gregos como modelo vigente no modo de vida e nas criações artísticas, se contrapondo a modernidade marcada pela objetividade científica e a razão instrumental. 61 Segundo o filósofo alemão William Dilthey (1933-1911) as ciências do espírito (Geistwissenschaften) seriam a contraposição à ciência da natureza. As ciências da natureza e suas metodologias que não atingiriam plenamente o estudo do ser humano, pois não compreenderiam a vivência humana, portanto, a formação humana.

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formá-la através de seus atos de encontro com Deus, propiciando desta forma uma ascensão espiritual. Este conceito de formação, apesar de ter um contexto religioso, abre um pouco mais de interação com que se pretende entender como formação e sua importância para humanidade. A ideia de que há uma imagem de Deus no homem e que esta imagem pode desenvolver-se, pode formar-se, leva a entender que este encontro ocorra gradualmente, isto é, formando-se. Na tradição cristã, por exemplo, o “santo” é aquele que manifesta a imagem de Deus mais nitidamente, que passou por um processo, por uma formação. E o próprio Jesus Cristo, apesar de ser Deus, para retornar ao Pai, teve que passar por uma formação humana, menos no pecado, que o possibilitou ser “verdadeiro Deus e verdadeiro Homem”, segundo a teologia e a tradição cristã (Concílio de Calcedónia em 451). A construção de momentos que propiciem esta formação é essencial, daí entende-se que estes momentos não resultam em um produto final, mas o meio para se chegar à ascensão, ou seja, uma formação. Apesar de a teologia cristã utilizar-se de um ser divino, segundo sua crença, e chegar a um único modelo, a ilustração mostra bem o caráter processual e formativo. Mostra tanto que faz uso de uma divindade para explicitar isso. Ora, se o próprio Deus se “formou” humano, cabe ao próprio humano fazer o mesmo, fazendo-se, formando-se. O que é vivenciado nestes momentos não é esquecido ou deixado de lado ao findar o evento, ou contrário, sua natureza não se extermina no processo, mas realiza-se nele. Tudo aquilo que foi experimentado faz parte da formação; há aqui uma preservação constituidora, móvel, ou seja, a cada experiência feita, fica marcada naquele que a fez, e é a partir daí, que as outras experiências são feitas e compreendidas. A formação é constituída e impregnada da história de cada momento. “A formação é um conceito genuinamente histórico, e é justamente o caráter histórico da “preservação” o que importa para a compreensão das ciências do espírito.” (GADAMER, 1999) Segundo Hans-Georg Gadamer filósofo contemporâneo (1900-2002) o conceito de formação foi tratado também por Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) tornando-o mais compreensivo para o discurso humanista. Para Hegel, a formação é elevação à universalidade. O caráter particular deve ser superado e deve se buscar o sentido universal. Sendo assim, a formação é tarefa do ser humano, pois sai-se do caráter somente particular, local e material para se construir um caráter universal, global e espiritual. Transcende-se a natureza humana e forma-se a condição humana.

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O caráter formativo acontece de uma maneira processual em que o movimento do espírito humano62 vai ampliando-se qualitativamente, ou seja, se apropriando daquilo que seria estranho, e o estranhamento ocorre exatamente por que ainda não foi experienciado e tornado-se familiar. Neste processo, o ser humano acaba se ampliando seu conhecimento. A esta compreensão de formação, a racionalidade científica moderna denominou de “senso artístico” e que seria próprio das ciências do espírito, pois fugiria completamente a fixação, ao enquadramento da objetividade científica. Esta mobilidade inerente ao processo de formação possibilita uma característica universal à formação, pois ela se mantém aberto a outros pontos de vista além do seu próprio, para poder se relacionar. Entende-se deste modo, que formar não é se fixar em algo, mas possibilitar a atenção nos possíveis pontos de vista buscando a universalidade. Neste sentido, ter uma consciência formada é um sentido universal, pois não se fixa nos sentidos naturais que só se detém sobre si e suas finalidades, mas está atento a tudo ao seu redor e a si mesmo. “O que faz das ciências do espírito uma ciência é mais compreensível com base na tradição do conceito de formação do que da idéia de método da ciência moderna” (GADAMER, 1999). 3 – EDUCAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL E FORMAÇÃO JURÍDICA, UM EXEMPLO.

Tomando como referencia o conceito de formação apresentado até aqui, pode-se compreender que formação é um processo humano, e que seu conceito na sua própria natureza não mudaria se se acrescentasse algum adjetivo, como por exemplo, jurídico. A questão seria agora um processo formativo de uma área específica, no caso Direito. Uma análise específica só faz sentido em nível didático, pois se seguirmos a tradição iniciado pelos filósofos gregos consegue-se perceber que não há uma fragmentação da vida em aspectos jurídicos, sociais, econômicos e etc. A filosofia grega compreendia a vida em sua totalidade e com seus elementos constituintes de forma integrada e em unidade. O discurso sobre o justo não estava separado do discurso político ou do discurso econômico, e assim por diante, mas fazia parte integrante de um todo existencial e social da vida humana, situada historicamente e politicamente. Esta condição histórica-política era conceitualmente denominada Pólis.

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Espírito entendido como alma racional ou intelecto.

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A Pólis só podia ser gerenciada pela Práxis e tinha seu desenvolvimento pela Paidéia. Por isso que Platão defende a escolha do rei-filósofo como o único que pode administrar com justiça a Pólis. A escolha de Platão não se dá por uma defesa de classe, mas por justiça. O Filósofo é o único que pode atingir através da dialética a Idéia do Bem, diretriz fundamental e perfeita que possibilita a ação virtuosa na vida particular e na vida pública. Consegue-se compreender que há um todo englobante, uma unidade de sentido entre cidadão e Pólis. As questões jurídicas não eram vista de maneira extraordinária, mas claramente ordinárias ao cidadão grego. E é claro que as academias de filosofia daquela época discutiam questões jurídicas, mas sempre como parte de um todo e nunca de maneira fragmentada, até porque o paradigma filosófico da busca pela universalidade permitia esta atitude. Chegando a idade média, a unidade de sentido permanece só que de forma diferente. O discurso ontológico da antiguidade se transforma em discurso onto-teológico, em que o paradigma também se alterou, a universalidade da antiguidade foi conferida a um ser específico, Deus. Apesar dessas mudanças, ainda há uma unidade e harmonia entre as partes envolvidas, ser humano e sociedade, só que agora sintetizada na figura de Deus. As questões jurídicas e econômicas, por exemplo, ainda são discutidas dentro de um contexto de ligação profunda entre si e outras áreas da vida humana. É neste contexto que surge às primeiras universidades no século XI e XII e os primeiros cursos universitários. Até então, os estudos superiores aconteciam em mosteiros ou nas escolas catedralícias, onde eram formados os pensadores da Igreja Católica e seus administradores. Na verdade, a primeira universidade constituída fora a de Bologna, na Itália, fundado no ano de 1088, especializada na área de direito. (ORRÚ, 2005) Já com o advento da modernidade há mudanças profundas na sociedade humana, não só do ponto de vista material, mas, sobretudo conceitual. “Se nossa sociedade, por esse processo acelerado de “modernização”, transformou-se rapidamente numa sociedade “cientifizada”, então a ciência começou a ocupar um lugar fundamental na construção da realidade social” (OLIVEIRA, 1993). A ciência a partir da modernidade fica intimamente ligada à vida do homem, e marcará profundamente sua a vida produzindo uma civilização científica-tecnológica que orientará as relações sociais, o trabalho, a educação e o conhecimento. A racionalidade moderna forma-se como uma racionalidade instrumental, uma razão que tem como fim, a realização das necessidades práticas e objetivas do homem no 38

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mundo, somente intervencionista e não reflexiva. Contudo, este tipo de homem no mundo, não dá conta do ser humano e acaba deixando de lado aquilo que não pode e consegue instrumentalizar. “A vida humana em toda a sua dimensionalidade é cada vez mais submetida a condicionamentos da razão tecnológica: toda a organização do trabalho e da economia, o sistema de educação, a rede de comunicações, os instrumentos financeiros, o sistema de defesa, o próprio Estado.” (OLIVEIRA, 1993) Estabelece-se deste modo, um paradoxo de base, em que o homem cada vez mais se instrumentaliza para racionalizar o mundo e sua própria construção de mundo, mas com isso lhe escapa algumas dimensões que não são analisadas por essa mesma racionalidade técnico-científica. Para entender essa posição assumida a partir da modernidade, da primazia da racionalidade técnico-científica é preciso situar-se nas suas origens e perceber quais os condicionantes que influenciaram. Para isso, toma-se René Descartes e sua razão matematizante e mecânica. A proposta objetiva de Descartes é legitimar um conhecimento que não seja incerto ou inseguro, isto é, que só considere como verdadeiro o que for evidente, que não cause dúvida. Para isso, radicalizou a dúvida, já que por este método alcançaria uma primeira certeza, “se duvido penso”, e daí pela dedução poderia chegar a outras certezas. Contudo, o intuito não é entrar nas explicações cartesianas detalhadamente ou discutir o mérito da questão, mas ilustrar uma atitude assumida a partir da modernidade em relação ao conhecimento, a educação, ou seja, de tratar o ser humano e sua “formação” com critérios de uma racionalidade técnico-científica. De um modo geral, pode-se dizer que a filosofia cartesiana propõe uma ausência do discurso do “ser” (ontologia) constituído de metafísica, por um discurso do “conhecer” (epistemologia). Ao escrever o Discurso do Método, para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências em 1637 Descartes, já no título da obra dá uma indicação bem clara daquilo que pretende. Um método que encaminhe à verdade das coisas, “... o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso...” (DESCARTES, 1983) e que possibilite um conhecimento seguro, metódico e controlável. A questão que se coloca não é a busca por um conhecimento seguro, mas pela forma como este conhecimento entende a formação humana, seja no conhecimento, na educação ou na política. Ou ainda, pode-se chamar de formação o processo desempenhado por este modelo de racionalidade técnico-cientificista?

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Esta racionalidade técnico-científica presa em si mesma não pode formar o ser humano, mas pode treiná-lo a exercer alguma função, haja vista que ela não dá conta da história, dos sentimentos e das contradições da própria vida humana. Esta situação se apresenta bem nítida quando se analisa o processo de constituição da educação jurídica no Brasil, por exemplo, através da consumação curricular do Positivismo. O Positivismo de Auguste Comte procura radicalizar a proposta científica não só na esfera do conhecimento, mas em toda a vida humana. A educação brasileira, de um modo geral, sobre profundamente a marca do Positivismo, aulas-expositivas, alunos-ouvintes e uma perseguição pelo dado elementar, mais exato possível, sem direito de dúvidas. Nos cursos de Direito daquela época, início do século XX não seria diferente. “O próprio conteúdo do conhecimento jusfilosófico que se propaga no Brasil extrai de matrizes eurocêntricas (jusnaturalistas e juspositivistas) todo o material reflexivo para o desenvolvimento das discussões que haveriam de ocupar os juristas e professores que se detiveram a pensar questões de interesse filosófico no Brasil”. (BITTAR, 2006).

É claro que esta posição curricular nos cursos de Direito do Brasil não é uma exclusividade local, mas um reflexo da posição assumida na Europa, de um modo geral. Desta forma, o discurso jurídico acaba sendo o discurso do Direito Positivo, ou seja, as questões de e sobre a Justiça são tratadas somente pela lei, pela positivação, e não são entendidas na sua natureza própria, no seu ser. A lei se apresenta com uma superioridade em relação à Justiça e perde-se o vinculo entre ambas. A lei deve ser uma expressão da Justiça e não simplesmente a única expressão. Isto não é um desprezo pelas codificações, mas uma colocação lógica em lugares devidos daquilo que é a relação Justiça-Direito. Esta relação acaba sendo reproduzida nos cursos de Direito do Brasil e do mundo afora, de um modo geral. A cultura jurídica parece irmanar-se muito facilmente com práticas de cultura cartorial e burocrática, resumindo-se a ser, no contexto de certos momentos históricos no Brasil, nada muito além disto, tamanha a dose de preponderância entre os saberes técnico-normativos (ora chamados dogmáticos) e os saberes humano-formativos (ora chamados zetéticos).(BITTAR, 2006). Confunde-se então a prática com a práxis. Não se pode confundir a Prática Jurídica com a Práxis jurídica, conhecer os códigos e suas especificidades faz parte da aprendizagem jurídica, mas a formação jurídica vai além da codificação trabalhando as habilidades e competências necessárias ao estudante de Direito. De maneira bem clara, a praticidade do jurídico é demonstrada por uma máxima jurídica: "QUOD NON EST IN ACTIS NON EST IN MUNDO, o que não está nos autos, não existe no mundo”. Felizmente o mundo é maior que o Direito, e é bem verdade que precisamos do Direito para ordenar o mundo e suas relações, mas não se pode conceber que uma expressão da racionalidade humana resuma 40

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a própria vida humana, no máximo à organize-a. Pois o mundo e a vida são mais dinâmicos, mais profundos e mais complexos do que qualquer matriz curricular, por mais abrangente que ela seja e de qualquer curso que for. A educação jurídica no formato positivista assume-se totalmente bancária. Faz do aluno um depósito de conteúdos, um ser passivo diante do conhecimento em que praticar se apresenta como elemento fundamental. Contudo, as práticas excluídas do processo de reflexão caíram no ativismo, no automatismo. A aula se transforma em exposição e a educação jurídica deixa de exercer sua própria natureza formativa, crítica e reflexiva. A reflexão sobre a formação jurídica se apresenta nos últimos anos na inclusão de disciplinas que não são do “eixo profissional”, tais como Filosofia, Psicologia, Antropologia, em exames e concursos jurídicos através da Resolução nº 75, de 12 de Maio de 2009 do Conselho Nacional de Justiça e o Provimento nº 136/09 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Além disso, a própria Resolução Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior n° 9, de 29 de setembro de 2004 que dá as diretrizes para o curso de graduação em Direito diz: “Art. 3º. O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania.”

O conceito de educação como formação é essencial para a realização da educação como “prática da liberdade”. A formação educativa pressupõe uma postura crítica e reflexiva, uma atitude de investigação do conhecimento, uma apropriação real e legítima das disciplinas pelo aluno ou aluna. Esta atividade formativa é uma tarefa constante do ser humano, independente de estar ou não em sala de aula, o ser humano é um ser em formação. Por isso, o estudante de Direito, um dos atores envolvidos na educação jurídica, deve compreender que a ideia de formação jurídica é mais qualificada, mais complexa, mais profunda do que a simples memoralização, decodificação e compilação. Educar é formar-se, inclusive juridicamente. Na medida em que se distancia do treinamento e da preparação para passagem em exame e concurso, e caminha-se para a formação jurídica compreende-se a práxis jurídica. A práxis jurídica não assume uma postura maniqueísta, em que se excluí uma área por outra, como por exemplo, a área técnica, dogmática em detrimento da humanística e propedêutica, ou vice-versa. 41

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E para o professor de Direito, outro ator importante no processo de formação educativa jurídica é necessária também uma práxis. Pois quem ensina também se educa, também se forma. É claro que há uma barreira estrutural neste processo, pois o curso de Direito é de modalidade bacharelado e tem uma vocação para a atividade profissional, e não para o magistério, portanto, o Advogado, o Juiz, o Promotor, o Defensor Público são formados para o exercício da profissão. Outra questão é ser professor-advogado, professorjuiz, professor-promotor e professor-defensor público. Não há incompatibilidade entre estas atividades, mas é necessário o cumprimento de exigências mínimas para este tipo de atuação. As questões filosóficas, sociológicas, psicológicas, pedagógicas da formação jurídica não podem ser relegadas por aquele que é, e quer ser professor de Direito. “A atividade docente não é exercida sobre um objeto, sobre um fenômeno a ser conhecido ou uma obra a ser produzida. “Ela é realizada concretamente numa rede de interações com outras pessoas, num contexto onde o elemento humano é determinante e dominante e onde estão presentes símbolos, valores, sentimentos, atitudes, que são passíveis de interpretação e decisão que possuem, geralmente, um caráter de urgência”. (TARDIF, 2002).

A educação, seja ela jurídica ou não, não pode prescindir de ser diálogo com os atores envolvidos, professores, alunos e sociedade correndo o risco de não cumprir seu papel de formação do ser humano. 4 – CONCLUSÕES

A natureza da educação contemporânea pressupõe radicalizar a humanização, isto é, de não ser uma educação simplesmente bancária como diria Paulo Freire, mas dar ao estudante uma possibilidade de conhecimento que contribua na construção, não só da sua cognição, mas na construção ética e cidadã. Pensar a formação do estudante de Direito é um desafio da educação jurídica contemporânea e conjuntamente um desafio da sociedade contemporânea. Aqui se encontra outro desafio, como articular a sociedade atual, herdeira da modernidade e baseada, de modo geral, na lógica do mercado, e uma educação que se propõe ser uma educação de valores eminentemente humanizadores, baseados na lógica do diálogo, seguindo, portanto sua natureza própria, uma práxis, uma formação. Na sociedade atual, em que a informação é um grande instrumento, o fato de tê-la não garante necessariamente o conhecimento. É preciso saber o que fazer com a informação. A alta carga de conteúdos condensados, os chamados bizus, que muitas vezes fazem o estudante lograr êxito em um exame, não confere a apropriação e produção de conhecimento. 42

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Contudo, a impressão que se tem é que a sociedade cria um paradoxo, pois questiona uma educação puramente pragmática, mas exige ao mesmo tempo resultados práticos e imediatos da escola, da faculdade e da própria educação. A lógica da práxis é claramente formativa. A educação jurídica não pode se confundir com um ensino meramente técnico para nenhum dos atores envolvidos, sua gênese é claramente formativa, não porque seja jurídica, mas por que toda educação é e deve ser formativa, é práxis. A educação se faz pela práxis e só na práxis o ser humano tem sua formação plena. De maneira apressada, alguém pode pensar que a mudança curricular seria uma alternativa viável para a efetivação da racionalidade da práxis e a consequente formação do aluno de Direito. Com certeza esta é uma alternativa, mas não a única, pois se não se muda o paradigma vigente, até mesmo as mudanças curriculares serão travestidas ainda pelo modelo Positivista. É claro que aqui não se quer estabelecer uma guerra ao Positivismo e suas versões atualizadas, isso não seria científico e nem produtivo, mas ao contrário se quer estabelecer uma limitação naquilo que é necessário e uma ampliação naquilo que se precisa. Formar o aluno é possível sem formar o humano? Creio que não. Ao contrário, treinar o aluno é possível sem formar o humano. Fica claro que é necessária uma mudança conceitual na educação para que se possa atingir o intento de uma educação holística e não atomizada, uma educação para o pensar, para a reflexão e práxis. Deste modo, o desafio no qual se está engendrado coloca opções: continuarmos como professores, elementos transmissores de conhecimento inabalável, ou nos tornarmos educadores, agentes da construção coletiva do conhecimento juntamente com os alunos. Nesta concepção dialógica, os conceitos usados pelo “outro” ganham nova força. É somente dialogando com o outro, que podemos compreendê-lo, é ouvindo o outro que restabelecemos laços perdidos conosco e com os outros, neste sentido ao ouvir o outro, nos humanizamos mais. A cultura educacional, o “chão da sala de aula” ainda está marcado por uma série de atrasos como, autoritarismo, burocratismo e fragmentação do conhecimento. É preciso mudar a Educação não como um processo burocrático curricular, mas mudá-la em prol do ser humano e de sua humanização. Uma educação da práxis, uma educação humana, seja ela jurídica ou não, é a tarefa de todos, não pelo simples aumento de

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índices ou indicadores de qualidade, mas pela própria vida. Talvez alguém entenda que este discurso seja muito “romântico”, mas pergunto: há algo mais importante que a vida? Não.

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JUIZ NATURAL E PROCESSO ELEITORAL A DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIAS AOS JUÍZES ELEITORAIS EM PERÍODO ELEITORAL

M.Y.MINAMI63

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO – 2 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL – 3 OS JUÍZES ELEITORAIS – 4 A DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIAS AOS JUÍZES ELEITORAIS EM PERÍODO ELEITORAL – CONCLUSÃO – REFERÊNCIAS. RESUMO Analisa o princípio do juiz natural e sua aplicação do processo eleitoral. Explica o princípio do juiz natural sob os aspectos substancial e material. Analisa a divisão de competências aos juízes eleitorais em períodos eleitorais. Demonstra a necessidade de observância do princípio do juiz natural na escolha de juízes eleitorais pelos Tribunais Regionais Eleitorais. Palavras-Chave: Direito Processual. Direito Processual Eleitoral. Direito Eleitoral. Juiz Natural.

ABSTRACT Analyzes the natural judge principle and its application in the electoral process. Explains the natural judge principle under the substantive and material aspects. Analyzes the division of competences to electoral judges in electoral periods. Demonstrates the need for observance of the natural judge principle when the Regional Electoral Court chooses electoral judges. Keywords: Procedural Law. Electoral Procedure Law. Electoral Law. Natural Judge.

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Bacharel em Direito pela UFC-CE. Especialista em Direito Processual pela UNISUL-SC. Mestre em Processo Civil pela UFBA-BA. Professor de Processo Civil da Faculdade Paraíso-CE. Técnico Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará. Endereço eletrônico: [email protected]

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1 Introdução Se fizéssemos uma relação de quaisquer assuntos jurídicos importantes que não recebem a devida atenção pelos doutrinadores e aplicadores do direito, certamente dois nomes constariam dessa lista: Direito Eleitoral e Princípio do Juiz Natural. O primeiro tema começa a ganhar certo amparo acadêmico, longe ainda da real necessidade. O segundo, embora já devidamente trabalhado pela doutrina, é constantemente deixado de lado na prática forense. O que dizer, então, sobre a observância do segundo no primeiro? O presente artigo procura alertar, em poucas linhas, como o princípio do juiz natural, posto importante, é esquecido nos tribunais eleitorais.

2 O princípio do juiz natural O princípio do juiz natural64 não consta expressamente em nosso ordenamento e resulta da cláusula geral do devido processo legal e da conjugação dos incisos XXXVII e LIII, do art. 5º da CF/88. Aquele proíbe juízo ou tribunal de exceção, este, dispõe que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Exceção é palavra de vários sentidos. Aqui, a utilização não é aquela relacionada ao direito de defesa do réu65, mas sim a acepção ordinária do verbete: aquilo que sai da normalidade, que foge da regra. Um tribunal de exceção é constituído para cuidar de uma situação específica, após sua ocorrência e sem observância das regras ordinárias de formação de uma corte. Essa constituição extraordinária suscita suspeitas nos jurisdicionados. Muito comum, por exemplo, é a constituição post factum de comissões disciplinares para apurar irregularidades de servidores públicos. Trata-se de afronta ao princípio do juiz natural. 66 Autoridade competente é aquela que recebe do ordenamento a parcela de poder necessária para apreciar determinado problema. As regras de distribuição de competência

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Há quem prefira o termo juízo natural, pois “[...] consoante anota o prof. Aroldo Plínio Gonçalves, [...], o provimento (sentença) já não é mais ato solitário do juiz, mas da jurisdição que se organiza pelo Poder Judiciário em grau de definitividade decisória, na órbita de toda a jurisdicionalidade estatal.” In LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 122. 65 “Na acepção processual, exceção é o meio pelo qual o demandado se defende em juízo, representando, neste último caso, o exercício concreto do direito de defesa. Exceção é, pois, a própria defesa. Em sentido processual ainda mais restrito, exceção seria uma espécie de matéria que não poderia ser examinada ex officio pelo magistrado.” In DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. 12ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2010, v.1, p. 493. 66 Nunca é demais relembrar que a cláusula do devido processo legal é aplicada não apenas na função jurisdicional do Estado, mas também em sua atuação administrativa e legislativa.

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(leia-se, distribuição de poder) devem ser expressas, objetivas, claras e prévias. O conflito de competência ocorre, entre outras coisas, quando há dúvidas na interpretação desses preceitos. Vejamos o que pensa a doutrina sobre o tema. LUIGI FERRAJOLI explica que o princípio sob glosa significa precisamente três coisas distintas, ainda que relacionadas: “[...] la necesidad de que el juez sea preconstituido por la ley y no constituido post factum; la inderogabilidad y la indisponibilidad de las competencias; la prohibición de jueces extraordinarios y especiales.” 67 Lembra FREDIE DIDIER que esse o princípio, à semelhança do que ocorre com o devido processo legal e o contraditório, possui um aspecto objetivo, formal, e um substantivo, material.

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Formalmente, obedecerá a garantia o juiz competente consoante regras gerais e

abstratas previamente estabelecidas. “Não é possível a determinação de um juízo post facto ou ad personam. A determinação do juízo competente deve ser feita por critérios impessoais, objetivos e pré-estabelecidos” 69 (grifamos). Já o aspecto substantivo traduz a imparcialidade e independência dos magistrados. A violação de um aspecto interfere no outro. A escolha de um juiz por critérios discricionários suscita questionamentos pela sociedade: por que o tribunal indicou juiz A para resolver o caso ao invés do juiz B? Em escolhas discricionárias, a imparcialidade do juiz, mesmo que este esteja bem intencionado (o que acreditamos ser a regra), fica, destarte, comprometida. “As regras de distribuição servem exatamente para fazer valer a garantia do juiz natural: estabelecem-se critérios prévios, objetivos, gerais e aleatórios para a identificação do juízo que será o responsável pela causa.” 70 É justamente sobre esse aspecto da necessidade de critérios prévios, objetivos, gerais e aleatórios que focaremos a atenção do nosso artigo. 3 OS JUÍZES ELEITORAIS 71

A Constituição Federal é clara em estabelecer a composição da Justiça Eleitoral em seu Art. 118. São seus órgãos: o Tribunal Superior Eleitoral; os Tribunais Regionais 67

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón – teoria del garantismo penal/ traducción de Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino,Juan Terradillos Basoco, Rocío Cantarero Bandrés. Madrid: Editorial Trota, 1995, p. 588. 68 DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. 12ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2010, v.1, p. 108. 69 DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. 12ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2010, v.1, p p. 108-109. 70 DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. 12ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2010, v.1, p. 109. 71 Na verdade, Juízos Eleitorais. Pela consagração do termo, utilizaremos Juízes Eleitorais, letras iniciais capitais, para falar do órgão e, quando utilizarmos o termo com letras iniciais minúsculas, estaremos nos referindo à pessoa do juiz.

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Eleitorais; os Juízes Eleitorais e as Juntas Eleitorais. As competências de tais órgãos constam na Lei 4737/65, o Código Eleitoral. Para o presente trabalho, apenas os Juízes Eleitorais nos importam. A primeira instância da Justiça Eleitoral é formada pelos Juízes Eleitorais. Tal função é desempenhada por um juiz estadual uma vez que não há quadro próprio de magistrados eleitorais. Várias são as atribuições desses juízes, dentre as quais destacamos: alistamento eleitoral, administração do cadastro nacional de eleitores, fiscalização constante das condições dos locais de votação, controle das filiações partidárias apenas para evitar a dupla militância, fiscalização das contas anuais dos diretórios municipais, organização da logística das eleições, registro de candidatos da seara municipal, proclamação dos resultados e diplomação dos eleitos na seara municipal, julgamento dos crimes eleitorais de sua competência, das ações impugnatórias e da investigação para apuração da prática de abuso no curso da campanha, poder de polícia na propaganda eleitoral. Percebemos duas coisas. A primeira é o tamanho da responsabilidade do juiz eleitoral. A segunda é que várias atividades citadas são de cunho administrativo. Para mais bem desempenhar tantas tarefas, o juiz eleitoral preside e dispõe da estrutura da zona eleitoral que ora funciona como secretaria para o processamento dos feitos eleitorais, ora faz vezes de órgão administrativo (por exemplo, no alistamento eleitoral ou organização da logística da eleição). Diferentemente dos demais órgãos do poder judiciário, em que as funções administrativas são de menor importância (ditas atípicas), a Justiça Eleitoral desempenha, tipicamente, atividades de cunho jurisdicional e administrativo. A delimitação do espaço de atuação da zona eleitoral nem sempre coincide com a circunscrição do município, pois não é apenas o critério geográfico que a determina, mas também (e principalmente) o número de eleitores que ela possui. Várias são, portanto, as configurações possíveis. Podemos ter municípios com apenas uma zona eleitoral. Nesse caso, o juiz eleitoral desempenhará sozinho todas as atividades acima relacionadas. Também podemos ter casos de zonas eleitorais que abranjam mais de um município ou, mais curioso ainda, zonas que abranjam um município inteiro (ou vários municípios inteiros) e ainda apenas parte de outro. Por fim, e de nosso interesse para este estudo, podemos ter o caso de um município com mais de uma zona eleitoral. No último exemplo, as atividades elencadas costumam ser compartilhadas ou mesmo divididas. 48

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Observamos o compartilhamento de atividades em grandes cidades onde, mesmo com vários juízes eleitorais, é comum encontrar uma central de atendimento única para alistamento em várias zonas eleitorais diferentes, todas daquele município. Cada zona cuidará, entretanto, do cadastro de seu eleitorado, bem como da logística da votação nas seções sob seu cuidado. Por outro lado, em períodos eleitorais, em municípios com mais de uma zona, algumas competências são divididas entre seus juízes eleitorais pelos Tribunais Regionais Eleitorais. É justamente nessa divisão de competências que o princípio do juiz natural é violado.

4 A DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIAS AOS JUÍZES ELEITORAIS EM PERÍODO ELEITORAL

O § 1º do art. 41do Código Eleitoral estabelece que o poder de polícia sobre a propaganda eleitoral será exercido pelos Juízes Eleitorais e pelos juízes designados pelos Tribunais Regionais Eleitorais. Pergunta-se: a escolha ocorrerá por qual critério? Demais disso, o art. 96 do mesmo diploma, em seu § 2º, diz que nas eleições municipais, quando a circunscrição abranger mais de uma zona eleitoral, o Tribunal Regional designará um juiz para apreciar as reclamações ou representações relativas ao seu descumprimento. Será a escolha discricionária? O registro de candidatos nas eleições municipais deve ocorrer perante um juiz eleitoral do respectivo município. Indaga-se: havendo vários, qual deles atuará? Para resolver esses impasses, é praxe dos tribunais eleitorais expedirem resoluções estabelecendo, dentre o rol de juízes eleitorais de um município com várias zonas, aqueles que cuidarão do registro de candidatos, do poder de polícia na fiscalização da propaganda e da prestação de contas de campanha. Quanto aos crimes eleitorais, o local de sua ocorrência costuma fixar a competência de sua apreciação. A violação do juiz natural ocorrerá quando a escolha de tais juízes se fizer de maneira discricionária pelo Tribunal Regional Eleitoral respectivo. Não há problemas em que o tribunal diga, dentre vários juízes competentes, quais devem tratar de qual matéria, desde que essa divisão ocorra a partir de critérios prévios, gerais e objetivos. Um exemplo sempre esclarece.

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Imaginemos que determinado município possui duas zonas eleitorais (Zona 001 e Zona 002) e, por via de conseqüência, dois juízes eleitorais. Nas eleições municipais, seu respectivo Tribunal Regional Eleitoral expediu uma resolução com o seguinte teor:

Art. 1º Fica designado o Juízo Eleitoral 001ª Zona para processar e julgar os processos relativos: I – ao registro de candidatos, impugnações e notícias de inelegibilidades deles decorrentes (arts. 2º e 3º da Lei Complementar nº 64/90); II – ao registro das pesquisas eleitorais; III – às reclamações ou representações que objetivarem a perda do registro ou do diploma, inclusive as investigações judiciais eleitorais (art. 22 da Lei Complementar nº 64/90); IV – às prestações de contas. Art. 2º Fica designado o Juízo Eleitoral das 002ª Zona para exercer o poder de polícia sobre a propaganda eleitoral nesses municípios e para processar e julgar as representações e reclamações relativas ao descumprimento da Lei nº 9.504/97, salvo as hipóteses do art. 1º da presente Resolução, bem como para apreciar e julgar os pedidos de direito de resposta a que se refere o art. 58 da Lei nº 9.504/97. Art. 3º Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação.

Perceba que em nenhum momento o critério para a escolha foi mencionado. A indicação foi discricionária. Configurou-se, aqui, afronta direta ao juiz natural que deve ser expurgada da prática.

5 CONCLUSÃO

Como bem lembrou BARBOSA MOREIRA, o juiz natural ajuda a fortalecer no jurisdicionado a confiança na Justiça.72 A escolha discricionária de juízes, mesmo em uma lista reduzida de dois juízes, onde um tribunal estabelece discricionariamente qual deve ficar com determinada competência, atenta contra o juiz natural. Um jurisdicionado mais atento pode exigir a demonstração do critério utilizado para a escolha dos juízes responsáveis, por exemplo, pelo poder de polícia na propaganda eleitoral. Em não se obtendo uma resposta objetiva, a credibilidade do judiciário eleitoral ficará abalada e a legitimidade do governo escolhido através dessa justiça ficará estremecida. Alguns podem nos acusar de formalismo 72

“Cette garantie a pour but d’assurer l’indépendance et l’impartialité des organes juridictionnels; elle contribue, par ce moyen, à affermir chez les justiciables la confiance dans la Justice.” MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Les principes fondamentaux de la procédure civile dans la nouvelle constitution brésilienne”. Em: Temas de direito processual – quinta séria. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 42.

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excessivo e que no nosso exemplo não haveria afronta ao princípio do juiz natural, pois a escolha foi feita antes das eleições; e mais: os dois juízes citados são competentes. A divisão foi apenas “administrativa”, para facilitar o trabalho dos magistrados, dividindo suas tarefas. Admitamos, apenas por amor ao debate, a procedência desse argumento. Mesmo assim, alguém ainda poderia indagar: se a divisão é prévia e inocente, qual o problema de ela ocorrer mediante um critério prévio e objetivo? Não se poderia, por exemplo, realizar um sorteio? É importante lembrar que na seara eleitoral sempre haverá pessoas que, perdendo nas urnas, procurarão desacreditar o próprio processo de escolha, a própria Justiça Eleitoral, buscando quaisquer argumentos possíveis, inclusive os que aqui suscitamos. Pesquisando na doutrina eleitoralista, não percebemos o tratamento dessa questão em nenhum momento.73 Isso não diminui a importância do alvitre. O processo deve ser manuseado com o devido cuidado e pequenos detalhes podem causar grandes transtornos.

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Veja, entre outros: PINTO, Djalma. Direito eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal – noções gerais. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2010; CÂNDIDO, Joel J. Direito eleitoral brasileiro. 14 ed. rev. atual. e amp. Bauru/SP: Edipro, 2010; CASTRO, Edson Resende. Teoria e prática do direito eleitoral. 5 ed. rev., atual., Belo Horizonte: Del Rey, 2010; COSTA, Adriano Soares da. Instituições de direito eleitoral. 7 ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008; PIMENTA, José Carlos. Processo eleitoral e controle jurisdicional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002; BARROS, Francisco Dirceu. Prática das ações eleitorais. Rios de Janeiro: Elsevier, 2008; ESMERALDO, Elmana Viana Lucena. Processo eleiroral: sistematização das ações eleitorais. Leme: J. H. Mizuno, 2011.

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Direitos culturais e democracia cultural: o papel dos mecanismos participativos nas políticas públicas municipais de cultura Aline Gomes Holanda74

Sumário: 1. Introdução. 2. Políticas culturais. 3. Políticas culturais no Brasil. 4. Cultura política e democracia cultural. 5. Considerações finais. RESUMO O presente texto enfoca o papel dos mecanismos de participação política no município, tais como conselhos, conferências e fóruns nas políticas públicas de cultura. Na sua história, as políticas de cultura no Brasil foram marcadas ora pelo dirigismo, ora pela transferência da responsabilidade para a iniciativa privada. Historicamente, o papel da sociedade civil nas políticas públicas, especialmente através dos instrumentos participativos, foi visto como o espaço privilegiado de contestação e transformação. Não obstante, os instrumentos de participação nas políticas municipais de cultura não são espaços garantidos da cultura participativa. Tanto podem transformar políticas culturais, práticas discursivas e a própria dinâmica do sistema político no sentido da democracia cultural, como podem reafirmá-las no sentido oposto. É no nível das práticas discursivas que os espaços participativos podem exercer seu papel de implantar uma democracia cultural, isto é, facilitar o acesso a todas as etapas do sistema cultural. Palavras-chave: Democracia cultural; direitos culturais; políticas culturais; cultura participativa.

ABSTRACT This paper focuses on the role of mechanisms of politic participation in the municipality sphere, such as councils, conferences and forums on cultural public politics. In its history, the cultural politics in Brazil were pronounced by the interventionism and by the transference of the responsibility from the State to the private sector. Historically, the role of civil society in public politics was seen as the privileged space of contestation and transformation. Nevertheless, the instruments of participation in cultural public politics are not guaranteed spaces of the culture of participation. They may transform cultural politics, discursive practices and the dynamics of the political system in the direction of cultural democracy, or they may lead them in the opposite direction. It is at the level of the discursive practices that 74

Psicóloga, mestre em Políticas Públicas e Sociedade e professora da Faculdade Paraíso do Ceará.

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spaces of participation may exercise its role of implementing a cultural democracy, that is, to facilitate the access to all stages of the cultural system. Keywords: Cultural democracy; cultural rights; cultural politics; culture of participation.

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos sete anos, a cultura e os direitos culturais, como alvo de políticas específicas, tem sido objeto de atenção pública no Brasil e de mudanças que se aprofundam paulatinamente. Em todos os níveis da federação estão sendo revistas leis específicas, criados novos mecanismos e instrumentos para dar base a um sistema de integração de todas as esferas de governo, o Sistema Nacional de Cultura (SNC). Seu objetivo é criar um sistema que determine “um formato político administrativo mais estável e resistente às alternâncias de poder” (BRASIL, 2009, p. 4). O SNC visa possibilitar que os três níveis federativos integremse de modo a compartilhar a gestão da cultura, e de modo a desconcentrar e distribuir esforços e recursos de forma organizada. A partir do SNC, buscam-se mudanças junto aos entes municipais brasileiros, observando o princípio de cooperação entre os entes federados. Cunha Filho (2005) nota que a adesão dos municípios e dos estados ao Sistema dá-se de forma não compulsória, já que a cultura é vista como uma área que reúne um pluralismo de expressões. Neste sentido, o papel exercido pelo Sistema é de coordenação, e não de unificação, precisamente em respeito às pluralidades e às diferenças tão próprias do campo. Assim, é necessário que os entes se voluntariem a participar do sistema, e que possuam determinados elementos que componham um perfil de incentivo à cultura, dentre eles: “efetiva implementação de apoio às atividades culturais, com os recursos que dispõe; efetiva proteção do patrimônio cultural; efetivo respeito aos demais direitos culturais; efetiva gestão democrática e autônoma da cultura” (CUNHA FILHO, 2005, p. 3). Dentre os participantes do sistema, destacamos os municípios. O município é o local privilegiado de ação e participação direta (ALMEIDA, 1997; GÓIS, 2003). “É um lugar vivo e concreto para as pessoas. Nele nascem, residem, se encontram, muitas vezes trabalham, casam e, também morrem” (GÓIS, 2003, p. 29). Para Almeida (1997), é no município que as demandas político-culturais se expressam de maneira mais concreta. Espaço privilegiado de ações e políticas culturais, no município, suas consequências são vividas de forma mais direta. 53

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Lá, o órgão gestor municipal tem papel destacado em induzir, executar e articular as ações culturais. Entre os princípios do SNC, está inserida a “democratização dos processos decisórios com participação e controle social” (BRASIL, 2009, p. 16). Esse princípio situa mecanismos participativos numa posição privilegiada nas políticas de cultura. Senão vejamos: O sucesso do Sistema Nacional de Cultura, além da definição clara do seu marco teórico-conceitual e jurídico-legal, e da concepção de uma arquitetura que incorpore a diversidade e complexidade da área cultural, depende do fortalecimento institucional da gestão cultural no país com a qualificação nos planos federal, estadual e municipal, dos gestores públicos e dos conselheiros de cultura, que são os responsáveis por sua implementação. (BRASIL, 2009, p. 4).

A participação recebe importância tal nesse novo desenho político, que o Sistema tem os gestores e os conselheiros de cultura como os responsáveis por sua implementação. O presente texto enfoca os mecanismos de participação política no município, tais como conselhos, conferências e fóruns nas políticas públicas de cultura. O objetivo principal é discutir o papel dos instrumentos participativos nas políticas públicas municipais de cultura. Para isso, deteremos nossa discussão em alguns campos conceituais, tais como o de políticas culturais e democracia cultural. Em seguida, sintetizaremos as políticas culturais tal como foram historicamente construídas no Brasil, dando ênfase ao papel dos instrumentos participativos nesse processo.

2 POLÍTICAS CULTURAIS Historicamente, o campo cultural obteve investimentos simbólicos e financeiros diferenciados. A história desses investimentos leva a identificar diferentes caminhos para as políticas de cultura. As políticas de cultura se desenvolveram paralelamente às campanhas de formação do Estado moderno (BOLÁN, 2006). A cultura como importante assunto de Estado, está relacionada, para George Yúdice e Toby Miller, com a governamentalidade. Este conceito, elaborado por Foucault, diz respeito à preocupação dos Estados modernos em bemgovernar o corpo social. Assuntos antes limitados ao espaço privado – por exemplo, a saúde do indivíduo – são confiscados pelo Estado, e passam a ser objeto de sua administração. O mesmo ocorre com a cultura. Os valores dos indivíduos, que antes eram privados, passam ao domínio do público e tornam-se assunto de Estado. Daí faz-se necessário educar as pessoas de

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acordo com os novos valores modernos, em uma só nação e em uma só língua (YÚDICE; MILLER, 2002). Ao abordarmos o conceito de política cultural, estamos adentrando um campo polissêmico, até porque seus termos constituintes – política e cultura – podem assumir diferentes significados. No que diz respeito ao conceito de cultura, este envolve diferenças semânticas. Sob o ponto de vista estético, designa a produção artística e criativa que é julgada e considerada como tal, segundo critérios de interesses da crítica cultural. Sob o marco antropológico, a cultura envolve um amplo conceito. Inclui os modos de perceber, de viver, que são coletivos e não universais, e envolve aspectos tais como os modos de falar, as crenças, os costumes etc (YÚDICE; MILLER, 2002). Já o termo política cultural pode estar relacionado a ações realizadas, por exemplo, por grupos e entidades culturais, e órgãos executivos do poder público, que estejam voltados para a área da cultura. Essa perspectiva requer um conceito delimitado de política, mais bem dimensionado pela palavra inglesa policy, no sentido de um plano de ação sistemático voltado para o alcance de determinadas metas. Requer também um conceito mais restrito de cultura. Política cultural pode invocar também um conceito de política compreendida de modo mais abrangente. Esse sentido de política é mais bem especificado pelo termo da língua inglesa politics75, que dá ideia de relações de poder, choque de ideias e interesses. Num universo de significados, como os conceitos de cultura e política podem ser relacionados numa noção de política cultural? Adotamos um entendimento que capta a relação constitutiva entre política e cultura. Captamos política especificamente com o seu correspondente na língua inglesa politics, como um campo de disputas por poder. Eis a concepção apresentada por Alvarez, Dagnino e Escobar: Nossa definição de política cultural é ativa e relacional. Interpretamos política cultural como o processo posto em ação quando conjuntos de atores sociais moldados por e encarnando diferentes significados e práticas culturais entram em conflitos uns com os outros. Essa definição supõe que significados e práticas – em particular aqueles teorizados como marginais, oposicionais, minoritários, residuais, emergentes, alternativos, dissidentes e assim por diante, todos concebidos em relação a uma determinada ordem cultural dominante – podem ser a fonte de processos que devem ser aceitos como políticos. [...] A cultura é política porque os significados são constitutivos dos processos que, implícita ou explicitamente, 75

Policy: “a plan of action agreed or chosen by a political party, a business etc.” Politics: “the activities involved in getting and using power in public life, and being able to influence decisions that affect a country or a society”. (OXFORD UNIVERSITY PRESS, 2005)

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buscam redefinir o poder social. Isto é, quando apresentam concepções alternativas de mulher, economia, democracia ou cidadania, que desestabiliza os significados culturais dominantes, os movimentos põem em ação uma política cultural (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p. 24-25).

Os autores instituem uma relação intrínseca entre política e cultura. As políticas culturais operam quando há embates entre grupos sociais, conflitos de práticas e significados culturais distintos. Nesta perspectiva o campo das palavras, dos sentidos e dos significados não paira sobre o campo político. Tampouco este último é concebido como campo privilegiado da prática. Cultura não é apartada da ação política: um é elemento constitutivo do outro. Quando ocorre um embate político, esse é cultural. Quando ocorrem contestações acerca de um significado dominante, um esforço prático está sendo operado no campo social, de questionamento e pressão para redefinição do próprio sistema político em si. Ou seja: “as contestações culturais não são meros ‘sub-produtos’ da luta política, mas ao contrário, são constitutivas dos esforços dos movimentos sociais para redefinir o sentido e os limites do próprio sistema político” (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000, p. 24). Nesses embates, há diferentes práticas discursivas, que funcionam visando atingir propósitos também diferentes, muitas vezes a serviço de valores hegemônicos. As práticas podem estar voltadas para conservação dos significados, ou de sua contestação, tendo como atores organizações civis, estatais, movimentos culturais etc. É claro que nem sempre os movimentos culturais e as organizações civis operam em favor de valores e significados progressistas. Assim também, a ação do Estado não pode ser identificada automaticamente com projetos autoritário, clientelista ou intervencionista, conforme a própria história das políticas culturais no Brasil ilustra. Entretanto, no que diz respeito à área da cultura, esta tendência de igualar Estado e intervencionismo se justifica pelo percurso histórico das políticas voltadas para a cultura no Brasil. As notas a seguir visam percorrer brevemente essa trajetória, para situar os projetos que balizaram as políticas culturais no passado e que ainda as atravessam hoje.

3 POLÍTICAS CULTURAIS NO BRASIL A cultura, como alvo de intervenção sistemática por parte do governo nacional, surge no governo de Getúlio Vargas (BARBALHO, 1998; 2007; CALABRE, 2007; RUBIM, 2007a). Assim, eram lançadas as bases da infeliz relação criada entre intervenção estatal na 56

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cultura e dirigismo que até hoje persiste no imaginário nacional (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007). O objetivo do Estado Novo era construir a nação a partir da produção de um sentimento de “brasilidade”. “Getúlio Vargas procura unir o país em torno do poder central, construir o sentimento de ‘brasilidade’, reunindo a dispersa população em torno de ideias comuns, e elaborar uma nova visão do homem brasileiro” (BARBALHO, 2007, p. 3). Para atingir os objetivos desse projeto, são criadas instituições relacionadas ao patrimônio histórico, ao cinema educativo, ao livro etc. Através desses organismos, o Estado passa a ser produtor de uma cultura oficial (CHAUÍ, 2006). De acordo com Durval Muniz Albuquerque Júnior, o governo que sucedeu o Estado Novo foi marcado pela fraca intervenção estatal na cultura, apresentando “políticas episódicas e setoriais para o fomento das manifestações culturais das diferentes camadas da sociedade” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 70). Ainda de acordo com Albuquerque Junior, é neste momento que se destaca a participação dos movimentos culturais, e que emergem também algumas participações da iniciativa privada na área da cultura. Essa retirada do Estado como fomentador da cultura, e o período subsequente da ditadura militar, em 1964, reforçam ainda mais a relação no imaginário nacional que associa intervenção estatal nas políticas de cultura à característica de dirigismo. O segundo momento de intervenção sistemática sobre a cultura é no período do regime militar, e teve seu auge na gestão de Ernesto Geisel, quando é lançado o primeiro plano que organiza as estratégias do governo sobre a cultura: a Política Nacional de Cultura – PNC (BARBALHO, 2007; CALABRE, 2007; RUBIM, 2007a). A PNC foi construída com a colaboração do Conselho Federal de Cultura – CFC – também criado no período da ditadura militar e formado por intelectuais. A PNC não rompeu com a ênfase sobre a nação iniciada com Vargas, porém deu um novo enfoque: o de investir no projeto da integração da nação. Os governos que seguiram imediatamente à chamada reabertura política não contribuíram para modificar o imaginário apontado por Albuquerque Junior, conforme citado anteriormente, mas foram marcadas, segundo Albino Rubim, por ambiguidades no que concerne a políticas de cultura (RUBIM, 2007a). O governo Sarney cria diversos órgãos para a área da cultura, mas ao mesmo tempo introduz a lei de incentivo à cultura. A nova lei transfere à iniciativa privada o papel de financiar a cultura. Partindo do ideário do Estado incompetente, o governo seguinte – Collor de Melo – “praticamente desmonta a área da cultura no plano federal” (RUBIM, 2007a, p. 24). Esta lógica foi mantida no governo Itamar Franco. Mas é durante o governo Fernando Henrique Cardoso, na gestão do então ministro da 57

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cultura Weffort, que o Estado marcadamente fundamenta sua política cultural em torno do incentivo ao mecenato. “as leis de incentivo foram entronizadas como a política cultural do ministro Francisco Weffort” (RUBIM, 2007a, p. 26). Rubim demonstra como a lógica então vigente transfere a gestão das verbas públicas destinadas à cultura para a iniciativa privada, aumentando, por exemplo, em 150% o teto de renúncia fiscal. O projeto neoliberal se concretizou naquele período com a restrição do papel do Estado aos cuidados com os monumentos oficiais, e posicionou os órgãos de cultura estrategicamente a serviço dos padrões do mercado, apostando no poder da iniciativa privada em administrar a cultura (CHAUÍ, 2006). A lógica vigente passa a ser a do mercado, confiando no seu caráter auto-regulatório, de distribuição de produtos e serviços culturais. Ademais, essa distribuição é expressa por uma relação de oferta e compra, e a cultura passa a ser identificada com objeto de consumo. Esse quadro é detalhado por Chauí: A tradução administrativa dessa ideologia (neoliberal) é a compra de serviços culturais oferecidos por empresas que administram a cultura a partir dos critérios do mercado, alimentando privilégios e exclusões. Expressa-se pelo efêmero, liga-se ao mercado de consumo da moda, dedica-se aos espetáculos enquanto eventos sem raiz e proliferação de imagens para a consagração do consagrado, e volta-se para os aspectos intimistas da vida privada, isto é, para o narcisismo. (CHAUÍ, 2006, p. 68).

O governo Lula, desde 2003, com Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura (MinC), encontrou grandes desafios, deixados por uma história de extremismos, com a política cultural ora identificada com dirigismo, ora identificada com transferência da gestão para o setor privado. A partir de uma nova compreensão do papel do Estado sobre as políticas culturais, algumas mudanças são conseguidas. O orçamento da cultura foi ampliado, a cultura passa a ser compreendida como uma área que merece estratégias, normas e planos bem estruturados com contrapartidas integradas entre os entes federados (RUBIM, 2007b). É nesse contexto que nasce o SNC, pautado pelo princípio da gestão participativa. No tópico seguinte, examinaremos o problemático conceito de participação, inserindo-o na discussão dos mecanismos de gestão participativa nas políticas de cultura.

4 CULTURA POLÍTICA E DEMOCRACIA CULTURAL Tendo percorrido rapidamente os principais aspectos das políticas culturais no Brasil, fica claro como essas políticas podem estar voltadas para propósitos populistas de 58

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produzir cultura visando formar e integrar uma nação. Por outro lado, podem reduzir a cultura a uma relação de consumismo. Na última redução, entende-se que o objetivo das políticas de cultura deve ser o de proporcionar condições de maior acesso da população ao consumo da cultura. Tendo em vista essas experiências, perguntamos: que alternativas restam aos mecanismos de participação no campo das políticas públicas de cultura? Dagnino (2004) examina os rumos hodiernos das noções de cidadania e participação, no Brasil. Ela afirma que a cidadania se encontra entre um projeto político democratizante e transformador e outro de manutenção do status quo, neoliberal. Para a autora, estes dois projetos confluem de forma velada, perversa, pois ambos levantam a bandeira de uma sociedade participante, protagonista e propositiva. O que a autora põe em evidência é um obscuro deslocamento semântico das noções de sociedade civil, participação e cidadania, que necessita ser exposto. É que, apesar de que estes projetos possuam interesses distintos que orientam ações políticas também diversas, eles utilizam o mesmo grupo semântico. Na perspectiva das relações democráticas e da transformação, a autora destaca o projeto da nova cidadania. Ela opta pelo termo projeto para designar a relação entre interesses, visões de sociedade e ações. Para ela, o projeto político tem na cultura seu correspondente indissociável; ou seja, uma ação política não é estritamente política, é também produção e reprodução de matrizes culturais. O projeto da nova cidadania, entendido como política cultural, tem como ponto de partida a noção de direito a ter direitos. Direitos não são posses a serem adquiridas, mas são invenções que partem de ações pela luta de projetos políticos. Outro aspecto desse projeto, segundo a autora, é que ele rejeita uma “incorporação” política dos excluídos (característica do projeto neoliberal), para falar de agentes políticos que definem seus direitos e lutam por eles. O “novo cidadão” não quer ser incorporado ao sistema já definido, mas quer reinventar esse sistema. Sua relação não se limita ao Estado, mas às relações circunscritas na sociedade como um todo, ou seja, a luta pelos direitos supera a negociação com o Estado. Esta luta não se detém a uma busca de transformação formal legislativa. É uma busca pela reinvenção das regras de se viver juntos em sociedade, com a recriação de espaços de negociação coletiva. Atenta aos perigos dos deslizamentos de significados realizados pelo projeto neoliberal que conflui com o projeto da nova cidadania, a autora identifica, nesse processo, a

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retomada da concepção liberal de cidadania – em que o indivíduo paira acima de todas as coisas – e a identificação entre cidadania e mercado: ser cidadão é estar integrado ao mercado. Considerando as relações de poder no Brasil, Dagnino (2000; 2004) vê além do papel dos movimentos populares de afirmarem direitos formalmente adquiridos, e de exigirem inclusão e participação no que é restrito tão somente a poucos, característica de uma sociedade autoritária e estratificada como a nossa. A autora ressalta outro papel para esses grupos sociais, um papel mais diretamente relacionado a transformações em termos de políticas culturais. Ela destaca que os movimentos sociais empreendem um projeto novo e radical de democracia, oposto ao projeto neoliberal de redução do cidadão ao indivíduo que está integrado ao mercado e de redução do papel do Estado nas políticas sociais. Também Rolnik (1995) provoca reflexão no sentido de que a democracia não deveria ser exaltada simplesmente porque é “politicamente correta”. Tratar-se-ia, antes, de pôr em xeque os significados que são atribuídos de maneira definitiva à cidadania e à democracia, e de reinventar esses conceitos. Os movimentos sociais, segundo a autora, querem redefinir a noção mesma de política, cidadania e direitos, lutam pelo poder de dizer sobre si e sobre a sociedade, em última análise, de reinventar a sociedade. Por isso mesmo, nessas disputas é que são questionados e produzidos significados, identidades, enfim, subjetividades. Esta discussão evidencia as disputas pela transformação de significados, lideradas pelos movimentos sociais. Contudo,“a ênfase na transformação cultural como elemento de estratégia dos movimentos sociais não está confinada à sociedade civil como lugar privilegiado da política, mas estende-se também ao Estado e à institucionalidade política” (DAGNINO, 2000, p. 61). Isso significa dizer que nem sempre os movimentos sociais produzem um discurso progressista, e rechaçam um discurso conservador individualista. Essa tendência de imacular a sociedade civil esteve bastante presente entre os movimentos sociais na década de 1970. Na década de 1970, imperava uma certa interpretação marxista que separava radicalmente o terreno econômico (infra-estrutura) do terreno das ideias (superestrutura), subordinando este ao primeiro. A cultura e as ideias, eram o domínio da ideologia e da alienação. Isso tornou a cultura duas vezes negativa: primeiro, porque estabeleceu a cultura como “uma mera expressão epifenomenal de uma ‘essência’ econômica” (DAGNINO, 2000, p. 64). Segundo, porque a cultura era tida como o lugar das ideias, da alienação, “obstáculos à

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transformação social, que deveriam ser eliminados nas massas e substituídos pelo ‘conhecimento verdadeiro’” (DAGNINO, 2000, p. 64). Naquele período, também o papel e o conceito de sociedade civil e de Estado seguiram um percurso muito particular. Os movimentos sociais passaram a construir um pensamento que trazia um oposicionismo entre Estado e sociedade civil. Além disso, Estado e política passaram a ser identificados entre si. Estado era compreendido como o espaço exclusivo da luta política, numa “visão estatista” da política. Isto se deveu, segundo Dagnino, à visão de que a transformação social e a construção da nação tiveram, como principal agente, um Estado forte (DAGNINO, 2000, p. 64-65). Sociedade civil passou a ser o negativo de Estado. Segundo Coutinho (1999), essa oposição era ainda reforçada pela antonímia das palavras civil e militar, que aqui ganhou especial significação devido à experiência da ditadura que terminou em 1985. Ao lado do oposicionismo, os conceitos carregavam um sentido eminentemente maniqueísta: a sociedade civil, através dos movimentos sociais, é sacralizada, e o Estado, contrariamente, é demonizado (CARDOSO, 1994, DAGNINO, 2000, COUTINHO, 1999). Tendo esta discussão em vista, nossa questão não é quem são os autênticos atores da luta transformadora, ou quem são os sujeitos que impedem essa transformação. Interessanos que culturas políticas são postas em movimento nas políticas culturais participativas: A questão que se coloca é pensar como as políticas culturais [...] podem passar da defesa da “democratização da cultura”, ou seja, de torná-la acessível para as massas por meio do consumo, para a implantação da “democracia cultural”, que significa democratizar o acesso da população a todas as etapas do sistema cultural (formação, criação, circulação, fruição). (BARBALHO, 2008, p. 68)

Democracia cultural significa, portanto, democratizar o acesso a todas as etapas do circuito cultural. De acordo com Chauí (2006), uma das direções da democracia cultural é proporcionar locais, mecanismos e estratégias que tornem acessíveis os bens culturais, recusando exclusões e privilégios. Nessa perspectiva, o Estado é retirado da função de produtor da cultura e posicionado tão somente como suporte logístico desse processo, ao passo que o papel de criador e inventor deve [...] ser essencialmente da sociedade e dos indivíduos, cabendo ao Estado dar suporte a tais iniciativas, através de uma atuação que possibilite a infra-estrutura necessária ao desabrochar das referidas iniciativas [...] tarefas específicas atribuídas ao Estado não o tornam autorizado ‘a fazer cultura’. (CUNHA FILHO, 2002, p. 23)

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Democracia cultural envolve também o direito à formação cultural. É considerar o direito de estar inserido no processo de produção da cultura, entendendo por esse processo tanto a apropriação dos meios culturais existentes, ou de criação de novas culturas, de novos significados. É, também, dar condições de acesso aos espaços de formação cultural e divulgálos amplamente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A noção de democracia cultural está balizada nas noções de cidadania cultural e de cultura participativa. Seu fulcro é o direito à cultura. Assim, o direito à cultura é caracterizado pelo direito de participação nas políticas de cultura. Neste sentido, tornam-se importantes mecanismos de participação tais como conferências, conselhos e fóruns. Todavia, não podemos tomá-los como espaços garantidos da cultura participativa, pois a cultura é muito mais abrangente que esses instrumentos. No que diz respeito à produção cultural, essa democracia requer repensar cisões tradicionais. As políticas de cultura que visam a democracia cultural não devem ficar detidas à questão de se o enfoque deve ser a produção erudita, ou a produção popular. O esforço deve ser o de priorizar toda atividade humana que resulte de uma criação intelectual, sob todas as formas de expressão, seja popular ou erudita, pois esta cisão não importa. O enfoque deve recair, sim, sobre a diferença entre as produções culturais conservadoras, descontextualizadas e repetitivas, e as produções significativas, com potencial transformador e experimental. A perspectiva da democracia cultural enfatiza a cultura como campo de disputas que requer estratégias para ampliar a participação dos cidadãos no sistema cultural. Para isso, não basta garantir a existência de espaços de participação tais como conselhos, fóruns e conferências. É preciso que, nesses espaços, circulem diferentes linguagens. É necessário, portanto que as próprias noções de cultura, do espaço político, e da função do conselho sejam definidas de forma provisória, e que sejam redefinidas, no processo de reflexão que os sujeitos ativos de políticas culturais têm sobre o seu próprio fazer, em direção a uma participação mais ampla. O papel social dos instrumentos participativos das políticas públicas de cultura no município é infinitamente amplo porque é mutável. Seu papel, no sentido da democracia cultural, se efetiva quando produz ações e produz reflexões na afirmação e na ampliação dos direitos culturais: produção, fruição, circulação, acesso e participação nas políticas de cultura. 62

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIVISÃO SOCIAL DO PODER A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO Eddla Karina Gomes Pereira76

RESUMO A cultura androcêntrica, ao constituir padrões valorativos subordinantes às mulheres, foi responsável pelo estabelecimento de um sistema de hierarquias. A sociedade moderna, ao assumir valores masculinos, fomentou relações sociais desiguais que, transmitidas culturalmente, criaram hierarquias entre homens e mulheres no contexto social, político, econômico, familiar. A partir da década de 60, sobretudo, transformações culturais, no mercado de trabalho, na economia, na política, provocaram a necessidade de desconstruir a lógica androcêntrica predominante tradicionalmente. A pretensão de neutralizar essas relações de poder passou a ser um objetivo perseguido, inclusive, pelo próprio poder público. A própria ordem jurídica brasileira, ao legitimar relações hierárquicas sexistas e as reproduzir tradicionalmente, também representou um instrumento de opressão, e reforçou os estereótipos construídos que restringiam a função social feminina. Diante do visível contexto de discriminação de gênero, se suscitou a inserção de políticas sociais capazes de viabilizar uma realidade jurídico-social mais igual e, portanto, mais justa à luz da lógica dos direitos humanos. Para tanto, além de maior representatividade dos valores femininos, é preciso desconstruir determinadas posturas assumidas pelo próprio poder público. Nesse sentido, é imperiosa a adoção de políticas que considerem os processos históricos de marginalização aos quais vários grupos sociais foram submetidos, para que haja uma efetiva redistribuição do poder social. PALAVRAS-CHAVE: Feminismo. Cultura. Androcentrismo.

ABSTRACT The androcentric culture, value patterns to be tying the women, was responsible for establishing a system of hierarchies. Modern society, to assume masculine values, fostered unequal social relations that, culturally transmitted, created hierarchies between men and women in the social, political, economic, familiar. From the 60s, especially cultural transformations in the labor market, the economy, politics, caused the need to deconstruct the logic traditionally predominant androcentric. The claim to neutralize these power relations has become a goal pursued even by the public. The Brazilian legal order itself, to legitimize sexist and hierarchical relationships play traditionally, also represented an instrument of oppression, and reinforced stereotypes constructed that restricted women's social role. Given the visible context of gender discrimination, if aroused the inclusion of social policies capable of achieving a legal and social reality more equal and therefore more equitable in light of the logic of human rights. Therefore, in addition to greater representation of feminine values, we must deconstruct certain postures assumed by the public. Therefore, it is imperative to adopt policies that consider the historical processes of marginalization to which various social groups were submitted, so there is an effective redistribution of social power. 76

Advogada, Professora Universitária, Especialista em Direito Processual, Mestra em Ciências Jurídicas – UFPB, possui Máster em Gênero e Política de Igualdade - Univesidade de Valencia (Es)

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KEYWORDS: Feminism. Culture. Androcentrism. INTRODUÇÃO

Toda a organização da sociedade, do consumo, da produção, tem, nas suas entrâncias, valores patriarcais que são responsáveis pela sustentação de uma relação de poder entre os indivíduos. A formação desse sistema de hierarquias calcado no sexo, na raça, na cor, polarizou os valores sociais a partir de critérios ilógicos do ponto de vista dos direitos humanos, o que foi responsável pela supervaloração de alguns atributos humanos, em detrimento da depreciação de outros. A constituição de uma hierarquia pautada no sexo, especificamente, como parâmetro para estabelecer os atributos que mereciam destaque social, produziu diversos efeitos depreciativos para o desenvolvimento pessoal e social das mulheres. A imputação ao feminino das características socialmente mais desvalorizadas não foi, portanto, uma despropositada e infeliz coincidência. Sensibilidade, delicadeza, fragilidade, foram atributos designados às mulheres como meio de ajudar a sustentar o sexismo. Essas posturas fazem parte de uma lógica hegemônica, a qual tentou justificar as suas posturas e sedimentar as suas pretensões invocando uma suposta natureza humana feminina. A lógica patriarcal impôs, tradicionalmente, comportamentos sociais diretamente vinculados ao sexo que cada indivíduo possui. Para serem considerados “normais”, portanto, homens e mulheres devem reproduzir, invariavelmente, aquilo que lhes foi culturalmente designado. Desse modo, todos os indivíduos são diretamente pressionados a portar determinadas características e comportamentos, de acordo com o seu sexo. É por essa razão que a liberação das mulheres por meio do enfraquecimento dessa cultura de dominação representa um grande passo em favor da liberação de toda a espécie humana. Contudo, a divisão social do poder tendo o sexo como referência é incompatível com a formação de um ambiente social democrático, pois tal contexto é inconciliável com relações humanas desiguais. O predomino de uma cultura androcêntica é incompatível com formas democráticas de relações intersujetivas, sobretudo porque em contextos construídos de modo verticalizado não é possível existir interações sociais justas.

1 Gênero e feminismo no contexto de uma sociedade sexuada

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A ideia de natureza humana, historicamente assimilada a partir de diretrizes masculinas, repercutiu na implantação de valores opressivos em desfavor do universo feminino. A criação de pré-concepções excludentes para as mulheres no âmbito político, econômico, e, sobretudo, social, foi resultado da projeção de estigmas androcêntricos determinantes para a justificação de uma suposta inferioridade feminina. Tal perspectiva acarretou um substancial custo para o reconhecimento da dignidade da mulher, o que ainda produz reflexos nocivos na atualidade e legitima “destinos desiguais para as pessoas pelo fato de sua procedência” (MARTÌNEZ; CAMPOS, 2000, p. 19, tradução nossa). Tendo em vista a pretensão de desconstruir os estereótipos que marcam negativamente o feminino, bem como a fim de desvincular os argumentos biologicistas que tentam justificar uma suposta inferioridade das mulheres, o movimento feminista pós-estruturalista entende ser equivocado falar de “sexo masculino” e “sexo feminino”, quando a pretensão for discutir aspectos não biológicos (culturais, sociais...). Nesse contexto, seria mais adequada a utilização do termo “gênero”. Isto porque o termo “sexo” deve ser utilizado para referir-se àqueles aspectos do indivíduo relacionados ao fator biológico, enquanto que em se tratando de temas que envolvem o aspecto cultural que a sexualidade reproduz, é mais cabível o termo gênero. Assim, se convencionou [...] utilizar o termo sexo para referir-se àqueles aspectos do indivíduo que possuem um fundamento claramente biológico (é dizer, as características vinculadas à reprodução ou à sexualidade) e, para referir-se àqueles outros aspectos dos homens e das mulheres cuja causalidade biológica não foi demonstrada, se recorre preferencialmente ao termo gênero. O processo de tipificação sexual descreve as maneiras nas quais o gênero biológico suas associações culturais são incorporados nas autopercepções e no comportamento da criança. A variável psicológica ‘gênero’ refere-se às características que o indivíduo desenvolve e internaliza em resposta às expectativas sociais com relação a ele e ao seu sexo biológico. Não explica apenas que as diferenças se dão porque homens e mulheres são diferentes, ou porque a diferença entre os indivíduos é o sexo. Esta variável pode ser um preditor de comportamento mais importante do que a variável psicológica. (UNGER, 1979, p. 1085, tradução nossa).

O termo gênero, portanto, é usualmente empregado quando trás consigo toda carga valorativa que os produtos culturais do sexo espelham, nos mais diversos contextos. Assim, a sexualidade adquiriu modernamente uma proeminência maior do que a simples reprodução da espécie; todas as condutas humanas modernas estão qualificadas 65

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sexualmente. Essa atribuição de significados ao sexo fez com que se começasse a utilizar o termo gênero, sempre que o sentido do termo ultrapasse os parâmetros biológicos e assumisse conotações culturais, históricas e/ou políticas. Nessa conjuntura, não obstante se trate de uma postura paradoxal, a noção tradicional de igualdade guardava correspondência com a ideia de exclusão. Isto porque ela era reconhecida (e ainda o é) tão somente entre os indivíduos considerados iguais, a partir de determinados paradigmas de cunho racial, econômico, parental, sexual, religioso, dentre outros. Conforme esses critérios, pois, tão somente possuía proeminência social o indivíduo do sexo masculino, capitalista, branco, cristão, ocidental. Dessa forma, foram construídos, em desfavor das mulheres, “processos sociais institucionalizados que anulam a capacidade das pessoas de interatuar e comunicar-se com outras para expressar os seus sentimentos e perspectivas sobre a vida social em contextos nos quais outras pessoas possam escutá-las” (YOUNG, 2000, p. 68, tradução nossa). Para justificar a tradicional desvaloração do feminino, nesse contexto, apelou-se, reiteradas vezes, à própria natureza humana, a fim de argumentar, de modo essencialista, explicações para a criação de uma cultura patriarcal, excludente e autoritária. Tentou-se, pois, “justificar racionalmente as desigualdades sociais – por entrar em contradição com os princípios éticos e políticos das democracias formais – pela naturalização, procedimento eficaz, já que tem a dupla vantagem de fazê-las, a um só tempo, legítimas e imutáveis.” (MARTÌNEZ; CAMPOS, 2000, p. 3, tradução nossa). A lógica androcêntrica, então, ao buscar argumentos naturais para fundamentar a divisão do social do poder, pretendeu tornar menos contestável os critérios de diferenciação hierarquicamente impostos aos indivíduos, sobretudo porque atribuir categorizações aos instintos e natureza humana seria uma forma menos contestável de impor padrões de comportamentos no seio social. Todavia, “a característica distintiva da espécie é a razão, então as diferenças corporais não são mais do que diferenças recíprocas (tão diferente é uma mulher de um homem como um homem de uma mulher), irrelevantes para questões de políticas de direitos.” (AMORÓS, 1980, p. 128, tradução nossa). Diante desse contexto, percebeu-se a necessidade de desenvolver ações políticas específicas para as mulheres, com vistas a lhes reconhecer o direito de serem tratadas como iguais, e, em consequência, lhes conferir meios pelos quais elas possam obter a capacidade rechaçar a invisibilidade que marcou a sua existência e alcançar projeção social e política.

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Não que as mulheres devam assumir uma postura mais masculina, como pretendia o feminismo da igualdade77 ao defender, em suma, o direito das mulheres de serem iguais aos homens, posto que não se deve estabelecer o padrão masculino como paradigma. É necessário, por suposto, que seja atribuída à categoria humana a igual disposição para contestar os padrões distributivos hierarquicamente instituídos pela cultura machista, que oprimiram não somente as mulheres, como também os homens, ao definir como deveriam ser, sentir, viver. Assim, todos os estereótipos e formas decorrentes de discriminação de gênero são construções culturais pautadas no androcentrismo que desconsideram que “homens e mulheres estão mais próximos uns dos outros do que cada um de qualquer outra coisa” (RUBIN, 1986, p. 135). O fato, pois, de homens e mulheres possuírem sexos diferentes não deveria constituir, verdadeiramente, relevância para as questões relativas às prerrogativas humanas na sociedade. Contudo, a carga valorativa culturalmente destinada à sexualidade criou desigualdades entre homens e mulheres, e, ao se perceber esse sistema de hierarquias, se desenvolveu o anseio de promoção de uma “igualdade basal, com implicações nos padrões distributivos” nos diversos espaços sociais (SEN, 2008, p. 58), sem que seja instituído um sujeito como referencial, notadamente no âmbito de discussões relativas ao feminino versus masculino, já que essa divisão binária é contestável, por suas consideráveis limitações. É, sim, necessária a própria desconstrução desses dualismos (homem x mulher; racional x emocial; forte x sensível), à luz de argumentos pós-estruturalista78. Ou seja, há de 77

Movimento que inicia a reclamação histórica pelos direitos das mulheres nos séculos XVII e XVIII e que se plasma na Declaração dos direitos da mulher e da cidadã de Olympe de Gouges (França, 1791) e na Reivindicação dos direitos da mulher de Mary Wollstonecraft (Inglaterra, 1792). Reivindicam o direito a ser reconhecidas em pé de igualdade aos homens. Denuncia a elaboração de diferenças de gênero, construídas pela razão patriarcal como categorias naturais, quando não são senão construções sociais e culturais. (Vocabulário Violeta. Disponível em: . Acesso em: 14 jan. 2009.). 78 “A teoria feminista pós-moderna e/ou pós-estruturalista, segundo Judith Butler Gender Trouble, entende o gênero como um meio discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou o “sexo natural” se produz e estabelece como pré-discursivo, anterior à cultura, como uma superfície politicamente neutra sobre a qual a cultura atua’. Para Butler, o mito do corpo já sexuado é equivalente epistemológico do mito do ‘dado’: assim como o ‘dado’ só pode ser identificado por meio de um marco discursivo que primeiro nos permita nomeá-lo, da mesma maneira sucede com os códigos de gênero culturalmente disponíveis, que ‘sexualizam’ um corpo e constroem sua orientação do desejo sexual. Escrevendo desde as experiências lésbicas dentro do movimento de mulheres, a aguda crítica de Butler à distinção sexo/gênero lhe permite centrar-se no modo pelo qual a lógica compulsória heterossexual foi opressiva e extenuante para alguns homens e mulheres. O enfoque que afirma que não só o gênero, como também a sexualidade se constrói socialmente permite entrar no terreno da contestação política em torno de como a sexualidade e a identidade

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se buscar o desfazimento das nocivas raízes do sistema sexo/gênero, o qual obriga o ser humano a ser, estar, pensar, se comportar, vestir, segundo o que o modelo androcêntrico convencionou socialmente para o homem ou para a mulher, a partir de valores limitados e insuficientes para as diversas e variáveis formas humanas de existir. Segundo essa perspectiva, a igualdade que se almeja estabelecer pressupõe a desconstrução de muitas ideias historicamente incorporadas (por imposição) como verdadeiras: que o homem é o sujeito por excelência, a mulher, o outro sexo; que o masculino é cultura, enquanto o feminino, natureza; que ele é racional, ela sentimental. Isto porque, frise-se,

[...] o sistema de dualismos é um sistema de hierarquias. Os dualismos não só dividem o mundo em duas vertentes, como também colocam uma ordem hierárquica entre estes pólos. Do mesmo modo que os homens dominaram e definiram tradicionalmente as mulheres, um lado dos dualismos domina e define o outro. Assim, o irracional se define como a ausência do racional; o passivo é o fracasso do ativo; o pensamento é mais importante que o sentimento; a razão tem prioridade sobre a emoção. Esta hierarquia foi obscurecida por uma glorificação complexa – e pouco sincera – acerca das mulheres e do feminino. Os homens oprimiram e exploraram as mulheres em um “mundo real”, mas também colocaram as mulheres em um pedestal, as situando em um mundo de fantasia. Os homens exaltam e degradam simultaneamente as mulheres, como também exaltam e degradam simultaneamente os conceitos do lado “feminino” dos dualismos. A natureza, por exemplo, é glorificada como algo respeitável, como um valioso objeto de conquista por parte de heróis masculinos, e simultaneamente é degradada como uma matéria inerte, explorada e manipulada de acordo com os propósitos dos homens. (OLSEN, 1990, p. 454-455)

A implementação de um projeto feminino livre e igualitário, portanto, implica, essencialmente, a superação desses dualismos, a desmistificação de muitos conceitos, para, assim, ser possível a redistribuição do acesso aos espaços públicos. Todos os conceitos vigentes são construções sociais, as quais estão carregadas de valores históricos e culturais, inclusive a própria noção do que é ser mulher; a própria noção de sujeito, pois, é uma construção. E isso faz deduzir que a todo instante as interações sociais exigem que os conceitos se submetam a constantes processos de construção e desconstrução, conforme os valores e necessidades humanas. A forma social e política da mulher existir no mundo pode e deve, então, ser renegociada, revista para, só assim, ser reconstruída, de acordo com um lógica pautada nos sexual, o que até o momento foi considerado à margem da política. Se me permite resumir essa mudança de enfoques e sensibilidades sob uma seguinte fórmula seria a seguinte: enquanto o feminismo do ponto de vista das mulheres estava obcecado com a maternidade e a figura da mãe, o feminismo pós-estruturalista o está com a sexualidade e as drags queens. (BENHABIB, 1996, p. 30).

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direitos humanos. Enquanto a sociedade estiver calcada em valores opressivos prevalecerá a ideia de que uns nascem para mandar, outros para obedecer. Haverá, portanto, opressores e oprimidos, dominantes e dominados, personagens através dos quais se sustenta e reproduz um ambiente categorizador e injusto. Um significativo passo no sentido de assimilação de perspectivas mais igualitárias e justas é desenvolver uma crítica sócio-cultural aos valores dominantes79 que ao longo do tempo ofuscaram a função social da mulher, amparados sobretudo no determinismo biológico. Há de ser proposta, desse modo, a elaboração de um modo de compreender a realidade através de juízos alternativos e flexíveis ou não-absolutos – uma vez que o próprio ser humano está suscetível a um constante “processo de se fazer e refazer” (BUTLER, 2006, p. 16-17). É, então, imprescindível, diante desses argumentos, a necessidade de constituição de modos de regular a vida em sociedade, capazes de prestigiar racionalmente as diferenças e superar os antagonismos da espécie humana. Nesse contexto, o ideal seria a construção de uma sociedade na qual a concepção pública de justiça prestigiasse o direito fundamental à liberdade inalienável das pessoas para decidir sobre seus corpos, posturas e valores, sem que fosse atribuída substancial relevância às suas diversas formas de ser e estar. Cada indivíduo deve, pois, assumir a sua capacidade de rever as suas “formas históricas de vida” (HORKHEIMER, 1968, p. 163), e, ao mesmo tempo, reconhecer o direito recíproco de cada indivíduo de exercer livremente as suas formas de viver no mundo. A análise crítica dos padrões culturais estabelecidos tem a dupla função de fazer os indivíduos repensarem os modelos sociais injustos aos quais devem satisfazer para não serem estigmatizados/marginalizados e, ao mesmo tempo, reavaliarem o modo pelo qual eles percebem o outro como desigual, ao invés de encará-lo, no máximo, como diferente. De fato, as regras de conduta e os valores socialmente prestigiados dependem consideravelmente do poder humano sobre o meio (HORKHEIMER, 2003, p. 163). Por essa razão, a crítica ao sistema sexo/gênero vigente faz transparecer a possibilidade de promoção de uma sociedade mais igualitária, pautada em parâmetros menos opressivos. A ideia de reformular as práticas sociais, o desejo de transformar o modo restrito pelo qual a sociedade

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A dominação consiste na presença de condições institucionais que impedem as pessoas de participarem na determinação de suas ações ou das condições de suas ações. Nesse contexto, as pessoas que vivem dentro de estruturas de dominação sem outras pessoas ou grupos podem determinar, sem relação de reciprocidade, as condições de suas ações, seja diretamente ou em virtude das conseqüências estruturais de suas ações. A democracia social e política na sua expressão mais completa é o oposto da dominação. (YOUNG, 2000, p. 68)

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encara as expressões comportamentais e sentimentais humanas, se assume como um vetor de substancial proeminência no processo de recolocação dos indivíduos como sujeitos centrais de um ambiente social democrático. A Teoria Crítica, nesse sentido, ao apreender a necessidade de resistência contra as formas de poder estabelecido, de acordo com Morgado (2004) , fornece elementos teóricos no intuito de respaldar a capacidade de modificação das normas sociais segregadoras, as quais deslegitimam quase todos no âmbito social, por diversos fatores – sexuais, corporais, raciais, etc. Para tanto, suscita a atuação dos próprios indivíduos como instrumento de modificação das desigualdades erguidas, uma vez que os elege a protagonistas da redistribuição dos benefícios sociais. Propõe, para tanto, um

[...] exercício reflexivo capaz de questionar e de romper com o que está disciplinarmente ordenado e oficialmente consagrado (no conhecimento, no discurso e no comportamento) em dada formação social e a possibilidade de conceber e operacionalizar outras formas diferenciadas, não repressivas e emancipadoras de prática. (HORKHEIMER, 2003, p. 268)

Os próprios seres humanos, nesse sentido, como agentes de criação e modificação cultural, são os principais portadores da força suficiente para a instituição de valores éticos essenciais à convivência harmônica no âmbito de uma sociedade na qual haja não somente a “divisão correta das vantagens sociais” (RAWLS, 2002, p. 23), mas também a redistribuição equitativa da capacidade de cada indivíduo empreender esforços no sentido de conseguir o seu próprio bem-estar (SEN, 2008, p. 58). Contestar, pois, determinados conceitos subsistentes que funcionam, em verdade, como substanciais colaboradores para legitimar a exclusão de determinada parcela da população, a partir de critérios irracionais e parciais, é, invariavelmente, um pré-requisito lógico para a formação de uma sociedade mais justa e igual. Assim, ao avaliar criticamente os padrões culturais vigentes ao longo da história, é perceptível a viabilidade de criação de medidas efetivamente capazes de contestar o padrão de valores formadores da cultura androcêntrica, o qual foi e é responsável pela formação de uma sociedade nitidamente patriarcal. Tão somente a partir do reconhecimento de todas as “formas de opressão potencializadas pela razão histórica (nos discursos e nas atividades) passa a ser possível a desmontagem das ideologias opressoras” (MORGADO, 2004, p.1). A adoção de 70

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posturas dessa ordem pretende, pois, fomentar uma reorganização valorativa da sociedade e dos próprios indivíduos a partir dos direitos humanos, a fim de se estabelecer uma nova ordem nas relações sociais e, por conseguinte, culturais. Questionar os valores machistas herdados por reiteradas gerações a fim de promover uma revolução cultural resulta, efetivamente, em uma tarefa ambiciosa, posto que a lógica androcêntrica tradicionalmente vigente está arraigada e comodamente sedimentada em diversos contextos, sejam masculinos ou femininos. Contudo, os questionamentos incidentes sobre a cultura androcêntrica tendem a se ampliar, já que quase todos os indivíduos exerceriam de forma mais plena as suas prerrogativas se tivessem um acesso mais democrático aos bens públicos materiais e imateriais. Sobremaneira em relação às questões relativas ao gênero, é importante a reconsideração dos padrões vigentes, uma vez que cresce progressivamente a margem de indivíduos que não se enquadram na divisão sexual binária (masculino e feminino) hierarquicamente fundada – “pela reconhecida fungibilidade das categorias de identidade” (BENHABIB, 1996, p. 37, tradução nossa). Homens e mulheres se sentem, em variados contextos, constrangidos com as posturas que devem assumir por imposição cultural. Reiteradas vezes os indivíduos contestam as características de masculinidade ou feminilidade que lhes são cobradas (assumir ou ocultar) em razão da interpretação biológica e/ou psicológica que se convencionou dar ao seu corpo. Em verdade, então, “a divisão dos sexos tem o efeito de reprimir algumas das características da personalidade de praticamente todos. O mesmo sistema social que oprime as mulheres em suas relações de intercâmbio, oprime todos em sua insistência por uma divisão rígida da personalidade” (RUBIN, 1986, p. 114, tradução nossa). Daí a viabilidade de uma insurreição contra os padrões normativo-sexuais estabelecidos, porque, ao contestá-los, se liberaria a personalidade humana do colete de forças do gênero. (RUBIN, 1986, p. 131, tradução nossa) Ao contestar os padrões culturais impositivos e hierarquizantes vigentes, deve-se, pois, inserir perspectivas mais flexíveis à cultura, de forma que cada qual possa ser, estar, viver, sentir, de infinitas formas, e, assim, construir um ambiente mais livre e, portanto, menos desigual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A inclusão de parâmetros mais democráticos no âmbito social é primordial para constituir valores mais tolerantes e, assim, disciplinar relações intersubjetivas mais justas. Para que tal pretensão seja satisfeita de modo sustentável são necessárias mudanças que tenham implicações profundas e causem reflexos sociais, políticos, econômicos. Um dos principais instrumentos de transformação que possui efeito difuso é investir em novas perspectivas culturais, uma vez que tal tipo de iniciativa supõe projeções positivas nos padrões distributivos. Assim, os próprios padrões culturais androcêntricos que originaram um sistema de interações sociais desvantajosas para as mulheres devem, pois, ser contestados para que efetivamente sejam recriados valores mais inclusivos, capazes de reconhecer legitimamente as diversas formas de ser humano. Enquanto o sexo continuar a justificar relações humanas desiguais, persistirá o contexto de privilégios de uns em detrimento da injustificada diminuição da capacidade de realizar de outros.

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