Precariedade científica: modo de não usar

Share Embed


Descrição do Produto

6.

LE MONDE DIPLOMATIQUE - edição portuguesa . dezembro 2016

LE MONDE DIPLOMATIQUE - edição portuguesa . dezembro 2016

.7

Ciência

Trabalho sem direitos?

Precariedade científica: modo de não usar A realidade do trabalho científico acompanha a que se vai instalando em todo o trabalho. Bolsa a bolsa, corte de financiamento a corte de financiamento, desenrascanço a desenrascanço, o sistema científico nacional tornou-se estruturalmente dependente do trabalho precário. Um recente Decreto-Lei ministerial tenta intervir nessa situação mas, paradoxalmente, escolheu fazê-lo através da institucionalização de contratos a prazo. Por que motivo é necessário alterar esse decreto e de que forma pode isso ser feito? PAULO GRANJO *

S

egundo os dados oficiais divulgados este ano, mais de 70% dos investigadores científicos[1] que trabalham em instituições públicas não têm contrato definitivo. Os seus casos pessoais dispersam-se por uma miríade de situações que foram sendo criadas ao longo de quase duas décadas (ver Quadro 1) e a divulgação destes números apenas veio dar um conteúdo quantitativo à realidade que se vê e sente, diariamente, nos centros de investigação. De facto, esses investigadores precários asseguram o funcionamento das instituições científicas e a maioria do seu trabalho de pesquisa, por vezes de ensino, fornecem-lhes a massa crítica que lhes permite fazerem aquilo que dantes não conseguiam; são parte essencial da sua vivência e vitalidade. Não obstante, não sabem o que lhes acontecerá no fim da sua bolsa ou contrato. Apenas que, devido às restrições de contratação por parte das universidades, dificilmente ficarão

em definitivo no local onde prestam serviço – e que, caso sejam bolseiros, nem subsídio de desemprego irão ter. Muitos saltitam entre diferentes bolsas e contratos precários durante décadas, por vezes regredindo na sua posição e salário. Outros emigram, reforçando outros países com o investimento que em si foi feito pelo nosso. As coisas vão funcionando, mas com enormes custos pessoais, sociais e institucionais. Não obstante, chegou a ser moda, há uns anos atrás, a ideológica e esdrúxula noção de que a precariedade seria boa para a produção científica. Por isso se justifica que comecemos por revisitar essa ideia.

Precariedade produz má ciência

A tese de que a precariedade é a forma mais virtuosa de estimular a produção científica – ironicamente, defendida por acadé-

Quadro 1 Tipologia dos investigadores científicos

micos com décadas de vínculo definitivo à função pública – não se limita a ser uma falácia, assente em pressupostos paternalistas e repressivos. É, para além disso, uma mentira factual. Na realidade, a precariedade estimula e tende a reproduzir má ciência e desperdício de recursos. É evidente que a incerteza acerca do seu futuro profissional pressiona os cientistas precários a publicarem tanto e tão depressa quanto possam, quer para suscitarem simpatias hierárquicas, quer para poderem apresentar um currículo forte e competitivo aquando das oportunidades de contratação que venham a existir. Mas, desde logo, tendo eles de assegurar a sua subsistência para lá do término das suas bolsas ou contratos precários, a sua situação laboral obriga a que gastem uma parte significativa do seu tempo e capacidades na busca e na preparação de candidaturas a no-

Designação

Tipo

Duração

Acesso

Categorias equivalentes à carreira?

«Laboratório associado»

Contrato a termo incerto

Avaliação quinquenal, renovação havendo financiamento; rescindível em qualquer momento

Concurso internacional, na instituição

Sim

Contrato a prazo

5 anos

Concurso internacional, na FCT

Sim

Concurso internacional, na FCT

Sim

«Investigador FCT»

«Compromisso com 3 anos renováveis uma vez, Contrato a prazo a Ciência» (extinto) após avaliação «Investigador Convidado»

Bolsa

variável

Candidatura casuística

Sim

«Bolseiro pós-doc»

Bolsa

Renovação anual, até um máximo de 6 anos

Concurso internacional, na FCT

Não

Bolseiro em projecto financiado

Bolsa

Decreto-Lei 57/2016 Contrato a prazo

Variável, até um máximo da Selecção pelo coordenador do duração do projecto projecto

Não

3 anos, renovável anualmente durante mais 3

Não

Concurso simplificado, na instituição

vas possibilidades de bolsa ou contrato, ou a um raro lugar definitivo e estável. Não se trata, contudo, apenas de uma questão de desperdício de tempo e de esforço que poderiam estar a ser aplicados a fazer ciência. A precariedade científica dificulta também a inovação e as rupturas de pressupostos que a possibilitam, antes estimulando a «ciência normal»[2] e repetitiva, o business as usual. Isso acontece, por um lado, porque a inovação e a ruptura com hábitos e paradigmas instalados exigem um tempo de aprofundamento, de sedimentação e de teste que raras vezes é compatibilizável com os ciclos curtos do trabalho precário, da mesma forma que requerem a estabilidade pessoal necessária para sabermos que podemos investir o nosso esforço e capacidades para lá do curto prazo, em programas de trabalho que só virão a dar frutos daqui a vários anos. Para além deste obstáculo à exploração do que é realmente novo, as condições de produção e as exigências com que se confronta um cientista precário também estimulam activamente o business as usual, devido à necessidade de rapidamente publicar muito e nas revistas mais conceituadas. Depressa se aprende que a forma mais simples e segura de o fazer, passando incólume os filtros da revisão por pares, é escrever aquilo que a comunidade científica está habituada a ler, em vez de questionar e desafiar os seus pressupostos e rotinas. Ou seja, aquilo que permite a um cientista precário reforçar a sua imagem e, talvez, vir a aceder a uma posição estável no futuro, é a mesma coisa que apela à limitação das suas capacidades e à estagnação científica.

Boas intenções e efeitos perversos

Dessa forma, combater e reverter a precarização do trabalho científico não é apenas uma questão de justiça social e laboral; é um investimento de política científica e na quali-

dade da ciência que, enquanto cidadãos, pagamos. Neste quadro, a abertura ao diálogo e a intenção de combater a precariedade científica que foi declarada pelo ministro da tutela, Manuel Heitor, suscitou, na comunidade científica nacional, elevadas expectativas. Infelizmente, o primeiro diploma legislativo produzido acerca do assunto – o Decreto-Lei 57/2016, sobre contratação a prazo de doutorados – associa boas intenções com efeitos perversos potencialmente muito graves. Esse Decreto é sobretudo conhecido pelo seu efeito transitório de atribuir, aos «bolseiros» de pós-doutoramento com financiamento público há mais de três anos, um contrato a prazo de até seis anos, gozando dos direitos sociais que são inerentes à legislação laboral geral. Esta evidente e necessária melhoria surge, não obstante, a par com a institucionalização de um novo modelo de contratação precária, que se vem somar às várias formas de precariedade científica já existentes. Trata-se precisamente desses contratos a prazo, aos quais qualquer instituição científica passa a poder recorrer, para o recrutamento de investigadores que podem ser remunerados segundo quatro diferentes níveis salariais. Terminado o contrato, o investigador encontrar-se-á desempregado e terá de encontrar e vencer um novo concurso, para um novo contrato a prazo, naquela ou noutra instituição. Isto, claro está, se a instituição em causa tiver dinheiro para o fazer. Esse é o primeiro dos efeitos perversos do diploma: a sustentabilidade financeira do modelo passa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) para a responsabilidade das universidades, fustigadas por anos seguidos de severos cortes e restrições orçamentais. Contudo, o efeito mais grave é que, ao criar um modelo de recrutamento sem pontes de conexão com as carreiras existentes e no qual os contratos a prazo se podem suceder em diferentes níveis salariais, este Decreto-Lei institui, na prática, uma carreira profissional paralela e precária. Por outras palavras, o diploma não se limita a permitir a contratação temporária de cientistas, com direitos laborais gerais; modela o sistema científico com base em dois grupos segregados de pessoas que fazem basicamente o mesmo trabalho, mas em condições laborais muito diferentes. De um lado, um núcleo duro e reduzido de investigadores e docentes de carreira, com vínculo à função pública. Do outro, uma massa de cientistas precários que aumenta ou diminui consoante os recursos e necessidades, competindo a cada seis anos em concursos para contratos a prazo que nunca os conduzem a uma posição estável e definitiva. Pelas razões anteriormente expressas, esse não é um modelo de sistema científico

Adelina Lopes . Acte sans parole (Samuel Beckett, Acte sans proles I, 1956) (detalhe) . Cortesia Galeria Pedro Oliveira, Porto . (Fotografia: Dinis Santos)

desejável nem para as pessoas, nem para a vida das instituições, nem para a ciência. Nesse sentido, a chamada do Decreto-Lei à Assembleia da República para apreciação parlamentar (por parte do Bloco de Esquerda [BE] e do Partido Comunista Português [PCP]) constitui uma oportunidade determinante para estabelecer consensos e para, mantendo o que ele tem de bom, transformar os seus efeitos perversos em potencialidades.

O que tem de mudar

À partida, a contratação a prazo não é a forma mais adequada de recrutamento científico. A sua aplicação só faz realmente sentido no caso da constituição de equipas para projectos de investigação cujo financiamento e duração estejam claramente delimitados no tempo. Para todo o restante trabalho de pesquisa e funcionamento regular das instituições, tal como para o normal rejuvenescimento dos seus quadros, aquilo que faria sentido seria a institucionalização de um modelo de tenure track, comum em muitos países. Um modelo no qual uma contratação provisória, na sequência de um rigoroso concurso, conduz a uma situação experimental que é objecto de uma avaliação que, sendo positiva, transforma o vínculo de trabalho em contrato definitivo. De alguma forma (embora incluindo de permeio concursos para posições de carreira), era essa a filosofia subjacente aos contratos de «laboratório associado», não se tendo ela concretizado devido às limitações de contratação que foram impostas às universidades, na sequência da crise. Contudo, embora o ponto de partida do Decreto-Lei 57/2016 não seja o mais dese-

jável, é relativamente fácil introduzir-lhe melhorias que transformem os seus efeitos perversos em efeitos virtuosos, para os investigadores e para o sistema. O ponto fulcral é reverter a criação de uma carreira paralela, permanentemente precária. Olhando para os precedentes existentes noutros graus de ensino, a forma mais adequada de o fazer seria introduzir um mecanismo-travão à repetição de contratos a prazo. Se após seis anos numa instituição um investigador continua a ser necessário, a ponto de ser novamente contratado, isso é prova suficiente, por defeito, de que as funções que exerce correspondem a uma necessidade permanente. Assim sendo, deverá ter acesso a um contrato definitivo. Melhor seria que a celebração desse contrato não exigisse mais do que a avaliação positiva do seu desempenho e o reconhecimento de que é necessário à instituição. Mas, aplicando os mecanismos que o próprio Decreto-Lei prevê para outras situações, poderá e deverá legislar-se que, em caso de renovação de um contrato a termo, a instituição fique obrigada a realizar, num prazo razoavelmente curto, concurso para um lugar definitivo no exercício das funções que esse investigador desempenha. É óbvio que, perante o quadro de limitações orçamentais impostas às universidades, essa obrigatoriedade teria de ser acompanhada pelas contrapartidas adequadas, até para evitar que ninguém visse os seus contratos re-

novados: as contratações resultantes desta norma não seriam abrangidas pelas limitações ao aumento de massa salarial e os seus custos teriam de ser compensados por transferência directa do Orçamento do Estado. Por fim, por uma questão básica de equidade, essa mesma norma teria também de ser aplicada aos contratos a termo incerto e aos contratos a prazo já existentes no sistema científico nacional. «Não há dinheiro»? Talvez. Mas, por um lado, isso não representaria na maior parte dos casos um aumento de custos, pelo menos considerando o Orçamento do Estado na sua globalidade. Por outro lado, não estamos a falar de despesas actuais, mas de algo que ocorreria, no mínimo, daqui a sete anos. Um dos resultados dessa alteração seria que a precariedade deixaria de ser a norma e uma possibilidade permanente, para se tornar uma fase transitória e delimitada, no acesso e integração na carreira. Outro resultado seria acelerar, de forma sustentada e justa, a renovação e o rejuvenescimento do sistema científico nacional e das suas instituições. Conforme comecei por dizer, não é a solução ideal. Mas é infinitamente melhor do que o potencial caos que resulta da redacção original do Decreto-Lei. Está, agora, nas mãos da Assembleia da República optar por uma coisa ou por outra. * Antropólogo, investigador científico.

[1] A investigação é uma actividade muito feminizada. Não obstante, para evitar a sistemática duplicação de artigos, utilizarei sempre neste texto o género masculino. [2] No sentido epistemológico de ciência produzida no âmbito e limites dos paradigmas já estabelecidos, reconhecidos e dominantes, contribuindo para o conhecimento, no essencial, através de «mais do mesmo».

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.