Precarização do direito e da liberdade no Brasil Império: estudo do processo de reescravização de Brasília

July 26, 2017 | Autor: M. Dias Paes | Categoria: Historia Social, História Do Direito, Escravidão
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PRECARIZAÇÃO DO DIREITO E DA LIBERDADE NO BRASIL IMPÉRIO: ESTUDO DO PROCESSO DE REESCRAVIZAÇÃO DE BRASILIA

Mariana Armond Dias Paes Mestranda em Direito na Universidade de São Paulo

1. AS AÇÕES DE ESCRAVIDÃO NO BRASIL IMPÉRIO

No

Brasil

do

século

XIX,

havia

três

instrumentos

judiciais

que

possibilitavam a discussão da condição jurídica de escravo, liberto ou livre de alguém: as ações de liberdade, as ações de manutenção de liberdade e as ações de escravidão. As ações de liberdade eram ajuizadas por escravos, em face de seus senhores, com o objetivo de ter sua alforria sentenciada pelo Judiciário. As ações de manutenção de liberdade, por sua vez, eram propostas por livres ou libertos que se sentiam ameaçados no gozo de sua liberdade e procuravam evitar uma redução à categoria de cativos. Já as ações de escravidão, eram interpostas pelos senhores com o intuito de se declarar a condição de escravo de determinada pessoa e a sua condição de senhor, de proprietário daquele escravo.

1

De acordo com Keila GRINBERG, as ações de manutenção de liberdade e as ações de escravidão podem ser consideradas como ações de reescravização, pois tinham como discussão central a possibilidade de revogação do direito à liberdade.

2

Tais ações demonstram a fragilidade da condição de livre e de liberto no Brasil Império.

1

3

GRINBERG também afirma que os senhores que propunham tais ações

GRINBERG, K. “Reescravização, direitos e justiças no Brasil”, p. 104. Para uma descrição

minuciosa dos procedimentos judiciais que deveriam ser adotados em causas de liberdade, ver RIBAS, A. J. Consolidação das leis do processo civil, pp. 465-481. 2

GRINBERG, K. “Reescravização, direitos e justiças no Brasil”, pp. 104-106. Essa

classificação, entretanto, como aponta Silvia Hunold LARA, deve ser utilizada levando-se em consideração que ela agrupa sobre o mesmo rótulo de ações de reescravização dois procedimentos judiciais com objetos diferentes: as ações de manutenção discutem a liberdade de um suposto liberto, enquanto as ações de escravidão discutem a escravidão de um suposto cativo. LARA, S. H. “O espírito das leis”, p. 89. 3

GRINBERG, K. “Senhores sem escravos”, p. 7.

2

eram de poucas posses e, muitas vezes, de condições sociais e financeiras muito próximas às daqueles que se procurava declarar escravos. Assim — continua GRINBERG —, nas ações de escravidão, era bastante tênue a fronteira que separava os senhores de seus supostos escravos. Muitas vezes, esses senhores optavam pela demorada e custosa ação de escravidão para reaver seus cativos, porque estes eram os únicos bens que possuíam e o Judiciário, a única via que lhes era acessível. Ademais, nessa “zona de fronteira social”, perder um escravo poderia significar, inclusive, perder sua própria condição senhorial, ou seja, tornar-se um senhor sem escravos.

4

As ações de escravidão constituem, portanto, uma importante fonte para a compreensão das relações de escravidão brasileiras. Em razão de sua relevância também para a análise da formação do direito brasileiro em um contexto de escravidão, neste trabalho, será analisada a ação proposta por Clelia Leopoldina 5

d’Oliveira com o objetivo de reescravizar a “parda” Brasilia.

Esse processo faz

parte do Acervo Judiciário do Arquivo Nacional e encontra-se microfilmado no Arquivo Edgard Leuenroth. Por meio da análise desse processo, procurar-se-á demonstrar que a precarização de institutos jurídicos é uma chave possível para as pesquisas sobre a formação do direito brasileiro ao longo do século XIX.

2. O CASO DA “PARDA” BRASILIA

A “parda” Brasilia era escrava de Dona Clelia Leopoldina d’Oliveira e ambas moravam na cidade de Salvador, na Bahia. No ano de 1870, Clelia decidiu mudarse para o Rio de Janeiro e, para realizar sua viagem, optou pelo paquete Biela. Contudo, esse navio, de bandeira inglesa, não aceitava transportar escravos. Assim, para poder embarcar, Brasilia usou um passaporte de pessoa livre, no qual figurava ser “criada” de Clelia. Chegando ao Rio de Janeiro, Brasilia foi morar com sua mãe Benedicta, uma escrava que estava pagando as prestações de sua alforria. As relações estabelecidas entre Clelia e Brasilia parecem ter permanecido estáveis até o ano de 1871, quando o Chefe de Polícia da Corte e o Juiz Municipal da 2ª Vara Cível decidiram promover uma ação conjunta para combater a prostituição forçada de escravas por seus senhores. O primeiro passo foi a elaboração, pelos subdelegados, de relações nominais das escravas que eram coagidas à prostituição. Em seguida, essas relações nominais deveriam ser 4

GRINBERG, K. “Senhores sem escravos”, pp. 12-13.

5

Arquivo Edgard Leuenroth, microfilme RRJ mr 054, código de referência 84.0.ACI.178.

3

enviadas ao Juiz da 2ª Vara, que nomeava curador às escravas para dar início a seus

processos

de

liberdade.

Em

razão

dessa

aproximadamente, duzentas ações de liberdade.

atuação,

foram

iniciadas,

6

Brasilia estava dentre as duzentas escravas beneficiadas por esse esforço do Delegado e do Juiz. Assim, com base na alegação de que sua senhora lhe obrigava a se prostituir, a “parda” Brasilia conseguiu sua alforria no dia 23 de março de 1871. Clelia foi intimada da sentença judicial que declarou a liberdade de Brasilia, porém, ela permaneceu inerte e a decisão transitou em julgado, ou seja, 7

contra essa decisão não mais caberia nenhum tipo de contestação judicial.

No

entanto, no dia 29 de julho de 1871, Clelia compareceu perante a 2ª Vara Cível da Corte, acompanhada de seu advogado Manoel de Araújo dos Santos, e ajuizou ação com o objetivo de reaver a propriedade sobre Brasilia. É este processo que passo a analisar. No libelo, Clelia afirmou ser senhora e possuidora da escrava Brasilia, a qual foi recebida como herança de seu pai, o Cônego Bras Antonio d’Oliveira. Alegou, ainda, que a condição de escrava da parda Brasília nunca foi contestada e que a liberdade a ela concedida, no processo anterior, foi fundada em provas falsas de uma suposta prostituição forçada.

8

Brasilia, com o objetivo de defender-se da tentativa de reescravização, constituiu Olimpyo Niemeyer como seu advogado e contestou a ação alegando que não era escrava, porque veio da Bahia com passaporte de pessoa livre e como irmã de Clelia. Ao chegar na Corte, sempre havia sido tida por livre, pagando com sua própria renda os aluguéis dos locais em que vivia. Ademais, havia requerido ao Juiz da 2ª Vara a manutenção de sua liberdade, que transitou em julgado, sem qualquer oposição de Clelia. Os documentos juntados por Clelia, continuou argumentando Brasilia, não seriam suficientes para derrubar a presunção pleníssima de liberdade da qual gozava por efeito da manutenção concedida judicialmente. Afirmou, ainda,

6

CHALHOUB, S. Visões da liberdade, p. 152.

7

“A diferença entre sentença e cousa julgada, é que a primeira significa qualquer decisão do

juiz, considerada em si mesma; e a segunda significa a decisão que se tornou irrevogavel pelo consentimento expresso ou tacito das partes; e este se presume quando a parte deixou de interpôr os recursos no prazos legaes, ou quando foram esgotados todos os recursos ordinarios.” RIBAS, A. J. Consolidação das leis do processo civil, p. 267. 8

Arquivo Edgard Leuenroth, microfilme RRJ mr 054, código de referência 84.0.ACI.178, pp.

5-5v.

4

que não havia nenhuma comprovação de que ela era a Brasilia que foi deixada em herança para a autora.

9

Percebe-se que a defesa do advogado de Brasilia está sustentada por dois argumentos: Brasilia é liberta, pois veio da Bahia com passaporte de pessoa livre; Brasilia é liberta em razão da ação anterior que declarou sua liberdade. Ora, à primeira vista, pode parecer que estes argumentos são incoerentes, pois seria possível supor que, se houve a ação judicial com base na prostituição forçada, então Brasilia se considerava escrava e, por conseguinte, ela não poderia alegar, na mesma petição, ser livre desde seu embarque na Bahia. Entretanto, não se trata de incoerência, mas de técnica de argumentação e redação jurídicas. O advogado podia apresentar argumentos sucessivos para que o juiz, caso não acatasse o primeiro, levasse em consideração, em sua sentença, os seguintes. Após a oitiva das testemunhas e dos depoimentos da autora e da ré, Clelia juntou ao processo suas razões finais, nas quais alegava que ficou provado, pelos depoimentos, que Brasilia lhe pagava jornais mensais e que, portanto, reconhecia sua condição de cativa. Acrescentou, ainda, que a liberdade concedida no primeiro processo, resultou de decisão tomada “de maneira irrefletida” pelas autoridades e “desconsiderou os direitos de terceiros”, pois se baseou na prostituição forçada, fato não alegado por Brasilia em sua contestação à ação de escravidão. Desse modo, Clelia alegou haver um desconcerto entre os motivos alegados para a liberdade: no primeiro processo, a manumissão foi concedida com base no argumento de prostituição forçada, enquanto que, na ação de escravidão, Brasilia alegou ter viajado com passaporte de pessoa livre. Em relação à viagem feita no paquete inglês, Clelia afirmou que não sabia que constava do passaporte de Brasilia que ela era pessoa livre e que, de qualquer modo, tal fato não implicava a liberdade da escrava, posto que isso seria uma afronta ao direito de propriedade garantido pela Constituição do Império.

10

Em suas razões finais, Brasilia, por sua vez, invocou o direito natural, segundo o qual a liberdade é o estado próprio de qualquer homem. Assim, todos tinham presunção plena à liberdade e o juiz deveria sempre julgar a favor de quem estivesse ameaçado de escravidão. Os documentos arrolados por Clelia não seriam suficientes para comprovar seu domínio sobre Brasilia, domínio este que, em virtude 9

do

direito

natural

à

liberdade,

deveria

ser

provado

de

maneira

Arquivo Edgard Leuenroth, microfilme RRJ mr 054, código de referência 84.0.ACI.178, pp.

14-15. 10

Arquivo Edgard Leuenroth, microfilme RRJ mr 054, código de referência 84.0.ACI.178, pp.

45-46v.

5

incontestável.

Não

haveria

também

nenhum

fundamento

a

alegação

de

desconhecimento do que constava do passaporte da “parda” Brasilia. Clelia tinha ciência da proibição de transporte de escravos pelo paquete inglês e, ao embarcar, sujeitou-se às leis da nação estrangeira e renunciou a quaisquer direitos que 11

pudesse ter sobre a “parda” Brasilia. Tanto

as

argumentações

das

partes

quanto

os

depoimentos

das

testemunhas, ao longo da tramitação processual, tinham uma forte preocupação em demonstrar que a ré vivia como livre ou como escrava. Brasilia afirmou, em diversos momentos, que sempre viveu como livre, utilizando como prova de tal realidade o fato de ter arcado com os aluguéis de onde viveu. Junto de sua contestação, a “parda” Brasilia anexou, inclusive, recibos desses aluguéis. Ademais, as petições juntadas ao processo por seu advogado a tratavam como Dona Brasilia Leopoldina de Oliveira, numa clara tentativa de reforçar seu status de liberta. Clelia, por sua vez, procurou demonstrar, documentalmente e por meio de testemunhas, que Brasilia sempre foi tida como sua escrava, pagando-lhe, inclusive, jornais mensais e que tal condição nunca havia sido contestada até a ação que lhe declarou livre com base na prostituição forçada. Quanto ao tratamento de Brasilia como Dona, Clelia afirma ser uma falta de “decência”, uma estratégia adotada por patronos de escravos para ridicularizar os senhores. Percebe-se, portanto, que a demonstração de uma realidade fática era extremamente importante no reconhecimento de um direito, fosse ele o de propriedade e domínio ou o direito à liberdade.

12

De acordo com Sidney CHALHOUB, nas últimas décadas da escravidão na corte, era comum que os senhores, em uma tentativa de auferir o máximo de lucro possível de seus escravos, não os empregassem em serviços domésticos, mas que estipulassem uma quantia, denominada de jornais, os quais deveriam lhe entregar semanal ou mensalmente. Para que o escravo conseguisse o valor estipulado e

11

Arquivo Edgard Leuenroth, microfilme RRJ mr 054, código de referência 84.0.ACI.178, pp.

52-53v. 12

De acordo com GRINBERG, era uma estratégia jurídica utilizada na defesa da liberdade

demonstrar que o suposto escravo havia vivido por mais de cinco anos como livre, o que gerava a prescrição da ação de escravidão. GRINBERG, K. “Reescravização, direitos e justiças no Brasil”, p. 103. Tal estratégia também era utilizada em outras sociedades escravistas: no caso de Adélaïde Métayer, analisado por Rebecca SCOTT, o prévio “sucesso prático” em viver como liberta foi imprescindível para o reconhecimento judicial de sua condição de liberta. SCOTT, Rebecca. “She… refuses to deliver up herself as the slave of your petitioner”, p. 133.

6

negociasse os seus serviços de maneira mais eficiente, era frequente que saíssem 13

das casas de seus senhores e fossem “viver sobre si”.

Os cativos se movimentavam bastante pelas ruas do Rio, e se tornava cada vez mais difícil identificar prontamente as pessoas e os sentidos de seus movimentos. O meio urbano misturava os lugares sociais, escondia cada vez mais a condição social dos negros, dificultando a distinção entre escravos, libertos e pretos livres, e desmontando assim uma política de domínio em que as redes de relações pessoais entre senhores e escravos, ou

amos

e

criados,

ou

patrões

e

imediatamente os indivíduos e suas ações.

dependentes,

enquadravam

14

Percebe-se, portanto, que em um processo no qual estivesse em discussão a condição de livre ou de escravo de alguém, era de suma importância conseguir demonstrar o modo como aquela pessoa vivia. Contudo, essa demonstração se tornava cada vez mais difícil na medida em que a própria identificação dos habitantes do Rio de Janeiro como escravos, libertos ou livres era dificultada pela mobilização dos escravos de ganho e daqueles que viviam fora da casa de seus senhores. Em 22 de maio de 1872, o juiz Francisco de Paula Oliveira Borges julgou a ação improcedente, ou seja, Brasilia era novamente considerada livre pelo Poder Judiciário. A decisão acatou os dois argumentos principais do advogado de Brasilia: o trânsito em julgado da sentença anterior e a viagem na condição de livre. O magistrado considerou como inverossímil a alegação da autora de que só teria tomado ciência de que Brasília havia embarcado como sua criada ao chegar à Corte.

15

Ora, sendo certo que a liberdade não se póde conferir somente em parte, e nem tão pouco somente para determinado fim com a reservada intenção e a faculdade legal de revogar-la depois, é claro e fóra de toda a contestação, que o facto de ter sido a ré declarada pela autora livre para vir no indicado paquete lhe trasferio de uma vez para sempre a liberdade, 16

não podendo jamais, depois da viajem, ser chamada ao captiveiro.

13

CHALHOUB, S. Visões da liberdade, pp. 175-248.

14

CHALHOUB, S. Visões da liberdade, p. 192.

15

Arquivo Edgard Leuenroth, microfilme RRJ mr 054, código de referência 84.0.ACI.178, pp.

58-59v. 16

Arquivo Edgard Leuenroth, microfilme RRJ mr 054, código de referência 84.0.ACI.178, p.

59v.

7

Desta vez, Clelia não ficou inerte e apelou da sentença, com os mesmos argumentos apresentados ao longo do processo. Tampouco Brasilia inovou em sua argumentação jurídica nas contra-razões à apelação.

17

Ao chegar ao Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, a apelação interposta por Clelia foi julgada procedente e a sentença que confirmou a liberdade de Brasília foi reformada. A decisão foi tomada por quatro desembargadores, sendo que houve um voto vencido: o do relator do processo, desembargador Andrade Pinto. O acórdão se fundamentou apenas no fato da viagem, não havendo nenhuma 18

manifestação a respeito da existência de sentença anterior transitada em julgado.

… julgarem a Appda sujeita á condição de escrava da Appe, á vista dos titulos de seu dominio a f 4, f 5, f 45 e f 46, e porque não remio a Appda do captiveiro a circunstancia, que allegou e em que se fundou a sentença reformada, de ter ella viajado da Bahia para esta Côrte com passaporte e na figurada qualidade de pessôa livre em um paquete inglez, visto não ter o valor de manumissão essa simples circunstancia de conveniencia e 19

comodidade da Appe para transportar consigo a Appda.

O advogado de Brasília apresentou petição de embargos ao acórdão. Porém, poucos dias depois, juntou ao processo uma petição na qual informou que não mais patrocinaria a causa de sua curatelada, porque ela havia proposto ação de arbitramento na 1ª Vara Cível, transigindo. Brasília foi, então, intimada a constituir novo advogado, mas, o fato de o processo se encerrar logo após essa intimação faz crer que ela não cumpriu a determinação judicial, preferindo apostar na ação de arbitramento que transcorria perante a 1ª Vara.

20

O uso do termo “transigio”, por Olimpyo Niemeyer, indica que, na ação de arbitramento, possivelmente se chegou a um acordo sobre o preço da alforria de Brasilia. A possibilidade de arbitramento judicial do preço da manumissão foi um direito reconhecido pela Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871. Até o seu advento, poucas vezes, o Estado havia interferido no âmbito privado das relações escravistas procurando limitar o poder senhorial e, principalmente, a prerrogativa da alforria. 17

21

Arquivo Edgard Leuenroth, microfilme RRJ mr 054, código de referência 84.0.ACI.178, pp.

85-87v; 89-92. 18

Arquivo Edgard Leuenroth, microfilme RRJ mr 054, código de referência 84.0.ACI.178, pp.

95-95v. 19

Arquivo Edgard Leuenroth, microfilme RRJ mr 054, código de referência 84.0.ACI.178, p.

95v. 20

Arquivo Edgard Leuenroth, microfilme RRJ mr 054, código de referência 84.0.ACI.178, pp.

97v-98. 21

LARA, S. H. “Para além do cativeiro”, p. 322.

8

A possibilidade de o escravo comprar sua alforria por meio da formação de pecúlio já era praticada antes do advento da lei, no entanto, ter este costume reconhecido no texto legal fazia uma grande diferença, pois os escravos passaram a ter maiores chances de obter sua liberdade, mesmo contra a vontade dos senhores.

22

Brasilia

teria se valido, portanto, da possibilidade judicial de alforria por indenização para, enfim, efetivar seu direito à liberdade.

3. PRECARIZAÇÃO DO DIREITO E DA LIBERDADE: UMA HISTÓRIA AINDA POR CONTAR

A ação de escravidão proposta contra a “parda” Brasilia demonstra a precariedade da condição jurídica de liberto no Brasil Imperial. De acordo com Brasilia, ela teria embarcado como pessoa livre no paquete inglês que a trouxe da Bahia, ou seja, sua senhora a alforriou, uma vez que tinha consciência de não poder embarcar com uma escrava. Assim, a princípio, sua situação de liberta não poderia ser objeto de qualquer contestação, pois, no contexto brasileiro da segunda metade do século XIX, era cada vez menos aceita a 23

possibilidade de revogação de alforrias.

Ademais, como afirma Brasilia, ela

permaneceu vivendo como livre no Rio de Janeiro, vivendo sobre si e arcando com suas próprias despesas. Juridicamente, essa deveria ser uma situação estável. As hipóteses legais de revogação da alforria estavam previstas nos parágrafos 7º, 8º e 9º do título 63, do livro 4º das Ordenações Filipinas: se o liberto comete alguma ingratidão contra seu antigo senhor, na sua presença ou na sua ausência; se o liberto não remir o seu antigo senhor do cativeiro ou não lhe socorrer em caso de fome. Era considerado ingratidão: proferir grave injúria; ferir; tratar negócio que provoque prejuízos ao senhor; expor a perigo ou risco de morte; não cumprir a condição 24

estipulada no ato da alforria.

Percebe-se, portanto, que Brasilia não teria incorrido

em nenhuma das hipóteses legais que autorizavam a revogação da alforria concedida na ocasião do embarque em paquete inglês.

22

CHALHOUB, S. Visões da liberdade, pp. 158-161.

23

CHALHOUB, S. Visões da liberdade, pp. 136-138 e GRINBERG, K. “Reescravização, direitos

e justiças no Brasil”, p. 118. 24

MALHEIRO, A. M. P. A escravidão no Brasil, p. 132. A possibilidade de revogação da

alforria por ingratidão foi extinta pelo §9º do artigo 4º da Lei 2.040 de 1871.

9

25

Entretanto, apesar da improvável hipótese de revogação legal da alforria,

Brasilia preferiu se resguardar, ajuizando ação de liberdade (ou seja, pode se supor 26

que ela receava ser ameaçada por sua ex-senhora na posse de sua liberdade ) sob o argumento de prostituição forçada, aproveitando a ação conjunta do Delegado de Polícia e do Juiz da 2ª Vara Cível da Corte para pôr fim à situação das escravas coagidas a se prostituir. A sentença julgou o pedido da autora procedente e, pela segunda vez, Brasilia teria “conseguido” sua liberdade. 27

Esta sentença transitou em julgado.

E neste ponto, tanto Clelia quanto

Brasilia concordam. Assim, ainda que se admita que não tenha havido concessão da alforria na época do embarque no paquete, é inconteste que Brasilia adquiriu, judicialmente, a condição de liberta após o transcurso do prazo de apelação. Clelia tenta argumentar que a sentença não respeitou o direito de propriedade a ela garantido pela Constituição e que se fundamentou em uma falsa alegação da escrava, mas, em nenhum momento, contesta o trânsito em julgado. O instituto jurídico da coisa julgada é de extrema importância para a segurança jurídica, pois permite que um direito reconhecido judicialmente se consolide. Quando uma decisão judicial passa em julgado, não é possível, em tese, ajuizamento de nova ação que conteste o objeto nela já decidido. Assim, a sentença da primeira ação tinha como objeto a condição jurídica de Brasilia. Ela transitou em julgado e, portanto, não poderia ter sido ajuizada por Clelia uma nova ação com o mesmo objeto, qual seja a condição jurídica de Brasilia. Ocorre que a ação não só foi proposta como foi admitida em primeira instância e a existência da coisa julgada anterior foi totalmente desconsiderada pelo acórdão da Relação do Rio de Janeiro, que declarou a condição de escrava de Brasilia. Assim, ainda que se admita que Clelia não tenha concedido alforria para Brasilia embarcar no paquete, era fato inconteste entre as partes a existência de sentença anterior, contra a qual não foi interposta recurso e que declarou Brasilia liberta. Em outras palavras: era fato inconteste entre as partes que Brasilia foi 25

Sobre os debates acerca da possibilidade de revogação da alforria por ingratidão, na

segunda metade do século XIX, ver MALHEIRO, A. M. P. A escravidão no Brasil, pp. 135-139; NEQUETE, L. O escravo na jurisprudência brasileira, pp. 165-185. 26

De acordo com GRINBERG, as 110 ações de escravidão e manutenção de liberdade, por ela

encontradas no Arquivo Nacional, indicam a instabilidade da situação dos libertos, que, mesmo após viverem como livres, necessitavam do Judiciário para consolidar seus direitos. GRINBERG, K. “Reescravização, direitos e justiças no Brasil”, p. 107. 27

De acordo com o artigo 731 do Regulamento 737 de 25 de novembro de 1850, se não

houver interposição de recurso, no prazo de dez dias contados da publicação ou intimação, contra sentenças de primeira ou segunda instâncias, elas passarão em julgado.

10

judicialmente declarada liberta. Porém, uma situação jurídica que deveria ser segura e consolidada foi completamente ignorada pelos desembargadores do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, em prol da “conveniência e comodidade” no transporte de escravos pelos seus senhores. A precarização da liberdade, imprescindível para se compreender as relações escravistas brasileiras, ainda não foi estudada de maneira sistemática, como afirma CHALHOUB: ainda é uma história por contar.

28

Contudo, o autor

identifica, no século XIX, a existência de um “direito senhorial costumeiro”: “… o de escravizar ilegalmente a torto e a direito, com o beneplácito das instituições imperiais, e tendo como fundamento a noção, operante na vida cotidiana, de que todo preto é escravo até prova em contrário”.

29

Assim, na sociedade oitocentista, negros e pardos, livres ou libertos, viviam a constante ameaça de serem ilegalmente reduzidos à escravidão. No caso em questão, apesar de oriunda do próprio Judiciário, a escravização de Brasilia, ao desconsiderar a existência de coisa julgada anterior, foi flagrantemente contrária ao ordenamento jurídico vigente. Neste caso, uma rede institucional serviu de instrumento de escravização ilegal e precarização da experiência de liberdade da “parda” Brasilia. A partir de 1860, as práticas de reescravização foram perdendo sua legitimidade, no entanto, ainda eram frequentes.

30

Portanto, pode-se afirmar que o

caso analisado indica que as práticas de escravização ilegal ocorridas ao longo de todo o período imperial, além de gerarem precarização da situação de liberdade de inúmeras pessoas, também geravam a precarização de institutos jurídicos. Ao decretar a escravidão de Brasília, os desembargadores da Relação não só desestabilizaram a coisa julgada anterior, mas, principalmente, a condição jurídica 31

de liberta que Brasilia havia adquirido.

Ser considerado, juridicamente, escravo, liberto ou livre significava dispor 32

de um estatuto de direitos e deveres específicos.

Ao ser declarada liberta, Brasilia

deixou a condição jurídica de escrava e todas as restrições à personalidade jurídica

28

CHALHOUB, S. “Costumes senhoriais”, pp. 53-56.

29

CHALHOUB, S. “Costumes senhoriais”, p. 25.

30

GRINBERG, K. “Reescravização, direitos e justiças no Brasil”, p. 124.

31

Apesar de os libertos nascidos no Brasil serem considerados pela Constituição como

cidadãos brasileiros, a eles eram impostas inúmeras restrições de direitos, principalmente, políticos. MALHEIRO, A. M. P. A escravidão no Brasil, pp. 140-143. 32

HESPANHA, A. M. Imbecillitas, p.18 e SILVA, C. N. Constitucionalismo e Império, pp. 239-

265; 335-382.

11

impostas a esse estado. Gozou, portanto, de direitos que antes não lhe eram reconhecidos pela ordem jurídica. Porém, com a decisão dos desembargadores da Relação do Rio de Janeiro, ela foi privada desses direitos, voltando ao estado de escravidão. Assim, além de ocasionar a precariedade da coisa julgada, o acórdão desestabilizou o instituto da personalidade jurídica. Por meio de uma decisão judicial, Brasilia teve sua posição jurídica bruscamente alterada. O século XIX foi um período de constituição e consolidação de uma cultura jurídica brasileira. Entretanto, esse processo histórico de formação da ordem jurídica estava intimamente relacionado à experiência escravista e, portanto, sua análise não pode prescindir de considerar o papel que a vontade senhorial exerceu na criação de direitos de propriedade. Tanto em

relação às práticas de

reescravização quanto em relação à questão fundiária, o ato originário de aquisição da propriedade, frequentemente, ocorria à margem do sistema normativo vigente. As propriedades, tanto escrava quanto fundiária, ilegalmente adquiridas eram, 33

depois, sancionadas pelo poder público, pelas instituições judiciárias.

A história da precarização do direito em um contexto escravista como o brasileiro do século XIX ainda está por contar. O caso da “parda” Brasilia indica que o exercício desenfreado da vontade senhorial, que cometia atos antijurídicos posteriormente avalizados pelo próprio direito, talvez seja uma característica central da formação do direito nacional, uma vez que incidia diretamente na precarização de institutos jurídicos tão fundamentais como o são a coisa julgada e a personalidade jurídica. O estudo da precarização de institutos jurídicos talvez seja uma chave proveitosa para as pesquisas que têm como objeto a constituição de um ordenamento jurídico nacional ao longo do século XIX.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. . “Costumes senhoriais: escravização ilegal e precarização da liberdade no Brasil Império”. AZEVEDO, Elciene; CANO, Jefferson; CHALHOUB, Sidney; CUNHA, Maria Clementina Pereira (organizadores). Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, pp. 23-62.

33

CHALHOUB, S. “Costumes senhoriais”, p. 42.

12

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