Preceitos e Preconceitos. Manejo de Fauna Silvestre no Brasil.

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PRECEITOS E PRECONCEITOS manejo de fauna silvestre no Brasil

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Théa mirian m. machado

Médica-Veterinária e Professora da UFV.

Há 15 anos sou responsável pelo ensino de criação e conservação de fauna silvestre no Departamento de Zootecnia da Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais. A demanda do curso partiu dos próprios estudantes de graduação, atentos ao mercado de trabalho que lhes abria um horizonte com a publicação pelo Ibama em 1997 das Portarias nº 117 e nº 118, que regulamentavam, respectivamente, a co-

mercialização e a criação da fauna silvestre brasileira. De fato, a lei nº 5.197, de 1967, conhecida como a Lei de Proteção à Fauna, prevê “a construção de criadouros destinados à criação de animais silvestres para fins econômicos e industriais”. Portanto, os profissionais que visavam este mercado sofriam uma defasagem de 30 anos. O resultado das diversas regulamentações oficiais sobre o número de registros de novos criadores mostra que “as disposições do organismo normativo das atividades em fauna silvestre têm impacto sobre a multiplicação da fauna em cativeiro e sobre o comércio de animais produzidos de modo sustentável” (Machado et al., 2007, 2009a). Mas, seria a fauna silvestre um recurso natural, ou seja, seria ela passível de utilização pelo homem? A questão foi abordada na edição nº 15 da Revista Ação Ambiental, em um breve texto (Machado, 2007) que discute o verdadeiro diálogo entre professores brasileiros dos cursos de biologia, de veterinária e de zootecnia. O artigo é interessante na medida em que demonstra como a formação profissional pode influenciar o juízo de valor das diversas categorias profissionais e, também, a tendência de preponderar uma visão antropocêntrica.

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O debate pode chegar a ser mais genérico: a natureza como um recurso. Desta forma, para entender melhor esta dinâmica, é recomendável a leitura do texto Recursos Faunístico (Machado, 2005), no qual se aborda as origens da intensificação do manejo do homem sobre animais e plantas, discorre-se sobre a sustentabilidade e a ética no manejo da fauna. Ao analisar a situação da fauna silvestre no Brasil, não é difícil concluir que “precisamos ser mais conservacionistas e menos conservadores”. A afirmativa decorre de uma constatação da extensa lista de espécies da fauna ameaçadas de extinção, apesar de possuirmos diversos dispositivos legais para protegê-las. É preciso também entender que o cidadão expressa, por muitas vezes, opiniões carregadas de conteúdo emocional. Trata-se da velha e boa discussão entre juízo de valor e julgamento técnico. A pergunta que surge é: qual, então, o papel do gestor da fauna silvestre? Nos dias atuais, seria impensável acreditar que as decisões sejam tomadas apenas baseando-se no cunho técnico, apesar de sabermos que ele não é desprezado. É importante resgatar na memória o fato do Brasil ter assinado e sediado, em 1992, a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), aprovada dois anos depois pelo Congresso Nacional. A CDB reafirma que os estados têm direitos soberanos sobre os seus próprios recursos biológicos e que são responsáveis pela conservação de sua diversidade biológica, além da utilização sustentável de seus recursos biológicos. O Decreto nº 2.519, de 1998, promulgado pela CDB, tem como meta “a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando-se em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado”. Outra ferramenta relevante é o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), criado em 2000. Nas diretrizes do SNUC estão explicitados o envolvimento da socieda-

de, a participação efetiva das populações locais, o apoio e a cooperação de organizações não governamentais, de organizações privadas e de pessoas físicas; e a garantia às populações tradicionais de meios de subsistência alternativos ou a justa indenização pelos recursos perdidos. A situação do manejo de espécies da fauna silvestre no Brasil levanta polêmicas, especialmente no que se diz respeito ao manejo ex situ, ou seja, fora do habitat. Este modo de conservação é também tema da CDB, que indica preferência pelo manejo de recursos genéticos locais. O parecer da Convenção está em consonância com menor risco de impacto ocasionado pelo manejo da fauna local (autóctone), se comparado ao da fauna estrangeira (alóctone ou exótica). No Brasil, nas últimas décadas, constatou-se problemas com a introdução e o avanço territorial do Javali, que, com o suíno doméstico, produziu o conhecido Javaporco. Outra questão foi o risco sanitário trazido por uma variedade de vírus de Newcasttle alojado em avestruzes importados e levando ao abate sanitário destas aves, em 1995. Portanto, seria de se esperar que a multiplicação da fauna brasileira em cativeiro fosse estimulada em detrimento da fauna exótica. Mas isso não ocorreu. Ao contrário, o criador comercial da fauna silvestre, e mesmo o pesquisador, diante das enormes burocracias e morosidades na obtenção de licenças para trabalhar com a fauna local, acabam preferindo trabalhar com a fauna exótica. É lastimável que multiplicadores da fauna local venham a se tonar zoológicos de fauna exótica por motivações burocráticas e de falta de viabilidade financeira.

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Os 30 anos de defasagem entre a Lei de Proteção à Fauna e as portarias citadas acima, que viabilizaram as atividades comerciais, repercutiram diretamente no vazio de conhecimento sobre o comportamento e as melhores práticas de manejo da fauna silvestre brasileira em cativeiro. Porém, a parceria privada na conservação da fauna local não deve ser subestimada, nem objeto de preconceito ou de suspeição gratuita por ter contribuído de forma significativa para o avanço das pesquisas no setor. Uma pesquisa com registros de criadouros legalizados comerciais, científicos e conservacionistas no território nacional mostrou que eles estão inseridos, principalmente, em municípios cujo PIB é composto majoritariamente pelo setor de serviços. Em segundo lugar, estão os municípios em que o PIB está relacionado ao setor industrial e, minoritariamente e por último, onde as finanças municipais provêm da agropecuária. A pesquisa indica, portanto, que os criadouros não estão predominantemente conectados à área pecuarista tradicional. Em relação à distribuição geográfica, a maior concentração de criatórios se dá nas regiões Sul e Sudeste do País e de forma minoritária na região Norte, o que também sugere a influência da economia sobre a criação legal da fauna silvestre (Machado et al., 2009b). A situação de controle da fauna brasileira ex situ agravou-se com a implantação do Sistema Nacional de Gestão de Fauna (SisFauna), mencionado na Instrução Normativa Ibama nº 169, de 2008. Nesta Instrução Normativa, procurou-se reunir todas as categorias de uso e manejo da fauna silvestre em cativeiro no Brasil, mas ignorou-se o antigo status dos empreendimentos que já exerciam suas atividades, obrigando os donos de criatórios a

reiniciar o processo de obtenção de autorizações prévia (AP), de instalação (AI) e de manejo (AM), com novas exigências em relação às já anteriormente obtidas. Com isso, foi extinto na forma impressa o banco de dados existente, com base nas declarações/relatórios enviados regularmente pelos empreendedores ao Ibama. Também foram afetados os que já tinham alguma autorização (AP, AI ou AM), ao não conseguirem renová-la no SisFauna, fazendo com estes criatórios passassem à uma situação irregular perante o órgão regulador. O Ibama ainda repassou o controle dos registros de fauna silvestre ex situ às Unidades da Federação. A atual listagem desses empreendedores no País é desconhecida. Por fim, faz-se necessário remarcar que a Lei de Proteção à Fauna previa que o Estado “estimulasse parques de caça federais, estaduais e municipais”. Tais parques não foram contemplados no SNUC. Contudo, o papel da iniciativa privada no estabelecimento de fazendas de caça amadora sustentável foge ao escopo do Sistema. Ainda segundo a Lei de Proteção à Fauna, o Estado estimularia “a formação e o funcionamento de clubes e sociedades amadoristas de caça e de tiro ao voo, objetivando alcançar o espírito associativista para a prática desse esporte”. Fazendas de caça têm dificuldades de se implantarem e/ou se manterem no País, mesmo utilizado a fauna doméstica produzida em cativeiro e introduzida tecnicamente no campo de caça.

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O exercício da caça profissional é proibido pela Lei de Proteção à Fauna, mas segundo a Lei no 9.605, de 1998, conhecida como Lei de Crimes Ambientais, “não é crime o abate de animal, quando realizado em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família”. Ambas as leis preveem destruição de animais silvestres considerados nocivos à agricultura ou à saúde pública, desde que legal e expressamente autorizada pela autoridade competente. Este tem sido o caso de autorizações de caça ao javali ou ao javaporco de vida livre. Neste sentido, outro desafio é colocado: o manejo in situ (em seus habitats) de espécies -problemas. A morosidade na tomada de decisões aflige, por exemplo, fruticultores do Campo das Vertentes, em Minas Gerais (Carvalho et al., 2014). Eles são, em sua maioria, pequenos produtores e, face à premente necessidade de solução para o ataque, especialmente de maritacas, às fruteiras, mobilizam-se para o encontro de uma solução legal com respaldo científico. A solução, para eles, necessita ser imediata, o que não ocorre. O conhecimento sobre a fauna brasileira é limitado, mas não se pode dizer o mesmo sobre a teoria de manejo sustentável da fauna silvestre livre. Nas últimas décadas, os conhecimentos biológicos se associaram à modelagem matemática e grandes obras internacionais estão disponíveis sobre o tema. Os brasileiros não podem continuar a ignorá-las. Como aproximar o conhecimento e os debates sobre conservação e uso da fauna silvestre brasileira do grande público? Programas de televisão sobre a natureza e, particularmente, sobre animais, atraem grandes audiências. O Brasil tem lei de incentivo à cultura e, portanto, a televisão brasileira pode contribuir em muito para este avanço.

Referências Bibliográficas BRASIL Lei no 5.197, de 3 de janeiro de 1967. Dispõe sobre a proteção à fauna e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 5/1/1967. BRASIL Decreto no 2.519, de 16 de março de 1998. Diário Oficial da União, Brasília, 17/03/98, Seção I, 1ª página. BRASIL. Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Capítulo V - Dos crimes contra o meio ambiente. Diário Oficial da União, n. 31, Seção 1, p.3-4, Brasília, 13/2/1998. CARVALHO et al., 2014; ARAúJO, A.R.; ANDRADE, S.; NICOLAU, M.C.; RIBON, R.; MACHADO, T.M.M.; LOPES, L.E. Wild birds and agriculture damage in southern Minas Gerais. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ECOLOGIA E CONSERVAçÃO, 1., 2014, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: UFMG/ICB, 2014. p.177. IBAMA Portaria no 117, de 15 de outubro de 1997 - Regulamenta a comercialização de animais vivos, abatidos partes e produtos da Fauna Brasileira oriundo de criadores comerciais. Brasília: Diário Oficial da União, 16/10/1997 a. Seção 1, p.23489-490. IBAMA Portaria no 118-N, de 15 de outubro de 1997 - Regulamenta o funcionamento de criadouros comerciais da fauna silvestre brasileira com fins econômicos e industriais. Brasília: Diário Oficial da União, 17/11/1997 b, Seção 1, p. 26564. IBAMA Instrução Normativa no 169, de 20 de fevereiro de 2008. Instituir e normatizar as categorias de uso e manejo da fauna silvestre em cativeiro em território Brasileiro. Brasília: Diário Oficial da União, n.2, Seção 1, p. 57-59, 2008.

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MACHADO, T.M.M. Recursos Faunísticos. In: I SIMAS, 2005, Viçosa. Anais... SIMPOSIO DE PRODUçÃO E CONSERVAçÃO DE ANIMAIS SILVESTRES, 1. Viçosa : UFV, 2005. v.1, p.1-13. MACHADO, T.M.M. Seria a fauna silvestre um recurso natural? / Would wildlife be considered a natural resources?  Revista Ação Ambiental, Viçosa, v.10, n.35, p.3, 2007. MACHADO, T.M.M.; GLERIANI, J.M.; LADEIRA, I.R.C; HAMAKAWA, P.J. Perfil da criação legalizada de animais silvestres no Brasil. Revista Ação Ambiental, Viçosa, v.10, n.35, p.15-19, 2007. MACHADO, T.M.M.; CSERMAK JúNIOR, A.C.; GLERIANI, J.M.; MANCIO, A.B.; HAMAKAWA, P.J. Criação legalizada da fauna silvestre brasileira em resposta à ação normalizadora a ela relacionada. In: REUNIÃO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ZOOTECNIA, 46., 2009, Maringá. Anais... Maringá: UFPR, 2009. CD ROM. MACHADO, T.M.M.; CSERMAK JúNIOR, A.C.; GLERIANI, J.M.; MANCIO, A.B.; HAMAKAWA, P.J. Criação legalizada de fauna silvestre no Brasil: distribuição e sua relação com PIB municipal. In: REUNIÃO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ZOOTECNIA, 46., 2009, Maringá. Anais... Maringá: UFPR, 2009. CD ROM.

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