Predicação e Identidade. Aristóteles e Frege

September 20, 2017 | Autor: Luisa Coutosoares | Categoria: Aristotle, Philosophical Logic, Gottlob Frege
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PREDICAÇÃO E IDENTIDADE ARISTÓTELES E FREGE MARIA LUISA COUTO SOARES*

As teorias da predicação – tanto a de Aristóteles como a de Frege – comprovam que, sob certas perspectivas - semântica, cognitiva, e até ontológica - a identidade se situa no centro de todo o movimento predicativo, circulando por dentro e possibilitando as diversas formas que assume a predicação. Mesmo na lógica e semântica de Frege, um dos primeiros a exigir a necessidade de distinguir e separar as diferentes funções da cópula no juízo, a análise da predicação mostra bem a dificuldade de a separar da identidade. Neste sentido, esta revela-se, indissoluvelmente aliada à diferença, como um dos pólos necessários em todo o compasso binário do movimento predicativo. Por outro lado a identidade, considerada em si mesma, constitui um predicado atribuível a tudo o que existe: um predicado de máxima extensão, transcategorial, que releva por isso de uma teoria predicativa particular. Tentaremos responder agora à questão: Que tipo de predicado é o predicado "é idêntico"? Pelas análises anteriores concluimos já que a função de identidade, embora não se exiba, tão pouco se anula na ocorrência da função predicativa; ela está sempre presente, de uma forma mais ténue ou reforçada, assumindo o grau ou o tipo de unidade do objecto do juízo que a proposição exprime. Qualquer das formas da predicação, como vimos em Aristóteles, refere-se, em última análise a uma protoforma que revela um certo tipo de unidade que é a do sujeito sobre o qual versa a predicação: uma unidade genérica ou específica, essencial, ou uma unidade de continuidade coincidental. Em Frege, a análise lógico-semântica das proposições assente na distinção entre sentido e referência, revela também a identidade do objecto de referência como o fundamento para a atribuição de vários modos *Universidade Nova de Lisboa

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de apresentação, vários sentidos. Portanto, sempre se apresenta uma certa forma de unidade do objecto do juízo como condição de toda e qualquer forma predicativa, o que não permite traçar uma fronteira nítida entre predicação e identidade. Agora passaremos a analisar, não simplesmente a identidade como fundamento e raiz de todo e qualquer juízo, mas a própria identidade como possível predicado. Ou melhor, que condições deve apresentar um predicado como "é idêntico...", para poder ser atribuído transcategorialmente? Tomemos como fio condutor as teorias da predicação de Aristóteles e de Frege. As suas estruturas predicativas fornecem um enquadramento para a integração da identidade na predicação, no caso de Aristóteles, e mostram as razões da sua distinção e separação no tratamento privilegiadamente extensionalista da predicação, em Frege; mas encontramos, tanto em Aristóteles como, curiosamente, em Frege, uma análise de predicados transcategoriais como os da unidade, identidade, com nítidas e interessantes afinidades. No exame do predicado de unidade, por exemplo, Frege ultrapassa as barreiras impostas por uma lógica rigorosamente extensional, para estabelecer um modo "transcendental" de predicar que sugere uma perspectiva completamente diferente da lógica da predicação. Embora a terminologia seja diferente, o esquema conceptual que serve a Frege para distinguir entre níveis de predicação, e caracterizar o modo "transcendental" de predicar, é muito semelhante ao que serve a Aristóteles para caracterizar predicados como os de "unidade", "o mesmo que...", etc. Por isso os textos de Frege parecem complementar as análises aristotélicas com a terminologia e os instrumentos conceptuais adequados para a elaboração de uma teoria lógica da predicação. Admitir que o predicado de identidade pode apresentar diversos "graus", ou diversos sentidos, e que por isso carece de uma teoria analógica, significa abdicar da noção unívoca de identidade e em consequência, da sua definição lógica. Esta hipótese deve repugnar aos lógicos, pois introduzir uma noção não unívoca da identidade parece perturbar o formalismo da linguagem simbólica. Como justificar o tratamento analógico da identidade? Em primeiro lugar, tentaremos mostrar como tanto os textos de Aristóteles como os de Frege propõem claramente essa analogia.

 

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SENTIDOS DE ΤΑΥΤΟΝ EM ARISTÓTELES Examinemos a noção de identidade. Aristóteles considera diversos sentidos de ταυτον 1 1. em primeiro lugar a identidade numérica, no caso em que há mais do que um nome para a mesma coisa, como "capote", "casaco"; 2. identidade específica quando várias coisas não diferem em espécie, como por exemplo um homem e outro homem, um cavalo e outro cavalo, que são diversos, mas especificamente o mesmo; 3. identidade genérica, quando várias coisas pertencem ao mesmo género, como por exemplo homem e cavalo. De todos estes sentidos, Aristóteles considera como o mais usual o da identidade numérica, no qual, por sua vez se podem ainda enumerar vários sub-sentidos: 1.1. a identidade que se aplica a um nome ou definição aplicados à mesma coisa, como por exemplo "animal bípede" e "homem"; 1.2. a identidade que se aplica a uma propriedade e ao sujeito que a possui, como por exemplo "ser capaz de conhecer" que é o mesmo que "homem"; 1.3. a identidade que se aplica a um acidente e ao sujeito, como por exemplo "aquele que está sentado", que pode designar o mesmo que "Sócrates". Em todos estes casos se trata de identidade numérica2. Em Tópicos 152b30-35, Aristóteles confirma esta mesma pluralidade de sentidos de ταυτον - específica, genérica e numérica. A polissemia de ταυτον indica e exige que este predicado não deve ser utilizado univocamente, pois, como explicita Aristóteles nesta última passagem, aquilo que é idêntico genérica ou especificamente pode não o ser numericamente.                                                                                                                 1  Cfr. Tópicos, I, 7, 103a5-103b.   2

Cf. ibidem

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A caracterização da identidade numérica apresentada por Aristóteles é peculiar e merece alguma atenção: como é patente, Aristóteles caracteriza-a, não através do objecto a que se referem as diferentes expressões (nomes, predicados, definições), mas através dos modos segundo os quais estas expressões designam o objecto; em cada um dos três casos que servem de exemplo de identidade numérica, os termos estabelecem a mesma relação semântica, uma relação de referência ou denotação do mesmo objecto. Este aspecto é o que distingue os casos de identidade numérica dos outros tipos de identidade (específica ou genérica). É o caso em que ocorrem vários nomes ou expressões para designar a mesma coisa3. Esta formulação aproxima-se consideravelmente da noção lógica de identidade como igualdade: trata-se de uma relação entre vários nomes, ou modos de designar um mesmo objecto, apresentando-o pela sua definição, por uma das suas propriedades, acidentes, ou dando-lhe um nome próprio. Este sentido de identidade é, como dissémos o de uma igualdade, como se comprova pelas mesmas propriedades características que manifesta: simetria, reflexividade e transitividade, que nos Principia Mathematica definem a identidade4. De facto, em Tópicos, VII, 1, 152a31-35, Aristóteles enumera várias características da identidade numérica que correspondem exactamente a estas propriedades definitórias dos Principia: "É necessário examinar ainda se, supondo que uma de duas coisas é a mesma que uma terceira, a outra é também a mesma que esta terceira: porque se não forem as duas as mesmas que uma mesma coisa, é evidente que tão pouco serão as mesmas entre si".

A transitividade5 é aqui requerida por Aristóteles. E logo a seguir a exigência da simetria e reflexividade:                                                                                                                 3 Cfr. Pelletier, F. J. - "Sameness and Referential Opacity in Aristotle", Nous, 13 (1979) p. 285. 4 Cfr. Whitehead, A. N. and Russell, B. - Principia Mathematica, vol I, Cambridge, at University Press, 1968, cap. 13 "Identity". 5. Note-se que a transitividade, como propriedade da igualdade, só é garantida no tratamento extensional, unívoco do predicado; mas será posta em causa na teoria da identidade relativa, que admite a possibilidade de A ser o mesmo X que B, e não ser o mesmo Y que B.

 

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"Além disso, as duas coisas devem ser examinadas a partir dos seus acidentes: porque tudo o que é acidente de uma deve ser também acidente da outra; e as coisas às quais uma delas pertence como acidente, devem ter também a outra como acidente. Se, nalgum destes casos, houver discordância, é evidente que as coisas em questão não são idênticas".

Explicitemos as condições de identidade aqui enunciadas6: 1. Para qualquer x, y e z, se x for numericamente o mesmo que z e y não for numericamente o mesmo que z, então x não é numericamente o mesmo que y. 2. Para qualquer x e y, se x for numericamente o mesmo que y, então qualquer acidente de x deve ser também um acidente de y. 3. Para qualquer x e y, se x for numericamente o mesmo que y, então para qualquer z tal que x seja um acidente de z, y é um acidente de z. 4. Para qualquer x e y, se x for numericamente o mesmo que y, então para qualquer z tal que x é predicado de z, y é predicado de z. Estas condições de identidade perfilam, como se pode ver uma relação semelhante à da identidade dos indiscerníveis, em que o predicado "é idêntico" é tomado em sentido unívoco e absoluto. Se faltar alguma destas condições já não se daria uma identidade, pelo menos neste sentido de identidade numérica, que Aristóteles até aqui considerara como o sentido mais radical da identidade. Não se podem perder de vista, no entanto, os outros sentidos da identidade enunciados também por Aristóteles. Portanto, se alguns autores têm visto nesta passagem dos Tópicos uma formulação aristotélica do princípio da identidade dos indiscerníveis, esta aproximação deverá ser moderada pela polissemia da noção de identidade em que se integra a caracterização aristotélica7. Ao formular deste modo tão absoluto                                                                                                                 6. Cfr. Pelletier, F. J. - art. cit., p. 284-85. 7. Cfr. White, N. - "Aristotle on Sameness and Oneness", The Philosophical Review, vol. 80 (1971) p. 178-79; o autor considera que Aristóteles teria enunciado em 152b25-29, de um modo irrestrito, o princípio leibniziano da identidade dos indiscerníveis, mas que posteriormente, em Refut. Sof., XXIV 179b1-14, ao deparar-se com os paradoxos aos quais tal formulação conduziria, teria restringido a sua primeira enunciação.

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as condições da identidade, Aristóteles está a considerar apenas um dos sentidos da identidade, permanecendo portanto ressalvada a hipótese de se dar um dos outros sentidos da identidade, no caso em que não se verifiquem estas condições: a impossibilidade de se verificar uma identidade numérica não impede que se possa dar uma identidade genérica ou específica. No livro VII, pouco depois desta enunciação do que se considera o princípio aristotélico da identidade dos indiscerníveis, Aristóteles reitera a consideração da polissemia da noção de identidade, o que torna necessário examinar com cuidado se duas coisas, idênticas num certo sentido, o serão também num outro. Efectivamente, não é necessário nem mesmo possível que as coisas idênticas específica ou genericamente, o sejam numericamente. Este contexto da consideração da polissemia do predicado "idêntico" em que se integra a formulação das condições de identidade, mostra bem que esta não é nunca considerada como uma noção unívoca, mas sim como um predicado com múltiplas acepções, correspondentes a uma multiplicidade de sentidos que permitem dilucidar uma certa hierarquia de graus de identidade. No entanto, mesmo em relação às condições propostas em 152a3135, Aristóteles introduz uma modificação ou uma restrição fundamental em Refut. Sof. 166b28-36. Ao tratar das falácias do acidente, observa que a sua causa reside na atribuição indiscriminada de um atributo a uma coisa e ao seu acidente. Na verdade, como uma coisa tem muitos acidentes, não é necessário que os mesmos atributos pertençam a todos os predicados e ao próprio sujeito desses predicados. E aqui surge a restrição ao princípio anteriormente enunciado: só àquelas coisas que são indiscerníveis e uma quanto à essência é que se podem atribuir indiscriminadamente os mesmos atributos. Esta restrição afecta consideravelmente a formulação anteriormente citada: neste caso, embora tanto um nome próprio (Corisco), como um predicado acidental (o facto de se aproximar ou de trazer o rosto velado), possam ter uma relação referencial com o memo objecto, exprimindo portanto uma identidade numérica, nem tudo o que se atribui ao sujeito, Corisco ("conheço Corisco") transita necessariamente para o predicado acidental ("conheço o homem de rosto velado"). Os casos em que

 

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essa transitividade não se verifica, não permitem a substituibilidade dos termos idênticos, ou termos que designam o mesmo objecto (um nome próprio e um predicado acidental); esta falha na substituibilidade dos idênticos não anula, no entanto, a identidade. Com esta restrição do princípio da substituibilidade de termos idênticos, Aristóteles pretende, não só solucionar as referidas falácias do acidente, mas também precisar melhor a sua noção de identidade, destrinçando-a da regra lógica e semântica da substituição que, como vimos, é uma aplicação prática do princípio da identidade dos indiscerníveis. Nesta solução pode perceber-se já a distinção fundamental entre predicação essencial e acidental (καθʹ′αυτο e κατα συµβεβηκος), que desempenhará um papel fundamental na Metafísica. Com efeito, se, nos Tópicos e Refutações Sofísticas a noção de identidade é cuidadosamente tratada como uma noção não unívoca, na qual se podem distinguir diversos sentidos, e que escapa a uma formulação absoluta, em termos de igualdade, em obras posteriores a noção de identidade é submetida a análises ainda mais rigorosas que detectam as nuances e as ressonâncias metafísicas que a noção implica. Fundamental no pensamento aristotélico, autêntica linha de prumo da sua Metafísica, é a distinção entre essencial/ acidental, entre essências propriamente ditas e "unidades acidentais". Embora já latente nos Tópicos e Refutações, como vimos, é na Metafísica que a distinção entre predicação essencial e acidental assume um papel preponderante, nomeadamente nos livros centrais, para a dilucidação da noção de ουσια. Em Metafisica Δ, 9, ao apresentar a definição de identidade, Aristóteles introdu-la precisamente através desta distinção fundamental: "Idêntico significa aquilo que é idêntico num sentido acidental, por exemplo 'o pálido' e 'o músico' são idênticos porque são acidentes da mesma coisa, e 'um homem' e 'músico' porque um é acidente do outro; e 'o músico' é 'um homem' porque é um acidente de homem. (...) Algumas coisas são idênticas neste sentido (acidental), outras são idênticas por natureza, nos mesmos sentidos em que uma coisa é una por sua própria

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natureza; pois tanto as coisas cuja natureza é una quer em espécie quer em número, como aquelas cuja essência é una, dizem-se idênticas"8.

Nova confirmação de que a predicação meramente acidental não é excluída da identidade. Há identidade, se bem que num sentido mais enfraquecido do que no caso da identidade essencial; a predicação acidental fundamenta-se no primeiro sentido da identidade - a numérica - talvez o sentido mais débil de identidade. Na predicação acidental activa-se a relação de inerência (inesse), uma relação que não chega nunca a esgotar a identidade, dada a impossibilidade de designar os infinitos acidentes de uma substância, mas que apesar de tudo a vai revelando paulatinamente e para ela aponta como um foco atractor. Mais uma vez a via adoptada por Aristóteles para o exame de uma noção metafísica é a análise da linguagem: os vários sentidos da identidade são apresentados através de uma descrição "linguística" dos modos de dizer a identidade9. A identidade (mesmidade) de um objecto é analisada através das relações entre as expressões que o designam. E são as diferenças no modo de relacionar estas expressões com os seus designata que dão origem aos diferentes sentidos da identidade. A observação é relevante para compreender o estatuto atribuído por Aristóteles à noção da identidade, uma relação estabelecida pelo entendimento, com base na unidade do ser real. "É evidente portanto, que a identidade é uma unidade do ser, ou unidade de vários seres ou unidade de um só, considerado como múltiplo, como ao dizer por exemplo que uma coisa é idêntica a si mesma: neste caso estamos a tratá-la como se fossem duas"10.

Este texto mostra bem a relação entre unidade (εν) e identidade (ταυτον): a identidade é a unidade ou de várias coisas que, embora sejam múltiplas quanto ao ser, dizem-se idênticas na medida em que coincidem em algum tipo de unidade, ou de algo que, embora uno quanto ao ser, o intelecto o utiliza como vários para entender esta relação. Como uma relação só se                                                                                                                 8 Metafísica, Δ, 9, 1017b26-30. 9 Cfr. Pelletier, F. J. - art. cit., p. 291-92. 10 Metafísica, Δ, 9, 1018a8-10.

 

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pode estabelecer entre dois extremos, quando afirmamos que uma coisa é idêntica a si mesma, o intelecto utiliza o que é um secundum rem, como dois secundum intellectum. A relação de identidade não é pois uma relação real, mas apenas uma relação de razão, afirma S. Tomás no seu comentário ao texto aristotélico, argumentando que se a identidade fosse algo de real, pelo qual duas coisas se dizem idênticas, então teria que haver outra relação que fosse idêntica a ela, e assim até ao infinito. Este procedimento até ao infinito não é lícito no mundo real, mas nada o impede naquilo que é secundum intellectum. Pois como o intelecto reflecte sobre o seu próprio acto, entende o seu próprio entender11. Sendo uma relação de razão, utilizada pelo nosso modo de conhecer os objectos, e nos recursos linguísticos para os designar e re-identificar, justifica-se o procedimento aristotélico de, pela via da descrição semântica, tentar estabelecer uma relação entre modos de identificação de um objecto. Esta apresentação, muito semelhante às concepções da lógica e semântica contemporâneas parece, no entanto, enfraquecer consideravelmente a relação de identidade, relegada para o campo da semântica e reduzida a uma convergência mais ou menos convencional, de diversas expressões num mesmo objecto de referência. Se este enfraquecimento se revela tão alheio ao pensamento aristotélico, deve-se precisamente ao estreito envolvimento da questão da identidade com a da unidade do ser real; e sobretudo à afirmação de unidades últimas, de "sujeitos básicos, ou primeiros", condições de possibilidade e do sentido de todas as formas de predicação. Mais do que a distinção entre essencial e acidental, ou entre propriedades essenciais e acidentais, a tese do "essencialismo aristotélico" defende a existência destes sujeitos básicos, como constitutivos fundamentais da estrutura do real, que patenteiam uma identidade originária consigo mesmos, que se revelam, se mostram como são, exemplificando com nitidez casos da protoforma de toda a predicação: a da identidade de um singular com a sua própria essência. Esta concepção do essencialismo aponta para uma noção de indivíduo muito diferente de um mero conjunto ou aglomerado de atributos, pois introduz uma relação forte, de cada indivíduo consigo mesmo, com a sua própria essência, que não se                                                                                                                 11 Cfr. In Metaphysicorum L V.1.XI 911.

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assimila à relação do sujeito com os seus acidentes; nos Tópicos não há ainda a consideração do problema central da Metafísica, da identidade da ουσια; o que está em causa na primeira obra é sobretudo a questão da predicação como relação entre um sujeito e o seu predicado, fundada sempre sobre uma diferença radical, ou heterogeneidade entre a categoria do sujeito, do objecto, e do predicado, do conceito; no livro Z, o problema com que se enfrenta Aristóteles não é apenas o de uma relação fundamental da predicação, que toma por sujeito, uma unidade última, um sujeito básico, e por predicado, essa mesma unidade última como resposta à pergunta pelo seu ser; esta relação fundamental exprime a própria identidade de cada substância consigo mesma: a noção de ουσια aponta não apenas para um sujeito último de predicação, mas também para uma resposta inequívoca à pergunta "o que é...?", referindo-se a esse mesmo sujeito; neste "ponto" (ideal ou real?) há total identificação entre sujeito e predicado, pois não admite uma ulterior divisão: esta indivisibilidade entre sujeito e predicado, entre objecto e conceito, é no entanto a garantia da inteligibilidade do singular. Esta nova aproximação da noção de substância individual vai alterar profundamente a formulação da questão da identidade tal como é apresentada nos Tópicos. Aqui, como vimos, Aristóteles trata a identidade numérica como o sentido mais usual da identidade, apresentando-a como uma relação entre diferentes expressões que referem o mesmo objecto; expressões que podem designar ou um acidente desse mesmo objecto, ou uma propriedade essencial, ou a própria definição, correspondendo a diferentes sub-sentidos. No entanto, todos estes casos exibem uma mesma relação de ordem semântica - o modo como cada um destes termos refere o mesmo objecto. É nessa relação em comum que os diferentes termos expressão de um acidente, de uma propriedade essencial ou o nome próprio têm com um mesmo objecto, que se baseia a identidade numérica. Na Metafísica, Aristóteles tenta estabelecer uma relação entre diferentes modos de identificar o mesmo objecto, aos quais tinha já feito uma referência de passagem, ao tratar das falácias do acidente nas Refutações. Aqui ficara já estabelecido que um dos modos de designar o objecto, o que exprime a essência, permite a substituição por termos idênticos, mantendo-se o valor de verdade da proposição; no entanto, o

 

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modo de referir através de um acidente, já não permite essa substituição. Mas é na Metafísica que a distinção entre estes dois sentidos da identidade, essencial e acidental, é tida em conta como distinção fundamental no tratamento da predicação e suas relações com a própria identidade. A mudança de perspectiva no tratamento desta questão reflecte nitidamente a preocupação de Aristóteles por elucidar alguns dos conceitos fulcrais da metafísica, sobretudo a noção de ουσια, e assegurar a identidade e a inteligibilidade do ser singular12. O "novo" conceito de identidade desenvolvido na Metafísica seguirá o difícil itinerário das sucessivas reflexões sobre a noção de substância, ensaiando diversas vias de acesso, que desembocam finalmente na questão central da identidade de cada ser singular com a sua própria essência. Se na consideração da noção de identidade não se tiver em conta o seu carácter analógico, à pergunta pela identidade de cada substância individual respondemos de um modo unívoco, mas ao mesmo tempo inviável, com o somatório de todos os seus predicados, assumindo cada um deles um papel absolutamente essencial e definitivo. A pergunta "o que é...?" referida a um ser individual torna-se uma pergunta de extrema ambiguidade, para a qual haverá tantas respostas quantas as possíveis propriedades, acidentes, relações, pontos de vista, sob os quais se possa fazer referência a esse singular. Não há qualquer resposta privilegiada, que assuma a identificação do singular. Mas se admitirmos uma noção analógica da identidade, a noção unívoca da identidade como somatório de propriedades, acidentes, de um sujeito é substituída pela garantia de um modo peculiar de apresentar a identidade de cada singular, de uma resposta privilegiada, mais adequada do que muitas outras, à pergunta "o que é...?". Uma analogia de diferentes tipos de identidade permitirá estabelecer uma certa hierarquia de predicados na substância individual, que determinará uma ordem de prioridades nos vários modos de dar resposta à pergunta pela sua identidade. A polissemia enunciada nos Tópicos em relação à noção de identidade é, portanto, não só confirmada, mas reforçada na Metafísica;                                                                                                                 12 Cfr. Pelletier, F. J. - art. cit., p. 292: "I view Aristotle's apparent change in opinion about sameness (...) as a reflection of his deep thought concerning various metaphysical concepts such as substance, essence, etc.".

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nesta última não aparece, porém, em nenhum texto, qualquer referência àquelas condições da identidade que fariam pensar numa antecipação aristotélica da chamada Lei de Leibniz. Aqui a identidade é pensada em estreita relação com a noção de unidade (το εν) a tal ponto que os diversos sentidos que Aristóteles descobre em ταυτον encontram uma exacta correspondência nos sentidos que detecta na noção de unidade. À polissemia de ambas as noções corresponderá uma analogia que permita regular o emprego dessa pluralidade de sentidos de modo a evitar uma viciosa equivocidade no emprego destes predicados. A clara semelhança do tratamento destas duas noções e correspondentes sentidos, levou alguns autores a considerar que há ambiguidade nos textos da Metafísica em que Aristóteles trata da unidade e identidade13. Segundo N. White, o termo ταυτον tal como é empregue por Aristóteles, não pode ser uniformemente traduzido por "idêntico": o que corresponde propriamente à noção de identidade seria o sentido que Aristóteles designa por identidade numérica, a propósito do qual enuncia o princípio da identidade dos indiscerníveis. Para os outros sentidos destacados por Aristóteles - identidade específica e genérica - White sugere que se utilize o termo semelhança em vez de identidade14. E atribui a Aristóteles uma confusão, ou pelo menos indistinção entre identidade e semelhança. Para White identidade é a identidade no sentido "forte", leibniziano, e todos os outros sentidos exprimem relações mais débeis, como                                                                                                                 13 Cfr. White, N. - art. cit., p. 177-79; cfr. também Miller, F. D. - "Did Aristotle have the concept of identity?", Phil. Review, 82 (1973) pp. 483-490. 14 White, N. - art. cit., p. 182: "What makes them (beings...) the same in species or genus is simply that they fall under the same species or genus - that is (roughly) they share an attribute which attaches to them in a certain way. Even if we suppose for the moment that Aristotle's "same in number" (...) represents something like identity, it is noteworthy that Aristotle does not mark it off from "same in species" and "same in genus" as being of a quite different type. The fact that he does not so mark it off might lead one to suspect that he does not have plainly in view a distinction between similarity and identity". No entanto, cfr. Metafísica, A, 3, 1054b5, onde Aristóteles estabelece a distinção entre semelhança e identidade: "são semelhantes os seres que, não sendo absolutamente os mesmos, nem idênticos na sua substância concreta, são idênticos na forma. Por exemplo um quadrilátero maior é semelhante a um mais pequeno".

 

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a mera inclusão comum num determinado atributo. Nas obras posteriores aos Tópicos, argumenta White, Aristóteles prestaria muito mais atenção à noção de unidade, sendo a de identidade totalmente absorvida nesta última15. De facto, Aristóteles afirma que "a identidade é uma espécie de unidade". Em Δ,€6, não faria a distinção entre dois usos diferentes de um, como um predicado com um lugar vazio, e um predicado com dois lugares vazios: "x e y são um", ou "x é um com y" e "x é um". Esta última proposição exprimiria o sentido de um como contínuo, enquanto as outras duas poderiam traduzir vários casos do que Aristóteles designa por "unidades acidentais". Para o sentido da unidade como continuidade não haveria nenhuma correspondência nos sentidos da identidade indicados por Aristóteles, apesar da sua afirmação em 1018a5 de que idêntico (ταυτον) apresenta os mesmos sentidos que um (εν). A ambiguidade que White atribui a Aristóteles radica na assimilação de dois sentidos, ou dois usos da noção de unidade: um que exprime a identidade ("x e y são um", ou "x é idêntico a y"), porque os dois seres pertencem à mesma espécie ou género; outro que exprime unicidade ("x e y são um", porque constituem a mesma entidade unitária). White conclui que Aristóteles em Metafísica Δ não apresenta uma noção clara e inequívoca da identidade porque está mais preocupado com a explicação do que significa para um ser, ser uno, ou seja o que é que constitui a unidade de um ser formado de uma pluralidade de elementos16. Contrariamente à tese de White, desenvolvida no artigo citado, penso, no entanto, que a preocupação de Aristóteles com as questões metafísicas fulcrais - que exigirão uma conciliação da noção de identidade com as de movimento, tempo, diferença - não o levaram a desviar a atenção da questão da identidade para a de unidade, mas sim a burilar o tratamento da identidade, explorando com mais agudeza a pluralidade dos seus sentidos. E as afinidades estreitas com a noção de unidade não são ocasião para um tratamento ambíguo das duas noções, mas servirão para compreender algumas das peculiaridades do predicado "é idêntico" à luz da teoria predicativa para a noção de unidade.                                                                                                                 15 White, N. - art. cit., p. 184: o autor cita textos de Metafísica, Δ, 6 e 9, I. 16 Cfr. White, N. - art. cit., p. 188.

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Num evidente paralelismo com o texto de Δ, 9, sobre a identidade, em Δ, 6, Aristóteles introduz a noção de unidade distinguindo dois sentidos: um por acidente e um por essência. Exemplos de unidades acidentais: Corisco e músico são uma e a mesma coisa porque há identidade entre as duas expressões, ou, como afirma o citado texto dos Tópicos, ambas referem o mesmo objecto; o músico e o justo, o músico e Corisco, o justo e Corisco, são também uma coisa única. Dizem-se unidades acidentais porque justo e músico são acidentes de uma só substância, ou cada um é acidente da substância individual, Corisco. Também se pode afirmar o acidente do género, como no caso de "homem músico", que por sua vez é acidente de um indivíduo, por exemplo Corisco. Quanto ao um por essência, Aristóteles refere em primeiro lugar o sentido de unidade como continuidade: do que é naturalmente contínuo, e secundariamente do que é contínuo artificialmente. Diz-se também que é um por essência aquilo que não difere especificamente, ou aquilo que não difere genericamente, se bem que se divida em diferenças específicas opostas entre si, e finalmente diz-se que são um aquelas coisas que possuem unidade de definição. Em suma, conclui Aristóteles, a unidade em sentido primordial é a que se atribui àquelas coisas cuja substância é una, quer seja por continuidade, por espécie ou por definição17. Ou, como acrescenta em 1016b32, o que é uno, pode sê-lo segundo o número, segundo a espécie, segundo o género ou por analogia, sentidos da unidade que correspondem evidentemente aos da identidade. No livro I, 1, Aristóteles repete esta mesma enumeração dos sentidos de um, ou das coisas das quais se pode dizer que são unas, distinguindo no entanto a questão que se refere à extensão da noção de uno, da questão da essência de ser uno, ou à da sua compreensão. A essência do Uno consiste na indivisibilidade, uma coisa é una e uma por ser essencialmente uma coisa determinada, separável segundo o lugar e a forma, ou pelo pensamento18. Tomando posição frente às concepções do Uno dos pitagóricos e de Platão19, que o consideram como uma espécie de natureza separada, Aristóteles                                                                                                                 17 Cfr. Metafísica, Δ, 6, 1015b16-1016b15. 18 Cfr. Metafísica, I, 1, 1052b15-18. 19 Cfr. Metafísica, B, 4, 1001a4-b25.

 

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afirma que, tal como o ser, o Uno não pode ser nem uma substância nem um género, pois ser e um são os predicados mais universais, aplicáveis a tudo o que existe. Como tal, são predicados transcategoriais, pois assumem, em cada categoria a sua forma correspondente. A conclusão que tira Aristóteles deste carácter transcategorial do Uno é a seguinte: "Portanto se nas categorias da passividade, qualidade, quantidade e movimento, há em cada categoria um número e uma unidade, e se o número é (número) de coisas particulares e a unidade é uma unidade particular, não sendo a sua substância a unidade, o mesmo deve acontecer no caso das substâncias, porque o mesmo acontece em todos os casos"20.

Esta passagem sintetiza o carácter transcendental da noção de unidade, elucidando o comportamento transcategorial do predicado uno; o termo transcategorial é talvez, de momento menos equívoco, sem as conotações do termo transcendental. No entanto, detecta-se na caracterização deste tipo de predicação, que atravessa de um modo transparente toda a tábua das categorias, a afinidade com a acepção clássica e medieval dos transcendentais, predicados todos eles reciprocáveis com o próprio ser. Devido a este carácter transcategorial, o predicado "é um" não acrescenta nenhuma determinação real àquilo a que se atribui; porque é transcategorial, tal como o ser, o uno pode predicar-se igualmente de qualquer categoria, mas não reside especialmente em nenhuma delas, nem na substância, nem na qualidade, etc.; ao dizer um homem nada mais se afirma do que ao dizer simplesmente homem21.                                                                                                                 20 Metafísica, I, 2, 1054a5-10; Esta análise aristotélica da unidade antecipa a análise de Frege em Grundlagen: Cfr. §§ 45, 46, 48, 51, 52, nos quais Frege afirma repetidas vezes que o número não é uma propriedade das coisas, dos objectos, mas sim algo que se diz de um conceito, é um predicado de conceitos, não de objectos. É o que defende Aristóteles ao afirmar a predicação do número através de cada categoria, assumindo em cada uma a forma de cada categoria: "o número é sempre (o número) de uma coisa particular...", não acrescenta nenhuma determinação aos objectos, mas sobre-determina pela respectiva categoria. 21 Cfr. Metafísica, I, 2, 1054a12-20; Uma análise semelhante do predicado existe levará Kant a afirmar que não é um predicado real, pois não acrescenta nenhuma determinação à essência de uma coisa: "In dem bloβen Begriffe eines

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Ao Uno pertence a identidade, a semelhança, a igualdade, e ao Múltiplo, a diferença, a alteridade, a dissemelhança e a desigualdade, série de oposições, de conceitos relativos que, como tal, se traduzem por predicados com dois lugares vazios, e não um. A confusão que White atribui a Aristóteles tem a sua origem no facto de este por vezes considerar o uno no sentido de uma identidade entre dois termos que significam o mesmo objecto, ou seja, no sentido de identidade numérica. E como a identidade é uma noção relacional, exige dois termos, se bem que ambos sejam aspectos, modos, propriedades do mesmo objecto. Esta pertença da identidade à unidade reflecte-se bem no comportamento dos dois predicados correspondentes: ambos se revelam transcategoriais, não se encontram incluídos em nenhuma das categorias, mas significam sempre algo determinado pela categoria através da qual se predicam. Daí o seu carácter de certo modo incompleto, detectado por Frege, e a consequente necessidade de os predicar sempre de outro conceito: ser um é ser um ser determinado, ser idêntico é ser idêntico em relação a algo determinado (mesmo no caso de ser idêntico a si mesmo). A relatividade da identidade e diferença é nitidamente explicitada por Aristóteles em I, 8, 1057b35, onde afirma que aquilo que é outro em espécie é outro em relação a alguma coisa e em alguma coisa; aquilo pelo qual são outros deve pertencer aos dois termos: por exemplo homem é outro animal, diferente de cavalo; homem e cavalo são diferentes animais, mas ambos são animais. A mesma análise se poderá aplicar evidentemente ao oposto, à identidade. Note-se a afinidade desta análise aristotélica com a tese da identidade relativa defendida por Geach: "este x é o mesmo F que y", em que F é o nome de um conceito específico sob o qual caem x e y. Assim como Aristóteles afirma que ser um é ser um algo determinado22, também Geach considera que dizer "x é o mesmo..." não tem sentido sem acrescentar uma determinação real "x é o mesmo F"23.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   Dinges kann gar kei Charakter seines Daseins angetroffen werden" (KrV, B 273 A 225). Por sua vez, o § 53 dos Grundlagen de Frege, que introduz a noção de existência a partir da distinção entre propriedades e notas de um conceito, revela nítidas afinidades com o pensamento de Kant. 22 Cfr. Metafísica, I, 2, 1054a5-10. 23 Cfr. Geach, P. - Logic Matters, p. 238: "I am arguing for the thesis that identity is relative. When one says "x is identical with y" this, I hold is an incomplete expression; it is short for "x is the same A as y", where "A" represents some

 

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As análises de Aristóteles apontam inequivocamente para uma noção analógica da identidade: um conceito unívoco não permitiria resolver os problemas da predicação, reduzindo os diferentes modos de predicar a um modelo único e uniformizante. As repetidas vezes em que, nos textos aristotélicos a noção de identidade é tratada, enumeram diversos sentidos, que a maleabilizam, de modo a torná-la um predicado cuja transparência permite a sua aplicação nos diferentes níveis da predicação, a todas as categorias de seres. A afinidade da identidade com a unidade detectada nos textos da Metafísica, facilita a compreensão da transcendentalidade das duas noções que, por isso, requerem um modelo analógico de predicar; ao mesmo tempo, e precisamente por ambos os predicados da unidade e identidade se aplicarem a todas as categorias de ser, apresentam-se como predicados incompletos, insaturados, com uma indeterminação que lhes permite circular transversalmente por toda a estrutura categorial, sem constituirem uma determinação em directo dos objectos. Daí a pertinência de formular, para estes predicados transcendentais uma teoria lógica que revele o modo peculiar como se predicam. Algumas das análises de Frege sobre o número, a unidade - noção que, como vimos, tem estreitas afinidades com a da identidade - constituem um bom ponto de partida para a elaboração dessa teoria: a sua distinção entre predicado e notas de um conceito, que permite situar certos predicados a um segundo nível de predicação, e esta mesma hierarquia de níveis de predicados, são noções muito úteis para apreender o modelo transcategorial do predicado de identidade e da unidade. Por se adequarem à teoria predicativa de Aristóteles, e de certo modo complementarem o seu tratamento das noções de unidade e identidade, passaremos a um exame de algum pormenor das referidas teses de Frege.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  count noun understood from the context of utterance - or else, it is just a vague expression of a half-formed thought".

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FREGE: UNIDADE E IDENTIDADE Ao fazer a sua exploração do conceito de número, nos Grundlagen der Arithmetik, Frege emprega duas distinções que serão de grande utilidade para a formulação de uma teoria da predicação de noções transcategoriais, como as de unidade, identidade, existência. A primeira dessas distinções, a que já nos referimos é a que Frege estabelece entre propriedades e notas de um conceito; a segunda, consequência desta primeira, é a distinção entre níveis de predicação24: um predicado de primeiro nível exprime uma propriedade de objectos, podendo portanto ser-lhes atribuido directamente; um predicado de segundo nível exprime uma propriedade de um conceito, e não de um objecto, e portanto só pode ser atribuído a objectos via conceito. A atribuição do número exibe, segundo a análise de Frege, essa hierarquia de predicados, pois o número é algo que se atribui a um conceito. A gramática, neste aspecto não se torna muito elucidativa, pois apresenta a expressão "quatro cavalos que puxam a carruagem do Imperador" com uma estrutura semelhante à da expressão "cavalos brancos que puxam a carruagem do Imperador", fazendo pensar que quatro, tal como brancos é um adjectivo de "cavalos". De facto, a análise lógica faz ver que não é assim, pois "quatro" não adjectiva o substantivo "cavalos", mas sim o conceito "cavalos que puxam a carruagem do Imperador". A segunda expressão - "cavalos brancos que puxam a carruagem do Imperador" constitui uma unidade de linguagem; mas a outra expressão - "quatro cavalos..." - pode decompor-se em duas unidades: uma que exprime o conceito "cavalo que puxa a carruagem do Imperador", e a atribuição da extensão a este conceito, o número quatro. Assim o número, tal como os quantificadores, é um predicado de predicados, um predicado que atribui uma propriedade a um conceito, a de ser vazio (atribuindo-lhe o número 0), ou a de possuir uma determinada extensão. Estas distinções de Frege serão particularmente elucidativas para o caso da noção de unidade: a linguagem corrente pode levar a crer que                                                                                                                 24 Sobre níveis (Stufen) de predicação cfr. Angelelli, I. - Studies on Gottlob Frege and Traditional Philosophy, p. 192-196 e Dummett, M. - Frege. Philosophy of Language, cap. 3.

 

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"unidade" é uma propriedade que serve para completar a descrição de um objecto e deste modo, consideramos "uma cidade" como uma expressão semelhante a "homem sábio". Neste caso uma unidade seria um objecto caracterizado com a propriedade de "ser um", e esse objecto estaria para "um", como "homem" para a propriedade de "ser sábio"25. Além da argumentação que Frege apresentara já contra a tese de que os números sejam propriedades das coisas, há ainda outras razões contra este modo de analisar a noção de unidade. É evidente que tudo o que existe possui esta propriedade, e isso torna incompreensível a sua atribuição a uma determinada coisa. Se todas as coisas que existem, sem excepção, são "um", não tem sentido atribuir esta propriedade; se dizemos de Solon que é sábio, é precisamente porque há a possibilidade de alguns homens não serem sábios. Um conceito cuja extensão é universal, omniabarcante, é vazio de conteúdo: é o caso da unidade, que sendo aplicável a tudo quanto existe, não poderá constituir nenhuma determinação real para o objecto, pois o seu conteúdo será praticamente nulo. Por isso Frege conclui que "um", isoladamente, não pode constituir um predicado. O exemplo do plural deste predicado torna-o ainda mais evidente: enquanto as expressões "Solon é sábio" e "Tales é sábio" se podem unir em "Solon e Tales são sábios", não é possível dizer "Solon e Tales são uns"26. Um não é portanto uma propriedade vulgar de objectos, não os determina como os outros predicados que exprimem as diversas categorias. Neste aspecto, Frege não faz mais do que reiterar a afirmação já citada de Aristóteles, de que ao dizer um homem não digo nada mais do que ao dizer simplesmemte homem27 e esta peculiaridade do predicado "é um" revela precisamente a sua transcendentalidade ou transcategorialidade. O predicado assume a forma da categoria correspondente que se predica do objecto, e por isso mesmo, não pode ser empregue isoladamente, pois carece de um complemento, um predicado de                                                                                                                 25 Cfr. Grundlagen der Arithemik, § 29. 26 Grundlagen, § 29: "...Aber allein scheint 'Ein' nicht Prädikat sein zu können. Noch deutlicher zeigt sich dies beim Plural. Während man 'Solon war weise' und 'Thales war weise' zusammenziehen kann in 'Solon und Thales waren weise', kann man nicht sagen 'Solon und Thales waren Ein' ". 27 Cfr. Metafísica, I, 2, 1054a12-20.

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primeiro nível. "Solon é um..." precisa de ser completado para ter sentido com o termo genérico "...homem" ou "...sábio". Frege exclui, portanto, a consideração da unidade como uma propriedade de objectos, visto que não constitui nenhuma determinação real a acrescentar à descrição de um objecto. Na realidade a palavra unidade não é senão outro nome para "coisa", de tal modo que se podem considerar coextensivos os conceitos de "unidade" e de "coisidade". Sendo assim, para quê designar as coisas como "unidades"? Schröder apresenta como razão a necessidade de atribuir uma certa identidade aos items que devam ser enumerados. No entanto, as próprias palavras "objecto" ou "coisa" poderiam indicar já essa identidade. E porque é necessário atribuir identidade aos objectos para serem contados? Trata-se de uma identidade que lhes é atribuída, ou os objectos são de facto idênticos28? Não há dois objectos idênticos (Frege defende explicitamente a identidade dos indiscerníveis), portanto a identidade que permite contar, enumerar objectos é a identidade conferida por um "ponto de vista" (Hinsicht) sob o qual o entendimento reune uma série de objectos29. Mas de qualquer modo, a identidade conferida por este ponto de vista não permite ainda a contagem, visto que só se podem contar os objectos que nos surjam clara e nitidamente discrimináveis uns dos outros, pelo menos pela sua localização espacio-temporal. O número não é senão outro nome para diversidade. E a identidade exacta é unidade; para surgir a pluralidade é necessária a diferença e a discernibilidade30. O problema que Frege pretende resolver é o da conciliação na noção de unidade entre a identidade das unidades (e, tal como Aristóteles, Frege sublinha a afinidade entre unidade e identidade: "Genaue Identität ist Einheit") e a diversidade implícita nas unidades como princípio do número, portanto da pluralidade. A questão é afinal uma reiteração do eterno dilema do Uno e do Múltiplo. Frege enuncia-o do seguinte modo:                                                                                                                 28 Cfr. Grundlagen, § 34. 29 Grundlgen, § 34: "Jedenfalls sind nie zwei Gegenstände durchaus gleich. Andrerseits kann man wohl fast immer eine Hinsicht ausfindig machen, in der zwei Gegenstände übereinstimmen". 30 Cfr. Grundlagen, § 35.

 

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"Se tentarmos produzir o número reunindo diferentes objectos, o resultado será uma aglomeração na qual os objectos contidos possuirão exactamente as mesmas propriedades que servem para os distinguir uns dos outros; e isso não é o número. Mas se tentarmos produzi-lo de outro modo, reunindo idênticos, o resultado levar-nos-á sempre a uma unidade e nunca obteremos uma pluralidade. Se empregarmos 1 para significar cada um dos objectos que devem ser contados, estamos a cometer o erro de atribuir o mesmo símbolo a coisas diferentes. Se colocarmos no 1 traços diferenciadores, torna-se inoperacional em aritmética"31.

A contradição consiste em que aparentemente se pode atribuir às unidades, simultaneamente a identidade e a discernibilidade. Recapitulemos as dificuldades que Frege encontra na análise da noção de unidade: em primeiro lugar, o número não é, como se mostra pela análise lógica da linguagem, uma propriedade das coisas. Por isso a noção de número, como a de unidade, não podem ser abstraídas a partir dos objectos; em segundo lugar, a noção de unidade é problemática, pois se designamos por unidades as coisas que queremos contar, teremos que as pensar como discerníveis, diferentes, e perderemos de vista a identidade sob a qual reunimos a série de unidades. Por outro lado, é necessária a discernibilidade e a diferença das coisas a contar, de contrário não poderíamos ir além de um32. À primeira dificuldade Frege responderá mostrando que uma afirmação de um número é uma asserção sobre um conceito33. Em "Estas quatro companhias" e "Estes 500 homens", o que se altera de uma expressão para a outra não é nenhum objecto individual, nem um todo ou uma aglomeração, mas sim a terminologia, que indica a substituição de um conceito por outro: o conceito de companhia (ao qual se atribui o número 4 como extensão) é substituído pelo conceito de homem (ao qual se atribui o número 500 como extensão). O exemplo da atribuição do número 0, torna                                                                                                                 31 Grundlagen, § 39. 32 Cfr. Grundlagen, § 45. 33 Cfr. Grundlagen, § 46.

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ainda mais claro o pensamento de Frege: ao dizer "Vénus tem 0 luas", atribui-se uma propriedade ao conceito "lua de Vénus", a propriedade de ser vazio, ou não incluir nenhum objecto na sua extensão. A este propósito, Frege observa a afinidade entre a atribuição do número e a atribuição de existência: a existência não é senão a negação do número 0, por isso é também uma propriedade de conceitos, e não de objectos. A aparente contradição do termo "unidade" resolve-se considerando dois sentidos que a palavra envolve: por um lado, enquanto termo conceptual, unidade exprime a indivisibilidade, e é neste sentido que as unidades são idênticas. No entanto, ao afirmar a discernibilidade das unidades, estamos a significar que as coisas contadas são discerníveis34. Para Frege a palavra "um" não é senão um nome próprio de um objecto matemático, o número 1, que não admite plural; "unidade" designa um conceito relativo ao número, objecto que lhe pertence; com efeito, a fórmula mais correcta será a de considerar no conceito a unidade por referência à qual se determina o número cardinal pertencente a este conceito. Assim se torna compreensível afirmar que a unidade está separada de tudo o que a rodeia e é indivisível: a razão é que o conceito, ao qual se atribui o número, em geral separa com precisão os elementos da pluralidade que subsume35. Na proposição que Frege apresenta como exemplo "Júpiter tem quatro luas", a unidade é "lua de Júpiter", o conceito que subsume a extensão correspondente às quatro luas de Júpiter. Sob este conceito cai a lua I, lua II, lua III e lua IV. É a unidade que confere a identidade. A singularidade e irrepetibilidade dos objectos introduz a discernibilidade e pluralidade, que permite contá-los.                                                                                                                 34 Cfr. ibidem, § 54. 35 Cfr. ibidem, § 54; Já referimos que Frege distingue os conceitos que isolam de um modo definido o que cai sob eles, daqueles que não satisfazem esta condição: exemplo do primeiro caso é o conceito "letras da palavra três", do segundo o conceito "vermelho". A um conceito como este último não corresponde nenhum número finito e, como observa Geach, não permite a contagem. Cfr. Reference and Generality, p. 153: "On such cases, (red thing) as we saw, Frege cagily remarks that the (concept signified by the) predicable determines no finite number; but the trouble is not that we cannot make an end of counting in these cases, but that we could not even begin to set up a one-one correlation of the things counted to numerals".

 

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A análise fregeana da noção de unidade contribui por um lado para a dilucidação da identidade, mas por outro lado levanta alguns problemas. Um primeiro dado, coincidente até certo ponto com a argumentação aristotélica nos textos da Metafísica é a estreita afinidade entre unidade e identidade. Frege, ao procurar justificar a conciliação, na noção de unidade, entre identidade e diferença, relativiza de certo modo ambas as noções: a unidade, como princípio do número, não é pensável sem a pluralidade, o "um" é sempre o "um" entre muitos, idêntico e ao mesmo tempo discernível desses muitos. No que diz respeito à relação unidade/identidade, Frege explicitá-la-á de um modo inverso ao de Aristóteles: enquanto este considera "a identidade um certo tipo de unidade", isto é, a identidade em certo sentido procede da unidade do objecto que se dá a pensar, Frege parece postular um critério ou princípio de identidade como origem da unidade. A identidade da unidade procede do conceito, que fornece o critério que permite isolar e determinar uma extensão constituída de elementos discerníveis: "o conceito tem um poder de coligir muito superior ao poder unificador da apercepção sintética. Por meio desta última não seria possível unir os habitantes da Alemanha num todo; mas podemos certamente subsumi-los no conceito "habitante da Alemanha", e contá-los"36.

Portanto é o conceito, com o seu poder unificador, que constitui o critério de identidade pelo qual se produz uma certa unidade constitutiva de um conjunto de objectos como um todo. Também aqui Frege é nitidamente devedor de Kant: a identidade da unidade não está nos objectos, mas procede da síntese do conceito: "A unidade sintética do diverso das intuições, na medida em que é dada a priori - afirma Kant - é pois o princípio da identidade da própria apercepção, que precede a priori todo o meu pensamento determinado. A ligação não está, porém, nos objectos, nem tão pouco pode ser extraída pela                                                                                                                 36 Grundlagen, § 48: "Die sammelnde Kraft des Begriffes übertrifft weit die vereinigende der synthetischen Apperception. Durch diese wäre es nicht möglich, die Angehörigen des deutschen Reiches zu einem Ganzen zu verbinden; wohl aber kann man sie unter dem Begriff 'Angehöriger des deutschen Reiches' bringen und zählen".

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percepção e, desse modo, recebida primeiramente no entendimento, o qual não é mais do que a capacidade de ligar a priori e submeter o diverso das representações à unidade da apercepção"37 (Sublinhados nossos).

Mas, sendo assim, procedendo a identidade da unidade do poder unificador do conceito, para evitar a arbitrariedade da relação de identidade, fundamentada em qualquer novo "ponto de vista" sob o qual se considere um determinado conjunto de objectos, Frege deverá formular uma teoria dos conceitos que lhes atribua um realismo suficientemente sólido para justificar uma identidade objectiva. Ou seja, para não incorrer na subjectivização da identidade, Frege deverá proceder a algo correspondente à dedução transcendental das categorias de Kant. Porém Frege, substitui essa dedução por uma tese de "realismo conceptual", atribuindo aos conceitos um estatuto ontológico e considerando-os ao lado dos objectos, como constituintes da própria realidade. A relativização do predicado "é um" sugerida pela análise lógica da linguagem, procede do carácter transcategorial deste predicado que, como vimos, tanto Frege como Aristóteles, demonstram com exemplos bem ilustrativos. Esta transcategorialidade é comum às noções de unidade e de identidade. No entanto, Frege não chega a transpor para a noção de identidade a relatividade que atribui à unidade. Pelo contrário, exige para a relação de identidade uma absoluta univocidade, pondo de parte a hipótese de admitir várias formas ou sentidos dessa relação. Geach, que parte exactamente da teoria predicativa de Frege para formular a sua tese da identidade relativa, critica-o por esta exigência de univocidade para o predicado da identidade, em contradição patente com as suas próprias análises da noção de unidade38.                                                                                                                 37 Kant, E. - Crítica da Razão Pura, p. 134 (trad. port. Gulbenkian); cfr. KrV, B 134. 38 Geach, P. - Logic Matters, p. 238: "Since the connection of the concepts one and identity comes out just as much in the German 'ein und dasselbe' as in the English 'one and the same', it has always surprised me that Frege did not similarly maintain the parallel doctrine of relativized identity (...) On the contrary, Frege actually enunciated with all vigour a doctrine that identity cannot be relativized: 'Identity is a relation given to us in such a specific form that it is inconceivable that various forms of it should occur' (Grundgesetze, vol

 

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Esta exigência de univocidade para a relação de identidade deve-se sem dúvida a que Frege não deixou nunca de ter em mente a Lei de Leibniz e o seu princípio da identidade dos indiscerníveis, ao qual aliás se refere de passagem nos Grundlagen der Arithmetik, afirmando que não há dois objectos absolutamente idênticos. Esta perspectiva de uma identidade unívoca e absoluta parece irreconciliável com a tese fregeana sobre o poder sintetizador e unificador do conceito, produtor por isso de vários focos de identidade, sem os quais as unidades se dispersariam numa caótica e amorfa pluralidade. No exemplo sugerido "os habitantes da Alemanha", unidos pelo respectivo conceito, embora diversos e discerníveis, os objectos subsumidos são idênticos relativamente ao conceito "habitantes da Alemanha". Frege parece portanto admitir uma certa forma de identidade relativa, numa formulação muito semelhante à da tese de Geach. E de qualquer modo são as suas distinções de níveis da predicação, a sua noção de insaturação ou incompletude das expressões predicativas ou funcionais, a sua análise do conceito de número e particularmente da noção de unidade, que estão na base da teoria de Geach: é substituindo o predicado "...é um...", em cuja análise Frege patenteia bem a dupla incompletude, pelo predicado "...é o mesmo...", que Geach expõe a relatividade da identidade, à luz da teoria predicativa de Frege. É também deste último que Geach colherá a noção de critério de identidade, atribuído por Frege ao conceito como factor de unificação e síntese que permite identificar os objectos nele subsumidos. A exigência de que o conceito determine de um modo definido a sua extensão está presente também na noção de sortal, como tipo de conceito que, segundo Geach, permite completar, ocupando o lugar vazio do predicado "é o mesmo F" (F deve ser substituído por um sortal). Não é, portanto, forçado afirmar que Frege prepara o terreno para a teoria da identidade relativa com a estrutura lógica da sua teoria predicativa, embora não tenha levado até às últimas consequências a aplicação dessa estrutura ao predicado "é idêntico", decerto por uma resistência interna a prescindir da univocidade desta noção tal como a recebera da lógica de Leibniz.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   II, p. 254)". Não cabe neste artigo uma exposição detalhada da teoria de Geach, que será tema de outro ensaio.

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A teoria da identidade relativa não é senão uma teoria do predicado de identidade que, rejeitando a sua univocidade e um tratamento semelhante ao de qualquer predicado genérico, constrói uma estrutura baseada nos diferentes níveis da predicação, que permite explicar o seu carácter transcategorial. Neste sentido, a estreita relação entre as noções de identidade e unidade mostra bem o seu caráter transcendental, que não se pode reduzir a uma mera lógica formal.

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