Prefácio: \"A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial\" de Salah Khaled Jr.

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A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial

“A verdade como instância de legitimação da arbitrariedade”. A arqueologia das ideias dominantes no mundo ocidental, relativamente à tarefa de adjudicação da solução de litígios em torno de comportamentos tidos como graves – a atual infração penal, conforme a definição jurídica hegemônica -, revela-se em toda a sua plenitude nessa expressão do Professor Salah H. Khaled Jr., no livro cuja nova edição tenho a honra de prefaciar. O generoso propósito de fundamentar a adjudicação de responsabilidade penal em uma verdade sobre os fatos e assim limitar o arbítrio, em substituição a critérios de uma tradição que se apoiava no transcendente, a priori incontrolável, muito rapidamente cedeu à tentação que o monopólio do exercício da jurisdição penal apresenta a todos os que exercem o poder: converter o meio de legitimação de exercício do poder em instrumento de dominação, algo naquele momento funcional às novas organizações sociais que na Europa vieram a suceder o modelo feudal pré-moderno. O capitalismo engendrava o nascimento do estado territorial nacional. O discurso moderno da soberania, da equação segurança versus liberdade, da transformação do saber tradicional em saber instrumental (ciência), associado às novas fórmulas de determinação da verdade científica e seus métodos, contribuiu para enquadrar culturalmente modalidades de exercício do poder punitivo em um esquema conceitual que, ao originar o direito processual penal, naturalizou a imposição de castigos cruéis e tornou as práticas penais aceitáveis em termos civilizatórios, por mais que a

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realidade apontasse para a irracionalidade da sua própria configuração, em permanente divórcio com a narrativa jurídica de legitimação da pena. O poder da palavra é extraordinário. Susan Haack, Professora da Universidade de Miami, ao fazer a crítica ao probabilismo jurídico, chama atenção para o fato de a Suprema Corte norte-americana afirmar, no caso Tehan, em 1996, “que o objetivo do processo é determinar a verdade”.1 A frase, comum e consumida como afirmação de legitimidade em praticamente todos os sistemas penais contemporâneos, malgrado a distância que na prática, em sua maior parte, mantêm de qualquer atividade de cunho epistemológico, simboliza o mito de justificação do processo judicial de punição nas democracias atuais, herança da modernidade nos termos mencionados. “Com a verdade me enganas”, lembra Rui Cunha Martins, Professor da Universidade de Coimbra. Tenho me dedicado a compreender as condições de formulação do discurso corrente de legitimação de algo que à vista de um investigador alheio às narrativas jurídicas é totalmente inaceitável. Os levantamentos estatísticos, em quase todos os lugares, falam por si acerca do caráter seletivo do sistema penal, seletividade que se inicia na definição em abstrato dos casos de intervenção penal, acentuando-se quando as agências de repressão passam a atuar concretamente, até chegar ao clímax de punições que no hemisfério sul correspondem à pena de morte aplicada a contagotas. Como entender uma dissonância cognitiva de tal ordem sem voltar os olhos àqueles que são os responsáveis pelas “teorias de base” que acolhem tais práticas e as normalizam, oferecendo como único mote o propósito, 1

HAACK, Susan. Los estándares de prueba y los límites del análisis jurídico, in Estándares de prueba y prueba científica: ensayos de epistemología jurídica. Org. Carmen Vázquez. Barcelona: Marcial Pons, 2013. P. 74.

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sempre ilusório, de fazer incidir o poder punitivo sobre qualquer pessoa, indistintamente, desconsiderando as desigualdades determinadas pelo status social e econômico, etnia, gênero, em uma espécie de “democratização” do sistema penal que as pesquisas revelam diariamente tratar-se de mais uma falácia? Os juristas são os responsáveis pelo discurso de legitimação do exercício do poder penal. Não que o poder penal necessite dos juristas para que seja exercido. Os que o exercem recorrem aos juristas para justificar as práticas penais e assim torná-las aceitáveis perante a coletividade. Com extrema competência e seriedade acadêmica, o autor de “A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial” desliza da arqueologia do saber jurídico-penal para a sua genealogia, detectando as questões de poder inerentes ao manejo do capital científico, capital cujo domínio possibilitou que se operasse o trânsito entre a verdade como limite do poder punitivo e a verdade como “instância de legitimação da arbitrariedade”. A genealogia que capta este trânsito e, acrescento, este “transe”, recoloca no centro da discussão o exercício do poder e o faz reverenciando a complexidade desse exercício, compatível com a complexidade do real. Nota Salah Khaled que o “saber compartimentado e dividido em gavetas se mostra defasad(o) face à complexidade do real”. A pretensão de sofisticar as noções instrumentais que o estado moderno elaborou para legitimar práticas punitivas de fato superou em qualidade aquelas do passado feudal europeu, mas esbarrou na artificialidade da clausura das disciplinas jurídicas e em um dogmatismo mais conforme o poder dos juristas do que de acordo com a capacidade explicativa da teoria em relação à realidade rica e plural. 3

Enquadrar “a realidade” no âmbito do discurso jurídico, para além de desobrigar este discurso de se comprometer com práticas vergonhosas, empoderou gerações de juristas. A percepção do vínculo entre verdade, prova penal e inquisitorialidade significa um giro metodológico fundamental: o inquisitório se traduz em práticas de poder autoritário, poder que se justifica em si mesmo; quando a busca da verdade se acomoda em seu leito é porque não é mais de verdade que se trata, mas de distribuição de castigos, em arranjos sociais inconcebíveis nos moldes republicano e democrático. Assim, a narrativa dogmática que apoia estas práticas igualmente assenta em concepções autoritárias. É imprescindível desvelar este autoritarismo peculiar ao discurso epistemológico. Com efeito, se o relato do direito probatório parte de conceitos relativamente consensuais – como, por exemplo, da “conexão significativa no que diz respeito ao âmbito da prova e da avaliação dos fatos”, entre a função do juiz e a do cientista, proporcionada pela incorporação de “metodologias científicas e (os) modelos de raciocínio científico (que) podem contribuir para a análise do problema da prova jurídica”, conforme Michele Taruffo, citado por Salah Khaled – o ponto de chegada de uma “verdade possível” no cotidiano da justiça penal frequentemente salta obstáculos que têm a ver com a desigual incidência do poder punitivo na sociedade e sua não rara injustiça material. A dimensão epistêmica da prova deve ser um ganho em termos de garantia da liberdade. Ao revés, a obsessão pela verdade tem levado juristas do hemisfério norte a defender a sujeição de valores e princípios não epistêmicos aos resultados das atividades epistêmicas.

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A proibição do emprego de provas ilícitas não é o único cadáver de um direito fundamental a ficar pelo caminho neste verdadeiro desafio hermenêutico que propõe em novos termos a solução para a equação segurança versus liberdade. Também a noção de que a função do juiz deve ser a de tutor jurídico-constitucional da presunção de inocência, e não a de “buscador” da verdade, resulta ferida de morte. Como as pinturas rudimentares do passado distante insinuam, desde as cavernas os seres humanos contam histórias uns para os outros e necessitam contar histórias para construir sua identidade. Narrar é fundamental para os humanos e constitui nosso modelo mais antigo de transmissão de conhecimento. Entre as inúmeras virtudes da obra prefaciada, a recuperação da dimensão narrativa da prova e a elaboração e emprego das categorias da “passeidade do evento” e do “tempo escoado”, para ficar apenas com estes exemplos, são essenciais para recuperar o escopo da atividade política do arbitramento de castigos, sem incorrer nos excessos de uma ideologização que, por sua vez, muito contribuiu para a ascensão do processo neoinquisitório. A proposta do autor é ambiciosa, por mais que negue. É possível afirmar, todavia, que a ambição aqui está respaldada no que há de melhor em termos de pesquisa, originalidade na abordagem e profundidade de fundamentação. O passo que se deve dar em direção à concreta descolonialidade não pode ser o de negação de saberes que fazem parte do patrimônio comum da humanidade. Estes saberes devem ser incorporados às nossas investigações, mas são saberes e não dogmas. Cabe, portanto, examiná-los criticamente, à luz da realidade que, no que concerne ao sistema penal, é a realidade latinoamericana e brasileira. Os autores que pesquisaram com o olhar para a sua 5

própria cultura devem ser respeitados, mas a descolonialidade requisita que não sejam reverenciados e seguidos como oráculos de uma “nova verdade”, quer seja ela científica ou de outra ordem. A justa admiração por eles não deve nos levar a crer em uma nossa incapacidade de origem de pensar a epistemologia e suas relações com a política, com a igualdade e a liberdade, conforme um sistema penal que discrimina e viola sistematicamente direitos fundamentais. Creio que a proposta teórica contida nessa obra de excelência, de autoria de um de nossos melhores processualistas penais, sem favor algum, tem toda condição para orientar novas práticas no campo da prova penal condizentes com o ideal de respeito aos direitos humanos. Em termos de prova penal é até possível discordar de alguns de seus pressupostos. Não há mais, todavia, como contornar “A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial” e não debater os seus argumentos. A leitura será prazerosa para todos, certamente como foi para mim, que tenho o privilégio imerecido de apresentá-la ao público. Por este privilégio agradeço ao Professor Salah Khaled. Primavera de 2016, no Rio de Janeiro, Geraldo Prado Professor Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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