Prefácio a James C. Sott \"A dominação e a arte da resistência\"

May 24, 2017 | Autor: Fátima Sá | Categoria: Social Mouvements
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Prefácio

James C. Scott, o autor deste livro, é um reputado antropólogo norte-americano nascido em 1936 e que veio a ser professor de Ciência Política e de Antropologia na Universidade de Yale.
Associado a instituições de tão grande prestígio académico como a American Academy of Arts and Science, o Institute for Avanced Studies de Princeton e o Center for Advanced Study in the Behavioral, Science, Technology and Society Program do MIT, Scott não pode ser visto como alguém que se situa fora do sistema mas deve ser olhado, sem nenhuma dúvida, como alguém que não se deixou condicionar por ele e nele se moveu com uma liberdade e uma autonomia de pensamento dignas das suas convicções libertárias.
Interessado, desde cedo, pelas formas de resistência à opressão dos grupos subalternos em particular pelas dos camponeses do Sudoeste asiático que elegeu como terreno do seu trabalho de campo, James Scott estendeu essa observação a outros grupos e a outros tempos o que o levou à formulação de interpretações novas e decisivas sobre dominação e resistência apresentadas pela primeira vez em português no livro que agora se publica.
Em Os dominados e a arte da resistência, uma obra editada em 1990 que se seguiu a The Moral Economy of the Peasant: Subsistence and Rebellion in Southeast Asia de 1976 e a Weapons of the Weak: Everyday Forms of Peasant Resistance de 1985, onde o peso de autores da chamada "História vista de baixo" e de historiadores como E.P. Thompson é claro, o autor propõe uma tese sobre as formas de resistência dos grupos sujeitos à dominação social que assenta na noção básica da existência entre os dominados de um discurso escondido contraposto em tudo ao seu discurso público. Segundo Scott, embora possa ser confundido com uma forma de resistência "passiva" porque auto-protegido pelo seu carácter clandestino, esse "registo escondido", em que a dominação é constantemente avaliada, julgada e criticada por aqueles que dela são objecto, alimenta não apenas uma resistência passiva e clandestina mas é também um alfobre de resistência "activa" que alberga um potencial de revolta que o torna extremamente eficaz em circunstâncias propícias à sua desocultação e à sua expressão pública.
Percorrendo situações de dominação social tão extremas como as exercidas pelos senhores sobre os escravos, em particular nos Estados Unidos até à guerra civil, pelos brâmanes sobre os intocáveis na Índia ou pelos proprietários de terras sobre os camponeses em condições semi-feudais na Europa e em vários contextos não europeus, Scott questiona directamente as teses clássicas sobre a hegemonia e a falsa consciência em particular as que foram desenvolvidas a partir dos escritos de Antonio Gramsci. Segundo essas teses, a ideologia que suporta tais formas de dominação seria largamente partilhada pelo mundo dos dominados encarcerando-os numa teia deformada de valores e crenças que lhes forneceria uma falsa leitura do mundo social da qual teriam de ser previamente libertados para poderem vir a tornar-se, eventualmente, agentes da sua própria libertação.
Ao contrário dessas propostas, Scott vê nas aparentes formas de aceitação pelos dominados da sua subordinação estratégias de sobrevivência e formas de simulação que se destinam a ocultar a sua revolta e resistência perante relações que consideram injustas e humilhantes, que são constantemente sujeitas a avaliação e criticadas nos espaços sociais subtraídos à vigilância dos dominadores onde o discurso oculto pode ser partilhado e discutido entre iguais alimentando subculturas dissidentes. Atitudes que o autor estende, frequentemente, a outros grupos socias como aos operários ou a quem, vivendo sob regimes políticos ditatoriais, vê cerceadas pela censura e por outras formas de coerção toda a possibilidade de manifestação públicas de dissidência.
A simulação da aceitação da ordem dominante e do respeito pelas normas do discurso público com os seus gestos e rituais de deferência e de respeito devem, então, ser vistas como um teatro em que se encena a submissão e a partilha das normas e regras das elites dominantes não só com o objectivo da salvaguarda e protecção dos dominados mas também, em muitos casos, como formas da retórica com que estes tentam obter vantagens decorrentes da invocação das normas que permeiam o discurso oficial, em particular do paternalismo invocado pelos grupos dominantes.
Tornar-se-iam, assim, mais claros os objectivos de fórmulas recorrentes nas manifestações públicas de reivindicação de direitos por parte dos subalternos como as que perpassam as demonstrações chamadas de "monarquismo ingénuo" na Europa moderna tanto a ocidente como a oriente em que os camponeses invocavam, por exemplo, a sua lealdade e submissão ao rei ou ao czar, através dos gritos de "Viva o Rei!" revelando total confiança na sua justiça e usando essa crença contra os seus mais directos opressores, sejam eles os senhores das terras ou os funcionários da coroa.
Os movimentos religiosos, muitas vezes heréticos ou de cariz milenarista, em que se exprime uma intensa crítica da ordem social através, por exemplo, de uma leitura radicalmente democrática das Escrituras ou do arredar dos seus preceitos e máximas de tudo o que pareça justificar a sua opressão constituem outras tantas formas de ruptura do aparente cerco da ideologia hegemónica.
Constantemente actualizada nos espaços sociais passíveis de serem subtraídos ao olhar das elites dominantes, como os barracões dos escravos, os locais de trabalho dos camponeses, os mercados e praças públicas (sobre cuja linguagem tão eloquentemente escreveu Mikhail Bakhtin em Cultura Popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais) as vendas ou lojas de bebidas, as festividades e os rituais, a contestação à dominação assumiu vários disfarces. Eles vão do murmúrio, ao rumor e à ameaça anónima, da acção também anónima como a caça furtiva ou o incêndio de searas do senhor ou do patrão e a sabotagem de máquinas ou àquilo a que Scott chama as "formas elaboradas de disfarce" que integram a cultura popular, como muitos dos contos da cultura oral, a imagética do "mundo ao contrário" e os rituais festivos de inversão, em particular o carnaval. É neles que, de acordo com o autor, perpassa todo o universo que designa por "infrapolítica popular", não menos real por ser pouco visível.
Convém esclarecer que por "infrapolítica" o autor não entende um modo de expressão política inferior ou diminuído em relação ao da política "relativamente aberta das democracias liberais ou às rebeliões, manifestações igualmente explícitas que chamam a atenção dos jornais, mas à luta surda que os subordinados travam quotidianamente e se encontra- como os raios infravermelhos para além do espectro visível". Infrapolítica que o autor entende, também, como "cimento estrutural da acção política visível" através da qual "os de baixo" vão pondo constantemente à prova os limites da dominação e desfiando as suas fronteiras travando, deste modo, uma luta de posições próxima da guerra de guerrilhas.
Feito para permanecer oculto e anónimo, poderá o tipo de acção da infrapolítica romper a fronteira da clandestinidade e do anonimato e levar a confrontos públicos e abertos? Scott consagra o último capítulo do livro a responder a esta importante questão e a sua resposta é claramente positiva. Para a formular concentra-se na observação dos efeitos da ruptura do silêncio, ou seja nos efeitos da primeira declaração pública do discurso oculto, seleccionando exemplos que vão das manifestações de alegria de um grupo de escravos perante a morte de um senhor ou de um capataz particularmente odiados, à comoção resultante da greve dos estaleiros de Gdansk na Polónia em 1980 ou ao repto lançado por Ricardo Lagos em 1988 quando, na televisão, não só desafiou directamente o ditador Pinochet como afirmou falar em nome de 15 anos de silêncio. Para além de constar que esses são momentos subjectivamente vividos como momentos únicos de verdade e autenticidade pessoal por quem ousou dar tal passo, o autor sublinha o que o passar dessa pesada fronteira significa em termos de recuperação da voz e da dignidade humanas e o enorme potencial de mobilização que ela implica enquanto instrumento para desencadear novos tipos de desafios e alterar as relações de poder.
Mais difícil de determinar parece ser qual o momento mais propício ao franquear dessa barreira e a sua capacidade de produzir resultados duradouros. No entanto, a sua capacidade de produzir conquistas políticas parece estar, na opinião de Scott, firmemente relacionada com o grau de estruturação e partilha do discurso oculto entre os subordinados.
Poder-se-ia concluir, assim, que como todas as empresas humanas a primeira declaração pública do discurso oculto pode triunfar ou fracassar, mas, o que parece inegável é que, como afirma Scott, quando tem êxito, a "sua capacidade de mobilizadora (…) é potencialmente assombrosa".

Fátima Sá e Melo Ferreira
CEHC – Instituto Universitário de Lisboa

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