Prefácio Dezassete sonetos eróticos e fesceninos

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«A Gaia Ciência do Amor», Tiago Veiga, Dezassete Sonetos Eróticos e Fesceninos, (introd. Mário Cláudio; desenhos de José Rodrigues), Edições Simplesmente, 2016.

Prefácio

A gaia ciência do amor Andam faunos pelos bosques de Venade, espreitando e perseguindo nas margens do Coura as ninfas refesteladas em aberta solicitude. Nas imediações, o velho sileno dos Anjos, contrariando a morte com o cio, sonha solitário com a ninfeta impúbere, submissa ao trânsito do seu amor. Debuxa-a escancarada, oferecida sobre a relva à investida impaciente do seu sôfrego desejo. No reino de Pã, avança o lascivo ancião aos tropeções, farejando a sua rolinha, uma virgo rescendendo o aroma penetrante de Afrodite. Surpreende-a dormindo a sesta, estendida nas mais convidativas poses que a fogosa fantasia do macho pode conceber. Vê-se nela perdidamente enleado, à sombra das videiras, tentando desafogar o furor báquico que ainda lhe agita os vetustos ossos sob a pele encarquilhada. Imagina-se o par regressado ao Éden, colhendo um amor inocente e insaciável, isento de culpa; depois expulso, condenado à «terna escravatura / do Amor que, sendo eterno, nunca dura». Traga Eros ao velho enregelado o surto de vida que lhe aquece o sangue para uma nova e extrema Primavera; acenda nele a ânsia de copular contra os interditos opacos que ofuscam a humana condição. Se a velhice reserva aos amantes um «coito miserando», mais penitente que gozoso, de embaraçosas e frustres tentativas, ambiciona o verme rastejante asas de cupido para nova vagabundagem sexual… Salve-o, contudo, o derradeiro tino de cair nos abismos dessa cegueira: inexoráveis são as leis da natureza. Não assim, as leis da poesia, apta a redimir e a elevar aos píncaros da estética os mais impúdicos e secretos impulsos da concupiscência humana. Assim, sem parra de pudor ou qualquer outro rebuço inibidor, como aliás já havia desbravado em Sonetos Italianos e Do espelho de Vénus, vaza Tiago Veiga no cálice das musas, a jorro desabrido, toda a fúria erótica que a liberdade criativa lhe consente. Exaure no leito fantasioso o reviço viril de um tempo ido, que agora reflui simbolicamente por via pornopoética. Poesia fálica, a romper a grauitas dos géneros canónicos e a instaurar a licenciosa e sagrada festiuitas da fescennina iocatio, a mesma que na Roma Antiga celebrava a pujança telúrica e sexual, propiciando boas colheitas, concitando deleitosas núpcias e arrefecendo triunfos militares. A mesma que a gaia ciência dos trovadores provençais verteu em escárnio e maldizer, gerando na cultura lusófona um profícuo e clandestino lastro onde assentam inúmeros nomes, sabiamente coligidos por Natália Correia, e onde pontifica o estro de Bocage. Também os italianismos entranhados nestes sonetos sagrados e fesceninos são outra forma de homenagear a jovialidade, a mordacidade e a expressividade, em suma, o Italum acetum, característico dos habitantes do Lácio, de cuja tradição Tiago Veiga se mostra um declarado admirador e devedor. À libérrima matriz mitológica e literária

romana remonta ainda o ambiente bucólico, lugar priápico por excelência, espaço de consórcios amorosos entre sátiros e ninfas, humanos e deuses; em Veiga, recesso de satisfação de uma volúpia indómita a que o corpo entorpecido por vezes já não consegue responder, indo-se o desejo sublimado à carne do poema que arfa «como arfa a namorada». O recurso ao calão e ao tabuísmo conferem ao lirismo obsceno do poeta português a força transgressora dos limites do decoro e põem a nu o instinto cru manifesto na pulsão sexual. A linguagem expressa essa crueza e vitalidade de um ato cujo estímulo mais terno pode ser a mordedura. Veículo privilegiado através do qual se podem manifestar os instintos mais destrutivos da personalidade humana – como bem ilustrou o marquês de Sade nos seus romances – o erotismo encontra os seus limites precisamente nos ímpetos agressivos que sacodem os amantes e podem induzir a atos violentos, como o «garanhão de facto morde / a fêmea que sujeita à tirania». A cópula, despertando fantasmas escondidos na irracionalidade, traz à tona a vocação tanática aventada por Freud, a qual disputa com o instinto vital e criativo de Eros a condição humana, o amor «sem temer da morte o rosto horrendo». Onde foi Veiga acender esta verve erótica em plena caducidade da vida? A inspirada e metódica biografia de Mário Cláudio abre as portas a Susana, a jovem de dezasseis anos, neta da velha cozinheira da Casa dos Anjos, cujo onomástico evoca essa outra Susana bíblica, espiada no banho por dois velhos devassos, dispostos às mais vis maquinações para se deleitarem no corpo doce da anadiómene. Será ela o catalisador das fantasias eróticas do acabrunhado poeta, e fonte de muitos amargos de boca. Desde a primeira hora se afeiçoa àquela a quem passaria a tratar por «afilhada», e que devém sua companhia predileta, assiduamente requisitada para asseios, passeios e viagens, desenvolvendo-se entre ambos uma suspeita cumplicidade. No relato pouco esclarecedor do biógrafo, transparece, todavia, a ideia de que o velho fauno padeceu o suplício de Tântalo, jamais alcançando a sua mão o anelado fruto que ora lhe reluzia ora se esquivava. A boçal mas pouco ingénua rapariga, apercebendo-se do efeito ígneo do seu olhar no homem cujo corpo decrépito lhe causava alguma repulsa, reverte em seu favor o poder de atração, qual aprendiz de Venus in furs, aproveitando para granjear favores e adquirir prerrogativas, sem que isso lhe tenha custado algum desvelo mais íntimo ou invasivo. Depois de uma primeira aproximação incorrespondida, o próprio apaixonado, tal como o sujeito poético dos fesceninos algumas vezes sugere, terá resistido a consumar as suas investidas, seja por vergonha, seja para lhe preservar «o puro estado», seja porque não ousa «matar o encantamento». À imagem de Adamastor, Tiago Veiga resigna-se petrificado à infeliz condenação de admirar a bela ninfa orbitando em seu redor, sem lograr mais que a sua intocável presença. Mais tarde, para desgosto do ciumento «padrinho», a jovem haveria de partir e de emparceirar com um correligionário com quem vem a formar parelha matrimonial. Os dois acabariam por herdar a casa e o espólio do patrono. Embora se possa entrever nos versos fesceninos do poeta nortenho uma certa nostalgia da virilidade perdida, eles não deixam de ser um canto à vitalidade sexual e à gaia ciência do amor. Tiago Veiga coloca-se, por esta via, em linha com os libertinos do séc. XVIII, desafiando iconoclasticamente preconceitos morais, políticos, artísticos e religiosos. Ecoa nestas trovas licenciosas um grito de liberdade contrário a todas as

sujeições e servidões que restringem o direito à autodeterminação, à liberdade e ao prazer. Ao versificar os devaneios e desejos que o sexo desperta na mente humana, o poeta está a fazer uso de um direito de expressão que a Europa moderna demorou e sofreu a conquistar. Infelizmente, os equilíbrios sempre foram difíceis de alcançar e de manter. Quebrado o tabu, o sexo saiu à rua. Hoje, no bordel virtual assume formas de um exibicionismo empobrecedor, embrutecedor e embargador da imaginação erótica. O silogismo é simples: sem restrições e interditos deixa de haver transgressão e sem transgressão não há erotismo, pelo que a avalanche pornográfica submergente ameaça colocar novamente o amor físico numa era pré-histórica, desprovido do mistério, da paixão e da criatividade que alimentaram séculos de arte erótica. Sem o ritual que enriquece, prolonga e sublima o prazer, o coito não passa de calistenia, no qual homem e mulher se reduzem a meros instrumentos passivos num puro exercício físico destituído de sensibilidade e emoção. É também contra esta tendência herética que se insurge, ainda que por via indireta, a poesia erótico-sagrada de Tiago Veiga, libertandonos de preconceitos, mas não das formas rituais que embelezam e civilizam o amor físico. Ao puxar Pã para fora do seu antro, a sua poesia, como as restantes formas de arte que encontram na vida sexual um fermento da criação artística, cumpre o nobre propósito de humanizar e conferir estatuto estético a uma atividade que, restringida ao espaço primitivo da caverna, nunca ultrapassaria a sua função meramente reprodutora e fisiológica. A imaginação e a criatividade poéticas (no seu sentido mais amplo) alçam a atividade sexual a um patamar que excede largamente o satisfazer do instinto animal. O erotismo é responsável pela desanimalização do amor físico, convertendo-o «de mera satisfação de uma pulsão instintiva numa ocupação criativa e partilhada que prolonga e sublima o prazer físico rodeando-o de uma encenação e uns refinamentos que o convertem em obra de arte» (M. V. Llosa, A Civilização do Espetáculo, Quetzal, Lisboa, 2012, p. 106). Em forma ensaística reflete aqui o escritor peruano a diatribe contra a pornografia em defesa e promoção do erotismo que desenvolvera sub specie literária no inolvidável Cadernos de Dom Rigoberto (1997), ponto alto da literatura erótica do séc. XX. Os fesceninos de Tiago Veiga são mais um importante contributo para este género literário que muitos ainda teimam em considerar menor ou clandestino. Possamos ler sem preconceitos ou falsos pruridos, saboreando genuinamente a extraordinária riqueza poética das imagens e dos símbolos, dos versos entretecidos na melhor alquimia rítmica e fónica, eivados de graça e génio artístico, impregnados de bem achadas subtilezas e refinadas elucubrações. Libemos por meio deles a Pã e à sua potência demiúrgica. Martinho Soares Coimbra, 7 de abril de 2016

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