Prefácio: o sabor da História. In: Júlio César Magalhães de Oliveira; Monica Selvatici. (Org.). Textos e representações da Antiguidade: transmissão e interpretações.

August 29, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Ancient History, Archaeology, Historia Antiga, Antiguidade Clássica
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FUNARI, P. P. A. . Prefácio: o sabor da História. In: Júlio César Magalhães de Oliveira; Monica Selvatici. (Org.). Textos e representações da Antiguidade: transmissão e interpretações. 1ed.Londrina: Editora da UEM, 2012, v. 1, p. 7-9. O sabor da História

A História só se conhece por meio de documentos, embora não só por meio deles e nem tenhamos acesso a eles senão pela intermediação de interpretações. Num certo sentido, portanto, as duas faces principais da lide histórica são os documentos e os modelos interpretativos. Em ambos os casos, a historiografia tem, nas últimas décadas, problematizado, ou mesmo matizado, os conceitos e seus limites. Os documentos históricos, de início eram restritos aos textos escritos - mantidos em arquivos ou copiados e preservados pela tradição textual. Estes continuam no cerne da disciplina histórica, tanto por sua importância intrínseca, como por sua capacidade de construir teias de sentido, por meio de intertextualidades, de modo a conformar narrativas recorrentes, em constante re-apropriação e re-significação1. Homero, Virgílio, Camões, Joyce mostram como temas são retomados, recriados, como a viagem adquire sentido no fluxo milenar de narrativas sobre o ser humano andarilho, objeto, aliás, de tantos livros acadêmicos sobre os mais variados temas, como o clássico de Clive Gamble sobre o passado mais recuado da humanidade até o presente: Timewalkers, the prehistory of world colonization2. Não deixamos nunca para trás essas narrativas,

1

Cf. Pedro Paulo A. Funari, A Antiguidade Clássica, a História e a Cultura a partir dos documentos. Campinas, Editora da Unicamp, 2033, 2ª.ed. 2

London, Penguin, 1993.

mesmo quando as negamos ou criticamos ou, como dizia Karl Marx, sobre tantos temas, de te fabula narratur3.

Para além dessas grandes narrativas, somam-se as representações de variado tipo, materiais, iconográficas, entre outras. Em todos os casos, elas só fazem sentido em quadros de interpretação, à sua maneira também envolvida nas tramas da transmissão de conceitos, ainda que sempre relacionados a contextos históricos, sociais e políticos concretos e diversos4. Mas, como definir a interpretação? Talvez, aqui, conviesse o recurso à analogia com a música, também ela um texto que só adquire existência material por meio de uma interpretação de um músico. Assim, uma única partitura apenas torna-se evidente pela execução individual e única. Como dizia Umberto Eco, cria-se, a cada leitura, uma nova obra5 e não há como escapar dessa recriação constante. Cada leitura é uma re-leitura e o revisionismo não é um vício, mas algo inevitável, signo de vitalidade e fertilidade do texto.

Este volume congrega uma amostra dessa busca pela fertilidade e o faz de maneira inovadora, ao reunir, numa só obra, civilizações como a chinesa, a romana e hebraica, em mescla heterodoxa. Rompe-se, desta maneira, com a divisão canônica, herdeira da erudição ocidental e consolidada no século XIX que separa os estudos por registro lingüístico: estudiosos do latim, do grego, do hebraico (o chinês estava por

3

Citação, por sua vez, de Horácio, Quid rides? mutato nomine de te fabula narratur, Sátiras, I,i, v.69.

4

Cf. Pedro Paulo A. Funari e Glaydson José da Silva, Teoria da História. São Paulo, Brasiliense, 2009.

5

Cf. Ogni opera d’arte, dalle pitture rupestri a I Promessi sposi, si propone come oggetto aperto a una infinità di degustazioni, Opera Aperta, Milão, Bompiani, 1962, p. 57.

demais distante da tradição ocidental e não figurava no repertório clássico). Claro que as aporias dessas clivagens se faziam sentir até mesmo no estudo do mundo romano, quando latim, grego, hebraico (e aramaico), entre outras línguas, participavam de um mesmo universo cultural, como lembrava já há décadas Fergus Millar 6. O que o império uniu não cabia à ciência moderna separar.

Na mesma direção, os aportes da teoria social foram importantes para questionar modelos interpretativos normativos que reforçavam uma compreensão das sociedades modernas e antigas como homogêneas, coerentes, privadas de conflitos e apenas tocadas pelos desvios de comportamento, sempre a serem reprimidos7, segundo tais discursos autoritários. Um sinólogo8 como Martin Bernal, oriundo da ciência política e da orientalística e, pois, das preocupações com as teorias sociais, demonstrou os limites de outros tantos aspectos das tradições ocidentais9. Ainda nesses aspectos iconoclastas, foram postos em questão os esquemas cronológicos consagradas, com a proposta de periodizações como a Antiguidade Tardia (Spätantike)10, que rompem, ao seu modo, outros tantos paradigmas e conceitos ossificados e que permitem reflexões inovadoras.

6

Cf. The Roman Empire and its neighbours. Londres, Weidenfeld, 1967.

7

Cf. M. Rago e P.P.A. Funari, Subjetividades antigas e modernas. São Paulo, Annablume/CNPq, 2008.

8

Cf. Martin Bernal, Chinese Socialism to 1907. Ithaca e Londres, Cornell University Presse, 1976.

9

Cf. Martin Bernal, Black Athena. Piscataway, Rutgers, 1987.

10

Cf. Franz Georg Maier, Die Verwandlung der Mittelmeerwelt. Frankfurt am Main: Fischer 1968. (=

Fischer Weltgeschichte, 9)

Este volume congrega uma amostra das transformações no estudo da História, nas últimas décadas, sob os influxos da pós-modernidade. Inicia-se, de forma original, com um ensaio sobre a China, com sua atenção à revelação do novo por meio do antigo e com a superação da dicotomia entre Ocidente e Oriente11.

Em seguida, somos

brindados com uma narrativa da trajetória da transmissão de textos gregos e latinos, da Antiguidade à Modernidade, com uma visão articulada das permanências e mudanças no formato do livro, em seus contextos históricos e sociais específicos12. A Bíblia hebraica é apresentada nas suas releituras e reinterpretações helênicas do Novo Testamento, por meio da narrativa investigativa da tradição judaica, o midrash13, como parte das discussões recentes sobre as identidades religiosas antigas14. As relações de poder no mundo romano aparecem, à luz da teoria do patronato, de matriz weberiana15, como prenhe de tramas e interligações específicas, a partir de uma leitura das cartas de Plínio. A pobreza, tema que tem merecido atenção historiográfica crescente, nas últimas décadas16, é esmiuçada em João Crisóstomo, assim como um aspecto dos grupos

11

Cf. Jack Goody, The Eurasian Miracle. Cambridge, Polity Press, 2010; Pedro Paulo A. Funari, Resenha de “The Eurasian Miracle”, Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSC, 2,1, 2010, 130132. 12

Cf. Pedro Paulo A. Funari, Reseña de Emilio Zaina, La materialidad de La escritura de Catulo, Praesentia, 11, 2010, 1-2. 13

Cf. Pedro Paulo A. Funari, Resenha de David Binon, “Le Midrash”, Horizontes, 17, 1999, 125-126.

14

Cf. Fábio Vergara Cerqueira e Monica Selvatici, (Org.), Religião e Poder, do Mundo Antigo ao Moderno: ensaios acadêmicos. 1. ed. Pelotas: LEPAARQ/UFPel, 2009; Paulo Nogueira, Pedro Paulo A. Funari e John J. Collins, Identidades Fluidas no Judaísmo Antigo e no Cristianismo Primitivo. 1. ed. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2010. 15

Cf. Pedro Paulo A. Funari, Resenha de Andrew Wallace-Hadrill, Houses and Society in Pompeii and Herculaneum, Diálogos, Revista do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá, 2, 1998, 233-236. 16

Cf. Renata Senna Garraffoni e Pedro Paulo A. Funari, Considerações sobre o estudo da Antiguidade Clássica no Brasil. Acta Scientiarum (UEM) , v. 32, p. 1-6, 2010; Júlio César Magalhães de Oliveira, Travail, habitation et sociabilités populaires dans les villes de l'Afrique romaine: les quartiers commerçants et artisanaux de Carthage et de Timgad. In: FONTAINE, Souen; SARTRE, Stéphanie;

subalternos – os camponeses - e a cultura escrita17, na África do Norte, a paz e a violência18.

Livro de leitura agradável, este volume é um verdadeiro convite, um aperitivo muito apetitoso que levará o leitor à busca de outras tantas obras e referências. Este o maior mérito da obra, dedicada aos textos e que induz o leitor a deixar-se levar pela sedução das narrativas sobre o passado.

Pedro Paulo A. Funari Professor Titular do Departamento de História Coordenador do Centro de Estudos Avançados Unicamp

TEKKI, Amel. (Org.). La ville au quotidien. Regards croisés sur l'habitat et l'artisanat antiques (Afrique du Nord, Gaule, Italie). 1 ed. Aix-en-Provence: Presses Universitaires de Provence, 2011, v. , p. 59-69. 17

18

Alan Bowman e Greg Woolf, Cultura Escrita e poder no Mundo Antigo. S. Paulo, Ática, 1999.

Cf. Renata Senna Garraffoni,. Repensando a violência dos espetáculos romanos: o caso dos gladiadores. In: Fabio Vergara Cerqueira; Ana Teresa Marques Gonçalves; Chimene Kuhn Nobre; Glaydson José da Silva; Anderson Zalewski Vargas. (Org.). Guerra e Paz no Mundo Antigo. Pelotas: Instituto de Memória e Patrimônio/Laboratório de Antropologia e Arqueologia, 2007, v. , p. 53-61.

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