Pregando peças: o jogo humorístico steiniano

June 13, 2017 | Autor: I. Cardoso Martin... | Categoria: Theatre Studies, Dramaturgy, Gertrude Stein, Humor Studies, Teatro
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Pregando peçasi - o jogo humorístico steiniano Inês Cardoso Martins Moreira (UNIRIO) Palavras-chave: inversões, repetições, desmontes Há uma peça de Gertrude Stein chamada “Três irmãs que não são irmãs. Um melodrama”, que começa com três irmãs se apresentando ao leitor e dizendo serem irmãs que não são irmãs. Em seguida entram dois irmãos que são irmãos. E se apresentam ao leitor. Segue-se um diálogo no qual os cinco discutem o que fazer com isso, o que eles vão fazer com o fato de serem irmãos que são ou não irmãos. A certa altura, Jenny, uma das irmãs que não é irmã, diz não haver nada a fazer com isso, mas sim saber o que fazer em seguida. E é aí que surge para a versão em português o primeiro desafio de tradução, quando o grupo de personagens decide “play a play”, ou seja, fazer uma peça ou brincar uma brincadeira, ou ainda jogar um jogo. Esta última foi a expressão escolhida por mim para traduzir a fala de Samuel: “Eu tenho uma ideia uma bela ideia, uma boa ideia, vamos jogar um jogo um jogo de assassinato.” (STEIN,1998:705). A solução “jogar um jogo” é eficiente embora não mantenha a palavra “peça”/ “play” usada por Stein em suas formas verbal (“to play”), e substantiva (“play”). Outra maneira de traduzir a expressão, mantendo a palavra “peça”, seria “vamos pregar uma peça”. O que não seria má ideia uma vez que a peça (ou o jogo de assassinato) acaba por pregar peças nos próprios personagens e no público. Tomo como objeto inicial de reflexão sobre os procedimentos cômicos steinianos a peça “Três irmãs que não são irmãs” porque penso haver aí dois elementos importantes, presentes no seu corpus dramatúrgico e em sua obra como um todo. Em primeiro lugar, há o “pregar peças” que atravessa essa obra e não só as peças para teatro, e, em segundo lugar, há a própria noção de peça, para Stein, e o uso que ela faz do termo “play” em suas diversas acepções. Quando, em três irmãs que não são irmãs, começa o jogo, ou a peça, as luzes se apagam, o cenário se transforma, e os personagens começam a morrer um a um. Ninguém sabe quem mata quem, nem o próprio assassino. Jenny, que descobre o primeiro morto, chama, assustada, a polícia. Quando um dos irmãos, vestido de policial, entra em cena, ela, numa reviravolta inesperada, se confessa a assassina. O policial comenta que ele próprio é que vai “fazer alguma matança”. O jogo de quem matou quem e quem não matou ninguém se estende por toda a peça até sobrarem só Jenny e Samuel. Ouvem-se, então, as vozes de todos os mortos dizendo ser Jenny a assassina. Ela se surpreende e envaidece. Mas Samuel insiste que o criminoso é ele. Jenny acaba matando-o com um chute na têmpora, percebendo ser ela a

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assassina, senão de todos, ao menos de Samuel. Logo se dá conta de que a vida não teria sentido sem mais ninguém para matar. Toma, então, um copo d’água dizendo ser veneno, e morre também. As luzes se apagam pela última vez e todos os personagens reaparecem vivos, dessa vez discutindo se estavam ou não mortos, se fora um sonho ou encenação, se eram mesmo irmãs que não eram irmãs. Ao final, decide-se que ninguém estava morto e que era hora de ir para cama. É assim que termina a peça. Digo que o jogo de assassinato prega peças nos personagens porque eles não têm qualquer domínio sobre o jogo. Não parecem ser eles a decidir quem é o assassino ou quem será a próxima vítima. É o jogo ou a cena em si que vai apresentando os corpos mortos para os personagens e revelando quem é o assassino (ou assassinos), inclusive para os próprios assassinos. A ultima peça é deixá-los na dúvida sobre se estão vivos ou mortos, sobre se o jogo foi um jogo e sobre quem eles são. À certeza na cena de apresentação, sobre quem são e não são, se opõe a dúvida final sobre identidades e não-identidades, sobre se estão vivos ou mortos. A ideia de pregar uma peça, uma peça de assassinato, parece se voltar contra os próprios personagens, convertidos em vítimas da brincadeira que inventaram. Pensando o “pregar peças” de Stein, eu gostaria de comentar, a princípio, aquela que é a sua mais famosa “piada”, a primeira dessas peças que prega no leitor, A autobiografia de Alice B. Toklas. Ao escrever e publicar, em 1933, uma autobiografia de outra pessoa, rompe-se o pacto entre narrador em primeira pessoa e público. Quando se pensa que o livro deverá tratar da vida de Alice Toklas, na verdade é de Stein que se trata. É nesta quebra de expectativa que reside o elemento cômico, enfatizado pelo que Stein se permite dizer, pela voz invertida de Toklas: Posso dizer que só três vezes na vida encontrei gênios e a cada vez um sino tocou dentro de mim e eu não estava errada. (...) Os três gênios de que quero falar são Gertrude Stein, Pablo Picasso e Alfred Whitehead. Conheci muitas pessoas importantes, conheci várias grandes pessoas, mas só conheci três gênios de

primeira classe. (STEIN, 2009:11)

O desmonte da identidade autobiográfica permitindo a ela que se autoelogiasse por intermédio da narradora fictícia. Na ocasião da publicação do livro, houve conjecturas sobre quem de fato o teria escrito, se Stein ou sua companheira Toklas, tomando por base o fato de o estilo se distanciar muito do steiniano mais habitual. O esforço em escrever como se fosse Alice ampliando a ironia final quando a narradora revela não ter sido ela e sim Stein: Cerca de seis semanas atrás Gertrude Stein disse, me parece que você não vai nunca escrever essa autobiografia. Sabe o que eu vou fazer? Vou escrever para

3 você. Vou escrever com a mesma simplicidade com que Dafoe fez a autobiografia de Robinson Crusoé. E ela escreveu e aqui está. (STEIN, 2009:253)

A Autobiografia de Alice B Toklas alcançou enorme sucesso de vendas nos Estados Unidos. Gertrude Stein foi convidada a visitar seu país de origem e passou mais de um ano circulando e dando palestras. Teve um reconhecimento de público que nunca experimentara antes. Foi tratada como celebridade, conheceu estrelas de cinema, e, de volta a Paris, escreveu uma segunda autobiografia a que deu o título de Autobiografia de todo mundo. A autobiografia era, de novo, dela própria, mas imersa em nova “piada”, e em clara crítica autoirônica à recepção da obra anterior: Alice B. Toklas fez a dela e agora todo mundo fará a sua. Alice B. Toklas pergunta se todos vão fazer a deles da maneira como ela fez a dela. (STEIN,1983:7)

O gracejo comenta a cópia constante de seu estilo particular de escrita por novos escritores e jornalistas. E o fato de Stein ter se distanciado de seu próprio estilo para escrever à maneira de Alice Toklas. A pergunta, nesse caso, dirige-se a ela mesma: se escreveria uma autobiografia como se fosse outra pessoa? Ou se escreveria como ela mesma? Os “gertrudismos”, a pontuação singular, as repetições, que, na Autobiografia de Alice B. Toklas, não aparecem, voltariam porém na Autobiografia de todo mundo: “Mas autobiografia é fácil goste-se ou não autobiografia é fácil para qualquer um e assim esta será a autobiografia de todo mundo” (STEIN,1983:10): e se o estilo volta, a autora fica mais dispersa. O “todo mundo”, fazendo clara referência ao everyman da moralidade medieval anônima inglesa, mas também ao público da obra anterior (um everyman que é todos e não é ninguém em particular). É como se Stein dissesse ser tão fácil escrever uma autobiografia que qualquer um ou todo mundo pode fazê-lo e com sucesso. Cito o exemplo das duas autobiografias porque Stein trabalha aí um desarranjo identitário, discursivo, de um gênero com regras bem explícitas (na primeira escrevendo uma alterbiografia e na segunda criando sujeito autobiográfico impossível, um “todo mundo”). Desarranjo que, a meu ver, percorrerá toda a sua obra. E é nele que a comicidade e o humor encontram lugar. Se a autobiografia enquanto gênero literário, é desmontada pela autora, os outros gêneros sofrem perda de identidade semelhante. Como os seus retratos de pessoas e de objetos, nos quais não se identificam descrições, e quando se pensa que se vai “conhecer” o retratado, engana-se redondamente. Cito, na tradução de Augusto de Campos, “Um retrato de um Harry Phelan Gibb”:

4 Algum um sabendo que tudo é saber que algum um é alguma coisa. Algum um é alguma coisa e está conseguindo está conseguindo esperar essa coisa. Está sofrendo. Está conseguindo esperar e está conseguindo dizer que isso é alguma coisa. Está sofrendo está sofrendo e conseguindo esperar que conseguir dizer que está conseguindo esperar é alguma coisa. Está sofrendo, está esperando, está conseguindo dizer que qualquer coisa é alguma coisa. Está sofrendo, está esperando, está conseguindo dizer que alguma coisa é alguma coisa. Está esperando conseguir esperar que alguma coisa seja alguma coisa. Está esperando conseguir dizer que está conseguindo esperar que alguma coisa seja alguma coisa. Está esperando conseguir dizer que alguma coisa é alguma coisa. (STEIN,1989:13)

Não se fornece aí dados para a construção de qualquer imagem visual do retratado, mas se “retratam” sua espera e seu sofrimento. O perfil é da espera, e não de alguém, de seu interior ou exterior. Não há também descrição literal da angústia. É o mecanismo de repetição de palavras e frases, variando minimamente, que impõe ao texto um ritmo que se assemelha à angústia de uma espera. O retrato de alguém que espera se torna o retrato da própria espera. E se a angustia é retratada, isso pareceu seguir alguns procedimentos cômicos. A repetição, com tênues variações, coloca o texto em movimento, mas serve também de puxada de tapete. Os termos “algum um” e “alguma coisa”, por exemplo, se repetem e combinam ao longo do retrato, e se, no início, “algum um é alguma coisa”, no final, este “um” parece se decolar desta “alguma coisa”, esperando “conseguir dizer que alguma coisa é alguma coisa”. O mecanismo de repetição-em-variação, procedimento característico do cômico, não se padroniza, porém na escrita steiniana. Observe-se o trecho de outro retrato “Ada”, por exemplo: Algum um que estava vivendo estava quase sempre ouvindo. Algum um que estava amando estava quase sempre ouvindo. Este um que estava amando estava quase sempre ouvindo. Este um que estava amando estava contando sobre ser um então ouvindo. (STEIN, 1993:16)

Nas duas primeiras frases, só muda o primeiro verbo: “vivendo”, na primeira, e “amando”, na segunda. Na terceira e na quarta frases, Stein varia o mecanismo de repetição e, no lugar do “algum um” das frases anteriores, entra “Este um”, mantendo-se os verbos “amando” e “ouvindo”. Na quarta frase, altera-se ainda o último fragmento, mantido nas outras três, que passa de “que estava” e “estava quase sempre” para “estava contando sobre ser um então”. Stein faz desta forma, pequenas mudanças, trabalhando-se as palavras no interior das frases de modo a tornar-se quase imperceptível, numa leitura corrida, o que exatamente mudou. Na

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última frase, a mudança é um pouco mais evidente, acrescenta-se, realmente, um verbo que não fora usado: “contando”. E é aí que o leitor se dá conta do movimento criado por essas sutis mudanças. O procedimento cômico no qual se repete a mesma ação duas ou três vezes para na terceira ou quarta vez se inserir um elemento surpresa, e desarranjar-se a ordem, quebrando a expectativa e levando ao riso, pode ser identificado nesse jogo de variações, quando Stein insere um elemento surpresa na quarta frase que modifica o ritmo das frases anteriores. Não é possível, todavia, estabelecer um padrão para o uso steiniano da repetição. Se neste trecho se percebe a mudança na quarta frase, noutros textos, quando se esperaria que ocorresse algo semelhante, opta-se, ao contrário, por manter a sequência. É o caso da famosa frase “Rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa”, que surge pela primeira vez em 1913, no poema “Sacred Emily” e que Stein voltaria a usar em diversos textos, como “The World is round” ou “Melanchta”, para citar apenas dois exemplos. Aí, não há o elemento surpresa exigido pelo procedimento cômico (embora haja variações), há, sim, a proliferação da frase, o que constitui um jogo interno à obra steiniana, que se volta sobre si mesma e acaba por surpreender o leitor que se depara com a mesma frase, ou versões dela, inseridas em contextos diversos. Outro exemplo de repetição, este trabalhando tanto com o excesso quanto com mudanças mais sutis, está no retrato de Pablo Picasso. Cito trecho da tradução de Augusto de Campos: Se se se se e se e se e e se e se e se e e como e como se e como se e se. Se é e como se é, e como se é e se é, se é e como se e se e como se é e se e se e e se e se. (STEIN,1989:17)1

Estas repetições não obedecem ao padrão encontrado em “Ada”, como um elemento surpresa na quarta frase. Aqui, Stein trabalha com apenas quatro palavras (“se”, “e”, “como” e “é”). A frase começa com quatro repetições de “se”, segue-se um “e”, mais adiante surge “como” e depois “é”. Mesmo que dividamos o trecho, a cada nova mudança, para tentar identificar algum padrão, percebemos que não há qualquer padrão de repetição, obedecendo-se sim à sonoridade e ao ritmo criado pela repetição. Talvez seja possível traçar um paralelo com a frase famosa, a da rosa. Se, nela, a palavra rosa é repetida quatro vezes, aqui não há, no entanto, uma palavra “protagonista”. Os quatro vocábulos de uma só silaba variam e se alternam, repetindo-se bem mais do que quatro vezes (apenas a palavra “se” aparece 24 vezes)

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Trecho do retrato “If I told him. A completed portrait of Picasso”, traduzido por Augusto de Campos. Vale observar a versão original em inglês para ver de que maneira o tradutor optou por manter o jogo de sonoridades proposto por Stein: “He he he he and he and he and and he and he and he and and as and as he and as he and he. He is and as he is, and as he is and he is, he is and as he and he and as he is and he and he and and he and he”

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neste trecho do retrato. É como se olhássemos, com lente de aumento, o procedimento de repetição, ou como prefere Stein, de insistência, característico à sua obra. Se Stein, nos retratos comentados, prega peças inserindo elementos surpresa, repetindo a mesma palavra para além do esperado, variando a repetição e criando reviravoltas no texto, ou obedecendo a um ritmo interno que resiste a qualquer tentativa de padronização, em suas peças teatrais há outras maneiras (além da repetição) de desorientar seus leitores. Como observei, o termo play pode ser explorado por Stein em diversas acepções: play – peça ; play – jogo ; play – brincadeira, fun, jesting, divertimento, piada; play – ação, movimento. Já no título de “Três irmãs que não são irmãs. Um melodrama” há um jogo de palavras que desmente a identidade das irmãs pois elas não são irmãs. Um jogo que se amplia para um referente externo que seria “Três irmãs” (1900) de Tchekov. A autora está claramente fazendo uma espécie de brincadeira (em rebaixamento) com o clássico russo, e com seus personagens que, ao final da peça, já não sabem mais quem são, ou se são suas essas três irmãs. É a ideia de jogo que desmonta as referências e as estruturas dramatúrgicas em Stein. Os elementos que compõem as peças estão sempre em jogo, sempre num lugar de mobilidade, em movimento. As rubricas invadem as falas dos personagens (como na fala inicial de Margarida Ida e Helena Anabela em Doutor Faustus liga a luz), os atos por vezes parecem emitir falas (como em “Contando os vestidos dela”), não se obedece a ordem cronológica de atos e cenas (o ato um pode se repetir e em seguida começar uma cena cinco do ato quatro sem que haja qualquer preocupação com a sequência). Stein de fato joga/play com o drama. O jogo é um procedimento central de criação literária para Stein. Jogo que se dá a ver não só nas repetições de vocábulos, mas também nas figurações e desfigurações dos personagens em algumas de suas peças. Observe-se o que ocorre em “Look and Long”, com os personagens que se modificam, no decorrer da ação, chegando a se metamorfosearem em coisas impensáveis. Nesta peça, os primos Oliver, Muriel, Susie e Silly, são surpreendidos no jardim, por uma aparição que anuncia as metamorfoses a que serão submetidos. O primeiro a receber a “maldição” é Oliver, que se dividirá em dois. Em seguida anuncia a Muriel que ela vai ficar tão magra que conseguirá passar por um anel e ninguém mais será capaz de encontrála. Silly e Susie são as últimas a descobrir seus destinos: Silly se transformará em Willy e Susie se transformará num ovo. Depois eles se casarão, Willie e o ovo, é o que diz a aparição, embora o ovo esteja podre. No segundo ato, as personagens reaparecem tentando burlar seus destinos. Oliver aparece todo amarrado por cordas com o objetivo de manter juntas as partes de seu corpo. Muriel traz duas enormes garrafas de leite, uma em cada mão, pretendendo, com isso, manter o seu peso.

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Silly e Susie apenas lamentam seu triste fim. As metamorfoses no entanto não são burláveis. Na sua segunda entrada, desta vez com a aparência de uma velha, a aparição toca cada um dos personagens com uma varinha e eles vão se transformando exatamente como previra. No terceiro ato, porém, a aparição retorna, disfarçada de poodle francês. E o poodle pergunta aos personagens se gostariam de ter um cachorrinho como ele. Diante das respostas afirmativas, acaba transformando-os de novo no que eram. E assim acaba a peça, num movimento de figuração, desfiguração, refiguração. Risíveis, sobretudo aí, são as tentativas dos personagens de driblar as predestinações da aparição. Outro exemplo de figuração pode ser observado na peça “A play called not and now”, onde lista dentre outros, os seguintes personagens: “homem que se parece com Dashiel Hammet”, “homem que se parece com Picasso”, “homem que se parece com Charlie Chaplin”, “mulher que se parece com Anita Loos” (STEIN,1975:422) e assim por diante. Para escrever esta peça, Stein teria se inspirado, segundo observa Carl Van Vechten na introdução para o terceiro volume de peças de Gertrude Stein, Last operas and plays, num jantar em Beverly Hills em que conheceu diversas celebridades. Stein opta por não fazer das celebridades os personagens, e sim por criar personagens que se parecem com elas. Há, nesta escolha, uma ironia com relação ao fato de as celebridades se verem obrigadas, a se manterem parecidas consigo mesmas, ou seja, com algo que nelas as fez célebres, às vezes um esquema de gestos, trejeitos e peculiaridades. Ao virar celebridade, a pessoa passaria a ser alguém que se parece com ela, representando o papel dela mesma. Os personagens de Stein também têm aí seus gestos e falas descritos em referência a seus modelos. O homem que lembra Chaplin até chega a tentar se distinguir, mas não escapa ao referente: “O que se parece com Charlie Chaplin disse. Charlie Chaplin se parecia comigo.” Tudo o que fazem, ao longo da peça, é olhar (look at) uns para os outros e parecer (look like) com quem se parecem. Há, além da ironia com o star system, um jogo de palavras, que a versão em português perde. Cito pequeno trecho no original para que se perceba como Stein joga com as expressões “look at” (olhar para) e “look like” (se parecer com): The one who looks like Dashiell Hammett looks at the one that looks like Picasso and both together look at the one that looks like Lord Berners, and then they all say, we do not look like any other one and they did not and do not. (STEIN,1975:423)

Há, portanto, um jogar, um “to play” com as diversas possibilidades de apresentação e desfiguração de personagens. Como as três irmãs que, na verdade, não são irmãs, como o que acontece com os primos de “Look and long” que se desfazem e se refazem, ou como no procedimento debochado e irônico com que Stein percebe as celebridades e seus simulacros.

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A noção de jogo, de brincadeira, como procedimento de desarranjo identitário se expandiria dos personagens, como já observei, para os gêneros discursivos. É o que acontece em The geographical history of America or the relation of human nature to the human mind. A princípio dividido em capítulos, sem sequência cronológica, o livro vai, aos poucos, introduzindo gêneros diversos em sua estrutura. Uma peça, outra peça, um retrato de Thornton Wilder, várias autobiografias numeradas (“Autobiografia I”, “Autobiografia número II”), histórias de detetive, uma seção chamada “A história da minha vida”, dentre outras subdivisões. A certa altura, a autora tematiza diretamente o jogo genérico que arma no livro: Este livro inteiro agora será uma história de detetives sobre como escrever. Uma peça sobre a relação da natureza humana com a mente humana. E um poema sobre como começar de novo E uma descrição de como a terra é quando você a olha o que talvez possa ser uma peça se puder ser feita em um dia e é talvez uma história de detetives se puder ser descoberta. Qualquer coisa é uma história de detetives se puder ser descoberta e pode qualquer coisa ser descoberta. Sim.(STEIN,1998:410)

Explicita o jogo com descrições, relatos, poemas, histórias de detetives, num carnaval genérico que é mais uma puxada de tapete no leitor, mais uma peça que Stein nos prega. E revela que o humor é o motor de sua obra, de toda ela. Comicidade trabalhada no interior das frases e parágrafos, na repetição, no uso de duplo ou de múltiplos sentidos, no desmonte das estruturas dramatúrgicas, na sonoridade dos vocábulos, em elementos fonéticos, em alterações ligeiras, modificando enunciados, parágrafos, gêneros. Às vezes é um uso excessivo de pronomes ou de indicadores de lugar, (como “lá”, “aqui”, “ali”, “acolá”), que move uma peça como “Doutor Faustus liga a luz”. Às vezes são negações que se seguem imediatamente a afirmações, num desmonte constante de certezas, como se viu em “Três irmãs que não são irmãs”. O humor é o motor, mas o seu movimento não se dá a decifrar em padrões de comicidade. Pois quando se tem a impressão de que o humor se revela numa forma fixa, esta mesma forma se desmonta, pregando sempre mais uma peça, e mais outra ainda em seu público.

Bibliografia STEIN, Gertrude. Writings: 1932-1946. New York: The Library of America, 1998. ______________. Last operas and plays. Edited and with an introduction by Carl Van Vechten. New York: First Vintage Books Editions, 1975.

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______________. Selected operas and plays of Gertrude Stein, edited and with an introduction by Malcolm Brinnin. Pittsburgh and London: University of Pittsburgh Press, 1993. ______________. Autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Cosac Naify, 2009. _______________. Autobiografia de todo mundo. Trad. Júlio Castañon Guimarães e José Cerqueira Cotrim Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. _______________. Contando os vestidos dela. Uma peça. Tradução de Inês Cardoso Martins Moreira. Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2001. _______________. Doutor Faustus liga a luz. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Editorial Cone Sul. _______________. Geography and plays. With an introduction by Cyrena N. Pondrom. Madison: The University of Wisconsin Press, 1993. _______________. Porta-Retratos: Stein Gertrude. Tradução e Introdução de Augusto de Campos. Ilha de Santa Catarina: Editora Noa-Noa, 1989. i

Artigo incluído em Teatro e comicidades 3: facécias, faceirices e divertimento, livro organizado por Beti Rabetti e editado pela Editora 7Letras, em 2010.

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