Presciência e intervenção

May 22, 2017 | Autor: M. Machado | Categoria: Philosophy, Philosophy Of Religion, Free Will, Knowledge, Omniscience, The Knowledge of God
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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO

Presciência e intervenção Ensaio Crítico Filosofia da Religião Contemporânea Professor Domingos Faria

Maria Eduarda Dias Pinto Machado

Março de 2017

Resumo: Pretende-se defender que o argumento fatalista sofre de um salto lógico, ao considerar que se Deus conhece tudo, incluído o futuro quer dizer que a ação humana é não livre.

Existe uma dificuldade enorme em compatibilizar a omnisciência com o livrearbítrio, pois não se quer prescindir do poder de escolher. Se por um lado se admite a presciência elimina-se a possibilidade de escolha livre segundo a vontade do indivíduo, e se se opta pela livre vontade não é possível haver um Deus que tudo saiba: porque se assim o sabe, então todo o curso de fenómenos terá que ocorrer dessa mesma maneira respetiva e exata. Uma terceira hipótese é uma compatibilidade entre as duas. Mas como se compatibiliza o saber tudo, passado, presente, e futuro? O passado e presente são conhecimentos acessíveis ao entendimento do ser humano, o futuro pode parecer de alguma forma previsível, contudo, é uma forma de conhecimento humano facilmente corruptível. O fatalismo teológico prevê que a ação humana ocorre por questões de necessidade, e que por isso é uma ação não-livre. Ora o objetivo deste trabalho está centrado na desconstrução do argumento fatalista, tentando mostrar que o argumento decorre sobre a égide de conceitos mal compreendidos, ou mal formulados. Mas antes há que fazer uma breve nota acerca de uma crença que é dificilmente demovível. Quando se fala em livre-arbítrio, não parece apropriado restringir o conceito a um determinismo do tipo exterior à vontade: é necessário que a vontade seja o fundamento de uma ação livre, quer possa ser posta em prática ou não. Portanto, neste género de discussão uma ação que ocorre por motivos de necessidade, e por isso nãolivre, deverá ser vista como uma vontade condicionada à vontade de Deus. Só dessa maneira se poderá entender a incompatibilidade, e por isso a submissão de uma propriedade (humana) a outra (divina). Contudo, não existem provas factuais da existência de um ser com tal capacidade, pelo que apenas se pode adquirir tal prova de duas maneiras: por uma subjetiva, por pura intuição, e em termos mais íntimos com a religião, pela fé e revelação divina; ou por esforço intelectual, de método reflexivo, e íntimo à filosofia. O primeiro é autoevidente para quem o experiencia, e o segundo é insuficiente para se afirmar a existência ou a inexistência de tal entidade (ou não estaria a Filosofia ainda ocupada com o assunto). Desta forma, a melhor coisa a fazer numa primeira fase é algo análogo ao que Descartes fez quando duvidou de tudo e, não conseguindo encontrar respostas para tais dúvidas, deixou-se restringir à realidade e aos costumes sociais para não se “perder”, até que uma coisa compreendeu: «se penso logo existo». A primeira grande intuição é: se se escolhe tem-se vontade, se se tem vontade e se escolhe, é-se livre. Pode parecer tosco, e até um pouco redundante, mas é uma intuição básica, cuja remoção é difícil. Por isso manter-se-á esta intuição até prova em contrário.

As premissas a objetar serão então: 6) Nenhum humano teve escolha sobre a verdade de 4. 10) Maria lê um livro em t, mas não o fez livremente. [de 8 e 9]

Como é que se compatibiliza a escolha livre pela vontade, com a possibilidade de haver uma entidade que tudo saiba, não apenas acerca do passado, como também em relação ao futuro? Como é que se sabe sobre uma coisa/acontecimento que ainda não existe? Primeiro deve-se percorrer a literatura filosófica, de forma breve, e apenas a aquela que serve o presente caso. Deve-se também ter em conta questões temporais. Assumir-se-á então as ideias acerca do tempo, expostas a seguir. O passado já existiu, todos tiveram conhecimento dele (de uma ou de outra forma). Pode não existir, mas causou, ou condicionou de alguma maneira o presente, e assim se dará, de forma causal, com o futuro. O futuro será o presente, condicionado pelo passado. Esta é a única forma de o passado existir: é pelas implicações que tem no presente (pela arquitetura, pelos livros, pela música, por fenómenos políticos e sociais, entre muitas outras coisas). Ora, pode considerar-se que o argumento fatalista falha logo de início na premissa 4) ao afirmar que «Em t*, Deus acreditava que(…)». Se Deus é omnisciente, omnipotente, e, por isso, omnipresente, então ele transcende os limites das dimensões espaciais e da temporalidade. Essa transcendência é omnipresença: não se pode estar em todo lado, em qualquer altura se não tiver este atributo, que se segue necessariamente da omnisciência e da omnipotência: ao conhecer tudo, inclusive o tempo e o espaço, consegue/tem o poder (porque tem poder para fazer tudo) de estar em todo o lado em qualquer e todo o momento. Uma outra forma de o fazer (de refutar o argumento) é interrogar a premissa 1), alegando, segundo Aristóteles, que não existem factos futuros, porque é necessário que Maria exista para poder ler o livro. Uma das mais célebres soluções é a ockhamista, que diz que certos factos passados são como são porque o presente assim o permitiu: “ontem fumei o último cigarro” só será um facto se hoje não fumar um cigarro. Chama-se a isto de Principio de Necessidade do Passado. Neste princípio existem factos moles e factos duros. Os primeiros são esses factos passados com referência ao futuro, dependem do presente; os segundos são factos passados que se referem única e exclusivamente ao passado. Esta foi uma ideia trabalhada por Marily Adams, e sustentava a ideia de que as crenças de Deus passadas e acerca do passado, eram crenças, em parte, acerca do futuro. O

argumento de Adams deixou de ser viável, porque, como alguns autores muito bem apontaram, e de alguma forma foi defendido acima, não existem factos duros. O passado perpetua-se no futuro, pelo presente. Todavia existe aqui uma dificuldade: seja um facto mole, qualquer que seja o tipo de facto, um facto é algo que já se encontra cumprido e cuja realidade já não pode ser alterada. Um facto mole, com referência ao futuro, requer, na perspetiva daquilo que é o conhecimento de Deus, que as realidades futuras já estejam determinadas. A questão é: determinadas por quem e como se o futuro ainda não existe? Determinadas por Deus, ou pelo Homem? Se estiverem determinadas por Deus, perde-se a liberdade de escolha; se determinadas pelo ser humano então Deus tem necessidade do passado para ter conhecimento acerca do futuro. O passado é necessário em todos os mundos possíveis, no que concerne ao entendimento humano. Deus poderá ter também essa necessidade do passado, mas ele está em todos os tempos, e é transcendente aos limites temporais. É necessário que Deus conheça tão bem o futuro como conhece o presente e o passado, ou seja, o passado é tão necessário quanto o presente e o futuro. O ser humano apoia-se na probabilidade, na estatística, nas leis físicas, na psicologia, entre outras; mas não se sabe como é que Deus faz isso. A capacidade de previsão humana é extremamente limitada, a sua margem de erro é enorme. Deus, enquanto omnisciente, omnipotente, deve ser perfeito a fazê-lo. Porque a sua omnipotência deve estar presente, não só na capacidade do seu ato criativo como nas suas capacidades, diga-se assim, “intelectuais”. O nível de precisão de métodos de dedução e previsão de acontecimentos tem de ser necessariamente diferente entre Deus e os homens. De volta ao argumento, porém às premissas 2) e 3). Acreditar em toda a proposição verdadeira, não é o mesmo que acreditar em factos. Uma proposição, ao contrário de um facto, é tradicionalmente, um produto lógico do juízo, do ato de julgar. E seguindo uma linha wittgensteiniana, uma proposição é uma descrição de um facto, mas não é obrigatório que assim seja. Segundo David Hume, o conhecimento pode ser factual, acerca de verdades contingentes, ou conhecimento de verdades necessárias (na descoberta de relações filosóficas entre ideias). Verdades necessárias encontram-se, não só nesta realidade, como são necessárias em mundos possíveis. Proposições de conhecimentos factuais requerem normalmente que haja contacto com as matérias, que haja experiência, é um conhecimento a posteriori. O que é que leva a que se induza que o conhecimento de Deus é factual? É algo que também deve ser repensado. Imagine-se

que a mente divina, para além de transcender o tempo e o espaço, é puramente dedutiva, é puro entendimento; e agora adicione-se-lhe a omnisciência e por isso o poder de tudo saber, incluindo todos os desejos, crenças, intenções, emoções de todos os seres existentes, assim como conhecer as capacidades (intelectuais e físicas) e níveis de inteligência de todo e cada ser que existe. O curso de ação não será uma novidade, pois todas as possibilidades e condicionantes são conhecidas por essa entidade. O ser humano, pelas suas limitações, tem uma espécie de conhecimento circunstancial, condicionado às suas capacidades e à informação que lhe chega. Talvez o melhor seja assumir uma posição semelhante à do teísmo cético, aceitando o hiato que existe entre o entendimento, a razão, a inteligência humana e a divina. Conquanto, pode entender-se que a questão do conhecimento não leva necessariamente à interferência na ação. Por isso, o facto de Deus tudo conhecer e a possibilidade de o ser humano agir livremente não são incompatíveis, de forma alguma. Pode conhecer-se uma verdade necessária futura por meios intelectuais, lógicos, dedutivos sem que por isso seja necessário que esse conhecimento impeça a prática livre da vontade. O salto lógico de 5) para 6) é claro. O caso de Mary Jones, de Frankfurt ilustra bem a diferença entre estar na mente de alguém e conhecer o que o sujeito vai decidir (mesmo que a possibilidade de ação seja reduzida); e o que é estar na mente e manipular a escolha do sujeito. O dispositivo de Black é contrafactualmente manipulador, ainda que não manipule a vontade de Jones. De forma contrária, a presciência não é (em nenhum mundo possível), contrafactualmente manipuladora. A omnisciência conhece tudo, e quando se diz tudo, não se tem uma noção aproximada do que é que isso quer dizer. Ao não se conseguir decifrar, nem saber que tipo de mente é a divina, dificilmente se pode afirmar que tal conhecimento interfira no curso dos fenómenos. Mas pode interferiri, ou Deus não seria também omnipotente.

ANEXO- ARGUMENTO DO FATALISMO TEOLÓGICO Argumento fatalista teológico: 1) Ps foi verdadeiro em t*. 2) Deus é omnisciente. 3) Um ser omnisciente acredita em toda a proposição verdadeira e não tem qualquer proposição falsa. 4) Em t*, Deus acreditava que Ps foi verdadeira. [de 1-3] 5) Se 4, então Maria lê um livro em t. 6) Nenhum humano teve escolha sobre a verdade de 4. 7) Para qualquer proposição p e q, se p é verdadeira e se p implica q, e se nenhum humano teve escolha sobre a verdade de p, então nenhum humano teve escolha sobre a verdade de q. 8) Nenhum humano teve escolha sobre se Maria lê um livro em t. [de 57] 9) Um humano é livre com respeito a uma ação só se ele tem escolha sobre se realiza ou não essa ação. 10) Maria lê um livro em t, mas não o fez livremente. [de 8 e 9]

Bibliografia hopkins, j., s.d. PHILOSOPHICAL CRITICISM: essays and reviews. s.l.:s.n. Hume, 1888. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Zagzebski, L., s.d. Foreknowledge and Free. s.l.:s.n.

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