Prescrição: renunciabilidade vs. cognoscibilidade ex officio

July 22, 2017 | Autor: F. Lindoso e Lima | Categoria: Direito Processual Civil, Direito Civil
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PRESCRIÇÃO: RENUNCIABILIDADE VS. COGNOSCIBILIDADE EX OFFICIO

RAFAEL VINHEIRO MONTEIRO BARBOSA Mestre e doutorando em Processo Civil pela PUC-SP. Professor de Carreira de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Defensor Público no Estado do Amazonas. Membro do IBDP. Pesquisador e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM. Membro do Grupo de Trabalho criado pelo Ministério da Justiça para a elaboração do curso de mediação e negociação para Defensores Públicos.

FÁBIO LINDOSO E LIMA Graduado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pelo CIESA. Membro do BRASILCON e articulista em temas de direito privado. Advogado em Manaus/AM e Brasília/DF.

ÁREA DO DIREITO: Processual; Civil.

pretende,

ABSTRACT: This study analyses the legal

analisando os fundamentos, a natureza jurídica e

grounds, judicial nature and functionalities of

o escopo da prescrição, compatibilizar a

the

possibilidade de cognição oficiosa, introduzida

compatible interpretations for the waiver of the

pela alteração do § 5º do art. 219 do CPC

right to rely on extinctive prescripton, in light of

brasileiro, com a permanência no ordenamento

the alteration on the brazilian procedural law,

jurídico nacional do direito de o devedor dela

which states allows the admittance of extinctive

renunciar, presente, desde o CC16, na legislação

prescription ex-officio - without party alegation.

civil.

KEYWORDS: Waiver of The Right To Rely On

RESUMO:

O

presente

PALAVRAS-CHAVE:

estudo

Prescrição



natureza

extinctive

Extinctive

prescription

Prescription



and

proposes

Possibility

of

jurídica – cognição ex officio – renunciabilidade

admittance of Extinctive Prescription Without

– compatibilização.

party – Procedural Law.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Natureza Jurídica da prescrição – 3. Renunciabilidade – 4. Cognoscibilidade; 4.1 Sistemática Anterior; 4.2 Sistemática Atual – 5. Proposta de compatibilização – 6. Referências.

1. INTRODUÇÃO

Nada escapa ao tempo: ele é uma circunstância inexorável, portanto, um fato ao qual o fenômeno jurídico não pode estar alheio. O decurso do tempo tem a capacidade de emprestar viés de estabilidade às situações de fato antes frágeis. O tempo sedimenta, no mundo dos fatos, as ações ou inações do homem, e suas consequências.

Tamanho é o impacto desta grandeza no plano dos fatos, que ela não pode ser ignorada pela ciência jurídica.1 E diante da constatação desta importância, nada mais natural que a fascinação da comunidade jurídica sobre o instituto. A relação entre o homem e o decurso do tempo é tão antiga quanto à própria ciência do Direito. Não por acaso o brocardo dormientibus non sucurit ius2, originário do direito romano, resistiu incólume – com alguma ironia – ao decurso do tempo. É grande a proximidade entre o próprio fenômeno do decurso do tempo e suas consequências jurídicas. Tanto é assim, que já é senso comum – quase que em uma abordagem jusnaturalística, anterior a qualquer ordenamento – a noção de que o decurso de determinado lapso temporal, aliado à inércia do titular de um direito fulmina a pretensão ao seu exercício. O instituto se espraia por todo o ordenamento, uma vez que seu fato jurídico subjacente (no caso, o tempo) está presente em toda e qualquer relação jurídica. Assim, há uma série de normas de natureza prescricional esparsas pelo ordenamento. Há diversas menções ao instituto na Constituição Federal, sempre deixando sua definição para a legislação infraconstitucional. A disciplina jurídica do instituto da prescrição encontra-se no Código Civil, no Título IV – Da Prescrição e Da Decadência, havendo também aparições em outros diplomas legais, a exemplo do Código de Processo Civil. Dentre as diversas aparições da prescrição no ordenamento jurídico, uma merece destaque: a regra do art. 219, § 5º do Código de Processo Civil. O preceptivo prevê a cognoscibilidade, de ofício, da prescrição. Trata-se de inovação legislativa efetivada pela Lei nº. 11.280/2006, que alterou diversos aspectos da citação. A sistemática do Código Civil de 1916 previa o conhecimento da prescrição de ofício apenas quando relacionada a direitos nãopatrimoniais.3

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Com o advento do Código Civil de 2002, a prescrição passou a poder

Na precisa afirmação de Andreas v. Tuhr, “el orden jurídico no puede sustraerse al influjo del tempo sobre todo lo humano”. (Parte general del Derecho Civil. Granada: Comares, 2006. p. 103). 2 O direito não socorre aos que dormem. 3 Conforme o art. 166 do revogado Código Civil de 1916, o juiz não poderia conhecer da prescrição de direitos patrimoniais, a não ser que o tema fosse invocado pelas partes (Art. 166, CC16. O juiz não pode conhecer da prescrição de direitos patrimoniais, se não foi invocada pelas partes). 4 A sistemática da lei processual acompanhava a da legislação material (Art. 219, CPC - [...] § 5.º - Não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato).

ser conhecida de ofício pelo juiz, exclusivamente na hipótese de beneficiar absolutamente incapaz.5 O Código Civil, no art. 191, prevê aparentemente o contrário da sistemática vigente: a renúncia da prescrição. Com a alteração legislativa implementada pela Lei nº. 11.280/06, evidencia-se antinomia aparente de normas. De um lado, tem-se o Código Civil, matriz legal do instituto, a sustentar a possibilidade de renúncia da prescrição. Do outro, diploma legal que disciplina regras de procedimento, com alteração legislativa mais recente, definindo plenamente congnoscível, sem qualquer ressalva, a prescrição. Surgem, então, importantes questionamentos: à luz do conceito de pretensão e de sua distinção do conceito de direito subjetivo de ação, como se interpretam, de modo harmônico, a renunciabilidade da prescrição e a possibilidade de conhecimento de ofício pelo magistrado? Trata-se, a prescrição, de matéria de ordem pública? A inovação legislativa mencionada alterou a natureza jurídica da prescrição? Dentro deste contexto, propõe-se investigar como se dá a interpretação da possibilidade de renúncia da prescrição em cotejo com a de conhecimento de ofício pelo julgador. Os dispositivos legais em tela apontam conter elementos normativos diametralmente opostos. A renúncia de determinado direito implica dizer que este é direito disponível. Já a matéria cognoscível de ofício geralmente o é em razão de ser de ordem pública, logo, direito indisponível. O presente estudo pretende investigar esta aparente colisão de normas, com o fito de encontrar interpretação que consiga compatibilizar os aspectos de direito material e processual, de modo a harmonizá-los dentro do ordenamento jurídico pátrio.

2. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

O instituto da prescrição encontra origem no direito romano. A etimologia fornecida pela doutrina6 dá conta de que a expressão se referia aos prazos para o exercício de determinados direitos, que eram pré-escritos. A expressão latina

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O já revogado art. 194 do Código Civil possuía a seguinte redação: O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz. 6 A referência é feita por Renan Lotufo, citado por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (Curso de direito civil, v. 1. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 720).

praescriptio, portanto, quer significar “escrever antes ou no começo”.7 Vê-se, portanto, que remonta ao direito romano a noção de que a prescrição trata dos efeitos jurídicos do decurso do tempo. A investigação da natureza jurídica da prescrição pela doutrina, na maioria dos casos, ocorre em oposição à conceituação da decadência, em razão das semelhanças entre os dois institutos. Ambos tratam dos efeitos jurídicos do decurso do tempo. Então, o traço distintivo entre os dois institutos é o ponto de partida da doutrina, na conceituação e investigação da sua natureza jurídica, à luz da noção de pretensão, originária do direito germânico. A prescrição é espécie de fato jurídico, tomando como marco teórico a lição de Pontes de Miranda, segundo o qual o fato jurídico é o resultado da incidência da norma jurídica sobre determinado suporte fático.8 No caso, o suporte fático seria composto pelo elemento objetivo (decurso do tempo) e subjetivo (inércia do titular da pretensão). Há também corrente doutrinária que sustenta ser a prescrição ato-fato,9 decorrente da inércia do titular de determinado direito subjetivo, que gera o encobrimento da eficácia deste pela perda de sua pretensão. Em pensamento semelhante, Orlando Gomes adota noção de que a prescrição é “modo pelo qual um direito se extingue em virtude da inércia, durante certo lapso temporal, do seu titular, que, em consequência, fica sem ação para assegurá-lo”.10 A despeito da ressalva do conceito acima, quanto à extinção do direito de ação, a noção de Orlando Gomes bem sintetiza a ideia de grande parte da doutrina, que aborda o instituto sob o prisma da necessidade de conjugação do elemento temporal e da inércia do titular do direito. Em suma, da colheita do que é ofertado pela doutrina, pode-se perceber ponto de convergência no que toca à necessidade da concomitância de elementos objetivos e subjetivos, respectivamente, o decurso temporal, e a inércia do titular da pretensão.

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FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil, v. 1. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 720. 8 PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de direito privado, tomo I. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. p. 5. 9 FACHIN, Luiz Edson; FRANK, Felipe. Problematizações sobre a unicidade da interrupção prescricional do art. 202 do Código Civil brasileiro. In. 10 Anos do Código Civil – desafios e perspectivas. VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Villar; NASSER, Paulo Magalhães (Coord.). São Paulo: Atlas, 2012. p. 5. 10 GOMES, Orlando. Curso de direito civil, volume 1. 5. ed. Edição. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 549.

Quanto a estes requisitos, é seguro dizer que não há divergência doutrinária alguma, sendo reiteradas as oportunidades em que se repete esta fórmula. Como proposta de conceito, de onde se pretende partir para a posterior evolução do presente estudo, pode-se afirmar que a prescrição é a exceção surgida em razão da inércia do titular de determinada pretensão, durante lapso temporal previamente fixado na lei, e que, quando alegada pela parte, posiciona-se como fator encobridor da eficácia da pretensão.11 A opção pela conceituação como exceção encontra fundamento na possibilidade de renúncia da prescrição, ex vi do art. 191 do Código Civil, e na origem romana do instituto, anteriormente lembrada. Aqui vale uma ressalva: ainda que a primeira vista a prescrição possa aparentar ser uma sanção contra o titular da pretensão que permaneceu inerte no intervalo temporal traçado pela lei, a verdadeira razão do instituto é proteger aquele que não é devedor e que, em razão da possibilidade do exercício da pretensão sem limite no tempo, encontraria enormes dificuldades de provar a própria inexistência da dívida, seu pagamento ou outra causa extintiva.12 A prescrição, portanto, não é uma punição para o credor apático, mas um instrumento à disposição daquele que não é devedor e que, por tal razão, caso não existisse a praescriptio, seria obrigado a manter, eternamente, documentos comprobatórios da sua condição.13 Contudo, para proteger completamente o nãodevedor, a lei também acaba por beneficiar aquele que não ostenta idêntica posição. Todavia, no cômputo das perdas e ganhos, preferiu o legislador por tal solução, já que

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Tal conceito foi inspirado nas lições de Pontes de Miranda: “Prescrição é a exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação”. (Tratado de direito privado, tomo VI. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 100). 12 “(...) de esta suerte, se acude en auxilio de los deudores, dispensándoles el tener que conservar indefinidamente la prueba de los pagos realizados o de verse obligados, en su defecto, a pagar nuevamente, si hubiesen perdido esas pruebas”. PLANIOL, Marcel; RIPERT, Georges. Tratado practico de derecho civil frances, tomo VII. Havana: Cultural S.A., 1945. p. 661. Do mesmo modo, na doutrina nacional: “A prescrição tem fundamento na segurança jurídica e na paz social, como um meio de proteger o pretenso devedor das dificuldades progressivas que o tempo impõe à viabilidade de provar a inexistência ou a satisfação do débito”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo – ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 25, p. 280-296, jan./mar. 2006. 13 Em nota de rodapé, Ludwig Enneccerus salienta que “el fin proprio de la prescripción es proteger a aquel que no debe y no, como cree Naendrup, ‘proteger al deudor verdadeiro en la confianza sobre la aparencia jurídica de su ausencia de divida”. (Tratado de derecho civil – Parte general, tomo II. 2. ed. Barcelona: Bosch, 1950. p. 502).

ela não fulmina nem reduz o direito do credor, previamente alertado de que deverá exercer sua pretensão num determinado espaço temporal.14 Aqui, o interesse pessoal do credor cede espaço ao interesse geral de segurança jurídica, surgindo daí a necessidade de se fixar prazo para o exercício das pretensões. Os poucos casos que a prescrição produz resultados chocantes não podem se comparar com os infinitos em que ela vem consolidar e proteger situações regulares e perfeitamente justas.15 É antiga a advertência de Pontes de Miranda de que o “fundamento da prescrição é proteger o que não é devedor e pode não mais ter prova da inexistência da dívida; e não proteger o que era devedor e confiou na inexistência da dívida, tal como juridicamente ela aparecia; (...)”. Aduz, ainda, que o fundamento espúrio, de penalidade, chegou até nós graças às Ordenações Manuelinas.16 17 Com sabedoria, Marcel Planiol e Georges Ripert ensinam que a explicação mais simples para o fenômeno da prescrição seria considerar que as obrigações não são perpétuas e que estas desaparecem quando o credor não reclama seu direito no prazo fixado pela lei. Contudo, continuam os autores, o legislador não quis admitir essa concepção, por entender que é injusto declarar liberado da obrigação o devedor que não cumpriu sua dívida; por isso, fez da prescrição uma exceção em favor do devedor,

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Apesar de longa, a passagem a seguir merece inteira transcrição: “En efecto, con el fin de salvaguardar la seguridad general del derecho y en orden a proteger contra las pretensiones ilegítimas, el ordenamento jurídico tiene que aceptar también que el deudor poco escrupuloso, que sabe exatamente que él debe todavía, este favorecido por las reglas de la prescripción. Pero sería poco decoroso el protegerle ipso iure. El deudor podría invocar la prescripción, pero tendrá que echar sobre sí la legítima censura de conducirse con poco miramiento. Precisamente la circunstancia de que en muchas esferas, especialmente en el comercio y en la industria se considere incorrecto el alegar la prescripción contra créditos legítimos, es medio adecuado para precaver contra el abuso de las reglas de la prescripción”. ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martín. Tratado de derecho civil – Parte general, tomo II. 2. ed. Barcelona: Bosch, 1950. p. 502. 15 A advertência é de Marcel Planiol e Georges Ripert. (Tratado practico de derecho civil frances, tomo VII. Havana: Cultural S.A., 1945. p. 661). Em igual medida: “En todo caso cabe afirmar que la institución de la prescripción, si bien puede conducir en algunos supuestos a resultados injustos, es indispensable, pues en outro caso serían inevitables graves inconvenientes”. LARENZ, Karl. Derecho civil – Parte general. Editorial Revista de Derecho Privado: Madrid, 1978. p. 329. 16 PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de direito privado, tomo VI. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 100. 17 Luiz Edson Fachin e Felipe Frank defendem que a prescrição “não protege o inadimplente nem busca punir o credor, mas apenas busca pacificar as relações sociais colocando limites temporais à exigibilidade de determinados direitos, tendo como objetivo precípuo o atendimento dos anseios de segurança jurídica”. (Problematizações sobre a unicidade da interrupção prescricional do art. 202 do Código Civil brasileiro. 10 Anos do Código Civil – desafios e perspectivas. Coord. VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Villar; NASSER, Paulo Magalhães. São Paulo: Atlas, 2012. p. 4).

concedendo deste modo, se este assim desejar, um meio de paralisar a ação/pretensão do credor.18 Sobreleva notar, pela importância, que o fator de proteção, para não agir indistintamente abarcando não-devedor e devedor, depende da sua espontânea alegação, razão pela qual não se coaduna com o reconhecimento de ofício pelo magistrado ou por quem quer que seja. Compete, assim, àquele que tem uma pretensão contra si veiculada, exercer ou não, em seu próprio benefício, deste instrumento defensivo.19 Já dizia Pontes de Miranda que a prescrição, como exceção, “aproveita também, ao devedor, ainda quando êle sabia e sabe que deve”. Porém, por depender da sua oposição, o devedor conserva a faculdade de não alegá-la, “ficando bem, assim, com a sua consciência”.20 E esse conteúdo ético, que deve ser mantido no fenômeno jurídico da prescrição, está relacionado com a sua natureza de exceção. Para Alexandre Câmara, visualizar “a prescrição como exceção (e não como objeção), exigindo que a mesma seja alegada para vir a ser reconhecida, tem uma conotação ética”.21 Se hoje existe uma menor probabilidade de os devedores, em prol exclusivamente da manutenção do seu bom nome e do acordo com a sua consciência, renunciarem à prescrição quando cientes de que efetivamente “devem”, isso não é fator suficiente para alterar, em cento e oitenta graus, a natureza jurídica do instituto, muito menos para fazer o legislador perder as esperanças no “homem” e no seu lado ético. A prescrição não é uma pena a ser aplicada ipso iure ao credor; e é por essa razão, como será visto mais à frente, que ela não extingue o crédito (o direito subjetivo), nem a ação, nem a própria pretensão. Ademais, a adoção, no âmago da prescrição, dos conceitos de pretensão e exceção denota o intuito do legislador civilista de aproximação do direito alemão, inspiração nesta e em tantas outras figuras do direito privado. Com efeito, a noção de pretensão e

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PLANIOL, Marcel; RIPERT, Georges. Tratado practico de derecho civil frances, tomo VII. Havana: Cultural S.A., 1945. p. 660. 19 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo – ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 25, p. 280-296, jan./mar. 2006. 20 PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de direito privado, tomo VI. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 104. 21 CÂMARA, Alexandre Freitas. Reconhecimento de ofício da prescrição: Uma reforma descabeçada e inócua, trabalho publicado na rede mundial de computadores, in http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Alexandre%20F%20C%C3%A2mara-%20formatado.pdf, acesso em 9/8/2014.

de renunciabilidade é crucial para o deslinde da aparente colisão de normas objeto do presente estudo. A pretensão é conceito afeito ao direito material, que não se confunde com o direito subjetivo de ação.22 Podem-se distinguir os institutos dizendo que a pretensão é um direito subjetivo de ação aparelhado por um direito material. A prescrição impede exatamente este “aparelhamento”, pois impõe obstáculo ao exercício desse direito material, que qualifica o direito subjetivo de ação. A distinção mostra-se pertinente para a discussão. Primeiro, para evitar o comum equívoco de simplificar o instituto, referindo-se a este como extintivo do direito de ação/pretensão. Em um segundo, momento, vê-se também que a possibilidade de renúncia não se coaduna com o direito subjetivo de ação – eis que garantia constitucional – o que reforça a assertiva fundada na noção de pretensão.

3. RENUNCIABILIDADE

Foi a pena de Agnelo Amorim Filho que bem destacou um ponto de extrema relevância a respeito da prescrição. Defendeu o autor com aguçada desenvoltura que o fenômeno da prescrição atinge apenas os prazos que conferem ao titular direitos subjetivos patrimoniais, isto é, aqueles que fazem nascer para o seu detentor uma pretensão que lhe permite exigir de alguém certo comportamento.23 Argumenta, defendendo seu posicionamento, que apenas os direitos subjetivos patrimoniais “são suscetíveis de lesão ou violação (...)”.24 Ora, violado o direito, nasce a pretensão do titular de fazê-lo respeitar, isto é, surge o poder de exigir o comportamento 22

NERY JUNIOR, Nelson; ABBOUD, Georges. Pontes. Pontes de Miranda e o processo civil: a importância do conceito da pretensão para compreensão dos institutos fundamentais do processo civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 231, p. 89, mai 2014. 23 “Dêste modo, fixada a noção de que a violação do direito e o início do prazo prescricional são fatos correlatos, que se correspondem como causa e efeito, e articulando-se tal noção com aquela classificação dos direitos formulada por Chiovenda, concluir-se-á, fácil e irretorquìvelmente, que só os direitos da primeira categoria (isto é, os direitos a uma prestação), conduzem à prescrição, pois somente eles são suscetíveis de lesão ou de violação, conforme amplamente demonstrado”. AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 744, p. 725-750, out. 1997. 24 Não pensa diferente José Carlos Barbosa Moreira: “Essa consideração traz à mente, de imediato, a classificação dos direitos subjetivos em duas grandes categorias: a dos direitos a uma prestação e a dos direitos tendentes à modificação do estado jurídico existente (direitos potestativos). Deve-se recordar que só os direitos da primeira categoria são suscetíveis de lesão, a qual ocorre todas as vezes que o sujeito passivo da relação jurídica adota comportamento diferente do esperado, isto é, recusa a prestação, deixando de fazer o que devia ou fazendo o que não devia”. (O novo código civil e o direito processual. In. DIDIER JR, Fredie; MAZZEI, Rodrigo. Reflexos do novo código civil no direito processual. Salvador: Jus Podivm, 2005).

prometido ou de obter algo equivalente àquele. Natural, portanto, que a lei, até por questão de segurança jurídica e estabilidade das relações sociais, fixe um limite temporal para que o titular do direito violado possa recorrer às vias legais no intuito de reclamar a sua observância.25 Não exercitada a pretensão26 no prazo estipulado pela lei, esta se encobrirá pelo fenômeno da prescrição.27 Aliás, este é quase28 o exato teor do art. 189 do Código Civil: “Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”. [sem grifos no original]. Um exemplo pode auxiliar a compreensão da ideia. As ações que tutelam os direitos da personalidade veiculam pretensões imprescritíveis, a teor do que informa o art. 11 do Código Civil.29 Como consequência, ditas pretensões não podem sofrer com o fenômeno da prescrição. Todavia, as ações indenizatórias com base em violações aos

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“Nesse desenho estrutural, surge a prescrição para delimitar um lapso temporal, a fim de que sejam exercitadas as pretensões decorrentes da titularidade de determinados direitos subjetivos patrimoniais pelo seu respectivo titular”. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil, v. 1. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 722. De forma mais explícita: “A manutenção de situações jurídicas pendentes, indefinidamente, por lapsos temporais prolongados, importaria, sem dúvida, em insegurança e seria fonte de conflitos e prejuízos diversos. Conseqüentemente, surge a necessidade de controlar, temporalmente, o exercício de pretensões, propiciando segurança jurídica e pacificação social”. ROSENVALD, Nelson. Prescrição: da exceção à objeção. In. FARIAS, Cristiano Chaves de (coord.). Leituras complementares de Direito Civil: o Direito Civil-Constitucional em concreto. Salvador: JusPodivm, 2007. 26 “(...) só as ações condenatórias podem prescrever, pois são elas as únicas ações por meio das quais se protegem os direitos suscetíveis de lesão (...)”. AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 744, p. 725-750, out. 1997. 27 “É preciso, porém, que não se confunda a extinção dos direitos, pretensões, ações e exceções com a prescrição, que nada extingue. A prescrição apenas encobre eficácia da pretensão, ou apenas da ação. Não a elimina”. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, tomo I. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. p. 32. 28 Não obstante o legislador consignar expressamente que a prescrição extingue a pretensão, acreditamos que o seu principal efeito é o de encobri-la, na esteira daquilo que sempre defendeu Pontes de Miranda, consoante exposto em nota anterior. Explicando a exceção no direito alemão, Jan Schapp pontua: “A exceção tem um efeito jurídico atípico. Ela não anula a pretensão formada, mas obsta-a apenas em sua imposição processual”. (Introdução ao Direito Civil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006. p. 64). No mesmo sentido: “La prescripción en el C. c. no es sólo una prescripción de acciones, sino una prescripción de pretensiones, pues la excepción de prescripción no sólo paralisa la acción, sino también el ejercicio de la pretensión mediante excepción o compensación”. ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martín. Tratado de derecho civil – Parte general, tomo II. 2. ed. Barcelona: Bosch, 1950. p. 504. Do mesmo modo: “Aun cuando se oponga a la pretensión una excepción permanente, mediante la cual el oponente a la pretensión puede impedir a perpetuidad la imposición de ésta, la ley considera aún la pretensión como existente”. LARENZ, Karl. Derecho civil – Parte general. Editorial Revista de Derecho Privado: Madrid, 1978. p. 322. 29 Art. 11, CC. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. [sem grifos no original]. Na jurisprudência, consultar: STJ, REsp 807.849-RJ, Segunda Seção, Min. Nancy Andrighi, v.u., DJe 06/08/2010.

direitos da personalidade prescrevem normalmente, eis que veiculam pretensões de natureza patrimonial (direitos subjetivos patrimoniais).30 A estreita relação que liga a prescrição aos direitos subjetivos patrimoniais impõe o reconhecimento de sua natureza privada. E é justamente essa constatação que fortalece o argumento e justifica a disposição legal no sentido de ser possível ao beneficiário da prescrição, comumente o devedor, renunciá-la.31 Consta do art. 191 do Código Civil que a “renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição”. Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes ensinam que a renúncia à prescrição pelo devedor “é um ato unilateral, que independe do consentimento de terceiro, através do qual se processa a extinção de um direito pelo particular”.32 Aliás, é justamente a renunciabilidade da prescrição que autoriza a afirmação de que o seu advento não extingue a pretensão, mas apenas a neutraliza. Isso porque no caso de renúncia, o exercício da pretensão não encontraria nenhum outro obstáculo, cabendo ao julgador reconhecer a sua eficácia e outorgar a tutela jurídica ao credor, muito embora a sua conduta ativa tenha vindo tardiamente, isto é, após o prazo estipulado em lei. Ora, se a prescrição extinguisse a pretensão, a simples consumação do prazo prescricional seria motivo suficiente para o juiz reconhecer o seu advento e, portanto, rechaçá-la na sentença. O processo, como adverte Jan Schapp, é o lugar adequado para que o Estado, por intermédio do Poder Judiciário, possibilite às partes o esclarecimento, com segurança suficiente, das posições de vantagens que ambas alegam possuir, ou seja, defendam a justeza e a procedência das suas pretensões e exceções.33 Esse também é o entendimento de Nelson Nery Jr. e Georges Abboud quando afirmam que “a 30

Com exceção da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que entende serem imprescritíveis as pretensões indenizatórias decorrentes dos danos a direitos da personalidade ocorridos durante o regime militar (STJ, AgRg no Ag 1.428.635-BA, Segunda Turma, Min. Mauro Campbell Marques, v.u., DJe 09/08/2012), a imprescritibilidade dos direitos da personalidade não significa que a pretensão à reparação de danos pode ser exercida ad eternum, estando, portanto, igualmente sujeitas à prescrição (STJ, AgRg no REsp 1.106.715-PR, Primeira Turma, Min. Benedito Gonçalves, v.u., DJe 10/05/2011). 31 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil, v. 1. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 723. 32 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado, v. I. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 363. No direito alienígena: “Para ello (a renúncia) es suficiente la declaración unilateral”. LARENZ, Karl. Derecho civil – Parte general. Editorial Revista de Derecho Privado: Madrid, 1978. p. 322, nota de rodapé 103. 33 SCHAPP, Jan. Introdução ao Direito Civil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006. p. 54.

improcedência ou a procedência são categorias que correspondem à averiguação sobre se existe ou não a pretensão suscitada pelo litigante”.34 Por essa razão, concorda-se, plenamente, com a afirmação de Nelson Rosenvald de que “o devedor só pode renunciar a prescrição, como direito disponível, em virtude da sobrevivência da pretensão do credor, mesmo superado o prazo legal. Se a pretensão fosse extinta pela prescrição, a renúncia do devedor não teria qualquer valor jurídico”.35 Por volta de 1856, Benhard Windscheid36 chamou a atenção, quando ainda reinava verdadeira confusão entre direito processual e direito material, de que a ação seria apenas a via para a pretensão se impor.37 38 A prescrição não fulmina a ação, já que o magistrado, ao reconhecer o advento do prazo, sentencia resolvendo o mérito da lide, nos termos do art. 269, inciso IV, do Código de Processo Civil. Caso a extinção fosse do direito de ação, não teria lógica o julgador ainda perder tempo analisando a existência ou não da pretensão veiculada, bastando a ele “brecar” antecipadamente os anseios da parte.39

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NERY JUNIOR, Nelson; ABBOUD, Georges. Pontes. Pontes de Miranda e o processo civil: a importância do conceito da pretensão para compreensão dos institutos fundamentais do processo civil. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 231, p. 89, mai 2014. 35 ROSENVALD, Nelson. Prescrição: da exceção à objeção. In. FARIAS, Cristiano Chaves de (coord.). Leituras complementares de Direito Civil: o Direito Civil-Constitucional em concreto. Salvador: JusPodivm, 2007. Para Karl Larenz, a prescrição “no es una causa de extinción, sino que sólo fundamenta para el obligado una excepción”. (Derecho civil – Parte general. Editorial Revista de Derecho Privado: Madrid, 1978. p. 328). 36 Die actio des römischen Civilrechts, vom Standpunkte des heutigen Rechts, Düsseldorf. 37 “Nella violazione il diritto reale dà luogo a un diritto verso una determinata persona, verso un obbligato. Per esprimere questa direzione personale, questa tendenza ad assoggettarsi la voluntà altrui, che il diritto manifesta talora particolarmente mediante la violazione, ma che possiede sempre, il Windscheid toglie all’uso comune e sostituisce all’azione il termine Anspruch, che in Italia si è tradotto pretesa o ragione”. CHIOVENDA, Giuseppe. L’azione nel sistema dei diritti. Saggi di diritto processuale civile, volume primo. Milano: Giuffrè, 1993. p. 7-8. 38 “O Direito Processual Civil conhece, além da ação condenatória que obriga a uma pretensão, ainda a ação para a verificação de uma relação jurídica (ação declaratória) e a ação constitutiva. Com a indicação desses dois tipos de ação, não se pode mais questionar a posição dominante da pretensão e daquela que possibilita sua imposição, ou seja, a ação condenatória”. SCHAPP, Jan. Introdução ao Direito Civil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006. p. 55. 39 Ninguém descreveu melhor do que José Carlos Barbosa Moreira a referida inconsistência legal: “O outro reparo concerne à declaração, constante da parte final do art. 189, de que a pretensão ‘se extingue’ pela prescrição. É curioso como a idéia de extinção reluta em sair de cena. O Novo Código Civil, que acertou em afastar a tese da extinção da ação, deixa entrar pela janela o que havia expulsado pela porta. Não é só a ação que a prescrição se revela impotente para extinguir: a pretensão, também. Se assim não fosse, soaria incompreensível o disposto no art. 194, tal como já soaria, sob o diploma de 1916, o art. 166. Sustentará alguém que o órgão judicial, diante de fato que ex hypothesi ‘extinguiu’ a pretensão do autor, haja de dar-lhe ganho de causa, unicamente porque o réu deixou de argüi-lo? Pretensão que se ‘extinguiu’ pode levar alguém à vitória no pleito? Se a pretensão na verdade se houvesse ‘extinguido’, jamais seria razoável, omisso que permanecesse o réu, a desconsideração desse fato pelo juiz, com a eventual emissão de sentença favorável ao autor”. (O novo código civil e o direito processual. In. DIDIER JR, Fredie; MAZZEI, Rodrigo. Reflexos do novo código civil no direito processual. Salvador: Jus Podivm, 2005).

Sendo a prescrição uma exceção substancial, um verdadeiro contradireito,40 ou seja, um direito que determinado sujeito conserva de contrapor-se à pretensão contra si exercitada, e com força suficiente para neutralizá-la, impedindo desse modo a sua plena eficácia,41 a renunciabilidade ressoa como algo inerente e natural, quase como uma consequência inafastável. Tanto é assim que Nelson Rosenvald chega a afirmar que a exceção seria um efeito da prescrição, um novo direito que nasce para o devedor – sem eliminar o do credor – de poder bloquear a pretensão que surgiu após a violação/lesão do seu crédito.42 Por essa razão a renúncia à prescrição equivaleria à abdicação de patrimônio pelo devedor e o acréscimo patrimonial do credor.43 Assim, por ser um ato de disposição, natural que se posicione, como condição para a sua prática, a plena capacidade do sujeito renunciante.44

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A questão não tem relevância quanto aos absolutamente

incapazes, porque contra eles não corre prescrição (art. 198, inciso I, do Código Civil). Contudo, no que tange aos relativamente incapazes, a situação muda de figura, pois a prescrição, nestes casos, não foi obstaculizada pela lei. Em razão do exposto, para que a 40

“La nostra terminologia giuridica, la quale sotto l’unico nome di eccezione riconduce le più diverse forme di difesa del convenuto, non ci permette d’esprimire con una parola, ma ci costringe a indicare con una frase (‘eccezione in senso proprio o sostanziale’) quella particolare forma di difesa, che consiste in un diritto del convenuto, e precisamente in un controdiritto tendente ad impugnare e annulare il diritto d’azione”. CHIOVENDA, Giuseppe. Sulla “eccezione”. Saggi di diritto processuale civile, volume primo. Milano: Giuffrè, 1993. p. 149. Assim também: LARENZ, Karl. Derecho civil – Parte general. Editorial Revista de Derecho Privado: Madrid, 1978. p. 321. 41 Na feliz conclusão de Fredie Didier Jr., “é uma pretensão que se exerce como contraposição à outra pretensão”. (Teoria da exceção: a exceção e as exceções. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 116, p. 54-66, jul/ago 2004). 42 “A prescrição pode ser conceituada como um fato jurídico que cria uma exceção de direito material apta a propiciar ao devedor o poder de paralisar a eficácia da pretensão do credor”. ROSENVALD, Nelson. Prescrição: da exceção à objeção. In. FARIAS, Cristiano Chaves de (coord.). Leituras complementares de Direito Civil: o Direito Civil-Constitucional em concreto. Salvador: JusPodivm, 2007. No mesmo sentido está Andreas v. Tuhr, que afirma ser a exceção que nasce da prescrição consumada renunciável. (Parte general del Derecho Civil. Granada: Comares, 2006. p. 106). Karl Larenz já observou com perfeição: “El sentido de la configuración de un contraderecho (en lugar de la extinción o de la limitación de la pretensión que se produce ipso iure) es que la ley deja la decisión del titular de la excepción el cumplimiento de la pretensión no obstante el supuesto de hecho de la excpeción, el dejar que se pronuncie en contra suya la condena, en caso de subsistir la pretensión, o el hacer uso de la posibilidad que se le ofrece con el contraderecho”. (Derecho civil – Parte general. Editorial Revista de Derecho Privado: Madrid, 1978. p. 322). 43 “A renúncia é, como se disse, um ato de vontade. Por ela, o titular de uma prescrição, que é um direito, pode abdicar da sua faculdade de excepcionar o seu débito, continuando a ele vinculado”. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil, v. I. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996. p. 573. 44 Dispõe o art. 2.937 do Código Civil italiano que “non può rinunziare alla prescrizione chi non può disporre validamente del diritto”. 45 “La rinuncia del debitore a far valere la prescrizione del credito, come il suo riconoscimento, costituisce un atto proprio del soggetto in favore del quale è predisposto il termine prescrizionale e presuppone la capacità d’agire del renunciante; questi soltanto, o un suo reppresentante, può esprimere la voluntà abdicativa degli effetti dela prescrizione”. CIAN, Giorgio; TRABUCCHI, Alberto. Commentario breve al Codice Civile. 10. ed. Padova: Cedam, 2011. p. 3.796.

renúncia à prescrição levada a cabo pelo relativamente incapaz seja considerada válida, premente a participação do seu representante legal, na condição de assistente, sem o qual o ato seria anulável.46 Ademais, importante asseverar, ainda, que o legislador não pretendeu dificultar a renúncia à prescrição, até porque diz respeito, exclusivamente, a interesses patrimoniais do sujeito renunciante. Por ser considerada verdadeira exceção (matéria de defesa), a renúncia pode se dar de duas maneiras e sem maiores formalidades: (a) expressa ou (b) tacitamente.47 Na renúncia expressa há uma manifestação clara do beneficiário da prescrição no sentido de não pretender dela gozar. Já a tácita consiste na prática de um ato incompatível com a vontade de valer-se da prescrição (por exemplo: o reconhecimento da dívida; a promessa de pagamento; o próprio pagamento, desde que tais atos sejam realizados com conhecimento a respeito da consumação da prescrição). Todavia, e é natural que assim seja, só se pode abrir mão daquilo que se tem, razão pela qual a lei veda a renúncia antecipada à prescrição.48

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E para preservar essa

proibição, a norma também impõe uma restrição à vontade das partes, impedindo que eventual acordo entre credor e devedor pudesse alargar ou reduzir os prazos prescricionais estipulados expressamente na lei.50 51 Na visão de Serpa Lopes, o fato de alguns aspectos da prescrição estarem subtraídos à vontade das partes – e no domínio da renúncia essa limitação fica nitidamente marcante quanto à exigência de transcurso do lapso prescricional, a 46

SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil, v. I. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996. p. 574. No mesmo sentido: CIAN, Giorgio; TRABUCCHI, Alberto. Commentario breve al Codice Civile. 10. ed. Padova: Cedam, 2011. p. 3.793. 47 “La excepción de prescripción, como otras excepciones independientes, puede ser renunciada mediante una declaración unilateral recepticia no sujeita a forma”. ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martín. Tratado de derecho civil – Parte general, tomo II. 2. ed. Barcelona: Bosch, 1950. p. 537. 48 “A renúncia à prescrição já consumada se justifica porque os benefícios dela decorrentes já foram incorporados ao patrimônio do devedor, que agora pode dispor dessa condição”. TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado, v. I. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 363. 49 “La ratio del divieto di rinuncia preventiva alla prescrizione consiste nella necessità di evitare che la rinuncia medesima diventi una clausola recorrente nei negozi giuridici, frustrando in tal modo la funzione di ordine pubblico dell’istituto”. CIAN, Giorgio; TRABUCCHI, Alberto. Commentario breve al Codice Civile. 10. ed. Padova: Cedam, 2011. p. 3.796. 50 Art. 192, CC. Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes. A vedação no direito italiano é mais abrangente, como expõe o art. 2.936: È nullo ogni patto diretto a modificare la disciplina legale dela prescrizione. 51 “A justificativa a esta impossibilidade de mudança dos prazos prescricionais pela vontade das partes reside no fato de que a sua alteração implicaria, por vias transversas, em uma renúncia antecipada à prescrição, o que é vedado pela legislação”. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil, v. 1. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 724.

imutabilidade dos prazos e a vedação se feita em prejuízo de terceiro –, ela não perde o caráter de ordem privada. Para o autor carioca, esse núcleo que escapa à autonomia da vontade toca diretamente ao interesse social inerente ao instituto, vocacionado a gerar estabilidade às relações sócio-jurídicas.52 O liame entre o interesse particular e o interesse geral foi igualmente percebido por Ennerccerus, Kipp e Wolff: “Ahora bien, este interés general y público de la seguridade del derecho concuerda con el interés del particular y, por tanto, es suficiente que se ponga en manos de cada cual un medio de proteción”.53 Porém, os autores alemães entendem que o aspecto social do instituto não é suficiente para retirar seu matiz privado.54 O fato da renunciabilidade da prescrição, que não pode ser contestada diante do que dispõe o art. 191 do Código Civil, sacramenta a sua natureza jurídica privatística, plenamente disponível, principalmente porque afeta tão-somente direitos subjetivos patrimoniais.

4. COGNOSCIBILIDADE

Como o próprio título revela, o presente estudo procura compatibilizar a renunciabilidade, que marca a prescrição em razão da sua natureza jurídica privada e de exceção substancial, e o regime de cognoscibilidade dispensado ao instituto durante o iter processual, aparentemente, em contraposição à natureza jurídica apontada anteriormente. Impende reconhecer, antes de qualquer aprofundamento sobre o tema, que o regime adotado pelo diploma processual a respeito da prescrição pode variar no tempo e ser influenciado pelo momento histórico, não estando atrelado a uma essência inerente

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SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil, v. I. 8. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996. p. 573. 53 ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martín. Tratado de derecho civil – Parte general, tomo II. 2. ed. Barcelona: Bosch, 1950. p. 502. 54 Há, como se sabe, outros institutos do direito privado que têm uma função social, mas que não deixam de ter caráter marcadamente privado, como o contrato e a propriedade. Ambos são objeto de dirigismo privado (intervenção do estado em figuras de direito privado, justamente para assegurar um fim social). Pode-se afirmar, portanto, que as limitações à autonomia privada dentro da prescrição nada mais são do que intervenções do Estado, a fim de conferir à prescrição uma função social, que seria a de assegurar a estabilidade das relações jurídicas. Daí ser permitido colocar a prescrição ladeada às duas outras figuras mencionas, historicamente de direito privado, mas que com a diluição da dicotomia entre publico e privado (publicização do direito privado, constitucionalização do direito privado), ganharam contornos de direito público, sem perder a característica original.

ao próprio instituto. Faz parte, a prescrição, portanto, dos conceitos jurídico-positivos55 que se diferem dos conceitos lógico-jurídicos porque para aqueles não há “uma disciplina jurídica única e imutável”, não podendo ser encontrado nesses conceitos “elementos invariáveis, que compusessem uma espécie de essência imprescindível do objeto definido”.56 Por essa razão, Pontes de Miranda afirma que o “instituto da prescrição é de direito positivo. Se havia e há fundamento para êle, ou se é necessário à vida depois de se chegar a certo grau de civilização, é outra questão”.57 A prova dessa afirmação – de que o tema da prescrição deve ser remetido ao direito positivo – reside na própria alteração do regime jurídico e dos prazos prescricionais proporcionadas pelo advento do Código Civil de 2002. Assim, o regime de cognoscibilidade da prescrição no curso do procedimento variou consideravelmente no direito brasileiro, e poderá variar, segundo as opções político-legislativas, desde que não afetem a estrutura sistemática do ordenamento como um todo. Tal constatação foi a causa motriz de dividir a exposição, nesse particular, em dois momentos distintos: o ontem (sistema anterior) e o hoje (sistema atual).

4.1 Sistemática Anterior

A prescrição é instituto jurídico híbrido, que tanto toca ao direito material, quanto ao processual. Por conta desta circunstância, sua função social ganha ainda mais destaque, eis que adjetivada também por sua origem processual e seu intrínseco objetivo de pacificação social dos conflitos. A prescrição tem, por assim dizer, uma dupla função social, qual seja, a de estabilização das relações sociais, de segurança jurídica das situações cristalizadas pelo tempo e a de pacificação social dos conflitos.58

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DIDIER JR, Fredie. Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida. Salvador: Jus Podivm, 2012. p. 40. 56 “O conceito jurídico fundamental (lógico-jurídico, jurídico próprio ou categorial) é aquele construído pela Filosofia do Direito (é uma das tarefas da Epistemologia Jurídica), com a pretensão de auxiliar a compreensão do fenômeno jurídico onde e quando ele ocorra. Tem pretensão de validez universal. Serve aos operadores do Direito para a compreensão de qualquer ordenamento jurídico determinado”. DIDIER JR, Fredie. Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida. Salvador: Jus Podivm, 2012. p. 42. 57 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, tomo VI. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. p. 100. 58 “A prescrição interessa diretamente à ordem pública, é editada para atender um fim de harmoniae paz social, imposto pela ordenação jurídica, de sorte que não pode ser ilidida pela convenção entre particulares”. RODRIGUES, Silvio. Direito civil - Parte Geral, Volume I. São Paulo. Saraiva 32. ed. 1999. p. 332.

A variação verificada na disciplina jurídica do instituto nos últimos anos demonstra com bastante clareza esse viés de operabilidade social da prescrição. Claramente, o instituto é instrumento de política legislativa – o que reitera sua posição de destaque no ordenamento e sua classificação como conceito jurídico-positivo. Para a melhor compreensão da controvérsia, necessário revisitar a fundamentação legal da prescrição em três momentos: no Código Civil de 1916, no Código Civil de 2002 e nas alterações implementadas no Código de Processo Civil, pela Lei nº. 11.280/06, que findaram por revogar o art. 194 do Código Civil – aquele que previa a vedação de cognoscibilidade ex officio pelo juízo. No Código Civil de 1916, o correspondente ao art. 16659 era o hoje revogado art. 19460. Com algumas distinções, o referido preceptivo impunha ao juízo a vedação de conhecimento de ofício da prescrição, se não invocada pelas partes. Com o advento do Código Civil de 2002, passou-se a prever uma exceção à regra da vedação ao conhecimento de ofício da prescrição: o interesse de incapaz. Tratou-se de providência acertada e em harmonia com o art. 198, inciso I61, do Código Civil. De fato, o incapaz não possui discernimento para os atos da vida civil. Assim, não teria como suscitar a prescrição em juízo. Tomando como premissa o fato de que esta devia ser alegada pelas partes, diante da vedação expressa de conhecimento de ofício pelo juiz, plenamente justificável a regra do conhecimento de ofício apenas em favor do absolutamente incapaz.62 Merece comentário também a supressão da expressão “direito patrimoniais” da codificação de 1916 para a de 2002. A regra é a prescritibilidade das pretensões, correlatas aos direitos patrimoniais.63 Quando o legislador de 1916 se referia aos direitos não-patrimoniais, quis fazer referência àqueles personalíssimos, imprescritíveis por sua própria essência.64 65 Também são imprescritíveis as ações de estado de família 59

Art. 166, CC16. O juiz não pode conhecer da prescrição de direitos patrimoniais, se não for invocada pelas partes. 60 Art. 194. O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz. (Revogado pela lei 11.280/06). 61 Art. 198. Também não corre a prescrição: I - contra os incapazes de que trata o art. 3º; 62 “Como a regra geral é a de que a prescrição tem de ser suscitada pela parte, e o absolutamente incapaz não tem discernimento para os atos da vida civil, a proteção conferida se insere como norma protetora, porque só pode vir a ser conhecida a incapacidade no curso do processo, hipótese em que é mais econômico e eficaz o reconhecimento de ofício.” LOTUFO, Renan. Código Civil Comentado: parte geral, volume I (arts. 1º a 232). São Paulo: Saraiva, 2003. p 528. 63 “(...) a imprescritibilidade é excepcional (...)”. PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de Direito Privado. Título V. Forense: Rio de Janeiro, 1975. p. 164. 64 ROSENVALD, Nelson. CHAVES, Cristiano. Direito civil, v. 1. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 720.

e os direitos potestativos, que perdurem enquanto mantida a situação jurídica autorizadora (direito de vizinhança).66 A disciplina legal dos institutos que detém tais características, expressamente prevendo a imprescritibilidade no caso dos direitos da personalidade, tornou dispensável a expressão “direitos patrimoniais”. No que toca à possibilidade de conhecimento ex officio pelo juízo (sem a alegação da parte), a doutrina contemporânea ao Código Civil de 1916 tinha o uníssono entendimento de que tal prática era proibida. Nesse sentido, Orlando Gomes,67 Silvio Rodrigues,68 Caio Mario69 e Serpa Lopes.70 O mesmo se verifica em direito comparado. Na experiência italiana71 e na portuguesa,72 também era vedado o conhecimento de ofício pelo juízo, sem provocação pela parte.73 Válida a lição de Marcel Planiol e Georges Ripert a respeito do direito 65

“A regra geral é ser toda ação prescritível. A prescrição refere-se a todos os direitos indistintamente. Essa é a noção inferida do art. 205 (antigo art. 179) do Código. A regra, porém, não é absoluta. Há relações jurídicas incompatíveis, inconciliáveis, por sua própria natureza, com a prescrição ou decadência. Desse modo, não se acham sujeitos a limite de tempo e não se extinguem pela prescrição os direitos da personalidade, como a vida, a honra, o nome, a liberdade, a nacionalidade. Também não prescrevem as chamadas ações de estado de família, como a ação de separação judicial, a investigação de paternidade, etc.”. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil, volume I. São Paulo: Atlas, 2003. p. 616-617. 66 Art. 1.320, CC02; Art. 1.332, CC02; Art. 1.327, CC02. 67 “A prescrição somente se decreta se o interessado a argúi, não podendo ser pronunciada ex officio”. GOMES, Orlando. Curso de direito civil, volume 1. 5. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1977. p. 560. 68 “Representando a prescrição um benefício concedido a uma pessoa, o juiz só pode decretá-la se expressamente invocada”. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, volume 1. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 334. 69 “Como exceção ou defesa, a prescrição não opera pleno iure nos direitos de natureza patrimonial. Requer invocada pela pessoa a quem beneficia, e só à solicitação da parte pode o juiz decretá-la”. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 592. 70 “O Código de Processo Civil não se referiu diretamente ao problema da prescrição. O Código Civil, porém, estabeleceu disposições eminentemente pertinentes ao campo processual. No direito positivo italiano, o atual Código Civil procedeu do mesmo modo, disciplinando a prescrição, até mesmo no seu aspecto processual. A regra de caráter processual contida no nosso Código Civil é a que proíbe o juiz de conhecer da prescrição de direitos patrimoniais, se não foi invocada pelas partes. Por conseguinte, a matéria de prescrição pertence exclusivamente às partes nela interessadas. Deixando de opô-la, a prescrição cessa de ser um elemento da causa. Inaplicável é aqui a regra iura novit et curia, pois esta é relativa tão-só às regras de direito e não à matéria de fato”. SERPA LOPRES, Miguel Maria de. Curso de Direito civil, volume I. 7. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1989. p. 506. 71 “Mas porque, por outro lado, a lei proíbe ao juiz que supra ex-officio o silêncio do interessado, que não opôs a prescrição (art. 2.109 do c.c. e art. 2.938 do C.C), é sempre necessário que ela seja invocada por aquêle a quem beneficia, não tendo efeitos se o não fôr, o que pode ser feito a qualquer tempo, mesom em primeiro recurso, desde que quem tem direito a opô-la não tenha a ela renunciado (art. 2.110 do c.c. e art. 2.937 do C.C)” RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil, Volume 1. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1971. p. 296. 72 “O juiz não pode declarar ex officio a prescrição, mesmo que tenha num processo elementos para isso. É necessário pois que o réu manifeste a sua vontade de se valer da prescrição (art. 515º)”. ANDRADE, Manuel Domingues de. Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II. Coimbra: Livraria Almedina, 1983. p. 454. 73 Para além dos já mencionados, Alexandre Câmara elenca diplomas estrangeiros que vedam o reconhecimento de ofício pela prescrição (Reconhecimento de ofício da prescrição: Uma reforma descabeçada e inócua, trabalho publicado na rede mundial de computadores, in

francês: “La ley prohibe al juez el hacer valer de oficio, la excepción de prescripción. Aun cuando el término prescriptivo hubiese transcurrido, el juez tendrá que condenar al deudor si éste no lo alega. La prescripción tendrá que ser alegada por el deudor en sus conclusiones no quedando liberado sino cuando proceda a alegar tal fundamento em su defensa”.74 O caráter eminentemente privado da prescrição não escapou ao Superior Tribunal de Justiça, podendo ser contabilizados inúmeros arestos onde consta expresso na ementa não tratar, a prescrição, de matéria de ordem pública: “(...). Não sendo a prescrição de direitos materiais matéria de ordem pública, mas sim de ordem patrimonial, é inadmissível seu conhecimento ex officio pelo magistrado monocrático ou Tribunal, a teor do art. 166, do Código Civil c/c art. 219, § 5º, do Estatuto Processual Civil”.75 Todavia, no ano em que foi aprovado o Código Civil atual já podia ser sentida uma ligeira mudança na forma de analisar a prescrição, tanto é verdade que o Superior Tribunal de Justiça passou a proferir decisões apontando o caráter de matéria de ordem pública do instituto. Segue o trecho da ementa que interessa à pesquisa: “(...). II - Por se

http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Alexandre%20F%20C%C3%A2mara-%20formatado.pdf, acesso em 9/8/2014). 74 PLANIOL, Marcel; RIPERT, Georges. Tratado practico de derecho civil frances, tomo VII. Havana: Cultural S.A., 1945. p. 721. No alemão: “(...) la prescripción ofrece al deudor del crédito prescrito, por tanto, solamente la posibilidad de impedir, por el ejercicio de la excepción, que se imponha aquél en el processo”. LARENZ, Karl. Derecho civil – Parte general. Editorial Revista de Derecho Privado: Madrid, 1978. p. 340. 75 STJ, REsp 230.528-RS, Quinta Turma, Min. Jorge Scartezzini, v.u., DJ 02/05/2000. Outros exemplos podem ser mencionados: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. EFEITO INFRINGENTE. EXCEPCIONALIDADE. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. PRESCRIÇÃO DE ORDEM. PATRIMONIAL. RECONHECIMENTO ‘EX OFFICIO’. IMPOSSIBILIDADE. I - Os embargos de declaração devem atender aos seus requisitos, quais sejam, suprir omissão, contradição ou obscuridade. Os efeitos modificativos somente são concedidos ao recurso integrativo em casos excepcionalíssimos, respeitando-se, ainda, o indispensável contraditório e ampla defesa. II - Na hipótese, a matéria tratada no mandado de segurança não é de ordem pública, e sim patrimonial, motivo pelo qual não é vedado seu conhecimento de ofício, sem invocação das partes, consoante disposto no art. 166 do Código Civil c/c art. 219, § 5º do Código de Processo Civil. Precedentes: RESP nº 230528/RS, Rel. Min. Jorge Scartezzini e RESP nº 231415/RO, Rel. Min. Garcia Vieira. III - Embargos de declaração parcialmente acolhidos, a fim de emprestar-lhes efeito infringente, afastando a prescrição patrimonial reconhecida de ofício e determinando o retorno dos autos ao Tribunal de origem, para que o mesmo adentre ao exame do mérito, sob pena de supressão de grau de jurisdição” (STJ, EDcl no RMS 10.485CE, Quinta Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, v.u., DJ 25/06/2001). (sem grifos no original); “PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. MATÉRIA DE DEFESA: PRÉ-EXECUTIVIDADE. PRESCRIÇÃO. 1. Doutrinariamente, entende-se que só por embargos é possível defender-se o executado, admitindo-se, entretanto, a exceção de pré-executividade. 2. Consiste a pré-executividade na possibilidade de, sem embargos ou penhora, argüir-se na execução, por mera petição, as matérias de ordem pública ou as nulidades absolutas. 3. A tolerância doutrinária, em se tratando de execução fiscal, esbarra em norma específica que proíbe a pré-executividade (art. 16, § 3º, da LEF). 4. A prescrição, por ser direito disponível, não pode ser reconhecida fora dos embargos. 5. Recurso provido” (STJ, REsp 229.394-RN, Segunda Turma, Min. Eliana Calmon, v.u., DJ 24/09/2001). (sem grifos no original).

tratar de matéria de ordem pública, a prescrição pode ser alegada em qualquer fase do processo, nas instâncias ordinárias. Precedentes”.76 O tratamento legal conferido à prescrição no Código Civil de 2002 manteve a sistemática do Código Civil de 1916, no concernente à proibição ao conhecimento de ofício pelo juízo e à possibilidade de renúncia pelo devedor, inclusive no que diz respeito ao tratamento legal conferido pelo Código de Processo Civil. Percebe-se, assim, que não ocorreu nenhuma modificação no tema da prescrição após o advento do novo diploma. Na verdade, houve sim uma consolidação das suas bases, mediante a alteração do seu conceito, para tratar a prescrição como causa da extinção da pretensão e não do direito material e/ou da ação processual.77 A sistemática anterior à Lei nº. 11.280/200678 estabelecia, na redação do art. 219, § 5º, do Código de Processo Civil, que “não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato”.79 O preceptivo guardava perfeita harmonia com as normas de direito material, no que toca ao fim social do instituto, qual seja, o de emprestar caráter de estabilidade às relações sociais, respeitando sua essência privatista, e garantindo ao devedor a possibilidade de, querendo, quitar sua dívida ainda que esta já estivesse prescrita. A explosão de exceções de pré-executividades que afloraram no Superior Tribunal de Justiça, justamente para que o tribunal opinasse a respeito da possibilidade de o devedor alegar, em seu bojo, a ocorrência do fenômeno da prescrição, contribuiu para o surgimento da corrente vitoriosa, que alargava o espectro de cabimento da medida, para admitir aos réus, por meio da exceção, a alegação não só de matérias de ordem pública

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STJ, REsp 328.973/SP, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, v.u., julgado em 19/11/2002, DJ 19/12/2002. 77 A prova irrefutável dessa alegação pode ser constatada na leitura de ementas de julgados posteriores ao advento do Código Civil de 2002: “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. LEIS 8622/93 E 8627/93. ART. 535 CPC. VIOLAÇÃO INEXISTENTE. PRESCRIÇÃO. DIREITO PATRIMONIAL. ALEGAÇÃO SOMENTE EM SEDE DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE OFÍCIO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. DISSÍDIO PRETORIANO NÃO COMPROVADO. (...). 4 – A regra contida no art. 162, do Código Civil, acerca da prescrição, deve ser interpretada de forma restritiva, pois esta somente pode ser alegada em qualquer fase processual meritória, ou seja, naquelas em que o decisum pode ser modificado, de forma infringente, em seu conteúdo. Impossibilidade de pleitear-se esta na via declaratória. 5 – Não sendo a prescrição de direitos materiais matéria de ordem pública, mas sim de ordem patrimonial, é inadmissível seu conhecimento ex officio pelo magistrado monocrático ou Tribunal, a teor do art. 166, do Código Civil c/c art. 219, parág. 5º, do Estatuto Processual Civil. 6 - Recurso conhecido, nos termos acima expostos, porém desprovido” (STJ, REsp 544.260/PA, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quinta Turma, v.u., julgado em 25/05/2004, DJ 02/08/2004). 78 Art. 219, § 5.º, CPC. Não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato. (Revogado pela lei nº. 11.280/2006) 79 Como já se viu, possuía redação similar o art. 166 do Código Civil de 1916.

(ou seja, cognoscíveis ex officio), mas também daquelas que não demandassem dilação probatória, grupo no qual se encaixava, à perfeição, a alegação defensiva da prescrição. De acordo com esse entendimento, a prescrição não deixava de versar sobre um assunto relacionado ao direito privado e, portanto, disponível; contudo, a economia processual serviu de fundamento para admitir a alegação de matéria fática na exceção de pré-executividade, dês que comprovada de plano.80 Porém, ainda no ano de 2005, o Superior Tribunal de Justiça começou a se utilizar da prescrição como técnica de aceleração processual e de extinção de processos em série. Ou seja, passou a admitir, empregando um raciocínio não ortodoxo, que o advento da prescrição intercorrente (isto é, no curso do processo) tornaria o crédito inexigível, fazendo surgir, assim, a falta de interesse processual superveniente. Como o interesse processual é caracterizado como uma condição da ação, a prescrição, por via transversa, passou a ser reconhecida ex officio, nos termos do art. 267, § 3º, e art. 301, § 4º, ambos do diploma processual.81 Tais julgados estavam vincados na alteração ocorrida na execução fiscal, fruto da edição da Lei nº. 11.051, de 30 de dezembro de 2004, que acrescentou ao art. 40 da sobredita lei o § 4º, possibilitando ao juiz da execução a decretação de ofício da prescrição intercorrente.82 Esta configuração, com a ressalva da execução fiscal, subsistiu até o advento da Lei nº. 11.280/2006, que alterou o art. 219, § 5º do Código de Processo Civil para prever a possibilidade de conhecimento ex officio83 da prescrição, sem qualquer ressalva.84 80

“PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. PRESCRIÇÃO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. INTERRUPÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL. DIVERGÊNCIA ENTRE O CTN, CPC E A LEF 1. Em princípio, somente as questões de ordem pública, identificadas como objeções, podem ser argüidas como exceção de pré-executividade, dispensando os embargos, tais como: nulidade absoluta, pagamento, decadência, etc. 2. A prescrição, como exceção, está elencada como passível de argüição só por embargos. Entretanto, em nome da economia processual, quando a matéria fática estiver comprovada de plano, tem a jurisprudência admitido seja argüida em exceção de pré-executividade. 3. A jurisprudência desta Corte deixou assentado o entendimento de que é a citação o ato que interrompe a prescrição, mesmo diante da LEF, que atribui ao despacho do juiz tal efeito. 4. Prevalência do CPC e do CTN sobre a norma contida na LEF 5. Recurso especial improvido. (STJ, REsp 595.979/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, v.u., julgado em 07/04/2005, DJ 23/05/2005). 81 STJ, AgRg no REsp 677.000/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 14/06/2005, DJ 27/06/2005. 82 Art. 40, § 4o, Lei 6.830/81. Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato. 83 Art. 219, § 5º, CPC. O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição. 84 Desde 1991, a Lei nº. 8.112/90 trata a prescrição do direito de petição (Art. 104. É assegurado ao servidor o direito de requerer aos Poderes Públicos, em defesa de direito ou interesse legítimo), que ocorrerá no prazo de 05 (cinco) anos ou 120 (cento e vinte) dias (Art. 110. O direito de requerer

Em suma, do cotejo dos três momentos, conforme a proposta inicial, nota-se com razoável facilidade uma guinada extrema na interpretação dos dispositivos legais que regulamentam a prescrição, subjacente às alterações legislativas, a escancarar seu uso (quiçá subversivo) como instrumento de política legislativa e de redução de processos.

4.2 Sistemática Atual

Consoante salientado acima, a Lei nº. 11.280/2006 alterou o disposto no § 5º do art. 219 do Código de Processo Civil, dando ao dispositivo legal nova redação. O atual preceptivo enuncia, agora, caber ao juiz pronunciar, de ofício, a prescrição. A doutrina civilista não recebeu a inovação com entusiasmo, ao ponto de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Faria advertirem que a proposta revela a tentativa reprovável da ciência jurídica de tentar “transformar o quadrado em redondo e o preto em branco”. Afirmam, ainda, que a prescrição, por tocar interesses patrimoniais e ter natureza disponível, não se coaduna com o seu conhecimento “ex officio”.85 Há, inclusive, doutrina que defende a inconstitucionalidade da modificação legal, sob o argumento, plenamente defensável, de que a intervenção do Estado nas relações privadas patrimoniais não pode afrontar o art. 170 da Carta Constitucional. Assim, admitir o reconhecimento da prescrição pelo juiz, independente da alegação da parte a quem aproveita, importaria em permitir a intervenção do estatal onde não há desequilíbrio algum a justificá-la.86

prescreve: I - em 5 (cinco) anos, quanto aos atos de demissão e de cassação de aposentadoria ou disponibilidade, ou que afetem interesse patrimonial e créditos resultantes das relações de trabalho; II em 120 (cento e vinte) dias, nos demais casos, salvo quando outro prazo for fixado em lei), como matéria de ordem pública, impossibilitando a sua renúncia por parte da Administração (Art. 112. A prescrição é de ordem pública, não podendo ser relevada pela administração). 85 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil, v. 1. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 736. Críticas mais contundentes, porém totalmente procedentes, podem ser lidas no artigo de Alexandre Câmara já aqui mencionado: Reconhecimento de ofício da prescrição: Uma reforma descabeçada e inócua, trabalho publicado na rede mundial de computadores, in http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Alexandre%20F%20C%C3%A2mara-%20formatado.pdf, acesso em 9/8/2014. 86 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo – ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 25, p. 280-296, jan./mar. 2006. Alexandre Câmara defende a inconstitucionalidade também por outro fundamento: a incoerência que a mudança causou no sistema jurídico brasileiro. (Reconhecimento de ofício da prescrição: Uma reforma descabeçada e inócua, trabalho publicado na rede mundial de computadores, in http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Alexandre%20F%20C%C3%A2mara%20formatado.pdf, acesso em 9/8/2014).

Forçoso concluir, diante do fato da modificação legislativa, que a prescrição, sem nenhuma ressalva, pode ser, hoje, reconhecida de ofício pelo juiz. Podem ter motivado o legislador fatores externos ao direito material e ao processo.87

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O acúmulo de processos nos tribunais tem se apresentado como o

“calcanhar de Aquiles” da Justiça, desacreditando o próprio Poder Judiciário. No afã de remediar esse singular momento, pretendeu o legislador, com uma única tacada, “limpar” os escaninhos dos fóruns e tribunais (é a utilização “torta” da prescrição, como técnica de redução de processos). Todavia, a escolha por uma solução não pode prescindir da avaliação de todas as suas consequências e dos efeitos colaterais que causará. As motivações do legislador, boas ou más, dificilmente serão fidedignamente apreendidas, não importa o esforço que se faça. Por tal razão, a doutrina deve se preocupar em traçar o roteiro prático que a inovação irá surtir na “vida do direito”. Quais implicações a cognoscibilidade de ofício da prescrição pode suscitar no plano processual e material? Sem pretensão de esgotar o assunto, tendo em conta a sistemática atual, far-se-á uma análise do porvir. Proposta uma demanda, caberá ao órgão julgador ao analisar a petição inicial, agora liberado pelas amarras do art. 128 do diploma processual89 – que o impedia de conhecer de questões, não suscitadas, que demandavam alegação da parte –, verificar se a pretensão exercida encontra-se fulminada pela prescrição, antes mesmo de determinar a citação do réu. Caso constate o advento da prescrição, deverá, ipso facto, reconhecê-la

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“Fica claro que o legislador reformista julgou que, para se atingir a efetividade do processo, necessário se faria conceder ao juiz a faculdade de, em se deparando com o decurso do lapso temporal prescricional, declarar ipso facto a inexigibilidade do direito trazido à sua cognição”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo – ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 25, p. 280-296, jan./mar. 2006. 88 Alexandre Câmara suscita, ainda, que tal inovação surgiu para beneficiar a Fazenda Pública. Para tanto, transcreve a seguinte passagem de Ciro José de Andrade Arapirada: “Decerto, quem mais beneficiar-se-á com a alteração legislativa será a Fazenda Pública, principal prejudicada com a anterior mudança que obstara o reconhecimento em casos relativos a direitos indisponíveis, porque o magistrado poderá suprir a não-alegação por parte dos procuradores judiciais daquela, visto que a quantidade de processos instaurados nos quais a mesma figura como parte é enorme e não há como se ter um controle absoluto sobre todos os prazos prescricionais” (Reconhecimento de ofício da prescrição: Uma reforma descabeçada e inócua, trabalho publicado na rede mundial de computadores, in http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Alexandre%20F%20C%C3%A2mara-%20formatado.pdf, acesso em 9/8/2014). 89 Art. 128, CPC. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.

de ofício, indeferindo de plano a inicial e extinguindo processo com o julgamento do mérito.90 Sobre o tema, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça: “(...) para ser decretada a prescrição de ofício pelo juiz, basta que se verifique a sua ocorrência, não mais importando se refere-se a direitos patrimoniais ou não, e desprezando-se a oitiva da Fazenda Pública. Concedeu-se ao magistrado, portanto, a possibilidade de, ao se deparar com o decurso do lapso temporal prescricional, declarar, ipso fato, a inexigibilidade do direito trazido à sua cognição”.91 A incongruência92 que existia entre os art. 267, caput, o art. 295, IV, e o art. 269, IV, todos do Código de Processo Civil, fica, assim, superada: todas as matérias constantes do art. 295 podem ser conhecidas de ofício, de modo a motivar a extinção do processo prematuramente (indeferimento da inicial); contudo, as elencadas no inciso IV produzem a extinção do processo com resolução do mérito, impedindo a repropositura da ação, eis que o decisum resta protegido pela qualidade de imutabilidade que decorre da coisa julgada.

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Art. 295, CPC. A petição inicial será indeferida: (...) IV - quando o juiz verificar, desde logo, a decadência ou a prescrição (art. 219, § 5o); Art. 269, CPC. Haverá resolução de mérito: (...) IV - quando o juiz pronunciar a decadência ou a prescrição; 91 STJ, REsp 836.083/RS, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, julgado em 03/08/2006, DJ 31/08/2006. No mesmo sentido: “PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. FEITO PARALISADO HÁ MAIS DE 5 ANOS. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. DECRETAÇÃO DE OFÍCIO. ART. 219, § 5º, DO CPC (REDAÇÃO DA LEI Nº 11.280/2006). DIREITO SUPERVENIENTE E INTERTEMPORAL. (...). 5. Id est, para ser decretada a prescrição de ofício pelo juiz, basta que se verifique a sua ocorrência, não mais importando se refere-se a direitos patrimoniais ou não, e desprezando-se a oitiva da Fazenda Pública. Concedeu-se ao magistrado, portanto, a possibilidade de, ao se deparar com o decurso do lapso temporal prescricional, declarar, ipso fato, a inexigibilidade do direito trazido à sua cognição. 6. Por ser matéria de ordem pública, a prescrição há ser decretada de imediato, mesmo que não tenha sido debatida nas instâncias ordinárias. In casu, tem-se direito superveniente que não se prende a direito substancial, devendo-se aplicar, imediatamente, a nova lei processual” (STJ, REsp 836.083/RS, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 03/08/2006, DJ 31/08/2006). (sem grifos no original); “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. IPTU. PRESCRIÇÃO DOS CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS ANTERIORMENTE AO AJUIZAMENTO DA AÇÃO FISCAL. DECRETAÇÃO DE OFÍCIO DA PRESCRIÇÃO. LEGALIDADE. INEXIGIBILIDADE DA CDA. POSSIBILIDADE DE INDEFERIMENTO DA INICIAL. 1. A prescrição pode ser decretada pelo juiz ex officio por ocasião do recebimento da petição inicial do executivo fiscal, sem necessidade de proceder à ordenação para citação do executado, porquanto configurada causa de indeferimento liminar da exordial, nos termos do art. 295, IV, c/c art. 219, § 5º, do CPC, bem assim de condição específica para o exercício do direito da ação executiva fiscal, qual seja, a exigibilidade da obrigação tributária materializada na CDAI” (STJ, REsp 987.257/RJ, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, v.u., julgado em 15/04/2008, DJe 14/05/2008). (sem grifos no original). 92 A incongruência revelava-se na impossibilidade de conhecimento de ofício da prescrição (art. 168, CC16 e art. 219, § 5º, CPC) e a autorização, concedida pelo art. 295, IV, para o juiz indeferir a inicial com fundamento na prescrição.

Quis o legislador, portanto, emprestar à prescrição o mesmo regime adotado pela decadência e preclusão,93 na esperança de agilizar o procedimento, fulminando os processos em curso de forma peremptória. Quase concomitante à modificação operada na cognoscibilidade da prescrição, foi incluído o art. 285-A no Código de Processo Civil94. Mutatis mutandis, o objetivo é quase o mesmo, permitir ao julgador frear, no nascedouro, determinados direitos/pretensões infundados. Vale mencionar, ainda, que a regra da eventualidade95 será ligeiramente abrandada, uma vez que passará a ser possível ao réu alegar, a qualquer tempo e grau de jurisdição, o advento da prescrição. Isso porque o art. 303 do CPC, diz ser lícito ao réu, após a contestação, deduzir novas alegações quando competir ao juiz conhecer delas de ofício.96 O último ponto que merece destaque é o fato de que a inovação, em tese, afetou a renunciabilidade processual da prescrição. Com a sistemática processual atual a renúncia deverá ser, sempre, extraprocessual, ou seja, acontecer fora do plano do processo. Ou o devedor renuncia a prescrição após o transcurso do prazo, mas antes do processo, permitindo ao credor juntar o documento em que conste a renúncia com a inicial, impossibilitando seu reconhecimento ex officio; ou o devedor, após a prolação de sentença desfavorável ao credor, apontando a prescrição do crédito, resolve, mesmo assim, realizar o pagamento da dívida, não obstante a eficácia da coisa julgada ter operado.97

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“Diversamente se passa com a decadência, ou preclusão, na terminologia pontiana, cuja conseqüência é a extinção do direito em si – mais precisamente, de todos os efeitos irradiados do fato jurídico. Por extinguir de plano o próprio direito, não opera como exceção, e por isso pode ser reconhecida ex officio pelo juiz, independentemente da vontade do suposto obrigado”. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo – ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 25, p. 280-296, jan./mar. 2006. 94 Art. 285-A, CPC. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. A inovação acima é obra da Lei nº 11.277, de 2006. 95 Art. 300, CPC. Compete ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito, com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir. 96 Passa a ser despiciendo, portanto, o art. 193 do CC, principalmente na parte final, já que subsiste a obrigação de o juiz, da prescrição, conhecer de ofício: “a prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita”. 97 Por não possuir relevância fulcral ao presente estudo, as discussões a respeito da eficácia e efeitos da coisa julgada, debatida de forma brilhante entre Ovídio Baptista da Silva e José Carlos Barbosa Moreira, não será aprofundada. Cabe relembrar que apenas a declaração contida na sentença fica acobertada pela imutabilidade, nada impedindo que o réu, após julgada improcedente a ação de cobrança, opte por efetuar o pagamento.

A outra situação, que há de contar com o descuido do julgador, é aquela em que o advento da prescrição passou incólume pelo juiz na sua análise da petição inicial, motivo pelo qual foi determinada a citação do réu. Este, na contestação, apresenta ao magistrado seu desejo de renunciar à prescrição, vedando, assim, seu reconhecimento sponte propria. Além do mais, a técnica de elaboração das petições iniciais também deve ser alterada. Se antes a réplica era o momento adequado para o autor rebater as defesas indiretas (fatos impeditivos, modificativos e extintivos),98 o reconhecimento de ofício da prescrição pode não permitir ao processo alcançar sobredita fase. Desse modo, cumpre ao autor, já na inicial, indicar as causas impeditivas, suspensivas ou interruptivas da prescrição, sob pena de o juiz entender prescrita a pretensão antes de oportunizar ao autor a sua refutação. Pode ser acrescentada uma miríade de problemas aos acima elencados, todos eles frutos da alteração legislativa em questão. Inegável que essa transformação no âmbito do processo a respeito da prescrição trará, além das já relatadas, outras importantes consequências no plano material do instituto. Impõe-se, desse modo, uma tentativa de compatibilização, entre o direito material e o processual.

5. PROPOSTA DE COMPATIBILIZAÇÃO

O relacionamento que deve existir entre o direito material e o processual não pode ser o excludente, ao ponto de gerar uma verdadeira aniquilação de um pelo outro. O bom funcionamento de um sistema jurídico depende, justamente, da simbiose entre esses dois planos. O material depende do processual para impor-se coativamente; e o processual apenas existe para fazer prevalecer, com justiça e democraticamente, aquilo que dispõe o material.99

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Art. 326, CPC. Se o réu, reconhecendo o fato em que se fundou a ação, outro lhe opuser impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, este será ouvido no prazo de 10 (dez) dias, facultando-lhe o juiz a produção de prova documental. 99 “Chiarita, quindi, l’autonoma funzione delle norme (c.d. di confine) del diritto sostanziale, il ruolo e la funzione del diritto processuale emergono quando surge il conflito, cioè nei casi in cui sussiste contestazione circa la situazione giuridica disciplinata dalla regola di la certezza e garantire il riconoscimento e il rispetto del diritto soggetivo. In tal senso il diritto sostanziale viola i confini del diritto processuale ed entra nel processo, che d’altra parte non avrebbe ragione di esistire se ciò no accadesse”. PATTI, Salvatore. Diritto civile e diritto processuale civile: frammenti di un percorso. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milano: Giuffrè, v. 1, anno LXVII, p. 1-23, marzo 2013.

Ao que tudo indica, a prescrição enfrenta idêntica crise existencial. Por ser um instituto bifronte, isto é, com um pé no direito material e outro no processual, os planos necessitam chegar a um consenso. A pesquisa é suficiente para demonstrar que, mormente após as recentes reformas, os planos não mais dialogam entre si, o que vem causando enorme transtorno para ambos. Árdua será, como se percebe, a tarefa do presente estudo de arriscar uma possível compatibilização para as regras e princípios traçados na lei processual mais recente e na material, que versam sobre o fenômeno da prescrição. Isto porque, conforme assevera Salvatore Patti, “tenendo presente l’indubbio carattere unitário dell’ordinamento giuridico, compito dell’interprete è quello di identificare i valori comuni: il diritto privato tutela interessi che vengono fatti valere nel processo. Si impone pertanto una interpretazione di tipo teleológico delle norme riconducibili alle due discipline, in modo a realizzare lo scopo primario dell’ordinamento giuridico, cioè la garanzia delle posizione tutelate dal diritto sostanziale”100

A primeira providência necessária para compatibilizar o conhecimento de ofício da prescrição e a renunciabilidade é investigar a natureza jurídica do instituto da prescrição. Hoje, após o tratamento legal conferido ao tema, este aparentemente se apresenta como matéria de ordem pública.101 Noutro giro, não há como ignorar sua origem enquanto exceção, o que denota sua raiz no direito privado.102 O tema é controvertido na doutrina.103 Bem explica Serpa Lopes os motivos pelos quais a prescrição deve ser enxergada como matéria de ordem privada, inclusive tratando tanto dos aspectos materiais quanto processuais do instituto.104 Na esteira do 100

PATTI, Salvatore. Diritto civile e diritto processuale civile: frammenti di un percorso. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milano: Giuffrè, v. 1, anno LXVII, p. 1-23, marzo 2013. 101 Há, inclusive, diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça que entender ser a prescrição matéria de ordem pública: STJ, EDcl no AREsp 12.431/RS, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 10/06/2014, DJe 27/06/2014; STJ, REsp 1372133/SC, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 05/06/2014, DJe 18/06/2014; STJ, AgRg no REsp 1151678/RS, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Quinta Turma, julgado em 03/06/2014, DJe 10/06/2014; STJ, EDcl no REsp 57.119/MS, Rel. Ministro Garcia Vieira, Primeira Turma, julgado em 29/03/1995, DJ 08/05/1995. 102 Decisões mais antigas do Superior Tribunal de Justiça, com respaldo na vedação de cognição ex officio, consideraram a prescrição matéria de interesse privado: STJ, REsp 216.939/RS, Rel. Ministro Edson Vidigal, Quinta Turma, julgado em 16/05/2000, DJ 12/06/2000; STJ, REsp 230.626/RS, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quinta Turma, julgado em 16/03/2000, DJ 02/05/2000. 103 “Uma vez que a prescrição se funda no interesse social da segurança do comércio jurídico, é incontestável sua natureza de instituto de ordem pública” GOMES, Orlando. Curso de direito civil, volume 1. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 550. 104 “Caráter de ordem pública da prescrição: solução negativa. Sobretudo em face do nosso Direito positivo, a prescrição não pode ser tomada como revestida do caráter de ordem pública. Tudo quanto interessa à sociedade é a existência da prescrição e de certos princípios mantidos rigidamente, em relação à sua existência. Assim, se de um lado, possível não é a renúncia antecipada de uma prescrição, nem, em dadas circunstâncias, a modificação dos lapsos prescricionais, para serem dilatados, se, além disso, a prescrição pode ser alegada em qualquer instância, pela parte a quem aproveite (Cód. Civil, art. 162), por outro lado, proíbe-se ao juiz de conhecê-la, em não havendo sido invocada pelas partes (Cód. Civil art.

raciocínio do ilustre mestre, inclusive, pode-se encontrar explicação para a celeuma doutrinária.105 A prescrição é matéria de fato e não de direito, razão pela qual deve ser ventilada pela parte. Ocorre que, em razão da questão fática ser algo peculiar como o transcurso do tempo, grandeza que toca indistintamente e involuntariamente a todos os atores do processo, credor, devedor e juízo, fácil incorrer no equívoco de que se trata de matéria de direito, e que pode ser conhecida pelo juízo a qualquer tempo. A semelhança é nítida: também o ordenamento irradia sobre todos, involuntariamente. Enfim, o decurso do tempo é o mesmo para todos, mas ao juízo só interessa a questão quando ela lhe é posta. O decurso do tempo é um fato jurídico, que por óbvio interessa ao direito – mas não é por isto que deixa de ser uma questão fática e passa a ser uma questão jurídica. É fenômeno que, para deixar a seara dos fatos e ingressar na seara do direito, precisa de manifestação da parte e, portanto, matéria de ordem privada. Nem o argumento mais atual, já utilizado no Superior Tribunal de Justiça, de que não seria “razoável ignorar a prescrição e manter o processo em andamento, expondo o contribuinte e o próprio exequente a suportar e impulsionar execução fiscal fadada ao fracasso”, pode ser reputado, salvo melhor juízo, o mais adequado. A prescrição, como já foi dito, revela-se como uma exceção, colocada à disposição do devedor, com força de inibir a pretensão contra ele exercida. Caberá ao devedor optar pela sua utilização ou não, ou mantendo-se silente (não alegando a ocorrência da prescrição) ou renunciando-a (com fundamento na lei). Ademais, a manutenção do status quo não ofende nem nunca ofendeu os princípios da eficiência e da própria segurança jurídica, porque até a alegação do réu (que é facultativa, pois os direitos patrimoniais são disponíveis), não se sabe, ainda, se a pretensão será ou não acolhida na sentença. Caso o réu não alegue a prescrição

166) e ainda se concede às pessoas por lei privadas de administrar os próprios bens, ação regressiva contra os seus representantes legais, quando estes, por dolo ou negligência, derem causa à prescrição (Cód. Civil, art. 164). Tais regras afastam a idéia de ordem pública, pois, do contrário, dariam lugar a uma nulidade absoluta”. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil, volume 1. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. p. 499. 105 “A regra de caráter processual contida no nosso código civil é a que proíbe o juiz de conhecer da prescrição de direitos patrimoniais, se não foi invocada pelas partes. Por conseguinte, a matéria de prescrição pertence exclusivamente às partes nela interessadas. Deixando de opô-la, a prescrição cessa de ser um elemento da causa. Inaplicável é aqui a regra iura novit et curia, pois esta é relativa tão-só às regras de direito e não à matéria de fato”. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil, volume 1. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. p. 506-507.

(exceção), o magistrado deve acolher o pedido e condenar o réu ao cumprimento da obrigação.106 Ademais, admitir como válido o conhecimento de ofício da prescrição viola a própria essência do instituto, para além da definição legal. Vale o destaque de que o conceito legal de prescrição deve ser interpretado à luz das lições doutrinárias aqui postas: a prescrição tem natureza jurídica de exceção – e como tal deve ser intentada pela parte a quem lhe aproveita. O conhecimento de ofício da prescrição não só vai em sentido oposto à esta conceituação, como aproxima, em muito, a prescrição da decadência – aproximação esta indesejável, visto que a doutrina levou anos para apartar os dois institutos. Noutro giro, vê-se também que a cognoscibilidade ex officio viola, também, o princípio da eticidade,107 que é uma das fundações sobre as quais foi construído o Código Civil, enquanto sistema. A doutrina de Reale aborda de maneira clara as diretrizes do Código Civil, elencando, dentre elas, a eticidade e a operabilidade.108 A regra da prescrição encontra razão na operabilidade e a sua renúncia na eticidade. Explica-se: após reconhecida a prescrição, a faculdade de renúncia retira da pretensão do credor toda exigibilidade (eficácia), restando ao titular da exceção a faculdade de renunciar a este direito, cumprindo a obrigação por sua própria consciência, prestigiando o princípio da eticidade, compreendido como comando geral de proceder ético. Retirar do titular da exceção essa faculdade é lhe subtrair a autonomia da vontade, e lhe roubar da possibilidade de cumprir obrigação não mais exigível, apenas com fundamento na ética. Em suma, não pode um instituto com base na operabilidade – ou seja – na premissa de tornar mais práticas as relações sociais – sobrepujar-se sobre o mandamento de conduta reta, eis que este é um bem jurídico infinitamente mais relevante para o direito, que a fluidez das relações interpessoais. 106

“Se el titular de la excepción se abstiene de hacer uso de su contraderecho, puede imponerse también la pretensión judicialmente, pues el tribunal puede tomar en consideración el contraderecho solamente si ya sido ejercido procesalmente y este hecho es discutido en el proceso, o si el titular ejercita el contraderecho en el proceso”. LARENZ, Karl. Derecho civil – Parte general. Editorial Revista de Derecho Privado: Madrid, 1978. p. 322. 107 “O novo Código, por conseguinte, confere ao juiz não só o poder de suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto”. REALE, Miguel. O projeto do novo código civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 8. 108 “(...) pensamos no ensinamento de Jhering, que diz que é da essência do Direito a sua realizabilidade: o Direito é feito para ser executado; o Direito que não se executa – já dizia Jhering na sua imaginação criadora – é como chama que não aquece, luz que não ilumina, o Direito é feito para ser realizado; é para ser operado”. REALE, Miguel. O projeto do novo código civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 10.

O conhecimento irrestrito de ofício da prescrição funciona como um desestímulo para o agir pautado na ética e na honradez do devedor. Desse modo, deve-se interpretar a autorização para cognição de ofício como a possibilidade de o juiz questionar ao devedor, quando vislumbrar a sua ocorrência, se pretende fazer uso da prescrição, permitindo o seu agir conforme a sua consciência. O ideal seria a adoção, em todos os casos, do regime traçado para a execução fiscal, com ligeira ampliação. Como já mencionado, a Lei nº. 11.051/04 acrescentou o § 4º ao art. 40 da Lei nº. 6.830/81, para permitir que o juiz reconheça de ofício a prescrição, depois de ouvida a Fazenda Pública. A ampliação desejada seria a extensão da oitiva também ao devedor, de modo a possibilitar a renúncia expressa à prescrição. Assim, impõe-se ao julgador, hoje, oportunizar ao réu e ao autor manifestação a respeito da prescrição, dando credibilidade ao princípio do contraditório. A ideia de fazer da prescrição ferramenta de redução de processos não pode ser aplicada indistintamente e sem a necessária observância do contraditório, ainda mais quando presente a noção atual de contraditório como poder de influenciar a decisão. O projeto do novo Código de Processo Civil, na versão mais recente aprovada pela Câmara dos Deputados, prestigiando a moderna noção de contraditório, dispõe em seu art. 9º que “não se proferirá decisão contra uma das partes sem que esta seja previamente ouvida”. Na sequência, o art. 10 do Projeto reafirma a exigência de o juiz colocar a matéria a ser decidida em amplo debate: “Em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício”. Pelas razões já delineadas, essa necessidade de debate prévio amplia-se ainda mais quando o assunto verse sobre a prescrição.109 A efetividade processual não pode ser motivo suficiente para alterar a natureza de um instituto que assim é por uma específica e justificada razão de ser; o número gigantesco de processos pendentes de julgamento não pode ser razão bastante para 109

Como bem lembrado por Alexandre Câmara, é assim que se passa no Direito português (Reconhecimento de ofício da prescrição: Uma reforma descabeçada e inócua, trabalho publicado na rede mundial de computadores, in http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Alexandre%20F%20C%C3%A2mara-%20formatado.pdf, acesso em 9/8/2014). Segue a disposição do Código de Processo Civil português: “Artigo 3.º Necessidade do pedido e da contradição. (...) 3 — O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

suprimir por completo o princípio do contraditório; o acúmulo de execuções insatisfeitas não pode funcionar como mote para retirar do devedor o direito de dispor da exceção material. Portanto, a inovação legislativa não transformou a prescrição em matéria de ordem pública, muito menos numa objeção processual. O transcurso do tempo, somado a inércia do titular da pretensão, faz surgir a exceção de prescrição. Esta, entendida como a possibilidade de inibir a pretensão do autor, poderá ser ou não apresentada pelo devedor (ou não devedor) quando demandado, nunca conhecida de ofício. Caberá ao intérprete visualizar a mudança incrementada pela alteração da lei processual civil como um auxílio ao agir ético do devedor, pois, agora, poderá o juiz pôr o tema da prescrição em debate de maneira espontânea. Todavia, não é lícito ao julgador surpreender autor e réu com o reconhecimento da prescrição, muito embora as bases fáticas estejam provadas ou confessadas ao longo do iter processual.110 A renunciabilidade tácita da utilização da exceção é incompatível com a sua cognição oficiosa. Repise-se, por fim, que a prescrição não pode ser a panaceia para os males do processo e do congestionamento dos tribunais. Valer-se do instituto como técnica de decisão sumária é ignorar a sua própria conformação atual, muito além de uma medida que envolva simples alteração num conceito jurídico-positivo, uma vez que realizada sem o cuidado devido. Entende-se, por fim, que a inclusão do § 1º, do art. 333, do Projeto do Novo Código de Processo Civil revela-se equivocada, pois eleva a “liquidação de processos pendentes” e a “sumarização de julgamentos” à condição de destaque no ordenamento jurídico.111 Ante todos os males aqui relatados, a tentativa de compatibilização acima proposta pode reestabelecer a harmonia que nunca deveria ter sido perdida entre os planos material e processual, no que concerne ao tema da prescrição.

110

A própria circunstância de versar a prescrição sobre matéria fática impõe o seu deslinde para além do exame in limine da petição inicial. 111 Art. 333, NCPC. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar: I – súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; IV – frontalmente norma jurídica extraída de dispositivo expresso de ato normativo; V – enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local. § 1º O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição.

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