Presença de António Cardoso no Museu Amadeo de Souza-Cardoso em Amarante

June 7, 2017 | Autor: J. Abreu | Categoria: Museologia, História da arte
Share Embed


Descrição do Produto

Presença de António Cardoso no Museu de Amarante, por José Guilherme Abreu A relação do Professor António Cardoso com o Museu de Amarante constitui um tema de uma riqueza ímpar, desde logo porque o Museu surge no seu percurso como uma síntese de tudo o que de mais valioso e perdurável caracteriza e, ao mesmo tempo, transcende a sua Terra Natal, universalizando-a, sendo aqui aplicada a expressão Terra Natal, duplamente, no sentido de lugar específico do mundo que emana do termo terra, e na aceção de réplica de uma epifania que é todo o nascimento. Num sentido ontológico, encarar Amarante como Terra Natal, é encarar Amarante como um horizonte de manifestação. Manifestação reveladora cuja origem temporal se perde na aurora dos tempos, e cuja permanência se enraíza profundamente no substrato da cultura, atualizando-se em desobediência à cronologia, numa espécie de anulação do tempo, que não é senão a forma mais perfeita de o celebrar. O dispositivo que tem o sortilégio de realizar esse prodígio é o Museu. Começo pois pelo final, partindo diretamente para a mensagem que me pareceu emanar da conversa tida em casa do Professor, no seu escritório, que é uma espécie de santuário cujos objetos de devoção são por um lado os livros e as telas, e por outro as histórias e as memórias, muito embora livros, telas, histórias e memórias se inscrevam num continuum vivencial que transcende as divisões que os profanos logo se apressam a estabelecer (como eu agora o faço) dividindo o campo entre os testemunhos materiais e os registos imateriais dessa religio mundi que é, afinal, a arte, quando tomada no seu sentido mais instaurador. Professor do Magistério primário aos dezanove anos, António Cardoso depois de terminar as aulas nas escolas centrais de Amarante, recolhia-se na Biblioteca-Museu Municipal que havia sido criada em 1947, Biblioteca-Museu essa que foi o germe que viria a dar origem às duas instituições culturais de referência em Amarante: o Museu Municipal de Amadeo de Souza-Cardoso e a Biblioteca Municipal de Albano Sardoeira. Tornando-se frequentador assíduo da então Biblioteca-Museu, António Cardoso por seu intermédio haveria de se ligar cada vez mais à sua Terra Natal, enraizando-se e assimilando o singular “caldo cultural” que distinguia, e distingue, Amarante, das restantes localidades a norte do Douro. Um caldo cultural pontuado por figuras como o Conselheiro António Cândido (1850-1922), Professor Catedrático, Clérigo, Ministro e Par do Reino, que era apelidado de A Águia do Marão pelas suas qualidades de brilhante orador, ou como Teixeira de Pascoaes (1877-1952), nome de pena de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, “poeta natural e o bacharel à força”, como gostava de se descrever, personalidade de características invulgares que no seu íntimo era um místico e um esoterista, que vivia recolhido no Solar de S. João de Gatões, onde escrevia e saciava a sua sede de saudade e de absoluto, ou ainda como o pintor simbolista António Carneiro (1872-1930), premiado em Paris e nos Estados Unidos e exímio desenhador de sanguíneas, muitas delas publicadas em A Águia, revista que Pascoaes criara com Raúl Proença e António Sérgio, em 1911, ou o pintor, de paisagens e cenas históricas, Acácio Lino, e mais recentemente, a escritora Agustina Bessa Luís (1922-), cuja obra literária haveria de ser transposta para o cinema por Manoel de Oliveira, galeria de nomes aos quais se juntava aquele que decerto mais emocionava, e inspirava, o então jovem mestre-escola de Amarante: Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918), figura destacada da pintura moderna ocidental, a cuja família António Cardoso se encontrava, por sinal, ligado. Entusiasmado pelo legado de figuras tão inspiradoras e motivado pelo convívio intelectual com Albano Sardoeira e Victor Sardoeira, então, respetivamente, Vice-Diretor e Secretário da Biblioteca-Museu Municipal de Amarante, ambos figuras impulsionadoras do conhecimento e da cultura locais, António Cardoso logo decidiu integrar o Grupo de Amigos

que, em 1946, havia estado na origem da criação da Biblioteca-Museu, como se regista na ata da Reunião Ordinária de 17 de janeiro da Câmara Municipal de Amarante: Fui procurado pelo Senhor Doutor Albano Sardoeira, que me deu conhecimento da creação do Grupo dos Amigos da Biblioteca-Museu Municipal de Amarante que está sendo organizada pela nossa Câmara. Aguardando apenas a conclusão das reparações que forem julgadas indispensáveis ao fim a que se destina, no salão há muito escolhido pela Câmara para êsse fim. O Dr. Albano Sardoeira mostrou-me a lista de duzentos inscritos existentes, vendo com satisfação que já há muitos mais. Louvo o doutor Albano Sardoeira pela sua bela iniciativa, e agradeço a todos os subscritores a generosa colaboração e auxilio e prometo e peço o interesse do Município para a rápida instalação daquela Biblioteca. A Câmara aprovou por unanimidade.1

Apesar da retórica que enforma os documentos procedentes dos serviços administrativos, o presente documento permite-nos perceber que o movimento a favor da criação da Biblioteca-Museu de Amarante, não havia sido uma iniciativa isolada de Albano Sardoeira, mas sim partia de um núcleo de Amigos que ascendia a duzentos, e que não parava de aumentar, facto que permite aduzir que o caldo cultural que distinguia Amarante não era formado apenas pelo núcleo restrito de um escol de autores que, desde o século XVIII, produziam obra cultural relevante, mas incluía também um círculo de apreciadores que se reviam na obra desses mesmos autores e artistas. Ou seja, em Amarante, além da produção cultural e artística, havia também uma apetência e uma sede públicas de cultura, as quais constituem o fermento e o alimento da própria produção cultural e artística. Como cultor das artes e das letras e sobretudo como curador avant-la-lettre, António Cardoso, logo em 1953, haveria de organizar três salas na Biblioteca-Museu Municipal de Amarante: uma sala dedicada a António Cândido, outra a António Carneiro e outra a Amadeo de SouzaCardoso, importando de passagem assinalar que aquele gesto vale não só pela medida que dá da dedicação e da responsabilidade intelectuais do jovem mestre-escola de Amarante, como nos permite aduzir que o seu envolvimento no campo da ação cultural, desde o primeiro momento, não era (nem nunca haveria de ser) acrítico, pois ao eleger as figuras a apresentar nas referidas salas, deu prioridade a Amadeo e a António Carneiro, preterindo o mais académico Acácio Lino, facto que denotava as suas preferências estéticas, ao mesmo tempo que abraçava um ideário. Relativamente às primeiras, manifestava-se o seu alinhamento pela plástica modernista. Relativamente ao segundo, materializava-se o programa de promover a inserção europeia da arte portuguesa, com Carneiro e Amadeo a constituírem dois momentos distintos dessa mesma integração. Analisando o primeiro sinal da presença de António Cardoso no Museu, deve observar-se que a organização da sala de Amadeo na Biblioteca-Museu Municipal de Amarante, como José-Augusto França refere, compreendia a exposição de 33 quadros2, surgindo assim essa mostra como a primeira exposição permanente e individual da obra do pintor depois da sua morte, pois antes disso, apenas em 1952, haviam sido expostos três quadros de Amadeo, inseridos na Exposição 20 Pintores Contemporâneos, organizada pela Galeria de Março, em Lisboa3. De resto, como é sabido, o Estado Novo havia instituído, em 1935, o prémio Souza-Cardoso, mas recusava-se a expor a sua obra, depois daquele que viria a ser o Diretor do Secretariado da 1

Apud, CARDOSO, António, Albano Sardoeira, um Homem de Cultura, In, Entremuros. Revista Cultural de Amarante, 2, 1996, p. 11. 2

FRANÇA, José-Augusto, Amadeo de Souza-Cardoso. O Português à Força, 1983, Livraria Bertrand, 3ª edição, Lisboa, p. 156.

3

Ibidem.

Propaganda Nacional tentar aportuguesá-la à força, num artigo onde António Ferro referia que na obra de Amadeo via o “alegre Portugal das romarias, dos bairros populares, de céu azul, dos trajos festivos”4, dando razão a José-Augusto França para apelidar Amadeo como “o português à força”. Existe uma fotografia que mostra o exterior da Sala de António Carneiro (fig. 1), ainda em fase de preparação. Como refere António Cardoso, “António Carneiro era a figura principal para os amarantinos, porque se aproximava mais dos gostos”, e a receção, por isso, “não punha tantos problemas”, como gracejava José-Augusto França, ao apelidá-lo o “Mongesinho de Nova Sintra”. Além dos aspetos já referidos, importa acrescentar que a organização destas salas representou para o Museu uma viragem no seu discurso expositivo, que passava de um Gabinete de Curiosidades, marcado por uma apresentação tipo bric-à-brac à maneira dos antiquários (fig. 2), para uma organização mais criteriosamente elaborada, como se documenta através de uma fotografia de 1951, portanto anterior, onde se veem indiscriminadamente expostas peças de mobiliário, escultura, pintura, arqueologia (aras romanas) e coleções de etnografia, onde se destaca uma das famosas “serpes” usada nas procissões de Amarante, assim como as duas estatuetas que representam os “Diabos de Amarante”, que haviam sido expostos, em 1889, na Exposição Universal de Internacional, junto à casa de vinhos Sandman. Mas o que hoje nos parece deveras impressionante na organização, designadamente, da Sala de Amadeo, foi lograr obter 33 telas de Amadeo, e com esse lance antever, porventura intuitivamente, aquele que viria a ser o programa museológico do atual Museu, circunstância a que não é estranha a ligação de António Cardoso à família de Amadeo, facto que tornava a sua ação no âmbito do círculo dos Amigos da Biblioteca-Museu de Amarante cada vez mais relevante. Sobre estes aspetos, António Cardoso esclarece: Com o grupo de amigos e com o Dr. Albano Sardoeira à frente, aproveitam-se as primeiras salas, começam as várias doações, pois praticamente foi tudo doado, doações de obras de António Carneiro, como há depois doações de algumas coisas vindas de Pascoaes, como há doações vindas de várias famílias da Vila, e até de fora, com doações que chegam à pintura mas também aos arados, havendo mesmo um arado romano que ainda existe no Museu. Doações em diferentes sentidos, portanto, iniciando-se a reconquista das salas para espaços do museu.5

Construída a partir de doações, de ofertas e de alguns depósitos e promovendo a transposição para bronze de algumas esculturas, a coleção da Biblioteca-Museu Municipal de Amarante começou por ser uma amostra do património cultural e artístico local, para progressivamente se transformar numa coleção programada e programática, como Cláudia Garradas refere: O núcleo inicial do Museu é essencialmente constituído pelo arquivo municipal, uma pequena biblioteca e algumas obras de António Carneiro, peças de mobiliário, pesos, medidas e insígnias municipais, e um pequeno núcleo de arqueologia, e que por isto, se chamava Biblioteca - Museu Municipal. […] O Museu Municipal de Amadeo Souza-Cardoso apresenta-se como um espaço onde se encadeiam as gerações de artistas, cujas obras que permitem o contacto do publico, com os percursos do Cubismo à Abstracção, com as noticias do Futurismo, as marcas do Expressionismo e as premonições do Dadaísmo.6

4

FERRO, António, Os Artistas do Salão de Outono, In, Diário de Notícias, 1925

5

Transcrição de uma conversa em casa do Professor António Cardoso, em 18 de junho de 2013.

6

GARRADAS, Cláudia, Acerca das Colecções de Arte em Portugal, In, PEREIRA DE BRITO, Mário Armando Nogueira e CUÑARRO, José Manuel Hidalgo (coord.), Museos do Eixo Atlántico, 2009, Eixo Atlántico, Vigo, Porto, Bruxelles, p. 84.

Profundamente ligado e identificado com os valores culturais e artísticos de Amarante, ao jovem António Cardoso, porém, não lhe bastava o estrito confinamento local, e é cedo atraído por aquilo extravasava o horizonte amarantino. Partiria pois em demanda de mais alargados e distintos horizontes, numa primeira fase, para o Porto, retornando com notícias das tertúlias dos cafés portuenses que passou a frequentar, na sequência da sua inscrição na Academia da Galeria Alvarez, orientada pelo pintor Jaime Isidoro. Por um lado, graças a essa inquietação endémica que o impelia a partir da Amarante, e por outro em virtude do apelo exercido por Amarante que o levava a ali invariavelmente retornar, António Cardoso passou a assumir um papel de crescente relevância para a renovação da vida cultural e artística de Amarante e do seu Museu, como explica Leonor Soares: António Cardoso será o mediador entre a Galeria Alvarez e Amarante que Jaime Isidoro visitara para pintar paisagens, desde os primeiros anos da Biblioteca-Museu. Cria-se assim um vínculo que dará origem a três exposições organizadas pela Galeria Alvarez, a primeira em 1955 na galeria do claustro que apresentou obras de Amadeo, Dominguez Alvarez, Aníbal Alcino, Augusto Gomes, Carlos Botelho, Carlos Carneiro, Dórdio Gomes, Gastão Seixas, Jaime Isidoro e Sousa Felgueiras. A ligação à família de Amadeo, com origens geográficas e de amizade entre as famílias, estabelecerá a ponte que viabilizou a exposição sobre Amadeo no Porto, no espaço da Galeria Alvarez, em 1956. A exposição de Pintura Moderna em colaboração com o Grupo de Amigos da Biblioteca, em 1957, adquiriu um significado histórico inegável pelo pioneirismo do Museu de Amarante ao apresentar um leque de artistas com as características de modernidade de Ângelo de Sousa, Aníbal Alcino, António Bronze, António Quadros, Augusto Gomes, Domingos Lopes, Dordio Gomes, Jaime Ferreira, Jaime Isidoro, Júlio Resende, Manuel De Francesco, Manuel Gonçalves, Maria Helena Matos, Maria João Archer, Maria Manuel, Pinho Diniz, René Bertholo, Tito Reboredo, Hein Semke, Manuel Cargaleiro para além de António Cardoso que foi também responsável pelo texto de apresentação da exposição.7

Mas António Cardoso não se limitaria a uma função de mediador. Como outros artistas, António Cardoso inseriu-se no mundo das artes através da frequência de academias de pintores, tal como havia acontecido, de resto, com Amadeo, sendo que, em 1958, já figurava na I Exposição de Pintura a óleo, organizada em Vila Real, no âmbito das festas da cidade. Beneficiando do apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, a I Exposição de Pintura a óleo viria a atribuir cinco prémios8, todos eles financiados pela Fundação, sendo o júri presidido pelo Dr. João Barreira, e tendo como vogais Diogo de Macedo, Dordio Gomes, Augusto Gomes e Otílio Figueiredo, este último autor do texto de apresentação do (mini) Catálogo. A abertura de António Cardoso para a urbe portuense e a participação na exposição de Vila Real, não eram, porém, estímulo e recompensa bastante, pelo que a bordo de uma fogosa BSA 500cc, nas férias de 1956, 1957, 1958 e 1959, António Cardoso desbravou as estradas europeias, tendo rumado, respetivamente, a Paris, Marselha e Bretanha, Bruxelas e por fim Itália, viagens venturosas cuja repercussão na sua formação se pode adivinhar, desde logo por serem as mesmas realizadas numa época em que viajar para o estrangeiro era, por si só, um acontecimento raro, sendo proeza extraordinária fazê-lo de moto. Daí o lado venturoso desta façanha, que decerto nada ficava a dever, no que concerne ao impacto na modelação de uma personalidade artística, à célebre travessia transeuropeia que

7

SOARES, Maria Leonor Barbosa, António Cardoso Encadeador de Tempos, In, Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património, (2003), nº 2, FLUP, Porto, pp. 20-22.

8 Prémio “Trás-os-Montes” (10.000$00); Prémio “Cidade de Vila Real” (8.000$00); Prémio “Pintor João Baptista Ribeiro” (7.000$00); Prémio “Pintor Heitor Cramês” (6.000$00); Prémio “Pintor Manuel Barias” (6.000$00).

fez, em 1911, aquele que viria a ser Le Corbusier, viajando de automóvel, barco, comboio e a pé, desde o cantão suíço de Neufchatel, até Viena, Budapeste, Praga, Istambul e Atenas. No caso de António Cardoso, estas viagens tiveram como consequência a confirmação dupla da índole europeísta da sua matriz cultural e do engagement modernista da sua produção artística, sem trair ou esquecer nunca, importa sublinhá-lo, a consciência do seu enraizamento e da sua pertença ao berço amarantino, antes expandindo-o. O início da década de 60 correspondeu, por isso, ao seu segundo nascimento: aquele em que o mestre-escola de Amarante renascerá como artista. Nesse período, António Cardoso pintou e expôs em diferentes espaços e cidades, sem nunca negligenciar, no entanto, o seu envolvimento nas atividades da Biblioteca-Museu, podendo, a título de exemplo, referir-se a sua participação, em 1965, na organização da Exposição de Arte Sacra, cujo Catálogo foi concebido por António Cardoso, primando por um design arrojado e original. (fig. 3) Transcrevemos do texto de apresentação do Catálogo, a seguinte passagem: Nasceu esta Exposição de Arte Sacra do Concelho de Amarante duma ideia que nos parece digna de seguimento e que toma foros de inadiável: saber o que temos e – para lá da religiosidade que transpira, e do sentimento que a tradição traz à flor da pele – proporcionar um enquadramento histórico e artístico do material de que se dispõe.9

O texto não se encontra assinado, mas reconhece-se no mesmo as preocupações históricas e artísticas que enformam o pensamento e a intervenção de António Cardoso, aspeto que é corroborado pela circunstância de, paralelamente à exposição, se ter realizado uma “Palestra do Dr. Domingos de Pinho Brandão10, integrada no Ciclo de Divulgação Cultural.” Em 1969, fechava-se a década com a realização da Exposição das obras concorrentes ao Prémio Cinquentenário da Morte do Pintor Amadeo de Souza-Cardoso, instituído pela Comissão Regional do Turismo do Marão, em colaboração com a Biblioteca-Museu Municipal de Albano Sardoeira, com o patrocínio da Secretaria de Estado da Informação e Turismo. Transcrevemos do Regulamento: 2.º- Com a criação deste prémio se pretende prestar homenagem ao maior pintor da primeira geração de modernos portugueses, natural do concelho de Amarante, onde será atribuído, no decurso de uma grande exposição de arte moderna que se realizará na Biblioteca-Museu, templo de Amadeo, no dia 6 de Junho de 1969, a quando da efectivação das tradicionais festas concelhias, este ano integradas nas festas da Primavera do norte do país; § único – O artista premiado receberá o prémio das mãos da Viúva do Pintor, D. Lúcia de Sousa Cardoso, residente em Paris, numa sessão solene nos Paços do Concelho. 3.º- Poderão concorrer ao Prémio todos os artistas plásticos portugueses ou estrangeiros residentes em Portugal, de cuja obra ressalte uma intenção expressa de vanguarda artística, que se coadune com o espírito da mensagem plástica de Amadeo. § único – A entidade instituidora do Prémio convidará alguns artistas a competir no mesmo, sem prejuízo de qualquer outro que a ele deseje concorrer e poderá fazê-lo em igualdade de condições. […] 6º- Haverá um júri de admissão e classificação, constituído pelo Professor Júlio Resende da Escola Superior de Belas Artes do Porto e pelos críticos de arte Fernando Guedes e Dr. Rui

9

Grupo dos Amigos da Biblioteca-Museu de Amarante, Catálogo da Exposição de Arte Sacra, 1965, BibliotecaMuseu Municipal de Amarante, Amarante.

10 Domingos de Pinho Brandão (1920-1988) foi uma destacada figura da Igreja e da cultura, tendo sido nomeado bispo auxiliar de Leiria, em 1966 e, mais tarde, bispo auxiliar do Porto (1972-88). Investigador notável e plurifacetado no campo da história de arte, arqueologia, epigrafia, numismática, museologia, deixou inúmeros trabalhos publicados nestas áreas.

Mário Gonçalves. Servirá de Secretário do Júri um representante da Comissão Regional de Turismo da Serra do Marão, sem voto.11

Pelo acima exposto se constata a expressa vontade de modernidade que enforma o Prémio, e que se consubstancia na designação dos elementos do júri que têm poder de voto. Em tudo isto se adivinha obviamente a presença discreta de António Cardoso. Relativamente à atividade cultural da Biblioteca-Museu Municipal, entretanto batizada, como vimos, com o nome de Albano Sardoeira, encerrava-se da melhor forma a década de sessenta, afirmando e consolidando da sua intervenção a nível local e regional. Os Anos 70, por sua vez, iniciavam-se com a decisão, em 1973, de reabilitar o Museu, projeto absolutamente imperioso, em virtude do crescimento e melhoramento da coleção do Museu (assunto a que voltaremos) tornando-se assim absolutamente desajustadas e inadequadas as instalações da Biblioteca-Museu relativamente à sua coleção. Em síntese, no início da década de setenta a reabilitação da Biblioteca-Museu de Albano Sardoeira prendia-se com a velha questão de saber se poderia haver, em Portugal, durante o Estado Novo, lugar para um Museu de Arte Moderna, convindo a esse título lembrar JoséAugusto França, quando ele refere que uma tal ideia “era uma utopia que, ao nível da realidade, tinha a sala de Amadeo de Souza-Cardoso, inaugurada em 1953, no Museu de Amarante, em condições menos do que modestas.”12 Se as condições eram mais do que modestas, em 1953, passados vinte anos de atividade as mesmas haviam-se tornado inaceitáveis, desde logo porque a coleção não deixou de ser progressivamente aumentada e melhorada, pelo que quer o espaço quer as condições de exposição como as de conservação haviam-se tornado obsoletas, face ao valor das obras expostas. Não cabendo nestas linhas historiar um processo que merece um estudo autónomo, detalhado e documentado, é no entanto notório que o esforço de melhorar e de atualizar a coleção do Museu de Amarante, verificado quer durante os anos em que António Cardoso interveio na sua atividade integrado no Grupo dos Amigos do Museu, quer a partir da data em que esteve na Direção do mesmo, esse esforço sistemático e incansável tem sido a consequência direta e eficaz da presença e da ação do Professor no Museu. Ação discreta mas notória, desde logo a que desenvolveu integrado no Grupo de Amigos da Biblioteca-Museu, a intervenção de António Cardoso é tanto mais notável, quanto, até 1974, a recetividade e a tolerância relativamente ao caráter subversivo ou radical que enformavam a melhor da Arte Contemporânea portuguesa, nos setores mais retrógrados, era nula. Episódio a esse título incontornável da história do Museu foi a reação que rodeou a receção da escultura “A Menina Amélia que vive na rua do Almada”, de 1968, (fig. 4) peça que constituiu a tese de licenciatura em escultura de Clara Menéres, e que a autora havia doado ao museu, figurando na exposição permanente da Biblioteca-Museu, em 1973. Segundo Clara Menéres, a decisão de doar aquela peça deveu-se ao facto de a escultora, na época, não dispor de espaço nem de condições apropriadas para a guardar no seu atelier, tendo escolhido o Museu de Amarante, porque, no início da década de 70, era o Museu do País cujo modernismo da coleção apresentava maior afinidade com a sua obra.

11

Regulamento do Prémio Cinquentenário da Morte do Pintor Amadeo de Souza-Cardoso.

12

FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no Século XX, 1991, Bertrand Editora, Lisboa, p. 485.

A escolha do Museu de Amarante surgia portanto como uma escolha natural, e a obra foi bem-vinda, tendo a Câmara Municipal lavrado inclusive um louvor, enaltecendo a decisão da escultora de doar a peça ao museu. Mas o aspeto mais curioso deste caso prende-se com a receção pública da peça, e prende-se com um depoimento registado no livro de honra do museu, assinado pelo então já jubilado Professor da Universidade de Coimbra Torquato de Souza Soares13, que se refere à peça, nos moldes se podem ler, na folha do dia 30 de Abril de 1973. (fig. 5) Tratando-se da primeira escultura Pop da Arte Portuguesa, a peça de Clara Menéres revestese de um valor histórico apreciável, ao qual acresce uma irrepreensível execução técnica, pelo que se pode considerar esta uma obra de referência da escultura modernista em Portugal. E tal foi a pressão exercida, a obra cuja doação merecera antes um louvor, acabaria por ser retirada da exposição permanente, aí regressando, de acordo com António Cardoso, apenas em 1977, beneficiando da conjuntura libertária resultante da Revolução dos Cravos. Os Anos 70 encerravam-se, por sua vez, com o início das obras de reabilitação do Museu, tendo sido confiado a Alcino Soutinho o projeto de arquitetura, na sequência do mesmo arquiteto ter executado, em 1972, o projeto do edifício da Câmara Municipal de Amarante. Beneficiando de um projeto de arquitetura que se tornou referência para a arquitetura museal em Portugal, a Biblioteca-Museu de Albano Sardoeira sofreu uma verdadeira transfiguração, renascendo como Museu Municipal de Amadeo de Sousa Cardoso, e tendo-se convertido num dos museus municipais mais notáveis do País, ainda hoje. Com a sua inauguração em 1980, inicia-se um novo ciclo da atividade do Museu. Um ciclo que se caracteriza pela afirmação da sua relevância no plano nacional. Relevância nacional, desde logo pelo valor da sua coleção, pois em termos de visão panorâmica da arte moderna e contemporânea portuguesa, a coleção do Museu de Amadeo de Souza-Cardoso é sem dúvida, a nível dos museus públicos, uma das mais representativas do País. Para tanto, muito contribuiu como já referimos a ação discreta, mas permanente, do Professor António Cardoso, ação essa que se reforçou a partir do momento em que, respondendo favoravelmente a insistentes pedidos, decidiu aceitar, em 1990, o cargo de Diretor do Museu, naquela que era uma nomeação mais do que óbvia e acertada. Consequência direta dessa nomeação, foi a decisão de lançar o Prémio de Amadeo de SouzaCardoso (PASC), em 1997, assinalando o cinquentenário da fundação do Museu. De edição bienal, o PASC divide-se em duas modalidades. Em primeiro lugar, o Grande Prémio de Consagração, que é um prémio não-pecuniário que se destina a galardoar o conjunto da obra de um artista, e em segundo lugar um prémio pecuniário, atribuído por concurso.

13 Torquato de Souza Soares (1903-1988) Licenciado em 1924 em Ciências Histórico-Filosóficas pela primeira Faculdade de Letras do Porto, onde foi assistente, até esta ter sido encerrada. Doutorado pela Universidade de Coimbra, TSS concluiu aí o seu Doutoramento, tendo-se tornado Professor da Universidade de Coimbra, a partir de 1937, depois Agregado, a partir de 1962. Entre 1965 e 1970, foi nomeado Professor Catedrático dos Estudos Gerais Universitários, elevados a Universidade de Luanda, em 1968. Regressado a Coimbra em 1970, dirigiu o Arquivo Universitário, até se jubilar, em 1973. Até ao seu falecimento, retirou-se na sua Casa do Marmoiral, em Vila Meã, Amarante, onde continuou a dedicar-se à investigação, mas também à gestão agrícola, tendo falecido aí em 10 de Dezembro de 1988. Transcrevemos o seu depoimento sobre a obra A Menina Amélia que vive na Rua do Almada: “Torquato de Souza Soares, Vila-Meã, Professor. O meu protesto indignado contra o miserável desacato praticado contra um Museu sério e até admirável pelo seu riquíssimo recheio artístico, pela Direcção desse mesmo Museu, permitindo que se exponha nele um grupo escultórico caracterizado pela mais porca e miserável pornografia, que só seria admissível num bordel muito reles. O desacato é tão grave que transcende as paredes deste Museu, ofendendo e consporcando (sic) os moradores honestos desta nobre Vila de Amarante. Torquato Souza Soares”

O/a artista galardoado/a extra-concurso é convidado/a a realizar uma exposição de obras suas no Museu, acompanhada de adequado catálogo, prevendo-se a possibilidade de aquisição de uma ou mais obras suas, para as coleções do Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso.. Pela lista dos artistas premiados14, verificamos que o Grande Prémio de Consagração tem galardoado alguns dos mais notáveis artistas contemporâneos portugueses. Selecionado por concurso é ainda atribuído um prémio pecuniário a um artista, realizandose uma exposição das obras concorrentes. Relativamente à edição de 2013, o Júri de Seleção e Premiação da atual edição15 já anunciou que a artista galardoada extraconcurso é Paula Rego. Percebe-se enfim que este prémio é mais uma das marcas da presença de António Cardoso no Museu, surgindo como corolário de uma vida dedicada à projeção de Amarante e da Arte Moderna em Portugal, ao mesmo tempo que assegura a atualização da coleção do Museu mantendo o nível de excelência e de representatividade que lhe permite e permitirá continuar a desempenhar uma missão de relevo e de referência no conhecimento e apoio à Arte Moderna e Contemporânea em Portugal. Sintetizando, relativamente à presença de António Cardoso no Museu de Amarante pode afirmar-se que a mesma acompanha o Museu praticamente desde a sua origem, e que logrou consolidar-se e intensificar-se ao longo do tempo, conhecendo sucessivos e progressivos patamares de envolvimento e intervenção. Numa primeira fase, a presença de António Cardoso configurou-se em torno de uma função mediadora, aproximando o Grupo de Amigos e os herdeiros de Amadeo de Souza-Cardoso, e articulando a atividade do Museu-Biblioteca e a da Academia-Galeria Alvarez. Desta fase, destaca-se a organização, em 1953, das Salas de António Cândido, de António Carneiro e de Amadeo de Souza-Cardoso, que introduzem um modelo expositivo de caráter museográfico, descartando o modelo bric-à-brac dos Gabinetes de Curiosidades, anteriormente praticado. Numa segunda fase, a presença de António Cardoso transcende a função de mediação, para passar a assumir uma função de curadoria, sendo o modelo museográfico completado pela elaboração de Roteiros/Catálogos e pela organização de ciclos de Palestras/Conferências. Desta fase, destaca-se a programação, em 1963, da Exposição de Arte Sacra que, como vimos, produziu um Catálogo e foi acompanhada por uma Palestra do Dr. Domingos de Pinho Brandão. Numa terceira fase, a presença de António Cardoso transcende a função de curadoria, para assumir o papel de Direção, definindo a missão do Museu de Amarante como instituição cultural do País, que se coloca, duplamente, ao serviço da promoção do conhecimento da Arte Moderna e em prol do desenvolvimento da Arte Contemporânea. Desta fase, destaca-se a criação, em 1997, do Prémio Amadeo de Souza-Cardoso, que resgata a memória daquele prémio dos equívocos meandros da política cultural do Estado Novo, 14 Artistas premiados pelo PASC: Fernando Lanhas (1997), Fernando Azevedo (1999), Costa Pinheiro (2001), Júlio Pomar (2003), Nikias Skapinakis (2005), Ângelo de Sousa (2007), João Vieira (2009) e António Sena (2011). 15

Constituído por: António Cardoso (comissário), diretor do Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso e representante da Câmara Municipal de Amarante; Rui Mário Gonçalves (presidente), Lúcia Almeida Matos, Laura Castro e João Lima Pinharanda.

convertendo-o num válido e pertinente instrumento de consagração e promoção do trabalho artístico em Portugal.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.