Presença partilhada na arte: A potência transformativa dos encontros

May 31, 2017 | Autor: Milene Duenha | Categoria: Teatro, Dança Contemporânea, Presença
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Fronteiras

P r e s e n ç a p a r t i l h a d a n a a r t e : A potência transformativa dos encontros1 DUENHA, Milene Lopes(UDESC)2 Resumo: E se partilhássemos experiência em vez de apresentarmos nossas obras de arte? Este artigo pretende discutir a presença do artista como possibilidade de partilha e seu fazer como efeito de um olhar às configurações relacionais de seu entorno. Anuncia-se aqui o desejo de se viver/fazer uma experiência artística que se compõe nas emergências do aqui-agora das relações. O relato de uma das experimentações do coletivo Mapas e Hipertextos, de Florianópolis /SC, é apresentado como um exemplo prático, não necessariamente assertivo, da discussão aqui evocada. Bento Espinosa, Yanick Bressan e Jacques Rancière são os autores que inspiram o desejo de compartilhar as palavras contidas neste escrito. Palavras-chave: Afeto. Arte. Relação. Abstract: If we could share an artist experience rather than presenting our works of art? This article discusses the artist presence as a possibility of sharing and his doing as an effect of a look to relational settings of his surroundings. It’s announced here the will to live/look an artistic experience that consists in the here-and-now emergencies of the interpersonal relations. An experience with Mapas e Hipertextos collective from Florianopolis – SC, Brazil – is presented as a practical example, not necessarily one assertive in this discussion here evoked. Benedict Spinoza, Jacques Rancière and Yanick Bressan are authors that inspire the desire to share the words in this writing. Keywords: Affection. Art. Relation.

1 Artigo aceito em 16/11/2015. 2 Milene Lopes Duenha:([email protected]) Doutoranda na Universidade do Estado de Santa Catarina – Programa de Pós-Graduação em Teatro, sobre a presença do artista como com-posição e suas implicações ético-estéticas. Linha de pesquisa: Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade, Prof.ª Orientadora Dra. Sandra Meyer Nunes. Bolsa Capes. Atuação nas áreas da dança, do teatro, da performance e em processos de arte-educação.

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Seria possível uma previsão sobre o que nos afetaria nos encontros das artes presenciais? Quantas vezes não vivenciamos ou observamos a tentativa de adivinhar o que o público sentirá diante dessa ou daquela ação? Como criar potência poética com as presenças do encontro? Tais questionamentos levantam algumas das abordagens deste escrito passando brevemente por aspectos da recepção, da produção poética e do ensino nas artes presenciais. A busca pelo entendimento de uma presença para o artista que se configura na relação, é o impulso dessa investigação, a partir de uma articulação entre referências teóricas, como as contidas em escritos de Bento Espinosa, Yanick Bressan, e Jacques Rancière, e exemplos de uma prática artística desenvolvida no coletivo Mapas e Hipertextos do qual participo3. Ao considerarmos que uma das principais características da produção contemporânea nas artes da presença, é evidenciar questões concernentes às relações humanas e aos modos de vida em sociedade, algumas pistas poderiam ser desenhadas em um caminho que convida o artista à observação de seu entorno, mas também à renúncia de um lugar de privilégio na sociedade, em favor de uma experiência artística potente, que se faça de maneira menos verticalizada, com uma presença menos impositiva do artista. Para isso nos desapegaríamos do sabor do poder, da possibilidade de dominar a audiência, para nos transformarmos em presenças que convidam, refreando um ímpeto carregado de desejos para dar espaço à escuta, à negociação em favor da partilha do “sensível”, do estabelecimento de um “comum”, como o filósofo francês Jaques Rancière (2005, p. 15) nos traz. Trato aqui da presença como um ato de tomar parte4 de algo que se estabeleça no encontro, como potência de um acontecimento delineado na emergência das relações entre as presenças no aqui-agora, e não necessariamente dependente de uma prévia estruturação, que talvez possa ser foco de admiração, mantendo-se, porém, impermeável. Se uma das nossas intenções com o fazer artístico é afetar em torno, é criar fissuras perceptivas e, diante disso, provocar outros modos de ser/estar no mundo; se ainda nos interessamos

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3 O coletivo Mapas e Hipertextos existente desde 2012 é composto por Cecília Lauritzen, Diana Gilardenghi, Diana Piazza, Jussara Belchior, Mayana Marengo, Michele Louise Schiocchet, Milene Lopes Duenha, Paloma Bianchi e Raquel Purper, esse grupo se destina à experimentação artística de questões levantadas nas pesquisas acadêmicas e artísticas de cada uma das integrantes que abordam conceitos como: eficácia/fracasso, presença/ausência, composição em dança e performance contemporânea, relação entre espaço virtual e estrutura social, site specifc e política no corpo, dentre outros. Pesquisamos possibilidades de emergência poética a partir da vivência da técnica de movimento desenvolvida por Marie-Madeleine Béziers, trazida por Paloma Bianchi, mapeamos possíveis vetores de criação diante dessa prática, combinamos estados, referências de imagens e discussões de conceitos e, a partir disso, elaboramos fragmentos compositivos que são combinados e recombinados na execução de ações performáticas realizadas presencialmente ou veiculados em distintos suportes, como vídeo e fotografia. 4 Jacques Rancière (2005, p. 15) apresenta a partilha do sensível como um ato de estabelecimento de algo comum e de uma divisão de responsabilidades nesse ato, descrita pelo autor como “a maneira comum que se presta a participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha”.

pela sustentabilidade de relações democráticas entre os seres, buscando por encontros que aumentem nossa potência de existir, como filósofo holandês Bento Espinosa (1992) discute, nossos modos de estar diante de uma audiência não poderiam se pautar por nada muito diferente disso, ou seja, se questionamos determinadas estruturas de poder, parece equivocado nos mantermos, como artistas, em polarizações como na divisão entre aquele que sabe e aquele que é ignorante, entre aquele que é dotado de “talento”, de “luz”, de “presença cênica” e aquela audiência passiva, como Rancière (2010) problematiza. Diante disso, a prática artística, seus modos de fazer (no que se incluem noções de treinamento, ensino, desenvolvimento de técnicas e formas de se colocar em relação com o outro), não se manteriam em um lugar de certezas, de segurança acerca dos modos de recepção, o que, por outro lado, também não implicaria em displicência, em um esquecimento de um rigor no fazer prévio, mas talvez se reorganizasse como estrutura porosa, aberta aos afetos do encontro. Inicio esta discussão convidando o leitor a observar possíveis armadilhas que se revelam ao acreditarmos que detemos o potencial de prever a percepção do outro diante de nossas ações. Relato a seguir um desses equívocos, nascido na empolgação da descoberta de uma “grande ideia”, que parecia “genial”, mas apenas para nós, as performers do coletivo Mapas e hipertextos. Estávamos na sala de ensaio a pesquisar, discutíamos a violência, sobre o que nos provoca a sensação de violação e de paralisia, o que nos deixa indignadas; acabamos por desenvolver alguns textos descritivos de nossas reações, estados do corpo identificados nessas situações. Criamos uma estrutura em que uma pessoa narrava esses estados, e as outras pessoas, dispostas em linha reta e com relação frontal com a narradora, tentavam transformar as palavras em movimentos. Exponho a seguir as imagens de alguns dos textos criados durante o processo.

Registro do processo de experimentação compositiva acerca do tema “indignação” desenvolvido no dia 25/05/2014. Foto: Acervo do grupo

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Registro do processo de experimentação compositiva acerca do tema “indignação” desenvolvido no dia 25/05/2014. Foto: Acervo do grupo

Era impossível não rir de nossa situação, do desdobramento que nossas emoções ganhavam naquela experimentação; eu via minhas palavras transformando-se em coisas ridículas e absurdas, me afetava pelo esforço das outras integrantes em evidenciar, com pequenas ações, o modo como eu respondia à violência. Resolvemos dividir nossa descoberta com o público. Criamos uma estrutura modular que iniciava com pequenas ações elaboradas anteriormente nos nossos estudos sobre o tema, e que culminavam nessa última ação coletiva, em consonância com a narração das sensações. Faríamos o que já havíamos desenvolvido no grupo, mas com a inclusão das descrições do público de suas próprias reações diante do sentimento de indignação, obrigandonos a improvisar também a partir das palavras dos espectadores participantes. O trabalho ganhou o título Sobre (im)posição nos Anais Vol.75, e foi levado ao público no dia 25 de junho de 2014, como parte da programação da Semana Performática da UDESC6. As ações desenvolvidas nesse trabalho surgiram, em sua maioria, de questões trazidas por nós, integrantes do grupo, após alguns dias de observação de acontecimentos no cotidiano que nos causariam a sensação de paralisia, de indignação. Dentre as ações que emergiram no processo selecionamos algumas a serem apresentadas na Semana Performática; uma trataria da ideia

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5 Nesse trabalho, participaram Cecília Lauritzen, Diana Gilardenghi, Mayana Marengo, Michele Louise Schiocchet, Paloma Bianchi, Raquel Purper, e eu. Seu processo de composição foi impulsionado pela discussão sobre a experiência da violência em instâncias diversas. Tal processo partiu de questões como: O que te faz sentir violada? e O que te provoca indignação? Essas questões se transformaram em fragmentos compositivos, como o que aqui citei, e que, ao serem combinados e recombinados por uma lógica de modularidade, permitem a emergência de outros sentidos que, nesse caso específico, eram relacionados à sujeição, anulação da capacidade de decisão e ao desejo de violência. O trabalho se construiu partindo da exploração, no corpo, das impossibilidades, das restrições, das limitações advindas com a violência, gerando então diferentes ações. É um desejo do grupo a descoberta de modos de provocar a atividade do público, não necessariamente com sua exposição diante dos outros, mas de várias formas, como um convite a ser cúmplice no processo, e também decidir suas possíveis direções. 6 Esse evento é uma iniciativa da Profª. Drª. Daiane Dordete, responsável pelo Laboratório Permanente de Performance do Centro de Artes da UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina), na cidade de Florianópolis, SC.

de fracasso perante algumas exigências da vida em sociedade – uma das performers iria expor ao público seus dilemas, suas falhas como atriz durante o processo criativo; outra tratava da questão do estupro – uma das performers passaria um áudio com a gravação de diversos comentários machistas coletados em redes sociais, de homens e mulheres, acerca do comportamento feminino, sobre tipo de roupa que as mulheres usam e que, teoricamente, provocaria o estuprador, enquanto isso a performer vestiria uma grande quantidade de roupas sobrepostas até perder a mobilidade; outra ação, a ser realizada por mim, trataria do constrangimento e da paralisia diante de uma situação de humilhação – eu relataria o dilema da tentativa de resolução de uma cobrança indevida de cartão crédito, a qual o banco se negava a assumir, me equilibrando em superfícies instáveis de madeira, ao mesmo tempo em que outras integrantes do grupo tentariam me calar ao por objetos e roupas em minha boca, enquanto uma imagem de Santo Ander passaria pelo público, em uma cesta de coleta de dinheiro; e na última ação, uma das performers narraria as sensações do corpo diante de situações de indignação, enquanto todas as outras tentariam corporificar essas sensações, vestidas até a cintura com um saco de lixo; enquanto isso, imagens em vídeo de outras ações desenvolvidas previamente por nós eram projetadas em nossos corpos. Ao final convidaríamos o público a ocupar nossos lugares, de narração e corporificação das sensações narradas, e a performance terminaria quando o público decidisse parar. Havíamos combinado sair perguntando ao público, momentos antes da realização de nossa performance, como eles percebiam-se nessas condições de indignação. Uma de nós o fez, anotou algumas descrições. Essa parecia uma possibilidade de criar algo comum que pudéssemos partilhar, pois estávamos interessadas em observar o andamento da proposta com o engajamento do público, esperando que eles experimentassem os movimentos de suas reações à indignação diante dos outros, já que, em um dado momento, os convidaríamos a ocupar nossos lugares, e a decidirem até quando o jogo seria mantido. Da previsão ao fato, para nossa surpresa, nada de riso, apenas estranhamento, um aparente prazer nos olhares, e alguns relatos de empatia diante das situações apresentadas. O que tinha arrancado gargalhadas de nós, não parecia ter o mesmo efeito sobre o público. A ação, ao ser arrastada para outro contexto, permitia que essas novas recepções desenhassem outros possíveis efeitos. Alguns espectadores participantes aceitaram ocupar nossos lugares de narração, e de transformação da sensação em movimento, diante de nosso convite, mas não por um explícito envolvimento no que fazíamos. Nós deduzimos a resposta do público, e por mais que nos sentíssemos abertas e preparadas para suas reações, nos surpreendemos.

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Registro da realização da performance Sobre (im) posição nos Anais Vol.7 na Semana Performática da UDESC no dia 25/06/2014. Foto: Gabriel Campos - Acervo do grupo

Presença e Afeto Se não podemos antever os efeitos dos encontros entre os corpos, mas mesmo assim nos mantemos sempre à procura dos bons encontros, como nos propõe Espinosa (1992), não poderíamos, então, ignorar a possibilidade de sermos afetados pelos corpos presentes em uma experiência artística. Como poderíamos balizar tais efeitos e expectativas na prática artística? Que presenças poderíamos ser diante de uma configuração relacional de trânsito de afetos, e diante da possibilidade de sermos surpreendidos pela recepção do público? Como permitir que o que articulamos previamente em nosso trabalho seja contaminado pelas emergências dessa configuração de relações que se desenha no aqui-agora? A meu ver, o reconhecimento de que somos afetados por tudo o que existe em nosso entorno (ESPINOSA, 1992), já se mostra um grande passo na direção de uma presença menos armada de artifícios assertivos, e mais porosa e receptiva às emergências do encontro. Alguns estudos, como os do francês Yannick Bressan (2006, 2014), juntamente com uma equipe multidisciplinar, trazem possibilidades de previsão acerca do que os espectadores podem sentir ao serem expostos a um espetáculo de teatro (nos casos exemplificados pelo autor, é possível identificar que se trata de uma referência de teatro baseada em aspectos ficcionais). Ao

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7 Esse autor é professor e pesquisador na Université de Psychologie de Strasbourg na área das artes visuais e novas tecnologias. Os estudos aqui citados ocorreram entre 2007-2008, e foram envolvidos o Laboratoire d’Imagerie et de Neurosciences Cogntivies (LINC), o Hospital Civil de Estrasburgo e o Théâtre National de Strasbourg, a fim de determinar as correlações neuronais da adesão de um sujeito espectador diante de um espetáculo de teatro. Bressan e uma equipe multidisciplinar (neurociências, estética, estudos teatrais e psicologia cognitiva) descobrem nesse estudo o Princípio da adesão emergentista (PAEm), entendido como um fenômeno psico-cognitivo que leva um sujeito a “construir uma realidade para a qual ele vai dar, mais ou menos conscientemente, uma força de existência a tal ponto que essa realidade emergente se tornará a realidade do sujeito aderente” [grifo do autor] (BRESSAN 2014, p. 252).

desenvolver essa pesquisa que aborda o modo como o espectador (seu sistema cognitivo) é afetado pela representação teatral, ele chega a um ponto que permite o mapeamento de níveis de reação dos espectadores diante desse fenômeno, o que lhe possibilita a discussão sobre o que conferiria eficiência à representação teatral, chegando à afirmação de que seria possível manipular a percepção do espectador, e que sua adesão dependeria do que teria sido previamente organizado pelo diretor e pela equipe do espetáculo7. A possibilidade de afeto por empatia parece ser a mais aceita na comunidade científica, e uma descoberta que pode nos servir de exemplo para pensar os modos de se provocar a percepção do espectador na experiência artística presencial é a dos neurônios espelho, pelos neurocientistas italianos Giacomo Rizzolate, Vittorio Gallese e Leonardo Fogassi em 1996, na Universidade de Parma. Ao fazerem uma experiência sobre a atividade neural de um macaco, os pesquisadores identificaram que os neurônios pré-motores do animal eram ativados diante da sua exposição à ação de um dos cientistas, que era a de pegar um alimento, descobrindo com isso que as regiões do cérebro responsáveis pelo movimento são ativadas diante da sua exposição à ação, fazendo o cérebro de quem assiste simular a ação como se estivesse realizando-a (BLAKESLEE, 2006), ou seja, ao vivenciarmos uma experiência artística, o corpo se engaja ao ponto de reproduzir em si o movimento observado. As conclusões das pesquisas de Bressan (2006, 2014), e sua equipe não estariam tão distantes de uma realidade do fazer artístico que, nesse desejo de provocar as sensações no público se utiliza de diversas formas de articulação poética, porém, cabe ressaltar aqui que, ao considerarmos o contexto exposto inicialmente nesse trabalho, que visa uma contaminação nos modos de fazer pelo olhar aos modos de vida, e a configuração das relações no aqui-agora do encontro, a presença do artista estaria muito mais próxima de uma noção de observação atenta ao entorno, de partilha e de inclusão dos afetos que incorrem nesse aqui-agora do encontro entre corpos. Esse modo de pensar/fazer impediria a previsibilidade de seus efeitos. Retomo também a questão das diferenças entre as recepções, o que leva em conta o contexto sociocultural de cada indivíduo, seu estado atual e suas referências estéticas, além da consideração da especificidade de cada linguagem, ou modo de articulação da proposta. A pesquisa de Bressan, por exemplo, se direcionava especificamente à experiência teatral ficcional. O breve relato sobre a experiência vivenciada com o público no coletivo Mapas e Hipertextos foi trazido neste ensaio como modo de exemplificar o quanto o ato presencial está impregnado dessas questões, e também o quanto parece pertinente propor discussões acerca das relações entre artista e ambiente, partindo da vivência das práticas artísticas, não se mantendo

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somente em referências teórico-especulativas. Descobrimos nesse fazer que a “certeza” pode ser uma armadilha, e que também não seria possível descobrir, de antemão, como o público reagiria às propostas. Parece pertinente ratificar que, ao chamar a atenção para a possibilidade de se ter as ações contaminadas pelo entorno, de permitir que o a priori seja transformado, em favor da criação de algo comum, não se desconsidera a necessidade de um rigor no fazer, de um treinamento que organize estruturas prévias a partir das próprias percepções de eficácia, desde que se assuma que se se tratam de impressões individuais, e não gerais. Penso essa discussão muito mais como um convite ao questionamento de uma noção de presença impositiva, impávida do artista, e menos uma formulação sobre a teoria da recepção, apesar de reconhecer a indissociabilidade desses termos. Ao finalizarmos nossa performance, a impressão de composição com o outro me surgia como reverberação do encontro, e isso ocorreu por dois motivos: durante a execução de nossas ações, devido a proximidade com o público, era possível observar suas respostas diante do que viviam, e isso era um feed back instantâneo da potência de nossas ações; o outro motivo se liga ao fato de termos deixado nas mãos do público uma parte do andamento das ações que havíamos iniciado, permitindo que eles decidissem quando o trabalho terminaria. Posteriormente, essa relação permitiu o desdobramento do que foi posto naquela ocasião, fazendo-nos questionar, em outro trabalho, quanta responsabilidade pode ser atribuída ao público, e o quanto é, de fato, nosso papel nessa partilha do sensível. As medidas não parecem dadas previamente. Sobre o professor artista Seria possível uma associação desses aspectos da recepção da experiência artística com a questão do ensino nas artes presenciais? O que a academia poderia oferecer, nesse sentido, àquele que pretende atuar, seja na produção artística, seja na formação de outros artistas? E se a preparação do artista e do professor também se pautasse em noções de responsividade, em que ambos assumem a responsabilidade pelo processo? E se o que chamamos de processos pedagógicos do artista também se contaminasse por uma noção de partilha? E se o “mestre” deixasse, de fato, que alguma ignorância permeasse seu modo de olhar/viver as relações, ou, como nos provoca Rancière (2002, p. 28), “como poderá o mestre sábio aceitar que é capaz de ensinar tão bem aquilo que ignora quanto o que sabe?”. Rancière (2002, p. 75), compreende que “a arte é uma língua que pode ser entendida e falada por qualquer um que tenha inteligência dessa língua”, assim como qualquer outra dimensão

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do saber/fazer, portanto, a arte não se trataria de um saber destacado de outros. Ao tomarmos como referência uma ideia de horizontalidade nas relações, os binômios artista e público, mestre e aprendiz podem ganhar outras potências que não se restringem apenas a obediência de hierarquias de valor, função e posição, fundando novos modos de se estabelecer vínculo, de se criar comunidade, diante da produção e percepção dos afetos que incorrem nas relações. Considerar a imprevisibilidade dos encontros pode desvelar, nos corpos, forças e sensibilidades que potencializam as relações. Nos nossos últimos trabalhos no coletivo Mapas e Hipertextos algumas atitudes, influenciadas por esse modo de pensar a recepção, se tornaram recorrentes: uma delas é a realização das ações em espaços que não possuem a divisão palco – plateia, na tentativa de trazer o público cada vez mais próximo de nós, tornando-os parte das ações (não utilizamos iluminação de teatro, e se ela existe, vai iluminar também o espectador); outra, diz respeito a revelação de todo o processo de montagem, com a troca de figurinos e alteração do espaço diante dos olhos do público; e por último, a exposição da fragilidade das próprias integrantes diante de algumas situações tem se transformado em tema das ações, pois ao revelarmos o quão vulneráveis somos, criamos um ambiente em que aquele que propõe se mostra desarmado, convidando o outro a desarmar-se também. Esses aspectos apontados me parecem, particularmente, interessantes no contexto do ensino. Quando o professor assume o papel do artista cheio de “presença” (como aquele que, armado do conhecimento, detém poder sobre o que o outro deverá aprender), ele já inicia a relação fixando uma diferença entre as presenças, o que mantém quem deveria ser seu interlocutor em um lugar de passividade. Que potências emergiriam de uma relação entre corpos conformados nesse tipo de padrão que impõe uma diferenciação por juízo de valor? Ao se ter tal dinâmica como referência, sua reprodução parece garantida, e assim se prossegue em um ciclo vicioso de manutenção de poder e obediência a ele, algo que destoa grandemente das questões da arte, principalmente no contexto da produção e recepção contemporâneas. Talvez, a relação entre os processos de criação, recepção e ensino nas artes da presença seja mais estreita do que nos parece. Talvez se trate, de fato, de considerarmos encontro entre corpos como uma experiência de descoberta mútua, como uma partilha de afetos em que se faz necessária muita disponibilidade, e uma boa dose de ignorância.

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Referências BLAKESLEE, Sandra. “Os neurônios que podem ler mentes: Células cerebrais chamadas de espelho são capazes de analisar cenas e interpretar as intenções dos outros”. In: Jornal da Ciência, 30 Jan. 2006. Disponível em: . Acesso em: 30/08/2012. BRESSAN, Yannick. “O Teatro e o Princípio de Adesão Emergentista”. In: Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 249-262, maio/ago. 2014. Disponível em: _____; METZ-LUTZ, Marie-Noëlle; HEIDER, Nathalie; OTZENBERGER; Hélène, “What physiological changes and cerebral traces tell us about adhesion to fiction during theater-watching”. In: Frontiersin Human neuroscience, Vol. 4, Article 59, August, 2010. Disponível em: Acesso em 26/07/2014. ESPINOSA, Bento. Ética. Parte II (Da Natureza e da Origem da alma) e Parte III (Da origem e da Natureza das Afecções). Lisboa: Relógio D’Água, 1992. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: Estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: 34, 2005. _____. “O espectador emancipado”. In: Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas / Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. Tradução: Daniele Ávila. Florianópolis: Vol. 1, nº15, p. 107 – 122, out 2010. _________________. O mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução: Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

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