Presente de branco, presente de grego? Escola e escrita em comunidades indígenas do Brasil Central

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Presente de branco, presente de grego? Escola e escrita em comunidades indígenas do Brasil Central

Ricardo Antonio Cavalcanti-Schiel

PPGAS - Museu Nacional - UFRJ Mestrado

Orientadora: Profa Dra Bruna Franchetto

Rio de Janeiro 1999

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Presente de branco, presente de grego? Escola e escrita em comunidades indígenas do Brasil Central

Ricardo Antonio Cavalcanti-Schiel

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Aprovada por:

Profa Dra Bruna Franchetto - Orientadora

Profa Dra Yonne Leite

Profo Dro Antonio Carlos de Souza Lima

Rio de Janeiro 1999

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Cavalcanti-Schiel, Ricardo Antonio. Presente de branco, presente de grego? Escola e escrita em comunidades indígenas do Brasil Central/ Ricardo A. CavalcantiSchiel. Rio de Janeiro: UFRJ-Museu Nacional, 1999. xi, 209 Dissertação - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Museu Nacional. 1. Alto Xingu - Relações Interétnicas. 2. Índios da América do Sul Educação - Brasil. 3. Tese (Mestr.- UFRJ/Museu Nacional). I. Título.

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Para o povo Kalapalo de Tanguro e o povo Bakairi do Paranatinga

Para o Prof o Luís Rodolfo Vilhena (In memoriam)

v

Agradecimentos

Em primeiro lugar devo registrar meus agradecimentos ao CNPq e à CAPES, que me proveram bolsas de estudo nos dois primeiros anos do mestrado e que, com isso, garantiram-me condições de tranqüilidade financeira e dedicação aos estudos; estudos que constituíram o suporte intelectual sobre o qual se assentou o presente trabalho e dos quais ele é seu resultado. A eficiência exemplar do aparato organizacional do Museu Nacional, o ambiente de seriedade e de dedicação ao trabalho intelectual vigentes na casa foram motivos de estímulo e da minha mais elevada admiração, que aqui não deixo de externar. Meus

professores

foram,

obviamente,

os

guias

dos

caminhos

intelectuais que trilhei, os mapas e os horizontes mais largos que instigaram minhas curiosidades e disciplinaram meu alvoroço. Não há privilégio maior para um iniciante que ser aluno deles. Uma inquieta curiosidade, uma sede constante de erudição e uma certa bonomia cultivada foi o que via de regra encontrei nos meus colegas, que contribuíram mais do que com um ambiente intelectual favorável, mostraram-se mesmo como que cúmplices de algo que talvez se possa referir como um pathos intelectual. Tudo isso, mais a disponibilidade de acesso a um riquíssimo e atualizado acervo bibliográfico, a convivência constante com pesquisadores externos do mais elevado gabarito e um ambiente acadêmico que privilegia a produção científica fizeram desses anos nesta casa motivo para mim de particular orgulho. Por isso tudo creio que não cometo nenhum exagero se disser que não há privilégio maior para um antropólogo em formação no Brasil hoje que ser aluno do Museu Nacional. Este trabalho, de sua parte, se veio à luz é porque para isso concorreram o empenho, a paciência, o ânimo, a generosidade e o apoio daquela que me abriu várias portas e segurou umas tantas barras, minha mestra e orientadora Bruna Franchetto.

vi

A pesquisa que possibilitou a produção deste trabalho final, de seu turno, só foi possível porque algumas pessoas concorreram para a sua consecução. Expresso aqui minha penhorada gratidão antes de tudo aos povos que me receberam, e aos quais este trabalho vai dedicado. Aos que me acolheram em suas casas, em sua convivência familiar, às suas belíssimas lembranças,

registro

minha

imensa

saudade.

Deixo

particulares

agradecimentos àqueles que mediaram meus contatos e que se dispuseram sempre a dialogar comigo. Faço-o a Loike Kalapalo, Darlene Taukane e à Profa Edir Pina de Barros. Agradeço também à disponibilidade que manifestaram os agentes das instituições

com

as

quais

tive

contato,

em

especial

do

Instituto

Socioambiental, da Secretaria de Estado da Educação do Mato Grosso e do Colégio La Salle de São Carlos. A pesquisa bibliográfica contou com o aporte da preciosa biblioteca do PPGAS do Museu Nacional, da biblioteca da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo, da biblioteca da

Universidade de Brasília, do serviço de documentação do Museu do Índio do Rio de Janeiro e, claro, residindo em Campinas, vali-me da rica, organizada, bem atendida e confortabilíssima biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, além das raridades bibliográficas do acervo das coleções especiais da sua Biblioteca Central. Diante delas sei que não há melhor escudeiro para um pesquisador que um bom bibliotecário. A todos eles meus reconhecimentos. Meus interlocutores foram também, em muitos momentos, pontos de apoio e de estímulo intelectual. Dentre os colegas menciono em particular, no Museu Nacional, Gustavo Blazquez, Clara Lourido, Richard Y. Braga, Kátia Ma Pereira de Almeida, Letícia Vianna, José Gabriel S. Correa e Edmundo M. Mendes Pereira; na Unicamp, Igor Rennó Machado e Edson Farias. Contei também com a privilegiada (para mim) disponibilidade para o diálogo dos professores Wilmar D’Angelis, na Unicamp, e Antonio Carlos Souza Lima, no Museu. Também este último e a Profa Aparecida Vilaça leram e comentaram meu projeto de pesquisa. De alguns de seus comentários pude extrair vigorosos insights. Em uma de minhas estadias em campo pude contar com a interlocução amistosa e atenta de David Rodgers, meu colega de Manchester, como também da rápida mas animadora convivência com a Profa Ellen Basso.

vii

A base inicial da minha formação acadêmica devo a uns tantos professores do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sua lembrança é imprescindível, e a manifesto evocando meu orientador na graduação, Profo Luís Rodolfo Vilhena, falecido tragicamente menos de dois anos após defender sua tese de doutorado no Museu, quando me encontrava no último período de cursos disciplinares do mestrado. À sua memória este trabalho é também dedicado. Não gostaria de deixar de lembrar de alguns amigos que, nos últimos anos, acolheram-me com a sua companhia e amabilidade. No Rio, Alessandra Barreto, Marcello Milhomem e o velho de guerra Wladimir Preto Cardoso. Em São Paulo, os sempre cordiais e jazzófilos Pedro Cardoso e Da Matilde, Pedro Luís e Carmem. Em Campinas, Ana Sílvia, Wolfgang e, claro, Laura Eugenia Perez Freitas e Juan Martinez, com quem, na esterilidade provinciana de um lugarejo como este  esta minha detestável Charleville (não que eu queira me comparar com o velho Arthur, bien entendu) , desfrutar de uma conversa inteligente, um bom vinho e um bom jamón serrano foram-me muitas vezes excelentes motivos para voltar de bom humor a sentar e escrever. No Rio, contei ainda com a acolhida amável de meus tios Aristeu e Gilda Acosta (falecida há um ano) e meus primos Glaiza e Glaiton Bento Acosta. Pelo quanto possa lhes ter sido importuno, penitencio-me; pelo quanto me receberam generosamente, sou para sempre grato. O velho Pessoa uma vez falou de certas horas quando “suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce”. Devo a Sueli e Adriane a suavidade dessas tardes. Por fim, não posso me furtar de lembrar o quão abismado reconheci com alguém que as almas ainda se entendem. Como a sereia de Lampedusa, Helena guarda os segredos de uma língua que se aprende para nunca mais esquecer. Pouco antes de encerrar esta seção dita administrativamente prétextual, revi o trabalho (textual) que se segue e confesso-me um tanto quanto descontente com o que escrevi. Agora é tarde. Só me resta acrescentar o pedido de que as vítimas destes meus agradecimentos não se sintam molestadas com a pequenez e os equívocos dos resultados que ora apresento. Para isso, obviamente, elas nada concorreram.

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RESUMO

CAVALCANTI-SCHIEL, Ricardo A. 1999. Presente de branco, presente de grego? Escola e escrita em comunidades indígenas do Brasil Central. Orientadora: Profa Dra Bruna Franchetto. Rio de Janeiro: PPGAS- Museu Nacional-UFRJ. Dissertação de Mestrado.

Este trabalho se pretende como uma investigação antropológica sobre o significado da apropriação da escola por comunidades indígenas brasileiras e, no âmbito desse fenômeno, uma discussão em torno do lugar da escrita, dos instrumentos e dos contextos de transmissão do conhecimento. O foco etnográfico é o das populações alto-xinguanas, mais precisamente um grupo Kalapalo e um grupo Bakairi (povo que deixou definitivamente o Alto Xingu na década de 20 deste século). As diferentes histórias do contato desses dois grupos com os diversos agentes brancos servem como eixos que informam distintos contextos de relações com a institucionalidade (em seus diversos domínios) da sociedade nacional envolvente. Defende-se que as relações desses povos com um domínio institucional como a escola são conformadas e precisadas por esses processos. São, portanto, relações eminentemente “políticas”. Procura-se, de outra parte, debater contra uma perspectiva de viés pedagogizante, sugerindo-se que uma associação automática e abstrata (e suas subseqüentes expectativas) entre escola, escrita e transmissão de conhecimento pode obliterar os termos mais relevantes de uma discussão sobre o fenômeno.

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ABSTRACT

CAVALCANTI-SCHIEL, Ricardo A. 1999. Presente de branco, presente de grego? Escola e escrita em comunidades indígenas do Brasil Central. Orientadora: Profa Dra Bruna Franchetto. Rio de Janeiro: PPGAS-Museu Nacional-UFRJ. Dissertação de Mestrado.

This essay seeks to present an anthropological discussion regarding the meaning of appropiation of the school by some Brazilian Indian communities. It examines the place of writing and the instruments and contexts of transmission of knowledge. The field of ethnographic inquiry is the Upper Xingu (Southeastern Amazonia), specifically a Kalapalo group and a Bakairi group (this one, a people who left the Upper Xingu Basin during the 1920s). Their different histories of contact with white agents furnish the axes to understand different ways of connections with institutional domains of Brazilian society. This essay argues that relationships between those peoples and the school (as an institutional sphere too) are configurated and specified by these processes. Therefore these relationships are fundamentally political. Likewise, this work argues against a pedagogical bias, suggesting that an automatic and abstract association between school, writing and transmision of knowledge can obliterate the most important terms of the discussion about this phenomenon.

x

Errata

Por

não

serem

possíveis

certos

recursos

de

acentuação gráfica no editor de textos utilizado para a redação

do

presente

trabalho,

algumas

palavras

indígenas foram grafadas em desacordo com a ortografia estabelecida para suas línguas: Uegühi - correção: com til sobre o “e”. Pakuera - correção: com til sobre o “e”. Painkun - correção: com til sobre o “u”.

xi

Índice

Capítulo 1 Introdução............................................................................................1 Capítulo 2 Os novos projetos de educação escolar indígena no Brasil......................8 Capítulo 3 Apontamentos para uma leitura da história alto-xinguana....................35 Capítulo 4 Bakairi e Kalapalo: Duas contas de um colar de miçangas....................52 Capítulo 5 Não vale o que está escrito (ou: Escolas “nas” aldeias ou escolas “das” aldeias?)........................................................................96 Capítulo 6 De volta aos Bakairi..........................................................................131 Capítulo 7 Mediadores sociais e histórias de vida...............................................161 Capítulo 8 Conclusão (também de moral)...........................................................182 Bibliografia..........................................................................................187 Apêndice..............................................................................................206

Capítulo 1

Introdução

“Foi assim que, à força de correr atrás daquelas imagens, eu as alcancei. Sei agora que foram inventadas. Inventar, porém, é uma criação, não uma simples mentira.” Italo Svevo

“Oh, bueno, continuo hablando en tercera persona, sigo sin incluir-me. Y no debería hacerlo, porque yo también soy un pchapchá, y tomo gupta, y miro el cielo, y hablo con los otros pchapchá del cosmos mediante códigos secretos de titileo de estrellas. Y a veces, como un niño traviesso, me divierto moviendo el polvo del cielo, haciendo caer lluvias de estrellas fugaces sobre la selva esmeralda.” César Mallorquí

Há pouco mais de dez anos, Peter Gow, ao estudar a organização social das comunidades nativas do Baixo Urubamba (Amazônia peruana), anotava a propósito da procura pela escola por essas comunidades: “O foco da literatura [sobre educação escolar para os povos nativos] tende a permanecer sobre o conteúdo cultural da educação e se uma forma específica de instrução é ou não culturalmente apropriada, mas não se reporta ao porquê de os povos nativos poderem estar tão interessados pela educação” (Gow, 1987: 232, tradução minha). Creio que a questão que, em última instância, moveu o presente trabalho é também precisamente esta. Na verdade, não me interessa descobrir razões nativas “profundas” ou “insuspeitas” para contribuir para um um programa educacional eficiente, mas investigar formas específicas de como o interesse e a apropriação da escola por grupos indígenas pode informar uma lógica de relações não necessariamente apreensível pelas idealizações pedagógicas a respeito da pertinência dessa ou daquela forma de educação escolar. Antes de mais nada, devo declarar que jamais estive “comprometido” com a causa da educação escolar para índios, ou melhor, jamais estive engajado em qualquer ação social desse tipo. Melhor para mim, creio. Assim estaria (relativamente) imune às inevitáveis e imperativas valorações em torno

Capítulo 1

2

da questão. Como prezo que seja um trabalho científico, parti para a pesquisa com uma questão teórica e não na busca (ou ao encontro) de verdades militantes. Ao encaminhar meu projeto de pesquisa ao CNPq, para emissão de parecer que me possibilitaria, através da Funai, obter a permissão formal para ingresso

em

área

indígena,

retornou-me

do

parecerista

a

sentença:

“recomendado com restrições”. Adiante explicita-se: “Em se tratando de uma etnografia, onde o ponto de vista dos atores envolvidos é de essencial importância para a pesquisa, cogita-se, em algum momento, da volta desse trabalho, principalmente da análise, para o posicionamento dos professores índios sobre a mesma?” Acrescenta-se também que a redação do projeto apontava para “um certo abuso da jargonística”. Assim, em caso de a questão anterior ser aplicável, como poderia ser resolvida a questão da redação acadêmica? Em primeiro lugar creio que o discurso científico nada mais é que uma certa gramática do pensamento, não necessariamente uma forma de desvelar verdades; verdades que uma fala ideal habermasiana entre doutos e índios, mouros e cristãos, anjos e demônios alçaria ao estatuto de “revelação”. As verdades são fabricadas socialmente, não cientificamente. Não, nada de demagogias. Não quero tampouco ensinar nada aos índios. E tenho quase absoluta certeza de que toda a minha ciência lhes é gozosamente indiferente. Adeus à Razão! diria como Feyerabend, ao início da minha viagem. Quanto à jargonística?...

Os

trabalhos

científicos

de

Lingüística

são

de

uma

terminologia abstrusa, a Matemática é uma cabala, por que deveria a Antropologia ser populista? De novo me parece que esperavam que nós (logo quem!), nós antropólogos, revelemos alguma verdade transparente. Todo texto tem um interlocutor presumido. Anuncio o meu. Escrevo deliberadamente para os antropólogos. Em primeiro lugar porque são eles que comporão a banca de avaliação deste trabalho. Mas é claro, outros discursos, outros tantos discursos nativos (dos muitos “nativos”, não necessariamente apenas “índios”), são objetos da minha observação, e diante deles me ponho. Parece-me óbvio também que os próprios índios com que convivi durante minha pesquisa demandavam, com toda razão, uma justificação, para eles, do trabalho antropológico. Só tenho a lhes dizer que a Antropologia não tem por si só o poder e a competência para responder às elementares

Capítulo 1

3

expectativas de reciprocidade que a sua acolhida, a sua hospitalidade, a sua paciência, a sua generosidade e a sua disponibilidade dedicam aos antropólogos. Como atores sociais sim, os antropólogos poderão lhes responder mais imediatamente. Mas não quero cometer a velhacaria (nem com os índios, nem com a ciência) de dizer-lhes que a ciência pode lhes oferecer algo. No nosso caso, dos antropólogos, tudo que ela pode fazer é atazanar as verdades domésticas daqueles que querem lhes oferecer umas poucas coisas e muitas “soluções”. Por um acaso, o título deste trabalho é “Presente de branco, presente de grego? Escola e escrita em comunidades indígenas do Brasil Central”. Há uma certa variedade de remetimentos aqui, alguns mais irônicos, outros mais sérios. A referência ao “presente de branco” ficará, imagino, razoavelmente esclarecida no correr do trabalho. Ela é ao mesmo tempo uma metáfora para as políticas indigenistas e também a evocação de um cromo dos tempos heróicos da “atração”, dos presentes pendurados nos tapiris. A civilização lhes está alcançando os calcanhares. Venham! De outra parte o “presente de grego” não é tão simplesmente o cavalo de tróia. Essa referência me surgiu quando preparava o projeto de pesquisa e procurava dar um pouco de ordem intelectual à maranha de teorias sobre “o impacto da escrita em sociedades de tradição oral” e ocorreu-me lembrar dos clássicos trabalhos de Eric Havelock (1963, 1982) sobre a introdução da escrita alfabética na Grécia antiga “e suas conseqüências culturais”. O “paradigma grego” permaneceu durante bastante tempo na minha cabeça. Não vejo mais necessidade dele e não trabalhei com ele no curso das análises que se seguem, mas o título inicial do projeto pareceu-me, ainda assim, esportivo. Deixei-o. O subtítulo é, reconheço, demasiado genérico para meu campo e meu objeto etnográfico. Mas, também com isso, ele pretende tornar mais evidentes minhas homenagens. Elas se remetem a alguns marcos fundadores na Etnografia xinguana. Desde os clássicos relatos de viagem de Karl von den Steinen  Durch Central-Brasilien (O Brasil Central) e Unter den Naturvölkern Zentral-Brasiliens (Entre os aborígenes do Brasil Central)  passando pela primeira monografia xinguana  The Trumaí Indians of Central Brazil (Murphy & Quain, 1955)  e chegando à primeira obra publicada sobre os Kalapalo  The Kalapalo Indians of Central Brasil (Basso, 1973)  um dos grupos nos quais centrei minhas atenções, como se verá. Essa reverência aos mestres é também uma forma de dizer que

Capítulo 1

4

este trabalho, como em geral os trabalhos em Antropologia, procura colocar-se diante da tradição da disciplina e manter, implicitamente, um diálogo com ela. Após a presente introdução, este trabalho vai se desdobrar por seis capítulos analíticos e uma conclusão. Não me inspirei em nenhum modelo tradicional para montar minha exposição. Ela se desdobra um tanto fragmentariamente, um pouco para ser fiel ao meu próprio material. Não creio que qualquer etnografia se faça mais que sobre resíduos, rastros, alguns vestígios que se puderam colher e que o trabalho da interpretação e da narrativa etnográfica vai juntar e entretecer. Assim, tudo pode ser refeito também por outros que virão, novos vestígios podem vir à luz (o que significa simplesmente serem “vistos”) às vezes de uma forma surpreendente. Uma etnografia é um texto, para falar como certos pós-modernos, mas um texto jamais acabado. Da mesma forma como só dispomos de resíduos, colhidos, ou melhor, delicadamente forjados, para o trabalho da interpretação, recuso-me a crer que se possa distinguir algo estritamente objetivo de algo que seria o subjetivo. Creio que esta é uma falsa distinção, que nos conduziria a falsos dilemas.

Prefiro

apostar

no

que

designaria

como

uma

subjetividade

hermenêutica. Algo como uma arte e engenho de atribuir lugares lógicos possíveis às coisas, como uma reconstrução ao mesmo tempo que uma composição, que às vezes se começa (por que não?) do leve gosto de uma madeleine embebida em chá. O Alto Xingu é, se não a área etnográfica mais explorada pela Etnografia das terras baixas, seguramente uma das mais exploradas. Isso facilita ao mesmo tempo que dificulta as coisas. Por um lado, é preciso pôr-se diante de toda uma considerável literatura etnográfica, e mais adiante  ou ao menos num domínio subjetivo (ou seja, pessoal) assustador  será preciso pôr-se diante de suas autoridades. Por outro lado, é preciso buscar os fios, traços,

desvãos

que

permitam

produzir

alguma

coisa

minimamente

interessante. Não me disponho, portanto, antropologicamente, a produzir um trabalho que seja algo mais que isso: razoavelmente interessante. Como já anunciei em parte, trata-se de uma investigação sobre a apropriação da escola por duas comunidades indígenas brasileiras, os Kalapalo da aldeia Tanguro, no Alto Xingu, e os Bakairi do Paranatinga, grupo resultante da composição de elementos originalmente alto-xinguanos sobre

Capítulo 1

5

um núcleo anterior. Ambos os grupos serão contextualizados em universos de relações sociais que se alargam da esfera local à esfera regional e à esfera nacional (e também internacional). Da mesma forma, essas relações procurarão ser vistas como tecidas e encordoadas na história. Lembro-me de novo do trabalho de Peter Gow, a anunciar seu método como “basicamente etnográfico antes que histórico” (Gow, 1987: 23). Parafraseando-o, diria que meu método é etnográfico tanto quanto histórico. No capítulo que se segue faço uma exposição geral do cenário de fundo das discussões mais recentes sobre o tema da escola entre índios. Genericamente falando, é essa literatura de que se refere Gow, cujo foco “tende a permanecer sobre o conteúdo cultural da educação”. A franca maioria

dos

escolarização

trabalhos

investigativos

de

foi

índios



constituída

realizados de

incursões

no

Brasil

sobre

acadêmicas

(ou

reorientações para o campo acadêmico) de carreiras pessoais de agentes diretamente envolvidos com a causa da educação escolar para índios. Não me lembro de ter lido nenhum trabalho (ou de saber de sua existência) que principiasse com uma declaração como a que principiei esta introdução, qual seja, de que se tem aqui como premissa partir de uma perspectiva não engajada. Pelo contrário, a maioria dos trabalhos de maior fôlego  exceto a portentosa tese de Maria Cândida Mendes Barros (1993b)  assumem feições marcadamente ativistas, justificadas pela prática ou por ela legitimadas (ou delas legitimadoras) e orientadas fundamentalmente por uma atitude propositiva, seja a proposição de “soluções”, seja a proposição de um ideário. São, antes de tudo, trabalhos de viés pedagógico, nos quais a Antropologia compareceu de forma quando muito subsidiária ou na forma de uma “antropologia aplicada” (Bastide, 1971). Não obstante, esses trabalhos lançaram os marcos discursivos com os quais tem-se que lidar ao tratar do assunto. É contra alguns dos pressupostos embutidos nesses marcos que se move uma parte do meu argumento central. Os

dois

capítulos

que

se

seguem

(3

e

4)

introduzem uma

contextualização histórica da área etnográfica focada, e os outros dois uma análise mais proximamente etnográfica, mesmo que as referências etnológicas fundamentais tenham sido arroladas já nos capítulos anteriores. O último capítulo antes da conclusão é um complemento instrumental sobre a conceituação de uma noção chave para observar os processos sociais a que

Capítulo 1

6

me remeti, a noção de mediador. Não há, portanto, um capítulo “teórico”. O que mais se aproximaria disso seria o Capítulo 3. A teoria vem agenciada nas análises, e as referências bibliográficas serão suficientes para os antropólogos reconhecerem os pontos de apoio. Como disse que este trabalho é escrito para eles, há, no correr da argumentação, uma considerável quantidade de implícitos que, uma vez circunstanciados, não vi necessidade de discorrer mais longamente a seu respeito. A forma como os trato pode parecer algo esnobe se não se tem em conta que em alguns momentos trabalha (ou conspira) uma leve ironia que pretende deslocar um pouco o lugar das coisas. É por isso também que utilizarei muitas aspas. Formalmente o uso das aspas servirá para indicar categorias nativas (dos muitos nativos) deslocadas para o curso da narrativa não-nativa (minha, bem entendido). Por extensão, o uso das aspas servirá também para tirar (e pôr) as coisas em outros lugares. Reservei-me de não usar aspas, salvo casos muito especiais, quando me refiro a brancos e a índios. Não busquei nenhuma formulação “científica” que pudesse dar conta do recorte dessas categorias mais do que o contexto pareceu-me fazê-lo, ou seja, reconhecendo-as como marcadores de diferença antes que como entes substantivos. A narrativa não pretende ter nada de exacerbadamente metódico. As seções internas dos capítulos são separadas apenas por três asteriscos, sem quaisquer outros subtítulos. Isso é proposital. Mesmo os inícios de capítulos às

vezes

podem

parecer

meio

abruptos.

Toda

essa

fragmentação

é

propositada. Ela é de fato a expressão de que a argumentação pode evoluir às vezes às apalpadelas, por recortes, agenciamentos, remetimentos, e não por uma pétrea e monolítica somatória dedutiva. Eu diria que a narrativa é “cinematográfica”, pois usa os mesmos recursos daquilo que em cinema se conhece por “narrativa americana”. São cenas, seqüências, cortes, que prescindem do tempo real, de “muletas cartesianas” se quisermos ser irônicos. O uso cursivo da primeira pessoa tem também o objetivo bastante claro de evidenciar uma construção em torno daquilo a que me referi como uma subjetividade hermenêutica. Os muitos outros que ponho diante de mim não estão aí para serem explicados, mas para serem curiosamente reconhecidos como parte de um grande jogo que, ao final das contas, também me abarcará. Não tenho (infelizmente, talvez) como evocar a idílica imagem

Capítulo 1

7

malinowskiana de ser deixado numa ilha enquanto o barco se afasta e, a partir

dessa

ruptura

ritual,

encontrar,

por

artes

e

encantamentos

etnográficos, os meus nativos. Também não irei até eles carcomido por uma certa neurastenia californiana de tensões urdidas por um poder onipresente e conspiratório, que me encurrala na má consciência do explorador póscolonial, macho, branco e capitalista. Tudo isso faz parte do jogo, e eu não sou nenhum gringo ingenuamente liberal que nunca viu um índio (ou algo que lhe pareça curiosamente estranho), diante de si ou do asséptico gramado de um campus universitário, para me espantar com o “poder”. Sou brasileiro, da nossa (cada vez mais) instável classe média; custeei minha pesquisa de campo com meu próprio dinheiro, e, para ir “aos índios”, tomo um ônibus, converso com alguns conhecidos que fiz graças a alguns contatos iniciais e minhas credenciais institucionais (benditas!), compro gasolina e tomo um barco que gentilmente os próprios índios me emprestam, e que sai de uma barranca nos limites do cerrado matogrossense, onde um índio chefe de posto toma chimarrão, conversando amigavelmente com um gaúcho que conserta quase todo tipo de motor. E, é claro, há muitos interesses envolvidos nisso tudo, como também desprendimento. De qualquer forma, já não há mais nada de épico nesse périplo antropológico, no máximo mosquitos, um filete de lua e o fundo vertiginosamente estrelado desse imenso céu matogrossense que nos protege. E assim como já não há mais nada de épico, tampouco resta muita coisa de ingenuamente empiricista; ou, no mínimo, tentarei me esforçar para não ser muito ingênuo. Espero que achem tudo isso ao menos razoavelmente interessante.

Capítulo 2

8

Os novos projetos de educação escolar indígena no Brasil

“O único início cabível numa declaração deste gênero é que eu detesto escrever. O próprio processo resume o conceito europeu de pensamento ‘legítimo’: o que é escrito tem uma importância que é negada ao falado. A minha cultura, a cultura dakota [Sioux], tem tradição oral e, portanto, eu usualmente rejeito escrever. Um dos meios de que se vale o mundo dos brancos para destruir as culturas de povos não europeus é impor uma abstração à relação falada de um povo.” Russel Means

Uma certa interpretação corrente reputa à Carta Constitucional de 1988 (particularmente aos artigos 215 e 2311) a ruptura com uma longa tradição da legislação brasileira, ao reconhecer, pela primeira vez, o direito à “diversidade cultural” (p. ex. Santilli, 1989: 13; Ferreira, 1992: 196; Grupioni, 1994: 88; MEC, 1998: 31). Para muitos envolvidos com a questão indígena no país isso significou algo como a sinalização da possibilidade de passagem das trevas à luz. Apesar de para alguns parecer abrupto, gostaria de já começar com uma proposição nada apologética (inclusive no que diz respeito às esperanças culturalistas). A de que o que se atribui como o reconhecimento do direito à diversidade cultural representa, antes de tudo, um marco da emergência de um paradigma liberal, que, desta feita, alcança a “cultura” como um distintivo regulador de direitos. O que se move por trás e para além da presumida regulação social operada pela gramática ideal dos direitos  bem como as manobras discursivas em torno das conceituações operantes disso a que se refere como “cultura”  é outra estória.

1

Transcrevo-os: “Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1o - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Art. 231 (Caput). São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

Capítulo 2

9

O domínio daquilo que se convencionou chamar de educação escolar indígena ou, dizendo concretamente, conforme exporei logo a seguir, das idealizações projetivas que configuram esse objeto, parece-me um campo particularmente sugestivo para pensar como se arquitetam e se movem as nossas construções a respeito dos direitos dos outros nacionais, no caso, as populações indígenas, em especial diante daquilo que se tende a reconhecer como a(s) sua(s) cultura(s). Este capítulo dedica-se a apresentar de forma panorâmica alguns marcos referenciais em que se inserem as novas experiências em torno da educação escolar para índios, inspiradas não mais pelo pressuposto da assimilação ou da “aculturação” (ou ainda, para usar uma referência da terminologia outrora vigente, da integração), mas pelo pressuposto do “direito à diversidade cultural”. Essas novas experiências têm início, de forma esparsa e rarefeita, no correr da década de 70, adensando-se e buscando articulações regionais ou nacional ao final dessa década e início da década de 80 e, finalmente, disseminando-se

numa considerável variedade

de projetos específicos,

conduzidos principalmente por organizações não-governamentais (ONG’s), no decorrer dos anos 80, até, por fim, principiar por conquistar o suporte (normativo e administrativo) dos setores governamentais no correr da década de 90. O que, no entanto, serve de denominador comum para caracterizar essas experiências inicialmente chamadas de “alternativas” foi, até o momento, o predomínio de ações diversificadas, constituídas sob a forma de uma constelação de projetos, que, não obstante, orientam-se por alguns eixos referenciais comuns, expressando um ideário e um conjunto de ações genericamente confluentes. O conteúdo desse ideário e dessas ações é o que pretendo expor e comentar no correr desse capítulo. ∗





Sempre que se pensou em escola como parte de uma política sistemática com relação aos índios, seja missionária seja laica, pensou-se-a como aparato provedor de um instrumental de acesso ao conhecimento. A forma mais acabada e sacramentada desse instrumental é a escrita, seja para ler a Bíblia, seja para aprender um ofício, seja para defender-se dos logros dos

Capítulo 2

10

brancos ou tomar conhecimento dos seus direitos, de tal maneira que entre escrita e escola parece haver uma relação necessária. Instituição e seu conteúdo. Se, ademais, se reconhece na escrita a função (ao menos aparentemente) elementar de transmissão de conhecimento, esse terceiro elemento junta-se aos demais formando um artefato dotado de uma intercausalidade orgânica, reforçadora e quase incontestável. Os progressivos questionamentos

(mas

também

implementos)

às

políticas

indigenistas

parecem, curiosamente também ter percorrido essa mesma seqüência. Primeiro, era necessário (e subseqüentemente “urgia-se”) dotar de escolas as comunidades indígenas  ou ao menos aquilo que foi amontoado junto a postos indígenas. Depois, questionou-se qual a melhor escrita (de que língua) se deveria dotar (e adotar) e, por fim, e creio que hoje estamos por aqui, questiona-se que conhecimento se deve transmitir. Como totalidade, esse artefato (e sua imanente virtude) parece ainda singularmente fora de questão. Os dados fornecidos por Luiz Otávio Pinheiro da Cunha (1990) demonstram que o ritmo do desenrolar-se daquele primeiro momento acima apontado é expressivo. Quantitativamente, portanto  a título de ilustração, já que esses dados estão algo desatualizados  o quadro por ele apresentado é o seguinte:

escolas no alunos docentes monitores∗ ∗

1954

1975

1981

1985

1988

67 *** *** ***

101 11.000 *** ***

154 10.535 172 84

467 32.337 186 178

650 38.521 451 244

Fonte: CEDOC/Funai, apud Cunha (1990: 82) (∗ ∗) monitores bilingües contratados pela Funai.

É qualitativamente, entretanto, que começamos a entrar no terreno mais próprio e específico dos novos projetos de educação escolar indígena. Não obstante, a despeito do que usualmente se tende a afirmar, esse debate não lhe é exclusivo e tampouco foi inaugurado pela emergência desses projetos, sendo precedido por manifestações gestadas já no âmbito dos órgãos indigenistas oficiais (SPI e Funai). Como notam L. O. Cunha (1990: 88-94) e Ma Cândida D. Mendes Barros (1993a: 249), com base em documentação do próprio Serviço de Proteção aos Índios (SPI), já em 1953 discutia-se criticamente uma

Capítulo 2

11

reestruturação das escolas, visando adaptá-las às particularidades de cada grupo indígena. E como também nota L. O. Cunha, essa reestruturação orientava-se por dois vetores argumentativos. O primeiro subordinava-se ao “grau de aculturação”, reconhecendo-se que “a alfabetização só oferece vantagens reais para os grupos mais assimilados, que geralmente são bilíngües” (SPI, 1953 apud Cunha, 1990: 91). A par disso, um segundo vetor é manifestado, o da exeqüibilidade de um ensino bilíngüe, a propósito do quê, o órgão reconhecia a sua incapacidade de meios para provê-lo, aliada a uma implicitamente presumida baixa rentabilidade (quantitativa) dos esforços: “São muito poucos os grupos que contam com mais de um milhar de pessoas, a grande maioria deles conta por pouca centenas e a alfabetização bilíngüe exigiria preparo de uma infinidade de gramáticas para as várias línguas e alfabetos falados pelos índios e a preparação de outros tantos professores capazes de aplicá-los, o que foge inteiramente às nossas possibilidades” (ibidem). A diretiva então implementada pelo SPI aponta para uma solução de conveniência: Alfabetizar em português apenas os indivíduos já treinados na fala dessa língua e direcionar a educação escolar para “ensinamentos rurais, como principal ensinamento a ser ministrado aos alunos índios” (SPI, 1960 apud Cunha, 1990: 93). Dessa forma, como conclui Cunha, “a proposta de uma escola indígena com algumas adaptações, no sentido de melhorar o seu funcionamento, deve ser situada no conjunto de orientações adotadas pelo SPI, nos anos 50 e 60, segundo as quais os índios deveriam se integrar na sociedade

nacional

através

do

trabalho”

(Cunha,

1990:

94).

O

redimensionamento que a Funai (Fundação Nacional do Índio) viria a projetar para a adequação das escolas para índios apontaria para uma outra estratégia, mas, nesse caso, um elemento novo entrava a compor o quadro de relações: a presença do Summer Institute of Linguistics (SIL). Fundado em 1934 e mantido pelos auspícios financeiros da Wycliffe Bible Translators, o SIL recruta (até hoje) evangelizadores protestantes, treinando-os em técnicas lingüísticas2 para realizar a conversão gráfica de línguas sem escrita e levar até os seus falantes gentios textos bíblicos vertidos 2

A Wycliffe Bible Translators, criada dois anos após o SIL, é, de acordo com Ma Cândida D. Mendes Barros, “a instituição que representa o SIL para o público evangélico nos Estados Unidos” (M. C. M. Barros, 1993a: 18), acrescentando que “a escolha do nome de Wycliffe, líder da Reforma protestante na Inglaterra e tradutor da Bíblia para o inglês, aponta para o vínculo do novo padrão de missionário, o de lingüista, com a figura tradicional do tradutor bíblico da Reforma” (ibidem).

Capítulo 2

12

para a sua língua, visando a sua conversão religiosa. A isso é associada (ou, talvez melhor, subordinada) a implantação de programas educacionais de alfabetização, visando a tornar os silvícolas aptos a receber a Palavra escrita3. Para dar curso a sua ação missionária, o SIL estabeleceu progressivamente, desde a década de sua fundação, acordos de cooperação com os mais variados governos, particularmente os latino-americanos (cerca de uma dezena), tendo como princípio “sempre procurar desenvolver suas atividades lingüísticas segundo

as

expectativas,

desejos

e

necessidades

apresentadas

pelas

autoridades de cada país onde for convidado a trabalhar” (SIL, 1986 apud Cunha, 1990: 86). Essa postura oficialista do SIL significou, na América Latina,

engajar-se

alfabetização

de

nos

mais

índios, que

diversos

programas

tinham por objetivo

governamentais integrá-los

de

a uma

nacionalidade sempre em construção (Bonfil, 1981; Urban & Sherzer, 1991), através de uma educação bilíngüe (como parte do programa educacional oficial), segundo o cânone do indigenismo mexicano pós-revolucionário e cardenista, disseminado pelo Instituto Indigenista Interamericano (M. C. M. Barros, 1993a: 233-237). A lingüística aplicada veiculada pelos missionários do SIL tornou-se assim, casualmente, um dos complementos tecnológicos ao projeto de uma antropologia aplicada, tal como desenvolvida no âmbito do indigenismo mexicano (cf. Nolasco, 1970, republicado em Junqueira & Carvalho, 1981). A atuação do SIL nos diversos países procurava adequar-se aos espaços institucionais disponíveis. E como infere também Ma Cândida Mendes Barros: “Peru e Brasil são dois exemplos de países da América Latina onde a missão obteve o monopólio da educação indígena oficial. Os dois são casos ilustrativos do papel da missão na importação desse programa de educação de base lingüística. Em nenhum dos dois havia uma tradição intelectual de respaldo ao uso da língua indígena na educação, nem uma concepção de que a Lingüística fosse uma ciência aplicada” (M. C. M. Barros, 1993a: 241-242). Contudo, a aproximação do SIL com o indigenismo oficial no Brasil ou, mais especificamente, o que se desenvolveria sob os auspícios do Regime Militar e a ação da Funai foi lenta, gradual e segura.

3

Ma Cândida M. Barros (1993b) historiciza detalhadamente o contexto em que se forjou a feição do SIL enquanto instituição dedicada à pesquisa lingüística, associando-a ao projeto de educação bilíngüe do indigenismo mexicano que se seguiu à Revolução de 1910, e sob a presidência de Lázaro Cárdenas, já em 1935. Uma versão sintética da exposição da autora é encontrada em M. C. M. Barros (1993a).

Capítulo 2

13

Já em meados da década de 50 o SIL tentou as primeiras aproximações com o SPI, repelido entretanto pele negativa do Diretor José Maria

da

Gama

Malcher.

Comenta

Roberto

Cardoso

de

Oliveira:

“Taxativamente negou-se o Brasil [na sua representação, pelo SPI, ao III Congresso Indigenista Interamericano, La Paz, 1954] a abrir mão de suas prerrogativas constitucionais de assumir integralmente a assistência ao índio, não admitindo delegar a instituições particulares, e, no caso, ainda, estrangeira, uma obrigação que era sua. Tal negativa obrigou o SIL a procurar uma

instituição

científica

nacional

que,

mediante

convênio,

pudesse

patrocinar o seu trabalho entre nós. Coube ao Museu Nacional firmar com o SIL o necessário convênio” (Cardoso de Oliveira, 1981: 66). A propósito desse contexto, Yonne Leite observa que “a situação até 1965 do ensino da Lingüística era, no Brasil, bastante precária (...). A meta prevalescente a ser alcançada era a de registrar o maior número possível de línguas prestes a desaparecer. Almejava-se também lançar algumas luzes no desalentado domínio da classificação dessas línguas” (Leite, 1981; 62). Nesse contexto “a face com que o SIL se apresentava nos meios acadêmicos quando de seu estabelecimento no Brasil era a de lingüistas” (idem: 61). Durante dez anos, a partir de 1959, o SIL permaneceu no país enviando acadêmicos que implantaram técnicas e formação de quadros para pesquisas lingüísticas, seja no Museu Nacional seja na Universidade de Brasília, e nas quais predominaram os estudos lingüísticos descritivos, mesmo com abordagens esparsas e aleatórias das línguas estudadas (Leite, 1981: 63). Durante esse período pouco ou nenhum interesse houve dos meios acadêmicos por uma lingüística aplicada, voltada para programas de alfabetização. Segundo M. C. M. Barros (1993a: 251), a expectativa que orientava o convênio firmado em 1957 era de que os estudos descritivos possibilitassem análises comparativas que viessem a permitir o conhecimento das migrações das populações nativas. Entretanto, em 1969 o SIL firma um primeiro convênio com a Funai (criada em 1967), pretendendo oferecer ao órgão indigenista os meios técnicos e os quadros de pessoal necessários para a introdução do ensino bilíngüe nas comunidades indígenas. A partir de então suas atividades passam a voltar-se decididamente para o estabelecimento de ortografias e a produção de material didático para alfabetização e catequização. Comenta Yonne Leite: “Agora sua

Capítulo 2

14

fase pedagógica e religiosa pode se expandir e o lado acadêmico não lhe tem mais utilidade” (Leite, 1981: 62). Quatro anos após a renovação do convênio com a Funai em 1973, o Museu Nacional faria uma avaliação oficial das atividades do SIL, concluindo que o plano de estudos apresentado em 1957 não fora cumprido. A Funai, de sua parte, empreenderia uma dura crítica à situação das escolas sob o SPI, noticiando, em 1972, no seu primeiro Boletim da recémcriada Divisão de Educação: “A educação, como atividade sistemática, não tem mais que um ano e meio na Funai. Há, evidentemente, a herança de escolas do antigo SPI, todas orientadas por padrões nacionais de ensino, sem oferecer

nenhuma

contribuição

válida

à

promoção

das

comunidades

indígenas” (Funai, 1972 apud Cunha, 1990: 87). Diante disso, a Funai se propõe a uma reformulação do ensino escolar, concluindo que a alfabetização em língua indígena seria o “fator básico de integração das escolas de comunidades tribais na educação nacional” (idem: 88). A emergência do modelo mexicano não parece ser casual. Além da presença do SIL, já desde o princípio dos anos 70 o governo brasileiro procura aproximar-se do Instituto Indigenista Interamericano (I.I.I.), reconhecido como organismo da OEA (Organização dos Estados Americanos), com o envio de técnicos para cursos e encontros (Cunha, 1990: 83). Como nota L. O. Cunha (1990), o indigenismo brasileiro procura a caução de referenciais científicos e de melhor reputação internacional como tática para carrear credibilidade à política indigenista e fugir do estigma que lhe haviam lançado as acusações internacionais de omissão frente a violações sistemáticas da integridade dos grupos indígenas, e que fora uma das razões de extinção do SPI. Sintomaticamente, a Portaria no 75/N de 06/07/1972 da Funai estabeleceria que “a educação dos grupos indígenas com problemas de barreira lingüística será sempre bilíngüe”. Conclui L. O. Cunha: “Tanto o SPI como a Funai discutiram a adequação da escola indígena, sendo diferentes apenas os critérios escolhidos para se obter essa adequação” (Cunha, 1990: 95)4.

4

A título de complementação da exposição acima sobre a presença do SIL, cabe observar que a expectativa que pudesse lhe tocar de que vencesse, com seus missionário, sua fé e sua abnegação, a incapacidade atestada pelo SPI de produzir material para alfabetização bilíngüe dos grupos indígenas, não teria sido preenchida nem em termos quantitativos nem em termos qualitativos. Yonne Leite relata que a inadequação do conteúdo pedagógico do material produzido é flagrante e, por outro lado, mesmo que suas atividades tenham atingido 44 grupos, sua ação foi sobremaneira seletiva, concentrando esforços “inexplicavelmente” prolongados em alguns grupos, tendendo a orientar-se para a escolha e a

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15

De uma maneira geral, pode-se dizer que durante a década de 70, o debate em torno de uma adequação da educação escolar para índios incidiu sobre aquilo que Aryon Dall’Igna Rodrigues sintetizou conceitualmente nos termos de uma “política lingüística” (p. ex., Rodrigues, 1981). Essa política começara a se esboçar já na década anterior, no período de crise terminal do SPI, com a ratificação da Convenção no 107 da Organização Internacional do Trabalho5, que previa o direito de alfabetização nas diversas línguas maternas dos grupos nacionais. Seguem-se o convênio com o SIL, uma maior aproximação do I.I.I. (e, neste âmbito, a realização em Brasília, em 1972, do VII Congresso Indigenista Interamericano), as normas da Funai sobre educação escolar e, finalmente, o Estatuto do Índio (Lei no 6001/73), que estabelece no seu art. 48: “Estende-se à população indígena, com as necessárias adaptações, o sistema de ensino em vigor no País”; e no seu art. 49: “A alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo a que pertençam, e em português, salvaguardado o uso da primeira”. A presença do SIL nesse cenário instituiu um lugar necessário para a lingüística aplicada, no qual ela irá desempenhar uma função: a redução ortográfica das línguas orais. Ainda M. C. M. Barros conclui: “A lei que tornou obrigatória a educação bilíngüe oficializou a participação do lingüista (missionário) como figura central dessa escola” (M. C. M. Barros, 1993a: 253). Outro aspecto legado pela ação do SIL seria o da formação de professores índios, que assumiria uma dimensão capital (mas sob outra referência) naqueles que serão os novos projetos de educação indígena. Ao iniciar-se a década de 70 outro movimento missionário começaria também a ganhar corpo, aquele movido pelas correntes ditas progressistas da Igreja Católica, inspiradas pelas novas posições doutrinais emanadas do Concílio Vaticano II (1962-1965), da Conferência de Medellín (II Conferência permanência em grupos “em que se justifique o investimento da tradução da Bíblia, isto é, grupos que tenham um número de falentes razoável, que estejam por sua situação de contato mais frágeis em sua auto-identidade e por isso mais propensos para seguir novas idéias, ou grupos que gozem de um prestígio na área de modo a facilitar a penetração em outros grupos” (Leite, 1981: 64). As críticas crescentes do meio acadêmico à ação do SIL e uma conjuntura política desfavorável (cf. Franchetto, 1986: Introdução) acabou produzindo a expulsão dos seus agentes das áreas indígenas em 1977, seguindo-se, posteriormente, de uma retomada do convênio com a Funai em 1983. Mesmo que eventualmente afastados das áreas indígenas, o SIL mantém escritórios regionais em várias capitais do país e sede em Brasília, continua produzindo material didático e tentando aproximar-se de grupos indígenas de toda forma e sempre que tiver oportunidade. 5

Convenção sobre a Proteção e Integração das Populações Aborígenes e outras Populações Tribais e Semi-Tribais nos Países Independentes, 1957.

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16

do Episcopado Latino-Americano - 1968) e da Teologia da Libertação6. Nesse contexto, em 1969, é criada a Operação Anchieta (OPAN), que viria a dedicarse, a partir do início da década de 80, à questão da educação escolar para índios, e, em 1972, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), constituindo estes os primeiros esboços de um indigenismo não-governamental, orientado pela mobilização de um ativismo “basista”, voltado inicialmente para a defesa de direitos territoriais, a reunião e mobilização de lideranças indígenas e a denúncia de interesses fundiários e econômicos predatórios às áreas indígenas (Urban, 1985). Como desdobramento da política desenvolvimentista do Regime Militar e das iniciativas governamentais de incremento da ocupação econômica do interior  seja através da abertura da assim chamada fronteira agrícola da Amazônia, seja através de grandes projetos energéticos e viários  surge um projeto governamental para acelerar a emancipação dos índios e a sua “integração” a uma ordem legal indiferenciada, na qual não subsistiriam as razões originais de direitos diferenciados sobre a terra e, portanto, ao direito de reserva territorial de ocupação indígena. O projeto de emancipação dos índios, gestado como Decreto presidencial a partir do Ministério do Interior desde 1975  que viria a ser definitivamente “esquecido” em dezembro de 1978  acaba por tornar-se um fator catalizador da constituição de uma rede de “entidades civis de apoio ao índio”7, voltada para a resistência a essa iniciativa, e que reuniria sobretudo antropólogos, advogados, jornalistas e técnicos (mesmo da Funai) (Urban, 1985: 8-9; Matos, 1997: cap. 4). Emergem aí as ANAI’s (Associações Nacionais de Apoio ao Índio), as CPI’s (Comissões Pró-Índio), o CTI (Centro de Trabalho Indigenista) e outros grupos menores e mais (ou menos) efêmeros, que constituiriam as primeiras referências institucionais e de quadros para a posterior formação das organizações não-governamentais (ONG’s) permanentes voltadas para a questão indígena (Ramos, 1995a; Albert, 1997b).

6

Ao final da década, a III Conferência Episcopal, realizada em Puebla (1979), viria a reforçar os posicionamentos anteriores em torno da “opção preferencial pelos pobres” e da “inculturação”. Disserto um tanto mais detalhadamente sobre a questão nas páginas 121-122 do Capítulo 5. 7

Essas entidades somariam cerca de 33 à época da criação da Secretaria Executiva das Entidades de Apoio à Luta Indígena, criada em 1980 e de vida efêmera (Matos, 1997: 203-207).

Capítulo 2

17

As novas experiências esparsas em torno da educação escolar para índios, sejam missionárias, sejam laicas, surgidas nesse contexto político e ideológico de afirmação de direitos viriam a expressar-se em busca de sistematicidade a partir de princípios da década de 80. Nesse sentido, o Encontro Nacional sobre Educação Indígena, promovido entre 10 e 15 de dezembro de 1979 pela Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI/SP), seria o marco pioneiro. Ao editar em 1981 as comunicações e artigos produzidos em torno desse Encontro, Aracy Lopes da Silva abre o volume com um texto curto sugestivamente intitulado “Por que discutir hoje a educação indígena?” (Silva, 1981). Ao apontar para as razões que produziram a iniciativa do evento a autora cita “a troca de informações relativas a experiências concretas com educação formal em áreas indígenas” e “o debate mais amplo sobre a questão da educação e os direitos dos índios” (idem: 11), acrescentando ao final que “a questão de fundo é, sem dúvida, a questão dos direitos” (idem: 14). De uma forma mais articulada, a autora mencionaria ainda: “Sentiu-se a necessidade de um encontro dessa natureza quando se constatou as condições de isolamento, dentro de cada área indígena, nas quais se realiza o trabalho; a inexistência de uma orientação definida e de uma filosofia de educação indígena por parte do órgão oficial.” (idem: 11)

E mais adiante: “O Encontro reuniu pessoas comprometidas com a definição de condições e requisitos, bem como com a identificação de práticas pedagógicas que possibilitem uma educação ‘para os índios’.” (idem: 12, grifo meu).

O documento final do Encontro registra que “todas as tentativas de uma atuação alternativa na área educacional indígena têm sofrido sistemática rejeição por parte da política oficial” (Encontro Nacional sobre Educação Indígena, 1981: 149). Feita menção a essa condição marginal à linha indigenista oficial e vistas as relações com ela em termos de enfrentamento, postulam-se, ao final do documento, três pricípios. O primeiro, em favor do argumento de (ao menos relativa) autonomia (“deve-se exigir que a voz dos índios seja ouvida e respeitada nas decisões de seu próprio destino”). O segundo, em favor de uma especificidade da educação escolar (“deve-se lutar

Capítulo 2

18

pelo reconhecimento da especificidade da educação indígena”). O terceiro, em favor de um programa de direitos civis (“deve-se apoiar toda e qualquer iniciativa organizada pelos povos indígenas par defesa de seus mais legítimos direitos”). Esses três pontos em certa medida vão conformar genericamente o ideário daquelas que, durante os anos 80 e 90 vão se expressar como as novas experiências de educação escolar indígena e que, na sua versão institucional mais complexa e elaborada, vão se apresentar como projetos de educação escolar indígena. A partir de então, um número considerável de encontros (nacionais ou regionais) e de núcleos institucionais de estudos constituídos em torno do tema vão manifestar a iniciativa de compreensão sistemática dos esforços nessa área pelos seus próprios agentes, visando a elaborar de fato um programa alternativo8. A propósito dessa designação de “alternativo”, Ruth Monserrat pondera que seria “alternativo a uma prática educacional oficial autoritária e homogeneizadora” (Monserrat, 1989: 249, grifo meu), que “nem ao menos cumpria o dever mínimo de qualquer proposta de escolarização: alfabetizar os alunos” (ibidem). Segundo a autora, “isso em grande medida se devia (e se deve até hoje) ao desconhecimento da situação sócio-lingüística dos alunos índios, para os quais muitas vezes a língua oficial e exclusiva de ensino  o português  é uma língua estrangeira” (ibidem, grifo meu). Ainda a autora observa que, no correr dos quatro encontros sobre o tema realizados pela OPAN na década de 80, “houve nítida evolução das propostas iniciais, ainda dentro da perspectiva ‘alternativa’ (I Encontro - 1982), para a da premente necessidade de transformar o ‘alternativo’ em ‘norma oficial’” (ibidem). Expressa-se aí, portanto, o movimento daquilo que Bourdieu (1982) chamaria de luta entre classificações, qual seja a luta em torno de um regime de verdade ou, se se preferir, um regime de realidade. Cabe aqui, creio, um pequeno excurso teórico. Ao refletir sobre a constituição do real (como objeto da observação sociológica) também pelas representações que dele realizam os agentes sociais, Bourdieu (1982) procura apreender as estratégias de legitimação dessas representações como processo de atribuição social de verdade. Essas estratégias seriam mediadas por um reconhecimento de autoridade. Citando Benveniste, Bourdieu lembra que “a 8

Ruth Monserrat (1989) oferece, para a década de 80, um inventário minucioso desses encontros e núcleos específicos.

Capítulo 2

19

auctoritas é a capacidade de produzir conferida ao auctor” (Bourdieu, 1982: 109); produzir, no caso, uma unicidade de sentido que constitui a doxa, que, por sua vez, sanciona a inteligibilidade do enunciado9. Ainda segundo a abordagem de Bourdieu, o que, em último caso, está em jogo através da realização (da operação, da consecução) discursiva dessa autoridade é a imposição de esquemas de classificação que naturalizam o ordenamento das relações, sejam as relações sociais concretas, sejam, antes de tudo, as relações entre objetos e representações. No nosso caso, trata-se de uma autoridade na qual se imbricam dois domínios: um domínio moral, como classicamente o definiu Durkheim (1893), ou seja, da ordem dos valores, que informa a legitimidade do discurso dos direitos (contra aquilo a que Monserrat se refere como autoritarismo); e um domínio técnico-científico, que informa sobre a propriedade e pertinência dos métodos educacionais, ou seja, uma Pedagogia (englobando, entre outros, aquilo a que Monserrat se refere como conhecimento sócio-lingüístico). É a conjugação desses dois domínios (de autoridade, sublinho) que informa o sentido mais preciso de um mote como o do “politicamente correto”, que se aplicaria hoje de forma quase trivial para qualificar esse programa acerca da educação escolar indígena; adianto, o programa de uma educação escolar “intercultural e bilíngüe, específica e diferenciada” (MEC, 1993: 176). De outra parte, além desse estabelecimento de um programa, a emergência de um indigenismo não-governamental (de origem privada, mas de alcance público), sustentado por agências que precisam delinear tecnicamente seus programas (e sua conseqüente execução) como condição objetiva para o recebimento de financiamentos10 vão progressivamente reduzir o espaço e o lugar das “experiências” e consagrar a planificação dos “projetos” como padrão de ação efetiva. Os imperativos dessa racionalidade técnica vão em larga medida ratificar e reiterar aquela autoridade técnico-científica fundada na Pedagogia. O que defendo a seguir é que os torneios sobre (e que na realidade são projeções idealistas a propósito de) essa pedagogia estão para os

9

Cito Bourdieu (1982: 82): “A autoridade que funda a eficácia performativa do discurso é um percipi, um ser conhecido e reconhecido, que permite impor um percipere, ou melhor, de se impor como se estivesse impondo oficialmente, perante todos e em nome de todos, o consenso sobre o sentido do mundo social que funda o senso comum.” 10

Disserto mais cautelosamente sobre esse assunto entre as páginas 89 e 90 do Capítulo 4. Por enquanto basta-me indicá-lo de forma sumária.

Capítulo 2

20

novos projetos de educação escolar indígena como a lingüística aplicada estava para o modelo mexicano-SIL de alfabetização.







Uma das críticas, hoje já bastante óbvia, que os novos ativistas e planejadores de uma educação escolar para índios passaram a fazer ao bilingüismo do modelo do SIL, adotado pela Funai, é aquela que o caracteriza como bilingüismo de transição. Por bilingüismo de transição entende-se o processo de escolarização em que a língua materna serve como língua de instrução, e a alfabetização nela é um instrumento de passagem para a língua nacional, na qual serão ministrados os conteúdos do conhecimento escolar, mesmo que a língua materna ainda continue a ser usada como língua de comunicação na escola. Presume-se aí que a passagem para a língua nacional, nos termos de veículo essencial de incursão pelos domínios do conhecimento transmitido por via escolar, vá progressivamente relegando a língua materna a uma posição menor, subordinada, defasada, desprestigiada, que consumará por destinar ao conhecimento nativo uma posição homóloga frente ao novo e mais legítimo (não se sabe, entretanto, em que termos) conhecimento, importado do mundo dos brancos. O argumento de base é que a língua encerra as especificidades das representações sociais (da “cultura”), e, portanto, a introdução de uma nova língua, num processo (presumido) de sacralização de conceituações adventícias e de relações simbólicas estranhas à semiologia nativa, viria a transtornar prejudicialmente e sob o arco da conspiração colonial os termos sobre os quais as representações nativas se orientam. O bilingüismo de transição, portanto, não seria apropriado, por ser, antes de tudo, politicamente incorreto (sob o ponto de vista combinado técnico e valorativo, tal como expus pouco antes). Advoga-se daí um bilingüismo que não seja de transição, mas um bilingüismo “aditivo, equilibrado, e do respeito à cultura minoritária” (Cavalcanti & Maher, 1993: 218). Assim, uma autora como Ruth Monserrat defende que “o que interessa às sociedades indígenas é um processo escolar de manutenção lingüística, em que o ensino bilíngüe aponte para o fortalecimento, mas, mais ainda, para a possibilidade de desenvolvimento de

Capítulo 2

21

suas línguas maternas como instrumento eficiente de afirmação de sua identidade

socioeconômico-cultural

frente

à

sociedade

majoritária”

(Monserrat, 1994: 12). Desculpado o fato de, como muitas vezes, a ciência ou tecnologia dos brancos pretender dizer aos índios o que lhes interessa, presume-se uma tal onipotência da escola que talvez ela (essa onipotência) só seja compreensível se se associa à instituição escolar uma legitimidade imanente diante dos processos de conhecimento. Uma das coisas a que este trabalho se pretende é sugerir que a escola pode não ter nada a ver com os processos de transmissão do conhecimento nativo, ocupando um lugar que lhe é destinado por outro domínio que não o do conhecimento, e que possa haver uma convivência (ou uma mútua exclusão) entre esses domínios enquanto domínios ordenados por regimes de autoridade distintos. A mesma coisa pode ser estendida à língua e à escrita simultaneamente, ou seja, que não há nenhuma homologia necessária entre língua, escrita, conhecimento e escola, e que, se houver, ela é socialmente construída, e que processos políticos estariam aí presentes para defini-lo e, mais ainda, que tais processos não são regidos por uma lógica pétrea, incontestável e automática da dominação e da subordinação. As críticas em torno do bilingüismo de transição estariam, no meu entender, fundadas sobre a mesma base epistemológica que a da teoria da aculturação, a de uma teleologia determinista segundo a qual o nativo e o civilizado

são

fases

que,

postas

em

contato,

a

segunda

tende

automaticamente a agregar a primeira de forma subordinada, já que, por algum mistério cultural (ou materialista, ou o que seja), a civilização é, afinal de contas, irresistível11. De uma forma ainda mais aguda e pondo em questão o vezo cientificista da argumentação a propósito do bilingüismo tout court (seja o de transição, seja o politicamente correto), creio que a crítica de Ma Cândida M. Barros compartilha de uma perspectiva similar à minha. Transcrevo suas observações da versão revista do seu artigo até agora citado, e transcrevo-as longamente por entender que elas encerram pontos que até o momento não

11

No capítulo seguinte exploro, numa argumenteção mais sistemática, a crítica à teoria da aculturação vista sob o ângulo do determinismo tecnológico, e no Capítulo 5 ponho em questão a irresistibilidade dos marcadores culturais da “civilização”, em particular a escrita, sugerindo a “resistência” secular diante dela que os ameríndios parecem bem demonstrar. A esse último propósito reitero desde já o remetimento que faço ao instigante trabalho de Martin Lienhard (1990).

Capítulo 2

22

foram suficientemente (na verdade, exceto em Franchetto(1994), nem um pouco) explorados nas análises a respeito da educação escolar para índios: “Em toda a América Latina a Educação Indígena bilíngüe é considerada um modelo científico de escola, respeitoso das diferenças étnicas e lingüísticas e capacitador do índio para a sua integração na sociedade nacional. A educação bilíngüe tornou-se direito indígena, ou até, em muitos casos, o padrão escolar obrigatório. (...) O caráter de respeito à cultura indígena por parte da educação bilíngüe foi defendido por ser ela uma modalidade progressista e alternativa aos internatos, por respeitar as diferenças étnicas e lingüísticas, já que não apenas mantém o uso das línguas nas salas de aula, como ainda as reforça, ao torná-las parte imprescindível do processo de alfabetização e, dessa maneira, interferindo ativamente na sua conservação. Assim, a escrita científica12 das línguas ganha um papel fundamental no salvamento de línguas prestes a desaparecer. (...) Dizer que a educação bilíngüe é uma forma de salvamento das línguas indígenas e, que há uma transposição neutra da escrita científica para um

público ágrafo é algo inscrito na tradição

intelectual ocidental, onde a escrita é homogênea e a oralidade relegada

em

segundo plano. A

essa posição Harris chama de

‘escritismo’ (Harris, 1980). Essa tradição define a escrita como uma forma superior de expressão do conhecimento por ter eliminado as barreiras do tempo e da memória. Os sistemas de conhecimento baseados

na

escrita

são

tidos

como

superiores

às

formas

de

conhecimento orais. Outra característica dessa tradição é considerar a possibilidade de transpor com fidelidade os sistemas de conhecimento oral para a escrita. Problematizar essa hegemonia na cultura ocidental equivale a dizer que não há isonomia possível entre essas duas formas de conhecimento. (...) A falta de isonomia de experiências entre oralidade e escrita não permite que se estabeleça entre elas uma relação de correspondência unívoca, como se fosse uma imagem especular. A 12

A respeito dessa noção de “escrita científica”, a autora observa: “A cientificidade do projeto de educação bilíngüe está baseada no conceito de fonema. A lingüística tem como suposto que a escrita fonológica, usada como escrita na escola indígena, reproduz com fidelidade a oralidade numa relação biunívoca: a cada sinal usado pela escrita lingüística corresponderia um único elemento da oralidade da língua. A transposição da escrita científica dos lingüistas para a comunidade indígena foi considerada um processo neutro.” (M. C. M. Barros, 1994: 30).

Capítulo 2

23

escrita  científica ou não  só tem o poder de guardar resíduos da oralidade e não de reproduzi-la.13 A relação entre escrita e oralidade só é possível por convenção, necessariamente

condicionada

culturalmente.

A

legitimidade

de

qualquer sistema de escrita como representação da oralidade é determinada pela tradição intelectual ao interior de uma comunidade e não pelo seu poder de representação fiel do objeto representado (oralidade).” (M. C. M. Barros, 1994: 29-31)

Com base no argumento do bilingüismo  não o de transição, mas o politicamente correto, doravante referido simplesmente como bilingüismo, tal como consagrado na literatura programática (inclusive oficial-normativa, cf. MEC, 1993) sobre educação escolar para índios , um dos princípios que orientam as ações dos novos projetos é o de que os professores das escolas indígenas devam ser índios do próprio grupo e, mais que isso (pois os índios também podem ser postos sob a suspeita de colaborarem ingenuamente com a conspiração branca de colonização cultural14) devem ser treinados como pesquisadores da sua própria “cultura”, para que com ela se imunizem e evitem enredar-se com algum eventual fascínio pela “cultura” do branco. Digo-o assim, de forma caricatural, para enfatizar o movimento desse jogo de idealizações e essencializações. A forma politicamente correta de falar sobre formação de professor índio seria, por exemplo: “Em vez de prepará-lo para o bom cumprimento de currículos e programas, é preciso promover nele a capacidade de gerá-los. Para tanto, é necessário que o professor saiba determinar quais são os conhecimentos de base de sua cultura, e quais as formas, também culturalmente estabelecidas, de organização e de repasse deste conhecimento. (...) Obviamente, o início deste processo demandará muita supervisão e orientação por parte dos agentes educadores brancos. (...) Precisamos ajudá-lo a se descolonizar culturalmente para que ele se despoje

13

Mais adiante disserto algo a respeito da dinâmica da oralidade e da presunção de que se possa reduzi-la a formas de escrita. 14

Na verdade a argumentação, na sua forma original, é bem mais sutil. Cito, p. ex., Cavalcanti e Maher (1993: 219): “Apesar de freqüentemente fazerem uso do discurso reivindicatório indigenista a favor da resistência étnica e da manutenção da língua indígena, os professores índios podem, contraditoriamente, combatê-los na sua prática escolar (...), fenômeno este denominado por Lafont (...) ‘espetacularização discursiva’.”

Capítulo 2

24

do modo de olhar do branco a fim de que suas observações e conclusões sobre a realidade sejam confiáveis.” (Cavalcanti & Maher, 1993: 220, grifos meus15). Dessa forma, a opção estratégica dos novos projetos de educação escolar para índios pode ser assim formulada: “Pelo menos por ora, todos os esforços e ações no sentido de se alcançarem essas metas devem se concentrar na formação bilíngüe e intercultural dos professores indígenas.” (Monserrat, 1994: 13, grifo da autora). Com efeito, a totalidade (ou a quase totalidade) dos projetos de educação escolar para índios têm como pedra angular cursos de formação de professores indígenas. O princípio segundo o qual eles devem idealmente ser treinados como pesquisadores da sua “cultura” acompanha a franca maioria desses projetos16. Esse princípio nos informaria ao menos algo do ideário que o acompanha. Mais que tão simplesmente uma adequação de formas, o movimento aqui parece orientarse para algo como o transplante de conteúdos, ou seja, obtem-se uma “escola indígena” como um híbrido inter-cultural por composição: os brancos comparecem com a forma institucional; os índios, com o conteúdo “cultural”. Se o professor índio passa a ser visto tecnicamente como um gestor de conteúdos ideais, fica fora de questão (salvo como um adendo eventualmente agregável) a cogitação sobre o seu lugar social. Ele tende a ser, antes de qualquer coisa, um professor idealizado pela pedagogia. Sob essa mesma lógica, a produção de material didático “específico e diferenciado” torna-se um desdobramento imperativo. Adianto que meu questionamento aqui não é tanto sobre o “específico e diferenciado” senão sobre algo que o antecede: a naturalização pressuposta do “didático”. Já em 1979 Bartomeu Melià criticava as cartilhas em língua indígena então disponíveis que, a pretexto de exercícios léxicos fora de contextos discursivos verossímeis, esvaziavam as relações semânticas, ou “dessemantizavam a língua”, apresentando aos alunos algo que ele qualificou como uma “língua sem língua” (Melià, 1979: 80-81). Na mesma operação, ao responder apenas a uma expectativa estritamente técnica de alfabetização, que o levava a não construir qualquer relação meta-textual, ou seja, a não remeter-se aos 15

Em justiça às autoras devo acrescentar que, ao final do artigo citado, elas concluem, um tanto surpresas, que, diante de uma experiência concreta que vivenciaram, isso pode ser despropositado. Assim, adotam como solução o adiamento provisório do programa politicamente correto. 16

Esse princípio foi recentemente oficializado como “orientação pedagógica para a organização curricular” nas escolas indígenas do país pelo MEC (1998: 84-86).

Capítulo 2

contextos

25

sociais

e

históricos,

esse

mesmo

material

operaria

uma

“neutralização semântica” (idem: 82) dos contextos e experiências vivenciais. Procurando precaver-se disso, os novos pedagogos passaram a postular que deveriam ser os próprios índios os autores do material didático. Entretanto, a questão poderia ainda ser reposta nos mesmos termos de Melià, ou seja: Apenas o recurso a produtos nativos garante que o resultado final seja semanticamente consistente? Tomo para analogia a famosa proposição de Bourdieu de que “a opinião pública não existe” (Bourdieu, 1973). A contraposição de Bourdieu às sondagens de opinião pública é expressa através do questionamento ao que ele identifica como os três postulados básicos que sustentam a lógica desse tipo de atividade: 1. que as pesquisas de opinião pública supõem que todo mundo pode ter uma opinião, ou seja, que a produção de opinião está ao alcance de todos; 2. supõem que todas as opiniões têm o mesmo valor; e 3. que no fato de fazer uma pergunta a todos está implícito que há um consenso em torno da relevância dessa pergunta (as pessoas têm a obrigação de não serem indiferentes a ela). Na medida em que essas suposições são induzidas ao objeto da pesquisa (o público), a “opinião” é produzida como uma espécie de emanação, ou seja, é a própria atividade de fazer pesquisas que produz a opinião pública. Muitos projetos de educação escolar para índios dedicam bastante tempo de seus cursos de formação de professores a coletar textos e desenhos para a produção de material didático. Talvez seja pertinente perguntar se essa agregação de autoria e mão-de-obra indígenas a um molde pré-definido e suposto como eficiente para a educação escolar garanta a propriedade semântica intrínseca desse material. Retomarei mais adiante a analogia que sugeri, após recontextualizar os termos da discussão. A questão logo acima identificada pode tornar-se mais instigante, creio eu, se apontada para outro domínio, que chamaria de processual. O imperativo ideológico de “valorização da cultura” sobrecarrega, no meu entender, essa autoria indígena de um valor tático, tornando-a uma espécie de praticável politicamente correto. Tal agregação teria um efeito legitimador, antes de mais nada, para o eventual reconhecimento de algo que alguns (de nós, caras-pálidas) prezam ser a “autenticidade” do produto (e não se deve afastar a consideração de que alguns projetos têm na apresentação desse

Capítulo 2

produto

26

um

indicador

materializado,

imediatamente

visualizável,

dos

resultados da sua atividade, o que, em alguns casos, pode ser um recurso deliberado para a continuidade do recebimento de recursos pelas agências financiadoras ou, quando não, ao menos um recurso para capitalização de imagem institucional). A qualquer título, essa valorização do produto pode acabar por impor uma relação mediatizada na qual as expectativas pedagógicas (dos pedagogos) e o reconhecimento dos índios estariam eventualmente orientados para direções bem diferentes. Deslocando o foco de atenção do produto para o seu processo de produção, poder-se-ia perguntar o que estava aí realmente operando para definir o conteúdo daquele produto final. Agregar o “conhecimento nativo” ou ao menos resíduos esparsos de conhecimento nativo a recortes categoriais inusitados, tais como, por exemplo, os nossos recortes disciplinares não seria necessariamente a garantia da produção de um material consistente em termos significacionais, tampouco a garantia de respeito à “cultura indígena”, já que aí ela é agregada enquanto útil, enquanto conteúdo passível de uma objetificação. Assim como a opinião pública é produzida pelas pesquisas, muito do conteúdo desse material pode tão simplesmente responder às expectativas dos pedagogos em tê-lo, já que, de qualquer forma, os nossos métodos didáticos parecem imprescindir de um suporte material padronizado, rotinizado e burocratizado. Assim como a ênfase na formação de professores indígenas e a busca de produção de um material didático específico, o debate em torno de uma especificidade curricular é outro ponto recorrente nos novos projetos de educação escolar para índios. Nesse momento, o mote do “intercultural” é, além de uma palavra de ordem, provavelmente o nó górdio, não diria por desatar, mas onde se emaranham idealizações de toda ordem a respeito da “cultura” dos índios e o “conteúdo” de um conhecimento escolar. O recente Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas, publicado pelo MEC em novembro de 1998, que pretende ter “função formativa e não normativa” (MEC, 1998: 13), estabelece um rol de disciplinas fundamentais para o ciclo básico das escolas indígenas e aponta “temas transversais”17 que podem servir de articuladores mais amplos “para que passem todas [as áreas de estudo] a servir a um projeto social definido pela comunidade. Este projeto se 17

As disciplinas curriculares estabelecidas são: Línguas, Matemática, História, Geografia, Ciências, Arte e Educação Física. Os temas transversais são: terra e conservação da biodiversidade; autosustentação; direitos, lutas e movimentos; ética; pluralidade cultural; e saúde e educação.

Capítulo 2

27

organiza através da discussão de temas que estão relacionados a um contexto político e social específico, ancorado na vivência histórica particular daquele grupo humano” (MEC, 1998: 93). Não vou me ater a uma análise detalhada do documento e da agenda política implícita que especifica os ditos temas transversais. Ao invés disso vou me reportar a situações mais pontuais que podem elucidar algo a respeito de certas expectativas dos planejadores de projetos educacionais sobre os pontos dos quais pretendo especificamente me aproximar neste trabalho, quais sejam, a relação entre escola, escrita e transmissão do conhecimento. Apesar

de

estar

deliberadamente

evitando

qualquer

exemplo

etnográfico no presente Capítulo, creio que aqui uma ilustração é sugestiva. Um dos projetos educacionais que acompanhei havia produzido uma apostila de meio-ambiente na qual, a partir de uma orientação prévia, os professores índios em formação foram estimulados a escrever textos sobre assuntos pontuais que diziam respeito ao tema. Os textos eram agrupados por assunto, na maioria das vezes alterando-se, de um para outro texto, apenas a redação, já que o motivo principal era o mesmo. Um dos assuntos abordados era de como as fezes dos animais disseminam as sementes das plantas. O tema é absolutamente análogo a um pequeno fragmento de uma narrativa oral tradicional, que, de sua parte, incorpora elementos de cosmovisão nativa muitíssimo mais amplos, pois se trata, dizendo-o grosseiramente, de uma estória de perseguição e vingança, na qual os homens, metaforizados num animal protagonista, apropriam-se do mundo através do conhecimento inventariado de todas as espécies de planta, que são “defecadas” pelo protagonista perseguido, outro animal que, ao ser alcançado (no fim do mundo), será também ele apropriado pela vingança e deglutição. Essa é também uma estória sobre os limites do mundo conhecido, além de outros muitíssimos desdobramentos simbólicos. A questão que se poderia colocar é de que: será que esse tipo de “informação” já não é sobejamente conhecida pelos índios e transmitida pelos seus meios tradicionais que incluem a autoridade do conhecedor e o lugar social (e momento) daquele que aprende? Nesses termos, o que viria a ser, no fim das contas, essa especificidade curricular? Algo como a realocação de conteúdos nativos a recortes “científicos” ou, dito genericamente, escolares, como por exemplo “meioambiente”?...

Capítulo 2

28

Entretanto, aquela que é talvez a questão mais candente que diz respeito à adequação pedagógica da educação escolar para índios quanto à função de transmissão de conhecimento  aquele terceiro momento dos questionamentos sobre o tema, que mencionei no início deste Capítulo  é a discussão em torno da atribuição de função à escrita em contextos sociais onde a dinâmica da oralidade é prevalecente. Uma coisa é dizer que o conhecimento da escrita (em português) permite o acesso (obviamente restrito e aproximativo) aos conhecimentos dos brancos que são úteis à defesa estratégica dos direitos legais dos índios. Outra coisa é operar uma idealização segundo a qual o acesso à escrita possibilitaria uma defesa ou “valorização

da

documentalmente

cultura na

indígena”

descrição

de

(objetivo alguns

explicitado

projetos).

formal

Esse

e

argumento

cristaliza-se na fórmula da “preservação cultural” e pode ser sinteticamente exposto da seguinte maneira: Transposta a língua oral para a forma escrita reduz-se (ou mesmo elimina-se) o risco desta língua (tomada como elemento essencial da identidade cultural) se perder e com ela se perderem todos os arquivos da memória e do conhecimento tradicional do povo18. Dois pontos para averiguação parecem-me procedentes. O primeiro diz respeito à indagação sobre se a memória e o conhecimento tradicional indígena poderiam ser dissociados da forma como são transmitidos e dos esquemas de autoridade e legitimação com que são guardados e repassados. Isso implicaria cogitar se poderíamos, dessa forma, proceder a um corte, similar ao que fazemos em nossos esquemas textuais, de distinguir uma forma de um conteúdo, acrescendo a isso a suposição de que seria este último o depositário da informação. Sobre esse ponto tratarei logo a seguir. O segundo ponto diria respeito ao próprio significado que se atribui à “língua”, ou

seja,

se

se

a

reconhece

como

um

fato

dinâmico,

transacional,

circunstanciável, por um lado, ou se se a reconhece como uma totalização, eqüipolente a algo como uma “identidade cultural”. A meu ver a noção de preservação imprescinde de uma operação lógica de objetificação (Handler, 1984) daquilo a que se dispõe (ou que se idealiza) preservar. Ao fazê-lo abstrai-se esse “objeto” dos processos sociais e históricos em que está inserido, cristalizando-o como coisa substantiva e 18

Em termos não tão específicos mas confluentes, Ma Elisa Ladeira já identificava a recorrência de argumentação semelhante ao final da década de 70 (Ladeira, 1981: 171).

Capítulo 2

29

imutável. Que essa objetificação seja operada como um elemento de mobilização identitária parece-me efetivamente parte do jogo social, no qual os próprios índios comparecem falando da sua “cultura”. Entretanto, para fins analíticos (este seria um primeiro momento), ela deve ser necessariamente circunstanciada, e não tomada de forma naturalizada, ao gosto de um certo senso comum. Ademais (agora já num segundo momento), se essa dinâmica de objetificação é operada a partir de uma lógica preservacionista estranha àquela a que está inserido o objeto a preservar, creio ser lícito colocar sob suspeita o significado dessa objetificação. As sociedades de tradição oral possuem mecanismos sofisticados e especializados de transmissão da memória social. A arte verbal é a expressão formalizada desse tipo de transmissão (Finnegan, 1977). Ela se caracteriza por uma junção singular e indivisível entre “texto” e execução, configurando-se como uma performance (Sherzer e Woodbury, 1990), que põe em operação a execução de técnicas mnemônicas (tal como por exemplo ocorre nos improvisos dos cantadores nordestinos  cf. Ayala, 1988; Cavalcanti-Schiel, 1996). Essas técnicas subordinam forma e conteúdo do “texto” a uma mútua indissociabilidade, regida pela execução efetiva da peça (cf. Lord, 1960). E essa execução, por sua vez, se dá sempre em um contexto de autoridade (Goody, 1993), em que se vincula o conhecimento ao conhecedor. Um velho índio que conta estórias é o legítimo depositário daquele saber e o reconhecido e competente executante daquela peça de arte verbal. Como se poderia reduzir uma performance e sua poética a um esqueleto de palavras escritas, atadas por nós de lógica? Uma estória que desenrola impressões, nexos conversacionais, imagens de outras vivências, que se apresentam como puros emblemas éticos e quiça estéticos, monumentos prenhes de sentido ao invés de documentos (Veyne, 1983b), onde imagens movem-se e desfazem-se além e a despeito de qualquer cronologia, num tempo que não tem lugar na história, mas pode reinstaurar-se a cada oportunidade de uma narração (Detienne, 1980)... como poderia isso ser transmutado numa estorieta escrita, com começo, meio e fim, que alguns mitógrafos têm por hábito às vezes juntar num embrulho de gosto duvidoso e de matiz um tanto pueril, sob a forma de antologia de mitos indígenas? É esse o conhecimento que se quer “preservar”, esse arremedo de literatura naïf, quando tal conhecimento, enquanto coisa viva, é expressão de toda uma grande arte da execução verbal?

Capítulo 2

30

A par disso, a tradição oral possui uma dinâmica de multiplicação e atualização constante das versões dos “textos”, apropriando-os aos contextos e às disputas que se travam em torno da autoridade sobre a tradição (e sobre a própria tradição), ressaltando esse ou aquele aspecto, suprimindo uns e acrescentando outros, que podem ser vantajosos para a posição relativa daquele que recita a narrativa, num processo em que a memória social é sempre recriada ou, no dizer de Jack Goody (1993), em que a tradição é submetida a um processo de “rememoração generativa”. Como, e a partir de que ponto arquimediano inexistente, se poderia fixar uma específica versão como sendo a tradução fiel da tradição? Enfim, em nome de que princípio preservacionista se transtornariam (irremediavelmente) os parâmetros e a dinâmica de autoridade sobre a memória social? A forma inquisitiva de toda essa minha exposição tem, é claro, algo de retórico, mas pode ser oportuna para fazer transparecer uma certa manobra discursiva de conceituar “cultura” como uma coleção de traços objetificáveis, que passam a constituir um patrimônio ou herança cultural (Handler, 1984)19. Sua política de preservação teria algo de semelhante  à maneira do que nos mostra um trabalho de Herzfeld (1991)  à conservação de fachadas: pouco importa quem mora dentro20. Se se quiser algo contraposto a isso, Ma Amélia Reis Silva e Andrés Salanova, em suas proposições programáticas a respeito do uso da escrita, sintetizam a questão de uma forma que considero bastante perspicaz: “A única intervenção que, ao nosso ver, a escrita pode ter no sentido de um resgate, é em forma de conquista do espaço da escrita pelo conhecimento de base oral. Esta conquista não se dá sem que haja uma reformulação do próprio conhecimento. O conhecimento é ressistematizado segundo novos parâmetros, e nesse processo se firma num espaço que o legitima diante de 19

Observando uma experiência de educação escolar indígena concebida dentro do marco do politicamente correto entre os Huaorani da Amazônia equatoriana, Laura Rival aponta alguns resultados da objetificação cultural no contexto escolar. Com a constatação de que “a cultura aqui não é concebida como um ato de participação social, mas como um fenômeno abstrato, que pode ser ensinado de maneira formal” (Rival, 1997: 130, tradução minha), a autora observa que “a instrução escolar, mesmo quando destinada a fortalecer a cultura indígena, em transmitindo as competências e atitudes ligadas à cultura dominante, transforma as tradições culturais em folclore, ou seja, em saberes e práticas descontextualizadas e vinculadas a um passado que já não subsiste” (idem: 129, tradução minha). 20

Detenho-me aqui (como, de resto, acima apontei) em apenas um dos lados da questão. Outra coisa, entretanto, seria analisar a recepção da retórica culturalista e preservacionista pelos próprios índios e suas estratégias “interétnicas” de postular uma “cultura”, como sugerem, por exemplo, Terence Turner (1992), Jean Jackson (1995) e Susan Wright (1998).

Capítulo 2

31

uma nova realidade. (...) A escrita não pode, porém, ser veículo de transmissão do conhecimento tradicional. Ela é sua tradução e ‘legitimação’ em outro espaço; deve-se tentar evitar que o conhecimento tradicional seja incorporado como uma anedota saudosa a um curriculum basicamente neo-brasileiro.” (Reis Silva & Salanova, 1999: 24, grifos dos autores)21.







Mariana K. Leal Ferreira, ao historicizar a educação escolar para índios no Brasil, desde o período colonial, classificando-a em quatro fases qualitativamente distintas, intitula a seção do seu trabalho a isso dedicada como: “Dos programas de educação escolar para índios àqueles de autoria dos povos indígenas: um diagnóstico crítico da situação no país” (Ferreira, 1992: cap IV, grifo meu). A proposição aí expressa é, sem sombra de dúvida, significativa. Ela procura encerrar o argumento de que, inspirados pelos novos projetos de educação escolar, os índios, através de seus movimentos organizativos, passaram a “definir e autogerir seus processos de educação formal”

(p.165),

tornando-a

“compatível

com

seus

projetos

de

autodeterminação” (p. 182). É o que se pretende referir sob a rubrica geral de “projetos de autoria”. O que me impressiona em muitas dessas histórias da educação formal para índios, que usualmente começam pelo período da Colônia, é passar pelo alto dos séculos para caracterizá-los como uma espécie de preâmbulo de opressão colonial, ao fim do qual despontaria a Nova Era. Isso me lembra um pouco aquelas velhas histórias socialistas da humanidade que começavam com o homem das cavernas para acabar na emergência dos sovietes. Quero dizer, não me parece tanto uma história, mas antes uma escatologia. Creio que, nesse caso, o que a move são exatamente aquelas idealizações em torno da autonomia e da autodeterminação. Tensionar o quanto possa haver de idealização nisso, e o quanto tais referências possam ser histórica e discursivamente determinadas seria uma forma de recusar as soluções finalistas, ao mesmo tempo em que se recusa a evidência demasiado natural desses ideais que embalam sonhos politicamente corretos. Que em

21

Como exemplo de apropriação da escrita de acordo com as “condições sociolingüísticas do grupo”, ver, p. ex., o caso Timbira, relatado por Maria Elisa Ladeira (1997).

Capítulo 2

32

nome desses ideais os índios sejam declarados (ou imputados como) “autores” parece-me, sociologicamente, no mínimo, uma precipitação. Os índios sim, podem ser vistos como autores ou sujeitos sociais (desde que não sirvam apenas  como se usa correntemente em certa vulgata  para ocupar os lugares de vítimas da história ou heróis ecológicos), mas não creio que antropologicamente se deva ter o mal senso de fazê-lo a partir das idealizações dos brancos. É como se se repetisse aqui a mesma operação projetiva realizada pela objetificação cultural logo acima mencionada22. A propósito da autodeterminação, a autora transcreve uma declaração de Aílton Krenak que aqui também transcrevo: “A idéia de autodeterminação é algo meio impreciso. Cada índio entende de um modo. E cada aliado da luta imagina uma forma de autodeterminação para o índio. Há modelos mais aproximados das aspirações indígenas e outros que não têm nenhuma proximidade com essas

aspirações.



comunidades

indígenas

que

nem

sequer

imaginam sua autodeterminação. O que expressamos não é a idéia de um todo da população indígena, mas apenas de uma parcela, que, através de um processo de luta e de resistência, foram compreendendo algumas formas de organização e foram assimilando formas de organização que não são dos índios. A própria palavra nos é estranha” (Depoimento à V Assembléia Nacional do CIMI em jul/83; CEDI 1984: 22 apud Ferreira, 1992: 197-198).

Imediatamente a seguir a autora, por sua própria conta e risco, acrescenta: “Existem, no entanto, reivindicações comuns a essas sociedades no que tange à questão da autonomia política, econômica e territorial. O direito a uma educação escolar autêntica e diferenciada, fundada nas especificidades sócio-culturais de cada povo faz parte desse processo.” (Ferreira, 1992: 198). Creio que a declaração de Aílton Krenak é significativa o suficiente para merecer bem maior atenção que a que lhe dispensa a autora. Ela evidenciaria o quanto princípios como autodeterminação e autonomia, longe de serem noções universalmente apreensíveis, são construídas, moduladas e mobilizadas a partir de uma variedade de contextos. As reivindicações dos grupos indígenas por escolas tornaram-se efetivamente recorrentes. Creio que é preciso, entretanto, procurar reconhecer 22

De forma absolutamente correlata ao que observei na nota 20, outra coisa seria falar das estratégias “interétnicas” dos discursos indígenas sobre autonomia e autodeterminação.

Capítulo 2

33

os significados dessas muitas reivindicações, o significado muitas vezes precariamente instrumental daquele interesse dos grupos nativos pela educação de que falava Peter Gow, ao invés de subsumir essas reivindicações indígenas na lógica de uma engrenagem na qual se supõe que escola, escrita, alfabetização e transmissão de conhecimento, mais que circunstancialmente indissociados, estariam naturalmente indissociados. Dessa indissociabilidade facilmente se deslisa para aquele pressuposto universalizante de que nos avisa Maria Elisa Ladeira, de que “a alfabetização como necessidade básica nunca foi questionada” (Ladeira, 1981: 171)23. E daí também presumir-se a necessidade (tecnicamente avalizada) de todo um arcabouço institucional, implantação de especializações sociais, instauração de recortes específicos de tempo e espaço, razões didáticas, objetos sacralizados, novas formas de dependência com os brancos fornecedores, enfim, todo esse bricabraque que constitui o fomento à “autonomia”. Ao final dos anos 70, o bilingüismo de transição começaria a ser posto em

questão.

Junto

com

isso

empreendia-se

também

uma crítica à

“neutralização semântica” (Melià, 1979) do contexto nativo operada pelos padrões didáticos da educação nacional e missionária. Começava-se a se colocar em questão o conteúdo do conhecimento escolar. O que se operou daí por diante foi o acréscimo de uma dimensão “política” (digamo-lo assim, provisoriamente) ao estritamente didático. O ideal de uma autodeterminação indígena serviria aqui como um indicador de um discurso que pretende formular uma concepção de escola na qual os conteúdos didáticos estejam de acordo com a “cultura” indígena, pretendendo assim ressignificar o molde escolar (enquanto universal) através de uma adequação nativa provida pelo “conteúdo do conhecimento”. A questão que aqui surge é se então o conhecimento

pode

ser

resumido

a

um

conteúdo,

passível

de

ser

transpassado para um recipiente institucional. Ainda que se reconheça que haja um processo de “educação” nativo  se é que assim se pode referir ao processo de construção social da pessoa, pois creio que aqui também as homologias por demais imediatas podem ser terrivelmente problemáticas  parece-se presumir que uma aproximação (ou conversão) do recipiente escolar à “cultura” indígena equaciona aquilo que eu chamaria de “redução

23

Pressuposto ao qual a autora contrapõe a indagação (aparentemente óbvia, mas apenas aparentemente): “Mas qual a necessidade da alfabetização?” (op. cit.: 172).

Capítulo 2

pedagógica”.

34

Se

a

redução

ortográfica

(ou

redução

fonética)

resolvia

tecnicamente o problema da escrita, a redução pedagógica resolveria o problema da escola. Creio, entretanto, que da mesma maneira como, desde a década de 60, os debates antropológicos em torno da articulação/oposição oralidade-escrita têm evidenciado que a questão da escrita  ou, em termos mais amplos, da “cultura escrita” (literacy)  não é tão simplesmente técnica, abrangendo dimensões políticas de longo alcance e largo curso (p. ex., Goody, 1986), também a apropriação/incorporação da escola por comunidades indígenas pode não ser redutível a uma problemática pedagógica. Da mesma forma, a introdução da escrita (em língua nativa) pode não ser “resolvida” tão simplesmente por uma atribuição de função, o que acaba, em última instância, por comprometer as boas intenções de um programa bilíngüe tal como atualmente formulado. É em torno de proposições como essas que as análises que se seguem se desdobram. Não obstante, para dimensionar o domínio daquilo que reconheço como político, precisarei me debruçar sobre o movimento histórico em que se insere meu objeto específico e meu campo etnográfico. É o que farei nos dois próximos capítulos, só retornando aos estudos de caso sobre o processo de apropriação da escola depois de crer razoavelmente delineado o contexto de relações sociais (conformadas na história) em que se inserem.

Capítulo 3

35

Apontamentos para uma leitura da história alto-xinguana

Encarregado de escrever o capítulo descritivo dos grupos altoxinguanos para o Handbook of South American Indians no seu volume 3, dedicado às “tribos da floresta tropical”, Lévi-Strauss tentaria um inventário relativamente pioneiro dos registros etnográficos de visitantes e viajantes à região a que Eduardo Galvão (1949: 47) se referiria como a “área cultural do uluri”. Lido hoje, o artigo chama a atenção pela precariedade colecionista dos dados

enfeixados,

das

descrições

esquemáticas

e

pela

dispersão

impressionista de traços singulares reconhecidos como notáveis, tomando assim a feição vagamente pictórica de uma notícia a partir das informações disponíveis. No entanto, a despeito do caráter desarticulado daqueles registros etnográficos originais, uma das primeiras observações de Lévi-Strauss  curiosamente acerca da história da área  ressalta o que seria um traço capital, que parece ter sido agregado apenas colateralmente nas análises etnográficas que a partir de então (ou mais especificamente a partir da chegada à área da expedição Roncador-Xingu, 1946) conformaram a fortuna etnográfica alto-xinguana1: A intensidade dos movimentos migratórios dentro 1

Os levantamentos etnográficos de cientistas “profissionais” (Clifford,1983) começaram a ser publicados aproximadamente no começo da década de 50, seja os produzidos a partir da primeira expedição científica do Museu Nacional à área, em 1947 (cf. Carvalho et alii, 1949; Lima, 1955), seja dos pesquisadores estrangeiros que logo demonstraram interesse pela região. Kalevo Oberg aí esteve dois meses e meio em 1948 e publicou uma descrição geral dos Kamayurá (Oberg, 1953). Gertrude Dole realizou trabalho de campo entre os Kuikuro entre 1953 e 1954, defendeu sua tese de doutorado na Universidade de Michigan em 1957 e publicou artigos a partir de 1958 (cf. Dole, 1958). Mesmo percurso realizou Robert Carneiro, interessando-se particularmente pelos aspectos de subsistência alimentar. Um caso curioso é o da primeira etnografia trumai (e a primeira monografia de um grupo alto-xinguano). A pesquisa de campo de Buell Quain iniciou-se em 1938  antes, portanto, da chegada da expedição Roncador-Xingu , não pôde ser continuada por entraves burocráticos junto ao governo brasileiro. O autor morreria 6 meses depois de deixar o campo. Suas notas  às quais Lévi-Strauss teve acesso em primeira mão para escrever o artigo do Handbook  foram organizadas e publicadas por Robert Murphy em 1955, iluminando-as e confrontando-as com os dados das então incipientes pesquisas de campo e das viagens dos etnólogos alemães do século anterior (Murphy e Quain, 1955). Antes desses pesquisadores, estiveram na região viajantes e exploradores que deixaram registros compendiados como relatórios de viagem e alguns artigos. Cite-se cronologicamente (com as datas de suas respectivas viagens): Karl von den Steinen (1884 e 1887), Herrmann Meyer (com Karl Ranke, em 1896, e Theodor Koch-Grünberg, em 1899), Max Schmidt (1901), Ramiro de Noronha (pela Comissão Rondon, 1920), Vicente Vasconcelos (com Amílcar Botelho de Magalhães e Heinrich Hintermann, também pela Comissão Rondon, em 1924), Vincent Petrullo (1931) e Nilo Veloso (1944). Além desses registros pioneiros mais conhecidos, há alguns registros de caráter aventuresco, de viajantes que nas primeiras décadas do século estiveram na região. Se

Capítulo 3

36

de uma área relativamente pequena, abrangendo diversos povos (LéviStrauss, 1948: 323). A experiência do contato e da “miscibilidade” continuada de povos, implicada na permanente movimentação de contingentes populacionais, parece, com efeito, ter sido não apenas recorrente mas mesmo elementar na constituição das relações alto-xinguanas. Entretanto, centradas numa certa perspectiva tradicional de etnografar “a partir de um grupo tribal”, ainda que a própria terminologia nativa derivada da dinâmica da etnicidade local justifique tal escolha, muitas monografias clássicas2 tomaram como recorte suficientemente

evidente

povos

que

se

conformam

como

(relativas)

singularidades, ocupando posições discretas e atômicas frente a outros povos e aos “brancos”3. A solução metodológica para se entender o “condomínio” alto-xinguano seria então ou considerar a dinâmica das relações intertribais como um adendo, um fenômeno que é logicamente acrescido à existência dessa constelação de povos específicos, ou considerar a “área do uluri” como uma única “sociedade” ou, para usar uma terminologia mais corrente, um único “sistema social” (p. ex.: Murphy e Quain, 1955; Basso, 1969; Viveiros de Castro, 1977; Menget, 1977). A opção pela primeira alternativa parece ter dominado a cena, enquanto proliferavam os estudos a partir desse ou daquele povo. É como se, em certa medida, o trabalho de fixação, demarcação e pacificação tocado pelo histórico empreendimento dos irmãos Villas Bôas tivesse obliterado a possibilidade de considerar toda a extensão daquela observação de Lévi-Strauss4. Talvez seja uma abstração pouco produtiva

o controvertido Coronel Fawcett, desaparecido em 1925, não deixou nenhum registro de sua desastrada empreitada, três anos depois George Dyott, à sua procura, incursionou pela região e fugiu às pressas de uma aldeia kamayurá, publicando relatos de valor etnográfico praticamente nulo em 1929 e 1930. É também o caso da missionária norte-americana Martha Moennich, que em 1937 empreendeu uma viagem à região junto com o casal Thomas Young (que estabeleceria uma missão próxima aos Nahukwá, às margens do Kurisevo). A impressão geral que o relato de Moennich (1942) transmite não é muito distante daquela caricaturada por Paul Bowles no conto “O Pastor Dawe em Tacaté”. 2

Por comodidade terminológica chamo de “monografias clássicas” aquelas que operam segundo o esquema uma “sociedade” ≡ uma descrição. A propósito desse esquema cf. Oliveira Fo ,1988, pp. 26 e ss. 3

Se posta a mover-se no plano histórico, restaria como um mistério teórico para essa perspectiva o fenômeno da “extinção” de vários povos xinguanos, solucionado então pelo recurso aos argumentos combinados da depopulação promovida por fatores externos e de um incógnito processo de “aculturação” (o que já chegou a vaticinar a extinção de “nahukwás, trumais e bakairis”). De qualquer forma, o fator de “extinção” ou de “reaparecimento” (caso Yawalapiti) de “povos” é sempre um deus ex machina à lógica combinatória (ou a morfo-lógica) da existência de povos singulares. 4

A propósito do empreendimento dos irmãos Villas Bôas na construção de uma pax xinguensis cf .Menezes Bastos, 1989b: 551 e ss.; 1995: 250-253.

Capítulo 3

37

referir-se a isso como contingência de uma “situation coloniale” (Balandier, 1955: cap 1)5, no entanto, reinscrever a categoria analítica “movimento” como dimensão constitutiva do “complexo” alto-xinguano pode trazer à tona aspectos relevantes da elaboração conceitual e da construção da memória e da narrativa histórica próprias daqueles povos e implicaria num certo redimensionamento da análise antropológica, que algumas monografias clássicas possam talvez ter descuidado. Não se trata simplesmente de fazer eco a uma retórica pós-moderna sobre fluxos e fronteiras, mas de investigar que ganhos analíticos poderia nos oferecer a compreensão das relações altoxinguanas (indiferenciadamente “internas” e “externas”6) sob o signo do contínuo rearranjo de posições diante de novos contatos, populações intrusivas, diásporas e alterações do “entorno” (que, em qualquer caso, incluem os “brancos”), e mais, de que disso não se podem abstrair (como isso não pode ser abstraído de) sistemas de pensamento e a construção de tradições. Na verdade, essa primeira aproximação crítica não é nenhuma novidade. Há dez anos atrás Rafael Menezes Bastos anotava constatação semelhante a propósito das análises que tendem a “congelar” a dinâmica das relações locais num conjunto “residualmente articulado” de “grupos tribais discretos” (Menezes Bastos, 1989a: 394). No entanto, ainda que os esforços etnológicos de compreender a “área do uluri” tenham, de uma forma ou de outra, tentado “compor” (numa perspectiva internalista) a dinâmica das relações intertribais e mesmo construir interpretações segundo modelos de macro-tendências  seja com a pioneira teoria da “compressão”, de Eduardo Galvão (1953), seja com a teoria (de vincagem mais marcadamente difusionista) da progressiva homogeneização, de Gertrude Dole (1993)  outras fronteiras não questionadas, que não as “tribais”, permaneceram implícitas no horizonte etnográfico, consumadas e consagradas por fim nas próprias fronteiras do Parque. Explicitar a presença dessa fronteira como uma continuada reconstrução simbólica (do lado nativo e do lado savante)  que encontra seu correlato na demarcação e, antes de tudo, na transponibilidade da fronteira física, sucessivamente pelo avião e pelas pick-ups (e antes deles,

5

Para uma contextualização crítica do conceito de situation coloniale na “economia” do conhecimento etnográfico cf. Albert, 1997a. 6

Também sobre a construção da diferenciação interno/externo cf. Oliveira F, 1988: 26 e ss.

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38

se Rondon chegasse ao Xingu, seria certamente incluído o telégrafo)  implicaria reconhecer que aí está presente um contínuo jogo político, em que comparecem

formas

contrastivas

de

entendimento

e

de

articulação

estratégica. Talvez não seja precipitado já acrescentar que o “caso” bakairi oferece uma ilustração interessante a propósito do processo de traçado dessas fronteiras, a saber do que é e do que não é “xinguano”, servindo como parâmetro histórico de contraste7. Quando sugiro a relevância da categoria analítica “movimento”, estou a sugerir que essas fronteiras não só não são fixas como também não são fechadas, confinadoras, mas pelo contrário, sempre contingentes, porosas, cambiantes

ou, enfim, se

alguém assim o preferir, processualmente

conformadas. Por outro lado, enquanto categoria analítica, a noção de movimento não deve ser restringida a uma objetividade espacial, e ser imputada como um “traço cultural” ou um padrão de configuração (Benedict, 1934) dos grupos sociais alto-xinguanos  o que, aliás, confrontaria uma já consagrada assertiva etnográfica que contrasta os hábitos sedentários dos grupos alto-xinguanos com a intensa mobilidade dos seus vizinhos Tupi e Jê (Basso, 1973: 26; Agostinho, 1974: 13; Lea, 1994: 133; Heckenberger, 1996: 123-126). A despeito de ser a bacia dos formadores do Rio Xingu uma “zona de refúgio” (Galvão, 1953: 81)  usualmente referida sob o epíteto que lhe emprestaram inicialmente Murphy e Quain (1955: 7): “cul de sac”  ou talvez exatamente por isso, a experiência histórica e pré-histórica (Dole, 1962; Franchetto, 1992, Heckenberger, 1996) da contínua acomodação defrontou as comunidades locais com a reiterada e sempre tensa (Gregor, 1990)  ou, dispensando o eufemismo, francamente beligerante (Menezes Bastos, 1995)  alteração

de

fronteiras,

fornecendo

imagens

mito-históricas

de

uma

transumância fundacional no confronto com o outro (Basso, 1989, 1993, 1995; Menezes Bastos, 1993), que talvez seja o que de mais interessante se possa explorar da idéia de um “amalgamento” de povos (Galvão, 1953). Neste sentido, a chegada dos brancos veio a atualizar e reconfigurar (Sahlins, 1985) categorias nativas que já tinham um largo percurso.

7

Citaria, a título especulativo, mas também com o intuito de sugerir que o “caso” bakairi não é uma singularidade excepcional frente a uma outra totalidade homogênea, que os “casos” trumai, suyá e, mais recentemente, ikpeng (txicão) são, às suas medidas, igualmente interessantes para uma abordagem histórica. Avançando, segundo a sugestão de Pedro Agostinho (1993), para uma “proto-história” (história oral) e para uma pré-história da área, todas as populações acabariam, por fim, sendo abarcadas.

Capítulo 3

39

A noção de “movimento” ganha, assim, uma amplitude que se desdobra para além da imediata noção de mobilidade espacial vinculada ao fenômeno das migrações, podendo (no plano conceitual) ser compreendida como “fluidez”, variabilidade, construtividade reiterada em lugar de uma estrutura sedimentar.







Em um trabalho já antigo Egon Schaden se pergunta “até que ponto a mobilidade espacial da região do alto Xingu e suas conseqüências para as relações intertribais poderiam ser interpretadas em termos ecológicos e atribuídas a uma pressão demográfica condicionada pelo regime de vida econômico” (Schaden, 1964:64, grifo meu). A pergunta tem como pano de fundo: 1. a depressão demográfica8 vivida pelos povos da área desde a passagem de Karl von den Steinen, provocada pelos seguidos surtos epidêmicos de moléstias levadas pelos brancos, o que teria produzido uma “ruptura do relativo equilíbrio demográfico entre as tribos ou aldeias” (:67 e 88); e 2. a consolidação da presença do branco nos Postos Indígenas, com ingresso de bens industrializados a transtornar a circulação estabelecida de bens produzidos sob regime de especialização tribal. Mais importante que qualquer resposta  irremediavelmente expressa em termos de teoria e de projeção  é o quanto uma relação causal como a enunciada por Schaden possa presidir o entendimento de algo como “mobilidade”, vista então segundo o primado da subsistência econômica, ou mais genericamente, segundo a lógica evolucionista da adaptação9. Não só a mobilidade se resolveria como uma questão de atração/repulsão frente à disponibilidade/escassez de recursos, como a lógica do contato se processaria sob a batuta de um irresistível determinismo tecnológico: Os ganhos em subsistência 8 9

material

(alimentar

etc)

explicariam a incorporação, por

Galvão e Simões (1966: 43) estimam em 80% em um período de 60 anos!

Cite-se Lewontin & Levins (1985: 246): “O conceito de adaptação resolve-se na existência de certos ‘problemas’ postos aos organismos pelo mundo exterior, consistindo a evolução em ‘resolvê-los’. (...) Deixando de lado a grande dificuldade em determinar que ‘problema’ a natureza põe, ou para que ‘problema’ um certo órgão é a ‘solução’ (...), põe-se a questão de decidir até que ponto uma ‘solução’ é boa para um certo ‘problema’.” Talvez não seja preciso acrescentar que o paradigma do determinismo ambiental consiste em enunciar a subsistência econômica como “o problema”.

Capítulo 3

40

acréscimo e substituição, de recursos tecnológicos que agregariam traços culturais

adventícios

(e

produziriam

novos

traços)

que,

por

fim,

redesenhariam a “cultura” original. Esse seria o substrato teleológicoevolucionista daquilo a que Schaden (e muitos outros) chamaram de “aculturação”10. O corolário lógico dessa perspectiva é que a chegada dos brancos introduziu um desequilíbrio essencial que fez tábula rasa de todos os “equilíbrios” anteriores, já que a cada demanda de bens ocidentais corresponderia um vínculo de dependência. Assim, a questão central posta pelo autor assemelha-se a um desses sólidos paradoxos que se desmancham no ar, a saber: “Qual a maneira de as tribos do alto Xingu, em virtude de suas experiências aculturativas anteriores, reagirem à presença de elementos culturais do mundo civilizado” (ibidem: 62, grifo meu). Em outras palavras, consagra-se a lógica de uma clivagem dual intransponível, de bias ocidental, segundo a qual os processos de contato são necessariamente entendidos sob a maximização antes dos brancos/depois dos brancos e a mudança social é reconhecida como um jogo (muitas vezes subentendido como demoníaco, ou fáustico, ou apocalíptico) de tudo ou nada, em que se oscila, para usar noutros termos uma velha distinção de Sapir (1924), entre uma “cultura genuína” e uma “cultura espúria”. Da mesma forma fixam-se e congelam-se nos mesmos marcos as unidades operatórias desse mecanismo, e as fronteiras entre elas tornam-se apenas uma obviedade enxadrística: de um lado os brancos, do outro os índios. Enrijece-se, assim, toda a dinâmica de um movimento que implica numa multiplicidade de experiências, na conformação

de

circunstanciais,

problemas no

pontuais,

estabelecimento

de

na experimentação

de

soluções

relações, vínculos, conflitos

e

lealdades particularizados e específicos. Experiências que são sempre orientadas por avaliações estratégicas coerentes com certas expectativas nativas (dos vários “nativos”) e em que a resultante é equacionada não em termos de uma constante hipostasiada (ganhos em subsistência material, p.

10

Num outro contexto, Eduardo Viveiros de Castro expressa talvez a proposição crítica capital a esse modelo: “Fenômenos como a ‘regressão agrícola’  ou, mais genericamente, o modo de vida ameríndio atual  não são eventos evolucionários, mas antes a conseqüência de escolhas políticas, decisões históricas que privilegiaram certos valores (p. ex. autonomia política) às expensas de outros (p. ex. acesso a bens).” (Viveiros de Castro, 1996: 194, tradução minha).

Capítulo 3

41

ex.) mas em termos de “valores de troca” (Sahlins, 1988) situacionalmente definidos11. Numa outra abordagem (bem mais recente) da mesma possível relação entre alterações demográficas, migrações e relações intertribais, Michael Heckenberger (1996 e s. d.), a partir de dados arqueológicos e etno-históricos, nota que processos de intensa depopulação ocorreram não apenas depois da passagem de von den Steinen no final do século passado, mas também nos séculos que se lhe precederam, apontando para um processo de longa duração de interações regionais que, seja através da chegada de epidemias seja com o conflito (em larga escala) com outros grupos, indicam a permanente inserção do Alto Xingu num contexto mais amplo de relações macro-regionais12. Por outro lado, as soluções locais específicas de gestão desses impactos  que podem ser genericamente resumidos sob a forma de incorporação

de

novos

grupos

e

fusão

de

grupos

pré-existentes



mobilizaram as forças e mecanismos sociais disponíveis, que orientaram (sem deliberadamente determinar) a reformulação das relações locais, configurando um padrão flexível de inclusividade e a consolidação de um complexo regional multi-étnico integrado (Heckenberger, 1996: 141). A articulação entre esses vários níveis informa uma causalidade histórica distinta da simples adaptação ambiental ou do estrito fenômeno do contato recente com os brancos. Indo um pouco além da estimulante “solução” elaborada por Heckenberger em termos de macro-modelo13, gostaria de sugerir que a mesma articulação apontaria para uma multicausalidade que não permite inferir ou mensurar

qualquer

determinação

estritamente

especificada

ou

exaustivamente explicável. Todos os “vetores” funcionam no máximo como 11

Analisando o comércio colonial no Pacífico, Sahlins observa como o valor relativo de certos bens (chá para os ingleses, sândalo para os chineses, bugingangas industrializadas para os maori etc) ajustava uma grande rede (ou patchwork) de ambições e “fragilidades humanas” localmente especificadas, postulando: “O sistema mundial é a expressão racional de lógicas culturais relativas, isto é, nos termos de valor de troca.” (Sahlins, 1988: 58, grifo meu). Tomo a liberdade de, metaforicamente, estender a noção de “valor de troca” para além das estritas mercadorias, para observar, tal como Sahlins, que os mecanismos de empréstimo e apropriação cultural não tomam os “bens” segundo valores universais transcendentes, mas sempre segundo uma interpretação nativa, o que vale, como dissertarei adiante, para a escola e para a escrita. Quanto à determinação situacional desses valores de troca, subentenda-se aí também que não se está diante daquela abstração ingênua que os economistas liberais chamam de “mercado de concorrência perfeita”... 12

O contato progressivo com os brancos pode ser visto assim como apenas mais um episódio desse contínuo movimento. 13

Como macro-modelo, o de Heckenberger parece ser a versão dinâmica (“centrífugo” x “centrípeto”) da estática do modelo da compressibilidade, de Eduardo Galvão (1953).

Capítulo 3

42

tendências, e não podem ser concebidos in abstracto, sem o contexto que os torna operatórios, relevantes e significativos. É isso o que, provavelmente, a dimensão etnográfica (como de fato observa Heckenberger) permita revelar.







Antes mesmo de escrever seu artigo para o Handbook of South American Indians, Lévi-Strauss já utilizara os dados xinguanos num outro artigo publicado originalmente na Revista do Arquivo Municipal, de São Paulo, em 1942. Tratando da guerra e do comércio entre os índios brasileiros, LéviStrauss postula uma mútua conversibilidade entre esses dois fenômenos, como aspectos de um mesmo processo de interação, apontando o Alto Xingu como um caso em que a contínua desconfiança recíproca entre os grupos sociais seria ao mesmo tempo complementada e administrada por um intercâmbio cerimonial, matrimonial e de bens (Lévi-Strauss, 1942: 327-329). Não obstante, guerra e troca seriam fenômenos distinguíveis e evidentes, sucedendo-se no tempo e determinando-se excludentemente14. Mais de 40 anos depois, Patrick Menget viria a introduzir uma complexificação nesse modelo de mútua exclusão. A partir de algumas considerações sobre os conflitos com os vizinhos e o mecanismo xinguano de acusações de feitiçaria, Menget (1985) postula que, numa perspectiva êmica, não haveria solução de continuidade entre a agressão por um grupo externo e a ação maléfica de um feiticeiro  por excelência um indivíduo pertencente aos próprios grupos locais mas discordante do ethos prescritivo da sociabilidade xinguana e em fraca posição de aliança/laços parentais (Basso, 1973: 124 e ss; Gregor, 1977; Menget, 1993a: 67-71). O reconhecimento da ameaça potencial estaria vinculado não essencialmente ao estranho (a este por conseqüência!) mas àquele que se afasta de um ideal de “civilização” definido pelo ethos xinguano (cf. Viveiros de Castro, 1977). Daí haver um continuum entre agressão (no extremo mais “externo”) e troca/reciprocidade (no extremo mais “interno”). Um continuun no qual um estranho ou

14

“As trocas comerciais representam guerras potenciais, pacificamente resolvidas; e as guerras são o resultado de transações mal sucedidas.” (Lévi-Strauss, 1942: 337).

Capítulo 3

43

estrangeiro pode transitar, pode ser xinguanamente civilizado15, e daí, como observa Menget, “a possibilidade, para os inimigos, de se socializarem, aceitando o ideal de troca equilibrada que caracteriza a sociedade xinguana e se manifesta na norma da aliança simétrica” (1985: 135, tradução minha)16. A constituição do “sistema social” xinguano (para usar a expressão de Menget, mas não apenas dele) conjugaria assim a “desconfiança recíproca entre grupos” com uma escala de confiabilidade reiteradamente posta em ato: A realização dos circuitos de troca (matrimonial, cerimonial e de bens) como, ao mesmo tempo, operadores e consagradores da inclusividade. A perspectiva oferecida por esse sistema relativamente aberto (Menget, 1993a: 64) coloca em questão o tipo de sujeito social com relação ao qual opera a inclusividade. Em sua monografia sobre os Mehinaku, Thomas Gregor (1977) postula a existência de um desnível na interação entre indivíduos e entre grupos “tribais”: “Entre tribos, a interação é matizada por estereótipos hostis e regulada pelas regras cerimoniais e pelo formalismo das sessões de troca. Entre indivíduos, as relações avançam a partir de um sistema flexível de intercasamentos, parentesco e hospitalidade. As fronteiras entre as tribos não são jamais impermeáveis mas sempre vistas como acolhedoras às necessidades individuais.” (Gregor, 1977: 318, tradução minha). Um exemplo oferecido

por Patrick Menget

vulnerabilizados

Ikpeng

pelos

sobre povos

a recepção do

Alto

dos

então

também

hostis

ilustra

e

essa

problemática: “A primeira reação dos Xinguanos à instalação dos Txicão entre eles estava em continuidade com a sua política de represálias. Eles desejavam acolher isoladamente os grupos familiares txicão nas suas diferentes aldeias, para efetivar sua incorporação. As autoridades indigenistas impediram essa solução, e os Txicão tornaram-se assim, depois de serem tidos como inimigos irredutíveis, vizinhos mais ou menos tolerados, mas reputados como possuidores de uma poderosa feitiçaria.” (Menget, 1985: 134, tradução minha)17. Acredito que o desnível concebido por Gregor seja antes de tudo 15

Como se verá mais adiante, a sugestiva glosa nativa é “amansado”.

16

A conclusão mais genérica oferecida por Menget deve ser citada: “Pode-se portanto substituir a consideração estática de um interior oposto a um exterior (do grupo social) por uma perspectiva mais relativista: As sociedades amazônicas, sul-americanas em geral, não definem fronteiras permanentes para as unidades sociais, mas elas categorizam os graus da alteridade social, correspondente a diferentes sistemas sociais que se intersectam, se englobam ou se avizinham.” (:137, tradução minha). 17

Os Ikpeng (Txicão) não são reconhecidos pelos alto-xinguanos como parte do seu sistema, inserindo-se apenas residualmente nos circuitos de trocas. Um informante comentou-me que mulheres waurá já haviam se casado com homens ikpeng, mas não pude discernir se esses casamentos se deram

Capítulo 3

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sucedâneo de seu modelo analítico interacionista, no qual um indivíduo irredutível é o cerne empírico da análise social, e daí o autor passar toda a sua etnografia a buscar “ver o homem por trás da máscara” (Gregor, 1977: 306). Compartilhando de uma perspectiva já bem conhecida, formulada por Eduardo Viveiros de Castro (1977), a idéia de adesão a um ethos xinguano não seria questão de “opção” ou de manipulação individual calculada, não é tão simplesmente um jogo de apresentar-se e ocultar-se, como o quer Gregor, mas antes a expressão de um indivíduo socialmente “fabricado” (cf. também Seeger et alii, 1979), fabricação que o insere num grupo de substância, a parentela, que, por sua vez, explicitará níveis de pertencimento, numa escala de progressiva inclusão, igualmente desdobrada  depende de onde se a vê  numa dialética contrastiva nós/outros18. É também Viveiros de Castro que nota que essa fabricação é correlata e ordenada segundo a (cosmo)lógica das transformações que se operam num continuum sociedade/natureza/sobrenatureza, onde se perfilam gente, bichos e espíritos. A fabricação da pessoa social seria um contínuo processo de transformação “perfectibilizadora”, no sentido de conduzir o indivíduo à condição de “mais gente”19. Uma elucidação sobre

o

conteúdo

daquele

ethos

xinguano

e

sobre

essa

escala

de

transformação poderiam informar algo a propósito daquilo a que Menget se referia como a categorização dos graus de alteridade social (ver nota 17) e, portanto, a partir de qual substrato se ordena a relação nós/outros.

depois da chegada dos Ikpeng ao Xingu (os Waurá foram seus anfitriões-mediadores) ou se essas mulheres foram objeto de roubo, por ocasião das escaramuças dos Ikpeng. No entanto, o reconhecimento da existência de casamentos já indica uma inserção potencial no circuito de trocas matrimoniais. Da mesma maneira, presenciei jovens ikpeng de ascendência alto-xinguana de indivíduos “roubados” que se dirigiam a consangüíneos alto-xinguanos através de expressões de parentesco, tentando recompor “de direito” um vínculo biológico. Os alto-xinguanos comentam também a progressiva civilidade dos Ikpeng: o uso de redes de dormir, o corte de cabelo e a renúncia a hábitos alimentares bárbaros  as prescrições alimentares são um dos componentes centrais do eidos xinguano (cf. Viveiros de Castro, 1977; para o conceito de eidos cf.  obviamente  Bateson, 1936). Apesar de não fazerem parte do circuito de trocas cerimoniais, os Ikpeng já “imitam” algumas cerimônias xinguanas, como a festa da taquara (reputada, aliás, como uma contribuição bakairi). Não seria de admirar se dentro de algumas décadas um kuarup viesse a ser realizado em uma aldeia ikpeng. 18

Cito Bruna Franchetto, que explora a nomenclatura caribe-xinguana: “Ótomo é um operador básico da configuração de uma pessoa coletiva (...). Ótomo é também um rótulo do campo semântico do parentesco. Em cada plano do sistema classificatório, a dualidade ótomo/télo reproduz a dialética básica entre um ‘nós’ e um ‘outro’. Télo é o “diferente” (...). É a semântica básica deste idioma que oferece os recursos para a identificação reflexiva do ótomo. Este se apresenta, perante ótomo, como um grupo de parentes extenso, dada uma descendência comum, por ter uma mesma origem e um mesmo conjunto de grandes chefes fundadores.” (Franchetto, 1993: 103-104) 19

A tese de Viveiros de Castro é de que essa “fabricação” se opera por meio de uma disciplina da corporalidade, linguagem através da qual se expressam os ideais da sociabilidade.

Capítulo 3

45

Vários autores (Oberg, 1953; Agostinho, 1974; Gregor, 1977; Viveiros de Castro, 1977; Menget, 1993a) já se referiram ao que seria um dos mitos de origem comum aos grupos alto-xinguanos, que versa sobre a separação original dos homens em “classes”, a partir de certos atributos-chave, sob a forma de objetos-símbolos, que lhes foram presenteados por um herói criador. Este demiurgo, que não propriamente cria mas distribui, ou transforma (algo pré-existente), como observa Agostinho (1974: 16), operando dessa forma uma escala original (“adâmica”) de diferenciação, teria oferecido presentes a cada um dos representantes dessas “classes” de homens. Os brancos aceitaram armas de fogo, máquinas e outros artefatos que marcam um domínio técnico privilegiado, mas ao mesmo tempo misterioso, desproporcional e monstruoso; os índios brabos (não-xinguanos) ficaram com bordunas e armadilhas, que marcam uma insuspeitada hostilidade e ferocidade; e os xinguanos ficaram com os arcos e belos adornos de penas e caramujos, marcas de elegância, refinamento e pacifismo. Entre esses últimos, uma versão kamayurá colhida por Pedro Agostinho (1974: 19-21, 180-181) informa a aquisição de elementos complementares de diferenciação: o arco preto, para os Kamayurá; o arco branco, para os Kuikuro; e a panela de barro para os Waurá20. A partir disso, esse mesmo herói demiúrgico dispôs essas classes de homens em lugares distintos, deixando os brancos distantes, expulsando os índios brabos para fora do Xingu e ficando na companhia dos belos, nobres e gentis xinguanos. Assim, através desses bens-símbolos que carregam uma especificação cultural e quase que, por assim dizer, um destino manifesto, esboça-se uma clivagem entre o nós e os outros colorida (ou desenhada) por valores morais. É precisamente essa especificação que faz emergir no ethos xinguano a medida do nós-distinto-dos-outros como expressão da medida de uma “humanidade verdadeira”. Os mitos xinguanos são pródigos em tranformações: gente que vira bicho, gente que vira planta, bichos que agem como gente, que são quase 20

Observe-se que essa tripartição equivale à dos três tronco/famílias lingüísticas dos grupos altoxinguanos: Tupi (Kamayurá, Aweti), Karib (Kuikuro, Kalapalo, Matipu e Nahukwá) e Aruak (Waurá, Mehinaku e Yawalapiti). Os Trumai  tidos como os últimos a se incorporarem ao sistema altoxinguano, do qual parecem manter-se a uma relativa distância (sobre a não participação dos Trumai no circuito de trocas cerimoniais, por exemplo, cf. Villas Bôas e Villas Bôas, 1970)  falam uma língua isolada. Esses objetos característicos, no caso do sub-conjunto alto-xinguano, sintetizam traços distintivos através de bens de produção especializada (Agostinho, 1974: 180). Para um quadro geral das especializações manufatureiras dos vários grupos xinguanos e base original do circuito de troca de bens cf. Gregor, 1977: 310.

Capítulo 3

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gente ou que se tornam gente “mesmo”, espíritos que podem ser gente e bicho e, de uma maneira geral, “seres” que são quase alguma coisa ou mais verdadeiramente alguma coisa, que são algo por exagero ou que lhes falta algo. Nessa convivialidade de domínios, as narrativas míticas organizam, distribuem, articulam, mensuram e transmitem, enquanto experiência e experimentação vívida, a constituição e elaboração da sociabilidade, do lugar e do ideal do “homem” na sua medida mais precisa. Assim, ao invés de dizer como Thomas Gregor, numa concepção mais estatista, que “os mitos de metamorfose traçam o limite entre os homens e o mundo da natureza” (Gregor, 1977: 301, tradução minha), poder-se-ia dizer que os mitos, antes, organizam (e incitam à operação) a escala da transformabilidade, uma escala contínua que vai de “gente” a “não-gente” (Samain, 1991: 67). É por conta dessa dinâmica que a condição de “mais gente” pode ser perseguida21, e é ela que recorta o domínio do socius. Para isso, é preciso que haja critérios, ou, para remeter-me diretamente a Bateson (1936), princípios gerais em torno de um conjunto de valorações comportamentais. O que me refiro como “o domínio do socius” é aquele a que Bateson se refere como o da “normalização” dos indivíduos. Os diversos autores que contribuíram para a etnografia xinguana referem-se a esses princípios segundo umas tantas (mas confluentes) rubricas. Pioneiramente, Gertrude Dole, tratando das acusações de feitiçaria como

mecanismo

de

controle

social,

sugere

que

a

sociabilidade

se

manifestaria em torno dos princípios de evitação da agressão, da cordialidade, da generosidade e da predisposição à cooperação (Dole, 1966: 74-76). Mais tarde, Ellen Basso (1973) argumentaria que princípios como de nãoagressividade e de generosidade (“emicamente” referidos como os traços diacríticos de uma “humanidade” xinguana) se expressariam e se articulariam através de um ideal de comportamento designado genericamente (em karib xinguano) pelo termo “ifutisu”. Ifutisu congregaria atitudes como de não agressividade, de moderação verbal, de generosidade, de hospitalidade, de observância das prescrições alimentares e das normas de tratamento devido aos afins (“distância, silêncio e evitação”: Franchetto, 1986: 106). A condição de ifutisu, ifutisunda (ter/estar “com” ifutisu), se traduzido para o português,

21

Menezes Bastos sintetiza de forma lapidar a cognoscibilidade conceitual xinguana: “A substância das coisas é sempre comparativa.”(1995: 246, nota 24).

Capítulo 3

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implicaria em um termo que colocasse no mesmo campo semântico respeito, vergonha e constrangimento. As atitudes simetricamente opostas àquele ideal (agressividade, exacerbação verbal e gestual, avareza etc) caracterizariam a insociabilidade, reputada ou a estrangeiros “selvagens” ou aos feiticeiros. Mais uma vez, numa primeira escala, há um continuum entre os indivíduos mais perfeitamente sociáveis (ou mais “centralmente” sociáveis) e os mais marginalmente sociáveis22. Chefes e feiticeiros seriam respectivamente os personagens arquetípicos de um ou outro caso23. Avançando uma interpretação (ou antes uma sugestão) que não tenho intuito de conduzir senão como breve digressão, diria que a contínua tensão das relações intertribais poderia ser vista sob o prisma de uma linguagem comum (sob termos comuns, sob uma gramática comum) de disputa em torno da condição de “mais-gente”: Enquanto que as desavenças inter-grupos são maximamente expressas através de acusações de feitiçaria ao grupo oponente (colocando-o, portanto, mais à margem da “humanidade”)  e a acusação de feitiçaria seria assim um “dêitico” ético/ôntico (perdoe-se-me a cacofonia)  , a aproximação entre grupos, por seu turno, é maximamente expressa pela linguagem cerimonial, que tem exatamente no chefe e no seu atributo ritual de execução da “fala verdadeira” (Franchetto, 1986; Menget, 1993a) seu elemento de articulação. O mesmo paralelismo pode ser visto no conteúdo formal de um e de outro discurso: Se a acusação de feitiçaria é a derrogação do outro, a fala cerimonial do chefe para “o outro” assume a forma autoderrogatória (Franchetto, 1986). Integra-se através do centro, afasta-se marginalizando. (A condição de recepção dos Ikpeng, como comentava Menget, era de pô-los num lugar... à margem. No momento em que os Ikpeng forem cerimonialmente convidados para uma festa intertribal xinguana, estará ritualmente consagrada sua inclusão no sistema.). De uma maneira geral, eu traduziria sinteticamente os ideais do ethos xinguano em três traços capitais (categorias não nativas!): temperança, afabilidade e generosidade. São esses princípios por excelência que (em caribe xinguano) qualificam um indivíduo como takihekunginhü24, alguém que é 22

Minha referência a “centro” e “margens” é tributária da concepção “ptolomáica” que Eduardo Viveiros de Castro elabora a propósito da cosmologia xinguana (cf. Viveiros de Castro, 1977: 146 e ss.). 23 24

Thomas Gregor (1977: 200 e ss.) descreve também alguns “tipos” intermediários dessa escala.

Doravante, os termos kalapalo que colhi em campo serão grafados segundo a norma gramatical Karib-xinguana em vigor (ou seja, de acordo com a ortografia recentemente estabelecida para uso dos

Capítulo 3

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“bom, cordato, educado” (como procurou me explicar um informante), ou, como se refere a glosa nativa, “manso”, por oposição a tükotinhü, “brabo”, que é o que qualifica por excelência um “bárbaro”, originalmente um ngikogo (índio brabo) ou um kagaiha (branco, caraíba). Se o ethos define a pertinência a um socius  e, em última instância define quem é “gente” (kuge) , a insociabilidade

seria

o

antípoda

dos

valores

capitais

daquele

ethos:

imprevisibilidade, agressividade e avareza. São esses os sinais da ameaça, que não por acaso inviabilizam qualquer expectativa de reciprocidade e afastam o interagente na direção da selvageria e da animalidade. Assim, numa escala mais alargada, a oposição (que exprime polos de uma gradação) manso/brabo reflete-se na oposição amigo potencial/inimigo potencial25, que, por sua vez, reflete a possibilidade de aproximação inclusiva (mesmo que residual) ao sistema xinguano. A versão alto-xinguana para a história do contato (com os brancos e com os índios brabos) é uma história de conflitos e de pacificação. Bem entendido, os brancos e os índios brabos é que foram pacificados, “amansados” (Menezes Bastos, 1986; Franchetto, 1993: 106). E quando se fala em amansar (akihekungü) pensa-se necessariamente no intercurso de um mediador, de um “educador” que, à maneira do pai que orienta o filho durante sua reclusão pubertária, num dos momentos privilegiados da “fabricação” da pessoa xinguana, se insere entre os inimigos e “orienta-os”, convence-os de como devam se comportar. As narrativas da história oral xinguana informam exemplarmente as aventuras desses mediadores (Franchetto, 1992; Basso, 1993a) e poderiam ser vistas como parábolas de situações críticas e ações exemplares que, como nos ensina Ellen Basso (s. d.), oferecem o acesso a uma

próprios Karib-xinguanos). Por exemplo: ifutisu deveria ser grafado como “ihutsu”. Em caso de haver necessidade de uma aproximação fonética com o português, grafarei a versão portuguesa do termo entre parêntesis após o termo original. Por exemplo: ihutsunda (ifutsundá). Alguns termos cuja grafia consagrada remete-se à fonética do português serão citados nessa grafia. Por exemplo: Aifa ao invés de “Aiha”, Tanguro ao invés de “Tangugu”; Afukuri ao invés de “Ahukugi”  todos nomes de aldeias. Sempre que a citação remeter-se ao trabalho de um etnógrafo, utilizarei a grafia do autor. 25

O termo “amigo” é nativo (caribe: -ato), mas serve para, analiticamente, marcar diferença com a noção de afim. Com efeito, os brancos são hoje amigos potenciais (exceto garimpeiros, madeireiros e, moderadamente, fazendeiros), mas não parentes potenciais. Não obstante, a dualidade amigo potencial/inimigo potencial é estritamente analítica, já que, em termos nativos, o correlato oposto a amigo não guarda similitude semântica com o nosso termo “inimigo”. -atohüngü pode ser traduzido por nãoamigo, alguém a quem se é desconhecido ou, em grande medida, indiferente. Eu não subsumiria de imediato a noção de “amigo” no conceito de “aliado” porque algumas reverberações consagradas na antropologia em torno da noção de aliança transitam junto ao potencial estabelecimento de vínculos de parentesco. Salvo injunções excepcionais, os xinguanos continuam casando-se entre eles.

Capítulo 3

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concepção estratégica compartilhada da realidade, através da veiculação de modelos ideais que orientam a ação social. Pode-se dizer que a substituição de uma relação de agressividade por outra de progressivo entendimento estaria condicionada à possibilidade histórica de conversão do inimigo à condição de “manso”, que é a qualificação mais aproximadora da condição de “gente”. O estabelecimento de relações intertribais pacíficas no Alto Xingu pode assim, em certa medida, ser lido como um movimento de contínua equalização do pertencimento dos diversos grupos a uma idealmente refinada humanidade xinguana (kuge) ou, se se preferir, a uma comunidade moral. Dessa forma, não haveria uma contradição, como parece sugerir Menget (1985: 133), que pudesse ser vista como expressão de uma hipocrisia moral, entre um ethos pacifista e uma história de relações

conflituosas

com

os

vizinhos

e

com

grupos

intrusivos.

O

estabelecimento de relações pacíficas, segundo a lógica nativa, imprescinde, antes de tudo, de que o interagente em alguma medida se mostre em concordância

com

os

valores

morais

nativos

que

dão

esteio

ao

estabelecimento da reciprocidade. Com efeito, um dos heróis culturais xinguanos é precisamente o guardião das nem sempre bem nítidas fronteiras da comunidade moral. O guerreiro ou “mestre do arco” (tahaku oto: “dono” do arco) é também aquele capaz de interpretar os sinais do outro e antecipar o curso dos acontecimentos (Basso, 1989)26. É também por conta dessa mesma lógica que se compreende que, depois de uma história de contatos conflitivos com incursões bandeirantes, a chegada de Karl von den Steinen ao Xingu, que rompe com o padrão de hostilidade dos brancos, é reconhecida pela tradição oral como uma “época em que os caraíba já eram bons” (apud Franchetto, 1992: 348, grifo meu). Essa nova fase se consagra com uma atitude concordante com as expectativas em torno da reciprocidade: Ela é marcada pela oferta de presentes pelos caraíba. Cito Bruna Franchetto: “Esta ‘pacificação’ [dos 26

É verdade que a análise da autora vai bem além disso. Ellen Basso sugere que, nas narrativas biográficas em que é personagem principal, o mestre (ou “dono”) do arco não seria propriamente uma figura ética paradigmática, mas que, tendo passado por um processo de formação moral exemplar, defronta-se com uma situação de desorientação frente à qual é preciso redimensionar suas referências. Talvez não seja exagerado sugerir que o que Basso chama de uma “sutil construção da mudança ideológica” (1989: 567), mais que tão simplesmente uma questão de agency, encontraria fundamento no processo a que Sahlins (1985) se refere quando diz que os eventos atualizam as categorias, produzindolhes uma “reavaliação funcional”. Também nesse sentido poderia ser entendida a proposição da autora de que as fronteiras morais não são sempre nítidas (Basso, s.d.).

Capítulo 3

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brancos] teve

poder transformador. O signo de tal passagem foi a

transformação de uma reciprocidade negativa  a violência da qual os kúre [kuge] foram vítimas  à reciprocidade positiva da troca de ‘presentes’, modalidade ainda plenamente atual no Alto Xingu. Apesar da submissão pelo medo ter sido substituída pela dependência dos ‘presentes’, os kúre se vêem como agentes e não pacientes desta transformação que, afinal, possibilitou sua sobrevivência e continuidade.” (Franchetto, 1993: 106-107). Se

por

progressivamente

um

lado

os

“civilizados”

brancos 

ou,

foram,

à

se

não

medida

xinguana,

quisermos

ser

terminologicamente etnocêntricos, “amansados” , os princípios gerais dessa dinâmica ainda seguem válidos. Mais do que os presentes tradicionais, já bastante óbvios, mas ainda potentes signos do estabelecimento de boas relações27, a confrontação dos xinguanos com novas necessidades, fruto de sua percepção estratégica do contexto progressivamente cambiante da relação com o mundo dos brancos28, leva-os a demandar outros “presentes”: assistência médica, máquinas, geradores de energia, alternativas econômicas, sistemas de comunicação e... escolas. Estar-se-ia em face de um novo patamar nos termos da reciprocidade? Não por acaso as lideranças altoxinguanas têm investido esforços deliberados na constituição de uma rede de “amigos”: Os brancos que possam servir-lhes como apoio assistencial, comercial (p. ex. venda de artesanato) e institucional ou político estratégico: de antropólogos e lingüistas a políticos e agentes do Estado, de técnicos a artistas, de produtores de televisão e vídeo a diretores de escolas particulares. Pessoalizadas as relações, como os xinguanos se defrontariam com a impessoalidade burocrática e jurídica das associações civis indígenas (em curso de larga expansão) e da necessidade de elaborar projetos racionais para concorrer a recursos de agentes financiadores? As alterações que seriam 27

Afinal, os pesquisadores que chegam ao Xingu ainda se vêem confrontados com a expectativa de que ofereçam miçangas, anzóis, facões e cortes de tecido, que continuam sendo muito úteis e preciosos, mesmo com a possível inclusão de outros tipos de presentes (dependendo do visitante): combustível, óleo lubrificante, lanternas e até barcos e motores náuticos. Esses presentes “maiores”, dependendo do interesse do visitante são objeto de negociação prévia. Há, em todo caso, um desnível nas concepções desses presentes. Se para os brancos eles podem ser concebidos como ‘pagamento’(p. ex. pelo direito à imagem, pelo direito a um certo tipo de acesso ao Parque), para os xinguanos eles são antes de tudo o passaporte que permite o estabelecimento da cooperação recíproca. 28

No capítulo seguinte dissertarei sobre as alterações desse quadro conjuntural: o “esvaziamento” da Funai, o cercamento do Parque pelo agro-business, a aproximação das cidades, a presença de ONG’s de apoio; confrontando-os com a experiência histórica e com um projeto de afirmação identitária dos exxinguanos Bakairi.

Capítulo 3

51

pertinentes às concepções em torno desses novos “presentes” ou, em especial, em torno da escola e da escrita na língua nativa, é o que me interessa investigar. Se, como postula Sahlins (1985), os eventos atualizam as categorias, se elas estão sempre expostas a riscos empíricos que lhes imprimem novas dinâmicas, o que significaria, em termos nativos, a “dependência” (para usar o termo de Bruna Franchetto)  uma dependência sempre relativizável  desses novos presentes? Ou antes: O que significaria “administrar” sua necessidade? Algumas dessas questões são maiores que minhas próprias pernas intelectuais, mas servem para balizar suspeitas analíticas. Não esboçarei senão algumas indicações que me pareçam prudentemente fundamentadas em algumas “pistas” etnográficas. Outras muitas pistas estão a ser investigadas. Uma multicausalidade, como dizia antes, tendendo ao infinito, não permite que se recorte a lógica de um processo social com a precisão cirúrgica dos bombardeios norte-americanos sobre Bagdá. Tudo o que se pode fazer é colher os resíduos, as pistas, e ensaiar uma interpretação possível, formulando questões, amplas ou pontuais, que pareçam ser produtivas. Utilizarei

como

caso

de

estudo

privilegiado

a experiência da

comunidade Kalapalo de Tanguro em torno da escola, posta em paralelo com a experiência bakairi de Paranatinga e as respectivas histórias de contato de um e de outro grupo.

Capítulo 4

52

Bakairi e Kalapalo: Duas contas de um colar de miçangas.

Ao final do século XVI as primeiras bandeiras paulistas lançam-se aos sertões em busca de índios escravizáveis. As bandeiras de Antônio de Macedo (1590-1593) e de Domingos Rodrigues (1596-1600) podem ter sido as primeiras a atingir as margens do Rio Araguaia, que então teria sido chamado de Paraupeba (Ferreira, 1960). Tendo ou não atingido esse ponto, o fato relevante é que, como passou a ser de costume, os bandeirantes redigiam “roteiros”, que eram posteriormente seguidos por outras bandeiras. A precisão desses roteiros e a fidelidade de sua execução por bandeiras posteriores parecem repousar sobre um mar de vastas incertezas, tão vastas quanto aqueles sertões por desbravar. Não obstante, os bandeirantes os seguiam, e as referências geográficas neles mencionadas tornam-se lugares comuns para designar coisas às vezes muito distintas da intenção original do primeiro designador. Os nomes surgem, as coisas se esvaecem. E o consenso sobre o lugar das coisas percorre um caminho que oscila entre a tradição, o mito e a fantasia. Aquelas bandeiras quinhentistas teriam sido as primeiras a firmar notícias a respeito da possível existência de ouro em sertões longínquos onde habitavam os índios “Goyazes” ou “Guaiazes”. Esses sertões seriam o berço das tribos “guayanazes”, referidas pelo Padre José de Anchieta, e a respeito das quais assinalou um velho historiador que “os paulistas mestiços daquellas tribus tinham dellas a linguagem e os costumes, e, por isso, mais facilidade de entrar nos sertões goyanos do que em qualquer outro do paiz” (Assis Moura, 1915: 241). Assim como esses supostos Tupi, que o nheengatu paulista permitia entender, outros “gentios” viriam, por seus nomes, enunciar lugares daqueles sertões onde o ouro se dispunha para a colheita e a fortuna; eram os “Araés”, os “Aracys” e todos aqueles que teriam sido capazes de indicar onde haveria ouro. No correr do século seguinte, entretanto, outro nome associou-se ao daquelas tribos, como designação de uma paragem qualquer no caminho das bandeiras, um lugar chamado “Martyrios”. A referência do nome se sabe, ou ao menos foi transmitida pela tradição bandeirante; o porquê do seu uso como

Capítulo 4

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designação de um lugar é polêmica. Martírios se refere aos instrumentos do suplício de Cristo. A possível analogia geográfica que esteve na raiz do uso desse nome  e que, no fundo, fez com que durante séculos tal paragem fosse rastreada incansavelmente  é que é nebulosa. Uma versão aponta para formações rochosas que sugeririam a imagem daqueles instrumentos; outra aponta para inscrições rupestres num determinado lugar, as chamadas itacoatiaras, que sugeririam a mesma imagem (Ferreira, 1951 e 1960). O ciclo das bandeiras destinadas exclusivamente ao apresamento de índios começa a declinar a partir de meados do século XVII (Ellis, 1960) e a procura do ouro torna-se o mote principal das subseqüentes. Das três últimas décadas desse século não se tem documentação precisa disponível sobre a existência de bandeiras que tenham se internado pelos sertões dos Goiás, chegando ao Rio Araguaia. A última notícia disponível em fontes primárias diz respeito à bandeira de Sebastião Pais de Barros, em 1673 (Ferreira, 1960: 311), que, como os demais antes dele que seguiam as rotas usuais firmadas pelos “roteiros”, teria avançado por Goiás e descido o curso do Araguaia. Depois disso, e até a segunda década do século XVIII, tudo o que se sabe tem origem na tradição oral, eivada de lendas, utilizada como fonte pelos historiadores (ou “cronistas”) do século XIX, além de uma única obra documental anterior, que se começou a redigir a partir de 1742, a Nobiliarchia Paulistana Historica e Genealogica, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, editada pela primeira vez apenas em 1869 e de onde Afonso de Taunay coligiria muitos dados para a sua clássica História das Bandeiras Paulistas, começada a publicar em 1924 e que ainda serve de referência para a historiografia do bandeirismo. Essa historiografia de fontes nebulosas, que hoje não se podem mais recuperar, produziu afirmações como as de Gentil de Assis Moura, que em 1915, numa tese acatada e publicada pelo Instituto Histórico e Geográfico, anotava que “em 1682 Bartholomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, (...) chegou até o território dos Aracys, situado no Araguaia, segundo uns, e no Xingu, segundo outros, e onde descobriu as minas dos Martyrios” (Assis Moura, 1915: 241). Apesar de sua problemática comprovação, acrescida da controvérsia quanto à data real da bandeira (1682 ou 1670?  Ferreira, 1960: 127), essa afirmação ao menos traz à tona um elemento importante da história do desbravamento dos sertões de Goiás e Mato Grosso: Começava a

Capítulo 4

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nascer ali, remetida a essas últimas décadas do século XVII, a lenda em torno das Minas dos Martírios. Daquela suposta bandeira de Bartholomeu Bueno da Silva, trinta e cinco anos se passariam para que, após o fechamento para os paulistas do caminho para as Minas Gerais, com a derrota na Guerra dos Emboabas, as narrativas em torno do ouro dos Martírios, fermentassem um novo surto de interesse pelos sertões de Goiás. Já então as narrativas vinham embaladas pela miragem de riquezas incomensuráveis, reproduzindo-se como inventário do sempre alimentado sonho de um eldorado. Em 1719 uma bandeira funda, no extremo oeste, um arraial, na região dos rios Cuiabá e Coxipó, que viria a ser a vila de Cuiabá. O ouro que sai de suas cercanias alimenta a febre das explorações. Durante três anos (1722 a 1725), Bartholomeu Bueno da Silva, filho do primeiro, percorreria os sertões dos Goiás atrás do caminho dos Martírios. Mesmo sem encontrar qualquer ouro, os sertões foram devassados. O bandeirante incorpora-os à Capitania de São Paulo e recebe, em recompensa, uma Carta de Sesmarias em que se lhe confiam 518.400 alqueires daquelas terras (12.545 Km2), “para que as logre e possua comocousa propria tanto elle como todos os seus herdeiros”, além do direito de passagem de 8 rios pelo período de “três vidas” (três gerações) (Archivo do Estado de São Paulo, 1901: 64-65). Voltando a seus domínios, funda o arraial de Sant’Ana, futura Vila Boa de Goiás, hoje simplesmente Goiás (ou Goiás Velho). Por altura daquelas terceira/quarta décadas do século XVIII, a região dos formadores do Xingu ainda não fora alcançada pela colonização. O eixo Cuiabá (a oeste)-Vila Boa de Goiás (a leste), ligados então por um caminho, tem como limite setentrional a região do Rio das Mortes, em torno de onde perambulam os buscadores de ouro, atrás dos Martírios. No entanto, a ocupação daqueles territórios (principalmente pelo avanço da pecuária), a febre do ouro e a escravização de índios transtornaram a ocupação da região pelas populações indígenas. Ao iniciar-se a década de quarenta do século XVIII alguns povos estão em franca hostilidade com os habitantes dos arraiais. Para dar conta deles, indistintamente, é contratado, pelo governador da Capitania de São Paulo, Antônio Pires de Campos (também filho homônimo de um primeiro). Pires de Campos, que vivia em Cuiabá, consagrara-se como feroz preador de índios e tinha sob seu comando um exército particular de

Capítulo 4

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500 Bororo, que o chamavam de Paí-Pirá. Em 1742 inicia ações extensivas contra grupos indígenas de Goiás  genericamente designados pela documentação setecentista como sendo os temíveis “Caiapó”1  exterminando o que encontrava pela frente. Por essa época também outro bandeirante, João Godói Pinto da Silveira, atacava e apresava os Tapirapé do Araguaia2. E não seria de todo arbitrário conjecturar, a partir do que observa Menezes Bastos (1995: 231-232), que poderia ter sido também por essa época que grupos tupi vieram a ser forçados a se deslocar do interflúvio Xingu-Araguaia para dentro da bacia dos formadores do Xingu, vindo a dar origem aos atuais Kamayurá. Em 1744 os sertões de Goiás são elevados à condição de Capitania, e em 1748, Mato Grosso. Em 1749 Antônio Pires de Campos (filho), o Paí-Pirá, volta a atacar, fustigando as populações indígenas de Goiás. Em 1755 é novamente solicitado, empreendendo perseguições que atravessam o Rio Araguaia e vão ter na margem esquerda do Rio das Mortes. Aí é flexado e retirado da região pelos seus soldados Bororo, falecendo tempos depois, já de volta a seu quartel em Goiás. Em 1948, Manoel Rodrigues Ferreira, que compendiou as informações que no parágrafo acima sumarizei, está em visita ao acampamento Jacaré (ou Yakaré), da Expedição Roncador-Xingu, já às margens do Rio Xingu, quando ouve de Orlando Villas Bôas a notícia de uma lenda kalapalo sobre os conflitos

com

um

homem

branco

chamado

de

Paí-Pero

pelos

seus

companheiros: “Levava consigo grande número de homens, e os Calapalo não sabem se eram índios ou não, mas hoje reproduzem ainda a música que eles cantavam em coro, quando caminhavam” (Ferreira, 1951: 78). A estória conta ainda detalhadamente como aquele branco foi flexado e como foi retirado dali, não voltando mais. Ferreira impressionou-se com as coincidências frente às referências históricas e concluiu que “aquela história do Paí-Pero, não há dúvida, é a própria história de Antonio Pires de Campos” (Ferreira, 1951: 79). Também Ellen Basso (1985, 1993a) reporta-nos às narrativas sobre “Paypegi” 1

Na verdade a designação é polêmica. Mário Simões (1963) demonstra como essas designações eram fluidas e algumas vezes aplicadas a índios “imaginários” pelos demais grupos que os tinham como hostis, extendendo-se um tanto quanto arbitrariamente para diversos grupos que não aqueles a que caberia o etnônimo original. Assim é que grupos identificados como Kayapó por uma certa literatura oitocentista seriam na verdade Xavante. Apesar dos dados do autor retroagirem apenas até o século XIX, creio ser cogitável que coisa semelhante tenha ocorrido um século antes. 2

A esse respeito, e também sobre o genocídio praticado por Antônio Pires de Campos, ver a documentação setencentista coligida por Baldus (1970: 28-33).

Capítulo 4

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como parte do ciclo das estórias de contato com os brancos, e a conclusão minuciosamente apontada por Manoel Rodrigues Ferreira é retomada por Gertrude Dole (1984: 320), que a faz sua, a saber, que os caribe xinguanos ocupariam uma área de dispersão que teria seu limite leste nas proximidades do Rio das Mortes, vindo a atravessar a Serra do Roncador e internar-se na bacia do Xingu (num percurso de cerca de 200 Km até as margens do Culuene), por força dos contatos agressivos com os brancos (ver também Franchetto, 1992: 344 e ss.). Até a Expedição Roncador-Xingu, o grande arco descrito pelo Rio das Mortes de sul a leste e os cursos do Paranatinga e do Teles Pires (São Manuel), de sudoeste a oeste, fixariam os limites efetivos da intrusão dos civilizados3. Por volta de meados do século passado, os Xavante, saídos do norte de Goiás, iniciariam a ocupação da porção oriental desse contorno, desde aproximadamente onde estariam antes aqueles antigos caribe até mais ao sul, hostilizando-se com os Bakairi. As referências às Minas dos Martírios constituíram uma extensa e multifacetada considerável

tradição

oral,

documentação

que

lança

testemunhal,

desdobramentos consagrada

nos

sobre

uma

muitos

e

discrepantes “roteiros” para os Martírios, lavrados por bandeirantes, religiosos e aventureiros de toda ordem4. A lenda compõe-se portanto não apenas das versões fantasiosas que correram anonimamente de boca em boca (e asim eram atualizadas de acordo com as expectativas do momento), mas também das afirmações pessoais em sua versão documental, que ao mesmo tempo sacralizam, alimentam e são alimentadas por aquela primeira manifestação. A lenda ocupa assim um largo espectro que vai de uma dimensão estritamente oral a uma dimensão documental, que por sua vez se imiscui na documentação oficial das autoridades coloniais. Como identificar limites objetivos? Como estabelecer uma factualidade precisa? Não por acaso, na década de 20 deste século, o coronel inglês Percy Fawcett veria num daqueles “roteiros” os indícios da existência de uma “cidade perdida” nos sertões do Brasil, o que o fez internar-se nas matas do Alto Xingu... e ali desaparecer.

3

No sentido norte-sul, a mata fechada e o trecho encachoeirado do Baixo Xingu (o principal acesso) impediam qualquer avanço. Até 1843 o máximo que o homem branco pôde avançar foi pouco acima (a montante) da confluência do Rio Iriri, cerca de 140 Km rio acima de onde hoje é Altamira, e ainda assim por obra da aventura de um único explorador, o Príncipe Adalberto da Prússia (Steinen, 1886).

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Sob o signo de uma malfadada aventura individual, o século XX vê reincorporar-se o espectro da lenda dos Martírios na figura de um empreendedor romântico (à la Schliemann)  que continua alentando novas empreitadas, agora na busca dos seus “restos mortais” ou mesmo de sua “história”5. Como documenta Manoel Rodrigues Ferreira, o fascínio da lenda dos Martírios, entretanto, parece ter perdido muito do seu vigor a partir do momento em que, a fins do século passado, empreendimentos um pouco mais racionais de grupos capitalistas defrontavam-se com a esterilidade de seus resultados, mesmo que, ainda nas viagens de von den Steinen, a miragem dos Martírios servisse para lançar suspeitas sobre as intenções daquele etnólogo alemão, e mesmo que, dez anos após tais viagens o já então Tenente-Coronel Francisco de Paula Castro, que havia acompanhado von den Steinen, empreendesse novas viagens, como o último obstinado buscador dos Martírios. A iniciativa da Expedição Roncador-Xingu enquadra-se já noutro contexto, o da marcha para o oeste do nacionalismo da era Vargas, que visava preencher os “‘brancos’ das nossas cartas geográficas” (Villas Bôas e Villas Bôas, 1994: 24)  como se os territórios ainda não devassados pela febre do ouro fácil ou devastados pelos paí-pirás de ocasião não fossem outra coisa senão vazios. Até então o ímpeto colonizador movido pela busca do ouro esgotara-se no limite daquele largo semi-círculo a que acima me referi, só ultrapassado pela instalação de um posto avançado do Serviço de Proteção aos Índios um quartel de século antes da chegada da Expedição ao limite do Rio das Mortes, num local onde se concentrariam os primeiros esforços de um contato permanente e civilizador (com tudo o que implicaria esse “grande cerco de paz”  Lima, 1992a) com a então mais próxima das populações xinguanas, os Bakairi.

4 5

Manoel Rodrigues Ferreira transcreve oito desses roteiros (Ferreira, 1951: 152-158).

Estando na aldeia kalapalo de Tanguro, deparo-me, certa feita, com a chegada de um casal de jornalistas britânicos rastreando a história de Fawcett junto àqueles que por várias vezes foram acusados de ter dado cabo à arrogante e imprudente pessoa do coronel inglês, os Kalapalo. O jornalista chegou depois da repórter que o acompanhava: Fez questão de descer o Xingu, desde o atual Posto Culuene até a aldeia, em uma canoa remada por dois índios. Fez em um dia o percurso que se faz em duas horas num barco a motor. Prudentemente, os Kalapalo proibiram-no de internar-se no mato, como também tencionava fazer. Ele havia negociado a doação de um motor de popa à comunidade. Ellen Basso (1993b, 1995) oferece uma versão do testemunho kalapalo sobre a história de Fawcett.

Capítulo 4

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Edir Pina de Barros caracteriza os Bakairi como um povo marcado pela experiência da diáspora (Barros, 1992: 318 e s. d.). Efetivamente, face à invasão colonial e sua reverberação pelo interior (cf. Porro, 1992; Viveiros de Castro, 1993; Dreyfus, 1993; Heckenberger, 1996), é difícil falar de um povo amazônico que não tenha, por contraste à simples idéia de nomadismo, alguma memória da migração, ademais movida e marcada pela confrontação hostil com outros povos. Diferentemente de certos grupos alto-xinguanos que acomodam no interior da sua geografia doméstica não só o lugar mítico da origem mas também o umbigo do mundo, a terra mítica de origem dos Bakairi localiza-se num lugar que já há muito deixaram para trás6. Talvez seja questionável a aplicação do termo “diáspora” se, por exemplo, tomarmos os critérios de James Clifford (1994) para defini-lo, como um processo identitário em que a conceituação de um desenraizamento crônico e a conseqüente evocação de uma terra original ou de uma comunidade original é o argumento que vertebra a diferenciação de um grupo que se reconhece relativamente estrangeiro frente a outro que o abriga. Com efeito, a diáspora bakairi parece dizer respeito apenas aos fenômenos do deslocamento, da dispersão e do reagrupamento, processo do qual contamos com alguns registros históricos. De outra parte, a dispersão dos Bakairi em dois grandes contingentes (não se podendo precisar a data em torno de quando teria ocorrido), a partir do seu território de origem, resultou num progressivo isolamento dos grupos que, ingressando na região dos formadores do Xingu, estabeleceram-se nas margens do Batovi (ou Tamitatoala) e do Curisevo, de maneira que von den Steinen registra que, à epoca de sua primeira viagem (1884), os Bakairi estabelecidos às margens do Paranatinga davam apenas uma vaga notícia da possibilidade de existência de outros grupos na bacia dos formadores do Xingu (Steinen, 1886: 124)7. Na ausência de dados etno-históricos mais 6

Kalevo Oberg esboça uma sumaríssima confrontação dos mitos de origem bakairi com os mitos de origem kamayurá (Oberg, 1953: 77). Edir Pina de Barros também remete-se sumariamente a esse tipo de comparação (Barros, 1994: 303-304, nota 6), mas oferece uma mais detalhada interpretação da cosmogonia bakairi, em contrapartida à já bem conhecida mitológica kamayurá (p. ex.: Agostinho, 1974; Samain, 1991). 7

O Rio Paranatinga (afluente do Teles Pires), assim como o Rio Novo (onde estava outro grupo Bakairi), afluente do Arinos, fazem parte da bacia do Tapajós, à diferença do Batovi e do Curisevo, formadores do Xingu. Ver mapa 1 do Apêndice I.

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precisos, não se poderia afirmar com segurança a persistência da nostalgia ou da evocação de uma comunidade original como traço diacrítico de uma identidade bakairi. Há quem fale de uma rápida inclusão daqueles Bakairi diaspóricos (que seguiram para o leste) no sistema alto-xinguano (Schaden, 1964: 65), o que é difícil de mensurar. De qualquer maneira, quando von den Steinen os encontra, por ocasião de sua primeira viagem ao Xingu, descreve-os segundo claros traços da “fisionomística” corporal alto-xinguana: o padrão do corte de cabelo, a depilação corporal, o uso do uluri8 e a progressiva redução, senão a inexistência, do uso da perfuração do septo nasal (como era corrente entre os Bakairi não-xinguanos) (Steinen, 1886: 194-195)9. Não obstante, assim como rapidamente poderiam ter-se integrado àquele sistema  e já seria um grave problema reconstituir plenamente em termos etnográficos a sua configuração na época das viagens de von den Steinen , rapidamente, no entanto, processaram seu reagrupamento com o contingente não-xinguano, e quanto a isso, pelo menos, tem-se suficientes registros históricos. Karl von den Steinen foi, de fato, o responsável pelo reencontro dos dois contingentes bakairi. Chamou de “ocidentais” aqueles que viviam às margens do Paranatinga e do Rio Novo (afluente do Arinos), aqueles que já eram “mansos” (zahme Bakaïrí) e que tinham um já longo contato com a sociedade brasileira. Os Bakairi localizados nas margens do Batovi e do Curisevo, os xinguanos, von den Steinen designou como “orientais”, reconhecendo-os como “selvagens” (wilden) (Steinen, 1886), o que queria dizer tão simplesmente fora de todo contato com a civilização. Se ambos os contingentes haviam vivido juntos no território original da confluência do Paranatinga com o Rio Verde, na altura de um salto daquele primeiro rio, sua separação, por seu turno, parece ter-se dado por fissões internas (Steinen, 1894: 498; Schmidt, 1947: 17; Barros, 1977 e s. d.). ou, ao menos com base nos registros da tradição oral, essa fissão teria sido formalmente o motivo 8

O uso do uluri, a peça de fibra vegetal usada sobre a genital feminina à maneira de uma tanga, foi, como se sabe, apontada por Eduardo Galvão (1949) como tão singularmente característica dos grupos alto-xinguanos que seu nome foi tomado de empréstimo pelo autor para designar a “área cultural” do Alto Xingu. 9

Fernando Altenfelder Silva procura estabelecer uma aproximação mais detalhada em termos de traços culturais (Altenfelder Silva, 1993), mas não há registros mais precisos sobre a inserção dos Bakairi nos circuitos de troca alto-xinguanos, e há apenas indicações residuais sobre a dinâmica das acusações de feitiçaria.

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desencadeador10. Não obstante, von den Steinen estima que o fator conjuntural que estimulou o êxodo de parte dos Bakairi foi a colonização do Mato Grosso, que provocou um grande deslocamento de tribos, o que teria exacerbado os conflitos dos Bakairi com seus vizinhos (Nambikwara, Tapayuna e Kayabi) (Steinen, 1894: 499)11. Segundo ainda von den Steinen, o caminho em direção à bacia dos formadores do Xingu já era conhecido pelos Bakairi  Barros, s. d., constata a correspondência dessa observação com a tradição oral atual , bem como os povos que aí viviam, o que sugere a existência de uma conjuntura preliminar de relações aproximativas. A partir de então, os sucessivos deslocamentos dos “ocidentais” , afastando-se do salto original no sentido contrário ao curso do Paranatinga, foram forçados pelos persistentes conflitos com os Kayabi, e os dois contingentes permaneceram separados, provavelmente, como argumenta Max Schmidt (1905: 270), por força da presença dos hostis Kayabi entre eles. Karl von den Steinen calcula, por estimativas genealógicas, que por meados do século XVIII todos os “ocidentais” já agrupavam-se na região próxima à então aldeia do Rio Novo (hoje na Terra Indígena de Santana) e que a fundação bem posterior de uma outra aldeia no alto curso do Paranatinga teria sido resultado da interferência de um branco, buscador de ouro, chamado Corrêia, que via naquele ponto do rio um local de melhor travessia para as expedições que buscavam os Martírios, e que desejassem “servir-se das canoas dos Bakairi, bem como receber mantimentos deles” (Steinen, 1984: 497). De qualquer maneira teriam sido esses “ocidentais” das duas regiões os únicos que travaram um longo processo de contato com os brancos, desde, provavelmente a quarta década do século XVIII (Barros, 1977: 9-10). A data de 1820 parece marcar, segundo a versão de von den Steinen, o estabelecimento desse contato de uma forma mais regular e permanente, quando incursionou na região do Paranatinga-Rio Novo um aventureiro à procura de ouro, dito ‘Padre’ Lopes, que os fez batizar  não sem antes dar cabo de vários deles. O até então “gentio” Bakairi seria, a partir daí, marginalmente incluído na esfera da sociedade regional matogrossense. Produziam alguns excedentes agrícolas para comercialização e forneciam 10

Max Schmidt acresce cautelosamente a esse propósito: “Não sabemos se esta indicação significa um fato histórico ou somente superstições lendárias dos Bakairi do Paranatinga.” (1947: 17, tradução minha). 11

Edir Pina de Barros também oferece uma versão oral atual para essa perspectiva (1977: 4).

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mão-de-obra sazonal para a lida do gado em fazendas vizinhas ou na colheita do látex. Von den Steinen assim descreve suas relações com a administração provincial: “Quando uma vez ou outra, um pequeno número de Bakairi aparecia em Cuiabá com o fito de pedir ao governo que os presenteasse com utensílios de ferro, camisas, calças e cobertas, eram vistos como hóspedes importunos de que convinha desembaraçar-se o mais depressa possível, e com cuja língua ou peculiaridades nenhum funcionário se precisava incomodar. Não moravam por ventura na proximidade de uma via de comunicação que ligasse duas localidades importantes; pelo contrário, estavam estabelecidos, por assim dizer, no fim do mundo, isto é, atrás do último dos pequenos sitiantes, que também já não eram tidos em grande estima. Os Bakairi não importunavam a nenhum destes vizinhos, pelo que o governo não lhe dispensava interesse algum. O bom cacique Felipe, da aldeia do Paranatinga, esforçava-se debalde por atinar com o motivo pelo qual os Bororo, gente que vivia praticando atos de vandalismo e espalhando incêndios pela terra, recebiam ricos presentes sempre que se conseguiam pegar alguns indivíduos, ao passo que ele e seus irmãos de tribo, que há várias gerações se vinham distinguindo por um comportamento pacífico e exemplar, ainda tinham tido que voltar com as mãos vazias da última visita feita ao grande Capitão.” (Steinen, 1894: 495). Os aventureiros a procura de ouro eventualmente chegavam às aldeias desses ocidentais. Deixavam algumas ferramentas, roupas e... doenças. Quando von den Steinen os alcança em 1884 encontra 55 pessoas na aldeia do Rio Novo e 26 na aldeia do Paranatinga, junto aos quais, quatro brasileiros (dois homens, a mulher de um deles e seu filho), todos com um estilo de vida bastante próximo aos sertanejos daquelas regiões (Steinen, 1886: 125-151). Von den Steinen toma para auxiliá-lo na sua incursão pela bacia do Xingu um desses índios de Paranatinga, Antônio. Através dele a singular ocasião do contato com os então isolados Bakairi orientais do Rio Batovi pôde ser casualmente conduzida de forma bastante feliz e, através destes, com os demais alto-xinguanos. É bem possível que fosse a primeira vez, no espaço de várias gerações, que Bakairi daqueles dois distintos contingentes se encontravam. Steinen descreve esse encontro com uma certa aura de dramaticidade, mas perceberá claramente, por ocasião do relato da sua segunda viagem, o significado e as conseqüências daquele evento. Nessa ocasião, 1887, a aldeia do Paranatinga está seriamente despovoada, à beira da

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extinção, e sem perspectivas de prover uma recuperação demográfica com seus próprios recursos humanos: “Só há um meio de resguardar a aldeia da ruína. É um meio cuja aplicação poderia ao mesmo tempo trazer resultados de alcance muito maior. Dele não se lembrou de modo algum o governo brasileiro, mas se serviu, na sua preocupação, o bobo do Felipe [cacique de Paranatinga; a qualificação “bobo” é evidentemente uma ironia]. Consiste simplesmente em estabelecer uma comunicação contínua talvez com os Bakairi do Batovi, por nós encontrados em 1884, e de atrair uma parte deles para o Paranatinga. Contou Felipe, o que é de grande interesse, que, em 1886, acompanhado por Antônio e outro, se pôs a caminho para visitar os irmãos de tribo que habitam no afluente do Xingu (...). Limito-me aqui a observar terem os três conseguido que alguns Bakairi da primeira aldeia do Batovi se abalassem, para pagar-lhes imediatamente a visita, no Paranatinga. Aí chegados, viram os milagres da cultura européia e voltaram para o Batovi, presenteados com tudo que os pobres coitados lhes podiam oferecer, prometendo para mais tarde uma visita mais numerosa.” (Steinen, 1894: 4344). Antônio (ou Antoninho), que acompanhara até o final a primeira expedição de Karl von den Steinen, descendo todo o curso do Rio Xingu, e que conhecera então, em seu regresso, Belém, Rio de Janeiro e Buenos Aires, tornar-se-ia cacique em Paranatinga. As armas por ele obtidas possibilitaram o afastamento da ameaça kayabi e o estabelecimento de relações cada vez mais intensas com os Bakairi xinguanos. O contato com novos grupos Bakairi, localizados no curso do Curisevo, por ocasião da segunda expedição de von den Steinen alargou as relações desses Bakairi de Paranatinga com os xinguanos. Estes, por sua vez, atraídos pelos bens industrializados que passaram

a

receber

daqueles,

incrementam

suas

relações,

vindo

progressivamente a estabelecer-se junto aos de Paranatinga. Em 1901, quando Max Schmidt empreende uma viagem ao Alto Xingu e quando então “o índio xinguense faz (...) o caminho que vai do alto Coliseu [Curisevo] até o Paranatinga em quatro dias” (Schmidt, 1905: 270), o número de xinguanos aí estabelecidos é de 34  maior, portanto, que o da comunidade local original  a ponto de Max Schmidt (1947) falar de uma re-indigenização dos Bakairi

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de Paranatinga12. Daí por diante a atração que se exercerá sobre os xinguanos será crescente, e os Bakairi, de uma maneira geral, tornam-se os mediadores naturais das expedições de brancos rumo ao Xingu. Se os presentes por estes deixados despertarão a inveja  uma categoria de largo curso nativo (Menezes Bastos, 1989a13)  nos povos xinguanos mais próximos aos Bakairi “orientais” (Nahukwá, Mehinaku e Aweti), as doenças levadas pelos brancos e sua manifestação epidêmica servirão, em represália, para uma exacerbação das acusações de feitiçaria de parte a parte entre Bakairi e seus vizinhos xinguanos (Schmidt, 1947: 30; Agostinho, 1972: 361; Barros, s. d.). Combinando-se assim tensões atrativas com tensões repulsivas, ao início da década de 20 deste século todos os Bakairi do Alto Xingu terão se transladado para as margens do Paranatinga, deixando seu antigo território, que seria em parte ocupado por outros grupos xinguanos (Schmidt, 1942: 242; Barros, 1977: 21). Aí, às margens do Paranatinga, outras disputas faccionais terão lugar. Uma menção mais cuidadosa creio que deve ser feita ao papel desempenhado por Antônio. Kuikare (seu nome na língua nativa), após a passagem de von den Steinen, torna-se um personagem empenhado na aglutinação dos Bakairi em torno de sua liderança. Não há registros etnográficos suficientes a respeito das disputas internas que então pudessem existir sobre a transmissão do cacicado entre os Bakairi ocidentais. A norma formal, ao que tudo indica, era que o cacique, pyma, responsável pela gestão das relações com o mundo exterior, escolhesse um auxiliar e ao mesmo tempo sucessor, atáida, que se tornava chefe após a morte daquele (Oberg, 1953: 73). O governo provincial reconhecia a liderança local, outorgando-lhe a 12

Edir Pina de Barros anota, a partir de depoimentos dos atuais Bakairi de Paranatinga, que, quando da criação do Posto Indígena Bakairi em 1920, a primeira providência do chefe do posto, agente do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), foi a de “vestir todos os Bakairi que andavam nus” (1977: 35). 13

Prefiro glosar como “inveja” aquilo que Menezes Bastos e vários outros autores traduzem como “ciúme”, e que seria o correspondente do termo caribe-xinguano -kinhulu, pois na minha interpretação tratar-se-ia de um “desejo” orientado para as coisas que não se têm e que são posse de outrem. A especificidade do mecanismo da “inveja” é o de que ela move a ação, em geral visando sobrepor-se à vantagem do outro sobre a posse (ou, mais genericamente, o domínio) de algo (ou alguém). Não fui capaz de elucidar o quanto a “inveja” seria a contrapartida lícita (ou ao menos aceitável) da eticamente interdita “avareza”, mas é possível suspeitar disso, uma vez que assim como as acusações de feitiçaria são aplicáveis apenas à esfera daqueles reconhecidamente pertencentes ao domínio da “gente” xinguana, também a “inveja” não é aplicável aos que se encontram fora dessa esfera: Os xinguanos podem cobiçar as coisas dos brancos, mas não têm “inveja” com relação a eles. Nesse sentido, a idéia de ciúme seria pertinente para traduzir o fato de que o sentimento expresso por aquela categoria se insere sempre no contexto das disputas socias xinguanas.

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patente de Capitão e conferindo a seu auxiliar a patente de Tenente; no entanto, interferia sobre a transmissão do “cargo”, promovendo a Capitão aquele sucessor, sempre que o julgasse conveniente, sendo bastante notadas pelos primeiros etnólogos as crises de autoridade em torno de tais sucessões intempestivas determinadas pela autoridade provincial. Assim ocorreu com a sucessão de Felipe a Caetano, e nada se registrou sobre a sucessão de Felipe, morto em 1889 junto com seu filho adotivo numa expedição exploratória do Capitão Teles Pires ao Rio São Manuel, que então passou a receber o nome desse Oficial (Schmidt, 1947: 171). Não se pode afirmar que os Bakairi orientais, por seu turno, seguiam a norma xinguana da transmissão hereditária do status de chefia, e não se sabe se Antônio pertencia ou não a uma atribuída linhagem de chefia ou se simplesmente foi guindado ao “posto” pelo governo estadual. O que se tem como fato é que ao final da última década do século XIX o cacicado de Antônio é reconhecido pelo Governador do Estado, Antônio Correa da Costa, que estende sua “autoridade” para toda a região (sic!) da bacia dos formadores do Xingu (Schmidt, 1947: 18) e, por conta disso  e o que talvez seja o mais relevante , lhe facilita uma provida quantidade de armas, que sintetizariam a autoridade efetiva de Antônio na capacidade de afrontar a ameaça dos Kayabi e assegurar a conexão entre o Alto Paranatinga e a bacia do Xingu, então facultada aos brancos (Schmidt, 1947: 21). É essa conexão que permitiu, como acima anotei, o delocamento corrente dos Bakairi xinguanos para o Paranatinga. Foi a partir dessa conexão que algumas expedições da Comissão Rondon atingiram o Xingu, e foi também a partir dela que os brancos constataram a inexistência de borracha no Alto Xingu e conformaram-se com a pouca atratividade econômica da região, mesmo que por aí viessem a andar ainda alguns buscadores das Minas dos Martírios, o Coronel Fawcett atrás da sua cidade perdida, os aventureiros que o procuraram e que em alguns casos encontraram igualmente a morte (p. ex. Albert de Winton em 1935  cf. Ferreira, 1951: 108-110; Villas Bôas e Villas Bôas, 1994: 380-381), alguns missionários mais atrevidos (Moennich, 1942) e também o antropólogo Buell Quain em 1938, que, como anotei no capítulo anterior, coletou dados para uma primeira monografia xinguana. A ação de Antonio, o Kuikare, junto aos Bakairi xinguanos foi incisiva (cf. Menezes Bastos, 1995: 242-243), dedicando esforços consideráveis e

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reiterados para manter boas relações e atraí-los à aldeia no Paranatinga14. Essas ações finalizaram por consagrar o Curisevo como o canal de atração para várias outras populações xinguanas, que, por intermédio dos Bakairi, passaram a ter algum acesso a bens industrializados (cf. Franchetto, 1992). Se já desde a última década do século XIX a inclusão das populações e territórios indígenas na esfera produtiva da economia regional é objetivada como política manifesta do governo local (Barros, s. d.), a partir de 1920, a criação do Posto Indígena, inicialmente designado Bakairi depois Simões Lopes, na região do Paranatinga, marcará a fixação de uma vanguarda para a atração e a civilização dos povos da área, a começar, como experiência prototípica, pelos próprios Bakairi, que tiveram seu território já reservado (1918)

demarcado

(1920)15

e

foram

submetidos

a

um

processo

de

recrutamento e disciplinamento de mão-de-obra  que posteriormente viria a ser designado por eles mesmos, como me lembrou o honorável Felix Tâile, do alto de seus oitenta e tantos anos, como “o tempo da escravidão”16. Cem anos depois do batismo pelo Padre Lopes e o ingresso formal dos Bakairi na “cristandade”, a chegada do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), a introdução da pecuária em larga escala e o processo de domesticação da mãode-obra (o que incluía a introdução de uma escola) tentariam promover o ingresso dos Bakairi no capitalismo. Se outrora a gestão colonial dos direitos sobre a terra, tal como aquelas outorgadas a Bartolomeu Bueno da Silva sobre suas sesmarias, ou os dos contratadores de diamantes, vinculava uma autoridade (sobretudo judicial) ao usufruto das riquezas, o direito sobre a terra agora presumirá, ao menos formalmente, a colonização produtiva, ou seja, o seu reconhecimento como insumo (conversível em valor monetário) do processo

de

transformação

capitalista

(onde

cabe,

portanto,

a

ação

14

Tânia Clemente de Souza observa que na memória oral dos Bakairi xinguanos Antoninho é a figura central no processo de contato não apenas dos dois continges bakairi como também daqueles com os brancos (Souza, 1994: 319). O trabalho da autora traz um precioso exercício de Análise do Discurso de uma narrativa oral sobre o episódio do contato, registrada em 1985 de uma Bakairi de 85 anos, uma das últimas remanescentes dos grupos que migraram da bacia dos formadores do Xingu. 15

Como se sabe, o objetivo das demarcações das terras indígenas era então o da concentração da população nativa em uma área restrita, liberando o restante de seu território para a colonização (Lima, 1992a). 16

Assim o documenta Edir Pina de Barros: “O regime de trabalho compulsório só sucumbiu com a decadência do SPI. A esse período os Bakairi se referem por ‘tempo da escravidão’, marcado pelo rígido controle de suas vidas, pelo exílio compulsório, pelos castigos aplicados aos ‘infratores’ da ordem estabelecida e pelo assassinato de alguns dos seus.” (Barros, 1989: 8).

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especulativa). É esse pressuposto que historicamente confrontará (e em certa medida continua confrontando) as populações indígenas matogrossenses. As disputas em torno dele ou contrariamente a ele cristalizam-se como marcos discursivos do processo de traçado das fronteiras territoriais e da constituição de terras indígenas. É a partir dele que a demarcação dessas terras como reservas limitadas, excluídas da colonização dos brancos, passa a fazer sentido, ao menos para nós, caras-pálidas, uma vez que o restante das terras passa a estar disponível para a apropriação. Por uma imponderável sina histórica, os Bakairi encontravam-se exatamente ali, não mais nos confins do mundo, mas nas fímbrias de um novo mundo, que os viajantes alemães do final do século passado, inspirados por um misto de aventura e naturalismo, na busca daqueles Naturvölkern, trataram de começar a desbravar. A fixação dos Bakairi xinguanos na área do Paranatinga nem sempre se efetivou na aldeia liderada por Antônio, e pode-se crer que isso se deve às disputas de chefia  a relação chefia-território é enfaticamente sugerida por Barros (1992: 175-179), às expensas das noções de “aldeia” e de um faccionalismo interno permanente  ao que se acresceu a fissão do próprio grupo liderado por Antônio (Schmidt, 1947: 27). Com a instalação do Posto Indígena e com a continuada e severa depopulação produzida pelas doenças, todos os Bakairi serão progressivamente reunidos em torno do Posto  o que se conclui em 1942, coincidindo com a implantação, por parte dos agentes do SPI, de uma nova estrutura domiciliar, não mais de grandes casas de famílias extensas dispostas em círculo, mas em pequenos ranchos de famílias nucleares dispostos em linhas (Barros, 1977: 37). Note-se que o primeiro local que ocupou o Posto não foi o da aldeia de Antônio, mas a do grupo que se separara dela, e a demarcação da área bakairi deixou de fora as terras ocupadas pelo grupo de Antônio (Barros, 1989: 8). Assim, a instalação do Posto parece ter sido realizada segundo uma lógica de contínua quebra da liderança do velho cacique, consumada, por fim, na nomeação de um novo Capitão (Schmidt, 1947: 29), coisa que, daí por diante, passou a ocorrer apenas esporadicamente (Barros, 1977: 38). A par disso, o Posto recebia e procurava estimular a visita dos grupos alto-xinguanos, distribuindo-lhes presentes que eram custeados pela produção local, gerenciada pelos agentes do SPI, coisa a que Antônio se opunha (Barros, s. d.). Dessa forma, através da produção forçada de excedentes, o órgão tutor faz uso da mão-de-obra bakairi para incrementar uma política de atração de outros grupos xinguanos para a

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mesma domesticação, que, em linhas gerais, se já não implica mais no preamento

de

“gentios”,

no

deslocamento

populacional

e

num

“assenzalamento” de cativos, como no tempo dos bandeirantes, implicará agora no seqüestro progressivo da autonomia comunitária. E esse modelo  cujas táticas tutelares caracterizaram a ação do SPI (Lima, 1992: 146 e ss.) e se generalizou para as outras áreas indígenas de Mato Grosso, para ficar só na escala regional (cf. Cardoso de Oliveira, 1960), inclusive aquelas sujeitas ao controle de missões religiosas (cf. Menezes, 1985)  que será alterado pelo empreendimento dos irmãos Villas Bôas a partir da chegada da Expedição Roncador-Xingu, e consumará a separação, como uma espécie de clava histórica, dos Bakairi do Paranatinga dos demais alto-xinguanos. À instalação do Posto Indígena  a partir dele e geralmente com auxílio dos Bakairi  sucedeu-se a instalaçào de outros postos menores, com função de contato e atração, como o Posto Pedro Dantas, a 250 Km de Simões Lopes, a jusante do Paranatinga, em 1925, para contato com os Kayabi (Schmidt, 1942), o Posto Taunay, em 1938, no Curisevo, mais tarde transferido para o Rio Batovi (Galvão e Simões, 1966: 49, nota 3), para atração dos alto-xinguanos, e o Posto Alípio Bandeira, em 1945, no pontal do Culuene-Curisevo, para atração dos Xavante (ibidem)17. Assim, antes mesmo da chegada da Expedição Roncador-Xingu já se consolidara uma tendência nas relações dos grupos xinguanos com os brancos, em que a mediação exercida

pelos

postos

indígenas

e

sua

política

de

oferta

de

bens

industrializados os consagrara como núcleos atrativos e operara a contenção e o controle, através de um canal institucional específico, do contato mais extensivo com a sociedade regional. O caso bakairi é também paradigmático

17

Edir Pina de Barros (s.d.) cita ainda uma série de outros postos (José Bezerra, Alípio Bezerra, Pyrineus de Souza, Major Libânio Coloizorecê) abertos com o auxílio direto dos Bakairi. Não pude, infelizmente, reconstituir sua localização e importância. Outros postos foram ainda instalados depois de meados da década de 40, seja na área do Alto Xingu, sob iniciativa dos irmãos Villas Bôas, antes mesmo da sua delimitação como Parque Nacional (1961), seja imediatamente fora dela, como postos destinados às populações Xavante. Os Bakairi do Rio Novo (não xinguanos), por seu turno, mantiveram permanente contato com a área do Paranatinga, vindo por várias vezes buscar refúgio próximo ao Posto Simões Lopes, mas só tiveram um posto (de funcionamento precário) na sua própria área a partir de 1963, o que, mesmo assim, não lhes assegurou a condição efetiva de tutelados e em nada lhes garantiu a integridade do seu território, reservado já em 1905, sendo explorados como mão de obra sub-remunerada nos estabelecimentos extrativistas ou agro-pecuários próximos ou intrusivos (Barros, 1977). Não é difícil concluir , dessa maneira, que a atenção dada pelas autoridades regionais aos Bakairi do Paranatinga estava vinculada à expectativa de agregação de todas as demais populações xinguanas ao mesmo sistema de controle realizado pelo órgão indigenista oficial, que permitiria liberar seus territórios ao avanço de uma nova fronteira fundiária.

Capítulo 4

nesse

sentido.

68

Se

antes

da

instalação

do

posto

eram

comuns

os

deslocamentos, por iniciativa dos próprios Bakairi, até Cuiabá (como noticiam,por exemplo, von den Steinen e Max Schmidt), depois da sua instalação só em 1958, com a crise do modelo de auto-sustentabilidade produtiva implantado pelo SPI, é que os Bakairi do Paranatinga passaram a estabelecer relações diretas com a sociedade regional envolvente (Barros, 1977: 41). O mesmo processo ocorrerá com os demais grupos alto-xinguanos, com um atrazo de cerca de três décadas e meia. É claro, no entanto, que as alterações conjunturais (e isto é que é sumamente relevante) farão uma enorme diferença. Creio que não seja em nada abstrato afirmar que, para os Bakairi, foi nessa diferença que residiu a sua “des-xinguanização”.







A 8 de outubro de 1946, às margens do Culuene e a alguns quilômetros abaixo da barra do Rio Sete de Setembro, os Kalapalo fazem a recepção em terras xinguanas da vanguarda da Expedição Roncador-Xingu, comandada pelos três irmãos Villas Bôas, Orlando, Cláudio e Leonardo. Vão até eles o chefe Izarari e um contingente de mais de cento e cinqüenta índios, incluindo mulheres e crianças, que acomodam-se próximo ao acampamento recém instalado da Expedição, aonde virão ter também alguns “naruvotos, nauquás e cuicuros”, somando coisa de duzentos e cinqüenta índios (Villas Bôas e Villas Bôas, 1994: 154 e ss.). A recepção formal a esses “visitantes” não se deu, é verdade, no centro da aldeia Kalapalo, apesar de ela não estar tão distante, bem ao contrário do que von den Steinen logo aprendeu a cuidar de fazer. Era a primeira vez também que esses brancos pacíficos chegavam por sudeste, aproximando-se do Culuene a partir das encostas da Serra do Roncador, temerariamente guardada pelos Xavante, ao invés de chegar à bacia dos formadores do Xingu pelo sudoste, como já era de costume. Agora chegavam por aquele flanco então misterioso, onde desaperecera o incauto Coronel Fawcett. As notícias desse encontro foram pronta e insistentemente divulgadas para todo o país pelo Repórter Esso e chegaram a alvoroçar a imprensa inglesa, ávida por saber algo do paradeiro do explorador patrício. Mas assim como não deram muita atenção a uma recepção de acordo com a etiqueta desses involuntários anfitriões, aqueles brancos também pareciam

Capítulo 4

69

estar mais interessados, ou, na verdade, obcecados em abrir logo uma pista para pouso de aviões, e o diário dos irmãos Villas Bôas registra, não sem uma ponta de

ressentimento, que, uma semana depois, todos os índios

regressaram a suas aldeias sem ter prestado qualquer auxílio na pesada tarefa de carpir o terreno para o campo de pouso (ibidem). Diferentemente de von den Steinen, o Kalusi da tradição oral caribe-xinguana, que estivera no Alto Xingu de passagem, esses brancos agora vieram para ficar. Dois meses depois daquele primeiro encontro, a presença dos brancos faz espraiar-se, a partir dos Kalapalo, uma epidemia de gripe, que faz 25 vítimas fatais em duas semanas (Galvão e Simões, 1966:45)18, dentre as quais o chefe Izarari, que viera dar as boas-vindas à Expedição. Como conseqüência dessa morte, Maiuri, um índio Kalapalo, foi executado como feiticeiro (Villas Bôas e Villas Bôas, 1994: 188-192). Não seria o primeiro surto epidêmico que aqueles novos brancos trouxeram de presente. Em 1950 novo surto fez 12 vítimas (Galvão e Simões, idem), em 1954 uma epidemia de sarampo importada de Xavantina fez 114 vítimas de uma população estimada em 650 pessoas (ibidem, p. 39). Coube aos irmãos Villas Bôas, no entanto, a urdidura de um novo modelo, radicalmente protecionista, de política indigenista (cf. Davis, 1978: cap. 4), a partir da campanha de criação do Parque Nacional do Xingu, como reserva territorial de um habitat para as populações nativas ou, ao menos, como se observou depois, de um território idalmente isolado, mas não idealmente

nativo,

de

refúgio

de

populações

do

sudeste

amazônico

confrontadas com o progressivo e expulsivo avanço dos brancos. Esse “jardim antropológico”, como sardonicamente a ele se refere Rafael Menezes Bastos (1995: 251), teve sua campanha de consolidação legal iniciada em 1952 com a apresentação ao Congresso Nacional, via Vice-Presidente da República, de um projeto de lei para criação de “um tipo singular” (sic!) de Parque Nacional (“Ante-Projeto de Lei” apud Lea, 1994: 149-155), que garantisse a preservação de uma “amostra de um Brasil prístino” (Galvão e Simões, 1966: 38) em suas 18

Esse número, registrado inicialmente como 15 no diário dos irmãos Villas Bôas (Villas Bôas e Villas Bôas, 1994: 187) é uma estimativa com base, provavelmente, no que se teve notícia dos grupos mais próximos à vanguarda da Expedição Roncador-Xingu. O bem provável desdobramento dessa primeira epidemia para outros grupos elevaria consideravelmente a cifra indicada, de forma que Galvão e Simões (1966: 45) afirmam que “foi a gripe o principal responsável, durante as primeiras décadas de convívio intermitente, pela dizimação das aldeias xinguanas, seguida em intensidade pelo sarampo”. A mesma constatação é feita pelos próprios irmãos Villas Bôas (1970).

Capítulo 4

70

feições “humana, faunística e florística” (“Ante-Projeto de Lei”, idem). Seus signatários eram os representantes institucionais do grupo de trabalho articulado junto à Vice-Presidência da República para a consolidação legal do debate estimulado pelo ambiente nacionalista e protecionista então assumido pelo SPI sob a direção de José Maria da Gama Malcher (Davis, 1978: cap. 4), associado a um forte interesse científico preservacionista (Lima, 1992: 248), que, de fato, viria a tornar a região do Xingu “uma espécie de laboratório privilegiado sobretudo para a etnologia” (Franchetto, 1986: 12). Aqueles signatários foram o Brigadeiro Raimundo Vasconcelos Aboim (pela FAB), Heloísa Alberto Torres (pelo Museu Nacional), Orlando Villas Bôas (pela Fundação Brasil Central, responsável pela Expedição Roncador-Xingu) e Darcy Ribeiro (pelo SPI). Somente nove anos depois, e sob a forma de Decreto do Presidente da República, foi criado o Parque Nacional do Xingu. Nesse ínterim  e já mesmo desde antes, desde a chegada da Expedição , o Governo do Estado do Mato Grosso, exorbitando sua competência e jurisdição constitucionais sobre o território, tratou de distribuir em glebas, para os devidos interesses latifundiários, a área desbravada pela Expedição RoncadorXingu, a título de “terras para colonização” (cf. Cardoso de Oliveira, 1954)19, o que motivaria, mais recentemente, já na década de 80, ações judiciais dos “beneficiados” e do próprio Estado de Mato Grosso, reclamando da União uma módica indenização  que, somadas as petições dos requerentes, montaria, segundo cálculos da Procuradoria Geral da República, em torno de US$ 102 bilhões (então 1/3 do PIB nacional)  pelas terras desde sempre e constitucionalmente de propriedade da União e sobre as quais esses “beneficiados” argumentavam seu direito (Peter, 1987). O dado curioso e revelador da capacidade de articulação do gangsterismo latifundiário nacional é que uma dessas ações (como todas as outras, baseada em provas fraudadas e laudos viciados) já tinha transitado como causa ganha (pelo requerente) junto ao Supremo Tribunal Federal, abrindo um perigoso precedente. É então que, em 1987, a Procuradoria Geral da República impressionou-se com a dimensão e o caráter do esbulho e mobilizou-se para contestar a patranha da argumentação apresentada, valendo-se, para isso, do recurso a um tipo até então inédito de peritagem, aquela realizada por antropólogos e consumada em laudos antropológicos de demonstração da ocupação imemorial das terras 19

Sobre a história da contenda entre o Governo de Mato Grosso e os propugnadores da criação do Parque Nacional do Xingu ver particularmente Menezes (1991).

Capítulo 4

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em causa por grupos indígenas (cf. Franchetto, 1991), o que possibilitou sustar a predação que aquelas ações realizariam sobre os fundos públicos. O Decreto no 50.455, de 14 de abril de 1961, que estabeleceu a criação do Parque Nacional do Xingu reduzia enormemente (para algo em torno de 22.000 Km2, ou quase dez vezes menos) o território proposto pelo projeto de 1952 (ver mapa 2 do Apêndice I), estabelecendo um limite meridional que deixava de fora os territórios ocupados por vários grupos altoxinguanos. Mesmo que, como afirma Pedro Agostinho, “passou a existir um território indígena definido e defendido por um instrumento legal, pondo-o a salvo de novas vendas e manobras especulativas” (Agostinho, 1972: 356), o Parque do Xingu pairava sobre uma espécie de vazio institucional, já que inexistia afigura jurídica de “parque indígena”, que só foi instituída com o Estatuto do Índio (Lei 6001 de 19/dez/73), que então consolidaria legalmente a existência do Parque, após um outro vazio (agora de caráter gerencial) criado pela extinção do SPI em 1967 e, por conseguinte, das atribuições legais e administrativas a ele vinculadas (Menezes, 1990). Em 1968 e 1971 novos Decretos (respectivamente o 63.082, de 6/ago/68 e o 68.909 de 13/jul/71) alteram os limites do Parque, aumentando sua área e incluindo os territórios indígenas antes excluídos, conformando-o aproximadamente à sua atual feição. A homologação definitiva (ou ao menos a mais atual) da demarcação administrativa do então já denominado Parque Indígena do Xingu é feito por Decreto Presidencial de 25 de janeiro de 1991, que consagra a separação administrativa estabelecida desde 1984 (Decreto 89.643 de 10/mai/84) que desmembrava do Parque a área ao norte da rodovia BR-080 (construída entre 1971 e 1973), constituindo esta a Área Indígena Capoto/Jarina, ocupada pelos grupos Jê do Médio Xingu (ver mapa 3 do Apêndice I). Ao todo são 26.420 Km2 de extensão para o Parque Indígena do Xingu e 6.350 Km2 para a Área Indígena Capoto/Jarina. Para além de todos os avanços e retrocessos que marcaram a configuração territorial e institucional do Parque do Xingu  e mesmo o seu às vezes iminente risco de destruição (Davis e Menget, 1981: 48 e ss.)  e pago o tributo do pioneirismo em todos os seus eventuais equívocos, dois traços elementares (e contrastivos à conjuntura inicialmente existente) marcaram historicamente a constituição do Parque. O primeiro deles, observado por Antonio Carlos de Souza Lima, foi que, com o Parque Indígena

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do Xingu inaugura-se a possibilidade de um novo modelo para terras indígenas em que “porções consideravelmente maiores [às reservas até então demarcadas pelo SPI], com base num direito ‘imemorial’ a um espaço retraçável por atribuição fundada em certos critérios, transformar-se-iam em territórios passíveis de demarcação física” (Lima, 1992: 248, grifo meu). O outro traço, que se pode deduzir a partir do trabalho de Maria Lúcia Pires Menezes (1990), é que a constituição de um território estatal, nas condições peculiares do Xingu, pôs as populações xinguanas sob o guarda-chuva da administração federal, cujo campo político específico e meios organizacionais de ação tenderam a dissociar as relações da área da esfera mais estritamente regional e suas contingências. Se, ao voltar os olhos para o mundo dos brancos, os Bakairi miravam na direção sudoeste e buscavam Cuiabá, os xinguanos, ao fazerem o mesmo, mirarão a sudeste e visarão inicialmente São Paulo (sede da Fundação Brasil Central e depois daquela que viria a ser futuramente a Administração Regional do Xingu, da Funai) e posteriormente Brasília. Combinados os dois traços, o relativo isolamento das populações xinguanas é então ratificado pela ação da FAB, que, ligando pontos distantes, dispensa outras aproximações. Esta conjuntura torna possível a realização do ideal isolacionista dos irmãos Villas Bôas, que aí pôde ser plantado e germinar sob as condições ideais de uma estufa. Proporcionando o ingresso de bens industrializados e fornecendo assistência médica às agressões físicas e moléstias, nativas ou importadas, os postos indígenas instalados no coração do Parque servirão como ímãs para reger a mecânica (ou o magnetismo) daquele projeto isolacionista. Para os alto-xinguanos, o Posto Capitão Vasconcelos, criado em 1953, futuramente Posto Leonardo Villas Bôas (ou, coloquialmente, Posto Leonardo), sede da Administração do Parque, ocupada durante muito tempo por Orlando Villas Bôas; para os grupos Jê e Tupi do Médio Xingu, excluídos do sistema altoxinguano, mais ao norte, o Posto Diauarum, por muito tempo chefiado por Cláudio Villas Bôas. À conjuntura acresça-se a contingência. Os ataques dos Ikpeng (Txicão) já desde o início da década de 50 forçaram os Waurá, Nahukwá e Mehinaku a contínuas mudanças e fustigaram outros grupos (Simões, 1963). A eles aliou-se a pressão em torno das primeiras demarcações que excluíam os territórios indígenas meridionais e que fez com que Orlando Villas Bôas convidasse insistentemente vários grupos a mudarem-se mais para o norte, mais para perto do Posto Leonardo, de maneira que, como

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observa Pedro Agostinho em 1972, desde a passagem de von den Steinen, os únicos grupos que praticamente não saíram de seu território tinham sido o dos Kamayurá e o dos Aweti (Agostinho, 1972: 357). Isso tudo quebra definitivamente a anterior ligação Xingu-Paranatinga, implicando numa “reversão do movimento, que passou a dirigir-se do sul para o norte. Os objetos metálicos, a miçanga e a munição começaram a ser procurados nessas novas fontes, e, com eles, assistência médica e proteção contra os ataques” (Agostinho, 1972: 356). Na verdade, falar de “território” nesse momento talvez não seja mais que um artifício explanatório ou, antes, um arremate de provisoriedades. O controle de recursos ambientais de uma certa área por um grupo específico parecia subordinar-se, em primeiro lugar, à segurança do aldeamento, vindo, a seguir, a dinâmica das disputas faccionais, num quadro usualmente cambiante e conflituoso de um sistema aberto e sempre sujeito a ajustes. A fixação e consolidação de grupos específicos, singularizados por etnônimos correspondentes, obedeciam igualmente à mesma lógica, o que significava um processo contínuo de fusão, fissão, extinção ou reagrupamento. Como observa João Pacheco de Oliveira Fo, “longe de ser uma profunda expressão da unidade de um grupo, um etnônimo resulta de um acidente histórico” (Oliveira Fo, 1997)20. A ação indigenista dos irmãos Villas Bôas na criação do Parque e o conseqüente (como anotarei adiante) esfriamento da beligerância propiciarão uma fixação mais duradoura dos grupos locais, que persiste até hoje, salvo poucas exceções21. O posterior cercamento do Parque por empreendimentos agro-pecuários e a percepção das lideranças xinguanas da necessidade de manutenção e vigilância das fronteiras consolidarão aquilo que também Oliveira Fo (1998) chamou de “processo de territorialização”, em substituição a uma noção naturalizada de territorialidade22.

20

O caso Kamayurá foi descrito por Rafael Menezes Bastos (1995); o dos Karib-xinguanos, por Bruna Franchetto (1993) e especificamente os Kalapalo por Ellen Basso (s. d.). 21

À reconstituição de uma aldeia como grupo local Yawalapiti, patrocinado (ou talvez fosse melhor “apadrinhado”...) por Orlando Villas Bôas, sucedeu-se, bem mais recentemente, a separação do então grupo fundido Matipu-Nahukwá. 22

Cito: “O que estou chamando aqui de processo de territorialização é, justamente, o movimento pelo qual um objeto político-administrativo  nas colônias francesas seria a ‘etnia’, na América espanhola as ‘reducciones’ e ‘resguardos’, no Brasil as ‘comunidades indígenas’  vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso).” (Oliveira Fo, 1998:56).

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Naquele movimento rumo ao norte, em direção às proximidades do Posto Leonardo, um dos grupos que deixaram seu território original foi o daqueles que receberam a Expedição Roncador-Xingu em terras xinguanas, os Kalapalo. Ellen Basso reporta essa transferência ao contexto de uma disputa faccional (Basso, 1973: 119-120). Por um lado a insistência dos Kuikuro, Caribe próximos e vizinhos dos Kalapalo, e que tinham sido um dos primeiros a se mudar, contando estórias sobre a ameaça de bombardeios aéreos sobre as aldeias que viessem a permanecer fora da área então delimitada23, de outro lado as promessas de Orlando Villas Bôas, de muitos presentes caso se mudassem para o local para eles selecionado, sítio de um antiga aldeia Kamayurá. Diante dessas pressões, dois chefes: um, descendente de pai Mehinaku e com acesso limitado aos recursos das terras próximas à aldeia, a quem muito interessava estabelecer um novo assentamento; outro, detentor de amplos direitos sobre os recursos em torno da aldeia então estabelecida, para quem, mudar-se de local significava uma grande tolice24. Diante das insistentes pressões, os Kalapalo relutantemente fundarão Aifa, no local designado por Orlando25, mudando-se entre 1961 e 1963. No entanto, a disputa faccional permanece, e como o novo local, apesar de oferecer boa pesca, possui antigas plantações bem mais pobres de pequi, um recurso precioso não apenas da alimentação mas também da ornamentação corporal cerimonial, o antigo chefe contrário à mudança retorna sazonalmente ao território original para a colheita de pequi e mangaba, instando o outro a permanecer em Aifa ou recorrer ao Posto Leonardo, alimentando assim os laços com o antigo território. São esses laços e novas disputas faccionais representadas pela emergência de uma nova liderança que vinte anos depois 23

Não importa tanto o fundamento ou a origem dessa estória fantasiosa, interessa sim a sua eficácia: Dentro da lógica nativa, a segurança do aldeamento é ameaçada não mais pelos ngikogo (índios brabos), mas pela monstruosidade tecnológica dos kagaiha. 24

Essa relação com recursos econômicos não denota uma ordem economicista sob o primado da acumulação de bens. Pelo contrário, o ethos xinguano prescreve o imperativo da generosidade e, como conseqüência, a distribuição e a troca acelerada. O acesso a recursos naturais, nesse caso, e como descreve a monografia de Ellen Basso, é a senha da capacidade de uma rede familiar e, à sua extensão, faccional, de dispor de recursos distribuíveis como “pagamento” de empreendimentos coletivos (o que inclui as cerimônias) e, por conseguinte, de propiciar a acumulação de prestígio em torno de um líder faccional, um homem eminente (big man) por excelência (Menezes Bastos, 1995; Heckenberger, 1996). 25

Ao citar Orlando Villas Bôas pelo primeiro nome faço uso da designação xinguana que o transforma, por assim dizer, num personagem, tal como von den Steinen é o Kalusi para os xinguanos ou o Apalagady \Apalagadu\ para os Bakairi. No Alto Xingu tornou-se corrente a designação “no tempo do Orlando” como referência a um determinado ciclo temporal: A história recente e testemunhável (e, portanto, “falsificável”  Franchetto, 1986) dos primeiros tempos do contato permanente, mas, ao mesmo tempo, um passado de algumas gerações atrás.

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farão uma parte dos Kalapalo retornar ao território original e fundar a aldeia de Tanguro, na barra do rio de mesmo nome. Por seu turno, o sucesso do “empreendimento” Tanguro deveu muito às novas contingências que então se puderam verificar, e que dizem respeito ao estabelecimento de uma rota fluvial-terrestre, pelo sul, para contato com o mundo dos brancos, que, a partir de fins da década de 70, aproxima-se definitivamente dos limites do Parque, fundando núcleos urbanos de novos colonizadores (basicamente agricultores gaúchos), a partir da expansão da agro-pecuária empresarial. Antes disso, era o Posto Leonardo  e, alternativamente (para confirmar a regra), a base da FAB no Jacaré (ou Yakaré)  que conseguira se erigir como eixo solar a reordenar as órbitas do sistema xinguano. Rafael Menezes Bastos se refere a esse processo como o do estabelecimento de uma pax xinguensis (Menezes Bastos, 1989b: 551 e ss.; 1995: 250-253), que está vinculado tanto à ameaça das doenças como à procura de bens manufaturados; tudo isso regido pela lógica nativa da capitalização de prestígio vinculada às disputas faccionais. Menezes Bastos caracteriza essa pax como o “congelamento da beligerância explícita”, agora redirecionada para um jogo de relações diferenciais frente ao acesso à fonte distribuidora de signos de prestígio (bens industrializados), a Administração do Parque, através do estabelecimento de alianças e sob a égide da “generalização legalizante da etiqueta da xinguanidade”. Daí a conversão de um sistema radicalmente descentralizado e conflituoso, em que cada grupo comparecia em pé de igualdade frente aos demais, impondo seu prestígio ora pela generosidade ora pelo temor que pudesse inspirar26, para um sistema com um centro fixo e orientado segundo relações preferenciais27. A sua expressão geográfica é a centralidade do Posto Leonardo e a sua capacidade de “satelitização” das aldeias num raio de 30 Km; e, no espaço do Posto, a sede administrativa e as casas mantidas por cada um dos povos (à maneira de “embaixadas”). A ratificação dessa pax xinguensis através da “generalização da etiqueta da xinguanidade” envolveu, no dizer de Rafael Menezes Bastos, a “universalização pan-xinguana do ritual intertribal” (1995: 250), que antes

26

Murphy e Quain mostram, para o caso dos Trumai, as distintas formas como Kamayurá e Nahukwá a eles se impunham e lhes atemorizavam (1955: 11). 27

Menezes Bastos as especifica: “a diplomacia Yawalapití, o xamanismo Kamayurá e o circuito ritual prototípico Karib-Aruak” (1995: 253).

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aproximaria

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apenas

anfitriões

e

convidados

mais

ou

menos

fixos28.

Entretanto, para além dessa especificidade, o que creio relevante notar é que generalizações como a acima citada e alianças políticas de largo alcance operaram a consagração de uma totalização xinguana e a manipulação da possibilidade de fechamento de um sistema outrora fundamentalmente aberto. A delimitação de fronteiras mais precisas dessa totalização contou com uma opção administrativa de que lançaram mão os irmãos Villas Bôas: a da especificação de “clientelas” próprias para cada posto indígena, ficando o Alto Xingu com o seu Posto Leonardo. Rafael Menezes Bastos fala ainda genericamente da paralização do processo de xinguanização dos Suyá e dos Juruna (Menezes Bastos, 1995: 251). Anthony Seeger, mais específico, aponta para uma dubiedade da posição dos Suyá frente à xinguanidade como um “caso de Xinguanidade interrompida” ao mesmo tempo em que confrontada com o ideal das autoridades administrativas do Parque de promover uma identidade pan-xinguana englobante, a partir do “molde” alto-xinguano (Seeger, 1980). Outrossim, não seria ocioso citar também o sentimento de consternação que até hoje expressam os Bakairi a propósito da (real ou fictícia) “proibição” de Orlando29 de que seus parentes xinguanos viessem a visitar, na aldeia do Paranatinga, aqueles índios tidos como já “semicivilizados”, distantes portanto da “pureza” museológica dos xinguanos30. Em suma, o recorte do Alto Xingu como singularidade  ou, como expressa Rafael Menezes Bastos, a reificação fenomênica da “área do uluri” (1995: 251)  e a conseqüente poda das “excrescências” Bakairi, Suyá e de tudo que denotasse relações cambiantes, imprecisas e abertas (o que reverbera, em 28

Cito: “Segundo depoimentos Kamayurá, ‘antigamente’ era raríssimo que eles tomassem parte em Kwarìp que incluísse qualquer outro grupo além dos Waurá. Quanto ao Yawari e segundo os mesmos depoimentos, seus parceiros tradicionais sempre foram os Aweti.” (Menezes Bastos, 1995: 251). 29

Sobre o padrão de controle “paternal” exercido por Orlando Villas Bôas e a consagração de uma espécie de código informal de conduta, no Alto, para o quotidiano das relações com os oriundos de fora do Parque ver Godoy (1980: 154-158). 30

Os atestados de “semi-civilização” (curiosíssima categoria!) dos Bakairi são fartos e quase um lugar comum: Lévi-Strauss (1948: 335), Wheatley (1966: 73), Kietzman (1967: 29), e, principalmente, pela sua contundência esquemático-estatística, Ribeiro (1970: 236). Em seu artigo de já citado de 1993, Gertrude Dole substantiviza, a pretexto analítico, a exclusão dos Bakairi da totalização xinguana: “Os bacairis de fala caribe não estão incluídos porque eles já haviam saído da bacia do Alto Xingu, quando ela foi caracterizada como área cultural. Depois de emigrar, suas relações sociais, com aqueles que ainda se encontravam na área foram atenuadas, e sua cultura mudou notavelmente, em resposta a seu contato com os brancos” (Dole, 1993: 381, grifo meu). Talvez não seja preciso acrescentar que a teoria de Dole de que o sentido das mudanças culturais alto-xinguanas aponta para uma progressiva homogeneização é a versão savante (idealizada como modelo natural) para o constructo totalizador de uma xinguanidade processualmente determinada.

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contrapartida, na inclusão “incondicional” dos Trumai) é apenas um momento preciso, ou uma feição processualmente conformada de um largo e longo jogo de relações regionais. Assim, da mesma forma como não se pode determinar precisamente a feição de um presumido “sistema xinguano” à época da presença dos Bakairi às margens do Batovi e do Curisevo e da sua posterior saída, creio também ser procedente contextualizar o diagnóstico de Patrick Menget a propósito do Alto Xingu constituir uma politie pelo fato de aí se verificar, dentre outros elementos, a existência de “uma comunidade moral” que alcança uma “associação de grupos locais solidários” (Menget, 1993a: 64): Esses termos provavelmente só sejam aplicáveis à história mais recente das relações xinguanas (e dizem respeito também à chegada dos brancos), quando então se consolida, como antes observei, o “processo de territorialização” xinguana. A investigação das formas como as disputas faccionais (e o equivalente jogo da inveja e das acusações de feitiçaria) continuam operando a diversidade, a mobilidade e a fluidez dentro de uma nova unidade talvez venha a nos informar sobre o diferencial de ajustes pontuais e específicos nos quais operam os princípios lógicos (mas não trans-históricos) da relação com o Outro descritos no capítulo anterior.







Se durante muito tempo o Rio das Mortes foi o limite setentrional da colonização de Mato Grosso, a ultrapassagem desse limite pela ocupação urbana é ainda mais recente. Xavantina fora fundada em 1945 pela Expedição Roncador-Xingu. Bem mais ao norte, no encontro das águas do Mortes com o Araguaia, São Félix do Araguaia começara a se constituir como núcleo urbano em 1942. A cidade de Paranatinga surge em 1964, como entreposto do garimpo de diamantes. Emancipada como sede de município em 1979 e hoje com cerca de 15.000 habitantes31, é o principal núcleo urbano com o qual se relacionam os Bakairi. A distância (cerca de 130 Km) entre Paranatinga e a aldeia 31

Todas as estimativas populacionais doravante apresentadas foram fornecidas pelo IBGE/MT com projeções para 1998.

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Pakuera, a principal aldeia da Terra Indígena Bakairi e onde antes era o Posto Simões Lopes, é coberta usualmente em duas horas e meia, por uma estrada de terra que serve a várias propriedades rurais e é largamente utilizada. A partir do início da década de 70, a pecuária extensiva em toda essa região de cerrado começa a dar lugar a novas frentes agrícolas e à instalação de empreendimentos que incorporam a mecanização, o que altera as relações locais com a já não mais cativa  do Posto Indígena  mão-de-obra bakairi, determinando relações mediatizadas de arregimentação (empreitada) e um incipiente treinamento do uso de máquinas agrícolas (Barros, 1977: 53-70). Saindo de São Félix do Araguaia, em direção oeste, no atual limite setentrional do Parque Indígena do Xingu, a colonização patrocinada pela SUDAM (Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia) viria a produzir a abertura, por alguns pioneiros paulistas detentores de grandes glebas fundiárias, de uma pequena clareira de quatro hectares junto à então recém-construída BR-080, como ponto de apoio para a exploração econômica local. Aí começou a se instalar, a partir de 1974, uma pequena população regional associada ao garimpo e ao tráfego de caminhões, onde campeava a criminalidade, o que valeu à atual São José do Xingu o apelido de “BangBang”. Esse foi o primeiro centro urbano das proximidades do Parque com o qual as populações indígenas aí estabelecidas passam a ter contato intermitente, sobretudo as do Médio Xingu. Praticamente estagnado durante duas décadas, o crescimento de São José do Xingu só viria a tomar impulso nos últimos dois anos, quando o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) destinou quatro glebas para o assentamento de uma população rural de cerca de 5.000 “sem-terras”, o que dobrou subitamente a população do município. A pecuária extensiva associada ao manuseio predatório da terra fez com que as queimadas da estação seca se tranformassem num incêndio descontrolado em agosto/setembro de 1998, o que pôs em risco as matas do Parque e que, aliado às pragas agrícolas que se seguiram, devastou a base econômica do Município. Bem diversa da população e do modelo de exploração que deu origem a São José do Xingu, a rede de pequenas cidades que se estabeleceria ao sul do Parque, no limite de cerrado e começo da mata pré-amazônica, também lançou suas bases a partir de meados da década de 70. Também diferente de Paranatinga, mais a oeste, orientada regionalmente em direção a Cuiabá e

Capítulo 4

79

Rondonópolis (hoje, respectivamente, com cerca de 447.000 e 151.000 habitantes), essa nova rede urbana, posterior à fixação de Xavantina, vai-se orientar na direção de Barra do Garças (hoje com cerca de 47.500 habitantes), na assim chamada região do Alto Araguaia. Entretanto, nessse caso, mais relevante que uma vinculação regional específica é a constituição de características

micro-regionais

(para

usar

um

jargão

administrativo)

peculiares. E isso tem início com a ligação entre a ponta-de-lança da colonização dessa região com uma colônia de descendentes de alemães e um pastor luterano do interior do Rio Grande do Sul. Ao iniciar-se a década de 70, a população rural do município de Tenente Portela, extremo noroeste do Rio Grande do Sul, atingira um limite insustentável de ocupação fundiária de média de 7 hectares por família. Descendentes de alemães (majoritariamente) e italianos, tinham como líder comunitário o Pastor luterano Norberto Schwantes, que tentou, sem sucesso, após tomar contato com experiências na Alemanha, implementar técnicas de agricultura ainda mais intensiva que a que se praticava. Constatada a inadequação da experiência e relembrada a opção de seus próprios antepassados, vislumbrou-se um projeto de migração de famílias de agricultores para terras da fronteira agrícola32. Como desde muito se praticava em Mato Grosso, as terras em torno do Parque do Xingu eram divididas em grande propriedades pouco ou nada produtivas, adquiridas basicamente para fins especulativos e ocupadas escassamente por uma pequena pecuária. Agrupadas em torno de uma cooperativa de colonização fundada por Norberto Schwantes em 1971, 80 famílias adquiriram uma dessas fazendas e, em 1972, mudaram-se para a região a partir de então denominada Canarana, ao norte do Município de Barra do Garças, onde seria posto em prática um empreendimento cooperativo que incluia a implantação de três agrovilas. Inviabilizadas logisticamente, decidiu-se pela implantação de um núcleo urbano de planta inteiramente projetada, inaugurado em 1o de maio de 1975. Um ano mais tarde Canarana torna-se Distrito de Barra do Garças, e, ao final de 1979, emancipa-se, incluindo no território do Município uma pequena porção do Parque Indígena do Xingu e da Área Indígena Pimentel Barbosa

32

A imagem de uma fronteira agrícola a se expandir (em direção à Amazônia) passava a constituir-se então como um dos motes do projeto desenvolvimentista do assim chamado Regime Militar (cf. Velho, 1976: 209 e ss.), que oferecia, dessa forma, um horizonte de possibilidadeas para as expectativas desses agricultores gaúchos.

Capítulo 4

80

(Xavante). Ao projeto inicial de colonização acresceram-se outros 9 na região em torno do núcleo Canarana, de um total de cerca de 20 projetos organizados pelo pequeno grupo empresarial capitaneado por Norberto Schwantes, voltado para famílias de agricultores gaúchos e implementados em terras mato-grossenses. Assim, formaram-se núcleos como Água Boa (1976), Gaúcha do Norte (1978) e Querência (1985). No caso do maior desses, Água Boa, o projeto de colonização já incluia para cada um dos “parceleiros”, além da propriedade rural, três lotes de terreno no núcleo urbano projetado. Os projetos em torno de Canarana e Água Boa reuniram-se em uma cooperativa em 1975, que assumiu até 1993 a gerência da captação de créditos

agrícolas,

da

estocagem

e

comercialização

da

produção,

da

assistência técnica e apoio infra-estrutural aos produtores e ao bem-estar da população local, desvencilhando-se da dependência da administração pública de Barra do Garças e fomentando uma produção agrícola exponencialmente elevada para a região, manifestada, por exemplo, no título de região de maior produção mundial de arroz sequeiro (cultivado em terreno não alagado) para o Município de Canarana. O sucesso da agricultura permitiu a implantação de uma bem suprida rede comercial e de serviços infra-estruturais e sociais. Passado o primeiro surto agrícola, verificada a baixa resistência do solo e diante de uma crise creditícia à produção, a pecuária retorna com novo fôlego,

agora

com

feições

empresariais

modernas,

administrada

por

investidores de fora da região (principalmente paulistas) e concentrando grandes extensões de terra. As áreas do Município de Canarana até então não ocupadas

e

mantidas

com

a

sua

cobertura

vegetal

original

são

progressivamente transformadas em pastagens. Em Canarana, hoje, 66% das propriedades rurais possuem entre 200 e 500 hectares, perfazendo 20% da extensão fundiária total, enquanto 8,7% das propriedades possuem acima de 500 ha mas ocupam 77,5% da extensão fundiária local. A área cultivada (estimada para 1998 em 50.000 ha) representa apenas 3,7% da extensão total das propriedades rurais33. Em Canarana a principal produção agrícola hoje é a da soja, seguida do arroz sequeiro e do milho. O rebanho bovino é estimado em 270 mil cabeças. Já Água Boa detém o título de capital do gado em Mato Grosso, com um rebanho de mais de 450 mil cabeças, comercializando cerca de 6 mil cabeças por mês, parte das quais abatidas num frigorífico local de 33

Todos os percentuais foram obtidos a partir de dados da EMPAER (Empresa Matogrossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural).

Capítulo 4

81

grande porte. Seu terminal hidroviário no Rio das Mortes permite o escoamento de parte da produção de 90 mil toneladas de soja anuais (a maior da região do Araguaia), que ocupa parte dos 80.000 ha plantados. Assim como Canarana, a infra-estrutura socio-econômica de Água Boa é no mínimo inusitada para os padrões mato-grossenses. A população estimada de Canarana para 1998 era de 16.000 habitantes; para Água Boa, 15.000; para Gaúcha do Norte, 3.300; e para Querência, 5.000 habitantes. Esse panorama econômico tende a consolidar a ocupação agrícola e pastoril de toda a região das nascentes de todos os formadores do Xingu. Seja através das possíveis (e mesmo esperadas) alterações geográficas de uma ocupação descontrolada (desmatamento de matas ciliares das nascentes fluviais, erosão de solos, assoreamento de rios), seja através do risco crescente do impacto poluidor da atividade econômica e da ocupação urbana, o que se pode vislumbrar é a possibilidade considerável de alteração do regime hídrico e das condições das águas dos rios, com o seu conseqüente impacto ambiental, o que inclui, é claro, o impacto sobre a piscosidade dos rios. Considerando o ritmo acelerado da ocupação econômica, considerando que a fonte primária de proteínas das populações xinguanas é oferecida pela pesca, e que os peixes sobem em direção às nascentes para se reproduzir, talvez não seja um futurologismo apocalíptico tão abstrato afirmar que, depois do impacto das doenças, as populações xinguanas podem estar sob o pêndulo regressivo de um impacto alimentar (e sanitário). É claro que esse risco deve ser dimensionado com mais precisão  coisa que não tenho condições técnicas para fazer  mas deve, ao menos, ser apontado como um risco. Outra conseqüência (e mais imediata) da dinâmica dessa ocupação para as populações do Parque é a abertura de novos canais de comunicação com o mundo dos brancos. De Canarana, uma estrada de terra faz a ligação com um Posto Indígena de vigilância de fronteira, estabelecido às margens do Culuene, no limite sudeste do Parque e vizinho à sede de uma das fazendas locais. Este posto, chefiado por um Kalapalo, recebe o afluxo das embarcações que chegam do interior do Parque e dos fretes e outros automóveis que realizam o percurso até Canarana em cerca de três horas (desde que a estrada seja mantida em boas condições pela Prefeitura de Canarana). O movimento diário

é

intenso

na

estação

seca.

Por

ali

transportam-se

pessoas,

combustíveis, insumos de grande ou pequeno porte e eventuais cargas (o que

Capítulo 4

82

pode incuir até mesmo automóveis) de visitantes para o interior do Parque. Com a escassez do transporte aéreo mantido pela Funai e com as novas facilidades de movimento, Canarana tornou-se a principal porta de entrada e saída do Parque. Por outro lado, Gaúcha do Norte começa a se esboçar como uma via alternativa mais prática para os Mehinaku e Aweti, restabelecendo, através do núcleo urbano de Paranatinga, contatos efêmeros de indivíduos desses grupos com os Bakairi, e uma saída em direção à capital do Estado. Os Mehinaku têm já um relacionamento intenso com a população de Gaúcha do Norte, o que inclui a troca de visitas de times de futebol e a construção de uma “casa do índio” pela Prefeitura, para prover hospedagem aos índios em trânsito, que atualmente têm ocupado, nesse caso, o pavilhão da Igreja Católica local. Da mesma forma, também os Waurá, através do Posto de Vigilância às margens do Rio Batovi, têm em Paranatinga sua mais nova referência urbana, atingível também via Gaúcha do Norte. De uma forma geral, a incapacidade da Funai de atendimento pleno de certas demandas das populações do Parque, faz com que se comece a vislumbrar, por parte dos índios, que elas sejam direcionadas para os municípios que têm porções do território do Parque dentro de sua área administrativa. Mesmo que não abriguem nesse território uma população específica do Parque, como (ainda) é o caso do Município de Canarana, já são alvo (e Canarana é o caso paradigmático) da demanda, por exemplo, por atendimento hospitalar34. Através desses novos canais de comunicação os índios eventualmente deslocados para fora do Parque (basicamente os que vão estudar em Brasília, patrocinados pela Funai) podem manter contato e receber visitas de seus parentes, estabelecendo um fluxo sem precedentes de pessoas. Seja através de Canarana, seja através de Gaúcha do NorteParanatinga, abriu-se também uma via praticável para a aventura individual da venda de artesanato em centros urbanos maiores.

34

Vale lembrar que os municípios que possuem maior número de aldeias alto-xinguanas em seus territórios administrativos são os de Querência e de Gaúcha do Norte. Atualmente apenas o acesso (por via terrestre e fluvial) à cidade sede deste último município é explorada pelos alto-xinguanos. O percurso até Querência, usualmente realizado através de Canarana, pode também ser feito através do rio Tanguro. Pelo porte dessa cidade e pela escassez de transporte terrestre até a beira do rio, essa via ainda não é explorada, mas parece constituir-se já um interesse das lideranças de Tanguro, que pleiteiam a implementação do Posto de Vigilância Tanguro nesse limite fluvial.

Capítulo 4

83

No espaço de alguns anos, o mundo dos brancos, antes estranho, conhecido apenas através dos visitantes “filtrados” pela administração do Parque, por algumas raríssimas saídas de doentes para tratamento (e posteriormente de algumas lideranças) e através do que dizia Orlando a respeito dele, tornou-se imediatamente acessível, com o qual até mesmo as mulheres, que ocupam o lugar social orientado para a interioridade e a domesticidade (Viveiros de Castro, 1977: Gregor, 1977), passaram a ter contato ostensivo. A década de 80 assinalou uma progressiva conquista pelos índios dos postos administrativos do Parque (Menezes Bastos, 1995: 255), o que incluiu chefes de posto, auxiliares e os novos monitores de saúde indígenas formados pela Escola Paulista de Medicina. Isso equivaleu a uma conquista de postos de trabalho (segundo nossa perspectiva) ou “postos de prestígio” (segundo a perspectiva indígena), mas, em qualquer caso, de postos remunerados. Seja por essa via mais regular, seja por alternativas mais esporádicas (venda de artesanato,

venda

da

imagem

para

organizações

da

mídia

e,

mais

recentemente, um controvertido projeto de eco-turismo dos Kamayurá de Ipavu), o ingresso de recursos monetários orientou para Canarana um novo “público consumidor”, ou melhor, a par da ostensividade com que então se apresentam os bens manufaturados, tornou Canarana a fonte por excelência desses bens para as populações do Parque. Mais do que isso, Canarana tornou-se efetivamente um entreposto logístico. É aí que se adquirem combustível e óleo para os barcos, insumos hoje absolutamente essenciais; é para aí que os motores e outros equipamentos são mandados para conserto; é aí que são adquiridos medicamentos emergenciais; aí se mantêm um posto de rádio-comunicação ligado à rede que atende todas as aldeias e postos; e aí a Funai construiu uma casa de apoio para albergar índios em trânsito. Com o ingresso de pequenas receitas, proliferaram-se as casas alugadas por famílias indígenas que, em escala atomizada, reproduzem em Canarana o sistema de casas que eram mantidas pelos vários povos no Posto Leonardo35 e permitem a fixação de jovens “estudantes”, que algumas vezes saem da aldeia sem saber português. Seria plausível dizer, lembrando a citação que fiz acima do ensaio de Pedro Agostinho (1972), que mais uma vez o fluxo foi invertido, agora para o sentido norte-sul? Será que a atração do mundo dos brancos possui todo 35

Os Kalapalo de Tanguro já possuem um terreno de 1.000 m2 em Canarana e pretendem aí construir a sede de sua associação, que também fará as vezes de uma casa de apoio própria.

Capítulo 4

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esse poder de “inverter fluxos”e subordinar, genericamente, os índios ao seu magnetismo? Ou o que, mais precisamente, significaria isso?







Em 1979 um pequeno grupo Kalapalo saído de Aifa e sob a liderança de Majuta tenta voltar ao território próximo da antiga aldeia e das antigas áreas de pesca, estabelecendo os primeiros roçados na barra do Rio Tanguro, na margem direita do Culuene. Em 1980 o grupo desiste, mas volta em 1981 para construir casas e iniciar a fixação definitiva de uma nova unidade comunitária (otomo), manifestando que a recuperação do adensamento populacional permitira repor em prática e em grande escala “a lógica política interna das fissões dos ótomo” (Franchetto, 1992: 353)36. Em 1984, finalmente, a aldeia de Tanguro é dada por fundada, com cinco famílias e alguns tantos solteiros. Majuta, o fundador, é o chefe principal, assim chamado ete oto (“dono” da aldeia). Luís (ou Vadiuvi) é o chefe responsável pelos “negócios exteriores” da comunidade (por excelência, o trato com os brancos) e o líder dos negócios comunitários cotidianos. É ele que usualmente profere a fala diária do chefe no centro da aldeia ao final da tarde. Um tanto quanto afastado dessas chefias mais notáveis encontra-se Kurikaré, que cuida dos negócios que dizem respeito às relações entre aldeias e dos meios associados àquelas relações como, por exemplo, o cuidado da lancha da comunidade, capaz de transportar dezenas de pessoas para as cerimônias inter-tribais. A

atração

de

outras

famílias

Kalapalo

para

Tanguro

é

progressivamente favorecida, segundo a versão de Majuta, pela proximidade com Canarana e uma maior facilidade de acesso a já não mais bens mas, agora, antes de tudo, insumos industrializados, como machados e anzóis. Entretanto, as lideranças de Tanguro sempre se esforçaram para incrementar seus vínculos parentais e suas alianças potenciais, acolhendo indivíduos em posição enfraquecida no contexto parental de Aifa e mesmo indo buscar uma família que, por antigas 36

acusações

de

feitiçaria, tinha se

refugiado

Mais recentemente o mesmo processo ocorreu com os Kuikuro, dando origem à aldeia de Afukuri, também na margem direita do Culuene alguns quilometros a jusante de Tanguro.

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inicialmente entre os Bakairi e posteriormente entre os Nambikwara (Rondônia). É com essa família que viria Loike, um instruído mediador intercultural que herdou através da mãe o status de chefia (anetü) e que viria a desempenhar uma função importante na mediação com o mundo dos brancos (o que será tratado nos capítulos seguintes), consagrando-se como liderança da aldeia e consolidando vínculos parentais igualmente relevantes. A proximidade com os limites do Parque põe os Kalapalo de Tanguro em contato com os vizinhos fazendeiros. Através das fazendas, para vários povos, torna-se possível o acesso a estradas vicinais. Também através dos fazendeiros torna-se possível o contato com visitantes atraídos pela pesca recreativa, muitas vezes oriundos de outros Estados e que, inseridos em outras referências que não o preconceito mais arraigado dos regionais, tendem a se impressionar favoravelmente com o contato com os xinguanos. Seja através dessa vizinhança mais próxima (o que inclui as novas cidades da região), seja através daqueles mais distantes, mas que agora podem ingressar no Parque, por terra (e rio), sem maiores empecilhos, bastando-lhes um convite dos índios, um novo leque de “amigos”37 começa a se constituir. Esse leque de “amigos” é mobilizado como alternativa de apoio frente ao falido assistencialismo da Funai. Como moeda de troca habilmente empenhada

para

a

conquista

desses

“amigos”

valem

a

tradicional

hospitalidade xinguana e uma forte marca visual construída na mídia desde os tempos de Orlando, com sua campanha de promoção do projeto do Parque, suas ligações com Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, e com a exploração jornalística sistemática de uma imagem exótica de pureza exemplar  desde os documentários pioneiros de Nilo Veloso em 1943/44 e quando da chegada da Expedição, passando pelas reportagens de O Cruzeiro, os muitos documentários e matérias na imprensa (o que inclui os mais recentes e cuidadosos documentários dirigidos por Washington Novais para a TV Manchete) e pela regularidade anual com que ainda hoje o grupo Bloch noticia o Kwarup (o evento de mídia paradigmático de exibição do mundo xinguano). Da mesma forma, a emergência mais recente (década de 80) de uma imagem midiática favorável e idealizada de um novo índio genérico associado, 37

Uso o termo amigos entre aspas para indicar tratar-se de referência a uma categoria nativa, conforme o assinalado no capítulo anterior.

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por prestidigitações preservacionistas, a um discurso ecológico38, produzindo aquilo que Kent Redford (1991) chamou de “o ecologicamente nobre selvagem”, favorece a aproximação de instituições que promovem apoios das mais variadas espécies em troca da oportunidade de ter na apresentação da imagem daqueles índios um componente favorável para sua própria imagem institucional em variados domínios públicos. Também entra a compor o novo quadro de relações senão a substituição de um indigenismo oficial ao menos a emergência, contraposto a ele, de um indigenismo profissional (Ramos, 1995a), representado pela consolidação burocrática de organizações não governamentais (ONG’s) de apoio a “causas indígenas”39. Alcida Rita Ramos descreve esse processo de burocratização como sucedâneo rotinizado  as referências weberianas são postuladas pela própria autora  de um ativismo civil deflagrado no período final do regime militar e que desembocou na constituição de organizações indigenistas como aparatos burocráticos no “período de desilusão” (Ramos, 1995a: 7) com a então chamada Nova República, coincidindo, nesse momento, apesar de não citado pela autora, com o período da mais grave crise administrativa e organizacional da história da Funai até então (cf. CEDI, 1987: 17-43). Vários elementos compõem o cenário de emergência (em termos logísticos e em termos de legitimação; e os dois, é claro, se imbricam) desse indigenismo profisssional, e um deles é certamente o contexto favorável de captação de recursos financeiros internacionais, motivado, em boa medida, como analisam Beth Conklin e Laura Graham (1995), pelo lugar especial conferido aos índios da Amazônia no imaginário mobilizado pelo movimento ambientalista internacional. Não tenho interesse de desenvolver aqui uma análise abrangente do fenômeno, mas apenas da especificidade dos seus resultados e das suas relações com o contexto xinguano. Para ser breve, partindo do que Alcida Ramos chamou de processo de burocratização, gostaria de sugerir que ele pode ser lido também em termos daquilo que Bourdieu (1974, 1987, 1989)

38

As análises mais sinteticamente elucidativas a propósito dessa mistificação de origem predominantemente primeiro-mundista encontram-se em Ramos (1994) e Conklin e Graham (1995). 39

Esse “indigenismo profissional” é também referido pele autora citada, em um texto complementar (Ramos, 1995b), como “indigenismo privado”. Bruce Albert (1997b) refere-se a ele como “indigenismo não-governamental” e identifica-o como concorrente ao já então consolidado novo indigenismo missionário, patrocinado pelos setores progressistas da Igreja Católica.

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chamou de lutas internas e autonomização do campo40. Sumariamente, “campo” poderia ser definido como um espaço social que aspira pelo seu próprio regime de legitimidade, como um mercado de bens simbólicos específico que, sob o primado da acumulação de poder simbólico, conforma um objeto e um domínio. Sobre esse campo movem-se relações de força segundo regras que, ao fim das contas, cristalizam-se como princípios de reiteração da existência daquele mesmo domínio e daquele objeto. O campo indigenista, enquanto espaço de produção discursiva, fundamenta-se sobre uma característica curiosa: O indigenismo, tal qual o orientalismo, descrito por Edward Said (1978), jamais lidou com outra coisa que não com constructos não-indígenas acerca do “índio” (cf. Junqueira e Carvalho, 1981; Ramos,

1994;

Favre,

1996).

Nesse

sentido,

o

aparato

institucional

contemporâneo que subsiste caucionado pela proposição da existência genérica de um “índio” é a expressão concreta do discurso produzido a partir desse campo, que trata de incorporar e dar viabilidade, visibilidade e validade àqueles constructos a propósito do que é esse “índio”. Apesar da virulência herética  ou heterodoxa (continuo me reportando a Bourdieu)  que, no seu momento de emergência, manifestouse no que Alcida Ramos, sugerindo Victor Turner, evoca como efeito de communitas41,

aquelas

novas

tomadas

de

posição,

que

Bruce

Albert

caracteriza em termos genéricos como de “supervisão da política indigenista oficial” (1997b: 187), consolidadas por fim no indigenismo profissional, não parecem ter quebrado a regra de ouro que garante a própria subsistência do indigenismo como campo: Postular a distinção ontológica e ao mesmo tempo totalizadora entre índios e não-índios. Assim é que a imagem do índio hiperreal proposta por Ramos42 pode ser vista como apenas mais um cromo

40

Essa abordagem do indigenismo é tributária de Lima (1985 e 1987).

41

Cito a autora: “O Decreto de emancipação [dos índios], esboçado pelo Presidente Geisel, por intermédio de Rangel Reis, seu Ministro do Interior, teve o efeito catalizador de reunir na mesma plataforma uma série de profissionais. Entre coro e solo, antropólogos, advogados, jornalistas, religiosos e artistas se revezaram num inflamado palco político com líderes indígenas que, como por encanto, afloraram na cena pública, tomando de assalto os meios de comunicação.” (1995a :16). Uma descrição mais distanciada e uma contextualização histórica mais detalhada desse momento encontram-se, por exemplo, em Urban (1985) e Albert (1997b). 42

Cito novamente a autora: “O índio hiper-real: dependente, sofredor, vítima do sistema, inocente das mazelas burguesas, íntegro em suas ações e intenções e de preferência exótico. Os índios assim criados são como clones de fantasia, feitos à imagem do que os brancos gostariam de ser, eles mesmos (...). É o índio-modelo que justifica recursos materiais e humanos para sua defesa, pois, de outro modo,

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histórico da extensa coleção de índios “hiper-reais” com que sempre lidou o indigenismo43. A domesticação da heterodoxia correspondeu, quando muito, a uma reconfiguração do campo e à instauração de uma nova doxa. Como fator de elucidação causal, o relevante, no meu entender, não se encerraria no fenômeno do surgimento de um índio hiper-real, mas na emergência de um indigenismo profissional, articulado como um aparato de organizações não-estatais, que precisa argumentar sua legitimidade sobre: 1. a denúncia (ou o reconhecimento tácito) da ação inepta, corrupta e/ou nefasta do Estado (reconfiguração do domínio); e 2. (reconfiguração do objeto) sobre um modelo hipostasiado de índio que, descrito como vítima da história (e de uma sociedade que se sintetiza no Estado-Nação), é agora resgatado como herói ecológico e da autenticidade cultural, e pode, nessas feições, ser conectado a uma rede transnacional de referências descontextualizadas e reificadas, onde são abstraídas quaisquer contingências “nacionais” ( para não dizer “locais”  ou “vernaculares”, para lembrar um jargão emergente na sociologia pós-moderna (p. ex.: Zukin, 1992) ). É esse aparato que agora vai de encontro ao “índio real”, como o chama Alcida Ramos, ou, parodiando Ortega y

Gasset,

ao

índio

em

sua

circunstância.

É

verdade

que

essa

“internacionalização” dos índios teve, por um lado, como conseqüência, a urdidura de uma rede internacional de organismos de proteção e de pressão frente ao governo brasileiro, que serve como base de confrontação à subserviência patrimonialista dos poderes públicos nacionais aos interesses econômicos cartoriais, mas também, na versão local da ação das ONG’s, não é difícil observar que aquela “ida aos índios” tem como resultado muitas vezes a produção de um dúbio clientelismo, a substituir o modelo de relações anterior, marcadamente paternalista. Por um lado, as organizações não-governamentais que têm por meta o desenvolvimento de programas permanentes de apoio a comunidades indígenas conformam uma política de ação (e, por conseqüência, uma política de intervenção) baseada na execução de projetos, financiados via de regra por agências internacionais. Dependendo do caráter da agência e das expectativas do seu conselho técnico, os projetos são acolhidos ou não. Os pressupostos e como seria possível convencer agências de financiamento para que contribuam para a defesa de índios que, recalcitrantes, ousam agenciar suas próprias alianças com quem lhes aprouver?” (:11). 43

Em defesa dessa assertiva evoco um outro trabalho da mesma autora: Ramos, 1994.

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conceitos operantes na política dessas agências internacionais são, portanto, os primeiros elementos limitadores e conformadores do caráter das ações a serem empreendidas, ou, se se preferir, numa perspectiva positivada, definem um rol de concepções e domínios privilegiados para os quais a intervenção é financeiramente estimulada. A partir dessa relação elementar de assimetria, tal qual observada por Beth Conklin (1997)44, fica difícil de sustentar que o ideal da parceria entre índios e ONG’s possa responder de fato à perspectiva retoricamente argumentada da auto-determinação indígena. De outra parte, a concepção e elaboração dos projetos são condicionadas por: 1. uma racionalidade instrumental: a da sua objetividade técnica e mensurável, como pré-requisito para sua aceitabilidade pelas agências financiadoras45; e 2. uma racionalidade iluminista, que outra coisa não é que dizer aos índios o que eles devem fazer e o que devem esperar para viver melhor, como, por exemplo, que redimensionem sua produção alimentar para gerar, em escala sustentada, excedentes comercializáveis (algo, por acaso, impensável para os altoxinguanos), que reflorestem com madeiras nobres uma área desmatada por uma madeireira ou que convertam para códigos escritos as suas línguas orais. O que outrora já foi chamado de projetos de desenvolvimento comunitário é

44

Cito: “No âmago da aliança eco-indígena há uma inerente assimetria: O valor simbólico da identidade cultural indígena é caucionado em termos definidos primariamente pelos não-índios. As políticas simbólicas transnacionais concordam com as concepções dos povos nativos a respeito de si mesmos e seus objetivos tão somente na medida em que essas auto-definições reverberam como extensão dos constructos simbólicos e ideológicos ocidentais.”(:729, tradução minha, grifo meu). 45

Um comentário ilustrativo a esse propósito me foi oferecido por um tarimbado agente de uma ONG de Brasília, ex-funcionário da Funai e assessor de elaboração de muitos projetos para comunidades indígenas. Comentava que muitos líderes indígenas enviavam à Funai suas demandas de apoio específico, para que o órgão, por sua vez, buscasse apoio de instâncias financiadoras, marcadamente agências de cooperação de países de Primeiro Mundo sediadas nas suas respectivas embaixadas. Ele criticava então a omissão da Funai que, mesmo tendo um quadro de técnicos que pudessem dimensionar formalmente um pequeno projeto, enviava aos órgãos acolhedores o ofício do chefe indígena, que, por não se enquadrar nos termos técnicos de delineamento de um objeto, metas, meios e cronograma de execução, não era levado em consideração. Ao ser cobrada pelo chefe indígena, a Funai mostrava-lhe os carimbos do protocolo de recebimento da solicitação por parte do organismo acolhedor, como prova de que tinha feito seu papel e então arrematava: “Não foi atendido.” Ao que o chefe indígena não tinha outra alternativa senão conformar-se. Ao que pude observar, muito do discurso técnico empenhado na elaboração de muitos projetos são circunlóquios para tentar capturar (ou, eufemisticamente, “traduzir”) em termos objetivos razões que, para uma racionalidade objetivista, são da ordem do inefável, ou que procuram driblar (ou ainda, em termos brasileiramente futebolísticos, “dar tratos à bola”) àquilo que, visto a partir de uma racionalidade de fins, correria o risco de se confrontar moralmente como algo no mínimo suspicaz. Com a possibilidade, inaugurada com a Carta Constitucional de 1988, de as comunidades indígenas terem suas próprias associações civis, já existem organizações que promovem cursos, voltados para uma clientela indígena, sobre “como fazer projetos”. Certa feita, em Tanguro, um Kalapalo que tinha intenções de montar uma associação queria a todo custo que eu o ensinasse a “fazer projetos”. Para muitos índios a contigüidade associação ≈ projetos ≈ recursos financeiros (ou ao menos desses dois últimos termos, não importando muito o que signifique o primeiro deles) é algo automático e irredutível.

Capítulo 4

90

assim novamente açambarcado por essa racionalidade, agora sob títulos como sustentabilidade socioambiental, defesa e revigoramento cultural ou ainda etnodesenvolvimento. Não se está com isso querendo fazer tábula rasa da utilidade desses projetos, alguns dos quais sendo mesmo vitais, como aqueles destinados à demarcação física de territórios. O que procuro salientar é que esse tipo de política que tende a se consolidar sob a égide e sob as condições institucionais do indigenismo profissional não é de forma alguma sucedâneo lógico de um pressuposto de auto-determinação das sociedades indígenas. Os projetos das ONG’s assemelhar-se-iam, antes, a novos presentes de branco, refinadamente empacotados46. E a questão surge novamente na produção da dependência aos presentes. Na ausência de outras instâncias de mediação com o mundo dos brancos, que possam oferecer soluções práticas e capacidade de ação efetiva, a “clientela” das ONG’s  que, não se deve iludir, não são todos os índios

47

 fica à mercê das ofertas desse mercado de

projetos. Por outro lado, a “capacidade de mobilização dos índios” ou o “comprometimento com a proposta” é usualmente acionado pelas ONG’s como indicador do bom desempenho dos projetos (...do bom desempenho de um programa, do bom desempenho da sua  ONG  própria existência). Especificando, portanto, as duas faces da lógica que sustenta o “índio hiperreal”, a garantia, para uma determinada população indígena, da permanência de um programa de apoio (ou seja, de um “provedor de presentes”) é muitas vezes a sua (dos índios) declaração de adesão às expectativas de um certo ideário organizacional (da ONG)  o que, sob circunstâncias desfavoráveis, condiciona restritivamente o estabelecimento de outras alianças (o caso 46

No que diz respeito ao Xingu, o próprio termo “projeto” tornou-se de uso corrente no vocabulário xinguano das relações com os brancos. A história do termo no indigenismo oficial, todavia, reporta-se à década de 70 e aos assim chamados “programas de desenvolvimento comunitário”, que foram desenvolvidos pela Funai sob um modelo de racionalidade técnica nada muito distante daquele desenvolvidos por muitas ONG’s e com iguais “boas intenções” de promover a “autonomia indígena”; esta então concebida sob outro marco ideológico, qual seja, adscrita ao aspecto mais estritamente econômico das relações das sociedades indígenas com a sociedade nacional envolvente. Assumia então a forma de tentativas de implantação de uma produção massiva especializada, destinada ao mercado. A aplicação prática desses projetos se daria sob a lógica da tecno-burocracia estatal e do clientelismo (cf. Cunha, 1990: 72-80). 47

Cito Bruce Albert: “O modo de atribuição dos financiamentos que sustentam a implantação desses projetos é ao mesmo tempo precário e desigual [inégalitaire], uma vez que depende quase sempre da ‘quota identitária’ variável que os grupos indígenas (ou seus líderes) podem aportar face ao imaginário culturalista e ecologista dos financiadores (com uma tendência a desfavorecer os grupos não-amazônicos e, dentre estes, os grupos menos ‘tradicionais’.” (1997b: 198-199, tradução minha).

Capítulo 4

91

narrado por Ramos (1995a) é ilustrativo)  já que, para as ONG’s, a continuidade da sua intervenção local segundo sua perspectiva (consonante com a perspectiva dos seus financiadores) acaba por ser a garantia mesma da continuidade do seu próprio funcionamento48. No limite (e, como nota Alcida Ramos, em obediência à viciosidade burocrática da autonomização do órgão burocrático), muitas ONG’s acabam por zelar (e às vezes mesmo com recursos que um analista moral poderia chamar de torpes) por uma relação de exclusividade cativa junto aos “seus” índios, embora, é claro, escoradas sobre a mística da pureza moral das boas intenções, jamais o admitam. Não obstante alguns grupos indígenas não contarem sequer com esse tipo de apoio, outros, por seu turno, encontram-se eventualmente em condições de “jogar” com os apoiadores e de superar essa dependência e sua marca clientelista. Cabe-me, agora, noticiar algo do contexto xinguano. No correr desta década os grupos indígenas do Parque receberam o apoio de duas grandes ONG’s, uma sucedendo-se à outra. A primeira delas, a AVA

(Associação

Vida

e

Ambiente)

deu

lugar

à

atual,

o

Instituto

Socioambiental (ISA), fundado em 1994, com sede em São Paulo e uma subsede em Brasília. Nos objetivos institucionais definidos em seu estatuto acopla-se a defesa ambiental à defesa do patrimônio cultural e dos direitos humanos e direitos dos povos “indígenas e populações tradicionais”, tudo sob o signo de direitos coletivos e bens sociais difusos. Com efeito, a ação do ISA orienta-se pelo zoneamento de bacias hidrográficas, definindo assim os programas regionais (Xingu, Rio Negro e Ribeira). O Programa Xingu abriga projetos voltados para algumas áreas indígenas da Bacia do Xingu (as áreas dos grupos Kayapó ao longo do Xingu não são, por exemplo, atualmente contempladas) e, por acréscimo, uma área indígena da Bacia do Tocantins-

48

Não se deve crer, entretanto, que a relação dos grupos indígenas com “suas” ONG’s se dê em termos eminentemente passivos. A apropriação e reprodução indígena de um discurso que oscila entre marcos culturalistas e preservacionistas  aquilo que Bruce Albert (1997b) chamou de “hibridação discursiva”  pode ser uma opção estratégica de riscos calculados e, sem querer ser sumariamente interacionista, parte do “jogo de cena”  ou aquilo que também Albert chamou de “indianidade de compromisso” (1997b: 193) , onde a conquista de certa autonomia local tem como contrapartida, paradoxalmente, a prática desse discurso para branco ouvir. De qualquer maneira, as abordagens etnográficas específicas precisariam analisar o quanto aquela “hibridação discursiva” se expressa situacionalmente em termos de redes de fidelidade. O paradigma analítico nesse sentido continua sendo, no meu entender, o de Gluckman (1940).

Capítulo 4

92

Araguaia, o que sugere antes de tudo a centralidade da clientela indígena49. Um desses projetos é direcionado para o Parque Indígena do Xingu e composto de quatro subprojetos específicos: 1. Fronteiras do Parque, destinado à sua proteção e vigilância; 2. Formação de Professores Indígenas; 3. Apoio ao Desenvolvimento de Alternativas Econômicas, voltado para a produção de excedentes e sua comercialização; e 4. Oficina Escola, destinado à viabilização da realização de cursos técnicos pelos índios. Todos eles são financiados

pela

Rainforest

Foundation

da

Noruega

e

destinados

majoritariamente, segundo seus planos de atividade específicos, ao que se poderia definir, em termos genéricos, como “qualificação de mão-de-obra”. Assim, mesmo as atividades de levantamento servem para a produção de subsídios para o desenvolvimento de capacidades técnicas individuais nas populações xinguanas. A pedra angular desses projetos sintetiza-se, portanto, nos cursos de formação, o que ressalta a perspectiva “pedagógica” da intervenção dessa ONG junto às populações indígenas do Parque. Dessa forma, ensina-se a vigiar fronteiras, a se constituir uma brigada de combate a incêndios, a se produzir banana-passa, rapadura e mel, a se consertar motores de barco, dirigir caminhões e gerenciar as contas e os papéis de uma associação civil, e ensina-se também (ao menos teórica e idealmente, a partir do modelo reificado da pedagogia dos brancos) a se dar aulas para “alunos” indígenas em “escolas” indígenas. Tudo isso suposto como fomentos à autonomia indígena. Os xinguanos usualmente recebem com bastante interesse todos esses tipos de “instrução”, mesmo que a aplicabilidade desses projetos não seja uniforme para todas as populações do Parque. O que parece se verificar é uma aproximação maior do trabalho daquela ONG com os grupos Jê e Tupi alocados no Médio Xingu, em parte pelo fato de se agruparem em torno de um núcleo coordenador, que é a Associação Terra Indígena do Xingu (Atix)50, que congrega a representação de interesses daqueles grupos (Kayabi, Suyá, Juruna etc), em parte porque alguns desses projetos encontram difícil 49

O ISA possui também uma das melhores bibliotecas do país sobre a questão indígena contemporânea, e assumiu as atividades documentais e editoriais do CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação). 50

A Atix é indicada, nos quatro subprojetos específicos desenvolvidos pelo ISA no Parque, segundo a condição de “parceira”. Caberia a algum pesquisador da área do Médio Xingu elucidar o caráter dessa parceria: Se a Atix é, por assim dizer, apenas uma “correia de transmissão” ou se o esforço pedagógico do ISA se estende também para aquela dimensão estratégica para a autonomia local na sua relação com as agências financiadoras, qual seja, a de “ensinar a fazer projetos”.

Capítulo 4

93

aplicação no Alto Xingu, notadamente o de desenvolvimento de alternativas econômicas, de “matriz” kayabi e que pouco se adapta aos padrões da produção alto-xinguana. Finalmente, o que talvez seja o dado conjuntural mais relevante é que, enquanto que para os povos do Médio Xingu parece plenamente concebível uma representação unificada em torno de uma associação civil, os alto-xinguanos precisam continuamente administrar uma intrincada engenharia de disputas e alianças faccionais, em que, mesmo a constituição de uma associação é veículo da expressão do prestígio e da influência do líder de um grupo parental/faccional/local (otomo51). Da mesma forma, a capacidade de arregimentar apoios externos, ou antes, de “jogar” com eles de acordo com as possibilidades mais convenientes, faz parte da dinâmica de afirmação dos diversos otomo, um jogo que é capitaneado pelos seus líderes. A presidência de uma associação civil pode assim ser assumida como um atributo da chefia, destinado a alguém que tenha esse status, um anetü, quem, por obrigação ética, deve distribuir generosamente quaisquer benesses (e a pressão social se exerce tanto sobre as reais quanto sobre as supostas) obtidas através da associação, para o seu “pessoal”. Assim, associações civis, que poderiam ser instrumento de congregação otimizada de esforços cooperativos, tornam-se irremediavelmente instrumento de disputa por recursos e vantagens capitalizáveis junto aos brancos, segundo a lógica faccional dos otomo. Isso se estende, portanto, às relações com ONG’s, empresas privadas, outras organizações e “amigos”, e a composição do leque de fidelidades é ordenada por conjunturas dinâmicas e mutáveis52. Assim, no caso dos grupos xinguanos, o contínuo investimento no alargamento daquele leque de relações permite a realização de um jogo que pode frustrar eventuais 51

Continuarei utilizando a terminologia caribe, apesar de (ou, em termos analíticos, exatamente por) haverem correspondentes nas outras línguas alto-xinguanas. Assim Bruna Franchetto identifica a constituição do termo otomo: “é forma composta por óto, traduzido como ‘dono’, e pelo sufixo -mo, pouco comum em kuikuro atual. É um tipo de pluralizador, melhor chamá-lo de coletivizador, adequadamente glosado pelo termo português ‘o pessoal’.” (1986: 68). Mas também: “Consideremos outro dado importante para entender a categoria ótomo; é ela rótulo do campo semântico do parentesco, pois ego reconhece seu ótomo na rede de relações de siblingship estabelecida a partir de uma filiação comum (Basso, 1973: 78 e 1970: 406). Dessa maneira, a identidade reflexiva coletiva mediada pela noção de óto pluralizado e pela referência a uma localidade específica deve ser lida pela linguagem do parentesco, no nível classificatório que define o grupo local.” (ibidem: 71). No que diz respeito à coesão do grupo da aldeia: “se reproduz por uma rede de alianças que incorporou a heterogeneidade na unidade local, sendo por isso uma coesão mantida apesar das forças sempre atuantes de ruptura que incidem nas fronteiras da afinidade.”(ibidem: 118). 52

Isso se aplica também às relações alto-xinguanas com outros índios, como se parece notar no interesse recente e crescente de algumas lideranças alto-xinguanas em aproximarem-se mais daquelas vinculadas à Atix.

Capítulo 4

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expectativas clientelistas de ONG’s. O alargamento da rede de “amigos”  porque, ao fim das contas, as presenças institucionais são pessoalizadas nas figuras de seus representantes  é um empreendimento continuamente renovado. A contrapartida das conquistas faccionais e das distribuição generosa é, como já sugeri antes, a dinâmica da “inveja”, que move entre os grupos (e cada vez mais intensamente aqueles que são mais próximos  e, portanto, mais “acusáveis” de feitiçaria) uma disputa que tem como resultado uma projeção para fora das fronteiras do mundo xinguano. Essa projeção alcança também, mesmo que em menor escala, outros grupos indígenas, para os quais vale então a expansão do circuito de trocas materiais (generalizado pela designação

kamayurá

“moitará”).

Os

Kayabi

tornaram-se

reputados

fornecedores de penas de rabo de gavião-real para os alto-xinguanos, bem como adornos feitos com tucum, que, por sua vez, são vendidos aos brancos. Os alto-xinguanos, por seu turno, fornecem aos Kayabi penas de tucano. E um caminho ainda mais longo é percorrido pelas penas de rabo de arara vermelha. Trocadas dos Kayapó (principalmente pelos Kamayurá), são depois trocadas com os Xavante, que, levando os preciosos caramujos usados na confecção de colares, vão até Tanguro, através de Canarana, depois de terem feito contato por uma das duas freqüências do sistema de rádio-comunicação, doado às aldeias e postos do Xingu em 1990 por Sandra Wellington, uma excêntrica senhora inglesa residente em Canarana. A partir do que descrevi, pretendo sustentar que a aproximação com as fronteiras do Parque obedece a uma lógica que não é ordenada tão simplesmente por uma abstrata atração exercida pelo mundo dos brancos, que inverte ora para lá ora para cá o fluxo das populações xinguanas. Entram a compor esse movimento as fissões faccionais, o retorno a antigos territórios e também, e principalmente, os esforços das lideranças pela conquista de novas relações, estimulados pela lógica nativa das disputas faccionais e pelo jogo da “inveja”. Nesse ponto, discordo do diagnóstico feito por Marina Kahn em 1989 (Kahn, 1991a) a propósito das relações dos povos do Parque com o seu “entorno”. Não é por conta de se aproximarem da sociedade regional e dos limites do Parque que eles melhor expressam suas diferenças e posições singulares. No meu entender, o nexo causal analiticamente produtivo para a interpretação das relações xinguanas (recusando de novo uma distinção entre

Capítulo 4

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relações internas e relações externas) é aquele orientado exatamente no sentido contrário. É por conta da distintividade e das disputas entre as unidades locais (virtualmente cambiantes) que os grupos xinguanos projetamse para fora das fronteiras do Parque. Isso talvez permita ressaltar também o significado mais preciso do Posto Leonardo à época de Orlando Villas Bôas. Mesmo estando no centro (geográfico e político) do sistema xinguano, ele era ao mesmo tempo o ponto mais “externo”, não apenas da alteridade mais drástica mas também da equalização das marcações diferenciais mais corriqueiramente domésticas, que incidem ali, para usar a expressão de Bruna Franchetto, “nas fronteiras da afinidade”. Dessa forma, não é estranho que fosse reconhecido também como o lugar por excelência do asilo (particularmente para os acusados de feitiçaria). E assim talvez seja igualmente justo vê-lo como mais uma ilustração de uma metáfora nativa anotada por Rafael Menezes Bastos (1995: 234), a da geometria do buraco (kamayurá: kwat), onde interioridade e exterioridade se fundem. É através do nexo causal que acima expus que se pode retomar a idéia de movimento, num contexto em que as fronteiras não delimitam unidades estanques e autocontidas,

mas

sim

(usando

um

velho

jargão

etnometodológico)

irremediavelmente “indicializadas”53. Aí, o que está em jogo é precisamente o movimento através daquelas fronteiras. É a partir desse quadro de referências que pretendo entender o lugar da escola, ou melhor, da forma de apropriação desse novo presente de branco, no caso singular do “pessoal de” Tanguro.

53

Num trabalho de divulgação da etnometodologia ao público francês, Alain Coulon didaticamente assim aborda a noção de “indicialidade” (ou “indexicalidade”): “É um termo técnico adaptado da lingüística. Isso significa que, embora uma palavra tenha uma significação trans-situacional, tem igualmente um significado distinto em toda situação em que é usada. (...) Isto designa portanto a incompletude natural das palavras, que só ganham o seu sentido ‘completo’ no seu contexto de produção, quando são ‘indexadas’ a uma situação de intercâmbio lingüístico.” (Coulon, 1987: 33).

Capítulo 5

96

Não vale o que está escrito (ou: Escolas “nas” aldeias ou escolas “das” aldeias?)

“Ela saía com muita facilidade de uma cultura para outra, sem a menor consideração pela hudud, a fronteira sagrada. ‘E que mal há nisso?’, perguntava Chama. Papai respondia que a fronteira protegia a identidade cultural e que, se as mulheres árabes começassem a imitar as européias, vestindo-se de modo provocante, fumando cigarros e circulando à vontade com o cabelo descoberto, restaria apenas uma cultura. A nossa morreria. ‘Se é assim’, argumentava Chama, ‘então por que meus primos homens podem sair por aí vestidos como imitações de Rodolfo Valentino, com cabelos cortados como os dos soldados franceses, sem que ninguém grite para eles que nossa cultura está a ponto de desaparecer?’ Para essa pergunta, papai não tinha resposta.” Fatima Mernissi

Funciona uma escola em Tanguro. Uma proposição de tal forma categórica, por mais que se arrime nos artifícios etnográficos do “eu estive lá” (Geertz, 1988: cap I), só poderia sonegar aquilo que realmente está em jogo. Comecemos, portanto, por pôr as dúvidas (metódicas ou não) no seu devido lugar, qual seja, no princípio: Funciona uma escola em Tanguro? Uma interrogação que não seja mero golpe de retórica deve servir como chave para abrir outras interrogações suscitadas pela precariedade e pela provisoriedade das respostas. Um professor do Museu Nacional costuma nos lembrar, a propósito daquelas perguntas que Paul Veyne usa para entitular alguns de seus trabalhos  “conheceram os gregos a democracia?”; “os gregos acreditaram nos seus mitos?”1  que antes mesmo de um lacônico sim como resposta, o que está em jogo são as perguntas que se desdobram de dentro dessas perguntas  no caso: O que significava democracia, e o que significava acreditar, para os gregos? Creio que a minha questão é semelhante. Sim, funciona uma escola em Tanguro; mas, antes, o que significa “escola” e o que significa “funcionar” em Tanguro?

1

Respectivamente: Veyne (1983a) e (1983b).

Capítulo 5

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A presença de uma escola no Alto Xingu remonta a 1976, e até quase meados desta década falar em escola na região praticamente correspondia a falar de escola no Posto Leonardo, com professor branco e uma metodologia de ensino quando muito experimental. Os contatos mantidos com os brancos no Posto e o reconhecimento da escrita como um artefato técnico agregado ao domínio do poder com o qual os brancos lidavam parecem ter despertado, precisamente ali, o interesse daqueles índios mais próximos das atividades administrativas do Parque em conhecer e ser capaz de manipular aquele artefato. Por trás da escrita estava o mistério da sua técnica (mais uma do mundo dos brancos) e por trás dessa técnica a possibilidade de uma forma de acionamento concreto de poder. Melobô, cacique Ikpeng, certa feita me dissertava sobre o que ele já presenciara em torno de um “pedaço de papel”, que autorizava ou não a entrega de mantimentos, permitia ou não o transporte de um doente, determinava por onde passaria uma estrada e qual não era mais terra de índio. Argumentando sobre um pedaço de papel, ou apontando-o como a origem e razão dessa ou daquela iniciativa, dessa ou daquela proibição, um branco parecia manusear, por empréstimo, o poder daqueles sinais. Por aquela capacidade de decidir ou de servir de pretexto para decidir sobre o destino das coisas e das pessoas, aquele artefato mereceu de Melobô um veredicto lapidar:  Papel mata! Não por acaso que vencer esse primeiro e mais elementar mistério da técnica era algo expresso sob o mote e o termo de “defesa” (Guimarães, 1981; Franchetto, 1984a)  que não creio que, por ter sido pronunciado, esteja autorizado

a

imponderáveis,

deslizar como

arbitrariamente

observarei

adiante.

para Isso

domínios motivou

discursivos as

primeiras

reivindicações dos índios do Posto Leonardo por uma escola (Franchetto, 1984a: 17). É também por essa época que Vanessa Lea, apesar de ter como contexto de análise o Médio Xingu, mas numa proposição que creio cabível para o que aqui desenvolvo, assinala: “Discutir a necessidade de ler e escrever não implica tanto em descobrir como os índios irão instrumentalizar esse

Capítulo 5

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saber em termos práticos, porque talvez seja mais importante a sua eficácia simbólica em mostrar que eles podem adquirir essa técnica.” (Lea, 1981: 60). A maioria dos relatórios e depoimentos disponíveis a respeito da experiência escolar no Parque do Xingu até meados da década de 90 tende a generalizar suas proposições para toda a área do Parque, indistintamente o Alto e o Médio Xingu. É como se um certo vezo administrativista, caudatário do indigenismo oficial, pusesse a reconhecida diversidade da região num saco onde todos os índios são pardos  e coubessem todos dentro de um mesmo recorte, o das fronteiras do Parque Indígena do Xingu. Espero que os capítulos anteriores tenham sugerido que, nas perspectivas nativas, as inclusões e exclusões processam-se segundo lógicas específicas (mesmo que dinâmicas), e que generalizações com base num critério territorial/administrativo são sempre temerárias. Assim é que uma análise mais precisa deve cuidar para que as observações sobre experiências escolares (e as expectativas nativas eventualmente diagnosticadas a seu respeito) no Médio Xingu (p. ex., Ferreira, 1992) ou em um posto de população heterogênea não sejam generalizadas, pela inércia da situation coloniale, para um sistema de relações peculiar como o do Alto Xingu. Da mesma forma, considerando a incipiência da recente experiência escolar extensiva no Alto (procurando abranger todas as aldeias), mesmo que tendencialmente aglutinada em torno de um eixo programático pretensamente

orientador/uniformizador

(o

projeto

do

Instituto

Socioambiental  ISA  para formação de professores indígenas), as diferenças entre experiências particulares de grupos específicos podem ser expressivas e, creio, ainda não apreensíveis por uma abordagem generalizante desse fenômeno: o das escolas “nas” aldeias. Nesse sentido, o caso Tanguro vem a calhar exatamente pela sua particularidade no que diz respeito a vínculos de lealdade, que bem expressa o mecanismo, descrito no capítulo anterior, daquele movimento das atenções estratégicas dos diversos grupos para fora das fronteiras do mundo xinguano. A partir de 1976 as presenças continuadas de professores (brancos) no Posto Leonardo sucederam-se por períodos esparsos e da ordem de um a quatro anos. A década de 80, por seu turno, marcou uma reconfiguração de posições entre demandas indígenas e Funai, em que as reivindicações expressas pelos índios manifestaram uma progressiva quebra do modelo de submissão paternalista e sua correlata recepção passiva de “presentes”

Capítulo 5

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(Franchetto, 1984a, 1984b), e, no que diz respeito a uma educação escolar, caracterizou-se pela demanda, por parte das lideranças indígenas (e nunca atendida pela Funai), de uma atividade escolar continuada e sediada nas aldeias (Kahn, 1991). É também a década de 80 que marca a expansão dos estudos sobre as línguas faladas no Parque (Alto e Médio Xingu), culminando, em 1987, com o primeiro esboço de um projeto articulado e abrangente de investigação lingüística (CEDI, 1991: 474), que receberia sua forma acadêmica em 1988, com o título “Documentação e Descrição das Línguas do Parque Indígena do Xingu”, dirigido pela Profa Luci Seky (Unicamp) e financiado pelo CNPq, Finep e FAPESP, ampliando progressivamente sua abrangência (Seky, 1993)2.

São

esses

estudos

que,

produzindo,

entre

outras

coisas,

a

possibilidade de conversão gráfica das línguas orais, fornecerão subsídios que serão utilizados pelo projeto educacional do ISA no programa de uma assim chamada educação escolar bilíngüe. De outra parte, o contato tornado progressivamente ostensivo com o mundo dos brancos e o incremento das relações xinguanas com uma variedade cada vez maior de atores tornaram cada vez mais aguda a curiosidade

estratégica

de

conhecer

e

compreender

esse

Outro.

Se

reconhecermos, como Ellen Basso (s. d.), que as narrativas orais oferecem modelos conversacionais (percepções compartilhadas da realidade) para a ação, particularmente, como nota a autora, para o estabelecimento de relações futuras, e se, também como Ellen Basso (1989), reconhecermos na figura paradigmática daquele que trava relações (originalmente belicosas) com o Outro, o guerreiro ou “mestre do arco”, como um intérprete dos sinais, um “decifrador” desse Outro, teremos ao menos uma pista, em termos de categorias tradicionais, de uma possível relação entre conhecimento e alteridade. Uma relação atualizada não mais na figura do guerreiro, mas na do mediador intercultural. Ademais, uma hipótese que gostaria de expressar sinteticamente aqui é que, pela experiência do contato, desde os tempos de Orlando, da prestação de serviços de qualquer espécie aos exploradores que chegavam e posteriormente à administração do Parque, e do conseqüente 2

Até 1987 só o karib do Alto (ou, mais precisamente, sua variação dialetal kuikuro), o kamayurá, o trumai, o waurá e o kayabi tinham sido objeto de estudos lingüísticos abrangentes (estas duas últimas línguas, por missionários do Summer Institute of Linguistics). Existiam ainda estudos parciais sobre as línguas kamayurá, aweti, ikpeng e metyktire. O projeto citado procurou abranger estudos sobre as línguas yawalapiti, mehinaku, trumai e outras do Médio Xingu (juruna, suyá, panará, tapayuna e ikpeng). A quase totalidade dos pesquisadores envolvidos nesse projeto foi assimilada como consultores externos ou como assessores diretos do projeto do ISA.

Capítulo 5

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recebimento de uma retribuição em bens ou favores prestigiosos (e o prestígio se aufere na sua redistribuição/troca generosa), essa capacidade de mediação é positivamente valorada na sociedade xinguana. Ela abre espaços para trajetórias

individuais

que

aspirem

a

alguma

forma

de

ascensão,

particularmente para estratégias de afirmação de liderança. Como nota, dentre outros, Eduardo Viveiros de Castro (1977: 33), através da figura do mediador, a chegada dos brancos abriu novos espaços políticos no contexto xinguano tradicional3. Daí que o “conhecimento das coisas do branco” pode não responder apenas a uma genérica e abstrata percepção estratégica “dos índios” da necessidade de conhecê-las para melhor defender “sua sociedade”. Também isso; ou, ao menos, isso acaba sendo uma “razão prática” (Sahlins, 1976) que arremata estímulos para os quais as categorias nativas já ofereciam uma conformação, ainda que estas mesmas categorias não sejam, como diz Terence Turner (1993: 63), um produto cultural inteiramente endógeno (na verdade, o difícil é delimitar o que é endógeno e o que é exógeno...). Assim é que os jovens alto-xinguanos do sexo masculino sentem especial atração por um contato mais íntimo e curioso com as coisas de um mundo que agora está ali, a algumas horas rio acima da sua aldeia. Subir para Canarana, com efeito, parece ser algo plenamente integrado às perspectivas quotidianas e, arriscaria dizer, mesmo das expectativas de experiência de vida dos jovens xinguanos. É o caso, por exemplo, de Palá Kuikuro, jovem, adulto (já passou pelo rito de furação de orelhas), solteiro, que saiu em 1997 de sua aldeia, Afukuri, uma nova aldeia Kuikuro, mais ao sul, no antigo território tradicional dos Kuikuro, mais próxima de Canarana. Palá saiu de Afukuri sem saber português, “chamado” pelo cunhado, funcionário que recebe uma remuneração pela Funai, e que, com isso, aluga uma casa em Canarana. É o cunhado que lhe provê um pequeno auxílio financeiro, com o qual pode permanecer em Canarana e cursar o supletivo no período noturno da Escola Norberto Schwantes, onde os alunos indígenas são

3

Infelizmente a etnografia alto-xinguana não oferece registros mais extensos e detalhados a respeito da figura do mediador, mas, de maneira geral, tende a reconhecê-lo como um elemento relevante no jogo de relações. Bruna Franchetto oferece um relato etnográfico sobre o velho líder Kuikuro Nahu (Franchetto, 1986: 17 e ss.). Em comunicação pessoal, a antropóloga sublinhou-me que Nahu, apesar da posição destacada e do desempenho de funções características da chefia, não é detentor do status hereditário de chefia alto-xinguano (anetü), o que reforça a tese dos “novos espaços políticos” abertos pelos brancos e a relevância das funções de mediação.

Capítulo 5

101

reconhecidos pelas professoras como aplicados e inteligentes4. Palá tenciona estudar e aperfeiçoar-se na área de saúde. Sua pretensão é um dia poder tornar-se o monitor de saúde da aldeia. Já foi sondado pelos assessores do ISA, que querem arregimentá-lo como mais um dos potenciais “professores” do Parque. Palá prefere ficar em Canarana para “aprender mais” ao invés de deslocar-se para as etapas periódicas do curso de formação de professores do ISA, dentro do Parque, o que o faria perder suas aulas do supletivo. Os índios, à sua maneira, descobriram o valor do “diploma”. É ele que facilita o ingresso numa função remunerada, seja através da Funai, seja através da cada vez mais esperada (e em certa medida também verosímil) possibilidade de contratação pelas prefeituras locais como professor. A remuneração e a possibilidade de, por meio dela, prover o ingresso na aldeia, através de seu grupo de parentesco, de bens industrializados, torna quaisquer funções que vislumbrem a alternativa de apresentarem-se como “postos de trabalho” dentro da aldeia extremamente atraentes. Elas são o sucedâneo, em termos de uma divisão do trabalho “emprestada” dos brancos, das funções de mediação, desempenhadas desde os primeiros contatos permanentes com os caraíbas “no tempo de Orlando”. Há quinze anos atrás, Bruna Franchetto confrontava a percepção da escrita (pelos Kuikuro, e diante dela, pesquisadora) com a percepção da gravação da fala em fita magnética e concluía que esta última suscitava o reconhecimento do perigo de tornar a fala privada acessível ao “circuito semipúblico da fofoca e do controle social” (Franchetto, 1984a: 16), enquanto que a escrita (ou, mais especificamente, os registros da antropóloga dos discursos cerimoniais), por seu lado, pela sua propriedade de fixação gráfica da fala e sua reprodutibilidade, era quase uma ameaça à autoridade dos detentores do conhecimento da arte verbal e suas técnicas mnemônicas. Eu diria que hoje a escrita provavelmente já passa por um reconhecimento que a torna similar àquela da gravação magnética descrito por Franchetto. No pátio central da aldeia Tanguro (espaço público por excelência), em meio a uma reunião de homens, saquei meu bloco de notas e iniciei alguns apontamentos (que, por acaso, não estavam diretamente relacionados com o que se passava naquele 4

Não há qualquer forma de conceituação mais precisa, por parte dos professores da Escola de Suplência de Canarana, sobre a possível especificidade de seus alunos indígenas. Por serem poucos, eles apenas engrossam o considerável efetivo dos regionais e migrantes mais recentes que buscam o curso supletivo.

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102

instante). Incontinenti, Manuá saiu de onde estava, sentou-se a meu lado e perguntou: “Ricardo, o que é que você está escrevendo aí?” Essa definitiva “perda da inocência” diante da escrita parece sinalizar também a sua potencial vulgarização. Já não se trata mais da situação dialógica de uma entrevista confiada particularmente (em que se usa um gravador) e sob os termos diretos da pessoalidade privada. Trata-se agora do reconhecimento da realização de um registro que se faz a despeito da direta inter-pessoalidade, de um estar-sendo-observado, frente ao qual se requer uma co-participação (saber o que está sendo escrito). Aquela vulgarização da escrita a que apontei acima parece modular-se por diferentes níveis de percepção da sua “transparência”, correlatos à sua acessibilidade como técnica. Havia levado a Tanguro o primeiro livro da Profa Ellen Basso sobre os Kalapalo, em inglês, com dados de seus trabalhos de campo da década de 60 e muitas fotos. Havia uma curiosidade generalizada pelo livro, mas as reações diante dele, ou, digamos assim, as “curiosidades específicas” eram variáveis. Aos velhos interessava tão exclusivamente as fotos, sobre as quais dissertavam às vezes longamente aos circundantes. O livro, antes mesmo de poder vir a ser uma observação disponível sobre eles próprios, oferecia, através das fotografias, uma oportunidade diante da qual eles se colocavam como sujeitos, e do alto da sua irrefutável sabedoria, ensinavam aos mais jovens, como aliás lhes cabia fazer. Aos demais adultos que não tinham tido qualquer aprendizado da escrita (a maioria da população), a observação do livro era silenciosa, curiosa, mas direcionada também apenas às fotos, onde reconheciam este ou aquele fotografado. Pouco lhes importava todo o restante. Aos mais jovens que já tinham tido um contato mesmo que precário com a alfabetização, entretanto, interessavam as fotos e o que se dizia delas, o conteúdo do que, por minha interferência, descobriram ser as legendas, que pediam que eu traduzisse (e pedia-se cada vez mais intensamente à medida em que o observador era mais escolarizado). Note-se que isso só ocorria quando os velhos não estavam presentes. Nessa situação então, a minha aptidão em traduzir legendas era objeto do mais reticente desprezo. Sikü, um jovem que se alfebetizou na aldeia e estava então cursando a 8a série no Colégio La Salle, em São Carlos, interior de São Paulo, tinha curiosidade pelo próprio conteúdo escrito do livro, pedindo-me que eu lhe traduzisse do inglês trechos extensos de alguns capítulos, sobre os quais eu lhe enunciara (a seu pedido) o título e o sumário do conteúdo.

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103

Vivências concretas em torno da escrita tendem a desmistificá-la progressivamente

enquanto

técnica.

No

capítulo

anterior

referi-me

brevemente a Loike, hoje um dos jovens líderes de Tanguro. Vivera desde muito pequeno fora do Xingu, entre os Bakairi e os Nambikwara e frequentara também colégios regulares, atingindo o segundo grau (ensino médio) profissionalizante. Da. Kalu, sua mãe, me relatou que, quando voltou aos Kalapalo, ele falava “feeeio” a língua da aldeia  falar bem a própria língua é, como nos mostra Bruna Franchetto (1986), um diacrítico essencial das identidades grupais , “mas ele... [Da Kalu faz gesto de quem escreve]... que nem você. Aí pessoal diz nome de tudo. Ele aprende.” Esses três pequenos episódios que descrevi  não que eu queira elaborar uma etnografia episódica...  pretendem apontar para uma inelutável relação não apenas com a escrita como tecnologia, mas do seu lugar, que progressivamente se define, frente ao conhecimento e às relações sociais. Qual dos dois tem uma relação determinante sobre o outro é uma velha polêmica5, que persistirá como polêmica enquanto as certezas acerca desses mesmos termos não forem relativizadas e enquanto se abstrair os contextos e suas dinâmicas situacionais. Reconheço, entretanto, que é uma polêmica da qual se deve se aproximar por partes, e a primeira delas, creio, é o cuidado de não identificar a escrita como um artefato (ou uma tecnologia) universal ou universalizável; de que a percepção cultural da escrita para alguns grupos sociais pode estar congenitamente associada a outra língua que não a sua e que, portanto, a apropriação da escrita diz respeito antes à apropriação do conhecimento alheio que à apropriação de uma tecnologia universal. A percepção da escola como fonte de letramento no Alto Xingu originou-se, parece-me inequívoco, com a busca pelo “deciframento” do branco, com o qual as relações sociais tinham que inexoravelmente dar conta. O que , de outra parte, parece igualmente relevante é que a experiência xinguana do contato esteve sempre marcada pela presença do aparato administrativo do Parque, o quotidiano dos Postos Indígenas, a alocação de postos de trabalho para os índios (basicamente do Médio Xingu) e as negociações da Direção em torno dos bens industrializados introduzidos através do suporte administrativo. Parece-me sintomático, portanto, que esta 5

Para uma abordagem retrospectiva dessa polêmica ver, p. ex., Havelock (1991), Halverson (1992), Street (1993) e Olson (1994).

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experiência, no que diz respeito à demanda pela alfabetização, tenha produzido também a apreensão de uma indissociabilidade entre escrita e escola, na qual esta última é o veículo para a primeira, e aquilo que os brancos podem igualmente prover, tal qual as demais coisas que lhe são próprias. Se a escrita é, por excelência, coisa de branco, a melhor escola seria, por dedução, a do branco6. A procura pela escolarização fez com que, inicialmente, diante da incerta escola do Posto Leonardo, muitos líderes enviassem seus filhos para estudar em Brasília, patrocinados pela Funai. Marina Kahn noticia que em 1989 quatro alto-xinguanos estudavam em Brasília (dois Waurá, um Trumai, um Mehinaku e um Kamayurá), “no supletivo de 1o grau de noite e mora[va]m num hotel do Núcleo Bandeirante, cidade satélite da capital” (Kahn, 1991b: 475). Em 1996 Darci Secchi, numa observação em que não declara diretamente fontes, aventa a então existência de “duas dezenas” de estudantes xinguanos em Brasília (Secchi, 1996: 24). Verdadeira ou não esta cifra, a permanência de estudantes indígenas do Alto em Brasília não parece ser um fenômeno desdenhável. Ao início do período letivo de 1999, segundo informações do setor de educação da Administração Regional Xingu (ADRXingu) da Funai, a presença de estudantes alto-xinguanos em Brasília constituia-se de 6 Kamayurá, oriundos da aldeia Ipavu, o maior grupo Kamayurá e exatamente aquele que tem sistematicamente recusado a participação no projeto de educação do ISA, como anotarei mais adiante Entretanto,

essa

saída

de

jovens

para

Brasília

torna-se

progressivamente mal vista por boa parte das lideranças. A perda do controle da socialização desses jovens, ao mesmo tempo em que são expostos ao contato com a bebida e a relações sociais pouco aprováveis para os altoxinguanos, faz com que, na versão contundente do líder Aritana (Yawalapiti), eles voltem “estragados”. A viabilização de Canarana como opção torna-se

6

Bruna Franchetto, sem identificar o contexto como sendo o xinguano, sublinha uma curiosa argumentação dos índios mais velhos na discussão em torno de um projeto que teria por objetivo culminar na implantação de uma escola “diferenciada e específica”, registrando que, para aqueles, o projeto em discussão seria “inócuo em termos de instrumentalizar os índios para se tornarem ‘iguais’ aos brancos e, ao mesmo tempo, perigoso por se intrometer na vida tradicional.” (Franchetto, 1994: 417), e acrescenta: “O apelo dos velhos era claro e confuso, direto e contraditório: queremos o saber do branco sem perder tempo, queremos o saber do branco e para isso serve o espaço/tempo da escola, algo como ‘a escola enquanto instituição de branco dentro do espaço/tempo da aldeia é diferenciada e específica; mas nós não queremos um saber escolar diferenciado e específico’. Aí, diferenciado e específico se tornavam sinônimos de inferior, discriminatório.” (ibidem: 418).

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assim, além de mais acessível, também uma solução oportuna. Nesse caso, porém, a permanência em Canarana deve ser subsidiada pela garantia da disponibilidade de uma casa de parentes, como é o caso de Palá, ou, na ausência dessa, no uso da própria casa de apoio da Funai. O ano de 1995 marcou um súbito crescimento da procura do curso supletivo em Canarana pelos jovens xinguanos. Se em 1994 os registros da Escola de Suplência, que funciona no período noturno na Escola Norberto Schwantes, assinalavam apenas a presença de um rapaz e uma moça, ambos Yawalapiti, a presença de alunos xinguanos, a partir do primeiro semestre de 1995, apresenta a seguinte progressão: Período

Grupo indígena

Distribuição Masc

1995

1o sem 2o sem

1996

1o sem

o

2 sem 1997

o

1 sem o

2 sem

1998

1o sem

Yawalapiti Trumai Yawalapiti Trumai Kuikuro Kamayurá Yawalapiti Trumai Kamayurá Mehinaku Yawalapiti Trumai Yawalapiti Trumai Yawalapiti Kalapalo Kuikuro Trumai Kamayurá Yawalapiti Kalapalo Kuikuro Trumai Waurá Kamayurá

2 1 1 2 2 1 1 2 1 1

Total

Fem 2 5 2

8 2

7 1

1 1 2 1 1 1

2 3 1

1 1 2 1 1 2 2 1

6 3

1 13

A Escola de Suplência registrou também, nos dois semestres de 1996, a matrícula de 28 alunos Waurá, que permaneceram na aldeia. Lá ministrou as aulas durante dois anos o professor Antônio Arôca, um baiano dito descendente de Pataxó, que sucedeu a outro professor (branco) que lá permaneceu igual período. Eram remunerados pela Prefeitura de Gaúcha do Norte. Arôca levava os registros dos alunos para a Escola de Suplência em

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106

Canarana. Em 1997 Arôca foi professor da escola de Tanguro, vinculado profissionalmente ao Município de Querência. Em 1998 passou para o Posto Leonardo, onde sua esposa tornara-se enfermeira. No início de 1997 a Escola Norberto Schwantes registrou o ingresso dos primeiros alunos indígenas no seu curso regular (ciclo básico). Eram duas crianças Trumai, cuja família passara a viver em Canarana. No ano seguinte viriam a se matricular mais duas crianças Trumai. Mesmo que o núcleo urbano de Canarana esteja muito mais próximo da Terra Indígena Pimentel Barbosa (Xavante) que do Xingu, a presença de alunos indígenas nas escolas de Canarana é restrita aos xinguanos. O município mantém uma escola na aldeia Água Branca, daquela Terra Indígena, que funciona com cerca de 140 alunos nas quatro primeiras séries do ciclo básico. A procura dos Xavante pela 5a série (iniciada em 1997) é então direcionada para a escola do Distrito de Serra Dourada. Também o Município de Paranatinga fez funcionar, em 1997, uma escola no Posto de Vigilância Batovi, que atendia a 21 Waurá (provavelmente os alunos deixados por Arôca). Foi mais uma experiência transitória, pois a professora (branca) transferiu-se para um distrito próximo e a escola foi fechada. O começo da década de 90 marca, ao que tudo indica, o início do funcionamento das primeiras escolas no Alto conduzidas por professores índios; antes mesmo da chegada de um projeto educacional patrocinado por uma ONG, e por iniciativa ou pela gerência direta de agentes indígenas. A especificidade desses dois casos deve ser notada. Como observarei a seguir, num caso esboça-se a primeira manifestação de uma especialização técnica, na figura de um conhecedor, ao qual lhe foi reconhecida a “competência” e o qual torna-se, desta feita, um mediador inter-cultural (ver capítulo 7); no outro a expectativa dos índios de uma escola de branco foi resolvida através da figura de um mediador treinado e com o suporte de uma instituição de ensino. Aisanain Paltu é um Kamayurá da aldeia Morená, a menor das duas aldeias daquele povo. Em 1989 ele era um daqueles estudantes xinguanos em Brasília, citados por Marina Kahn. Dos 13 aos 15 anos Paltu estudou na escola do Posto Leonardo. Com a saída da professora e a conseqüente paralização da escola, Paltu procurou o apoio de um primo, funcionário da

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Funai, que financiou sua ida a Brasília e conseguiu da Funai um pequeno custeio que então existia sob a designação de “auxílio para estudantes indígenas fora da aldeia”, popularizado com o nome de “bolsa de estudos da Funai”. Instalados num hotel, posteriormente numa chácara da cidade satélite de Guará e posteriormente num outro apartamento, os colegas de supletivo de Paltu viriam a tornar-se: um, chefe de posto de vigilância; outro, chefe do Posto Indígena Diauarum; outro ainda, cinegrafista; e um outro estuda ainda para tornar-se agente de saúde. A passagem de Paltu por Brasília não deixa de ser marcada por matizes de certo sacrifício pessoal e pelo reconhecimento da quase que completa dependência da Funai. Ao rememorar sua nostalgia da aldeia à época, Paltu assinala uma de suas lembranças: “No Xingu não faltava comida”7. Voltando para a aldeia em 1990, Paltu propos-se a alfabetizar as crianças.

Graças

às

boas

relações

que

os

Kamayurá historicamente

procuraram manter com a FAB, como uma contraposição à aliança Yawalapiti - irmãos Villas Bôas (Menezes Bastos, 1995: 252-253)8, conseguiram de um brigadeiro a construção através da FAB de um prédio de alvenaria e a doação do mobiliário escolar que daria origem à primeira escola Kamayurá. Paltu buscava o apoio de material escolar junto à Funai, realizando para isso reiteradas viagens a Brasília. A volta era custeada pela Funai, mas a ida ele próprio custeava, vendendo seu artesanato. Com a chegada do projeto de educação (inicialmente pela Associação Vida e Ambiente, posteriormente pelo ISA), Paltu pôde contar com outra fonte de provimento de subsídios para sua escola, participando do curso de formação de professores daquele projeto desde sua segunda etapa intensiva. A par de tornar-se um mediador, o voluntarismo de Paltu o torna também uma espécie de militante cultural9. Papel que se complementa com o interesse cuidadoso e investigativo pelo conhecimento tradicional kamayurá, tornando-o

uma

espécie

de

“conservador

esclarecido”,

um

“guardião

7

Como observo no capítulo 7, uma constante nas narrativas de vida dos mediadores é o destaque dado às adversidades enfrentadas nos seus périplos (iniciáticos) pelo mundo dos brancos. 8

Cito Rafael Menezes Bastos: “Os Kamayurá, então, passam a se direcionar cada vez mais para a órbita da FAB  que fica sozinha no Jacaré , projeto que aparece em sua visão como de apropriação e controle de recursos, paralelo ao Yawalapiti com relação ao Posto Leonardo.” 9

Não disponho de dados etnográficos para circunstanciar precisamente o lugar social ocupado por Paltu no seu grupo, mas, conforme exponho no capítulo 7, o voluntarismo a que me refiro pode, eventualmente, ser um recurso de legitimação do seu papel de mediador.

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minucioso dos usos e ritos antigos”, como usa dizer Lévi-Strauss (1959: 15), comentando a autobiografia do índio Hopi Don Talayesva. Mas o caráter instrumental do conhecimento “escolar” também lhe é evidente: “Eu penso assim, né:... Meu futuro é assim:... Eu tava pensando... assim, né: Toda vez que eu dá aula, eu converso com os alunos, eu falo assim: Hoje em dia agora os branco tá em volta da nossa terra, não é mais naquela época dos nossos avós, os brancos ficava longe. Eles não conheciam, né. Eu converso assim: Hoje em dia agora, os madeireiros, os fazendeiros tá cercando a nossa reserva. Vocês têm que estudar para defender a nossa área. Eu falo assim pra eles, né. Eu tô ensinando esses meus aluno aí, explicando como é... como os branco vive na cidade, né. Eu conta tudo. Eu conheço tudo... cidade também. Eu morei lá, eu conheço bem... Eu falo mais prá eles sobre o dinheiro. Se um dia alguém vai vim aí [e] vocês vai vender artesanato, vocês vai sofrer muito... Porque pra verder as coisas eles vai precisar saber o preço das coisas, né, porque o negócio desse dinheiro aí é muito complicado também, tem que saber essa... multiplicação, soma, adição. Eu penso assim. Eu converso com eles, né. Aí alguns alunos que tá interressado, eles vão, né: Eles acredita eu. ‘Ah, então tá bom, eu vou estudar’... Hoje em dia agora ninguém tá acreditando eu ainda. ‘Só quando eu ficar grande’... aí que pessoal vai me procurar: Eles fala assim, pessoal lá, meus alunos.”

Por volta de 1990 os Kalapalo de Tanguro conheceram o Professor Maurício Carlos Ruggiero, ex-professor da Unicamp, diretor do Colégio La Salle de São Carlos, que então estava a passeio e encontrava-se pescando na fazenda de um amigo, limítrofe ao Parque. A boa conversação estendeu-se para a solicitação de ajuda, por parte dos líderes Kalapalo, com relação à questão escolar. Interessava-lhes que o Colégio viesse a implantar uma “unidade” em Tanguro. Procurando adotar o que lhe parecia uma posição mais cuidadosa e ao mesmo tempo uma solução exeqüível, o Professor Maurício argumentou que não poderia manter um professor do Colégio na aldeia e sugeriu que se encontrasse alguém que pudesse lá permanecer, ou seja, um índio capaz de desempenhar as funções de professor, passando o Colégio então a patrocinar a escola, que ficaria aos cuidados da própria aldeia. Para conseguir alguém que tivesse condições de assumir a posição, as lideranças de Tanguro foram em busca de Loike, que então se encontrava em Vilhena (RO - divisa com Mato Grosso), trabalhando como professor entre os

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Nambikwara e vinculado profissionalmente ao Município de Comodoro (MT), tendo sido contactado pelo irmão, residente em Tanguro10. A partir de 1993 consolida-se o auxílio do Colégio La Salle, com a contratação de Loike. A ela seguiu-se, mais adiante, a criação de uma associação civil, do povo de Tanguro, presidida por Loike, a Associação Jakui, com o objetivo de servir de suporte legal para as relações conveniadas entre a escola de Tanguro e o Colégio La Salle, particularmente no que diz respeito aos auxílios materiais e repasses patrimoniais por parte do La Salle. Se então já desde aquele ano equipes do La Salle passam a visitar esporadicamente a aldeia, será a partir de 1996, por pedido dos próprios Kalapalo, que o Colégio passará a enviar periodicamente (a cada semestre) uma equipe de professores para uma visita de alguns dias, com o intuito de ministrar oficinas intensivas de Português. O Colégio contribui também com o fornecimento de material escolar em generosas quantidades. O incremento das relações extendeu-se para outros suportes infra-estruturais, como a doação de dois barcos e um motor de popa à aldeia, as visitas contínuas a São Carlos, com o apoio do Colégio, para tratamentos médicos e odontológicos e, por fim, o envio de alguns estudantes já alfabetizados para incrementar seus estudos no próprio Colégio, entre eles os que serão formados para ser os futuros professores, monitores de saúde e técnicos em motores. Loike procurou formar seus próprios sucessores à medida em que passava a tratar de projetos mais amplos, que incluíam seu conhecimento técnico-profissional em agropecuária, além do seu progressivo envolvimento com outras atividades de mediação, buscando também a captação de outros professores já preparados. Por essa razão, Antônio Arôca, há pouco citado, foi contactado para ministrar aulas de Português e Matemática, o interesse central dos alunos de Tanguro (ou, ao menos, no que diz respeito aos mais jovens, aquilo que seus pais esperam que aprendam). Outros dois alunos, Tahugaki e Sikü, ambos adultos, jovens e ainda solteiros, passaram a ser formados para tornarem-se os futuros professores. Sikü, alfabetizado na própria aldeia, foi estudar no La Salle, onde, com estudos intensivos, alcançou a 8a série do ciclo básico. Fez estágios na Santa Casa de São Carlos, adquiriu conhecimentos básicos de enfermagem e saúde preventiva e hoje percorre a aldeia, todos os dias, acompanhando as 10

O relato pessoal de Loike sobre sua história de vida encontra-se no capítulo 7.

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condições de saúde dos habitantes de Tanguro. Tahugaki, que passou a freqüentar o curso do ISA, permaneceu hesitante quanto à sua opção pela “carreira” de professor. Sobre ele pesa uma grande expectativa de vir a tornarse um líder da aldeia, já que herdou o status de chefia (anetü) e teve sua casa mais recente construída com os marcos do üeguhi, que pode ser glosado como “pau de cacique”, ou seja, as vigas de um tronco rugoso e escurecido que ladeiam a porta principal da casa e que são um dos sinais de distinção de uma “casa de cacique”. Tahugaki abandonou por algum tempo suas atividades de professor, retornando a elas no início de 1999. Ao que pude constatar de comentários locais confluentes, a hesitação de Tahugaki em assumir as atividades docentes que já vinha realizando a título de treinamento deveu-se a que as suas expectativas de obter uma remuneração imediata viram-se frustradas. À diferença das demais escolas implantadas nas aldeias por indução do projeto de educação do ISA, em Tanguro o professor efetivo (Loike) e os demais professores eventuais (Arôca ou a equipe do La Salle) já são formados e já tiveram larga experiência prévia, o que inclui o manuseio de currículos, programas, métodos e sua confrontação com parâmetros formais do sistema nacional de educação escolar, o que permite a constituição de uma escola mais próxima do padrão de “escola do branco”, alfabetizadora e transmissora de técnicas básicas (de matemática, por exemplo), conforme, aliás, as expectativas das próprias lideranças indígenas locais. Por outro lado, a maioria das demais escolas das aldeias são conduzidas por professores que antes do curso do ISA possuíam, quando muito, conhecimentos apenas rudimentares da escrita. Na verdade muitos deles expressam como forte motivação para a realização do curso a possibilidade de aprender melhor (ou, em alguns casos, tão simplesmente aprender) o português. Aliando a isso a pouca definição das propostas curriculares (o que é, aliás, coerente com a expectativa de uma escola “diferenciada e específica”), as escolas nas aldeias adquirem um caráter fundamentalmente experimental, como uma espécie de agregado em torno da figura

dos

professores,

muitos

dos

quais

ressentindo-se

do

pouco

conhecimento da língua portuguesa, exatamente aquilo que as lideranças esperam que ensinem. Nesse caso, portanto (e paradoxalmente), a experiência do projeto do ISA procura consolidar, através da figura do professor índio, o

Capítulo 5

111

embrião de uma escola que, ao mesmo tempo em que nasce de uma demanda local, conforma-se um tanto quanto a despeito das expectativas sobre ela, sobrepondo o experimento do “específico e diferenciado” a um difuso anseio pelo cânone. Iniciado em 1994, o projeto de formação de professores indígenas do Parque foi encaminhado pela Fundação Mata Virgem à Rainforest Foundation da Noruega (financiadora) e executado, nos seus primeiros dois anos, pela Associação Vida e Ambiente (AVA). Com a extinção desta, foi incorporado pelo Instituto Socioambiental em 1996. O cronograma inicial de realização do projeto previa seu financiamento até 1997, o que compeliu o ISA a entrar em negociações com o Governo de Mato Grosso na busca do custeio da sua continuidade até 1999. Ademais, o interesse do ISA de dotar o projeto de um reconhecimento oficial, que permita a concessão de diplomas de magistério aos índios, a partir da aprovação de sua proposta curricular pelo Conselho de Educação daquele Estado, fez com que se negociasse sua agregação ao similar Projeto Tucum, da Secretaria de Educação de Mato Grosso, constituindo-se como

quinto

polo

daquele

projeto,

mas

sob

inteira

e

exclusiva

responsabilidade executiva do ISA. No que diz respeito ao seu funcionamento, o projeto do ISA atua em duas frentes11. Uma delas é a formação de professores indígenas; a outra, a consolidação de escolas nas aldeias. A formação desses professores concentra-se nas etapas de curso intensivas, realizadas durante um mês a cada semestre, geralmente em maio e outubro, onde são ministrados módulos curriculares, de maneira a se perfazer um rol de disciplinas, classificadas como de formação geral (Língua Indígena, Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciências, Artes) e de formação profissional (Lingüística, Metodologia de Alfabetização, Metodologia de Ensino em Língua Portuguesa, Literatura, Antropologia, Metodologia e Prática de Ensino, Metodologia de Pesquisa, Fundamentos de Educação Escolar Indígena, Educação Física e Psicologia Educacional) (ISA, 1997). Ao que pude constatar confrontando a programação prevista com o que foi realizado na etapa intensiva que acompanhei, essas compartimentações são apenas tenuemente operantes. Cada etapa intensiva de curso é, na 11

análise.

O projeto não é formalmente especificado nesses termos. Esta inferência diz respeito à minha

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112

prática, dividida em três módulos, em que agentes do ISA e consultores externos vinculados vão-se revezando com suas disciplinas (Português, Língua Indígena, Matemática, Geografia, História etc). Esses instrutores são transportados até o Xingu e ministram seus módulos no Posto Diauarum (para os professores em formação do Médio Xingu) e no Posto Pavuru, próximo à aldeia Moygu, dos Ikpeng (para os professores em formação do Alto e os professores Ikpeng). Ao início e ao término do curso os professores indígenas são igualmente transportados entre suas aldeias e os locais do curso, com o custeio realizado com os recursos do projeto. A partir de 1997 o ISA implantou com regularidade uma programação de acompanhamento dos professores nas aldeias, efetivada através de visitas semestrais de alguns dias, realizadas por seus assessores. Os professores indígenas foram indicados ou têm o assentimento expresso de suas comunidades para a realização do curso. No Alto Xingu a maioria dos professores concentra-se na faixa etária entre 18 e 24 anos, metade deles é casada e 70 % deles provêm da rede de parentesco de líderes12. No Alto Xingu (e entre os alunos do curso do ISA) só se contam professoras oriundas do povo Trumai. Dos demais povos todos os professores são do sexo masculino. Apenas dois grupos alto-xinguanos não enviam (ou, ao menos, não enviaram durante a maior parte do tempo de realização do projeto) professores ao curso do ISA, os Yawalapiti e os Kamayurá da aldeia Ipavu, que durante muito tempo contestaram e se opuseram ao projeto13. O efetivo que freqüenta essas etapas é variável, mas a franca maioria dele é estável. A par da formação de professores, a equipe do ISA instruiu, mediou e incentivou a constituição de ao menos dez escolas no Alto, além das que já existiam. Por escola entenda-se o espaço institucional que presume a existência de um professor. Fisicamente, essas escolas ainda não precisaram a sua inserção. Funcionam ou em espaços próprios (parte ou não do círculo de casas da aldeia), ou em espaços indefinidos e polivalentes ou mesmo na 12

Esse levantamento toma por amostra a etapa intensiva de curso que acompanhei em outubro de

1997. 13

É possível supor, apesar de não ter podido constatar durante a pesquisa (senão residualmente e sem possibilidade de confrontação de fontes), que haja disputas locais e faccionais envolvidas nessa oposição, em conformidade com a dinâmica das relações alto-xinguanas que tenho exposto. Uma dessas disputas parece estar vinculada a uma reivindicação não atendida dos Yawalapiti de que as etapas de curso para os professores do Alto se realizassem no Posto Leonardo e não no Pavuru.

Capítulo 5

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casa do próprio professor, o que aponta para uma presença ainda residual na economia simbólico-espacial e, portanto, no espaço social xinguano (cf. Viveiros de Castro, 1977: Gregor, 1977). No que diz respeito às escolas das aldeias, o apoio mais incisivo da equipe do ISA, com visitas periódicas de assessoria, está em constituir uma formalização documental e metodológica da atividade escolar: o conhecimento pelos professores de “métodos didáticos” expressos na elaboração de diários de classe, planos de aula, listas de alunos e tudo aquilo que auxilie a subsistência dessas escolas frente às demandas do sistema oficial de educação, ao qual começam a ser efetivamente vinculadas. A regulamentação (ou regularização oficial) das escolas das aldeias foi realizada inicialmente através dos municípios da área. No dia 20 de junho de 1997 realizou-se em Canarana um encontro de professores indígenas, lideranças, representantes do ISA e autoridades municipais visando negociar essa regulamentação. Como resultado, foram regularizadas: pelo Município de Gaúcha do Norte, a Escola Indígena de Primeiro Grau (EIPG) Kuikuro, a EIPG Waurá, a EIPG Aweti e a EIPG Mehinaku (não vinculadas ao projeto do ISA foram também regularizadas a EIPG Leonardo Villas Bôas, dos Yawalapiti, e a EIPG Ipavu, dos Kamayurá); pelo Município de Querência, a EIPG Matipu (e, não vinculada ao projeto do ISA, a EIPG Tanguro); pelo Município de Feliz Natal, a EIPG Boa Esperança (Trumai). Um novo processo de negociação implementado pelo ISA junto ao Governo do Estado levou à estadualização de parte das escolas a partir de 1999. Dessa forma, os esforços do projeto de educação escolar indígena do ISA possibilitaram a abertura, ao menos incipiente, de espaços cuja significação e dinâmica de inserção vão depender, doravante, do contexto social específico de cada grupo local. O que interliga tais espaços é a figura do professor, cujo lugar social ainda está em negociação nos jogos xinguanos de relações. A chegada da escolarização extensiva no Alto foi, portanto, precedida da constituição de um quadro, antes de tudo, de potenciais funcionários remuneráveis, os professores. E a sua subsistência enquanto quadro estará, a curto prazo, subordinada ao desempenho formal das suas atribuições aos olhos das autoridades das secretarias de educação às quais cada um deles estará vinculado. O que acontecerá em cada aldeia ainda é imprevisível. Detenho-me apenas, a seguir, na exploração de um caso particular que me permitiu uma observação mais densa, o da aldeia Tanguro. Ela também não é

Capítulo 5

114

generalizável, apenas permite intuir certos mecanismos que, como será feito mais adiante, podem ser confrontados com outras experiências.







Assim como os Kalapalo de Tanguro travaram conhecimento, através dos seus vizinhos, com o Profo Maurício, do Colégio La Salle, também outros visitantes oriundos da cidade de São Carlos entraram em contato com os xinguanos por meio da mesma rede de relações. Em janeiro de 1998 um grupo de três desses visitantes, que pescavam numa fazenda fronteiriça, foram contactados pelos Kalapalo da aldeia de Aifa. Identificadas as referências

pessoais

que

proveriam

uma

maior

aproximação,

foram

convidados para ir até a aldeia. Falastrões, e provavelmente percebendo-se alvo de alguma expectativa por parte de seus anfitriões (como parte da troca em que a hospitalidade xinguana também fazia parte), os três convidados procuraram impressionar estes últimos declinando (e também fabulando) suas relações pessoais na cidade sede do colégio que patrocinava a escola e outros apoios (tidos como cobiçáveis) à aldeia “irmã”. Não apenas procuraram se auto-promover como também tecer comentários suspicazes sobre a real capacidade de apoio do Colégio La Salle, os inacreditáveis dividendos que o Profo Maurício estaria auferindo por conta da imagem emprestada por seus amigos de Tanguro, e a insinuação do logro que, por fim, estes estariam sendo vítimas. As lideranças de Aifa poderiam, por hipótese, ter confabulado com as lideranças do outro otomo para que algum esforço viesse a ser feito visando apurar, se assim fosse desejável, aquelas insinuações. Não é essa, todavia, a lógica alto-xinguana desses jogos quando se tem, ubíquo, o mecanismo da “inveja” (ver nota 12 do capítulo anterior). Aqueles visitantes ofereciam algo que, afinal, poderia ser empenhado como moeda de troca: informações oriundas de uma fonte, a princípio, não contestável. Acionado o circuito da “fofoca” (cf. Gregor, 1977: cap. 5), os parentes de Aifa trataram de levar até o pessoal de Tanguro as notícias do grande engodo que se constituíam a escola e as relações com os “amigos” do La Salle. O resultado é que a freqüência à escola foi esvaziada, e as lideranças de Tanguro por pouco não se viram em

Capítulo 5

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maus lençóis para recompor, diante de seu “pessoal”, os vínculos com o Profo Maurício e o pessoal do La Salle. Esse não foi o único episódio que observei em que a “inveja”, como parte das disputas faccionais, se manifesta entre os dois grupos Kalapalo, particularmente quando Tanguro se vê na situação privilegiada de ser aquinhoada com o apoio do La Salle, enquanto Aifa, por seu turno, parece bastante carente de insumos importantes. Fricções fazem parte do jogo, e situações mais tensas necessitam eventualmente ser administradas pelas lideranças, reverberando inclusive na possibilidade de acusações de feitiçaria. Nessa dinâmica da “inveja” e da disputa por vantagens, não se deve afastar a hipótese de que inclusive os antropólogos, que realizam algo aparentemente inócuo, por ela sejamos açambarcados, e que muitas vezes só sejamos capazes de reconhecer as especificidades com as quais “fizemos parte do jogo” depois de muito tempo e por casualidades muito especiais, como por exemplo, num outro contexto etnográfico, relata Natan Wachtel (1992) com dramática acuidade14. Por ocasião do episódio narrado, Loike encontrava-se relativamente afastado das atividades do dia-a-dia da escola, cuidando apenas da sua coordenação e ocupando-se de outras questões que diziam respeito à sua posição como mediador privilegiado. Passava boa parte do tempo em Canarana e deixava a docência a cargo de seus auxiliares, Sikü e Tahugaki. Preocupado com o esvaziamento da escola, o Profo Maurício solicitou a Loike que reassumisse direta e pessoalmente as aulas, o que ocorreu a partir de então. Quando retornei a Tanguro em julho de 1998 boa parte da “clientela” escolar tinha se recomposto. Algumas crianças (6 a 8), uns tantos “adolescentes” e um rapaz mais velho. Não há qualquer expectativa ou reconhecimento de obrigação em ir às aulas. Particularmente em julho, mês da estação seca, período de festividades interpovos, numa época em que a aldeia estava sendo reconstruída um pouco acima do seu local original, quando a manhã é ocupada também por tarefas na construção das casas 14

Trata-se do retorno de Wachtel a Chipaya, em que ele relata como descobriu, por uma casualidade dramática, como sempre esteve envolvido nas disputas faccionais dos Uru e nunca o soubera. Em termos metodológicos, não vejo outra alternativa senão reconhecer, como o autor, que “pela escolha dos informantes, pelas amizades que faz, pelas questões que coloca, o etnólogo transforma-se em ator e não pode fugir de um compromisso que lhe é imposto apesar de suas denegações. Não lhe resta outra coisa senão assumir aquilo que ele é para os outros” (Wachtel, 1992: 47).

Capítulo 5

116

(incluindo ocasiões em que todo o grupo de homens da aldeia é mobilizado coletivamente), quando a colheita de mandioca é sempre farta (e para a qual comparecem as meninas), quando novas roças estão sendo abertas, a ida às aulas é inconstante, mesmo que elas ocorram apenas entre 7:30 e 10:30 da manhã. Houve ocasião em que Loike deu aula para apenas um aluno. O horário de início das aulas é marcado pelo momento da ida do professor para a escola, e facilmente identificado pelos alunos, mesmo que esse momento não ocorra com uma pontualidade regular. A escola foi construída cerca de 100m para fora do círculo de casas da aldeia antiga, na direção axial da casa de Loike. Próximo a ela, também cerca de 100m do círculo da aldeia, um pouco mais próximo de um porto menos utilizado no Culuene e em meio a um pequizal, foi construída uma espécie de bangalô circular sem paredes, próximo ao feitio das construções do Médio Xingu, que serve como abrigo para o pessoal do La Salle, quando visitam a aldeia. A escola segue também o modelo das construções do Médio Xingu, ou seja, planta elipsóide, paredes verticais de madeira, teto de sapê, destacado das paredes e a diferença de que, ao invés de paredes inteiriças (do chão ao teto), o fechamento chega apenas a cerca de 1,20m do solo, com vigas verticais de madeira, cobertas por fora de barro ressecado. Assim a escola é uma construção toda vazada, mais bem um largo avarandado, arejado e com uma única

entrada.



dentro

estão

dispostas

algumas

grandes

mesas

retangulares, com bancos contínuos de ambos os lados. No segmento central da construção, na parede oposta à porta, pende um quadro negro. As

aulas

seguem

semanalmente

uma

certa

compartimentação

curricular estabelecida por Loike, basicamente, Português, Matemática e Língua Indígena. As crianças mais novas vão à escola estimuladas pelos pais; as mais velhas são aquelas que consolidaram uma relação específica com a escrita. Só se encontram meninas entre os mais novos. Após a primeira menstruação e o correspondente período de reclusão a maioria delas se casa, passando a cuidar dos afazeres domésticos e deixando a escola. Também se pode dizer que é a partir do rito de iniciação que os rapazes passam a racionalizar e dar conteúdo à sua relação com a escola/escrita. Como se sabe pela

farta

literatura

domesticidade/interioridade

etnográfica feminina

xinguana, é

a

o

oposto

da

publicidade/exterioridade

masculina, o que inclui lidar com o mundo dos brancos. Parece-me

Capítulo 5

117

demasiado especulativo inferir algum significado do aprendizado escolar para as crianças xinguanas. Genericamente talvez se possa dizer que ele faz parte de forma muito tênue do rol de coisas a aprender. Se se pode falar de um aprendizado estrito-senso, como parte do contexto de construção social da pessoa  que conforma o que seria para alguns autores a “educação indígena” ( p. ex., Fernandes (1964), Schaden (1974) e Melià (1979) )  esse aprendizado é marcado por uma espécie de “compartimentação de tarefas” (aprender a usar o arco, aprender a construir casa, aprender a fazer um cesto etc)15, e é algo que se presume que se aprenda por inteiro. Alguém pode construir mal uma casa, mas não se dirá que ele não sabe muito bem construir uma casa. Parece ter um sentido irremediavelmente estranho para os alto-xinguanos que se passe muito tempo, e mesmo a vida toda, “aprendendo” algo. Sempre que se aprende, aprende-se algo em sua inteireza, e o conhecedor torna-se assim socialmente responsável pelo que conhece. Poder-se-ia objetar que o processo de “formação” de um pajé (xamã), por exemplo, não seguiria esse padrão, já que ele poderia sempre se “aperfeiçoar”. Entretanto, quando alguém atinge a possibilidade de intercurso com um determinado espírito, iniciado por um pajé “já feito”, ele efetivamente se tornou um pajé, mesmo que só esteja habilitado a lidar com os casos em que ocorra a ingerência daquele espírito conhecido. Tornar-se um “pajé grande” significa, além de obter uma respeitável reputação, “aprender” muitos espíritos  na verdade, ambas as coisas estão inextrincavelmente ligadas. O domínio dos signos gráficos poderia ser então reconhecido como mais uma daquelas “tarefas”, e não, essencialmente, a porta de um “conhecimento” ainda a se constituir. Desse ponto de vista “socio-educacional”, a escrita não seria, portanto, como a reconhecemos, um meio, uma ferramenta, uma tecnologia, mas antes de tudo um fim: “o conhecimento” da escrita. E como todos os outros conhecimentos específicos, da feitura de cestos, arcos e cocares a técnicas de luta cerimonial, narrativas orais, discursos cerimoniais e espíritos, passível de ser socialmente localizado, ou se se preferir, distribuído. Sinteticamente, apresento aqui a hipótese de que o que nós chamamos de aprendizado estaria, para os alto-xinguanos, indissociado das possibilidades sociais da pessoa, ou seja, de acordo com o seu lugar social, coletiva e individualmente fabricado, e com o momento de sua vida.

15

A expressão “compartimentação de tarefas” é meramente aproximativa, precária e de valor

Capítulo 5

118

Por seu turno, o reconhecimento social da maturidade, posterior ao período de reclusão (que carrega todo um aporte de ensinamentos que os pais transmitem aos filhos), é um marco a partir do qual uma certa base de conhecimentos individuais é dada como constituída. Nesse momento, a escola só parece continuar fazendo sentido para aqueles que a vislumbram como um rumo qualquer de possibilidades, e aí se incluem basicamente os homens (jovens) que têm algum interesse em buscar ocupar um lugar de mediação ou instrumentalizar-se de alguma forma para lidar melhor com os brancos, tal como aqueles futuros adultos citados por Paltu, hoje seus alunos. Se em nossa sociedade o padrão consagrado e sacralizado de conhecimento,

cultivo

pessoal

(de

onde,

por

latinismos

etimológicos,

chegamos a uma das acepções de cultura) e erudição são homólogos ao domínio e ao refinamento da escrita, com tudo o que ela permite à especulação lógica e conceitual (Goody, 1977), o mesmo não se pode dizer de uma sociedade onde o conhecimento é concebido segundo outras referências. Daí que a assertiva demasiado categórica de que a escrita é tão simplesmente uma tecnologia (Lévy, 1990) deva ser relativizada. A assunção daquela nossa particular

homologia

em

nada

seria

automática

para

esses

novos

alfabetizandos, constituindo-se esta constatação o tour de force da superação do etnocentrismo para os nossos bem intencionados educadores que se põem a lidar com índios crendo levar-lhes a revelação da Boa-Nova. Falando em termos de traduções interculturais, que é o que cabe aos antropólogos fazer, se no caso dessas sociedades que experimentam o contato com o letramento, o desnível entre escrita e conhecimento é evidente (e se não fosse pelos tropeços messiânicos de alguns dos nossos pedagogos, eu diria óbvio), o lugar social da incipiente escola, por seu turno, também nada tem a ver com aquilo que muitos concebemos sob a forma naturalizada de uma Pedagogia. A escola, como instituição, é posta e vista mais nitidamente num lugar que nós designaríamos como político. No presente caso etnográfico, o fato de o seu funcionamento ser, por exemplo, tão vulnerável ao circuito da fofoca, ao mecanismo da inveja e às disputas faccionais parece-me tão simplesmente uma evidência disso.

estritamente heurístico.

Capítulo 5

119







Pelo que se conhece da experiência salesiana com índios no Brasil (cf., p. ex., Menezes, 1985), a presença do Colégio La Salle junto aos Kalapalo de Tanguro poderia ser vista como, no mínimo, suspeita e temerária, no que tange ao respeito às especificidades nativas. O caso Tanguro, no entanto, apresenta particularidades. Em primeiro lugar o assim chamado (pela administração do La Salle) “Projeto de Educação Kalapalo-Xingu” é mais que tudo uma iniciativa alentada pela dedicação pessoal do diretor do Colégio, Profo Maurício, e que foi “encampada” pela instituição. Em nada se parece, nos termos de uma racionalidade técnica, com o projeto do ISA. A bem dizer, o termo “projeto” talvez só esteja aí por empréstimo e por sisudez formalizante. Não há objetivos pré-definidos, identificados como metas alcançáveis através de um determinado percurso, com o emprego de meios programáveis e num decurso de tempo específico. Faltar-lhe-ia, por assim dizer, a ossatura básica do planejamento. Por um acaso, isso acaba por contornar a concepção projetista e empresarial do indigenismo profissional, tal como descrito no capítulo anterior, e a preeminência da racionalidade que lhe é inerente. O “projeto” do La Salle, à medida em que se concebe como uma relação sempre circunstanciada de apoio, e posta em movimento a partir das demandas das lideranças de Tanguro, assume as feições de um vínculo pretendidamente duradouro, reiteradamente negociável, fortemente pessoalizado e com um caráter, da parte lassalista, voluntarista, afetivo e filantrópico, mais próximo ao aspecto ético da noção católica de “pastoral” que a qualquer racionalidade objetivista. De outra parte, a motivação para um cuidado escrupuloso com o que se presume ser a autonomia de decisão dos índios é inspirada por um conceito sempre reiterado pelo pessoal do La Salle e que, como lembra Henri Favre (1996: 117), veio à tona a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965), o de “inculturação”. Se



a

Conferência

Episcopal

de

Puebla

(1979)

procurou

redimensionar a orientação da ação evangelizadora católica junto às populações indígenas do continente no sentido do respeito aos seus valores e suas demandas, apontando para aquilo que alguns teólogos chamariam de “indigenização da Igreja” (cf. Suess, 1983; van Kessel, 1989), seria a Conferência Episcopal de São Domingos (1992) que viria a precisar a noção de

Capítulo 5

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“inculturação” enquanto programa e no contexto de uma assim chamada “nova

evangelização”,

propugnando

o

diálogo

de

uma

espiritualidade

universalista (sic!) e defendendo, na prática, a promoção dos valores culturais nativos e as identidades dos povos (CELAM, 1992)16. Essas referências, pelo que pude observar, são , ao menos, um recurso de legitimação mobilizado para argumentar, em parte, o significado e o lugar da ação de uma instituição de ensino católica junto aos índios e diante das linhas doutrinais da Igreja, mas não remete para uma articulação deliberada com outras atividades missionárias ou com a política missionária indigenista coordenada pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário). Como historiciza Cláudia Menezes (1985), a constituição da ordem salesiana esteve vinculada a um apostolado educacional e escolar. A junção dessa herança simbólica, assumida como argumento justificador, com o papel pessoal desempenhado pelo Profo Maurício é o que parece conformar o significado do apoio lassalista ao pessoal de Tanguro. Mesmo que Loike seja remunerado pelo Colégio La Salle, não há qualquer forma de interferência da direção do Colégio sobre planejamentos, currículos, conteúdos, cargas horárias e avaliações. Além de aconselhamentos mais

estritamente

pontuais,

as

questões

que

digam

respeito

ao

funcionamento da escola são debatidas diretamente com as lideranças da aldeia17. A única iniciativa de “orientação pedagógica” a partir de um padrão 16

Numa “mensagem aos indígenas”, de 13 de outubro de 1992, o Papa João Paulo II declara: “A Igreja anima os indígenas a conservarem e promoverem, com legítimo orgulho, a cultura de seus povos: as sãs tradições e costumes, o idioma e os valores próprios. Ao defender vossa identidade, não só exerceis um direito, mas cumpris também o dever de transmitir vossa cultura às gerações vindouras, enriquecendo, deste modo, toda a sociedade. Esta dimensão cultural, em ordem à evangelização será uma das prioridades da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, que se realiza em Santo Domingo.” (apud. CELAM, 1992: 252, grifo meu). 17

Sobre esta postura, cito o comentário de Greg Urban a respeito da mudança de orientação na linha “pastoral” da Igreja Católica: “Enquanto que, antes, muito do trabalho [dos missionários católicos] era direcionado para a transformação das culturas nativas  ensinando português aos índios e estimulando-os a esquecer sua própria língua e costumes  agora, muitos, mas nem todos, os missionários católicos estão tentando com igual fervor operar uma ‘revitalização cultural’. Assim, mesmo que por oitenta anos os conservadores salesianos tenham se esforçado por extinguir a vida cerimonial dos Bororo, hoje, ativos esforços são empreendidos na tentativa de fazer os Bororo retomarem a realização de suas cerimônias tradicionais” (Urban: 1985: 18, tradução minha). Deixo por ora fora de questão a cogitação acerca de uma eventual obsessão culturalista simplificadora e objetificadora por parte do ativismo missionário católico. Ainda nesse caso, as tentativas não-intervenientes dos lassalistas têm algo de inusitado, talvez por não incorporarem-se diretamente a um programa missionário como o do CIMI. De outra parte, um certo temor pela censura que a “concorrência” das ONG’s poderia fazer sobre uma eventual catequização de índios, faz com que sejam adotadas atitudes extremadamente zelosas por parte da direção do La Salle, como por exemplo a proibição categórica de que os índios eventualmente estudantes em São Carlos assistam às aulas de Religião do Colégio.

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pré-estabelecido e com a transmissão de métodos e técnicas foi aquela que partiu do ISA, como parte de seu projeto educacional, sob o título de “assessoria aos professores indígenas”, realizada na aldeia junto a outros professores Karib, entre 8 e 20 de junho de 1996. A escola foi recentemente regularizada (como anotei mais acima) pelo Município de Querência, mas a possibilidade realização do percurso até a sede do município (bem menos dotada e atraente  para os índios  que Canarana) tornou-se regular apenas mais recentemente ainda. Até o momento em que redijo este trabalho a escola foi visitada por uma autoridade da Secretaria Municipal de Educação apenas uma vez. Entretanto, os Kalapalo de Tanguro, através de Loike, já negociam com o Município a construção de uma escola de alvenaria na aldeia, com a disposição arquitetônica similar à atual, acrescida de dois compartimentos fechados, para evitar que a sede da escola precise ser reconstruída a cada três ou quatro anos. Sua localização planejada na aldeia nova é similar à atual: para fora do círculo de casas. O programa curricular implantado por Loike, a partir de sua experiência com outras escolas indígenas (Nambikwara) é essencialmente alfabetizador, utilizando como base os referenciais gráfico-fonéticos da língua nativa, mas ministrando concomitantemente o ensino do português. Neste caso, Tanguro encontra-se numa posição distinta das demais aldeias do Alto. Sua relativa proximidade de Canarana, as visitas do pessoal do La Salle e suas oficinas intensivas e mesmo o deslocamento eventual de alguns índios (o que inclui crianças) à sede do Colégio, em São Carlos, tornam-na mais exposta ao português. A maioria das crianças da aldeia é capaz de entender e de se fazer entender com os falantes dessa língua. As aulas, entretanto, são todas ministradas em língua nativa. Uma vez alfabetizados, os alunos seguem assistindo eventualmente as aulas ou não, até que seu ingresso na maturidade defina seu interesse mais preciso pela educação formal e o conhecimento escrito dos brancos. O Colégio La Salle, de outra parte, tem oferecido a possibilidade de que vários jovens da aldeia passem períodos em São Carlos, alojados no colégio, complementando seus estudos ou aprendendo um ofício técnico específico. Para estes, o aprendizado escolar é o passe para um certo cosmopolitismo (Hannerz, 1992: 252-255). Luís, um dos caciques principais de Tanguro, enviou seu filho e sua filha mais velhos para São Carlos, onde

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permaneceram estudando durante um ano, retornando à aldeia para cumprir suas respectivas reclusões. Em contrapartida, o apoio do Colégio a Tanguro é capitalizado na forma de imagem institucional, veiculada nas publicações do próprio

Colégio

e

no

seu

“site”

na

Internet

(http://www.colegiodiocesano.com.br). A par disso, os vínculos externos do La Salle e do Profo Maurício foram, ao menos uma vez, mobilizados para divulgar a imagem da aldeia. Em 1997 a EPTV de São Carlos (subsidiária da emissora sediada em Campinas) produziu dois programas sobre os Kalapalo de Tanguro, que foram exibidos aos sábados na série Terra da Gente, transmitida pela Rede Globo na programação regional. Como mediador da negociação da produção, Loike, estrategicamente, pediu não um pagamento específico mas a divulgação das questões em torno do impacto da ocupação das fronteiras do Parque, os problemas de saúde enfrentados pela aldeia e a indicação de um canal de contato com a Associação Jakui. Da parte das lideranças de Tanguro, está em jogo, dessa forma, na sua

relação

com

o

La Salle, mais

que

a simples

manutenção

do

funcionamento de um aparato pedagógico-escolar. Ela é o eixo vertebral a partir do qual se articula um conjunto de relações associadas, com esses “amigos” e com o mundo dos brancos, e que se desdobra igualmente, como logo a seguir identificarei, como um conjunto de relações e legitimações atinentes ao espaço social da própria aldeia. Poder-se-ia dizer assim, numa fórmula generalizante, que a escola é um momento político que se desdobra, tornando-se inapropriado, de outra parte, dizer que esse desdobramento ocorra para além de uma presumida função específica, já que essa própria “função específica” ocupa um lugar, como antes sugeri, igualmente político18. Numa outra chave analítica, poder-se-ia reconhecer, como Mauss (1924), que, coerente com uma dinâmica de troca, a apropriação da escola invoca um fenômeno que se manifesta como um fato social total. O entendimento do lugar social da escola no contexto da aldeia, para ser inteiramente precisado, deve evocar ainda algumas outras referências.

18

A categoria analítica “política” oferece a possibilidade de se processar diretamente uma tradução antropológica através do remetimento à nossa categorização “ocidental” de política, tal como sugeri logo acima. Quanto ao fato de tratar-se de uma categoria analítica, remeto-me a Swartz, Turner e Tuden (1966) para identificá-la, tal como a conceituação dos autores, como uma manifestação que tem por característica essencial alcançar o grupo social na totalidade das suas dimensões.

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Duas categorias alto-xinguanas imputadas a pessoas (ou seres) parecem,

no

meu

entender,

ser

fundamentais

para

discernir

nexos

relacionais: a categoria “dono” (oto) e a categoria “chefe” (anetü). Consagrada na literatura etnográfica, a categoria (assim traduzida pelos próprios índios) “dono”19 poderia também ser glosada como “patrono” (semanticamente mais precisa em português20) e denota uma relação entre pessoas (ou seres21) e coisas (latu sensu), em que o primeiro exerce a função de mediador no acesso à segunda, concebida esta como um recurso passível de ser socialmente apropriado para algum fim (do mais trivial ao mais elaboradamente cerimonial). Ademais o “dono” é sempre um sujeito particular, ou, no sentido inverso, diz-se que têm “dono” as coisas (o que inclui capacidades e recursos simbólicos) que cabem a um sujeito específico. Elas são tratadas como privadas mas socialmente disponíveis. Essa disponibilidade pode se realizar por cessão ou pelo simples exercício da capacidade. O “dono” de uma casa cede-a para todos que nela habitam; os “donos” de uma reza e de uma estória realizam-nas quando solicitados (e são retribuídos por isso). No caso do “dono” de uma cerimônia, a situação é mediatizada. O “dono” da cerimônia provê a possibilidade de que ela seja realizada, e a forma convencional de fazê-lo é “pagar” (termo nativo) aos participantes, ou seja, distribuir alimento às pessoas que a realizarão (em outras palavras, toda a aldeia). Viveiros de Castro (1978: 38) sugere que essa categoria expressa uma dupla relação: de substância e de representação. Entretanto, ela precisa subsistir num contexto dinâmico, ou seja, o “dono” só existe para prover o acesso iminente e sempre atualizado à coisa, ou seja ainda, num contexto que pode ser denominado pela expressão que numa outra referência utilizou Patrick Menget (1993b: 320), um “sistema de transações”. E o que creio ser específico na dinâmica desse sistema de transações é que persiste aí uma relação assimétrica de subordinação da coisa ao sujeito. Talvez por isso é que a glosa nativa insista em nominar esta categoria em português pelo termo “dono”. Assim, os Kalapalo referem-se ao “principal” de uma casa como o ngüne oto; o que conhece os cantos de uma determinada cerimônia como o egi oto; o recitador 19

Karib-xinguano: oto; bakairi: sodo; mehinaku: wekehe; yawalapiti: wököti; kamayurá: -yat;

aweti: -át. 20 21

Na literatura etnográfica xinguana em língua inglesa a tradução utilizada é sponsor.

Como anota Eduardo Viveiros de Castro (1978: 38), apenas humanos e espíritos, ou animais espiritualizados, podem ser “donos” de algo.

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de uma estória como o akinha oto; o responsável pela festa da taquara como o taquara oto; o espírito “residente” de uma lagoa como o ipa oto; o espírito que provê o “princípio ativo” de um “remédio” como o i22 oto; o cacique principal da aldeia como o ete oto. Ao iniciar minhas pesquisas em campo, por sugestão de minha orientadora, procurei explorar a hipótese de que a escrita pudesse vir a ser apropriada nos termos desse sistema de transações e que o professor índio viesse a ser portanto um escrita oto ou coisa que o valha. Todavia, o que pude constatar no caso de Tanguro é que essa relação não se apresenta, à primeira vista, como pertinente. Passível de ser aprendida por quem o queira, a escrita não exigiria um mediador (e gestor) socialmente especificado, melhor dizendo, ela não parece estar de acordo com a lógica das coisas que possuem “dono”, ou seja, não é objetificada, substantivada, como um recurso que se deva prover de forma especializada e do qual se possa dispor  o que talvez seria aplicável para o caso de escribas, mas não de professores. Na medida em que a experiência do contato assim o impôs, a escrita é sucedâneo da escola, esta sim uma instituição a ser apropriada. Ela é que é o objeto visível de negociação. Nesse momento é que a categoria “chefe” se torna um operador relevante. Patrick Menget (1993a) reputa este “chefe” como, antes de tudo, um “titular”, ou seja, o portador de um título, sem que haja uma função associada claramente definida. Com efeito, a categoria anetü associa-se antes de mais nada a um status masculino transmitido hereditariamente e indicador de um líder potencial. O caráter dessa liderança expressa-se (em alguns momentos privilegiados) como cerimonial, mandatícia (o chefe como representante e agenciador das relações externas ao grupo local) e regulatório (no sentido de funcionar como harmonizador de relações no grupo). O domínio por excelência do exercício da chefia é o discursivo. Além de seus atributos de fala cerimonial, o chefe é sobretudo aquele que é consultado, que tem uma voz proeminente na dinâmica das deliberações decisórias, que envolvem os adultos da aldeia. Entretando, como acima se observou, o status de chefia é um indicativo de potencial e não uma função adquirida por nascimento. Herdado também por linha materna, um percentual considerável de homens de cada aldeia possui o status de anetü, mas apenas poucos tornam-se chefes 22

Tal como nos casos indicados na errata inicial, a grafia correta dessa palavra é feita com um til sobre o “i”, coisa que o editor de texto aqui utilizado não me permite.

Capítulo 5

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efetivos, ou antes, homens eminentes de grupos faccionais23. Ainda que haja um critério genealógico de verificação da “qualidade” do status de anetü para cada indivíduo, esse critério apenas não basta24. Um chefe efetivo se constitui socialmente, e sobre essa constituição incidem reconhecimento, expectativa social e postulação pessoal (pois há também os portadores de status de anetü que se recusam a tornar-se chefes). Para além do status herdado, um chefe faz-se a si mesmo tanto quanto “é feito” pelo próprio grupo local. É a verificação e o reconhecimento social dos seus atributos pessoais que o avalizam para ser um portador de confiabilidade, por isso o chefe potencial deve observar com extremado rigor as prescrições que dizem respeito à fabricação social da pessoa, já que, como chefe efetivo, ele encarnará as virtudes cardeais do ethos xinguano (Menget, 1993a: 68). Assim, há várias etapas nesse processo de reconhecimento da liderança. Após tornar-se adulto há um momento de reconhecimento pelo grupo das suas condições para tornar-se um chefe. Essa é a condição em que, em Tanguro, se encontra, por exemplo, Tahugaki, tal como registrei anteriormente. A partir daí ser-lhe-á investida uma expectativa social, que se consagrará (ou não) no momento do seu pleno reconhecimento como chefe, quando tiver idade para isso, ou seja, no momento de uma sucessão geracional de líderes anteriores. Durante este período

o

chefe

potencial

deverá

amealhar

prestígio,

especialidades

cerimoniais e uma rede parental consistente, que lhe permita urdir alianças e concentrar uma considerável capacidade produtiva para fazer frente às suas obrigações distributivas. Assim, os anetão são aqueles sobre os quais se deposita uma certa expectativa de responsabilidade social, num complexo jogo simbólico de reciprocidade (Lévi-Strauss, 1955: 299-300). Por essa razão é que inicialmente indiquei ser anetü uma categoria que distingue um nexo relacional. Entretanto, diferentemente da categoria oto, anetü não vincula pessoas a coisas, mas pessoas a pessoas (ou, mais genericamente, seres a seres).

23

Observa Menget: “O jogo das facções orienta-se essencialmente para a possibilidade, no que diz respeito a um titular, de fazê-lo aceder à condição de representante cerimonial da aldeia. Duas , ou no máximo três, facções disputam entre si a proeminência e, portanto, a representação da aldeia. Com efeito, uma facção não é muito mais que algo como uma máquina para alçar seu líder à chefia e mantê-la.” (Menget, 1993a: 69, tradução minha). 24

Basicamente, distingue-se um chefe “grande” (anetü ekugu) pela exclusividade da transmissão paterna do status, enquanto um chefe “pequeno” (anetü intsonho) é aquele que herdou o status por linha materna.

Capítulo 5

126

Há algo mais que deve ser sublinhado: Em conformidade com o ethos xinguano, o chefe como exemplarmente generoso é, por excelência, um distribuidor. E o que teria iso tudo a ver com a escola? A questão diz respeito à experiência concreta da sua apropriação e o contexto que informa o lugar relativo que pode ocupar uma instituição alienígena que seria, em certa medida, para os índios, insondável. Creio que não seria necessário dizer que, se a escola sempre foi coisa de branco, como instituição e como conceito, não haveria como ter para ela um lugar prévio, platonicamente ideal, no mundo indígena. Os jogos se processam sobre aproximações concretas; são os tais riscos empíricos de que nos fala Sahlins (1985), aos quais as categorias nativas estão sempre expostas. No caso de Tanguro, o processo de implantação de uma escola constituiu-se no bojo de um conjunto de relações associadas, com os “amigos” do La Salle. Tratava-se do estabelecimento de um canal com o mundo dos brancos sob a rubrica da reciprocidade positiva, tal como observei ao final do capítulo 3, em que esse canal apresenta-se como provedor de recursos que, sendo apropriados, devem ser socialmente distribuídos. Dessa forma, assim como a presidência de uma associação civil torna-se um atributo de chefia, como explanei no capítulo anterior, também a escola em Tanguro tornou-se-o. De outra parte, outro fato concreto veio a concorrer para isso. Ao retornar a seu povo original, levado pelo irmão e chamado pelas lideranças de Tanguro, Loike trazia consigo o status de anetü de que era portador, como neto de um grande cacique Nahukwá, do período logo anterior ao contato com a Expedição Roncador-Xingu (Murphy e Quain (1955: 12) dão notícia do cacique Aloike e de sua importância). Assumir a posição relevante de mediador e a “direção” da escola principiou por efetivar o processo de reconhecimento e expectativa social em torno da sua liderança. A consolidação da escola, da Associação Jakui, das relações com o La Salle e das demais atividades de mediação de Loike são correlatas com o processo de consolidação da sua liderança, ou, ao menos, da posição social (prestigiada no Alto Xingu, como antes sugeri) de mediador social. Outro elemento deve ainda ser acrescido. Num sistema de parentesco de categorias cognáticas (Viveiros de Castro, 1977: 49), onde a ascendência pode ser retraçada de forma flexível e onde o reconhecimento de brothers-inlaw e fathers-in-law definem-se genericamente sobre uma base geracional, os vínculos parentais poder ser explicitados e enfatizados estrategicamente de maneira a reforçar laços que informem o pertencimento do sujeito (ego) a um

Capítulo 5

127

otomo. Assim é que, compostos estes vínculos, Loike pode referir-se ao cacique principal (o ete oto) Majuta, como seu pai e ao “chanceler” Luís (o cacique mais notável após Majuta) como seu irmão. A afirmação de sua liderança e o lugar estratégico que ocupa como captador de recursos distribuíveis funcionam também no sentido de operar uma capitalização de prestígio e o reforço da proeminência do seu grupo frente àquele de Kurikaré (ver capítulo anterior, p. 85). Assim, a escola interessaria também ao jogo faccional no próprio grupo local. De uma maneira geral pode-se dizer, portanto, que a escola em Tanguro (e creio que o mesmo processo possa genérica e tendencialmente ocorrer nos demais grupos alto-xinguanos) foi apropriada como um recurso, mas nesse caso específico (ao menos), mais do que uma coisa que tenha “dono”; trata-se efetivamente de um negócio de chefia, que diz respeito a um jogo político que se desdobra em muitas dimensões. Falar em apropriação da escrita em termos ideais e intelectivos pode, portanto, ser uma abstração que pouco informa sobre os nexos efetivos do jogo em que se encontra concretamente contextualizada. Nesse caso é aquilo que nós chamamos no senso comum de política  e, como observei (nota 18), acredito que também analiticamente essa categorização seja produtiva  é que está presente. Assim, pode-se seguramente repetir como Melià: “Na escrita, que poderia ser vista como mero recurso técnico, há sempre mais sociedade, história e política do que parece à primeira vista. Nunca será supérfluo recordar os contextos nos quais se apresentou a escrita em uma sociedade e os passos que se deram em sua adoção.” (Melià, 1996, tradução minha). Mais do que reiterar um confortável e aparente truísmo de que tudo é político, pretendi elucidar algo do conteúdo desse processo. Pouco se pode falar sobre (e mesmo a possibilidade de) uma adoção explícita da escrita. No caso xinguano, seu lugar parece ainda ser franca e imediatamente instrumental, o que coloca problemas sérios para as implacáveis boas intenções de uma pedagogia bilíngüe, cujos contornos ainda estão longe de ser precisados em termos significativos para as sociedades indígenas em que se a procura aplicar. Arriscaria,

agora

diante

dessas

observações,

uma

hipótese

seguramente herética diante do programa politicamente correto: A de que também o pressuposto programático e ideológico do bilingüismo não é mais

Capítulo 5

128

que outra dessas nossas abstrações intelectivas25. Daí também que não se teria como presumir qualquer escala temporal manipulável e administrável (por qualquer que seja o projeto de introdução de letramento), que possa tornar objetivo e exeqüível algo como “a introdução da escrita”. De outra forma, não estaríamos lidando, antes, reitero, com grandes abstrações? Se olharmos para a região andina, por exemplo, e supormos quatro séculos e meio de (relativo) letramento, que produziu, em tempos coloniais, cronistas indígenas do porte de Guaman Poma de Ayala e Garcilaso de La Vega  que, assim como outros, escreviam a partir de um modelo basicamente espanhol (cf. Adorno, 1982) , poderíamos nos perguntar por que ainda não se produziu uma literatura quechua ou aymara, malgrado o tímido exemplo moderno de um José María Arguedas. Por que os indígenas das terras altas se apropriaram de tantos elementos culturais hispânicos mas não da escrita?26 Para o norte andino (apesar de tratar-se de uma região marginal ao Tawantinsuyu), observam Joanne Rappaport e Thomas Cummins (Rappaport, 1990; Rappaport e Cummins, 1994) que contextos políticos informaram o lugar social da escrita, seu alcance, sua funcionalidade e sua irremediável hispanidade,

produzindo

práticas

literárias

restritas,

de

caráter

fundamentalmente legal, enquanto o que se poderia caracterizar como a transmissão de conhecimentos seguiu se operando através da base oral, produzindo aquilo que Rappaport (1987: 44). já havia chamado de uma “sociedade paraliterária”. Creio que em certa medida este é também o caso do guarani paraguaio. Valho-me de um belíssimo ensaio de Bartomeu Melià, que cometo o despudor de citar longamente: “Apesar de ter sido uma língua muito escrita e que possui séculos de escritura, o Guarani continua sendo considerada uma língua ágrafa. E é tratada como tal. Sua escrita não conta como escrita; não configura um ‘documento’. Devemos atribuir isso ao suposto bilingüísmo? O bilingüismo apóia a escrita em ambas as línguas ou trabalha contra uma delas? (...)

25

Remeto-me à citação de Ma Cândida D. M. Barros nas pp. 22 e 23 do Capítulo 2.

26

Ver, a esse propósito, p. ex., a sugestiva coletânea de ensaios de Martin Lienhard (1990).

Capítulo 5

129

O bilingüismo diglóssico não enfraquece automaticamente a variedade lingüística ‘baixa’, mas penso que de fato conspira contra sua escrita e sua leitura. As tentativas de construir uma ‘literatura’ guarani são, na realidade, patéticas e esforçadas, mas também desesperadoras. Está muito generalizada no Paraguai a opinião de que é muito difícil escrever em Guarani, tarefa que estaria reservada a uns poucos profissionais e ‘cultores’ da língua. (...) Podemos falar mais de uma sociedade de escritores guaranis do que de leitores de Guarani. Deve-se entender essa afirmação não no sentido de que há mais escritores reais que leitores potenciais, mas no sentido de que a identidade e a atividade dos primeiros está mais definida e é mais constante que a dos segundos. Uma sociedade de escrita não é necessariamente uma sociedade de leitura. E se bem o leitor necessite de um escritor  produtor  de textos,

o

contrário

não

é

verdadeiro:

o

escritor

não

postula

necessariamente o leitor. (...) Já não estamos com uma língua ágrafa, mas seguimos estando com uma língua analfabeta. (...) Em um bilingüismo radical, em que as duas línguas em contato conservam também suficiente liberdade e autonomia, uma delas pode encontrar no próprio estatuto de língua ágrafa uma exigência sempre renovada de oralidade que, ao fim, resulte em fator de criatividade comunicativa sem os efeitos danosos da submissão à (má) vontade dos escribas. (...) As línguas mantêm-se vivas porque têm motivos bastante alheios ao ofício da escrita para viver.” (Melià, 1997: 100-103).







Ao final da década de 50, e reverberando um longo percurso anterior de uma certa “memória discursiva” (como se usa dizer em Análise do Discurso), Darcy Ribeiro, como tantos outros, propalava uma constatação inexorável a respeito dos índios no Brasil, como eco de uma grande e ancestral tristeza dos trópicos: Vão desaparecer! Serão assimilados! É só uma questão

de

tempo.

Algumas

décadas

depois

não



os

índios

não

desapareceram como houve uma “reindianização” reivindicatória de grupos que recusam as sombras (ou os espectros) da história para reafirmarem-se e

Capítulo 5

130

reinventarem sua indianidade, num cômputo em que ano a ano aumenta o registro do número de povos indígenas existentes. A mesma tendência (ou, ironicamente, se poderia dizer “teimosia”) não se poderia verificar, por exemplo, com a oralidade básica das “culturas” indígenas? ou seja, não poderia vir a ocorrer uma sistemática recusa da apropriação integral da escrita pelas sociedades indígenas? Não estaríamos (o que inclui nossas políticas governamentais e não-governamentais) navegando sobre uma vaga de ilusões, no que diz respeito à escrita e à educação escolar para índios? Sem dúvida ainda há muito por se desdobrar, mas quaisquer indícios, parece-me, nos serão, ao menos, “bons para pensar”.

Capítulo 6

131

De volta aos Bakairi

“The very ways societies change have their own authenticity.” Marshall Sahlins

A fixação dos Bakairi  pois talvez esse seja o termo que sintetize seu percurso histórico entre a década de 20 e a década de 80 , e o que implicaria na sua definitiva apartação do contexto xinguano, começou a ser consumada com a instalação do Posto Indígena Simões Lopes. Não se trata tão simplesmente da implantação de um ponto de serviços ou estabelecimento de “apoio” (ou “proteção”, para usar a terminologia oficial) aos índios. É possível compreender a história do Posto Simões Lopes como a história de um empreendimento. A presença do Serviço de Proteção aos Índios entre os Bakairi teve um objetivo deliberadamente transformador. Em primeiro lugar, como anteriormente recordei, essa presença foi seletiva, e só se aplicou aos Bakairi do Paranatinga, em vista da perspectiva de açambarcamento das populações xinguanas e da expectativa colonizadora alimentada pelos interesses da política regional matogrossense  que viria a ser frustrada pelo projeto (nacionalmente embalado) de um Parque Indígena na bacia dos formadores do Xingu1. A aliança entre o Governo do Estado e os consórcios de colonização (ainda recentemente reeditada) que produziu o episódio do loteamento

do

Xingu

em

glebas

pode,

assim,

ser

prefigurada

no

empreendimento em que se constituiu o Posto Indígena Simões Lopes2. De outra parte, à abertura de uma fronteira fundiária correspondeu, como também antes observei, a transformação dos Bakairi em mão-de-obra produtiva. A introdução da pecuária e a domesticação e disciplinamento da mãode-obra bakairi fizeram do Posto Simões Lopes, antes de tudo e durante

1 2

Remeto-me ao artigo de Ma. Lúcia Pires Menezes (1991).

Uma pesquisa mais cuidadosa e sistemática poderia ser realizada a propósito dessas articulações regionais. Valho-me aqui apenas de uma inferência a posteriori, apoiada em tendências configuradas em larga escala, esboçada como uma interpretação genérica.

Capítulo 6

132

muitos anos, uma unidade produtiva. Às vésperas da chegada da expedição Roncador-Xingu

em terras

xinguanas um considerável aparato infra-

estrutural tinha sido implantado: rebanho, pastagens, edificações de porte, escola , hospital, uma nova sede do Posto e um aldeamento “urbanizado”3. Expressando-me de uma forma um tanto mais literária, diria que a partir desse momento, e sob o signo da fixação, os Bakairi foram condenados a se apartar do que viria a ser o Alto Xingu desde então. Observo, contudo, que a antinomia dos termos fixidez/mobilidade não pretende expressar uma categorização ontologicamente distintiva, enquanto destinos manifestos dos povos em questão. Tais termos servem antes como ferramentas conceituais que nos permitem uma aproximação da contextualização histórica, política e antropológica desses povos. Por ocasião da instalação do Posto, os embates em torno da autoridade legítima reverberariam sobre a definição do território, e o caso do cacique Antônio (ou Antoninho), o Kuikare, é, como antes indiquei, emblemático. Já em 1924 Antônio e o cacique Roberto Sancto (que havia se deslocado para o Paranatinga, vindo da região do Rio Novo) enviam uma correspondência ao Chefe da Inspetoria Regional do SPI, cujos termos são significativos: “...faço sciente a espetoria de Cuiabá que está passando aqui no dito Posto. Eu Capitão Antoninho e Capitão Roberto Joaquim dos Sancto e mais pessoal fais esta chexa [queixa?] que o empregado do Posto Bacahiris esta maltratando sobre ropa que estão, jamais nunca sobra pano e toda couza como sabão, fumo e todos que precisa não tem, mais é para Bacahiris até chumbo elle mandou vir la da espetoria diz que era prara matar Bacahiriz. O Indio Chingu tem de todos na mão delle. E assim fasso scienteo Governo da espetoria se não tirar elle de aqui nois vamos imbora daqui, ficar o indio Chingu no lugar, que o Sñr. Afoncio dis que o Posto é do Chingu, não é dos bacahiris, o Capitão Roberto não quer o Sñr. Afoncio aqui porque aqui não cervi 3

Ainda ao final dos anos 50, Maybury-Lewis assim o observaria: “O posto do SPI em Simões Lopes é um dos maiores e mais bem supridos de todo o Brasil. Tem sua própria pista de pouso. a casa do encarregado é muito bem construída, assim como as várias outras casas e dependências do Posto, que formam uma rua de aproximadamente 400 metros que desce em direção ao rio. Foi criado inicialmente para os Bakairi e há ainda uma aldeia destes índios ao lado do posto. São muito aculturados. Moram em casas de estilo neo-brasileiro, usam roupas como as dos brasileiros e comportam-se muito ao jeito dos sertanejos da região. Ainda falam bakairi entre si embora quase todos também falem português fluentemente. São eles os empregados do Posto, principalmente para a execução de tarefas que envolvem andar a cavalo ou cuidar de gado.” (Maybury-Lewis, 1967: 53).

Capítulo 6

133

para estar no encargo, ten vindo faltura não tem pra nois, pesso o Governo da espetoria uma orde que todos os empregados que vier aqui que não cervi e não respeitar nois podemos tirar pra fora do Posto. E assim receba recado do Capitão Antoninho e do Capitão Roberto Joaquim dos Sancto.” (apud Taukane, 1996: 78).

Daí por diante, a par de recrutar os Bakairi como peões de gado, gerenciar o uso de suas terras e apropriar-se dos resultados da produção, além de atá-los, na prática, ao controle pelos funcionários do Posto, a ação local do SPI implementaria uma política assimilacionista também no sentido de tentar alterar alguns referentes culturais em favor de certos padrões nacionais, e o uso da língua será o primeiro deles, com a tentativa de intimidar o uso da fala bakairi. A isso acresça-se a presença de missionários protestantes norte-americanos desde 1923 (Barros, 1992: 42), que exerceram, além de forte pressão para a adoção de certos padrões comportamentais, pressões também de constrangimento das práticas rituais. O resultado não parece ter sido, todavia, um processo de desagregação social, mas antes uma convivência contraditória com uma identidade cujos referenciais eram contínua e reiteradamente objetos de depreciação4, ainda que a rubrica de “índio” fosse sempre mobilizada pelo órgão indigenista, o que servia para legitimar e reiterar a tutela. Registra, por exemplo, Debra Picchi que a tradição das máscaras bakairi fora abandonada ao final dos anos 50 “como resultado da pressão das forças de assimilação que fazia os índios ficarem temerosos ou envergonhados frente a seus próprios marcadores culturais” (Picchi, 1987: 2, tradução minha)5. Em 1957, com uma pesquisa financiada pela Unesco e a partir de fontes majoritariamente oriundas do órgão tutor (SPI), Darcy Ribeiro elabora amplos quadros demonstrativos que pretendem indicar a evolução da “situação dos grupos indígenas brasileiros quanto ao grau de integração na sociedade nacional”. Para isso vale-se de cinco classificações que pretendem abarcar as possíveis descrições da “situação” de cada grupo: isolado, em 4

Um trabalho de Tânia Clemente de Souza (1991) na área de Análise do Discurso, a partir de material bakairi, nota até que ponto as tenazes dessa contradição inscrevem-se na materialidade da língua e perpassam as relações de um sujeito até mesmo com sua própria língua, frente à língua do branco. 5

Um artigo de James Wheatley, lingüista do Summer Institute of Linguistics, que esteve entre os Bakairi de 1962 a 1970, observa que um dos ritos do ciclo do kado (ele assim não o menciona) foi retomado num momento de crise agrícola em 1963 como uma exceção: “Alguns deles [Bakairi] expressaram a opinião de que, já que haviam adquirido a civilização, deveriam abandonar a prática de suas danças rituais” (Wheatley, 1966: 73).

Capítulo 6

134

contato intermitente, em contato permanente, integrado e extinto. Publicados posteriormente como um dos capítulos de Os índios e a civilização (1970), os resultados da pesquisa pontuam o enquadramento dos grupos indígenas em 1900 e em 1957. No primeiro momento, os Bakairi são subdivididos em três contingentes, dois deles abrangendo os xinguanos  os do Rio Curisevo ( dados como “isolados”) e os do Rio Batovi (“em contato intermitente”)  e o terceiro

referido

aos

Bakairi

originais

do

Paranatinga

(“em

contato

permanente”6). Em 1957 os Bakairi do Curisevo e do Batovi são enquadrados como “extintos” e os do Paranatinga como “integrados”. Esta última classificação seria aplicada aos “grupos que, tendo experimentado todas as compulsões referidas [ecológicas, econômicas e culturais correspondentes ao grau de integração] e conseguido sobreviver, chegaram ao século XX ilhados em meio à população nacional, à cuja vida econômica se haviam incorporado como reserva de mão-de-obra ou como produtores especializados de certos artigos para o comércio” (Ribeiro, 1970: 235). O esquematismo desse tipo de classificação, subsidiada por registros constituídos a partir de critérios oficiais do órgão tutor, acaba por opacificar elementos relevantes e induzir apreensões generalistas, quando não, préconformadas. Os Bakairi do Curisevo e do Batovi foram exatamente aqueles que repovoaram o núcleo do Paranatinga e aí amalgamaram uma nova unidade, cuja natureza compósita é até hoje reconhecida pelos Bakairi ao reconstituírem suas linhagens genealógicas e ao expressarem uma vaga nostalgia dos vínculos xinguanos7. Talvez o educador Darcy Ribeiro não esperasse que os Bakairi, que bem ou mal já estavam lendo, viessem um dia a ler seus livros. O atual cacique de Pakuera, Paulo Rondon, expressou-me em certa oportunidade a 6

Essa classificação de “contato permenente” é descrita como a que se aplica a grupos que “mantinham comunicação direta e permanente com grupos mais numerosos e mais diferenciados de representantes da civilização. Haviam perdido em grande parte a autonomia cultural, uma vez que se encontravam em completa dependência do fornecimento de artigos de metal, sal, medicamentos, panos e muitos outros produtos industriais. Conservavam, porém, os costumes tradicionais compatíveis com sua nova condição conquanto estes mesmos já se apresentassem profundamente modificados pelos efeitos cumulativos das compulsões ecológicas, econômicas e culturais correspondentes ao grau de integração.” (Ribeiro, 1970: 234, grifos meus). 7

Como expressa Edir Pina de Barros, “atualmente a maior parte da população que vive na Área Indígena Bakairi é descendente dos que migraram do Alto Xingu, região que hoje faz parte de sua história e de seu imaginário” (Barros, s. d.). A Terra Indígena Bakairi concentra hoje 74% de toda a população Bakairi (Taukane, 1996: 37). Os outros 26% concentram-se na Terra Indígena Santana, território daqueles a que me referi como os Bakairi do Rio Novo.

Capítulo 6

135

sua profunda contrariedade frente àquele atestado de extinção de parte do seu povo, como se, num ato classificatório, se pudesse decretar a extinção de índios. A bem da verdade, a reação do cacique Paulo tinha atrás de si também outra lembrança que um dia parece ter assombrado os Bakairi e que estaria diretamente vinculada à caracterização de “integrados” que, também segundo a classificação de Darcy Ribeiro, lhes caberia. Reporto-me diretamente ao relato de Edir Pina de Barros, redigido para um material de divulgação: “Em 1978,

perplexos,

os

Bakairí

tomaram

conhecimento

do

‘Projeto

de

Emancipação’. Por entenderem que seriam ‘alvos’ prediletos de tal política etnocida, por serem considerados ‘peões’ e ‘mansos’, decidiram não mais vender a sua força de trabalho nos estabelecimentos agro-pecuários. Na Área Indígena Bakairí, retomaram um ritual denominado Iakuigâde, com suas famosas máscaras entalhadas em madeira e convidaram autoridades da Funai, jornalistas (...), para assistirem a sua apresentação. Os jornalistas se encarregaram de divulgá-lo, a nível regional. Buscavam, dessa forma, afirmar a sua indianidade. Mas não só, pois o realizaram durante quatro anos consecutivos. No decorrer desse período, fizeram apresentações nos espaços públicos de Cuiabá, na Semana do Índio.” (Barros, 1989: 9)8. Reação semelhante à do cacique de Pakuera foi-me expressa por vários

Bakairi

mais

velhos,

que

faziam

questão

de

manifestar

sua

inconformidade com o que lhes parecia ser um lugar comum em um determinado momento para os brancos, qual seja, de que “o Bakairi não existia mais”. Apesar de não dispor de dados mais precisos para firmar uma conclusão consistente, creio ser verossímil a hipótese de que aquilo que E. P. de Barros narra como a perplexidade dos Bakairi diante do Projeto de Emancipação da política indigenista do final do Regime Militar representou um momento crítico do progressivo abandono dos Bakairi pela presença ainda residualmente assistencialista da Funai. Dessa forma, uma “afirmação” bakairi corresponderia a uma tomada de posição diante da marginalização que se vislumbrava com todo ímpeto na imagem do seu definitivo abandono e mesmo no risco de perda do seu território (como já ocorrera em 19609). Sobre 8

Da mesma forma, em 1979, por ocasião de uma viagem a Brasília, o líder Maiuca fornece informações para um artigo intitulado “Os Bakairi. Máscaras, Danças e Rituais”, publicado no vol.3 no 17 da Revista Atualidade Indígena, editada pela Assessoria de Comunicação Social da Funai. 9

Mais adiante comentarei a respeito.

Capítulo 6

136

o que não disponho de dados e que mereceria uma análise mais cuidadosa é precisamente como “sociologizar” essa tomada de posição, ou seja, como entendê-la como resultado de fatores socialmente conformados e não como resultado da operação de um transcendente extra-sociológico (de resto insondável) como, por exemplo, diria ironicamente, a repentina aparição na história de algo como um Bakaïrí Volksgeist. Na impossibilidade de, tal como creio ter feito no caso dos Kalapalo, prosseguir por essa via analítica, limitome a narrar alguns fatos, tal como tive acesso imediatamente, para poder subsidiar a inferência de um processo de afirmação identitária. Se em 1978 inicia-se um reflorescimento da atividade cerimonial, a partir daí os Bakairi retomam progressivamente os rituais do ciclo do kado10, culminando com a retomada do Sadyry em 1982 (Barros, 1992: 437), o ritual de furação de orelha (rito de passagem masculino), que tinha sido interrompido em 1960. Segundo me testemunharam os Bakairi esse seria o mais importante de seus rituais, investido agora da significação de um dos marcadores cruciais de identidade. Durante minha permanência na aldeia Pakuera, em agosto de 1998, tive a oportunidade de acompanhar o Sadyry, cerimônia que tem se repetido apenas a cada três ou mais anos. Adaptando a tradição às contingências atuais, vários jovens de mais idade (ou mesmo adultos de fato) estavam se submetendo ao ritual, uma vez que, por outras ingerências, tiveram que permanecer muito tempo fora da área. Para estes, reconstituia-se dessa forma um referencial simbólico de inclusividade social ritualmente marcada. O condutor da cerimônia  e o último que ainda lhe conhece os cantos , Armando Kutiaca, assim expressou-se com relação ao significado que ele lhe reconhecia: “Se a gente não furar a orelha, a gente não é índio (...) Isso daí serve para ser documento também. Sem isso daí o chefe grande pensa que a gente é branco, não acredita que é índio. Tem acontecido muito isso aí. Eu vejo quando (...) saiu pra Cuiabá, tendo alguma coisa aí na estrada, tem guarda fiscalizando, eles sempre olha na orelha mesmo, para ver se é índio ou se não é.”

Como sempre, não interessa tanto a veracidade objetiva do conteúdo do testemunho, mas o seu significado contextual.

10

Para uma descrição minuciosa desse ciclo ritual ver Barros (1992).

Capítulo 6

137

Em 1981 tem início na região o Programa Polonoroeste, que previa, até 1985, a pavimentação da BR-364, pelo qual o Banco Mundial exigia, como contrapartida do financiamento, ações governamentais visando a proteção e o apoio às populações indígenas da área de influência do projeto. Para a área Bakairi do Paranatinga foi destinado um Projeto de Desenvolvimento Comunitário, gerenciado pela Funai, visando o desenvolvimento agrícola através da mecanização da lavoura. Assim, foram entregues aos Bakairi tratores, caminhão, plantadeira, colheitadeira, carretas agrícolas e sementes de arroz. A configuração técnica do projeto sobre uma base monocultora (distinta, portanto, de qualquer padrão de subsistência), os problemas de produtividade

decorrente

das

alterações

ambientais

provocadas

pela

impropriedade da cultura programada (p. ex.: empobrecimento rápido e crítico do solo e infestações de gafanhotos) e o baixo preço obtido pela produção logo conduziram os Bakairi ao desencanto com aquela aventura empresarial agrícola11. Mais do que isso, produziu também um acirramento das tensões políticas internas. A partir de 1978 o cargo de “Capitão” passara a ser objeto claro de disputas faccionais (Barros, 1992: 139), passando a ser preenchido por eleição (solução que os Bakairi emprestaram dos brancos) ou, eventualmente, em situações de crise, por aclamação consensual. Com o Polonoroeste e o conseqüente ingresso de implementos produtivos restitui-se a então já difusa centralidade do Posto Indígena, confrontando-se com o acirramento das disputas faccionais em torno desses mesmos implementos (Barros, 1992: 140). Com isso, a tensão ainda contida em moldes faccionais e os problemas de administração da “solução eleitoral” dão lugar a um processo francamente fissional, que inicia em 1983 com a formação do grupo local Aturua (Barros, 1992: 154), que passa a buscar, por sua própria via, outros apoios institucionais externos, como o gado adquirido através de uma entidade filantrópica holandesa e um projeto próprio de desenvolvimento comunitário para implementos agrícolas e instrumentos de rádio-comunicação, obtidos junto ao Polonoroeste

(Barros, 1992: 157-158). O “caleidoscópio em

movimento”, como o chamou E. P. de Barros  no qual “dependendo do desenvolvimento das relações entre os seus membros no tempo, os grupos se

11

A propósito de todos esses dados cf. Barros (1992).

Capítulo 6

138

formam, se desfazem, se refazem, dispersando-se no espaço” (Barros, 1992: 176) , depois de um lapso de 60 anos parecia voltar a funcionar. No bojo do mesmo Programa Polonoroeste, e com o acompanhamento de um grupo de oito antropólogos vinculados à FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, da USP), previa-se a demarcação ou redefinição territorial de 12 áreas indígenas no centro e noroeste de Mato Grosso e no Estado de Rondônia (Mindlin, 1984). A subtração, pelo Estado de Mato Grosso, do território identificado como Paxola, da Área Bakairi, em 1960, ganhou então um ambiente de contestação favorável. Um processo de 1984 do Departamento de Patrimônio Indígena da Funai dá curso à reivindicação bakairi e culmina com uma demarcação conflituosa em 1985, seguindo-se da definitiva e também conflituosa incorporação do território da Paxola à Área Indígena

Bakairi

(Barros,

1987),

o

que

implicou

numa

considerável

mobilização dos Bakairi em torno dos “seus direitos”. Também em 1985, após a expulsão sucessiva de dois chefes de posto, um Bakairi assume o cargo (Barros, 1992: 146; Taukane, 1996: 116-117). O processo de reivindicação local em torno da Paxola e do acesso a recursos, bem como o exemplo do caso Aturua, intensificam a dinâmica fissional. Vários grupos familiares progressivamente se dispersam por toda a área bakairi, formando o que são hoje as sete aldeias (e a correspondente repartição territorial) da área do Paranatinga, ainda que Pakuera seja a aldeia principal  ou “central”, como chamam os Bakairi , inclusive do ponto de vista

de

uma

certa

“hegemonia”

cerimonial

(Barros,

1992:

12312),

concentrando metade da população da área13. Assim como o reflorescimento da vida ritual ao final dos anos 70, os Bakairi de Pakuera viveram também, ao final dos anos 80, uma experiência de revalorização (ao mesmo tempo que de ressignificação) daquilo que se convenciona chamar de “cultura material”. Em 1985 a Bakairi Darlene Taukane acompanhou a antropóloga Edir Pina de Barros numa visita ao Segundo E. P. de Barros (op. cit.)  e ao que pude constatar isso segue sendo assim  Pakuera é a única aldeia a possuir uma “casa dos homens” (kadoêti). Esta é o centro cerimonial por excelência. Aí são guardados os mais potentes artefatos rituais, indispensáveis para a “orquestração” do contato com os “espíritos”. Alguns desses artefatos são severamente interditos à visibilidade feminina, e que, diferentemente do Alto Xingu, inclui também as mulheres brancas. A autora citada tece também outras considerações sobre a relação entre as peculiaridades do regime fluvial e a relação com os “espíritos”, que faz com que Pakuera ocupe uma localização atualmente estratégica. 12

13

A esse respeito os dados disponíveis mais atualizados encontram-se em Taukane (1996: 37).

Capítulo 6

139

Museu do Índio, no Rio de Janeiro, visando realizar um levantamento de dados para o processo de reincorporação do território da Paxola. Aí tomou contato com um acervo documental e fotográfico sobre os Bakairi que lhe chamou a atenção, comentando-o posteriormente com outros da aldeia. Algum tempo depois, uma delegação Bakairi foi ao Rio para conhecer aqueles registros e o acervo etnográfico do Museu. Voltando à aldeia, passaram a alimentar a idéia de constituir um espaço onde se pudesse produzir e tornar visíveis objetos confeccionados a partir de suas técnicas tradicionais. Sob a liderança de Da. Vilinta Taukane (mãe de Darlene) e com alguma assistência da Fundação Nacional Pró-Memória implantaram em 1989 um centro de produção, exposição e comercialização de artesanato, que foi denominado Museu-Oficina Kuikare. Construído ao lado da casa dos homens, no centro da aldeia, funcionou como um espaço feminino de encontro, elaboração de peças artesanais e ensino de técnicas. A possibilidade, que até então pouco se vislumbrava, de comercialização da produção artesanal estimulou o interesse pela revitalização de algumas técnicas e a fabricação de peças artesanais em maior escala. Junto com eventuais parcerias com os novos professores Bakairi, que passaram a conduzir as atividades docentes em lugar dos profesores brancos , e com a criação e emergência de uma associação civil bakairi que tem como mote a promoção do “resgate cultural”, o Museu-Oficina pôde constituir-se como um momento de reafirmação identitária em torno da fabricação de signos objetificáveis que os Bakairi pudessem mobilizar como marcas de sua especificidade14. Se entre 1983 e 1986 consumou-se o movimento de dispersão de grupos familiares Bakairi e o seu esboço de autonomização do grupo principal de Pakuera, a partir de 1992 um outro movimento parece ter emergido no contrapeso dessa balança, não tanto como um antídoto à dispersão mas antes como um foco unificador do investimento de atenções. Em julho desse ano realiza-se o I Congresso Geral do Povo Indígena Bakairi. A pompa do nome anuncia o mover-se de uma iniciativa acalentada por outro membro da família Taukane, Estevão15, como também o pretexto de urdidura de uma instituição representativa que viria a dar novo curso ao movimento de afirmação dos 14 15

O Museu-Oficina Kuikare funcionou até 1996.

Assim como outros de sua geração e sua família, Estevão estudou fora da aldeia, colaborou com o SIL na elaboração de um primeiro dicionário bakairi e residiu algum tempo em Brasília, onde desempenhou atividades ligadas ao jornalismo.

Capítulo 6

140

Bakairi: a constituição de uma associação civil. Explicados sua concepção e seu significado por Estevão, negociada entre os representantes de grupos locais e embalada pelo mote genérico de “resgate cultural” (o mote em si é sintomático e significativo), a Associação Kurâ-Bakairi constitui-se com uma Assembléia Geral de cinco representantes de cada um dos sete grupos locais da área, com um Diretor-Presidente (Gilson Cauto), um Secretário-Geral (Estevão Taukane) e com um rol estatutário de onze objetivos que lhe conferem considerável amplitude representacional frente aos brancos, da luta pela posse do território ao zelo pelo uso racional dos recursos naturais, da difusão cultural à defesa de interesses comunitários, de algo nominado como promoção do desenvolvimento social e econômico à articulação das relações com órgãos públicos e privados. Contudo, a implementação do funcionamento da Associação parece ter sido lento e cauteloso. Observou-me Estevão Taukane: “Na minha opinião, muita coisa está acontecendo depois que... de 92 prá cá, que foi o ano de criação da Associação... As coisas estão acontecendo

muito

lentamente,

porém

sem

provocar

maiores

apreensões assim nas mudanças.”

Os

Congressos

Bakairi,

realizados

anualmente

desde

então,

pretenderam tornar-se foros de discussão a alimentar os debates em torno da Associação. A consolidação desse aparato se deu à medida em que se foram estabelecendo vínculos externos que apontassem para uma consistente obsolescência das relações de dependência à Funai. Como uma espécie de anverso dessa tendência, estava o esforço de algumas lideranças de tornar a Associação Kurâ-Bakairi uma instância planejadora e planificadora. Em 1994, através, como sempre, de vínculos pessoais  e creio que aqui o papel de mediação de Estevão é um ponto crucial  a Associação busca o apoio do Núcleo de Estudos Amazônicos, da Universidade de Brasília, e, a partir dessa assessoria técnica, esboça-se a primeira versão de um projeto integrado para a Área Bakairi, que estaria vertebrado sobre seis eixos temáticos assim discriminados: ambiente, saúde, educação, atividades culturais, infraestrutura e produção comunitária. Esse primeiro projeto, apesar de não implementado,

tornou-se

uma

espécie

de

molde

sobre

o

qual

os

empreendimentos da Associação passaram a se orientar. Com efeito, em 1997, com o apoio de um grupo técnico formado por alguns profissionais com ligações pessoais com os Bakairi, a Associação apresentou e teve aprovado

Capítulo 6

141

junto ao PADIC (Programa de Apoio Direto às Iniciativas Comunitárias), do Governo do Estado de Mato Grosso e financiado pelo Banco Mundial, o assim chamado Projeto Integrado para a Terra Indígena Bakairi. Também ele identifica seis pontos elementares (metas objetivas)16, que pretendem se articular em termos de incremento de subsistência e de infra-estrutura, repercutindo, segundo as justificativas do projeto, nos domínios da educação e da saúde, perfazendo um montante financeiro previsto de R$ 125.000,0017. De outra parte, a Associação tem servido de veículo para a constituição

de

laços

com

instituições

que

propiciem

espaços

de

representação. Isso tem significado até o momento a participação em encontros internacionais, programas de intercâmbio e a acolhida de representações estrangeiras. O principal desses vínculos é o que se estabeleceu com o GTME (Grupo de Trabalho Missionário Evangélico), que coordena o trabalho laico de representantes vinculados a igrejas protestantes tradicionais (Luterana, Presbiteriana, Anglicana e Metodista), e que se autoqualificam (e parecem assim ser vistos pelos Bakairi) como “progressistas” e não-intervenientes. No mesmo escopo de divulgação cultural em que, desde o final da década de 70, tem se mobilizado o processo de afirmação identitária dos Bakairi, a Associação implementa contatos com produtores culturais, como o que levou um grupo de “danças” Bakairi ao Festival de Montaire (França), em 1995. Se há duas décadas os Bakairi viram-se perplexos (na expressão de E. P. de Barros) diante do Projeto de Emancipação gestado pela política indigenista do Regime Militar, hoje, no entender das lideranças articuladas junto à Associação, tendem a reconhecer não apenas a efetiva incapacidade e/ou inépcia da Funai, como também admitem que não terão outra alternativa que não andar com as próprias pernas em meio ao mundo dos brancos. No contexto dessa nova (e obviamente imprevisível) mercadologia de 16

Esses seis pontos são: ampliação do cultivo de mandioca, ampliação do cultivo de milho, ampliação do cultivo de banana, implantação de um sistema agro-florestal consorciado, construção de duas casas de farinha e implantação de eletrificação rural. 17

Desses seis pontos, o mais importante deles (para os Bakairi), a implantação da eletrificação rural  que, segundo suas justificativas, permitiria o bombeamento regular de água dos poços artesianos, a melhoria das condições de estocagem de medicamentos e o funcionamento noturno da escola  estava sendo implementado em agosto de 1998 e foi pretexto de visita à área pelo então candidato à reeleição ao governo de Mato Grosso.

Capítulo 6

142

relações, o estabelecimento de parcerias parece ter como condição tácita o aporte daquilo que Bruce Albert chamou de “quota identitária” (ver nota 46 do capítulo 4), que as lideranças articuladas junto à Associação estão, ao que tudo indica, deliberadamente tratando de incrementar. Distintamente dos grupos que permaneceram no Alto Xingu, os Bakairi que se fixaram na região do Paranatinga tiveram que dar conta da herança assimilacionista do indigenismo de até uma década atrás. Diante do espectro de seu “apagamento” simbólico, viram-se na contingência de mobilizar uma logística e um arsenal também simbólicos, que lhes assegurasse visibilidade e lhes avalizasse sua singularização identitária. Também distintamente dos atuais alto-xinguanos, acabaram por firmar numa representação unificada  ao menos na última década e através de uma cuidadosa engenharia política que aquela declaração acima citada de Estevão deixa entrever  o veículo para o estabelecimento dos laços que permitam montar as novas pontes com o mundo dos brancos. E também distintamente dos xinguanos, os Bakairi não ganharam “presentes”. O “presente” que se lhes havia planejado entregar era a “civilização”. A crer por todos os atestados de “aculturação” dos Bakairi, o presente teria sido em certa medida recebido, ou melhor, como não se tratava de uma “coisa” que se pudesse receber, os Bakairi construíram suas casas de tijolos, vestiram roupas, cuidaram de seu gado, montaram seus cavalos, abriram lavouras de arroz, aprenderam a falar também uma outra língua, passaram a cantar modas-de-viola em festas de santo e começaram a receber diplomas universitários, mas tal como os Mashpee de James Clifford (1988: cap. 12), continuaram se dizendo eles próprios, distintos de outros. Apesar da cada vez maior proximidade física com o Alto Xingu18, as conjunturas específicas em que Bakairi e alto-xinguanos estiveram inseridos faz com que as relações com as coisas (presentes e não-presentes) do mundo dos brancos sejam necessariamente diferentes. Isso inclui, sem sombra de dúvida, a escola. 18

A memória da xinguanidade Bakairi tem também alimentado algumas iniciativas de aproximação de parte a parte. Desde meados da década de 90, várias “delegações” alto-xinguanas estiveram em Pakuera e realizaram cerimônias. De sua parte, os Bakairi foram ao Alto-Xingu buscar as flautas de taquara que eles próprios teriam introduzido no universo ritual alto-xinguano e que haviam perdido. Com o auxílio dos mais velhos procuram retomar o conhecimento de temas cerimoniais executados com essas flautas e que esses Bakairi mais velhos reputam como sendo em maior número e maior complexidade que aqueles hoje executados pelos alto-xinguanos.

Capítulo 6

143







Bem diverso do Alto-Xingu, entre os Bakairi do Paranatinga a presença da escola é consideravelmente antiga. Implantada em 1922, fazia parte do arcabouço civilizador do Serviço de Proteção aos Índios, e a isso se subordinava a proposta de alfabetizar a todas as crianças indígenas da área do Posto Simões Lopes, inclusive aquelas recém-migradas do Alto Xingu (Taukane, 1996: 81-85)19. Com efeito, uma vez reconhecidos formalmente como “alfabetizados”, os adolescentes eram enviados para a lida do gado, atividade que absorvia as maiores atenções da administração do Posto, como atividade econômica mantenedora, em escala auto-sustentada, da presença local do órgão indigenista. A partir de 1923 instalam-se na área os missionários da South American Indian Mission, com o objetivo de evangelizar os índios (Barros, 1992: 42). Eles implantam igualmente uma escola, que funciona em regime de semi-internato, e onde as crianças realizam também tarefas domésticas e aprendem “prendas” (Taukane, 1996: 107). A ingerência dos missionários procura estender-se para o controle dos hábitos dos Bakairi que porventura ainda não fosem controlados pelos funcionários do SPI. Uma certa memória discursiva ainda recorrente entre os Bakairi mais velhos associa esses missionários à ênfase na proibição: O missionário protestante é aquele que “proibe tudo”. Rivalizando em certa medida com a escola do Posto, conduzida por um funcionário do SPI ou sua esposa, a escola da missão procurava ocupar espaços sempre que possível, como no período entre 1933 e 1942, em que a escola do Posto deixou de funcionar (Taukane, 1996: 107-108). Em 1942 a sede do Posto transfere-se para onde é hoje a aldeia Pakuera. Como anotei no capítulo 4, este foi o momento de concentração de todos os grupos Bakairi num só aldeamento, disposto em arruamentos regulares de casas pequenas e alinhadas, destinadas a famílias nucleares (ao invés da planta tradicional de casas grandes, dispostas em círculos, destinadas às famílias extensas). Seguiu-se, em 1944, a construção de uma

19

Os Bakairi da atual Terra Indígena Santana, por outro lado, só viriam a receber uma escola em 1975 (Taukane, 1996: 83).

Capítulo 6

144

considerável infra-estrutura física, com edificações de porte que perduram até hoje. Numa delas funcionou o hospital mais bem suprido da região, atendido pelos serviços de enfermagem dos missionários e procurado pelos habitantes dos estabelecimentos vizinhos. Em outro dos prédios, de dimensões um pouco menores foi instalada a escola. Construídos integralmente pelos próprios índios, com a supervisão dos funcionários do SPI, esses espaços, segundo a interpretação de Darlene Taukane (1996), teriam sido, durante muito tempo, reconhecidos como uma espécie de “território estrangeiro”. Mesmo o abandono de um prédio como o do hospital pela progressiva falência dos órgãos tutores (SPI/Funai) não fez com que os Bakairi dele se apropriassem senão muito recentemente, permanecendo, durante muito tempo, todo o patrimônio que ali existia trancado e intocado, sendo progressivamente dilapidado pela deterioração ou por transferências administrativas para sabese lá que outras sedes dos órgãos indigenistas. Desse novo período de funcionamento da escola, iniciado em 1945, tem-se dados de que ela abrigava não só alunos indígenas como também nãoindígenas (Taukane, 1996: 102-103) e, dentre os primeiros, alunos do grupo Xavante contactado em 1952 (com quem os Bakairi haviam se hostilizado), parte do qual fixou-se inicialmente próximo ao Posto Simões Lopes e posteriormente no Posto Indígena Paraíso (1960), em território bakairi, até 1974. Durante esse novo período, a escola permaneceu fechada em 1955, de 1959 a 1961, de 1971 a 1973, em 1976, 1977, 1980 e 1981 (Taukane, 1996: 96 e 103). Nesses intervalos uma breve experiência, não oficial, se deu com um professor indígena, Dorothy Taukane (futuramente Chefe de Posto), entre 1971 e 1972 (idem: 113). A despeito do que aponta Darlene Taukane (1996), mesmo que o modelo de ensino tradicional, disciplinador, com o recurso a castigos físicos e complementado com um tratamento severamente depreciativo aos Bakairi tenha tornado a escola durante a gestão do SPI mais um momento do “tempo da escravidão” (ver nota 15 do capítulo 4), a convivência com o letramento, com o aparato burocrático do Posto e com os imperativos da “civilização” que os cercava acabaram por legitimar um certo lugar para a escola nas expectativas dos Bakairi. Se, diferentemente dos prédios construídos sob o SPI, a escola não se tornou a fantasmagoria de um território estrangeiro intocado é porque, assim como outras coisas dos brancos que os Bakairi

Capítulo 6

145

tornaram familiarmente suas, ela pôde ser, em certa medida, apropriada. Acredito que a forma como alguns agentes foram capazes de ocupar a posição de sujeitos frente ao domínio institucional escolar e, nesse movimento, redimensionar esse domínio, congeminando-o àquilo que se expressou como um projeto de afirmação identitária é a chave para entender a apropriação definitiva da escola. Em 1982, para tentar sanar a progressivamente crônica falta de professores, a Funai contratou, como monitores bilíngües, para ministrar aulas, dois Bakairi com formação escolar fora da aldeia, Jeremias Poiure e Ilma Pairague, apresentando-os ao Chefe de Posto com recomendações extremamente

minuciosas

sobre

suas

atribuições

específicas,

tarefas

imediatas e metodologia de trabalho a seguir, denotando acerbado zelo burocrático, ou, talvez, reticente cautela quanto ao funcionamento da escola sob a condução desses dois novos professores20. O obstáculo maior que iriam enfrentar, no entanto, seria o descrédito inicial dos próprios pais dos alunos, que reconheciam no magistério uma competência específica dos brancos. Se Dorothy Taukane e, mais tarde, Roberto Taukai tinham já informalmente desempenhado o papel de professores (Taukane, 1996: 113114), o precedente não obstante aberto por Jeremias e Ilma, como funcionários contratados, viria, sob outras circunstâncias, acabar por fomentar a expectativa, entre os próprios Bakairi, de se poderem recrutar professores entre eles mesmos. Isso, entretanto, só seria possível com a progressiva desmistificação do magistério como coisa de branco. Nesse momento é que a associação entre capacitações pessoais desenvolvidas com um conhecimento adquirido junto ao mundo e/ou as coisas dos brancos, por um lado, e a construção da legitimidade de um novo lugar social, por outro, vai possibilitar que o “professor Bakairi” emerja como uma nova figura social. Acrescentaria já: denotando um processo característico de mediação. A

par

de

suas

carreiras

pessoais21,

esses

novos

professores

comparecerão ao jogo social aportando padrões de relação que contarão como fatores no reconhecimento de legitimidade do seu lugar. A partir de depoimentos que colhi  apesar de dados similares serem apresentados por 20 21

Valho-me aqui da análise de documentação colhida por Taukane (1996: 152).

O capítulo seguinte traz o depoimento de Jeremias Poiure, um dos primeiros professores Bakairi, sobre sua história e experiência pessoais.

Capítulo 6

Darlene

146

Taukane

sintetizados

em

(1996) quatro

 sugeriria que pontos:

1.

os

esses padrões podem ser

professores

bakairi

residiam

permanentemente na aldeia, o que produzia maior confiabilidade quanto à continuidade das aulas, inserindo-os num universo de obrigações sociais compartilhadas e reciprocidades; 2. ministrando aulas na própria língua e a partir de referentes conceituais bakairi, puderam tornar o ensino ao menos mais aproximativo e o aprendizado mais produtivo e significativo; 3. como Bakairi, esses professores demonstravam maior sensibilidade para as especificidades do quotidiano dos alunos, reconhecendo seus imperativos e constrangimentos; e 4. adotando atitudes conformes com o ethos bakairi, puderam (e propuseram-se a) quebrar a memória de uma escola repressiva e violentamente disciplinadora. No capítulo que se segue teço algumas considerações que procuram caracterizar conceitual e analiticamente aquilo a que tenho me referido como mediadores. No momento interessa-me observar que durante a década de 70 vários Bakairi saíram da aldeia para prosseguir seus estudos em internatos ou outras escolas, públicas ou não. Tal como o velho líder Antoninho, que realizou (quase literalmente) um périplo pelo Brasil imperial do seu tempo, acompanhando von den Steinen, essa nova geração bakairi instruiu-se com o conhecimento das estranhezas e distâncias do mundo que os cercava e, a partir

do

domínio

de

outros

referenciais

(que

no

capítulo

seguinte

caracterizarei como códigos e meios e não como atributos culturais substantivados), pôde constituir canais para novas (e necessárias) relações que emergiram no bojo do movimento histórico de uma “afirmação bakairi”. Seja nas tensas negociações em torno da retomada da Paxola (ver Barros, 1987), seja num certo ativismo “cultural” (e logo a seguir também institucional), esses mediadores construiriam progressivamente as condições de legitimidade para os novos espaços sociais que ocupariam à medida em que, circunstancialmente, associaram-se àquele movimento. Personagens como Jeremias, Estevão e uma das autoras que tenho citado, Darlene Taukane22, contam-se entre esses mediadores. A conquista do lugar de professor, ao que concluo, operou-se nos termos da lógica da mediação e, em 22

Darlene atualmente trabalha no setor de Educação Indígena da Administração Regional da Funai em Cuiabá, desempenha funções de certo destaque no planejamento e acompanhamento de programas educacionais para índios no Estado e foi apresentadora do “Programa de Índio”, semanário televisivo produzido pelo Sistema Educativo de Televisão.

Capítulo 6

147

certa medida, a função de professor é ainda alcançada por essa mesma lógica, ou, mais especificamente, da realocação da escola como canal, “localmente” gerido, de acesso ao conhecimento dos brancos. Ademais, sugeriria a hipótese de que seria também como desdobramento da mesma dinâmica da mediação na construção de lugares sociais legítimos (ver capítulo seguinte) que se constituiria um “movimento docente”, como mais adiante explicitarei. Em 1985 pela primeira vez os Bakairi fazem um dos seus como Chefe do Posto Indígena que um dia se chamara Simões Lopes, depois Bakairi e, com a chefia indígena, viria a se chamar Pakuera. Essa conquista os estimulou a contar com seus próprios quadros nos domínios administrativos que lhes eram afetos e significou, de outra parte (e sociologicamente), uma ratificação institucional do lugar do mediador. À multiplicação de grupos locais no período 1983-1986 seguiu-se a construção de escolas nas novas “aldeias” e, para preenchê-las, novos professores Bakairi foram convocados. Se esses professores reconheciam-se hesitantes quanto às suas capacidades, repercutindo os receios sociais em torno do lugar do professor, procuraram carrear entretanto o envolvimento de seus grupos locais no quotidiano e na formulação de expectativas a respeito da escola, e, mais genericamente, da própria escolarização. Muitos deles permaneceram dando aulas sem vínculos empregatícios. É o caso, por exemplo de Paulo Kavopi, que fez as duas primeiras séries do antigo primário na aldeia, cursou a terceira e quarta séries na Missão Guarani-Kaiwá, em Dourados, e o antigo ginásio em uma escola pública em Cuiabá, hospedado na casa de um parente e com um pequeno apoio financeiro da Funai. Paulo começou a dar aulas em setembro de 1986, tendo a subsistência da família garantida pelo pai, hoje cacique de Pakuera. Assim como ele, outros professores só vieram a ser contratados pelo Município de Paranatinga em 1989, fruto de novo processo de negociações, que envolveu as lideranças locais e que já então começava a extrapolar a esfera da Funai23. Desde então, os professores começam a consolidar uma espécie de movimento docente, buscando discutir em conjunto entre si, envolver os pais dos alunos nas deliberações escolares, promover mutirões

23

Darlene Taukane observa que no Posto Indígena Pakuera funciona a 43a zona eleitoral de Paranatinga e que os votos dos Bakairi são suficientes para eleger um vereador (Taukane, 1996: 121-122). Isso lhes confere algum peso político local, no qual eles hábil e conscientemente investem, o que inclui receber candidatos e prometer apoios.

Capítulo 6

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para aquisição de materiais para as escolas, e obtendo, em 1992, a regulamentação de quatro escolas pelo Município de Paranatinga. Nesse ano é fundada a Associação Kurâ-Bakairi. Já a partir do ano seguinte a Associação põe-se à frente na reivindicação, junto à Secretaria de Educação do Município, da implantação do segmento de 5a a 8a séries. Em 1996 a 5a e a 6a séries são implantadas. Para abrigar as novas classes escolares os Bakairi por fim se apropriam do prédio do antigo hospital, que se encontrava em precárias condições de conservação, com parte do teto inutilizado. Os novos apoios capitalizados pela Associação permitem a obtenção do material de construção. Em 1997 o prédio da década de 40, de consideráveis dimensões, volta a ser ocupado. Duas salas são destinadas aos escritórios da chefia do Posto, uma sala é ocupada como sede da Associação, uma sala é destinada à enfermaria, duas salas tornam-se salas de aula, uma outra torna-se sala dos professores e uma sala é destinada à secretaria da escola e à coordenação de educação da área Bakairi, uma função informal, de caráter organizativo, da qual o primeiro titular foi nomeado pelo atual Chefe de Posto, Estevão Taukane, tendo seu segundo titular eleito pelos professores em longo processo de discussões, em agosto de 1998. O processo das discussões em torno da escolha do novo coordenador de educação é ilustrativo acerca daquilo a que me referi como um movimento docente organizado. A reunião da eleição do novo coordenador foi precedida, oito dias antes, por uma reunião de avaliação sobre a coordenação. Estiveram presentes 25 professores Bakairi, das atuais seis escolas da área, entre titulares e suplentes24. O Chefe do Posto coordenou a reunião e sugeriu a discussão em torno de uma questão central: as razões e vantagens ou eventuais desvantagens de se implementar ou não um esforço organizativo centrado numa coordenação educacional. Os debates que a partir de então os professores travaram manifestaram suas (dos professores) proposições em torno do sentido de organizar-se, congregando essas proposições com as 24

São titulares aqueles professores que têm vínculos empregatícios e suplentes aqueles que desenvolvem atividades de treinamento como parte do curso de formação de professores indígenas do Projeto Tucum, do Governo do Estado. Atualmente a Terra Indígena Bakairi conta com 17 professores titulares, 9 dos quais alocados na aldeia central de Pakuera e os demais nos outros grupos locais. De todos eles, dois têm vínculo empregatício com a Funai, 13 com o Município de Paranatinga, 1 com o Município de Planalto da Serra, que engloba administrativamente a região do grupo local Sawâpa, e 1 deles é uma professora branca, pertencente a uma missão batista, que se prontificou a dar aulas de Português para 5a e 6a séries, como parte de um vínculo antigo (e controverso) com a Igreja Batista, da qual um Bakairi (que já não se encontra mais na área) é pastor.

Capítulo 6

149

questões concretas em torno da atividade da docência. Estabelecendo e alterando uma pauta de discussões, lançando questões de encaminhamento e pontuando sinteticamente as deliberações (como uma espécie de “ata” que se transcrevia num quadro negro), concluíram que a organização favorece a objetividade das ações coletivas e deve possibilitar “a democratização da informação”. Criticaram a dispersividade das ações individuais quando não orientadas em torno de uma organização coletiva. E, como corolário do debate, firmou-se a decisão programática de reivindicar, através do futuro coordenador educacional, a participação de um representante Bakairi na instância deliberativa do poder público municipal que detém o controle do funcionamento das escolas. A par disso, decidiu-se a forma como seria escolhido o novo coordenador, optando-se por uma eleição em que teriam direito a voto os professores titulares, o que foi feito oito dias depois (tempo que os eventuais candidatos teriam para se articular). Dessa forma, a dinâmica de discussão dos professores Bakairi, apropriando-se de fórmulas não tradicionais (eleições, uma dinâmica assembleísta), move-se através de um intrincado debate crítico em torno de questões administrativas e pedagógicas, projetando uma organicidade vívida de um movimento docente em que seus atores procuram expressar-se como sujeitos sociais e reivindicar a autonomia de um espaço próprio de decisões, articulando-se, de outra parte, com os demais aparatos organizacionais (e de mediação) de seu contexto social, quais sejam, o Posto Indígena e a Associação Kurâ-Bakairi. De outra parte, Gilson Kauto, Diretor da Associação, expressou-me o projeto de fomentar a ampliação da escola até pelo menos a 8a série, para o quê concorreriam a progressiva elevação do nível de escolarização dos próprios Bakairi25 e a possibilidade de abertura de um período noturno, graças à instalação da eletrificação rural. Entretanto, em vários momentos e por vários líderes de Pakuera (incluindo a própria direção da Associação), a ordem dos fatores referentes a esse último fato, me foi, na verdade, apresentada no sentido causal inverso, ou seja, de que a eletrificação rural era necessária, antes de tudo, para que a escola pudesse funcionar à noite e permitir a expansão das séries. Assim como outros Bakairi, também a direção 25

Na etapa intensiva do curso de formação de professores do Projeto Tucum no Polo IV (Paranatinga) a que acompanhei em fevereiro de 1998, havia um cursista já portador de diploma superior, enquanto outro Bakairi, posteriormente engajado como professor, estava se formando em Pedagogia, numa instituição do interior de São Paulo. Além deles, outro Bakairi possui 2o grau técnico e vários outros encontram-se fora da área, estudando em Cuiabá.

Capítulo 6

150

da Associação espera que a escola possa estender-se para além da simples alfabetização e venha a permitir certas capacitações. O estímulo ao acréscimo de séries escolares é sucedâneo de um certo projeto de futuro para os Bakairi, que a Associação trata de acalentar. Pode-se dizer que, em certa medida, ao projetar um horizonte para a escola e ao mesmo tempo inseri-la num projeto de futuro para toda a sociedade, a Associação “encampa” a escola como um motivo e um valor. A escola destinar-se-ia a preparar os Bakairi para o acesso otimizado a um conhecimento que os permita superar certas dependências, tal como, de resto, transparece nos exercícios de “projetos integrados” elaborados pela Associação para a área Bakairi. Se o momento de “tomada” da escola pelos professores correspondeu a um momento de afirmação dos Bakairi frente à herança tutelar, a emergência da Associação Kurâ-Bakairi parece querer lançar a experiência escolar na direção de um pretendido projeto de autonomia, formulado a partir de perspectivas organizacionais introduzidas pelos novos mediadores. A escola de Pakuera possuía, em agosto de 1998, para uma população total de cerca de 250 pessoas, a seguinte população escolar: série

distribuição

faixa etária média

masc

fem

total

6

5

11

4a7

a

6

7

13

6a8

a

11

8

19

8 a 10

a

6

3

9

10 a 12

a

7

5

12

11 a 14

a

5

7

12

14 a 15

a

6

11

5

16

16 a 17

total

52

40

92

pré 1 2 3 4 5

Confrontando tal distribuição com os dados oferecidos por Taukane (1996: 120), houve, em dois anos, um acréscimo da ordem de 58,6% nos alunos matriculados em Pakuera (de 58 para 92 alunos). E se a média da população escolar, em 1996, para toda a Terra Indígena Bakairi, era de 25,83% da população total (ibidem), em Pakuera essa razão altera-se para 36,8%. Isso é explicado, ao que creio, não só pela existência local de duas

Capítulo 6

151

séries a mais que as demais escolas, mas também pelo fato de que a procura por essas séries atrai alunos de outros grupos locais. Por outro lado, a apropriação da escola no que diz respeito a sua oficialização e manutenção seguiu, obviamente, o caminho do possível, e isso significa uma quase que completa subordinação aos parâmetros curriculares oficiais ditados pela Secretaria Municipal de Educação de Paranatinga, diante dos quais os professores se vêem confrontados a sopesar o discurso em torno de uma ainda que vaga “escola específica e diferenciada”, investido no âmbito do Projeto Tucum. O Decreto no 26/91 da Presidência da República foi um dos seis do “pacote indigenista” do Governo Collor e transferiu da Funai para o Ministério da Educação “a competência para coordenar as ações referentes à Educação Indígena”,

acrescentando

que

tais

ações

seriam

“desenvolvidas

pelas

Secretarias de Educação dos Estados e Municípios em consonância com a Secretaria Nacional de Educação do Ministério da Educação”. Como observa Darlene Taukane (1996: 125-126), isso produziu o imediato descompromisso da Funai frente às escolas indígenas, confrontado com o desconhecimento, despreparo e descaso das instâncias políticas locais com a questão. Se os Bakairi do Paranatinga conseguiram finalmente vincular suas escolas às Secretarias de Educação dos Municípios de Paranatinga e Planalto da Serra como alternativa imediata e, por assim dizer, natural de sua subsistência, estas instâncias administrativas seguramente desconhecem as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, publicadas pelo MEC em 1993. As escolas bakairi funcionam com horários, grades curriculares, conteúdos didáticos e sistemas de avaliação uniformizados com os das demais escolas municipais, devendo os professores prestar contas de suas atividades, com os seus respectivos diários de classe, junto às Secretarias e de acordo com os padrões por estas firmados26. Assim é que apenas alguns poucos professores mais arrojados, quase visionários, ousam realizar a alfabetização de seus alunos na língua bakairi. Paulo Kavopi é um deles, estimulado, segundo ele, pelos cursos de Lingüística que fez no SIL em Cuiabá. Para isso,

26

A imposição dessa padronização pode produzir impasses de parte a parte. Por ocasião de minha pesquisa de campo, a Secretaria de Educação de Paranatinga estava às voltas com um professor Xavante que, com as notas que atribuía, estava reprovando a quase totalidade dos seus muitos alunos, o que produziria uma pequena catástrofe nos cômputos de rendimento escolar que a Secretaria deveria enviar ao MEC.

Capítulo 6

152

no entanto, precisou, reunir-se e discutir com os pais dos seus alunos e obter deles o assentimento quanto a seus métodos. O ânimo assembleísta e deliberativo que move a organização dos professores parece curiosamente parar frente a uma eventual discussão sobre alguma possível grade curricular “específica”, de tal maneira que isso soa quase que impensável para além de certos lugares comuns a respeito, que os professores Bakairi acostumaram-se a ouvir a partir do Projeto Tucum. Com efeito, apesar de moverem-se habilmente por encontros de professores indígenas, participarem das discussões em torno do Projeto Tucum e seu quase que automático discurso em defesa do “específico e diferenciado”, além de também possuírem um representante no Conselho de Educação Escolar Indígena do Estado, os professores Bakairi não projetaram  ou ao menos não projetaram ainda  que a escola pudesse ser outra coisa muito distinta daquilo que eles dispõem hoje, tal como se poderia induzir do discurso “politicamente correto”. É como se os Bakairi prezassem por ser politicamente incorretos. Aliás, a questão irremediavelmente renovada para os pedagogos que projetam escolas para índios é de como essa escola poderia ser “outra coisa” sem ser “guetizante” (Franchetto, 1997), sem frustrar as expectativas dos Bakairi acerca do domínio de um conhecimento que diz respeito ao cabedal técnico dos brancos, e que muito lhes interessa. O programa de 5a e 6a séries arrola dez disciplinas (Português, Matemática, História, Geografia, Ciências, Língua Estrangeira, Educação Artística, Educação Física, Programas de Saúde e Ensino Religioso), distribuídas numa chave horária de quatro aulas diárias de 50 minutos. Os Bakairi solicitaram que, no lugar de Língua Estrangeira fossem ministradas aulas de língua materna, com o que a Secretaria de Educação concordou27. A disciplina de Ensino Religioso é ministrada pela mesma missionária que dá aulas de Português (ver nota 24). A permanência dessa disciplina é em parte tributada ao currículo pré-estabelecido pela Secretaria Municipal de Educação e em parte pelo acordo que estabelece a permanência da missionaria batista como professora de Português. As cargas horárias ficam assim distribuídas: tanto Português como Matemática têm três vezes a carga horária de Língua Materna, que tem a mesma carga horária de História, Geografia, Ciências e 27

O antigo coordenador de educação, Evandro Mahulaiala, observou-me que houve cogitações de se buscar, através do apoio do GTME (Grupo de Trabalho Missionário Evangélico) (supra citado), com quem os Bakairi fomentam atividades de intercâmbio, um professor para dar aulas de Inglês!

Capítulo 6

153

Educação Física; Educação Artística, Programas de Saúde e Ensino Religioso têm, por sua vez, metade da carga horária destas últimas. Como observa Edir Pina de Barros (1997), foi curiosamente o mesmo Decreto no 26/91 que acabou por desencadear a contratação de professores indígenas pelas Secretarias Municipais de Educação no Mato Grosso. Poucos professores indígenas estariam contratados antes do Decreto, seja pela Funai, seja por Secretarias de Educação. Barros aponta ainda para a participação, em 1995, de 91,67% de indígenas contra 8,33% de não-indígenas como professores nas aldeias em Mato Grosso (ibidem)28. Assim, contra todas as expectativas (cf. Emiri, 1996), no arranjo local e regional de relações políticas (em Mato Grosso ao menos, e no atual momento histórico), o Decreto 26/91 acabou por favorecer a emergência de um professorado indígena massivo, amparado

financeiramente

em

vínculos

empregatícios

relativamente

duradouros (e isso pode ser tremendamente significativo em seus contextos sociais  vide caso xinguano) e, simbolicamente, num reconhecimento oficial que lhes atribui um mister que não é mais prerrogativa de branco. Bem pelo contrário, em termos de embates discursivos, as concepções emergentes a partir dos novos projetos de educação escolar indígena da década de 80 informam exatamente, conforme expus no Capítulo 2, que esse lugar (de professor numa aldeia) não é de branco. Foi esse mesmo professorado que, segundo ainda Barros (1997), passou a demandar uma capacitação e uma qualificação de mão-de-obra que, vistas como politicamente oportunas pelo Governo do Estado, concorreram para a criação do Projeto Tucum, iniciado em 199629. Darci Secchi, num relatório de consultoria ao Prodeagro (o programa que sustentaria financeiramente o Tucum) e que contribuiu em termos argumentativos para a efetivação do Projeto, aponta para a existência de um 28

Os dados, que têm como fonte a Secretaria de Educação do Estado, apontam 242 profesores indígenas e 22 não-indígenas. Um ano antes, segundo Darci Secchi (1995: 79), seriam 162 professores indígenas e 37 não-indígenas. Ainda segundo Barros (1997), dos 242 professores índios, 101 estariam vinculados às Secretarias Municipais de Educação e 65 à Secretaria Estadual. 29

“Politicamente”, pode-se dizer que o Projeto Tucum tornou-se de fato um sucesso, apesar de esta ser uma avaliação apenas impressionista. Funcionando em 4 polos regionais (além da vinculação xinguana exposta no capítulo anterior) abarca virtualmente toda a população indígena do Estado. Ganhou visibilidade nacional e projetou-se como uma experiência relevante na área a partir de um Congresso de Professores Indígenas promovido no âmbito institucional do Projeto, em novembro de 1997, ao qual compareceram índios, agentes indigenistas e pesquisadores, brasileiros e demais latino-americanos. A partir de então a Secretaria de Educação do Estado já editou dois livros contendo coletâneas de artigos sobre o tema da educação escolar indígena.

Capítulo 6

154

“vazio legal” (Secchi, 1995: 28-41) produzido pelo Decreto 26/91 no que diz respeito às atribuições e competências relativas à educação escolar indígena. Esse “vazio legal” seria oportunamente traduzido, nas discusões oficiais do Projeto Tucum, como “vazio institucional” (cf. SEDUC/MT, 1995), que deveria ser ocupado pela ação do Governo do Estado. O Prodeagro (Programa de Desenvolvimento Agroambiental do Estado de Mato Grosso), que acolheu o Projeto é detalhado em vários tópicos. Um deles, o “Ambiental”, é ainda detalhado em vários componentes. Um deles é o “Indígena”, com seus seis sub-componentes, um dos quais é a “Educação Indígena”30. A versão até então mais atualizada da síntese do Programa, que consultei em janeiro de 1998, assim descreve esse sub-componente: “Apesar do tema não estar incluído na proposta original do PRODEAGRO, através do Programa de Cooperação Técnica do PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], foi elaborado um diagnóstico sobre a situação da educação formal dos povos indígenas no Estado. A partir deste diagnóstico, construído de forma bastante participativa, concluiu-se que um dos maiores anseios das populações indígenas era ter sua formação escolar formal reconhecida, e este processo passa inicialmente pela formação e titulação de seus professores. Escolhido este tema como meta prioritária foi elaborado o Projeto TUCUM, que tem por finalidade dar formação e titulação em nível de segundo grau aos profesores índios. O projeto envolve vários órgãos públicos e segmentos da sociedade civil em parcerias para efetivação da proposta que se encontra em pleno andamento em cinco pólos regionais.” (SEP/MT, 1997).

No caso dos Bakairi do Paranatinga, o Projeto Tucum, contudo, viria de encontro ao já constituído movimento docente, o que acabaria por inseri-lo num contexto de contínua negociação e discussão, para além de uma “formação” tout court de professores através da transmissão de conteúdos didáticos e educativos. Trinta Bakairi da região do Paranatinga participam como cursistas do Projeto Tucum. Desses, 12 já são professores titulares. Os demais contam-se entre aqueles que já tinham estudado fora da aldeia (principalmente os rapazes) e que encontraram no Tucum uma oportunidade de dar curso a seus estudos e titularem-se como profesores, o que os permitirá suceder ou juntar-se aos demais professores titulares.

30

Os outros cinco sub-componentes são assim designados: Fundiário, Vigilância e Fiscalização,

Capítulo 6

155

A forma do Projeto Tucum é semelhante àquela do projeto do ISA apresentada no capítulo anterior, seguindo um modelo de “educação a distância”

(Peggion,

intermediários

onde

1997: as

151),

com

atividades

etapas

dos

intensivas

professores

e

períodos

cursistas

são

acompanhadas por monitores, papel, no caso dos Bakairi, inicialmente ocupado

por

funcionários

das

Secretarias

Municipais

de

Educação,

posteriormente substituídos por Bakairi. Os docentes são “recrutados, prioritariamente, a partir do quadro de professores do Estado de Mato Grosso e da região onde se realiza o Curso, exigindo-se, para tanto, a formação específica de III Grau na área a ser trabalhada” (Barros, 1997). Antes de cada etapa intensiva são feitas reuniões de coordenação e planejamento, visando discutir com docentes, coordenadores locais e monitores os problemas enfrentados e a articulação de métodos. Os conteúdos educativos são organizados em torno do que se convencionou designar como “eixos fundamentais”,

três

conceitos

genéricos

que

pretendem

servir

como

referências temáticas: terra, língua e cultura31. A proposta pedagógica do Projeto Tucum é a de uma construção progressiva de um “currículo intercultural”, cujo conteúdo deverá emergir no decorrer da realização do projeto. Distintamente do projeto de educação voltado para o Xingu, as etapas intensivas do Tucum são realizadas em núcleos urbanos (exceto no Polo III, realizado na Missão Meruri, em área Bororo). No caso do Polo IV (Paranatinga) isso acaba por formar parte de uma experiência singular. A antropóloga Edir Pina de Barros é a docente da disciplina de Ciências Sociais desse Polo. Seus cursos têm procurado exercitar os professores Bakairi na prática de pesquisa de campo em que, estando na cidade, são os brancos o objeto da observação. Fazendo pequenas etnografias sobre a prefeitura, o asilo, a madeireira, os cursistas exercitam um olhar sobre o branco no qual se põem como produtores de um conhecimento sistemático e analítico na forma de uma tradução cultural. Em contrapartida, a docente leva aos professores Bakairi o

Índios Isolados, Saúde Indígena e Alternativas Econômicas. 31

O conceito de “cultura” utilizado no texto oficial do Projeto é assim definido: “Constitui e é constituída pelo conjunto dos valores sociais, modos de entender, fazer e viver, enfim nas ações e seus significados no tempo e no espaço, expressos nas práticas sociais cotidianas de determinados grupos sociais, nos bens de sua cultura material e intelectual. Possibilita a revitalização, dinamização do grupo indígena, sendo um ponto de partida para o estabelecimento do processo educativo intercultural.” (SEDUC/MT, 1995).

Capítulo 6

156

conhecimento da documentação etnográfica sobre seu povo desde o final do século passado. Na observação desses dados, os professores são exercitados a confrontar a memória oral e buscar um lugar possível para uma memória histórica, distinguindo valores em torno de documentos e registros de variadas fontes e confrontando entendimentos em torno de objetos como o território e a própria memória. Nesse jogo de espelhos, o ideal (antes que uma idéia) de um “currículo intercultural” assume a forma de um diálogo deliberado e não de um repasse de informações que componham um exótico patchwork de hibridismos ou de incompatibilidades intransponíveis. Também no Projeto Tucum os Bakairi não parecem ter sido confrontados ainda com um debate sistemático sobre o uso e o lugar da escrita em língua nativa, apesar dos esforços da docente de Língua Portuguesa, Darlene Taukane. O Projeto prevê como princípio norteador da disciplina de Língua Indígena que “nesse estágio, a disciplina tem mais o objetivo

de

fomentar

o

processo

de

produção

e

sistematização

do

conhecimento necessário para a tomada de decisões sobre o lugar a ser ocupado pela Língua Indígena no Currículo Escolar Indígena, decisões de que os vários segmentos da sociedade indígena terão, necessariamente, que participar. A disciplina tem, nesse sentido, caráter estruturante: pretende pôr à disposição dos interessados o conhecimento necessário para estruturar uma prática lingüístico-pedagógica visando a garantir, no futuro, o projeto políticolingüístico do povo em questão.” (SEDUC/MT, 1995). Os Bakairi têm já, entretanto, um longo contato com discussões lingüísticas em torno de sua língua. Como mencionei na nota 5, James Wheatley, pelo Summer Institute of Linguistics, realizou pesquisas na década de 60 e estabeleceu uma gramática da língua bakairi32. Em 1977, um seminário realizado no âmbito do convênio entre SIL e Funai produziu, através da lingüista Ruth Monserrat, uma ortografia da língua, que passou a ser utilizada pelo SIL em suas publicações, além de um primeiro vocabulário bilíngüe de cerca de 500 verbetes, prontificado por Estevão Taukane (Barros, 1992: 30; Taukane, 1996: 108-109). Os resultados de todos esses estudos encontram-se ainda arquivados no setor de lingüística do Museu Nacional, mas os professores Bakairi os têm acessíveis ao fazerem estágios na sede 32

Tânia Clemente de Souza considera os resultados dos trabalhos de Wheatley inexpressivos, e sua metodologia tagmêmica pouco produtiva (Souza, 1994: 75-77).

Capítulo 6

157

regional do SIL em Cuiabá, para onde eventualmente são convidados e onde são estimulados a iniciar a alfabetização dos alunos em língua nativa. Em 1992 os professores de um dos grupos locais, Painkun, junto com missionários do SIL aí instalados desde 1988, produziram uma nova ortografia para a língua, com o acréscimo de 3 fonemas à anterior (Taukane, 1996: 133 e 174). Os professores que estagiam na sede do SIL em Cuiabá são também engajados em atividades de versão escrita de peças orais e de tradução de textos, que são publicados pelo SIL. A última publicação é datada de junho de 1997 e trata-se de um abecedário com 68 substantivos e suas ilustrações e outras 159 palavras utilizadas em frases, que se pretende como livro de alfabetização e dicionário rudimentar. Fora ele, a produção do SIL em língua bakairi é considerável: 10 livros de leitura, 4 “livros de apoio” (do tipo cartilha), 9 livros de lendas, 2 livros de parábolas bíblicas e um livro sobre “o nascimento de Cristo”33. Os professores Bakairi eventualmente usam esses livros, e as peças narrativas neles transcritas são lidas para as (ou também pelas) crianças. Entretanto, ao que pude perceber, esse é um material quando muito subsidiário. Os professores que o usam tendem a reconhecer a distância entre a versão escrita e a narrativa oral, e algumas observações, tal como as formuladas por Jeremias Poiure, o primeiro professor contratado, questionam o significado desse material. Jeremias preocupa-se com a sacralização escrita de apenas uma das versões orais: “Nós contamos a estória de acordo com a origem. Tem gente que é Parua, tem gente que é Âgudoalo34... outras tribos que pertencem... que se agrupou, se formou um grupo de Bakairi. Então não adianta eu falar assim: ‘Ah, esse aqui ‘tá certo’. Depende da origem. Tem gente que, de acordo com seus parentesco, ele vai contar que foi assim, assim, assim. Tem outro parentesco que já fala assim:  Ah, eu... da minha origem, meu avô, minha avó contava assim...”

E então expressa sua preocupação quanto ao processo de produção da versão escrita (e da autoridade em torno do conhecimento tradicional):

33

Uma avaliação sobre o conteúdo desse material do SIL, da qual compartilho (remetendo às observações que realizei no Capítulo 2), é sinteticamente expressa pelo professor Bakairi Jeremias Poiure logo adiante.

Capítulo 6

158

“Todos esses livros deveriam passar na aldeia, na mão de cada pessoa como responsáveis, porque eu vejo assim: Fez um livro, publicou, mas nós não temos conhecimento. Esse livro vem aí depois que está feito... embora, como é que a gente vai ler? Como que a gente vai praticar esse livro aí dentro da escola? (...) Nós elaboramos uma vez uma estória lá no SIL, em Cuiabá. Eu fiquei um mês lá traduzindo algumas coisas, alguns livros, mas eu achei que não estava certo trabalhar lá daquela maneira. Eu deveria sentar aqui, sentar com alguém, sentar com os velhos, ver aquilo lá, para a gente tentar resolver, como que ele acha, como que poderia falar de uma maneira mais simples prá criançada.” (grifo meu)

Por fim, Jeremias sugere que uma estória oral é indissociável da pessoa que a conta. É preciso evidenciar o narrador (até mesmo ter a sua imagem) para consagrar a sua identificação. Quando muito, a solução que sugere como mais plausível é: “A estória deveria ser gravada em vídeo”. Apesar de possuírem uma escola que funciona até a 6a série, onde os professores ministram cursivamente suas aulas em língua nativa, e apesar dos muitos estudos lingüísticos, envolvendo a participação deles próprios, os Bakairi nutrem até o momento um curioso descaso pelo uso escrito de sua língua. Todos os avisos escritos eventualmente afixados pela aldeia central são em português. Em Pakuera, Paulo Kavopi parece ser o único renitente autor de avisos escritos em bakairi, de tal maneira que a identificação da sua autoria nesses avisos é sempre imediata. O uso da escrita em língua nativa parece servir antes como uma marca pessoal que como uma ferramenta (ou uma tecnologia) de produção de registros documentais. Fora esses avisos muito particulares, o único grafismo alfabético de caráter “público” em língua bakairi que presenciei durante minha permanência em Pakuera foi a (“híbrida”) inscrição “lixo sameho” (repositório de lixo), pintada num tambor de metal colocado diante da escola por ocasião da visita do candidato à reeleição ao Governo do Estado. Nos debates que se travaram para a escolha do novo coordenador de educação, a discussão foi cursivamente realizada na língua bakairi e o quadro negro sistematicamente utilizado. Falava-se em bakairi, escrevia-se em português. No texto-resumo da discussão, que se registrava no quadro negro,

34

Referências a antigas aldeias dos Bakairi no Alto Xingu.

Capítulo 6

159

o português parecia ser, por excelência, uma língua de redução conceitualburocrática, enquanto que o bakairi fluia com a conversação. No curso das duas últimas décadas os Bakairi retomaram e apropriaram-se de várias coisas para servirem de vetores e signos de afirmação identitária, afirmação que

resume

talvez o mais relevante

movimento na sociedade bakairi nesse período, que contamina todos os seus discursos políticos, que se sobrepõe, em certa medida, à linguagem da lógica fissional. Nesse movimento, o espaço institucional da escola prestou-se a ser ele também conquistável. Aos poucos, e através de vínculos relacionados ao domínio institucional escolar (como sublinhei na experiência do Projeto Tucum),

os

Bakairi

estão-se

apropriando

até

mesmo

de

um

certo

conhecimento histórico (ou, para ser mais preciso, da própria historiografia), mesmo que um outro tipo de consciência histórica, construída no confronto com a longa presença dos brancos, já o precedesse. Nesse sentido, os professores constituem uma espécie de vanguarda. Entretanto, apesar de várias décadas de contato com um aparato escolar e com o hábito da alfabetização,

e

apesar

de

disporem

de

uma

ortografia

em

cujo

estabelecimento eles próprios participaram, os Bakairi não atribuíram à escrita na sua língua, até o momento, nenhuma função social. Isso poderia ser um mistério para aqueles que acreditam que há uma relação imanente entre escola e implementação de uma cultura escrita. Aquisição da escrita, entre os Bakairi, diz respeito à língua portuguesa. Mas esta mesma, salvo alguns recursos comunicacionais de alcance restrito (residuais, talvez se pudesse dizer), não serve mais que para lidar com o mundo do branco, ter acesso às suas informações e à sua oficialidade burocrática. Se se crê que deve haver uma relação intrínseca entre escola e cultura escrita, então a escola permanece sendo, entre os Bakairi, um território estrangeiro. Se se acredita que ela deva transmitir um “conteúdo de conhecimento nativo”, então deve-se optar por reconhecer, nesse molde essencialista, que a “cultura” Bakairi inclui também o conhecimento escolar dos livros didáticos dos brancos. De outra forma, os Bakairi viveriam algo como uma esquizofrenia cultural. Se, por outro lado, se reconhece que a escola foi, de fato, apropriada pelos Bakairi, como nos assevera Darlene Taukane (1996)  uma Bakairi, afinal de contas, então certas idealizações a respeito da escola poderiam não operar tão automaticamente como se suporia. De qualquer forma, talvez não seja demasiado lembrar que, se essa conquista da escola fez parte de um

Capítulo 6

160

contexto político35, não houve ainda qualquer contextualização de mesma natureza que abarcasse algo como a produção de um corpus literário ou histórico, seja em português seja em bakairi, ou qualquer coisa que informasse que a tradição e um certo conhecimento nativo devessem ser traduzidos para um código distinto dos já existentes: a oralidade, o grafismo cerimonial e o som das flautas.

35

Reitero acepção de política da nota 18 do capítulo anterior.

Capítulo 7

161

Mediadores sociais e histórias de vida

“Foi na Europa que descobri a minha tarefa americana.” José Carlos Mariátegui

Este capítulo não é mais que um excerto sobre aquilo que venho chamando de mediadores interculturais. A terminologia, reconheço, é um tanto mal-ajambrada, já que não vejo necessidade analítica de isolar totalizações culturais como conteúdos substantivos e singulares, coletáveis em cubas etnográficas. O termo “intercultural” serviu-me até o momento para enfatizar a existência de contextos de relações sociais e padrões de legitimação bastante

distintos.

Doravante,

a

noção

de

mediador

pode

ser

tão

simplesmente assumida como de mediador social. Por legitimação entendo a relação que, segundo Weber (1921: 19-20, 139 e ss.), remete à possibilidade de reconhecimento pelos atores sociais da vigência de uma determinada ordem, na qual a autoridade, o status e as relações de poder podem ser sancionadas como certas, adequadas e convenientes. A construção dos lugares sociais seria um investimento de esforços, por parte de vários atores, na constituição de condições de legitimidade

em

torno

desses

lugares,

ou

seja,

que

permitam

sua

subsistência. Considerada essa possibilidade de construção continuada, a legitimidade pode ser pensada, ela mesma, antes “como uma questão de processo e de fluxo que como algo estático, com atributos fixos e intrínsecos” (Friedrich, 1968: 244, tradução minha). O papel de mediador nessa perspectiva, e no contexto das relações interétnicas, não seria dado como uma função potencialmente pré-estabelecida (pré-legitimada) ou como decorrência mecânica (imanente e de insondável causalidade) do contato de distintos padrões sócio-relacionais ou distintas ordens simbólicas. Um “tradutor” (latu senso) não é dessa forma necessariamente um mediador. Mais que isso, um mediador é um “manipulador social”, é um “empreendedor” (Boissevain, 1974: cap. 6), capaz de operar um canal de estabelecimento de vínculos que reclama, ele próprio, legitimidade, e que, nesse movimento, pode alterar os

Capítulo 7

162

termos segundo os quais os atributos sociais (autoridade, status e poder incluídos) são distribuídos. Ainda Boissevain (ibidem) observa que um mediador deve ter o domínio de certos recursos (e a disposição para usá-los); recursos que se sintetizariam fundamentalmente em contatos estratégicos. Mas não apenas eles. O domínio do código apropriado e a habilidade para administrar os canais de transmissão das mensagens são outros desses recursos. Contrariamente a E. Viveiros de Castro (1977: 32), que sugere que a capacitação de mediadores (indígenas) no Alto Xingu se deveria a certos “imponderáveis”, como um melhor domínio do português e a “capacidade de adaptação às novas condições”, eu preferiria, de outra parte, reconhecer esses “imponderáveis”

exatamente

como

aqueles

recursos

que

devem

ser

capitalizados para que alguém se torne um mediador bem sucedido. Mais do que isso, diria que esses recursos são objeto de um investimento, ou melhor, de um cultivo. E isso é inseparável da carreira que um indivíduo percorre e constrói. Os relatos de Karl von den Steinen e Max Schmidt mostram a forma como Antoninho, o Kuikare, tornou-se um desses exímios mediadores, construindo para si um espaço político que precisou ser minado quando do estabelecimento da autoridade e do controle do SPI sobre os Bakairi do Paranatinga (que, com a vênia do trocadilho, não admitia intermediações). Entretanto, o trânsito de alguns atores por diversos domínios sociais nem sempre foi visto pelos analistas como um possível momento privilegiado de estabelecimento de vínculos estratégicos ou mesmo de experimentação de novas relações. Leituras caudatárias do paradigma da aculturação via de regra tenderam a reconhecer o significado do percurso pessoal dos mediadores sob a forma de um “decaimento” a partir de uma condição original (ou de autenticidade original), eventualmente espelhado em inevitáveis crises de personalidade. Um antigo ensaio de Florestan Fernandes serve como modelo ilustrativo desse espectro melancólico que ronda muitas expectativas em torno daquele trânsito por “dois” mundos. Trata-se da análise da marginalização do Bororo Tiago Marques Aipobureu (Fernandes, 1946). Florestan Fernandes procura descrever o processo de marginalização do personagem originalmente registrado por Herbert Baldus e por António Colbacchini como sucedâneo de um desajuste psicológico no qual estavam presentes idas e vindas entre dois universos valorativos distintos e concepções antagônicas de mundo. Talvez por falta de dados que informassem

Capítulo 7

163

a respeito, os fracassos do Bororo Aipobureu em estabelecer vínculos proveitosos (para si, antes de tudo) entre os do seu povo e os salesianos das missões em que estes estavam aldeados não são sociologizados (senão sob a forma de uma sumária causalidade funcionalista)  o que não deixa de ser espantoso para um autor que dois anos depois realizaria o até hoje clássico empreendimento de sociologizar os dados históricos disponíveis sobre os Tupinambá do século XVI. Repercutindo quando muito algumas preocupações clássicas dos sociólogos da Escola de Chicago  Robert Park e Everett Stonequist são citados como referências teóricas , as desventuras pessoais de Aipobureu são problematizadas como uma questão de “ajustamento”, lida, não obstante, a partir de uma espécie de etnografia das incompatibilidades culturais mentalmente recalcadas no personagem e não do meio social em que estava inserido. Diante dessa perspectiva, a história de vida de Aipobureu torna-se a história de um portentoso equívoco. Sem pretender sentenciar como equívoco ou como sucesso as trajetórias pessoais dos mediadores, talvez seja preferível observar seu entroncamento com as contingências sociais com que eles se viram ou se vêem confrontados. Parte disso acredito já ter realizado nos capítulos anteriores. O que faço a seguir é apenas transcrever dois relatos pessoais, com

o

intuito

de

iluminar

e

fornecer

mais

alguns

indícios

(não

necessariamente “dados”) a propósito de dois dos personagens que estiveram presentes nos capítulos anteriores, sem pretender reificar fenomenicamente o conteúdo desses relatos como chaves explicativas para o lugar que os seus narradores vieram socialmente ocupar. São antes testemunhos acerca das contingências que os singularizaram que propriamente histórias de vida. Em termos genéricos, as narrativas pessoais são também contínuas reconstruções discursivas que informam algo a respeito da maneira como os indivíduos encontram a si mesmos em determinados lugares e diante de determinadas situações, servindo, dessa forma, como um argumento performativo de legitimação. Nos relatos que se seguem apenas pontuarei brevemente, com notas de rodapé, alguns momentos que mereçam uma elucidação complementar ou que explicitem o jogo de alguns mecanismos discursivos1. As formas dos dois 1

Nesse caso, os familiarizados com Análise do Discurso perceberão que meu pressuposto teórico é o da polifonia do discurso, tal como formulado por Oswald Ducrot (1984).

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relatos são evidentemente bastante díspares e isso se deve em parte às condições em que foram colhidos. O primeiro dos entrevistados manifesta logo ao início do relato seu desconforto em narrar sua história pessoal. A despeito disso, fornece algumas observações que me pareceram proveitosas para esboçar a particularidade do seu percurso pessoal e as contingências que disseram respeito à geração de mediadores Bakairi a que pertence. Eu acrescentaria que, por ter sido o primeiro Bakairi a ocupar formal e oficialmente o cargo de professor, seu caso é também exemplar, daí ter mantido o seu depoimento como um dos meus exemplos. A retirada desse relato fragmentário do contexto de uma entrevista bem mais longa corre o risco, certamente, de corromper sua validade como manifestação efetiva do seu autor diante da sua própria história pessoal. Reconheço, portanto, que dispomos aqui de não mais do que indícios manifestados, de uma fala ocasional, sem que o narrador se dispusesse efetivamente a dar a conhecer, da maneira que ele julgaria mais apropriada, a sua própria história de vida. O segundo dos entrevistados (cronologicamente o primeiro), pelo contrário, mostrou-se animadoramente disposto a fazer um relato mais longo de sua história pessoal, demonstrando uma desenvoltura narrativa que nos propicia um registro particularmente significativo sobre o percurso de um xinguano com toda certeza singular. Não obstante, sua loquacidade narrativa parece reverberar a mesma dinâmica conversacional da tradição oral Kalapalo. O seu relato, nesse sentido, mesmo que traído pela escrita, guarda as marcas de uma autoria, que transforma o que seria um simples depoimento numa peça narrativa. De outra parte os dois relatos aportam estratégias discursivas bastante distintas, tal como pontuarei nas observações que farei em notas. O relato de Jeremias é marcado por uma polifonia conflitiva2, na qual o remetimento a várias perspectivas de enunciação desvela ao mesmo tempo uma tensão recorrente entre as expectativas dos muitos agentes sociais (o que inclui “brancos” e “índios”, genericamente falando) e a busca de uma legitimidade

do

seu

próprio

lugar social, que

ele

se

recorda como

precariamente construída. Essa conflitividade não me parece ser significativa no relato de Loike, que aponta para uma dinâmica discursiva em que o 2

Remeto-me à nota anterior, agregando que essa conflitividade é talvez a característica mais relevante, nesse caso, daquela que em Análise do Discurso é chamada de “heterogeneidade constitutiva” (cf. Maingueneau, 1989: Segunda Parte).

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estabelecimento de equanimidades  que poderiam ser vistas como a expressão discursiva da reciprocidade social  entre as diversas perspectivas de enunciação é o eixo que tende a arquitetar a discursividade. Creio que, nesse caso, as experiências do contato de ambos os povos estão aí a influir.







Entrevista com Jeremias Poiure (Bakairi), nascido em 1957, gravada em 30 de agosto de 1998, em sua casa na aldeia Pakuera, Terra Indígena Bakairi. P.3- Jeremias, você é contratado como professor? J.- Não, eu sou contratado como monitor bilíngüe. Eu trabalho há 17 anos na Funai... e hoje ‘tô aí... Só que eu não gosto de contar minhas carreira, sabe, porque é uma carreira bem triste. Eu comecei antes... antes do pessoal começar. E eu já não gosto de contar [...] isso, sabe. Foi uma luta muito grande4... P.- Você foi o primeiro a ser professor... O primeiro a ser contratado? J.- Sim foi. Inclusive eu fui... Era pra mim até sair da aldeia, daqui da aldeia central, quando estavam fundando a aldeia Aturua. Naquela época o Chefe do Posto era Orlando. Aí quando foi à tarde me chamaram. Só que eu tinha estudado nessa época, né, num colégio agrícola. Em Silvânia foi isso. Estudei no colégio interno lá. P.- Como foi isso? Você saiu da aldeia com quantos anos? J.- Ah, eu saí da aldeia com doze anos. P.-Foi estudar fora? Lá nesse colégio mesmo? J.- Não. Primeiro eu fui no Meruri, lá na terra dos Bororos, no colégio salesiano, dos padres. Até Padre João ‘tá lá ainda hoje. Aí, dali eu voltei...

3

A notação “P” refere-se a “pesquisador” (ou “perguntador”) e “J” a Jeremias. A indicação “[...]” significa que um pequeno trecho (inaudível ou irrelevante) foi suprimido para dar maior concatenação ao relato. 4

As invocatórias às adversidades experimentadas são uma constante em ambos os relatos que se estão a apresentar. Jeremias, entretanto, faz mais do que isso. Ele racionaliza, conceitua, abstrai e generaliza o significado das adversidades, como se verá mais adiante.

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P.- Voltou pra aldeia? J.- Não, fui embora pra frente. Fui até em Silvânia. O Padre João Bosco Penido Burnier, esse que foi matado em Ribeirão Bonito, Município de Barra do Garças5, foi ele que me arrumou [ir] pro colégio, lá em Silvânia, no Colégio Anchieta. P.- Você foi com quantos anos pra lá? J.- Ah, eu fui com dezesseis anos pra lá. Aí fiquei lá... até me formei, cursei primeiro grau... P.- Antes você tinha estudado aqui na aldeia? J.- Estudei aqui mesmo. Aí ficou uns tempos sem professora. Aqui a Professora Violeta tinha ido embora e... Foi aquela dureza, sabe. P.- Você chegou a se alfabetizar aqui? J.- Cheguei. Eu fiz primeiro ano, segundo, terceiro, até quarto ano primário. Aí fui estudar fora. P.- Aí foi estudar nos padres... Terminou o primeiro grau em Silvânia? J.- Terminei. Aí vim embora. P.- Saiu de lá com quantos anos? J.- Saí de lá com dezessete, dezoito anos. aí voltei pra aldeia. A Professora Míriam, que era coordenadora de educação da Funai, ela sempre perguntava pra mim: “Ah, o que [é] que você vai fazer lá? Será que você vai voltar mesmo pra aldeia? Você vai deixar da sua vida?...” Eu falei: Não, eu... Eu quero estudar... eu quero ser... sempre estar voltado, junto com a minha aldeia, junto com a minha comunidade, porque não adianta nada a gente sair fora, e de repente... Pra mim é ilusão... não é? Pra mim é ilusão abandonar as terras que o governo tem, na mão de... Apesar de que eles falam que é nossa terra... Porque, veja bem, eu tiro por mim mesmo... cada, cada... Nas férias sempre vinha pra cá. Fui transferido pra Estado de Goiás, estudei no colégio dos padres, na cidade de Silvânia, pra lá de Anápolis, fica a 60 Km dali. Eu estudei lá e sempre vinha pra cá nos dias de férias. Terminava as férias, ia embora. Inclusive eu ia montado daqui em Paranatinga, passava dois dias.

5

Pe. João Bosco Penido Burnier era coordenador do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) em Mato Grosso. Foi assassinado pela polícia no final de 1976.

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Hoje as criançadas têm mordomia, né. Você vê, viatura pra lá, viatura pra cá6. As criançada ‘tá numa mordomia desgraçada. Eu não. Eu, Estevão, Darlene... Na época de Darlene mesmo, montava num cavalo, ia embora. Era desse jeito. Sobretudo as coisas que a gente consegue pela dificuldade, você mantém. Você conserva, você dá valor naquele estudo, porque você teve dificuldade de ter aquele... aquele estudo... então você dá valor. Então, o que eu sou hoje, né? Eu dou valor no meu serviço, tenho valor no meu estudo. P.- Você sempre pensou em voltar pra aldeia? J.- Sempre pensei em voltar. Você vê, tanto é verdade que eu nem assisti à morte da minha mãe. Ela faleceu em Cuiabá e eu ‘tava estudando em Meruri, na terra dos Bororos. Você vê, nem a Funai me comunicou. Aí quando cheguei em Paranatinga, o Padre me mandou pra cá montado a cavalo, não, de Paranatinga até a Fazenda Cachoeira, fazenda de Bernardino, eu vim de carro junto com ele, de lá eu vim a pé. Eu vinha montado, só que o... pensei que o cara [da fazenda] não ia me arrumar cavalo, aí eu vim embora a pé mesmo. Aí eu cheguei aqui, minha mãe tinha falecido. Aí, mais e mais, não queria voltar e... mas eu sempre pensei, sempre fui voltado... vou voltar pra aqui pra aldeia, trabalhar junto com a comunidade... Hoje ‘tô aqui. P.- E quando você voltou, você foi fazer o quê? J.- Ah, eu fui fazer roça. Aí, passado um ano, [é] que a Funai me chamou, pra mim trabalhar. Eu e a Ilma, filha do Zé Augusto. Aí que nós começamos trabalhar, em 82. P.- Como monitor bilíngüe? J.- Como monitor bilíngüe. Ih, foi aquele sufoco, ‘tá louco! P.- Mas era pra fazer o quê como monitor bilíngüe? J.- Ah, dar aula pras criançada na língua... sem experiência assim de nada... Tive que levar tudo... na raça, sabe... Mas fui indo, dentro de seis meses peguei a prática. P.- Mas como foi essa sua experiência de ser monitor bilíngüe, como é que você aceitou isso e quais as suas expectativas com relação a isso?

6

A aldeia Pakuera dispõe de dois veículos que se deslocam freqüentemente a Paranatinga, passando por Aturua. Um é um velho caminhão obtido junto ao Polonoroeste, outro é uma moderna pickup adquirida pela Associação Kurâ-Bakairi.

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J.- Eu achei assim: que eu estudei pra ajudar como povo próprio meu povo, apesar de sempre tinha sonhado... Eu trabalhava na Secretaria de Educação lá em Silvânia. Então sempre lidei com a tal de nota, mexe com a nota, observava os professores dar aula. Eu nunca trabalhei de enxada, sabe. Sempre trabalhei só na... só na... Eu já trabalhei, quer ver... Quando cheguei em Silvânia... Eu trabalhava na Secretaria de Educação, eu e o Mauro Carapajós. Ele era carioca. Aí nós fomos convidados, né. Eu fui Segundo Assistente de... cuidar criança. Sempre lidei com as criançada. Então quando eu cheguei aqui... Eu acho que foi a bênção que Deus me deu. Eu tentei ajudar meu povo e... com muita dificuldade... P.- Naquela época a escola ‘tava funcionando? J.- Não ‘tava. [...] Nós que começamos tudo de novo. P.- Há quanto tempo a escola não estava funcionando? J.- Ah, ‘tava numa faixa de quatro a cinco anos que ‘tava parada. P.- Aí a Funai contratou você? J.- Sim. Até a comunidade não me acreditou, sabe! Vou falar a verdade pra você. Ah, isso que foi mais dureza, sabe! A comunidade não tinha confiança em mim. Só que eu fui firme, porque... veja bem... sempre... Eu não sei se todos os índios são assim, mas por onde passei, a maioria dos índios são desse jeito: Eles dão valor próprias aquelas pessoas que vêm de fora, porque eles têm aquele costume de branco... trazer aquela pessoa de fora pra dar valor. E própria pra aquela pessoa que ‘tá ali dentro, eles acham que não tem valor, eles acham que não sabe nada. Eu freqüentei essa boca. Eu sei que, quando eu cheguei aqui em dia 20 de outubro... ah, pessoal falaram muita coisa!... Aí eu fiquei desanimado, queria desanimar, e o Chefe do Posto falou que “Não! é assim mesmo, você tem que batalhar”... P.- Eles disseram muita coisa quando? J.- Quando fui empregado, quando fui contratado. Falaram que eu não sabia nada. Eles queriam branco aqui. Aquela revolta, sabe. Sempre quando você vai conversar com a pessoa, a pessoa vai alembrar do tal do SPI. Eles falavam assim que eu ia bater nas criança... Mas não era nada disso, porque a lei naquela época... o governo já tinha sancionado, né, já tinha

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divulgado publicamente...7 Aí eu lutei, até consegui, veja bem, tantos professores hoje!... Eu tava observando hoje: 21 professores! De um, triplicou! E quem são os professore hoje? São todos índios. P.- Chegaram a ser seus alunos? J.- Tem. Tem vários alunos meus aí... que foram meus alunos. O Evandro mesmo, aquele técnico em contabilidade. O Aguinaldo foi meu aluno, hoje tem magistério8, tem estudo mais do que eu. Veja bem, aí que ‘tá o negócio! Eu sempre falava assim: Olha, você tem que estudar... (naquela escola ali, oh)... Um dia vocês [vão] estudar. Quando vocês estudarem, vocês vão ser mais do que eu, vocês não vão reconhecer quem sou eu. Eu sempre fui firme nessa palavra. Tem muito professor aí que foram meus alunos. P.- E onde é que você acha que esse estudo das pessoas pode levar? J.- Você sabe por que eu estou falando isso? Porque se nós tivéssemos assim... Se um índio não tivesse estudado... Se meus alunos não tivessem estudado, não estaria ajudando o povo. Eu não quero somente eu, eu, eu, eu... eu quero que meus colegas também estudem, pra defender a parte daqui, defender a comunidade, porque hoje nós temos... nós estamos vivendo num projeto... nós temos a Associação aí... então tudo tem que ser levado. Não adianta nada eu falar assim: “Não, você não pode estudar”. Hoje os pais das crianças também não são besta. Hoje nós entendemos que há dificuldade grande em termos da sociedade, tanto como índio, tanto como branco. P.- E como é que você acha que foi a mudança daquele primeiro momento que o pessoal achava que um índio não poderia dar conta da escola até hoje em dia? 7

É difícil identificar com precisão a que se remete essa assertiva de Jeremias. Se isso se referiria genericamente à competência formal dos índios a assumir funções de magistério ou se, como creio mais provável (por ser imediatamente contemporâneo), se refere à Portaria no 779/N, de 05/08/82, da Funai, que estabelece no art. 7o (“é vedado ao professor e ao monitor bilíngüe”), alínea V: “faltar com o devido respeito à dignidade do aluno ou a ele se dirigir em termos e atitudes inadequadas”; e alínea VI: “aplicar penalidades aos alunos que não sejam as de advertência ou repreensão, considerando para isso o seu grau de aculturação” (apud Cunha, 1990: 65). De qualquer maneira, o mais relevante aí é a ocorrência, como em outras tantas situações que presenciei entre os Bakairi, do remetimento à esfera de legitimação do mundo dos brancos, sacralizada na formalidade dos dispositivos oficiais. Isso serve a um tempo como arrimo e como ponto de questionamento, tal como Jeremias faz mais acima quando se remete à situação da terra. Esse recurso e ao mesmo tempo essa dubiedade expressam uma inclusividade sempre tensa dos Bakairi num contexto nacional e algo que conforma os discursos Bakairi (como mostrou Tânia Clemente de Souza, 1991 e 1994) como constructos heteróclitos, com remetimentos a diferentes esferas de legitimação. 8

Aguinaldo concluiu Pedagogia (curso superior) em 1997.

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J.- Eles tinham na cabeça só a época do SPI, como eu falei antes pra você. Então eles achavam que a criançada era... tinha [...] com a palmatória, tinha que bater pra estudar, tinha que botar de castigo, puxar a orelha, esse tipo de coisa. Mas a real mesmo... Aí eles foram entendendo que não podia acontecer isso. As criançada tinha que ser tratada com carinho. A criança tinha que estudar, não batendo. Então eles foram entendendo até hoje. ‘Tão conseguindo entender. Nós professores temos autorização pra botar a criança de castigo, mas nós nunca podemos fazer isso9. Eu não faço. Por exemplo, pra criança respeitar você, você tem que respeitar a criança. Nós adultos temos que demonstrar uma educação pra a criança. Eu penso isso, e vejo isso. P.- Você estudou muito em escolas dos brancos. Como é que você usou seu conhecimento ou adaptou isso pra usar aqui na aldeia? J.- Olha, eu penso o seguinte: [Se] a comunidade estiver com a consciência bem... como se fala?... bem livre, né, eu acho que... Nós, por exemplo... Nós precisamos de aprofundar mais na estrutura escolar, organizar pra a pessoa a educação, ter um ensino bem... diferenciado mesmo, só que, embora... tá um pouco difícil ainda de acontecer, mas eu acredito que um dia nós chegamos lá.







Entrevista com Loike Kalapalo, nascido em 1970 (?), gravada em 22 de julho de 1998, na escola da aldeia Tanguro, Alto Xingu.10 L.- Eu nasci aqui no Xingu, na aldeia Nahukwá. [Eu] devia ter uns três anos de idade quando meu pai resolveu sair daqui do Xingu. Porque na nossa sociedade existe muitas fofocas sobre feiticeiro, essas coisas, e meu pai era acusado de ser feiticeiro. Ele ficava muito triste com as estórias que ouvia. Ele se julgava que não era, e o pessoal julgava, ao mesmo tempo, que ele era. Então ficou assim: ele contra o povo. Aí o que é que ele fez? Ele resolveu sair 9 10

Eis outro momento em que há um confronto implícito de domínios de legitimação.

Diferentemente de Jeremias, que manifestou seu desconforto inicial em fazer um relato de vida, Loike, instado a fazê-lo, aceitou o exercício. A maior parte da entrevista é o encadeamento cronológico de sua história pessoal. Algumas perguntas pontuais foram feitas no decorrer da narrativa, como demanda de uma ou outra elucidação formal (ano do ocorrido, idade de Loike etc) e como marcação da presença atenta e interessada do entrevistador.

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daqui para ver se ele pararia de fazer o mal para os outros. Aí seguimos em destino à aldeia dos Bakairi, que fica muito longe daqui11. P.- Por que vocês foram para os Bakairi? L.- Porque a infância da minha mãe foi nos Bakairi. Ela foi criada lá, os pais dela tudo morreram lá. A mãe morreu no Bakairi, o pai morreu na Reserva Marechal Rondon, que é o Batovi, que tem o Posto Batovi. Minha mãe conhecia esse caminho todo, e meu pai, como queria se ver livre do povo, resolveu levar a gente para lá, me levar  eu sou filho único dele. P.- Mas sua mãe é... Matipu12? L.- Ela é Nahukwá. Aí meu pai saiu. Era tempo das águas, era muito cheio. Seguimos o Rio Curisevo e fomos. Não sei quanto tempo nós levamos, porque na época o Rio Curisevo, pra cima do limite, não era habitado pelos fazendeiros como é hoje agora, porque se fosse hoje em dia seria muito mais fácil; a gente sairia por aqui por Sayonara... Naquela época não existia... vizinhos nossos. Aí fomos. Nossa comida acabou no meio da viagem. Aí fomos nos alimentando de frutas. Até eu fiquei muito doente, e o meu pai achou que eu não ia mais sobreviver. Conseguimos chegar numa fazenda [...]. Minha mãe reconheceu o lugar. Paramos nesse antigo acampamento abandonado. Isso já depois de muito tempo de sofrimento durante o tempo que nós viajamos.[...] Pousamos lá. No outro dia seguimos a caminho até uma saída... de uma fazenda. E tinha um acampamento lá muito velho, onde nós encontramos feijão, arroz e açúcar13. Então isso parece que veio, assim né... pra gente como 11

A continuação do relato especificará que esse “muito longe” significa a distância de um “périplo”, ao mesmo tempo que se prestaria a indicar um exílio seguro, além do alcance das relações xinguanas (o que não ocorreria no caso do Posto Leonardo, reduto principal de asilo, tal como recordei ao final do capítulo 4). Dessa forma, o território bakairi ocupa uma posição “liminar”, ou seja, ao mesmo tempo em que os Bakairi estariam já fora dos domínios da xinguanidade efetiva, são, todavia, conhecidos e potencialmente familiares (a eles não caberia a classificação de ngikogo  “índios brabos”). Não é o que ocorre com relação a outros territórios indígenas, onde pairaria a ameaça simbólica da morte, como a mãe de Loike expressará frente ao Nambikwara. 12

À época Matipu e Nahukwá formavam uma só aldeia. Da Kalu, mãe de Loike, diz que “todos os seus parentes” são Matipu e, ao que me expressou, parece sentir-se mais familiarizada junto a esse povo. 13

A maneira como Loike se detém e detalha essa parte de sua história pessoal, ocorrida quando tinha apenas três anos, denota ter havido aí o cultivo de uma narrativa de reconstituição, que é, ao mesmo tempo, a evocação de um percurso iniciático e que pode funcionar também como uma espécie de mitologia pessoal. Essa narrativa é informada pelas lembranças de sua mãe, já que, como se verá adiante, seu pai morreu quando Loike era ainda muito jovem. Isso é reforçado pelas marcas enunciativas que, no correr da narrativa, dão espaço a impressões e sentimentos pessoais da mãe, como logo se observará. Ao que pude intuir das minhas observações em campo (e do que esta narrativa tem aqui implícito  que agora explicito), as memórias da mãe constituem um elemento importante na elaboração de um sentido de si para Loike e, arriscaria dizer, o fio que o manteve ligado ao mundo xinguano e o permitiu encontrar

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uma coisa... [...] Por coincidência tinha até linha de pesca, tinha farinha, tinha tudo lá nesse lugar [...]. Ficamos dois, três dias lá. Seguimos. Levamos alguns quilos de farinha. Andamos o dia todo. Minha mãe não estava mais agüentando andar14 porque era estrada de pedregulhos [...] No outro dia levantamos bem cedo [...] e minha mãe, de tão cansada, tinha até esquecido do trilho que desviava o caminho para poder chegar no Batovi, na área Marechal

Rondon,

dos

Xavante.

Minha

mãe

passou

esse

caminho

despercebido [...]. Por coincidência  acho que tudo estava ajudando a gente  veio uma caminhonete [...]. Aí parou, minha mãe perguntou: “Onde fica a estrada que vai pro Batovi?”. “Ih, ficou muito pra trás, mas eu levo vocês.”15 Aí pôs a gente em cima da caminhonete. Aí voltamos. O motorista parou [...] Minha mãe falou assim: “Moço, meu filho estava passando muito mal, doente, fraco e nós comemos a comida que tem lá na outra fazenda. É de vocês?” O cara falou: “Não, não é nossa”. “Mas você conhece o dono da comida?”. “Conheço”. “Então leva isso aqui pra ele”. E deu uma esteira para o cara, e deu outra esteira para o dono da caminhonete, agradecendo16. Aí nós seguimos [...] pousando quase chegando o posto dos Xavante, o Posto Batovi. No outro dia os Xavante receberam a gente porque o Xavante era acostumado já receber o pessoal do Nahukwá, que sempre ia lá... assim, meio com sisma. Aí a gente ficou lá. Meu pai fez amizade com o pessoal lá, fez uma troca de espingarda com alimento17. Aí ficamos lá. Fomos recebidos pelo Chefe do Posto, que chama Francisco, mais conhecido como Chico, que trabalha agora na ADR de Cuiabá, acho que é até Chefe de Posto dos Bororo. Aí tinha a esposa dele também e fez amizade com a minha mãe. Os Xavante sempre foram encrenqueiros, aí encrencaram com o Chefe do Posto. Aí, meu pai... Ele quis levar meu pai junto pra Cuiabá. Aí meu pai foi junto, quer dizer, nós nele um lugar. Poder-se-ia dizer mesmo que, em certa medida, foi a mãe que acabou por substituir o lugar do pai na formação que deveria ocorrer no período de reclusão xinguana (que Loike não cumpriu). Mas esta é, no entanto, uma hipótese muito fraca e serve apenas como uma indicação genérica. 14

Eis uma das marcas enunciativas das memórias da mãe.

15

Essa é outra, mais sutil, marca enunciativa das memórias da mãe. A narrativa que, para Loike, desenrola-se num tempo às margens da consciência, é construída sobre o mesmo modelo conversacional (Basso, s.d.) das narrativas orais xinguanas. 16

A esteira de que se trata é a esteira que é usada para coar a raspa da mandioca que dará origem ao polvilho para fazer beiju. É hoje um dos objetos dos xinguanos que encontra espaço no comércio de artesanato com os brancos. Independente da precisão objetiva do relato, esse trecho expressa, sobretudo, o momento simbólico inauguratório de constituição de um domínio de reciprocidade positiva com o “mundo dos brancos”, domínio que doravante, de diversas formas, irá se reinstaurar continuamente. 17

Novamente o sinal de estabelecimento de reciprocidade com o mundo “estranho”.

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todos fomos juntos na caminhonete. Teve que... saímos fugido. O Chefe do Posto lá saiu fugido. Aí ele levou a gente pra Cuiabá. Ficamos hospedados na casa dele. Tinha um galpãozinho no fundo da casa dele. Ficamos algum tempo lá [...]. Aí ele levou a gente pra Funai. Da Funai, ele levou a gente pra a chácara ambulatório da Funai e ficamos lá. E lá encontramos um rapaz Kalapalo que é o Kunué, e o Kunué era filho do irmão dele [o pai de Loike]. Aí minha mãe já viu o Bakairi lá e falou que queria ir pra a aldeia dele.[...] Viemos todos nós para o Bakairi. Chegou lá, minha mãe entendia um pouco de bakairi, e tinha uma velha que entendia um pouco da língua do Nahukwá. Aí ficou lá. Mas não demorou muito tempo de a gente ficar lá não [e] meu pai logo adoeceu. Foi pra Campo Grande. não sei quanto tempo ficou, parece que até um ano, longe da gente. Ele pegou uma doença que chamava fogo selvagem.[...] Quando ele voltou estava com uma aparência de recuperado, a mancha no rosto já muito cicatrizada. Mas parece que ele voltou só pra dar conselho pra gente. Segundo ele, e até o pessoal mesmo acredita, que fizeram uma espécie de feitiço pra ele. Deram um alimento pra ele contaminado com sangue de onça, alguma coisa assim, que o pessoal aqui entende [o que é]. Hoje em dia eu prefiro nem acreditar muito nessas coisas, só pra o meu corpo resistir a esse tipo de mal18. Aí ele voltou, trouxe muito presente pra minha mãe.[...] Não passou dois meses, voltou a doença de novo. Ele ficou muito mal de repente. Veio um avião pegar ele, e ele falou pra minha mãe que era a última viagem dele. Acho que já sobrevoando Cuiabá ele faleceu. [...] Daí pra minha mãe foi uma coisa muito dolorida. Existia um índio que morava lá nos Bakairi, do grupo Nambikwara, que foi casado com uma índia Bakairi. Parece que não deu certo e largou, mas convivia com os Bakairi, e meu pai fez amizade com ele[...]. [Meu pai] pediu que caso viesse a falecer que ele cuidasse de mim e da minha mãe. Isso ficou na memória dessa pessoa. Minha mãe depois de muita dor, sofrimento [...] se juntou com ele. [...] Daí nós viemos morar na aldeia dos Xavante, porque perto dos Bakairi existia uma 18

A idéia do feitiço, ou antes o problema em torno da sua causalidade, ocupa um lugar crucial nas especulações de Loike e, arrisco-me a supor, parece ser uma dessas zonas de sombra do entrecruzamento de distintas relações simbólicas. Por um lado há o reiterado discurso xinguano a respeito do risco do feitiço, que incidiria em particular sobre Loike, como represália difusa mas sempre atualizada ao que se supunham ser as ações de seu pai, por outro lado Loike recorre enfaticamente a uma causalidade nãoindígena (científica) para negar a existência do tipo de relação informada pela lógica do feitiço. Se esse recurso permite à sua consciência eximir definitivamente o pai das acusações de que era vítima, faz também com que seja reconhecido como “teimoso” pelos Kalapalo. Ao retornar ao Xingu, Loike teria sido procurado por um Kalapalo que lhe argumentou não ter tido nenhuma participação na morte de seu pai. Esse Kalapalo foi recentemente executado como feiticeiro por um grupo de Aifa.

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aldeia lá que chamava Paraíso, aldeia dos Xavante. Esses Xavante mudaram aqui para o Culuene. P.- Você tinha que idade nessa época? L.- Acho que eu devia ter uns seis anos, seis a sete [...]. O Chefe do Posto lá era uma branca, descendente de alemães, a Herta [?] que foi esposa do Seu Fritz19. Eu gostava muito dela. Ficamos acho que até um ano lá nos Xavante, até aprendi a falar a língua dos Xavante, comia o que eles comiam lá também20. P.- Você se lembra alguma coisa da língua? L.- Eu lembro alguma coisinha... Aí depois nós voltamos pra aldeia dos Bakairi [...] Aí tinha uma família dos Kalapalo lá, já nos Bakairi. [...] Ele [o Kalapalo que estava nos Bakairi] foi com a missão de buscar o sobrinho dele, que era o Kunué, pra pegar minha mãe também e eu. Mas só que no dia da partida eu corri pro mato e fiquei escondido. Eu não quis vir, porque a minha idéia era nunca mais voltar pra cá, depois de tanta maldade que a gente... que fizeram assim acusando... [...] Aí o que [é] que aconteceu? Eu corri, né. Minha mãe ficou me procurando. O pessoal estava com pressa de sair. Eu fiquei escondido no mato. Passei quase um dia e uma noite no mato, só pra não vim embora. Aí esse velho também [o Nambikwara], o Pedro, que era meu padrasto... eu fiquei assim com dó, porque se eu viesse pra cá eu ia estar deixando uma pessoa que estava me orientando, que ‘tava cuidando de mim. Até por coincidência também, essa pessoa... ele quis sair dessa aldeia também, ele quis levar a gente pra o povo dele. Eu já até chamava essa pessoa de pai [...]. Aí fomos pra Cuiabá. P.- Nessa época você falava o bakairi? L.- Falava bakairi. Bakairi é minha língua também. De lá ele conseguiu um avião e levou a gente lá pra o norte de Mato Grosso. A gente aterrisou em uma das aldeias que tinha pista de pouso e de lá a gente foi pra 19

Loike refere-se a Fritz Tolksdorf, etnólogo alemão (já falecido), autor de Ethnographische Beobachtungen in Zentral-Brasilien (1956), que se radicou no Mato Grosso e de quem Loike se tornaria prótegé. Garve e Jesco von Puttkamer (1995), em um trabalho de divulgação científica, apresentam Loike (com uma foto da década de 80) como “filho adotivo” de Tolksdorf. 20

A relevância dessa observação diz respeito a algumas incompatibilidades de prescrições alimentares entre os grupos alto-xinguanos e os grupos Jê, além de dizer respeito à participação na distribuição alimentar, focada na família extensa. Loike refere-se portanto a um considerável estreitamento de laços.

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aldeia dele. A minha mãe ficava assim muito assustada, achava que a gente ‘tava indo pro outro mundo, que o pessoal ia matar a gente. A minha mãe falava: “Oh, a gente não vai não, porque se o pessoal descobrir que você [Loike] não é filho verdadeiro dele, vai matar a gente”. Eu falava pra minha mãe; “Também não é assim, ninguém vai querer matar a gente assim...”21. E os Bakairi passavam muito susto na minha mãe, de que lá tinha bicho que cortava pescoço, não sei o quê lá... Minha mãe ficava assustada com esse tipo de coisa. Aí nós chegamos na aldeia dele bem no final da tarde. Foi uma alegria imensa, porque essa pessoa que estava lá tinha muitos anos que não ia pra lá, muito tempo mesmo. E vendo a gente então... Eu, parece, que desde novo já gostava de fazer amizade. Levei uma bola, as crianças já vieram brincar comigo. Aí depois nós fomos para uma casa... Ficamos morando lá... inclusive ele tinha um irmão, mãe verdadeira... A gente ficou lá. Aí era período de festa deles. Eles fazem festa de menina presa. [...] Eu já me pintei igual a eles, já fui dançar com eles... Aí todo mundo passou a gostar da gente. O pessoal tinha muita comida lá nesse lugar. Só que o problema desse pessoal é que eles moravam perto da cidade, de Rondônia, que chama Vilhena, e esse pessoal bebia muito. Aí o que [é] que aconteceu? Esse velho, meu padrasto, começou a se juntar com o pessoal e começou a beber muito e começou a maltratar minha mãe. Aí minha mãe... eu já tinha noção de alguma coisa, fiquei com dó da minha mãe, porque o culpado de tudo isso era eu, que tinha levado a minha mãe junto. Aí tinha o pessoal que trabalhava na Funai, tinha três chefes de posto lá, o Marcelo, que era responsável por essa aldeia, aldeia Aroeira, que era onde nós ficava, tinha o Sílbone [?], que tomava conta do Vale do Guaporé, [...] e tinha o Ariovaldo, que tomava conta dos Nambikwara do campo. O Ariovaldo era uma pessoa muito comunicativa. Ele fez amizade com a minha mãe. Minha mãe começou a fazer esteirinha... Aí ele falou assim: “Vamos morar lá pra minha aldeia”  que é hoje uma aldeia que fica dentro do Município de Comodoro [MT]. Aí nós fomos pra lá. Minha mãe largou desse velho. Lá que eu conheci o Fritz, que era na época coordenador do Projeto Nambikwara. Aí o Raimundo22 começou a namorar a minha mãe, e pra mim não atrapalhar o namoro dos dois, eles arrumaram uma bolsa de estudos pra mim. 21

Loike dá a entender já conceber uma noção universal de “humanidade”, para além dos limites da reciprocidade constatada. 22

Raimundo é Nambikwara e vive atualmente com Da Kalu em Tanguro.

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P.- Com que idade? L.- Oito anos já. Aí me mandaram pra um lugar bem longe. Não precisava nem tanto assim... me mandar pra tão longe. Me mandaram pra uma missão lá em Dourados, inclusive lá na missão onde ficavam os Guarani, os Terena. Aí eu fiquei lá um ano. Minha mãe ficou com muita saudade e arrumaram uma passagem para ela. Ela foi lá me visitar no meio do ano. Era tão longe que não compensava ir [para a aldeia] nas férias do meio do ano. Se fosse hoje em dia era tudo fácil, porque a estrada, a 364, que hoje é asfaltada, era estrada de chão. Aí eu fiquei lá, fiz a primeira série lá. Depois eu voltei, nas férias do fim do ano. Minha mãe não queria que eu voltasse mais pra lá e esse Arivaldo arrumou uma família pra mim morar. Era uma família que o marido era mecânico e dava assistência nos carros da Funai. Era um japonês, Yoshio Murakama, que foi outro pai pra mim também. A esposa dele, Dona Esmeralda, cuidou muito bem de mim. Aí eu fiquei morando lá. P.- Onde isso, em Cuiabá? L.- Não em Vilhena, de 79 até 83. Eu fiquei estudando. Estudava de manhã e na parte da tarde trabalhava na oficina com eles, daí eu manjo mais ou menos de mecânica. Aprendi a dirigir... tudo lá nessa oficina. Terminei a 5a série do ginásio e vim pra Chapada dos Guimarães, morar na casa do Seu Fritz, porque lá em Vilhena era Seu Fritz que me sustentava, mandava dinheiro pra comprar roupa, livro. Aí eu vim morar em Chapada. Lá eu concluí o ginásio numa escola estadual e aí eu fui estudar em São Vicente, numa escola agrícola. Passei três anos lá. P.- São Vicente fica aonde? L.- É na Serra de São Vicente; dá 86 Km de Cuiabá. É uma vila que tem lá. Lá tem uma escola, Agrotécnica Federal, que é uma escola agrícola. Eu fiquei três anos lá nessa escola agrícola. Fiz o segundo grau lá, como técnico em agropecuária. Quando terminei voltei pra Vilhena, pros Nambikwara. P.-Você chegou a aprender a falar a língua dos Nambikwara? L.- Não. Eu entendia muito pouco. Eu voltei pra lá. Lá eu comecei... O pessoal me achava assim muito articulador, aí me levaram pras aldeias, fazer reunião. P.- Isso em que ano?

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L.- Isso já é em 90, porque eu me formei em 89. P.- Com que idade? L.- Dezenove. Aí eu voltei pra lá. Em Vilhena eu comecei a trabalhar assim voluntariamente pra fazer fiscalização de área. Davam viatura pra mim, juntamente com outro Chefe de Posto do Nambikwara, o Osmar, e a gente fazia fiscalização, eu e ele. E eu comecei pegar madeireiro que tinha envolvimento com chefes de posto, e [...] quando a gente ia investigar a fundo, via que era coisa verdadeira. Aí o próprio pessoal do município já começou a implicar comigo, fazia minha caveira para os índios, falava que eu ‘tava estragando a transação de madeira com eles. Porque a Funai não dava nada... Você sabe como é, o branco quando quer uma coisa, ele consegue. A destruição de madeira era muito grande lá. Aí os Nambikwara não queriam que eu morasse mais na aldeia deles. Aí eu saí de lá. Fui morar numa outra aldeia, do mesmo grupo Nambikwara, só que era Mamaindê. Aí eu fiquei morando lá. Por coincidência também o Chefe do Posto do Nambikwara foi transferido para lá. Aí eu fiquei morando com ele lá. Eu entendia um pouco de mecânica. Eu ficava fazendo manutenção nos carros do pessoal. Tinha uma escola lá que não tinha professor. Um dia eu ‘tava passando na prefeitura de Comodoro e vi lá inscrição pra professor. Fiz inscrição lá, quando foi no dia da prova, fui lá, fiz a prova e passei. Aí comecei lecionar dentro da aldeia. Tinha 76 alunos. Era muito aluno, eu ficava quase maluco. Não tinha muita experiência, ficava quase doido em sala de aula. Um dia eu fui jogar bola em uma outra aldeia. Aí conheci uma índia lá, quer dizer, a gente já se conhecia há muito tempo. Até por uma brincadeira, quando ela era novinha, minha mãe falou que ela se casaria comigo quando crescesse. Acho que isso ficou na memória dos pais e aí fizeram eu casar com ela. Em princípio eu não queria... Aí quando casei com ela, eu não fiquei morando na aldeia dela, eu levei lá pra outra aldeia onde eu trabalhava. Quando chegou lá as meninas começaram a implicar com ela... “Em vez de casar com a gente aqui, foi casar com o pessoal da outra aldeia”. Começaram a implicar com ela. Eu fiquei com dó dela e a gente resolveu ir morar junto com os pais dela. Aí construímos uma casa, me transferi pra lá na Prefeitura e comecei a dar aula lá também. P.- Como se chamava a aldeia? L.- Negarotê. Aí eu fiquei lá lecionando. Minha mãe sempre vinha pra cá pra o Xingu. A primeira vez que eu vim pra cá foi em 85. Eu vim de avião.

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Desci no Leonardo. Só conheci a aldeia Kalapalo lá de baixo [Aifa]. Eu fiquei assim muito assustado... com o jeito... logo de cara eu vi minha tia falecendo, que era esposa do Majuta, e o pessoal falava: “É feitiço!”. Eu já fiquei muito assustado com isso. Aquela choradeira toda, o pessoal bravo, eu achei que era sempre assim. Aí depois o meu irmão, depois de muito contato já com a minha mãe... minha mãe vinha sempre aqui [em Tanguro] passear, ou lá em baixo [em Aifa]... aí o Vanité [o irmão] começou a freqüentar lá também e sempre falava: “Não. Volta pra lá, trabalhar com a gente, com o pessoal”. P.- Nessa época já existia Tanguro? L.- Já. Já existia Tanguro. Aí eu fiquei assim... Tá eu vou lá ver. Aí eu vim aqui em 91, fiquei uma semana e gostei do lugar. A aldeia era bem menor do que agora. [...] Aí, só depois de casado eu voltei aqui. P.- Quando você já era casado com essa moça Nambikwara? L.- É. Eu já tinha até uma filhinha com ela. Aí pessoal... o Luis falou assim: “Ah, você não quer ficar aqui morando com a gente, trabalhando, dando aula aqui? porque nós temos um amigo em São Carlos que ele tem vontade de pôr a escola, mas ele quer que o professor seja índio, ele não quer pôr um professor dele aqui morando, que ele não ia agüentar ficar aqui.” A Funai também na época já estava deixando asim de mão esse setor de educação.[...] Aí me levaram. Eles fizeram artesanato, venderam, conseguiram dinheiro, aí me levaram pra São Carlos. Levei meu currículo, o Maurício gostou muito, até mesmo da idéia como eu trabalhava. Aí ele já logo de cara: “Tem carteira de trabalho? Se você quiser já pode começar a trabalhar a partir desse ano”. Era em janeiro isso. P.-Isso foi em janeiro de... L.- 93. Aí ele me registrou já como funcionário dele, mesmo empregado lá em Comodoro. Até o salário era menor do que lá. Aí eu voltei aqui e fiquei assim... não sabia se vinha ou não. Aí eu fui pra Vilhena, e o pessoal começou a ligar: “Você vem ou não vem?” Aí lá já ‘tava tendo muita confusão mesmo com madeira, e eu falei: “Ah, vou embora”. Perguntei a minha esposa se ela queria vim. Daí [ela] falou que não vinha. Os pais dela enfiou um monte de besteira na cabeça... que os Kalapalo iam matar ela... Ela não quis vim. Então eu vou embora. Vim embora. Antes disso, eu fui pra Vilhena, para pôr a cabeça no lugar, pensar se era realmente isso que eu

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queria. Fiquei lá um tempo, tentando esquecer minha filha. Aí eu vim embora pra cá. P.- Foi quando isso? L.- No final de março. E estou aqui até hoje. P.- Você ficou quando em Chapada? L.- De 84 a 86. Em São Vicente, de 87 a 89. P.- Nesse tempo em São Vicente, quando você tinha férias, você ia pra Chapada?... L.- Não. todo final de semana ia pra Chapada. Só durante a semana que eu ficava lá. Todo final de semana eu descia pra Chapada. Ia pra Cuiabá. De Cuiabá pegava o ônibus. O Seu Fritz já estava lá. Na sexta-feira à tarde eles iam embora, depois do expediente na Funai, ‘que eles [Seu Fritz e esposa] trabalhavam na Funai. Às vezes me esperavam [em Cuiabá], às vezes não. P.- Hoje você é casado lá em Canarana com a Marli23. Onde é que você conheceu ela? L.- Eu conheci em Vilhena.[...] A gente já namorava há muito tempo lá, e eu não vim junto com ela. Ela que, depois de eu estar aqui... a gente ficou sempre assim se comunicando. Aí um dia ela escreveu pra mim que viria pra cá. Eu ‘tava viajando pra São Paulo [e] na Barra do Garças faz uma conexão de ônibus que vem de Cuiabá [para Canarana]. Quando eu parei lá eu vi ela.[...] “Que é que você está fazendo aí?”. “Eu vim visitar...”.“Então tá”. Aí a gente ficou morando. A gente não tinha compromisso nenhum. Logo surgiu o Alisson, que é o nosso filho. Ela foi embora pra Rondônia. Foi lá, ganhou neném, achou que devíamos morar juntos e aí [a gente] ficou morando. Logo depois já sugiu o outro menino também. P.- Hoje você, além de ser professor aqui, além de morar aqui e em Canarana, você também faz parte do Conselho de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação do Estado. Como foi isso? Como é que lhe chamaram para o Conselho? L.- Quando eu morava em Rondônia, eu já tinha muito contato com o pessoal da Secretaria de Educação, participava de encontros de professores.

23

Marli é a esposa branca de Loike.

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Desde 90 até 92 eu já vinha participando de tudo. E eu fui escolhido lá na época, já vim de lá assim. Era só assim, era tipo um conselheiro, não tinha nem o Conselho de Educação Escolar Indígena ainda. Recentemente que foi criado isso24. Aí apenas me procuraram, me integraram no meio deles. [...] Quando eles ficaram sabendo que eu estava aqui ficaram muito felizes também, ‘que daqui eu ia levar outra novidade pra eles... P.- Além do Conselho de Educação Escolar Indígena do Estado, do contato com o pessoal do La Salle, através do Seu Fritz você fez relações com mais alguém? L.- Através do Seu Fritz eu não tive muito contato assim... porque eu não tinha tempo, e eu também era novo, não tinha muita reflexão do que eu ia fazer, e a minha idéia era geralmente voltada assim para os Nambikwara, porque era lá que eu morava. Os Nambikwara não têm muitos padrinhos, que nem aqui no Xingu. O que eu tive do Seu Fritz é a experiência que ele me passou, de honestidade. Ele era uma pessoa muito honesta. Às vezes pessoal pedia dinheiro pra ele, falava: “Ah, eu vou fazer um projeto de criação de galinha pros índios”. Ele dava dinheiro, e tinha vez que nem aparecia isso. Então era uma coisa que eu via, que o pessoal sacaneava ele, que eu gostaria de não fazer com mais ninguém. Isso que eu aprendi com ele.







Pretendi ilustrar, com esses dois relatos, de como as histórias pessoais dos agentes podem contar no processo de construção de lugares sociais , ou, em última instância, no processo de “mudança social”  esta é outra muleta terminológica da qual às vezes se tem de lançar mão, mesmo que, genericamente, eu não creia que haja uma forma de “normalidade” social 24

Já a partir de 1982 a OPAN (então ainda designada como Operação Anchieta) passou a realizar encontros bienais de educação escolar indígena em Mato Grosso (Secchi, 1995: 25). Em 1987 várias instituições (OPAN, Fundação Educar, Missão Salesiana, CIMI etc) agruparam-se em torno do NEI (Núcleo de Educação Indígena), criado sob o patrocínio da Secretaria de Educação do Estado como “um fórum de discussões sem caráter oficial entre as diversas instituições e ONGs envolvidas, com a finalidade de otimizar os recursos humanos e financeiros, garantindo a participação das comunidades e representantes indígenas, traçando em conjunto as diretrizes da política de educação indígena para o Estado” (apud Secchi, 1995: 26). Em 1992, com a mudança de governo, o NEI foi desativado. Em 1995 rearticula-se a posição da Secretaria de Educação a esse respeito e cria-se oficialmente, em julho desse ano, o Conselho de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso (Barros, 1997b).

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que não seja a “mudança”. No caso, trata-se da construção de lugares de mediação. Mas, parece-me claro, como antes expus, que a construção desses lugares não depende apenas do aporte pessoal desses atores. E não é uma questão que possa ser deduzida de atributos de psicologias individuais, como o estigma de um Tiago Marques Aipobureu poderia levar a supor. O que torna alguém um mediador é o processo social que assim o constitui. A apresentação desses relatos pretendeu ilustrar, antes que levar a deduzir, de como percursos (por mais diversos que sejam) por outros contextos sociais podem servir para alguns atores como meios de agenciar recursos de mediação. Com isso, tal como os cameramen Kayapó descritos por Terence Turner (1992), esses mediadores buscariam propositadamente  e com todo interesse, não apenas deles, senão também do meio social em que se inserem (de outra forma não seriam mediadores)  uma espécie de “adulteração intercultural”, em lugar da manutenção de uma “virgindade cultural” (Turner, 1992). Na verdade, talvez esses espirituosos malabarismos terminológicos de Terence Turner desvelem que a questão pode tão simplesmente não dizer respeito a uma presumida “culturalidade”, e que, de outra parte, colocá-la nesses termos equivaleria a cair (o analista) presa de malabarismos e dilemas verdadeiramente insolúveis.

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Conclusão (também de moral)

“Cristãos, capitalistas, marxistas, todos eles têm sido revolucionários em suas próprias mentes. Mas nenhum deles realmente propõe a revolução. O que propõem realmente é a continuação. Eles fazem o que fazem de modo a permitir que a cultura européia continue a se desenvolver de acordo com as suas necessidades. Como os germes, a cultura européia passa por convulsões ocasionais, até mesmo divisões dentro de si, de modo a continuar vivendo e crescendo. Não é de uma revolução que estamos falando, mas de um modo de continuar o que já existe.” Russel Means (American Indian Movement - AIM/EUA)

Procurei apresentar no curso deste trabalho uma breve incursão por um cenário alto-xinguano que no correr dos últimos séculos, e mais intensamente na última metade de século, vem sendo continuamente redesenhado pelo contato com a sociedade nacional brasileira. Pretendi observar que nem xinguanos (e por extensão os “índios”) nem “brancos” podem ser reduzidos a totalizações que operam logicamente um mecanismo de causalidade histórica. O sistema social alto-xinguano (como qualquer um) é movido por muitos atores e muitos imperativos; e os brancos também o são. A junção dessas duas faces nos termos de uma causalidade histórica só pode ser feita aproximativamente, explorando o lugar social dos atores, como esses lugares se justificam (ou seja, como são legitimados) e como são construídos. Por essa razão, cristalizações conceituais essencialistas, que operem como chaves analíticas universais, podem ser pouco produtivas numa análise antropológica que pretenda apreender mecanismos às vezes menos óbvios, mas cruciais. A noção de cultura pode ser uma dessas cristalizações. A Antropologia contemporânea parece lidar com formas contraditórias do conceito de cultura. Se por um lado um certo esforço de desconstrução desse conceito, enquanto totalizador e substantivador, tem sido empreendido desde a década de 70 (p. ex. Wagner, 1975), por outro lado, não poucos são os reiterados esforços de resgate essencialista dessa mesma noção, desta feita,

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creio eu, sem sequer a mesma clarividência hegeliana daqueles românticos do final do século XVIII que saíram das hostes do movimento Sturm und Drang para, num ímpeto programático e ao mesmo tempo criativo, propor a existência de uma cultura alemã. A circulação atual desse mesmo conceito num certo senso comum e por um certo ambiente ativista tende a tornar as coisas ainda mais obtusas que quaisquer revivescências culturalistas da Antropologia (Barth, 1995). E não estou longe de aceitar, como Marilyn Strathern, que a ubiquidade viciosa (que se manifesta, parafraseando Veblen (1899), num consumo conspícuo) da noção de diferença cultural “provê uma nova plataforma para um sentido essencialista de identidade, sem as confrontações (relações) implicadas numa agenda abertamente racista” (Strathern, 1995: 156, tradução minha). Claro, desde Gilberto Freyre acostumamo-nos a lidar com isso de uma forma “cordial”. Por isso, se aqui nesta conclusão, pretender falar, como Mauss (1924: cap. IV), em “conclusões de moral”, não encontraria no momento grandes razões para ver luzes no que se supõe ser o estabelecimento constitucional do “direito à diferença cultural”. É também aquela história processual, aproximativa e sempre provisoriamente interpretativa que, creio, nos evitaria cair nas malhas e armadilhas das teorias conspiratórias a seu respeito, onde a existência dos atores sociais é justificada porque servem uns para ocupar o papel de vilões, outros, de vítimas  e, eventualmente, alguns, heróis. A história, parece-me assombrosamente

claro,

é

inexplicável



a

despeito

de

todas

as

demiurgomanias. Ela só pode ser reconhecida, diria evocando Dilthey, depois de realizada sua obra. Os alto-xinguanos por exemplo poderiam há muito já ter sido exterminados ou pulverizados. Por um acaso (da história), um simples acaso, não o foram. E esse foi um acaso precioso. A diversidade social  e esta não é uma conclusão, senão um princípio de moral  é como a biodiversidade. Ela torna a vida complexa... preciosa. Se pavimentarmos todos os habitats sociais com nossos asfaltos, só nos restará nosso solitário deserto automobilístico. Viver com os outros é também estar à mercê deles, à mercê de sermos continuamente confrontados em nossas verdades. E viver sem esses “amigos” que habitam as fronteiras da estranheza seria jamais nos apercebermos da voracíssima sombra da nossa imensa solidão. Paul Nizan, ao final do seu Aden, Arabie, diz que das viagens sobram apenas grandes

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desordens simbólicas. Felizmente. E creio que não há outra razão para empreender a viagem antropológica. Procurei no correr deste trabalho mostrar, ainda que precariamente, como a “apropriação” da escola pode se processar em duas comunidades indígenas; estas, por sua vez, com distintas mas entrelaçadas histórias de contato com os brancos (os vários brancos, bem entendido). E procurei observar como distintos contextos políticos produzem distintas relações com esse aparato que pretendemos tão singelamente universalizável. Grupos indígenas de todo o país seguem demandando escolas em suas aldeias. A tendência atual e geral (salvo as exceções que como sempre confirmam a regra) dos debates não-indígenas (no final das contas, formuladores de políticas) em torno de uma solução pretendidamente respeitosa para essa mesma demanda difusa parece ter tendido a buscá-la numa fórmula genérica sintetizada no mote da “escola intercultural e bilíngüe, específica e diferenciada”. Essa noção parece embutir um paradoxo, ou seja, na sua generalidade categorial, procura sintetizar referências díspares. Por um lado a noção de escola como generalizador reporta-se a um universal; por outro o “específico e diferenciado” procura abarcar a diversidade numa fórmula adaptativa, ou seja, desde que seja “específica e diferenciada” uma escola indígena é concebível. Com

a

caução

de

uma

igual

generalização

idealizada

e

descontextualizada daquela demanda indígena (dos muitos indígenas, bem entendido)1 deixou-se de colocar em questão a própria noção de “escola”, tentando-se solucionar o caso por uma prestidigitação pedagógica que desse conta do “específico e diferenciado” (e também do “intercultural e bilíngüe”). O que este trabalho pretendeu também fazer foi colocar sob suspeita a suposição de que a “escola”, mesmo reduzida ao traço mais elementar da alfabetização, possa remeter-se a um universal, solucionável pela operação de uma Pedagogia  que, tal como uma idéia platônica que assume diversas configurações, poderia expressar-se sob a forma de pedagogias indígenas. Não pretendo com isso advogar um relativismo solipsista, mas apenas pôr sob suspeita uma retórica desagradavelmente triunfalista a propósito de 1

Mariana K. Leal Ferreira, por exemplo, assim expressa essa generalização: “O direito a uma educação diferenciada e específica tem sido uma das principais bandeiras do movimento indígena, dentro dos ideais de autodeterminação” (Ferreira, 1992: 197).

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umas tantas (e implacáveis) boas intenções. Para isso talvez sirva a investigação científica. Afinal, todo triunfalismo tende a ser, no extremo, obscurantista. Sendo mais específico, este trabalho procurou apreender como a apropriação da escola enquanto instituição dos brancos, pelas comunidades indígenas, pode ser informada politicamente (a partir de processos políticos) e não a partir de uma necessidade básica não contestada (mas subsidiada pelo programa liberal dos direitos civis) de alfabetização. Em termos ainda mais específicos e a título, formalmente, de conclusão, sugeriria que escola, escrita e transmissão do conhecimento não devem ser tomadas como coisas naturalmente associadas. A escola tampouco é algo naturalmente apropriável pelos “indígenas”. A seu favor conta o imperativo da necessidade de apropriação, ou ao menos (e seria mais prudente assim dizê-lo, tão simplesmente), do contato com recursos dos brancos (inclusive os legais-normativos). A escrita em língua nativa, da mesma forma, tampouco é algo naturalmente assimilável desde que se lhe atribua uma “função”. Não há qualquer argumento genérico que possa subsidiar a necessidade de introdução da escrita ou de uma “literacidade” (literacy). Todos os argumentos são circunstanciais e, acrescentaria, de tal forma circunstancialmente precários que talvez não haja muita razão para insistir neles. Contra a introdução dessa “literacidade” conta a possibilidade de existência de uma tradição oral viva e suficiente para os esquemas legítimos de autoridade em torno da tradição, da memória e do conhecimento, que, creio eu (e esta é de fato uma questão de crença) deve ser garantida, ao invés de ser ridiculamente assombrada com a possibilidade de uma marcha inexorável e iminente em direção a sua perda (sem contar o desaire do anuncio prévio de sua morte). Esse tipo de assombração seria antes a manifestação doentia de uma velha tristeza dos trópicos que o sinal de um efetivo respeito pela “cultura” dos índios. Num sugestivo artigo sobre discursividade e cartilhas em língua indígena, Tânia Clemente de Souza (1993) mostra como uma forma laboratorial de registrar a língua indígena pode destituí-la da discursividade que a torna dinâmica e lhe dá estofo contextual. Em outras palavras, sugerese como uma certa concepção “técnica” de língua pode simplesmente esvaziar os jogos discursivos e polifônicos da língua estudada, inventariada e vertida

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em cartilhas. Creio que esse modelo pode ser ampliado para entender uma série de outros mecanismos. Eu diria que, mais que uma simples insuficiência da técnica, o problema estaria nas nossas próprias formulações. Ao utilizarmos termos que, apesar de significativos para o nosso contexto discursivo, são inoperantes para um contexto indígena, caímos como presas de nossas certezas e míopes para a especificidade desses outros contextos. Ao generalizarmos como princípios elementares de políticas de largo alcance (públicas ou não) esses termos, cometemos ainda um segundo equívoco: Apagamos as especificidades dos muitos outros em nome de um Outro etnocentricamente concebido. Mesmo a política de reconhecimento dos direitos do Outro também pode ser uma política etnocêntrica, na medida em que dizemos: 1. o que são direitos; e 2. em que gramática eles podem se expressar. O reconhecimento da alteridade sob a forma de um programa liberal, apesar de conquistar sua legitimidade num determinado momento (subseqüente ao do cânone nacional-positivista da assimilação), não é de forma alguma a panacéia onicompetente (mesmo porque ela não existe) para dar conta das nossas relações com o Outro, e apenas muito precariamente implementa um ideal de tolerância. É preciso que os termos dos outros ponham os nossos termos em xeque (e principiem com isso a transtorná-los) para que comecemos a pensar seriamente sobre o significado dessa tolerância. De resto, “não me venham com conclusões, a única conclusão é morrer” (F. Pessoa).

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