“Presente!”: um olhar etnográfico sobre o lugar social dos mortos em Buenos Aires

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“Presente!”: um olhar etnográfico sobre o lugar social dos mortos em Buenos Aires1 Flavia Medeiros Doutoranda em Antropologia (PPGA/UFF). Pesquisadora do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa (NUFEP) e do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC).

Resumo Neste artigo analiso três situações nas quais observei como mortos específicos são construídos e acionados simbólica e politicamente em Buenos Aires, Argentina. Ao demonstrar representações e categorias sobre os mortos, considerando as reivindicações de que os mortos estão “presentes”, apresento como, naquele contexto, se constrói o lugar social dos mortos. Tomo como referência duas categorias que identifiquei como centrais na construção do lugar social dos mortos: tempo e espaço, e analiso como, ao acionar os mortos como “presentes” e construir sua “presença” no espaço público, não apenas se reforça demandas por uma reivindicação política por justiça e a reivindicação de direitos (em especial, os direitos humanos) junto ao Estado, como se atualiza o lugar social destinado aos mortos. Palavras chave: mortos, tempo, espaço, representações sociais, Buenos Aires

Abstract In this paper I analyze three situations in which specific dead people are constructed and operated symbolically and politically in Buenos Aires, Argentina. By demonstrating representations and categories on the dead, considering the claims that the dead are “present”, I show in that context, how the social place of the dead can be build. I take as reference two categories that I have identified as central to the construction of the social place of the dead: time and space, I analyze how, to trigger the dead as “presents” and build a “presence” in the public space, not 1

Uma versão preliminar desse artigo foi apresentada como trabalho da disciplina “Representações e Categorias Sociais”, ministrada no 1º semestre de 2013, pelos professores Ana Paula Mendes de Miranda e Edílson Márcio de Almeida Silva, no PPGA/UFF. Além das correções e observações dos professores, agradeço as leituras e sugestões dos colegas Alessandra Freixo, Frederico Policarpo, Joaquín Gómez, Lucía Eilbaum e Marta Fernandez y Patallo. Revista Antropolítica, n. 37, p. 319-338, Niterói, 2. sem. 2014

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only reinforces demands by a political demand for justice and updated claim rights (in particular, human rights) by the State, as updated social place for the dead.. Key words: dead, time, space, social representations, Buenos Aires

INTRODUÇÃO 26 de junho de 2002. Darío e Maxi estavam na Ponte Pueyrredón num “piquete” que contou com centenas de pessoas que reivindicavam trabalho, educação e o fim da repressão aos manifestantes “piqueteros” – provenientes de movimentos de trabalhadores e desempregados que fechavam ruas e estradas em demonstração a desacordos com o governo. Em resposta a ação dos manifestantes, os governos da Província de Buenos Aires e da Argentina realizaram uma forte ação policial repressiva que ficou conhecida como “La Masacre de Avellaneda”. Nessa ocasião, mais de 150 pessoas foram presas, pelo menos 34 delas baleadas por arma de fogo, e Darío e Maxi2 foram mortos pela polícia na estação de trem de “Avellaneda” 3. 15 de outubro de 2011. Chegávamos à estação de trem “Darío y Maxi”. Eu acompanhava um amigo que havia me convidado para uma festa naquela noite. Enquanto saíamos da estação, ele me mostrava os grafites e as intervenções artísticas na parede e me contava como, após a morte de Darío Santillan - que tinha 21 anos e trabalhava em uma fábrica comunitária de azulejos no MTD de Lanús, Zona Sul do conurbano de Buenos Aires - e de Maximiliano Kosteki - que tinha 26 anos, era estudante de Belas Artes e por dois meses participou como militante no “Movimiento de Trabajadores Desocupa2

Maxi havia sido baleado e estava sendo auxiliado por Darío quando este também foi baleado. Os jovens não se conheciam, mas suas mortes comoveram fortemente a Argentina, sendo, inclusive, consideradas como causa do adiantamento das eleições presidenciais e de uma grave crise no governo do então presidente, Eduardo Duhalde. Após aquele ano, todo dia 26 de junho é organizado um ato em celebração a Darío e Maxi e, atualmente, discute-se a celebração do “Día de la Juventud Militante” nessa data. (Sobre as comemorações ocorridas neste dia em diversas cidades da Argentina, cf.:http://www.darioymaxinoestansolos.blogspot.com.ar/ e http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-223006-2013-06-25.html

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Avellaneda é uma cidade da região metropolitana da Província de Buenos Aires, Argentina.

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dos (MTD)” de Guernica, também na Zona Sul do conurbano de Buenos Aires - o espaço foi, gradativamente, ocupado por militantes em manifestações contra a violência policial. Desde então, inclusive, o nome da estação, antes “Avellaneda” foi mudado por manifestantes, e posteriormente pelo governo, para “Estación Darío y Maxi”. Após caminhar por alguns metros, chegamos no, ainda em construção, “Centro Social Darío Santillan”4, onde seria a festa. Ao chegarmos lá, percebi que aquela não era uma festa qualquer, mas uma homenagem a Darío e Maxi na qual quase trinta pessoas conversavam, ouviam música, comiam churrasco, bebiam cerveja, se divertiam. Um palco montado no meio do terreno contava com microfones e instrumentos musicais. Havia passado algumas horas, a festa já contava com mais de cem pessoas, em sua maioria militantes da “Frente Popular Darío Santillan”5. O som estava alto, crianças e adultos dançavam e cantavam. Eu já havia sido apresentada a diversas pessoas, entre elas, os pais e o irmão de Darío. Um pouco antes da meia noite, uma mulher foi ao palco e convidou todos a celebrarem aquele dia de festa. Fez um discurso pelo direito à manifestação e relembrou a morte dos jovens Darío e Maxi, criticando a repressão policial contra a “juventude piquetera”. Recebeu do público gritos, salves e palmas. Ainda com o microfone em mãos exclamou: “Darío y Maxi!” E os convidados da festa gritaram, em resposta: “Presentes!”. *** Neste artigo vou analisar como, em Buenos Aires, são construídas e acionadas representações e categorias sociais sobre os mortos. Considerando as reivindicações de que os mortos estão “presentes”, pretendo apresentar como, 4

A ênfase dada a Darío ou Maxi em diferentes contextos, não ficou clara para mim durante o período que pude acompanhar as manifestações vinculadas às suas mortes. Sei que a ocasião da morte de ambos acabou vinculando-os, como na “Estación Darío y Maxi” e na celebração a Darío e Maxi no dia 26 de junho. Mas não tenho elementos para afirmar o porquê da existência do “Centro Social Darío Santillan”, e não um centro em homenagem a ambos. Me parece, porém, que a participação mais intensa dos familiares de Darío e, principalmente, sua participação há bastante tempo no movimento piquetero são fatores relevantes para a existência de uma “Frente Popular Darío Santillan” e do “Centro Social Darío Santillan”.

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A Frente Popular Darío Santillán (FPDS) é um movimento social e político da Argentina que se autodenomina “multisetorial” e “autônomo”. Fundado em 2004 por grupos, em sua maioria “piqueteros”, e também estudantis, obreiros, intelectuais e artísticos. Atualmente, a FPDS está presente em sete regiões da Argentina.

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naquele contexto, se constrói o “lugar social dos mortos”. Para isto, tomo como referência duas categorias de pensamento, através das quais identifiquei como central a construção do lugar social dos mortos: tempo e espaço. Analiso três situações nas quais observei como mortos específicos foram acionados e demonstro como a forma como esses são construídos pode ser analisada sob o ponto de vista das representações sociais, que oriundas da noção de “representação coletiva” de Émilie Durkheim (1970) se referem às construções socialmente elaboradas pelos grupos para expressão da sua realidade. Apresentado de outra forma, me dedicarei a descrever e analisar de que modo tais categorias são representadas e atualizam o lugar social dos mortos em Buenos Aires, articulando a dimensão das categorias de tempo e espaço e levando em conta a forma como essas são organizadas socialmente. (EVANS-PRITCHARD, 1999). Isto é, explorando a relação entre as categorias tempo e espaço, pretendo explicitar como nesse contexto são construídas relações sociais nas quais se verifica a representação da centralidade dos mortos e a afirmação de sua “presença”. Proponho, portanto, pensar que em Buenos Aires o lugar social dos mortos é elaborado de forma a construir uma posição no tempo e no espaço que alcança uns mais, outros menos, mas que, alcança a todos, pois, de certa maneira, essa posição é representada como comum aos que compartilham daquele contexto social. Pretendo, assim, demonstrar que a maneira como os mortos são construídos no tempo e no espaço em Buenos Aires, se dá tanto em situações específicas e particulares, acionadas por determinados indivíduos, quanto por uma representação que se reflete nas relações estabelecidas socialmente, de forma ampla e difusa, no encontro com outros indivíduos ou outros grupos sociais que tomam os mortos como centrais.

Representações e Categorias Sociais A análise das representações e das categorias sociais numa perspectiva antropológica é o que permite identificar determinados símbolos e valores que orientam os grupos sociais. Ao se mencionar a idéia de representações sociais, há de se destacar que essas se referem às categorias de pensamento através das

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quais os grupos elaboram e expressam sua realidade e que coube a Durkheim (1970) incorporar as categorias de espaço e tempo ao nível do entendimento, distanciando-as de uma perspectiva que tomava estas categorias como uma sensibilidade intuitiva (CARDOSO de OLIVEIRA, 2003). Ao tomar as categorias como conceitos, Durkheim (1970) denota a essas um caráter universal e impessoal que permite aos membros da sociedade se comunicar. Assim, as categorias são consideradas uma representação coletiva, ou seja, a maneira pela qual a sociedade se pensa, ainda que nem todas as representações coletivas sejam consideradas categorias. Logo, as representações são construídas socialmente por grupos e se caracterizam como “imagens da realidade” tendo um caráter dinâmico e relacional, pois são fruto de um processo desencadeado pelas ações de diversos indivíduos e elaboradas na relação desses indivíduos em seu grupo social (MINAYO, 1995). É dessa forma que as representações sociais podem ser vistas como “fatos sociais” (DURKHEIM, 1970), pois ao mesmo tempo em que são “imagem da realidade”, são também a realidade do grupo social em si. Afinal, os grupos sociais se evidenciam não apenas em seus aspectos materiais, mas, inclusive, em seus aspectos simbólicos. Ambos, aspectos materiais e simbólicos, fatos e representações sociais são objeto de análise para identificar como a sociedade é pensada, ou melhor, como a sociedade se pensa, e como são construídas as representações coletivas que dão sentido à sociedade. É, em diálogo com essa perspectiva que proponho pensar como os mortos são representados socialmente em Buenos Aires, destacando as categorias de tempo e espaço e explorando os significados que elas exercem naquela sociedade. Tendo essa conceituação como escopo da análise me parece que o problema que se coloca é como os portenhos se pensam, ou melhor, como os mortos são elementos representados como centrais para a forma como os portenhos se pensam. Daí revelam-se tanto interesses, formas de classificação e até mesmo conflitos que, por isso, elucidam identidades, moralidades e discursos. A partir de agora apresentarei como o “lugar social dos mortos” se elaborou como uma questão de interesse; três situações nas quais os mortos são acionados como “imagens sobre o real”; o “lugar social” reivindicado no tem-

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po e no espaço aos mortos e; enfim a análise das representações sobre o “lugar social dos mortos” e de como se expressam as contradições experimentadas na vida social e política daquela sociedade.

“Mortos” e “Presentes” Enquanto estive em Buenos Aires6 me chamava à atenção a quantidade de manifestações, atos e protestos que ocupavam o cotidiano das ruas da cidade. Nesse período empreendi um trabalho de campo, de caráter contrastivo, que se concentrou na Morgue Judicial de Lomas de Zamora7. Além desse trabalho de campo, realizei visitas à Morgue Judicial da Cidade Autônoma de Buenos Aires e, a partir de convite de amigos, participei de festas, manifestações e protestos, muitos dos quais sendo realizados em homenagem a mortos. Além dos atos públicos, era interessante notar a quantidade de homenagens prestadas aos mortos em calçadas, muros e prédios públicos. A presença ostensiva dos mortos na vida social daquela cidade me chamava atenção e me pareceu ser uma de suas principais características, pois durante o período que lá estive pude observar diferentes situações onde os mortos estavam “presentes”. Todas essas atividades, em contraste com a minha experiência de pesquisa (e de vida) no Rio de Janeiro, chamavam a atenção pela ostensividade dos mortos no cotidiano daquela cidade. No Rio de Janeiro, realizei meu trabalho de campo no Instituto Médico-Legal (IML)8. Ao descrever as práticas institucionais que construíam a linha de separação entre vivos e “mortos”9 naquela 6

Entre os meses de setembro a dezembro de 2011 realizei período de mestrado sanduíche em Buenos Aires. Tal intercâmbio foi possível a partir do convênio CAPG-Brasil/Argentina entre o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF e o Doutorado em Antropologia da UBA. Minha missão de estudos se insere num bem sucedido percurso de convênios binacionais entre Brasil e Argentina, financiados pela CAPES do lado brasileiro e pela SPU e MinCyT do lado argentino.

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Instituição vinculada ao Ministério Público Fiscal do Conurbano de Buenos Aires, responsável pela identificação de cadáveres e realização de exames médico-legais em corpos vítimas de “mortes violentas” ou por razão desconhecida.

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Órgão vinculado a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro que é responsável pela identificação de cadáveres e realização de exames médico-legais em corpos vítimas de “mortes violentas” ou por razão desconhecida.

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O que desejo enfatizar ao apresentar “mortos” entre aspas, quando me refiro ao contexto do IML do Rio de Janeiro, é o contraste dessa categoria em relação ao contexto de Buenos Aires, no qual a categoria nativa que exploro como fruto das representações sociais e das construções de sentido é a categoria “presente”. Enquanto no Rio de Janeiro os mortos estão “mortos”, em Buenos Aires me pareceu que os mortos estavam “presentes”.

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instituição, identifiquei como tais práticas eram rotineiras e visavam a construção do “morto”, processo denominado pelos policiais do IML de “matar o morto” (MEDEIROS, 2012). No Rio de Janeiro, pude observar que o lugar social destinado aos “mortos” era representado a partir das relações sociais que a esses eram vinculadas. Assim, o que se observava era a construção institucional de “mortos” que, ao “matar o morto”, os encaixava num lugar fora da sociedade, o lugar dos “mortos”. Portanto, era a classificação das relações sociais dos “mortos” que fazia com que a instituição construísse diferentes “mortos” e estabelecesse distintos lugares sociais para eles. Em Buenos Aires, por sua vez, identifiquei que o lugar social ocupado pelos mortos era construído continuamente por familiares e militantes políticos, que dando vida aos mortos, lhes fazia “presentes”. Como demonstrarei a seguir, eram mortos colocados no espaço público, sendo reivindicados como parte da memória, e da vida social, e acionados como “presentes”.

“Néstor no murió! El vive en el pueblo, la puta que lo parió”10 Dia 27 de outubro de 2011. Estava marcada na Praça de Maio uma homenagem ao primeiro ano de morte do ex-presidente argentino, Néstor Kirchner. Esse foi presidente argentino de 25 de maio de 2003 a 10 de dezembro de 2007, quando sofreu uma parada cardiorrespiratória fatal. Foi, então, sucedido no cargo por sua esposa, Cristina Fernandez Kirchner que, naquela data, acabara de ser reeleita nas eleições presidenciais ocorridas apenas três dias antes da homenagem, em 23 de outubro. Fui para a Praça de Maio de metrô. Nessa se encontra, dentre de outros prédios públicos, a casa do governo - “Casa Rosada” - e já na estação me chamava atenção a quantidade de jovens, adultos e também idosos que se dirigiam ao microcentro da cidade naquele horário, aproximadamente oito horas da noite, quando o movimento nessa região da cidade já é reduzido. 10

Trecho de uma canção do grupo político “La Campora”. Esse grupo foi fundado em 2006, durante o governo de Néstor Kirchner, e tem orientação “peronista” e “kichnerista”, se representando como a principal expressão de adolescentes e jovens nos partidos que compõem a base governista.

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Alguns portavam bandeiras, usavam adereços nas cores azul, branco e amarelo, correspondentes à bandeira argentina e vestiam camisas com o rosto de Kirchner. Desci numa estação antes da Praça de Maio para, primeiro, tentar olhar de longe para a praça, pois a circulação no metrô me indicou que o lugar estaria mais movimentado do que eu poderia imaginar. Antes mesmo de subir as escadas da estação já era possível escutar a música emitida pelas caixas de som. Milhares de pessoas ocupavam a praça e seus arredores. Nas calçadas e canteiros, havia barracas vendendo cerveja, água, refrigerante e sanduíches e também camisetas, bottons, bandeiras e fotos de Néstor e Cristina Kirchner. Pequenos grupos, alguns sentados nos gramados tomando mate, outros de pé conversando e bebendo cerveja. Muitos portavam faixas e cartazes homenageando o casal Kirchner, mas principalmente prestando homenagem ao morto. Além do palco principal, posicionado ao norte da praça, próximo à Casa Rosada, com apresentação de bandas de rock, carros de som próximos à Catedral, no lado oeste, e ao Cabildo, prédio do legislativo na época da colônia, na parte sul da praça, animavam o público. No centro da praça, um busto inflável com uma caricatura gigante de Néstor Kirchner era atração para fotos. Quando, naquele dia 27 de outubro, voltei para casa, vi na televisão, que a maioria dos programas de TV homenageava o falecido, Néstor Kirchner. O morto era a pauta do dia. E, de certa maneira, a vida naquele dia era celebrada exaltando o morto. O morto representado por fotos, bustos e até sósias, era lembrado e apresentado como central no estabelecimento das relações entre os vivos. Na praça, manifestantes cantavam e gritavam: “Néstor não morreu!” O que aqueles manifestantes diziam era que, apesar de morto fisicamente, simbolicamente Néstor Kirchner importava e seguia presente na vida social. Seu corpo físico poderia estar sem vida, mas seus ideais, seu objetivo político e seu “lugar” persistiam e seriam lembrados e reivindicados por aqueles que davam vida à sua figura política.

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“Desaparecidos, presentes!” 21 de outubro, seis dias antes da manifestação por Nestor Kirchner. Era o dia da leitura do veredicto da “megacausa ESMA”, processo criminal que condenava os atos cometidos por militares na Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA) durante a última ditadura militar. Foi na antiga ESMA11, sob a administração da marinha argentina, que funcionou um dos maiores centros clandestinos de detenção e morte da ditadura militar argentina, iniciada em 1976. A “megacausa ESMA”, como ficou conhecida, unifica três diferentes processos “de lesa a humanidad”, entre eles o sequestro e roubo de bens e o desaparecimento forçado do jornalista Rodolfo Walsh e o sequestro e posterior desaparecimento de três fundadoras da Associação “Madres de Mayo”12. Além dessas vítimas, repecurtidas, mais setecentas vítimas eram parte do julgamento, que tinha dezessete réus. Com a sentença, doze réus foram condenados à prisão perpétua, dois foram absolvidos e os outros três condenados a, pelo menos, mais de dezoito anos de prisão. Diante do Tribunal onde seria feita a leitura da sentença um palco foi montado e mais de dois mil militantes de diferentes organizações, entre advogados, sociólogos, professores, jornalistas, artistas, além de familiares e co11

Durante o governo de Néstor Kirchner, o prédio onde funcionava a ESMA foi transformado no Centro Cultural de la Memoria Haroldo Conti (CCMHConti) Sobre a causa Esma ver: http://www.cels.org.ar/ esma/index.php e sobre o CCMHConti ver: http://www.derhuman.jus.gov.ar/conti/default.htm

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“Madres de Mayo” é uma associação militante que se iniciou durante a última ditadura militar Argentina por mães de “desaparecidos” que se reuniam na Praça de Maio, em frente à “Casa Rosada” e reivindicavam junto ao governo explicações sobre a situação de seus filhos que haviam sido detidos e seqüestrados pelo Estado. Atualmente, essa associação encontra-se dividida em dois grupos: “Madres de Plaza de Mayo” (presidido por Hebe de Bonafini) e “Madres de Plaza de Mayo Línea Fundadora” (presidido por Marta Ocampo Vasquez), fruto de diferenças ideológicas entre os militantes da organização, sendo o aceite da reparação monetária pelo desaparecimento dos filhos a principal divergência. O grupo das “Madres de Plaza de Mayo”, que se recusou a aceitar a proposta do governo da época, tem como principal mote o reclamo pela aparição “com vida” dos seus filhos desaparecidos, o que implica em renunciar o encontro dos corpos e manutenção do lugar dos “desaparecidos” e portanto, na ratificação da ausência. Já os familiares que compõe o grupo “Madres de Plaza de Mayo Línea Fundadora” estiveram dispostos a testemunhar nas instâncias administrativas sobre o desaparecimento, e aceitou a figura de presos-desaparecidos, bem como as exumações de corpos não identificados para o enterro e os reparos monetários estabelecidos or lei. Apesar dessa ruptura, essa é a principal associação civil pela luta política pelos direitos humanos na Argentina e um símbolo daquela “sociedade” na reivindicação pela “verdade e memória”. Como característica principal das “madres” e das “abuelas” está o pano branco usado sobre o cabelo que está pintado em diversas praças e prédios de Buenos Aires, inclusive na Praça de Maio onde, ainda hoje, todas as quintas-feiras, diversos manifestantes se encontram para reivindicar a “presença” de seus filhos, desaparecidos. Cf.: http://www. madres.org/navegar/nav.php e http://www.madresfundadoras.blogspot.com.ar/

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nhecidos de “desaparecidos” políticos, ocuparam a rua, que fora fechada para tal manifestação. Em um telão eram reproduzidas imagens das vítimas e uma pequena biografia. Sobre cada rosto de vítima surgia um carimbo que imprimia em vermelho a palavra “presente!”. Os réus também tinham sua imagem reproduzida no telão junto com uma breve biografia. Sobre cada rosto aparecia também um carimbo, mas dessa vez, inscrito “assassino!”. Às dezenove horas, a leitura da sentença agendada para as dezessete horas ainda não havia começado. Enquanto isso, nós, público, aguardávamos tomando mate, comendo biscoitos, conversando sobre atualidades e, no meu caso, que acompanhava amigos que eram familiares de “desaparecidos”, recebendo explicações sobre o que era o caso, como eram administrados judicialmente os crimes realizados durante a ditadura militar e como havia sido organizado aquele ato. No palco, revezavam-se militantes declamando palavras de ordem, lendo poesias ou convidando companheiros à luta. De repente, ao menos para mim, subiu ao palco um grupo de “cumbia”13, um tipo de música popular típica e dançante. Um dos líderes do ato estava no palco para apresentar o grupo e, em agradecimento, afirmou que aquele era um dia de celebração à justiça que iria ser feita alguns minutos mais tarde e que, não tinha dúvidas de que os “desaparecidos” estavam ali “presentes”, comemorando esse fato. Quando começava a terceira música, vimos no telão os juízes ocuparem as mesas do tribunal. O grupo, imediatamente, parou de tocar e todos se silenciaram para acompanhar a leitura. A cada pena declamada o público comemorava com gritos e flanando bandeiras. Após a leitura das dezessete sentenças, as pessoas se abraçavam, algumas choravam, outros telefonavam. Os vídeos voltaram a ser reproduzidos no telão e a cada vítima que tinha seu nome lido, o público gritava: “presente!” Após o vídeo, o grupo de “cumbia” voltou a tocar e o público a dançar, afinal para os militantes era dia de festejar! Uma das principais razões atribuídas à importância dos mortos na vida social argentina está relacionada com o período da última ditadura militar, entre os anos de 1976 a 1983. Durante esse período, os argentinos sofreram com 13

Cumbia é um tipo de música de origem Colombiana, muito popular na Argentina. Entre os instrumentos estão presentes tambores, maracas e gaitas. A dança, que pode ser dançada em casal ou só, é vista como sensual sendo marcada por movimentos dos braços, giros e rebolados.

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o “terrorismo de Estado”14 que atingiu de forma avassaladora grande parte da “sociedade” (GARAÑO, 2008; VECCHIOLI, 2000). Mais de 30 mil pessoas de diferentes classes sociais e idades “foram desaparecidas” pelo governo militar, por todo o país15. Os militares envolvidos nos processos de persecução, sequestro, morte e consequente desaparecimento de pessoas se valiam da precedência da inexistência do corpo como forma de configurar a inexistência de delito penal. O desconhecimento e o desaparecimento forçados eram estratégias de controle no país (DUHALDE, 1999; GARAÑO, 2008; MORA, 2005). Familiares e militantes políticos iniciaram grupos de buscas e reivindicação políticas e judiciais16 pelos “desaparecidos” junto do Estado, categoria acionada ao se referir aos indivíduos submetidos a desaparecimentos forçados. Desde então, a Argentina se notabiliza pela reivindicação dos direitos humanos que tem levado, até hoje, à judicialização dos procedimentos de detenção, tortura e desaparecimentos no período da ditadura militar, cujos efeitos diversos são, inclusive, as manifestações que acionam os mortos publicamente. Ao fazerem dos “desaparecidos” mortos políticos, “presentes”, os familiares e militantes dos direitos humanos operam no sentido de fazer com que estes, seus corpos e suas relações sociais “seqüestradas” pelo Estado, sejam inseridos num “princípio de ordem no universo” que os faz “presentes!”. Assim, ao reivindicar a “presença” dos “desaparecidos” pelo Estado, se classifica e constrói os mortos políticos, conferindo a eles o “lugar social” que lhes teria sido retirado pelo Estado durante a ditadura militar da Argentina. As representações sociais dos “desaparecidos”, como elementos centrais na construção dos processos jurídicos, os classifica numa certa ordem e dessa 14

Caracterizado como a violação sistemática e planificada, por parte do Estado, de direitos fundamentais dos cidadãos.

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Sobre o roubo de crianças, “prática inédita” em ditaduras militares, e a posterior apropriação renomeada enquanto adoção, ver Villalta (2005, 2004). A autora demonstra como o “terrorismo de Estado” se apropriava de filhos de presos políticos, os tomando como abandonados e posteriormente, essas crianças eram encaminhadas à adoção e quais foram as estratégias de familiares, principalmente em conformação de associações como Abuelas de Plaza de Mayo, para acionar os órgãos competentes da justiça.

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Uma relevante análise sobre a caracterização do Poder Judicial Argentino durante a última ditadura militar argentina é o trabalho da antropóloga Maria José Sarrabayrouse (2011). Nele, a autora descreve, através da análise dos autos da “Causa da Morgue Judicial”, como eram realizados os procedimentos médicos de autópsia e identificação de cadáveres que revela as redes de interdependência e os grupos que caracterizavam o poder judicial e possibilitavam o uso das instituições da justiça pelas forças repressivas de Estado.

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maneira, garante aos mortos um lugar na vida social, dá a eles uma vida. Os “desaparecidos” estão “presentes” e são construídos como referências à memória social, “não esquecer para que não se repita” dizem os manifestantes o que demonstra como os mortos são a razão, o estímulo e o argumento para as manifestações no espaço público.

“Dario y Maxi, presente! Ahora, y siempre!” Além dos processos contra o que denominam “terrorismo de Estado”, mais recentemente, as vítimas da violência policial passaram a figurar como a preocupação central no que se refere aos direitos humanos (TISCORNIA, 2009). Foi o que ocorreu com Darío e Maxi, que após serem mortos pela polícia se tornaram símbolo da reivindicação por direitos humanos17. “Darío e Maxi se converteram na expressão mais genuína de uma juventude disposta a lutar, a batalhar por uma sociedade mais justa. Ambos são símbolos da luta que o povo fez própria depois de seus assassinatos. A figura do mártir, a construção do mito, inevitável - e necessária- como alimento espiritual de qualquer processo social ou político, sempre carrega um risco para aqueles que ficaram marcados a fogo por aquela marca indelével”. (Trecho de carta dos militantes da FPDS nos 10 anos da morte da Dario e Maxi, tradução minha)

Frente a essa representação dos mortos como “mártires” que buscavam a construção de uma sociedade mais justa, o tempo parece ser tomado sob uma perspectiva que contempla a morte. Ao acionar os mortos como argumento legítimo se ressignifica a própria ideia de morte. Assim as mortes são tomadas como “eventos repetitivos” (LEACH, 2006 p.194) que servem para lembrar que eventos de tal ordem não devem mais ocorrer. Os mortos passaram a ser, nesse contexto, parte da estratégia para resolver os problemas da morte intencional (o que no Brasil chamaríamos de “morte matada”). O passado re17

Cabe destacar que na Argentina, a categoria “direitos humanos” foi construída por militantes e órgãos não governamentais como principal, se não exclusivamente, referência a manutenção e reivindicação dos direitos à vida frente à violência do Estado. Dentre os órgãos não governamentais, o CELS (Centro de Estudios Legales y Sociales), que funciona desde 1979, se notabiliza pelo trabalho na promoção e proteção dos direitos humanos na Argentina. Cf.: http://www.cels.org.ar/home/

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construído em memória dos mortos constituiu uma estratégia para mudar o trajeto da vida social e construir no presente, uma “luta política” que tem nos mortos, seus corpos e seu lugar simbólico, o seu principal alimento18.

Tempo e Espaço Em relação ao tempo, sugiro, em especial, a dimensão da memória como principal forma de articular a “presença” dos mortos e a construção do tempo que tem elementos do passado como referência. Nesse sentido, os mortos são marcos sociais para o estabelecimento da relação entre passado e presente e, portanto, quando acionados nas representações sociais se referem a fatos passados, constroem o tempo presente e a memória de acordo com quem são os mortos. O lugar social dos mortos também expressa como as representações sociais sobre o tempo e o espaço são construídas e se vinculam à presença dos mortos na vida cotidiana de Buenos Aires. Já quanto ao espaço cabe assinalar como o espaço público: ruas, prédios públicos, manifestações e calçadas, é construído a partir da presença ostensiva de homenagens e referências aos mortos, que o ocupam e dão aos mortos um lugar físico para se fazer presente, mesmo que fisicamente, enquanto corpo humanos, esses não existam mais. Ao longo do texto tomei o vocábulo “presente” como a principal categoria acionada para fazer referência aos mortos por entender que tal é “uma palavra que usamos em uma ampla variedade de contextos e que tem um número considerável de sinônimos e entretanto, que é, singularmente difícil de traduzir” (LEACH, 2006, p.192). Por essa razão, convém assinalar que a categoria “presente”, tal qual apresentada nesse texto está articulada a três dimensões particulares: 1) Ao tempo vivido, o tempo da memória que traz os mortos para o tempo presente; 2), À relação com o uso do espaço, em especial no espaço público que tem em si os mortos ostensivamente expostos; e 3) À “pre18

Em sua tese, Diego Zenobi (2011) demonstra como, após o incêndio na boate Cromañón no bairro Once, a mobilização política dos familiares das vítimas por justiça resultou na conformação de diversos grupos que entendem como distintos valores característicos de “familia” e de “política”. Essa multiplicidade visões, no entanto, não impediu que os familiares fossem reparados e que os culpados, inclusive um ex-governador de Buenos Aires, fossem condenados.

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sença” moral e simbólica dos mortos nos discursos e ações atuais, que os tornam “presentes”. Além das manifestações públicas nas quais estive e que descrevi acima, também orientaram a construção de meus dados: conversas com amigos; notícias que li, escutei ou assisti em diferentes meios de comunicação; e placas, cartazes, pichações, enfim, uma série de homenagens prestadas aos mortos nas calçadas, nos muros, nas ruas, nas praças e nos prédios públicos de Buenos Aires.

Afinal, qual é o “lugar social dos mortos”? Seja em instituições públicas, em praças ou nas ruas, pelos mais diferentes pontos da cidade de Buenos Aires há placas com os nomes dos “desaparecidos”. Todos os prédios da Universidade de Buenos Aires que conheci expunham um hall de destaque com fotos e nomes de “desaparecidos”. Não só as vítimas da ditadura eram acionadas. Além delas, as vítimas da Guerra das Malvinas19, das manifestações durante a crise econômica de 200120 e dos mortos fruto da violência policial eram também homenageados no espaço público 21. 19

A Guerra das Malvinas ocorreu entre os dias 2 de abril e 14 de junho de 1982. Nela o governo argentino, comandado pelos militares, lutou pela soberania dos arquipélagos austrais ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul que foram tomados à força em 1833 e dominados a partir de então pelo Reino Unido. O Reino Unido saiu vitorioso da guerra que resultou na morte de 649 soldados argentinos, 255 britânicos e 3 civis das ilhas.

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Em dezembro de 2001, o governo argentino declarou a moratória de sua dívida externa. Os problemas econômicos administrados desde 1991, através de uma crescente divida externa pública se estenderam a uma grave crise financeira e social, com altos índices de desemprego e inflação. Setores das classes populares e média da Argentina ocuparam as ruas em protesto às políticas econômicas do governo. Os piqueteros, como foram denominados esses manifestantes, fecharam ruas e estradas. Em 19 de dezembro de 2001, um grande panelaço ocupou as ruas de Buenos Aires e a polícia entrou em conflitos com a população. Desses, o mais violento foi o que ocorreu próximo à Casa Rosada – sede do governo nacional argentino, quando ao menos cinco pessoas foram mortas pela polícia. O presidente em exercício , Domingo Cavallo, decretou estado de sítio, suspendendo as garantias constitucionais dos cidadãos. Pacificamente, a população manifestou seu descontentamento durante toda a noite, enquanto a polícia tentava mantê-la distante da Casa Rosada, utilizando-se, para isso, de gás lacrimogêneo. Na mesma noite, o presidente renunciou. No dia seguinte, novos conflitos entre a polícia e os manifestantes, reunidos na Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada. Em doze dias, o país teve cinco presidentes diferentes. Calcula-se que, nos conflitos com a polícia, trinta pessoas tenham sido mortas na Plaza de Mayo.

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Outro relevante fato na trajetória histórica argentina, que me foi apresentado, em relação aos corpos, é recordado no conto do desaparecido político, vítima na causa ESMA já mencionada, Rodolfo Walsh, ‘Esa Mujer’ de 1963. Nele, Walsh relata um diálogo entre um jornalista investigativo que está buscando o cadáver embalsamado de Eva Péron e um dos coronéis que compunha o serviço de inteligência do Estado argentino, e foi responsável pelo ocultamento deste cadáver. Maria Eva Duarte de Péron morreu aos trinta e três anos por metástase de um câncer que se originou no útero e foi a segunda esposa do

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Ao longo do texto, trouxe diferentes situações sobre o lugar social dos mortos para demonstrar como as representações sociais sobre estes constituem-se num importante instrumento para análise de aspectos sociais e políticos de Buenos Aires. Compreendendo a relação cotidiana da sociedade portenha com os mortos, espero ter sido possível vislumbrar significados que se expressam material e simbolicamente na vida cotidiana, pois meu objetivo neste artigo foi apresentar como, em Buenos Aires, identifiquei situações nas quais os mortos ocupam um lugar que é “presente”. Desta forma, seja no espaço público, no acionamento da memória ou na mobilização de símbolos, os mortos são representados e reivindicados como “presentes!”. Ao afirmar essa presença, se constrói, na vida social, um lugar de destaque para os mortos que pode ser analisado via as representações sociais. É no próprio ato de perceber e conhecer o mundo que se classifica e se ordena os elementos de acordo com os modelos fornecidos pela sociedade (isto é, modelos que foram construídos socialmente). Assim, as categorias são aquelas noções que permeiam todas as classificações e ordenamentos feitos sobre o mundo. Ao optar por analisar o tratamento simbólico dado aos mortos em Buenos Aires a partir da noção de representação social, tinha como objetivo refletir sob uma perspectiva sócio-antropológica que tem as representações sociais “como categorias de pensamento de ação e de sentimento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a”. (MINAYO, 1999, p. 158). Como demonstrei, apesar de acionados como marco sócio-político, a reivindicação da “presença” não é exclusividade dos “desaparecidos”. As mortes pela violência policial de jovens de bairros pobres da região metropolitana de Buenos Aires também são politizadas. E mesmo que não ocupem a Praça de Maio ou fechem grandes avenidas, as manifestações realizadas por seus familiares e vizinhos nos bairros e diante dos tribunais constroem a politização dessas mortes e as restitui de humanidade: “Os mortos funcionam assim, a modo de “carta social’ como um instrumento de poder, como provedor de uma base moral de onde se legitimar e reclamar” (PITA, 2010, p. 132). Assim, militar e presidente Argentino, Juan Carlos Péron. Através desse conto, onde Esa Mujer é uma alusão da nunca nomeada Eva Péron, Walsh demonstra como o corpo de Eva foi fruto de adoração, necrofilia e se tornou símbolo de um movimento político – o peronismo.

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os mortos são acionados nas manifestações como parte da estratégia para explicitar e administrar os conflitos, e a preocupação com os mortos é direcionada ao tratamento simbólico destinado a esses. Ao identificar o lugar social dos mortos em Buenos Aires, compreendi como no âmbito das relações sociais alguns deles exercem um papel de notável importância e significância no mundo social. A importância da memória e da reivindicação do não esquecimento dos mortos, (trata-se de um ex-presidente, uma vítima da violência policial ou um “desaparecido”) revela como estes são classificados e ordenados. Os mortos e as situações referentes a eles foram acionados ao longo do texto em dimensões morais distintas, afinal tratam-se de mortos distintos entre si. No entanto, a despeito das diferenças entre eles, deve-se reconhecer que esses mortos acionados como “presentes” não eram quaisquer mortos. Ou melhor, os mortos “presentes” não podem ser classificados como os mortos em geral. Não se trata tão somente da morte individual comum que segue um ritual privado, cujo impacto se impõe unicamente no mundo das relações sociais íntimas. Mas se trata das mortes que são tornadas públicas e por isso políticas, o morto que é acionado como público é o morto que é classificado como político. O lugar social dos mortos, nesse sentido, depende do “lugar político” a que pertence ou que é atribuído socialmente àquele morto. As comemorações em torno da morte de um presidente acionado como “presente” explicitava uma representação coletiva sobre o próprio Estado. Cabe destacar que Néstor Kirchner foi o primeiro presidente da Argentina que trouxe as reivindicações dos manifestantes pelos direitos humanos, em especial dos “desaparecidos”, para a pauta principal do governo. Inclusive, esse presidente, quando fez seu primeiro discurso na ONU se proclamou “Filho das Mães da Praça de Maio”. Assim, no acionamento da categoria “presente” em relação ao ex-presidente, se afirma a vinculação dessa figura política com a causa dos “desaparecidos”. Ele não era um morto qualquer, não só porque era um presidente, mas porque para aqueles argentinos que celebravam na Praça ele não era qualquer presidente.

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Em relação aos “desaparecidos”, o “presente” era acionado para retórica e politicamente ir contra a ideia de mortificação social desses desaparecidos políticos. Fruto de lutas das organizações de direitos humanos, esse significado foi construído para reforçar que os “desaparecidos” não estavam mortos, mas sim “desaparecidos”. É essa “presença” dos “desaparecidos” que possibilita e estimula a continuidade na busca por “verdade e justiça”, “sem esquecimento”. Enquanto “desaparecidos”, os “presentes” permitem aos militantes e familiares a cobrança por informações sobre o que lhes teria acontecido, e por justiça, o que funciona, ainda, como um instrumento jurídico que impede a presunção da morte e por conseqüência, impõe limites a prescrição dos crimes cometidos pelo Estado durante a última ditadura na Argentina.

CONCLUSÃO As três situações que descrevi neste artigo eram referentes às manifestações coletivas no espaço público, nas quais diferentes indivíduos se reuniam, em função de mortos, para explicitar e reivindicar suas demandas formando grupos que denotam centralidade ao “lugar social dos mortos”. Me parece que tais manifestações, atos e protestos que trazem os mortos como elementos centrais, funcionam como situações de intensificação dos elos entre aqueles que fazem dos mortos símbolos “presentes”, tendo o passado como referência para a construção de um futuro com memória e justiça. As representações que se reconstroem através das práticas sociais são tanto formas de conhecimento como orientadoras das ações sociais. Ao classificar os mortos como “presentes”, os portenhos fazem com que eles sejam e estejam presentes na vida social e, inclusive, participem decisivamente na construção política da “sociedade”. Apesar de ao longo do texto tratar de situações particulares e em relação a “mortos” específicos, me referi a Buenos Aires como o contexto no qual os mortos, em geral, têm importância social e política. Considero que nessa abordagem possam estar esvaecidas multiplicidades e idiossincrasias das situações

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que analiso. No entanto, optei em demonstrar como os mortos podem ser tomados como parte constitutiva da representação coletiva em Buenos Aires. E, principalmente como compreendi que essa representação se manifesta vez ou outra, em determinados momentos e espaços, no qual diversos conjuntos de indivíduos se reúnem em função de diferentes mortos. Não pretendo com isso afirmar que todos em Buenos Aires tomam todos os mortos como argumento para engajamentos sociais e/ou políticos, mas sim que há um extenso universo de relações no qual determinados mortos são instrumentos legítimos, fruto de agenciamentos coletivos, que lhes concede um lugar, por vezes central, na vida social e política. Assim, numa “sociedade” que se representa como justa e igualitária (O’DONNEL, 1997), na qual direitos e deveres devem ser reconhecidos, a reivindicação da memória, através do acionamento cotidiano e constante dos mortos, faz com que eles não sejam esquecidos e tornem-se elementos para a objetificação de direitos, explicitando as desigualdades existentes e a reação frente às injustiças. O “lugar social dos mortos” na Argentina é constitutivo da vida social, sendo os mortos centrais para a construção de demandas coletivas de direitos humanos junto ao Estado, que é também (em algumas situações) representado como o seu algoz. Ao acionar os mortos como “presentes” e construir sua “presença” no espaço público, essa sociedade está não só reforçando demandas por uma reivindicação política por justiça, como também está fazendo com que os mortos ajam em algumas situações específicas e propiciando, limitando ou mesmo obrigando as ações de outrem (vide quando sustentam manifestações, modulam o curso de ação de instituições públicas e obrigam os juízes a condenar seus algozes). Talvez seja possível indicar, para enfim concluir, que os mortos não estão efetivamente mortos, mas que estão “presentes” justamente por continuarem capazes de interferir na vida social.

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