Preservação e Restauro Urbano: intervenções em sítios históricos industriais

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Preservação e Restauro Urbano intervenções em sítios históricos industriais

Manoela Rossinetti Rufinoni

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preservação e restauro do patrimônio urbano-industrial

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Copyright © 2013 by Manoela Rossinetti Rufinoni

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp Rufinoni, Manoela Rossinetti. Preservação e restauro urbano: intervenções em sítios históricos industriais / Manoela Rossinetti Rufinoni. – São Paulo: Fap-Unifesp : Edusp, 2013. 360 p.; 18 x 25,5 cm. isbn 978-85-61673-60-4 (Fap-Unifesp) isbn 978-85-314-1449-7 (Edusp) 1. Patrimônio histórico. 2. Patrimônio cultural – Proteção. 3. Preservação histórica. 4. Espaço urbano – Conservação e restauração. 5. Distritos industriais – Conservação e restauração. i. Título. cdd 711.5524

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Fap-Unifesp Fundação de Apoio à Universidade Federal de São Paulo Rua José de Magalhães, 80 – Vila Clementino 04026-090 – São Paulo – sp – Brasil (11) 2368-4022 www.editorafapunifesp.edu.br www.facebook.com/EditoraFapUnifesp Impresso no Brasil 2013 Foi feito o depósito legal

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Sumário

Agradecimentos 9 Prefácio 11 Introdução 15 parte I A Preservação Urbana e o Contraponto da Cidade Industrial 1. A Maturação do Conceito de Patrimônio Urbano    Os espaços da indústria impulsionam o debate    Interpolações em um texto    Ambiente, monumento, valor: conceitos em formação    As contribuições da nascente disciplina do urbanismo

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2. O Patrimônio Urbano em Cena: Preservação e Intervenção 91    Reflexões sobre a relação “antigo-novo” 91    A dimensão urbana da preservação e do restauro 112    Os documentos internacionais e a expansão do patrimônio cultural 135    A apreensão do patrimônio urbano no contexto brasileiro 165 parte II O Restauro Urbano e o Espaço Industrial como Artefato Cultural 3. Preservação e Restauro do Patrimônio Urbano-industrial 187    As especificidades do patrimônio industrial e a escala urbana 187 7

   Preservação urbana e patrimônio industrial: desafios e perspectivas 197    Intervenções urbanas em sítios industriais de interesse cultural 221    Notas sobre a preservação do patrimônio urbano-industrial paulistano 262

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Considerações Finais Uma Tentativa de Síntese: Aquisição de Conceitos e Difusão de uma Prática

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Anexo Fotográfico

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Referências Bibliográficas

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Instituições Consultadas

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Agradecimentos

A elaboração desta pesquisa contou com a contribuição de diversos profissionais e instituições ao longo de quatro anos de trabalho. Gostaria de manifestar meus sinceros agradecimentos a todos os professores, colaboradores e amigos que me acompanharam nesse percurso. Agradeço, inicialmente, à professora Beatriz Mugayar Kühl, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, pela orientação lúcida, instigante e objetiva, pela confiança em meu trabalho e pelo constante incentivo ao desenvolvimento do tema. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, agradeço pelas bolsas concedidas, uma institucional por intermédio da fau-usp e outra na modalidade “doutorado sanduíche” no exterior, auxílios de fundamental importância para o desenvolvimento desta pesquisa. Aos professores Benedito Lima de Toledo, Heloísa Barbuy, Lia Mayumi e Mônica Junqueira de Camargo, agradeço pela criteriosa arguição e pelas sugestões fornecidas durante a banca de defesa, questões que procurei contemplar na revisão para a presente publicação. Vários professores demonstraram interesse pelo tema da pesquisa e foram valiosos colaboradores; a eles também manifesto meus sinceros agradecimentos: a Maria Lúcia Bressan Pinheiro, Fernanda Fernandes e José Pedro de Oliveira, docentes que me acompanharam nos estágios do Programa de Aperfeiçoamento de Ensino, bem como aos professores das disciplinas cursadas no doutorado, cujos questionamentos impulsionaram a busca por diferenciadas abordagens investigativas: professores Philip Oliver Gunn (in memoriam), Ana Lucia Duarte Lanna e Paulo César Garcez Marins. 9

Agradeço aos docentes da Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, instituição que me acolheu durante o estágio de pesquisas na Itália, especialmente ao professor Giovanni Carbonara, orientador no exterior, que demonstrou grande interesse pelo objeto de estudo e forneceu valiosas indicações que contribuíram sobremaneira para o prosseguimento das análises. À professora Maria Piera Sette, pela oportunidade de cursar como ouvinte a sua disciplina na Scuola di Specializzazione in Restauro e pelas suas pertinentes sugestões. Ainda na Sapienza, agradeço às professoras Simona Salvo e Beatrice Vivio, pelas indicações bibliográficas e pelo imprescindível apoio pessoal, acadêmico e operacional. Durante o estágio no exterior, devo agradecimentos pelas entrevistas e pelas sugestões a Jukka Jokilehto, no International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural Property [Centro Internacional para o Estudo da Preservação e Restauro de Bens Culturais – iccrom], bem como a Paolo Torsello e Roberto Bobbio, professores da Università degli Studi di Genova, que me receberam com atenção e forneceram importantes indicações bibliográficas e informações sobre o processo de revitalização na área portuária. Agradeço ainda ao professor José Manuel Lopes Cordeiro, da Universidade do Minho, pelo interesse demonstrado e pelas discussões sobre a preservação do patrimônio industrial. No prosseguimento dos estudos em São Paulo, agradeço aos arquitetos do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura Municipal de São Paulo, sempre interessados pelo tema e muito prestativos todas as vezes em que necessitei de informações. Na Secretaria de Planejamento, agradeço ao arquiteto Pedro Sales, pelas importantes informações e fotos da Diagonal Sul, tão gentilmente fornecidas e, no Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (condephaat), a Ana Luiza Martins e Marly Rodrigues, pelo interesse e apoio constantes à pesquisa. Devo, ainda, agradecimentos especiais às amigas Ana Paula Farah e Cristina Pereira de Araujo, assim como a Luzia Adario Rossinetti, Priscila Rufinoni e Roseli d’Elboux, pelo apoio profissional e pessoal e pelas leituras atentas e criteriosas.

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Introdução

A questão das antigas áreas urbanas industriais desativadas ou subutilizadas e a dos novos cenários a serem buscados para a sua valorização são temas que vêm assumindo significativa representatividade no panorama das políticas de desenvolvimento urbano em diversos países e em diferentes escalas. De fato, essas extensas áreas – principalmente quando localizadas em regiões estratégicas de grandes cidades – não poderiam passar despercebidas diante da atual dinâmica de transformação urbana contínua e acelerada que tanto conhecemos, notadamente em cidades como São Paulo. Além da localização geralmente privilegiada, essas antigas áreas industriais representam reservas potenciais de terreno urbano ocioso, degradado e de baixo custo; um considerável conjunto de vantagens para a implementação de novos empreendimentos e que vem despertando, naturalmente, a atenção de diversos setores envolvidos na produção e transformação da cidade. As propostas projetuais advindas dessa demanda, contudo, evidenciam estratégias de apropriação urbana bastante agressivas, repercussões diretas dos modos e métodos predominantes de produção da cidade contemporânea. Ao lado do mercado imobiliário privado, também o poder público tem demonstrado interesse nessas áreas e em seu evidente potencial fundiário e econômico para o desenvolvimento de grandes projetos urbanos. Essa realidade tem sido observada na proposição de operações urbanas em diversos trechos de orla ferroviária na cidade de São Paulo, áreas historicamente ocupadas por atividades industriais. Nessas parcelas urbanas hoje ocupadas por indústrias de menor porte ou serviços de armazenagem, a municipalidade pretende promover transformações revitalizadoras com o 15

intuito de dinamizar os bairros atingidos e criar instrumentos de valorização, objetivo central das chamadas operações urbanas consorciadas1, instrumento previsto em lei federal e cujas áreas a serem trabalhadas na cidade de São Paulo foram demarcadas pelo Plano Diretor Estratégico de 2002 (pde)2. Dentre os perímetros delimitados pelo pde como manchas estratégicas para a realização de futuros projetos, destacam-se as Operações Urbanas Diagonal Sul e Diagonal Norte, localizadas ao longo da antiga ferrovia Santos-Jundiaí3 desde a divisa com a cidade de São Caetano do Sul até as proximidades do trecho oeste do rodoanel, um longo percurso que atravessa vários bairros historicamente caracterizados pela atividade industrial. Recentemente, a Prefeitura Municipal de São Paulo redefiniu os perímetros inicialmente propostos nesse eixo e criou as Operações Urbanas Mooca-Vila Carioca e Lapa-Brás4. Não obstante as questões econômicas e estratégicas naturalmente envolvidas na atuação sobre áreas urbanas de grandes dimensões e relativamente ociosas, uma particularidade essencial tem sido deixada para segundo plano nas discussões sobre a atuação renovadora em antigas áreas industriais: a caracterização de grande parte desses edifícios e sítios industriais como patrimônio cultural. A postura de diversas propostas advindas dessas discussões parece não reconhecer os atributos documentais, estéticos e memoriais das preexistências industriais, dos conjuntos ali construídos

1.

brasil. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade. Seção x, art. 32, §1º. “Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo poder público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental.” (Grifo nosso.) 2. são paulo (Cidade). Lei n. 13.430, de 13 de setembro de 2002. Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo. Consultar em especial: Seção vii, art. 225, e Mapa n. 9 que integra a mesma Lei. Entre as operações urbanas consorciadas propostas pelo pde 2002, as que possuem maior incidência de sítios históricos industriais são aquelas localizadas ao longo dos eixos ferroviários, originalmente denominadas Diagonal Norte, Água Branca, Centro e Diagonal Sul. As operações urbanas consorciadas são disciplinadas pelo Plano Diretor Estratégico e pela Lei n. 13.885, de 25 de agosto de 2004, que estabelece normas complementares ao Plano Diretor Estratégico, institui os Planos Regionais Estratégicos das Subprefeituras e dispõe sobre o parcelamento, o uso e a ocupação do solo do município de São Paulo. 3. Eixo ferroviário que atualmente compreende a Linha 10 – Turquesa (trecho Rio Grande da Serra-Luz) e Linha 7 – Rubi (trecho Luz-Jundiaí) da cptm, Companhia Paulista de Trens Metropolitanos. 4. Em 2010 a pmsp criou as Operações Urbanas Consorciadas Mooca-Vila Carioca (que abarca parte da antiga Diagonal Sul) e Lapa-Brás (que abarca trechos das operações Diagonal Norte, Diagonal Sul e Centro, e incorpora a totalidade da operação Água Branca). Consultar os mapas anexos aos volumes: São Paulo, Operação Urbana Consorciada Lapa-Brás; Operação Urbana Consorciada Mooca-Vila Carioca. 16

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que evidenciam traçados urbanos, massas edificadas, percursos e cotidianidades de inegável importância na configuração de paisagens únicas. Em um cenário de grandes oportunidades de transformação urbana, essas estratificações históricas e as urbanidades e paisagens por elas geradas acabam por ser obscurecidas ou até mesmo apagadas por completo. O reconhecimento dos valores das paisagens urbanas, a sua caracterização como bem cultural e a preocupação com a sua tutela – aquisições conceituais que derivam do amadurecimento das discussões sobre a preservação, sobre o restauro e sobre a própria compreensão do que configura um patrimônio cultural – são temas que vêm se desenvolvendo desde longa data, com contribuições advindas também do campo do urbanismo. O processo contínuo de aprofundamento desse debate abriu caminho para a valorização de artefatos até então considerados “menores”, como a chamada arquitetura de base, conjuntos arquitetônicos e paisagens construídas que passaram a ser reconhecidos por suas especiais qualidades compositivas e ambientais. Tais conquistas conceituais impulsionaram a compreensão dos tecidos urbanos e das massas edificadas como elementos que definem a “literatura arquitetônica”5 de uma região, como artefatos dotados de especificidades que os qualificam como bens culturais que merecem ser valorizados e tutelados. E assim entendidos, esses espaços urbanos e conjuntos construídos passaram a requerer um conjunto complexo de medidas para o seu tratamento e preservação – medidas a serem pautadas pelos pressupostos e princípios da teoria do restauro. Essa expansão do conceito de patrimônio cultural, contexto no qual se inserem muitos exemplares do patrimônio industrial, representa um dos grandes temas do debate contemporâneo sobre a preservação e o restauro dos bens culturais. Como toda ação modificadora em um bem cultural pressupõe o reconhecimento e o entendimento prévio de suas especificidades como premissa para fundamentar qualquer proposta, a valorização de artefatos cada vez mais complexos tem nos colocado diante de grandes desafios interpretativos e operacionais. No caso do patrimônio urbano industrial, a diversidade e a complexidade de edifícios e espaços que o compõem representam uma série de dificuldades para uma correta apreensão de suas especificidades, ponto de partida para respaldar uma intervenção coerente e consciente de seus valores culturais. A grande extensão das áreas envolvidas, o entendimento das relações travadas entre espaços construídos, codificações sociais e expressividades estéticas, a devida apreensão de suas características evolutivas, composição formal e integração com o entorno, 5. Expressão empregada por Roberto Pane, sobretudo na obra: R. Pane, “Città Antiche, Edilizia Nuova [1956-1957]”, em Attualità e Dialettica del Restauro. introdução

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são alguns dos principais desafios na análise desse patrimônio, além, é claro, da própria dificuldade inicial de defender a sua caracterização como bem cultural e da pressão especulativa a que frequentemente está sujeito. O entendimento do valor cultural dos conjuntos arquitetônicos e urbanos e os princípios teóricos que devem reger a atuação sobre eles (e sobre quaisquer bens culturais) são aquisições conceituais devidamente contempladas em documentos internacionais sobre o tema; textos que sugerem diretrizes gerais para a preservação e restauro com base nas discussões travadas em décadas de amadurecimento teórico. A Carta de Veneza – principal referencial teórico do Icomos-Unesco, até hoje, e documento basilar para a nossa discussão – aborda a questão da expansão do patrimônio cultural aos sítios urbanos e edifícios modestos que adquiriram significado cultural ao longo do tempo e reúne adequadamente os princípios amplamente debatidos e acordados em âmbito internacional com relação aos critérios gerais de intervenção em bens culturais. De maneira análoga, no que tange à atuação em sítios urbanos, a Declaração de Amsterdã e a Carta de Washington6 aprofundam aspectos específicos da questão e nos oferecem bases concei­tuais seguras. Um aspecto de grande importância para o tratamento de áreas urbanas de interesse cultural, e do patrimônio industrial nesse contexto, é a discussão sobre a necessidade de integração entre os estudos da preservação e as iniciativas advindas do campo do planejamento urbano e territorial, a chamada conservação integrada, método de atuação que conclama a contribuição interdisciplinar como caminho para um adequado tratamento do patrimônio urbano. A conservação integrada, tema abordado notadamente no documento de Amsterdã, propõe a atuação interdisciplinar seja na fase de estudo das preexistências urbanas a serem preservadas, momento em que as análises multidisciplinares se fazem necessárias dada a grande complexidade desses artefatos, seja nas fases propositiva e executiva, quando se deve buscar um esforço conjunto na elaboração de projetos que abarquem concomitante e adequadamente tanto as exigências da preservação do patrimônio como aquelas do desenvolvimento urbano e territorial. Essas recomendações, considerando as particularidades do patrimônio urbano industrial e o contexto de oportunidades de transformação urbana que tanto o ameaça, respondem perfeitamente à questão sobre os caminhos a serem trilhados para a sua preservação. A observação do tratamento geralmente reservado aos edifícios e sítios industriais de interesse cultural, contudo, descortina um evidente 6. Carta de Veneza (1964); Declaração de Amsterdã (1975); Carta de Washington (1986), em Cartas Patrimoniais. 18

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distanciamento entre essas bases teóricas e as práticas efetivas de intervenção. Muitos dos projetos propostos para essas áreas, no Brasil e no exterior, têm sido elaborados sem recorrer à teoria do restauro ou se referindo a ela de modo equivocado. Essas propostas reservam pouca ou nenhuma atenção aos critérios que deveriam reger a intervenção em um patrimônio; baseiam-se em prioridades alheias à esfera cultural e, em geral, esquivam-se dessa discussão. São intervenções, portanto, desprovidas das fundamentações teóricas que deveriam respaldá-las e distantes dos princípios ditados pela teoria do restauro, sintetizados, em linhas gerais, nos citados documentos internacionais7. A despeito da teoria do restauro, da conceituação do que seja um patrimônio urbano, dos estudos desenvolvidos pelos teóricos da chamada arqueologia industrial8 e dos próprios objetivos de instituições criadas especificamente para defender esse patrimônio9, proliferam análises e projetos de intervenção pautados pela caracterização dos remanescentes industriais como meras reservas de terreno livre, pronto para a inserção de novas estruturas “revitalizadoras”. Tomando a antiga Operação Urbana Diagonal Sul (ouds), recentemente redesenhada10, como mola propulsora para os nossos questionamentos, lançamo-nos à discussão sobre os possíveis motivos desse distanciamento entre a teoria e a prática. O perímetro encampado pela ouds possui diversos edifícios e sítios industriais de interesse cultural que nem sequer conhecemos com clareza, dada a inexistência de levantamentos aprofundados sobre a área, e que correm o risco iminente de serem destruídos sem que tenhamos tempo de identificá-los e estudá-los adequadamente para propor 7.

As discussões sobre os preceitos teóricos que deveriam reger as intervenções práticas em edifícios ligados à industrialização e sobre a aplicação da teoria do restauro no tratamento desses bens são evidenciadas e aprofundadas criticamente nos estudos desenvolvidos por Beatriz Mugayar Kühl. Consultar principalmente: B. M. Kühl, Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização: Problemas Teóricos do Restauro. 8. Campo disciplinar surgido no âmbito da valorização desses artefatos e que abrange a pesquisa, o levantamento, o registro e, em alguns casos, a preservação de monumentos industriais. Entre seus principais teóricos, destacamos K. Hudson, A. Raistrick, R. Angus Buchanan e N. Cossons. Suas contribuições foram previamente analisadas em M. Rufinoni, Preservação do Patrimônio Industrial na Cidade de São Paulo: o Bairro da Mooca. 9. Como o ticcih, The International Committee for the Conservation of Industrial Heritage, criado em 1978 e com representação brasileira oficial desde 2004, com a fundação do Comitê Brasileiro de Preservação do Patrimônio Industrial. Cabe destacar a elaboração por iniciativa do ticcih da Carta de Nizhny Tagil para O Patrimônio Industrial, redigida em 2003, documento que reúne conceitos, definições, orientações sobre a realização de inventários e procedimentos gerais para a salvaguarda do patrimônio industrial. 10. Apesar da redefinição de perímetros e mudança de nomenclatura, optamos por manter neste texto as referências à Diagonal Sul, já que a mancha originalmente proposta pelo pde é maior e abrange a atual Operação Urbana Mooca-Vila Carioca em sua totalidade. introdução

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métodos criteriosos de seleção, tutela e intervenção. Diante da intenção do poder público municipal de implementar projetos de revitalização urbana nessa área, e diante das propostas geralmente apresentadas no cenário de discussões sobre a questão (projetos que giram em torno de denominações pouco precisas quanto ao tratamento de sítios históricos: revitalização, reciclagem, reabilitação...), evidenciou-se a necessidade de desenvolvermos discussões sobre os critérios que deveriam reger essas intervenções e sobre a orientação teórico-prática que deveria respaldar tais iniciativas. Colocamo-nos, assim, numa posição de buscar uma discussão que pudesse lançar luzes sobre a prática corrente de intervenções e identificar os nós conceituais, as lacunas do discurso na prática e os seus porquês. Algumas indagações nos acompanharam no decorrer da investigação: por que as prerrogativas acordadas nas cartas internacionais não são devidamente aplicadas na preservação e restauro dos bens culturais e, nesse contexto, na atuação sobre o patrimônio urbano-industrial? Seria possível identificar os nós que inviabilizam a aplicabilidade dos conceitos adquiridos na atividade prática de preservação e intervenção? Uma das causas dessa dificuldade não residiria, diante da corrente avaliação dos sítios industriais como meras reservas de terreno livre, na própria incompreensão do caráter patrimonial dessas estruturas? Ao longo do percurso investigativo, sentimos a necessidade de olhar para trás, de retomar as origens do conceito de ambiente construído e de patrimônio urbano, de trazer à tona esse percurso de aquisição conceitual e vivificar os temas, discussões e argumentos que concorreram para o amadurecimento de conceitos que parecem estar esquecidos ou talvez pouco entendidos ainda hoje. Nesse caminho, intentamos evidenciar o percurso cognitivo que permitira compreender o organismo urbano como um sistema historicamente construído, dentro do qual certos agrupamentos reúnem estratificações construtivas com características compositivas únicas e irreproduzíveis. A aquisição do conceito de patrimônio urbano e o amadurecimento da discussão sobre as formas de nele intervir, ou seja, o desenvolvimento da teoria do restauro, configurou-se, ainda, em nosso caminho investigativo como um percurso que permitiu a compreensão do fenômeno cidade como um processo contínuo de assimilação e reelaboração (de formas construídas, expressividades estéticas, vivências cotidianas), e não de sucessivas anulação e reconstrução. Partimos do pressuposto, portanto, de que buscar as origens conceituais, perseguir o desenvolvimento das teorias do restauro e certos aspectos do próprio urbanismo poderia nos instrumentar nessa retomada dos liames entre a teoria e a prática; poderia nos ajudar a evidenciar que os sítios urbanos industriais, como estratificações significativas desse sistema, devem ser tratados como um patrimônio a ser preservado 20

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lado a lado à cidade contemporânea (num movimento de assimilação recíproca) e não descaracterizado pela inobservância de seus valores ou simplesmente demolido para ceder espaço ao desenvolvimento (na anulação completa de suas presenças). De certa forma, esta pesquisa acabou por trilhar um caminho inverso: ao perceber a fragilidade na compreensão de pré-requisitos conceituais básicos para a preservação de um artefato cultural – o seu reconhecimento como tal e os pressupostos que pautam a teoria do restauro –, buscamos a origem desses princípios de modo a evidenciá-los como ponto de partida para desvendar as falhas de toda a sequência do processo interpretativo que deveria conduzir as ações de preservação. Nosso objetivo, portanto, não é a discussão específica sobre as operações urbanas citadas, a análise detalhada de projetos de intervenção ou mesmo a proposição de diretrizes ou orientações manua­ lísticas sobre como tratá-los. O tema que nos impulsionou à discussão, a Operação Urbana Diagonal Sul, configura-se como um dos casos concretos que alicerçam o desenvolvimento do debate crítico sobre a aplicabilidade dos princípios teóricos da preservação na intervenção prática sobre o patrimônio urbano-industrial. Aplicabilidade discutida, portanto, a partir da retomada do percurso teórico, instrumento crítico que julgamos oportuno adotar para identificar as lacunas conceituais do discurso na prática. Nossas argumentações pautaram-se, predominantemente, pela produção teórica e prática italiana devido à representatividade da tradição investigativa ali sediada. Além da contribuição inquestionável para a elaboração dos citados documentos internacionais, os debates travados em ambiente italiano continuaram a repercutir no prosseguimento das discussões e configuram, ainda hoje, um dos principais focos investigativos no tratamento contemporâneo sobre o tema11. Além da teoria, buscamos exemplos de intervenções propostas para sítios urbano-industriais no próprio território italiano. Apesar da grande quantidade de experiências realizadas em diversos países – algumas em áreas talvez consideradas mais ilustrativas em termos de escala, de instrumentos propositivos ou mesmo em termos de representatividade internacional, a exemplo dos sítios ingleses listados como patrimônio mundial –, optamos por permanecer predominantemente no cenário italiano. A grandiosidade dos sítios ou a representatividade do passado industrial de uma dada região não foram o enfoque perseguido. Por intentarmos discutir a aplicabilidade prática das teorias amplamente 11. Cabe ressaltar que a pesquisa que originou esta publicação contou com um período de estudos na Università degli Studi di Roma “La Sapienza” sob a orientação do professor Dr. Giovanni Carbonara. As pesquisas consistiram na análise de referências bibliográficas nos acervos da Universidade e do iccrom, na realização de entrevistas com especialistas e em visitas a obras de intervenção já realizadas ou em andamento. introdução

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discutidas notadamente no cenário italiano, julgamos mais oportuno observar diretamente como essa teoria se aplica ou não dentro do próprio território que em grande parte a sediou. O primeiro capítulo apresenta um percurso dos questionamentos e estudos que permearam a maturação do conceito de patrimônio urbano, desde as origens do entendimento da cidade como um organismo complexo e em constante mutação até os questionamentos impulsionados pelas transformações urbanas advindas de um novo paradigma de desenvolvimento: a industrialização. As alterações provocadas pelas atividades produtivas e as discussões em torno da viabilização da vida moderna nas antigas cidades são situações identificadas como impulsionadoras da valorização dos tecidos históricos que então se dissolviam. Curioso observar que os espaços gerados pela indústria – elementos transformadores que ameaçavam os tecidos urbanos antigos e impulsionavam, nesse processo, o fortalecimento das discussões sobre os valores das preexistências – são hoje os espaços construídos que assumem representatividade cultural e que solicitam a valorização de suas próprias qualidades patrimoniais; valorização, por sua vez, em grande parte também impulsionada pela ameaça dos novos paradigmas de desenvolvimento. A discussão em torno da compatibilização entre preservação das preexistências e viabilização das necessidades de desenvolvimento, um dos temas que permearam o nascimento da disciplina do urbanismo no início do século xx, ainda permanece, sob novos contornos, bastante atual. Paralelamente, acompanhamos o percurso de aquisição dos conceitos de “monumento”, “ambiente” e “valor” e suas relações com a teoria do restauro e com a apreensão das especificidades urbanas. Na sequência desse percurso, no segundo capítulo analisamos o gradativo aprofundamento investigativo sobre as qualidades do ambiente construído e sobre os modos de interferir nessa realidade. Observamos, nesse contexto, a passagem da compreensão do ambiente construído como entorno de obras monumentais, ou como conjunto de formas, para um entendimento mais complexo que abrange a apreensão desses espaços como conjunto de condições que delimitam uma realidade urbana que não é apenas física, mas também memorial e social. Esse processo foi acompanhado de contribuições diversas – sobretudo, advindas dos estudos de estética urbana e dos aprofundamentos teóricos impulsionados pelo segundo pós-guerra – e permitiu a evidenciação de uma série de questionamentos que ainda hoje geram grandes debates no campo da preservação do patrimônio urbano: a questão das relações entre o antigo e o novo, a dimensão necessariamente urbana da preservação e do restauro, a busca pelas contribuições profissionais interdisciplinares. Essas indagações, alimentadas por um entendimento cada vez mais maduro sobre os valores que definem um 22

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patrimônio, abriram caminho para a expansão desse conceito, momento em que observamos o reconhecimento e a valorização dos conjuntos arquitetônicos e urbanos provenientes da industrialização. Procuramos, ainda, observar o contexto de elaboração dos documentos internacionais e, nos limites de nossos enfoques, a repercussão dessas aquisições teóricas na realidade brasileira. O terceiro capítulo volta-se à prática de intervenção em sítios urbanos, ao restauro urbano, com enfoque na atuação em sítios industriais de interesse cultural. Inicialmente, buscamos discutir as especificidades do patrimônio urbano industrial que acabam por gerar grandes dificuldades interpretativas e operacionais para a sua preservação, como a questão da escala, da apreensão de suas qualidades compositivas ou a pressão da especulação imobiliária. De posse do panorama sobre os desafios a serem enfrentados na preservação desses artefatos, intentamos destacar os principais entraves operacionais do restauro urbano e, em tal contexto, do restauro urbano de áreas industriais. Observamos, nesse percurso, flagrantes lacunas entre as aquisições concei­ tuais debatidas nos primeiros capítulos e a efetiva prática de preservação urbana. A discussão sobre os “nós” teórico-práticos desenvolve-se de modo a buscar a resposta de nossas prévias indagações: a questão da aplicabilidade dos conceitos teóricos – das prerrogativas acordadas em documentos internacionais – na prática de preservação e restauro do patrimônio urbano industrial. São, então, analisados alguns casos de intervenção em sítios industriais considerados mais ilustrativos para a discussão dos principais entraves teóricos e problemas práticos que intentamos evidenciar. Analisamos por fim, nesse contexto, a situação da ouds, lançando a discussão para o panorama brasileiro e paulistano. Nessa realidade, buscamos confrontar a teoria e a prática em face dos projetos propostos para a área, da abordagem do plano diretor e dos recursos de tutela disponíveis. Resgatar criticamente o percurso de aquisição teórica como instrumento para analisar o discurso prático, por fim, permitiu-nos levantar uma série de novas indagações, sobretudo relacionadas às formas correntes de apreensão do fenômeno cidade, ao desafio de projetar suas transformações e de vivenciar suas preexistências. O aprofundamento das questões envolvidas na preservação e interpretação do patrimônio urbano, portanto, abre caminho para repensarmos nossos modos de ver, entender e projetar a arquitetura e a cidade de hoje; e nos lança à reflexão sobre quais documentos urbanos devemos e queremos legar para o futuro.

introdução

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https://www.edusp.com.br/detlivro.asp?ID=414497

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